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ISMAIL XAVIER O DISCURSO CINEMATOGRAFICO a opacidade e a transparéncia 38 edigao Revista ¢ ampliada PAZ E TERRA © Ismail Xavier Foros: Acervo Cinemateca Brasileira CIP-Brasil. Catalogaga (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) na-fonte Xavier, Ismail, 1947- x19d O discurso cinematogeifico: a opacidade ¢ a transparéncia, 3* edicao ~ Sao Paulo, Paz e Terra, 2005. ISBN 85-219-0676-5 Inclui bibliografia 1. Cinema ~ Estética, 2. Cinema - Filosofia 1. Tieulo I. 03-1822 CDD-791.4301 CDU-791.43.01 EDITORA PAZ E TERRA SIA Rua do Triunfo, 177 o Paulo, SP — CEP: 01212-010 ‘el: (O11) 3337-8399 Santa Efigénia E-mail: vendas@pazeverra.com.br HomePage: www. pazeterra.com.br 2005 Impresso no Brasil { Pinted in Brazil PREFACIO Hé quase trinta anos, 0 livro O discurso cinematogréfico resiste bravamente como a mais importante obra sobre teoria cinematogrifica produzida no Brasil, mesmo considerando a ex- celéncia de outras contribuigées que vieram depois, algumas inclusive do mesmo Ismail Xavier. Varias gerages de profissionais do cinema, audiovisual ¢ comunicagao em geral se formaram nas universidades tendo este livro como a sua principal referéncia bibliografica. As razes s30 simples de clucidar. Em primeiro lugar, Xavier tem uma vasta bagagem de leituras, abrangendo praticamente tudo 0 que de importante foi pensado e escrito no terreno dos estudos de cinema desde as suas origens até as mais recentes discussdes sobre o atual reordenamento do audiovisual. ‘Tem também uma invejavel capacidade de condensagio e sintese, sabendo extrair da babel dos debates entre as diferentes tendéncias tedricas 0 seu fundo conceitual mais importante, para depois destilar isso tudo numa linguagem clara e acessivel, mas sem comprometer a complex: dade das questées discutidas, nem sacrificar a necessaria densidade conceitual em nome de qualquer didatismo simplificador. B além de tudo isso, é um autor com opinigo: no apenas apresenta objetivamente as virias teorias, mas se posiciona com relacéo a elas. Eis porque um livro como O discurso cinematogrdfico demandava uma edigio nova ¢ atualizada. Evidentemente, um livro publicado originalmente em 1977 reflete as discusses que estavam em proceso naquele momento. Nos anos 1970, 0 processo de recepgao do filme € 0 modo como a posigéo, a subjetividade ¢ os afetos do espectador sio trabalhados ou “programa dos” no cinema mereceram uma atengao concentrada da critica, a ponto desses temas terem se constituido no foco de atengao privilegiado tanto das teorias estruturalistas, psicanaliticas € desconstrucionistas, quanto das andlises mais “engajadas” nas varias perspectivas marxistas, feministas ¢ multiculturalistas. Nessas abordagens, o aparato tecnolégico e econdmico do cine- ma (na época chamado de “o dispositivo”), bem como a modelagao do imagindrio forjada por seus produtos foram submetidos a uma investiga¢io minuciosa ¢ intensiva, no sentido de veri- ficar como o cinema (um certo tipo de cinema) trabalha para interpelar o seu espectador en- 6 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO quanto sujeito, ou como esse mesmo cinema condiciona o seu piblico a identificar-se com através das posigdes de subjetividade construidas pelo filme. Quando 0 “dispositivo” é oculta- do, em favor de um ganho maior de ilusionismo, a operacao se diz de transparéncia. Quando o “dispositivo” é revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento ¢ critica, a operagio se diz de opacidade. Opacidade ¢ transparéncia — subtitulo do livro — so os dois pélos de tensio que resume o essencial do pensamento daquele period. Nesta nova edigdo, Xavier optou por nao interferir no texto original de 1977 (e no apéndice de 1984). Em compensa¢ao, adiciona a esta edi¢ao um capitulo novo, que dé conta do posterior avango da teoria ~ e também da sua dispersdo ou desconcentragao em torno apenas de alguns temas hegemdnicos. Esse capitulo adicionado € praticamente um livro novo — como se fosse um Discurso cinematogréfico 2— onde, novamente com notavel poder de sintese, Xavier traga o percurso do pensamento tedrico desde a critica do “desconstrucionismo” dos anos 1970. até © surgimento de novas perspectivas de andlise. De fato, de 1977 para ci, 0 pensamento predominante nos anos 1970 foi submetido a uma reviséo as vezes bastante dura. As teorias daquele periodo pressupunham uma concepgdo um tanto monolitica do que era 0 cinema “classico” e essa concepsao comecou a se mostrar problemética quando as atengdes se voltaram para um numero imenso de filmes “comerciais” e até hollywoodianos que nao referendavam o modelo. Por outro lado, a concepgao que se fazia da atividade do espectador ou do processo de recepgfo era demasiado abstrata ¢ rigida: 0 espectador era visto, nesses sistemas teéricos, como uma figura ideal, cuja posigao ¢ afetividade encontravam-se estabelecidas @ priori pelo aparato ou pelo “texto” cinematogréfico, ndo cabendo portanto nenhuma consideracio a respeito de uma possivel resposta auténoma de sua parte. O novo capitulo acrescentado oferece ao leitor uma espécie de mapa conceitual dos novos caminhos perseguidos pelo pensamento cinematogréfico a partir dos anos 1980: a critica dos modelos tedricos do estruturalismo e da psicandlise (David Bordwell, Noel Carroll), os novos modelos da semio-pragmatica (Roger Odin, Francesco Casetti), a retomada da tradiggo baziniana em perspectiva contemporinea (Serge Daney), 0 retorno ao cinema das origens (Tom Gunning, Miriam Hansen), as perspectivas feministas (Laura Mulvey, Mary Ann Doane), as criticas da cultura (Fredric Jameson, Jean Louis Comolli, Paul Virilio), as incursées de fundo filos6fico (Slavoj Zizek, Stanley Cavell, Gilles Deleuze), 0s estudos culturais (Raymond Williams, John Fiske, Jesus Martin-Barbero), o didlogo com a pintura (Jacques Aumont, Pascal Bonitzer) ou com a miisica (Michel Chion) ou com as outras artes visuais ¢ audiovisuais (Raymond Bellour, Philipe Dubois) e a recente “inversio do principio” operada por Jacques Ranciére. Trata-se de uma verdadeira viagem pelo pensamento contemporaneo do cinema, do audiovisual da cultura inteira do presente, onde Xavier faz 0 papel néo apenas de guia, mas também de protagonista, j4 que, em muitos momentos, ele nao esté apenas comentando o pensamento dos outros, mas também dando forma ao seu préprio universo conceitual. PREFACIO. 7 Mas, ainda que um certo fundamentalismo ortodoxo dominante nos anos 1970 tenha passado pelas necessirias corregées e relativizagdes nas décadas seguintes, o essencial daquela discussio permaneceu de alguma forma e é bom que nao seja esquecido. E muito instrutivo norar como a dialética da opacidade e da transparéncia, anunciada como moribunda no cinema € na teoria mais recente, retorna agora com toda forga nos novos ambientes computacionais. Uma autoridade nessa drea como Oliver Grau, em seu recente livro Virtual art. From illusion to immersion (Cambridge: The MIT Press, 2003), discute as determinagoes ideoldgicas do ilusio- nismo na realidade virtual e no video game ¢ o faz numa diregao tedrica que lembra estreita- mente as discussGes em torno do “dispositive” nos anos 1970, Ele se pergunta se ainda pode haver lugar para a reflexio critica distanciada nos atuais espacos de imersio experimentados através de interagao. Mostra também como as técnicas de imersio com a interface oculta (cha- mada ingenuamente de “interface natural”) afeta a instituicao do observador e como, por outro lado, interfaces visiveis, fortemente acentuadas, tornam o observador mais cnscio da experién- cia imersiva e podem portanto ser condutoras de reflexdo. Se a histéria se repete em ciclos, & conveniente, vez por outra, retornar aos modelos de pensamento do passado no apenas para constatar o que foi superado, mas também para avaliar o que podemos estar perdendo. Arlindo Machado NOTA INTRODUTORIA A 3? EDIGAO Quando da primeira edigio deste livro, organizei a apresentagao das teorias a partir de um eixo que marcava a oposicao entre “opacidade ¢ transparéncia’, partindo da diferenca entre estilos de composicao da imagem ¢ do som no cinema. Num extremo, hé o efeito-janela, quan- do se favorece a relacio inrensa do espectador com o mundo visado pela cimera ~ este é cons- trufdo mas guarda a aparéncia de uma existéncia auténoma. No outro extremo, temos as opera- ges que reforcam a consciéncia da imagem como um efeito de superficie, rornam a tela opaca ¢ chamam a atengio para 0 aparato técnico ¢ textual que viabiliza a representagao. Tal oposigio se ajustava a0 debate tedrico de meados dos anos 1970, momento em que se criavam as nogoes em consonancia com os desafios trazidos pela pritica do cinema nas versdes mais radicais do underground norte-americano e do cinema europeu pés-1968, este que teve no Godard de Vento do leste, nos documentitios de Jean Daniel Pollet € no cinema conceitual de Jean-Marie Straub seus exemplos mais discutidos. No Brasil, era 0 momento em que o “cinema de invencao", ou “experimental”, operava também no terreno da desconstrucao. Desde entio, o campo das idéias ¢ teorias cinematogrificas se expandiu em variadas dire- goes de modo a criar um novo quadro conceitual para o debate, o que exigiria um outro ponto de vista para a apresentacio das teorias dentro do espirito didético, de introduso, presente no corpo deste livro, Neste longo periodo, as idéias que emergiam do préprio contexto dos cineas- tas e dos criticos conviveram com uma intensa produgio de textos tedricos vinda das univer dades, uma vez. que 0 dado diferencial entre 1977 € hoje foi a consolidacao da pesquisa acade- mica. Esta explorou os campos da anélise formal (o drama, a narrativa, a composigao visual e a trilha sonora) ¢ a intrincada relacao entre o cinema e as outras artes, num mundo em que a interpretagao de experiéncias estéticas mostra que nao é mais possivel montar um sistema das artes distintas, especificas, como se fez durante algum tempo € como tentaram fazé-lo os pri- meiros defensores do cinema como arte auténoma. 10 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Tal como os cineastas em seu trabalho, teéricos ¢ criticos tém enfrentado o desafio trazido pelo impacto do avango tecnolégico que desestabiliza a propria definigao do cinema. A ténica é contabilizar perdas ¢ ganhos, reconhecendo que 0 seu destino esté atrclado a0 dos outros suportes da experiéncia audiovisual (0 video, a imagem e som digitais). Transformacées do mundo pritico rebatem sobre a teoria num momento em que, no plano da reflexio, hd maior complexidade nas relagées entre a teoria do cinema e a filosofia, ¢ hd um enorme avanco dos estudos histéricos viabilizados pela parceria entre as universidades ¢ as cinematecas. A diversi dade do que foi produzido e as rotagées havidas no eixo dos debates exigiram, numa atualiza- sa0, praticamente um novo livro caso adotasse o mesmo padrio de exposigao das teorias e dos programas estéticos. O discurso cinematogréfico, em seu formato original, em se mantido de grande utilidade nos cursos de cinema. O testemunho dos colegas atesta a sua renovada procuta, 0 que me faz cret que os parametros que o nortearam foram coerentes e eficientes na configuracao do percur- so da teoria até 1977. Nesta nova edi¢ao, optei por nao intervir no corpo do texto. Descartei eventuais alteragdes de passagens que posso hoje julgar esquematicas. Preservei o livro de 1977 e sua unidade (incluindo o Apéndice 1984). O dado novo vem no final desta edigao; em texto complementar, fago um breve mapeamento do intervalo que nos separa da primeira, mais a titulo de indicagio do que de explicacéo dos tépicos ¢ tendéncias que emergiram como respos- tas ao debate jé apresentado no livro. Optei por um recorte que organiza o campo a partir de um eixo que se ajusta as indagagées sobre a transparéncia e opacidade, mas traz a0 centro a questio do dispositivo cinemarografico, foco maior da polémica ocorrida nos anos 70, capitulo final da primeira edicio. Ismail Xavier, julho de 2005. SUMARIO Introdugio 1. A janela do cinema ea identificagao ... II. A decupagem cléssica III. Do naturalismo ao realismo critico ... a. A representacao naturalista de Hollywood .... . As experiéncias de Kulechov .... ©. O realismo da “Visio de Mundo” . D. O realismo critico explicitado. IV. O realismo revelatério ¢ a critica 8 montagem_ 4. O empirismo de Kracauer ¢ 0 humanismo neo-realist 8, O modelo de André Bazin is ¢ a “abertura’ C. As corregies fenomenolégi V. A vanguarda A. O anti-realismo e 0 cinema de sombras ... 8, Cinema poético e cinema puro ... ©. O advento do objeto ¢ a inteligéncia da maquina ... pb. O modelo onfrico ... E. A imagem arquétipo .. F. O olhar visiondrio e a questo epistemoldgica 13. 7 27 41 41 46 52 Bi 67 67 79 89 99 99 103 107 iii 115 118 12 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO VI.O cinema-discurso ¢ a desconstrugao 129 a. Eisenstein: da montagem de atrag6es ao cinema intelectual 129 b. O impacto das ciéncias da linguagem 137 c. A desconstrusio .. 146 VII. As falsas dicotomias 165 Apéndice 1984. 171 175 As aventuras do Dispositivo (1978-2004) ... Indice onomastico .. Indice de revistas... 212 INTRODUGAO Minha tarefa ¢ apresentar, dentro da faixa mais ampla possivel, as mais significa- tivas posturas estético-ideolégicas que foram assumidas frente ao cinema ao longo de pra- ticamente sessenta anos (da Primeira Guerra Mundial ao inicio da década de 1970). Um periodo tao longo comporta uma diversida- de de formulacies, no nivel da reflexéo es- crita, que compée um elenco bastante am- plo para embaracar a quem se propée apre- senté-la em conjunto, Tais formulagdes nao constiruem uma rede fechada de proposigdes que se explicam por si mesmas nem sao inte- ligiveis apenas na base de uma classificagao que fornece o “quadro” de suas diferengas. O cinema nao foge & condigao de campo de incidéncia onde se debatem as mais diferen- tes posigdes ideolégicas, ¢ 0 discurso sobre aquilo que the ¢ especifico é também um discurso sobre principios mais gerais que, em liltima instdncia, orientam as respostas a questes especificas. Tendo em vista tais con- digées, para a montagem das diversas pers- pectivas aqui discutidas, certas selegoes pre- cisam ser feitas ¢ um principio ordenador precisa ser escolhido, de modo que a exposi- a0 das propostas seja capaz de tornar claras as implicagdes presentes em cada uma. Fica descartada a apresentago pura- mente cronolégica, dada a sua tendéncia a produzir a ilusio de que o texto esta dando conta de uma determinada histéria ¢ que a simples sucesso constitui um principio ex- plicativo. Nao ha aqui também uma nova “histéria das idéias cinematogréficas”, uma vez que nao procuro explicar um proceso € sua légica de desenvolvimento. Hi apenas 0 objetivo de por em confronto diferentes pos- turas e situd-las com base em sua resposta a uma questao fundamental nos debates em torno da pratica cinematogréfica. O eixo que me guia nesta exposigio é a concepgao assu- mida por diferentes autores ¢ escolas quanto ao estatuto da imagem/som do cinema fren- te 8 realidade (dentro das concepgGes confli- antes que se tem desta). As varias posigdes assumidas quanto as relagdes entre discurso cinematogrifico ¢ rea- lidade nao constituem uma decisio puramen- te tedrica, Para evitar confusdes raramente 14 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO faso uso do termo “teoria”, uma vez que, esquematicamente, as perspectivas sio com- postas em dois momentos basicos: hd, em cada proposta, uma ideologia de base que pretende explicar, ou simplesmente postu- lar, a existéncia de certas propriedades na imagem/som do cinema. Dentro do espago ctiado por tal ideologia ¢ feita uma devermi- nada proposigao referida 3 pritica cinema- togrifica, basicamente no que diz respeito a0 modo de organizar a imagem/som, tendo em vista a realizagao de certo objetivo socio- cultural tomado como tarefa legitima do ci- nema, Em geral, a conexio entre teoria “ge- ral” ¢ norma “particular” ganha nitidez na medida em que a norma, referida ao que 0 cinema “deve set”, procura apoio numa teo- ria que, em primeiro lugar, garanta que 0 ci- nema “pode ser” o que se Ihe pede e, em se- gundo lugar, afirme que “é mais préprio a sua natureza” ser o que se Ihe pede. Por estes motivos, prefiro usar o termo “estéticas ci- nematogrificas”, aplicado a proposigoes dis- postas a orientar uma determinada pritica e uma determinada critica cinematogréfica. Para tornar mais didatica esta apresen- tacio, optei pela exposigéo mais detida das idéias de um conjunto basico de autores, evi- tando a acumulagio de referéncias historio- gréficas que dariam mais precisio ao pano- rama tracado, mas que nao contribuiriam decisivamente para a discussio central que me interessa. Ao mesmo tempo, uma tradi- ao de debates em torno do problema do do- cumentirio cinematografico nao recebe aqui um tratamento 3 parte, tendo em vista que isto acarretaria uma ampliagao dificil de ma- nejat, dados os limites e proporgées deste tra- balho, implicando num deralhamento que procurei evitar. Ao discutir cada proposta, minhas consideragdes vao estar concentra- das no cinema ficcional, aquele mesmo que tradicionalmente tem sido oposto ao cine- ma documentirio como se fossem géneros nitidamente separados. Isto nao significa a aceitacao de tal oposigéo nos moldes em que cla em geral foi proposta, seja na base da di- cotomia “natural (espontanea)/artificial (re- presentacéo)”, seja na base do grau de “vera- cidade” do filme conforme sua pertinéncia a um género ou outro. Aqui é assumido que 0 cinema, como discurso composto de imagens sons é, a rigor, sempre ficcional, em qual- quer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e con- trolado, de diferentes formas, por uma fonte produtora.* Neste sentido, o que esta ausen- te no meu texto nao é um discurso sobre 0 documentario; mas, um discurso sobre de- terminados autores cuja perspectiva se defi niu exclusivamente em relag4o ao documen- tario — Flaherty, Grierson, Ivens, Jean Rouch, por exemplo (a tinica excegio ¢ 0 rapido co- mentirio sobre Dziga Vertov, dada a sua po- sigdo central nas referéncias de certos ided- * Fiz um uso largo da idéia de ficso ~ sindnimo aqui de “nao real”, universo do discurso. Nao levei em conta a diferenga peculiar da “ficcio propriamente dita”, como invengao — simulacdo consentida -, diante de outras formas de discurso, distingio que pode rornar-se relevante em outro contexto de andlise. INTRODUGAO 15 logos contemporincos). As varias estéticas aqui discutidas correspondem ao estabeleci- mento de determinados princ{pios gerais que se aplicam a diferentes modalidades de pro- dugao cinematogréfica, incluido o documen- tirio. Afinal, as proposiges de Bazin, Kra- cauer, Pudovkin ou da revista Cinéthique nao estio formuladas de modo a exclui-lo como algo estranho ao seu dominio, pelo contré- rio. Portanto, no que segue, o discurso sobre o documentario esta presente, embora nao especificado. I A JANELA DO CINEMA E A IDENTIFICACAO E comum se dizer da imagem fotogra- fica que ela ¢ 20 mesmo tempo um icone e um indice em relagio aquilo que representa. Entre outras formulagées semelhantes, po- demos tomar a de Maya Deren, figura basica da vanguarda americana de 1947 1961, que fornece uma clara explicagao em seu artigo “Cinema: 0 uso criativo da realidade” (1960). “O termo imagem (originalmente baseado em imitagao) significa, em sua primeira acepgio, algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real; no proprio ato de espe- cificar a semelhanga, tal cermo distingue e estabelece um tipo de experiéncia visual que nao é a experiéncia de um objeto ou pessoa real. Neste sentido, especificamente negati- vo — no sentido de que a fotografia de um cavalo nao € 0 proprio cavalo ~ a fotografia é uma imagem”. Até aqui, o critério da seme- Ihanga compreende 0 que, de acordo com a classificagéo de Pierce, define um tipo de sig- no: 0 icone (em principio, a imagem denota alguma coisa pelo fato de, ao ser percebida visualmente, apresentar algumas proprieda- des em comum com a coisa denotada) ‘Ao mesmo tempo, a prépria Maya Deren é enfitica em apontar a diferenga fun- damental que separa a imagem fotogréfica de outros tipos de imagem, obtidas de acor- do com processos distintos (por exemplo, as imagens produzidas pela mio do homem: desenhos, pinturas etc.): “Uma pintura nao 6 fundamentalmente, algo semelhante ou a imagem de um cavalo; ela ¢ algo semelhante a.um conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintu- ra abstrata, ndo carregar nenhuma relagao visivel com um objeto real. A fotografia, en- tretanto, é um processo pelo qual um objeto ctia sua prépria imagem pela agao da luz so- bre o material sensivel. Ela, portanto, apre- senta um circuito fechado precisamente no ponto em que, nas formas tradicionais de arte, ocorre o processo criativo uma ver. que a realidade passa através do artista”. Em ou- tras palavras, ela esté falando sobre a indexa 18 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO lade da imagem fotogréfica pois, dado que © proceso forogréfico implica numa “im- pressio” luminosa da imagem na pelicula, esta imagem enquadra-se também ma cate- goria de indice ~ “um indice é um signo que se refere a0 objeto que ele denota em virtude de ter sido realmente afetado por este obje- to” (Philosophical writings of Pierce, p.102). A partir deste fato, toda uma série de comentarios discusses podem ser feitos quanto aos especificos mecanismos presen- tes no funcionamento da imagem fotografi- ca como signo, 0 que é justamente levado até as tiltimas conseqiiéncias dentro de uma perspectiva semidtica. Foi comecando por esta constatagao da iconicidade e da indexa- lidade que a pesquisa semiética lida com a fotografia ¢ o cinema. Notada- mente a partir da década de 1960, tal pers- pectiva desenvolveu suas investigagdes no tocante As condigdes (de percepgao) presen- tes na leitura da imagem, buscando os cédi gos responsiveis pelo seu poder significance. A anilise semidtica atinge hoje um grau refi- nado, mas nao é na diregio desta investiga- ao teérica que vamos caminhar, mas na di regdo das implicagées priticas que advém destas propriedades bésicas do material fo- tografico ¢ cinematografico. Estou interes- sado em expor e discutir propostas estéticas, defensoras de um tipo particular de cinema, € 0 modo como estas propostas encaram ¢s- tas propriedades. Sem discutir o que esta por trds da se- melhanga ou da indexalidade, vamos reter a idéia de fidelidade de reprodugéo de certas propriedades visiveis do objeto ¢ a idéia de que uma fotografia pode ser encarada como um documento apontando para a pré-exi téncia do elemento que ela denota. Estes sio pontos de partida para a reiterada admissio ingénua de que, na fotografia, s4o as coisas mesmas que se apresentam 3 nossa percep- do, numa situagao vista como tadicalmente diferente a encontrada em outros tipos de representacio. Se j4 € um fato tradicional a celebragao do “realismo” da imagem foro- gréfica, tal celebragéo € muito mais intensa no caso do cinema, dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reprodu- zit, no s6 mais uma propriedade do mundo visivel, mas justamente uma propriedade es- sencial & sua natureza — 0 movimento. O aumento do coeficiente de fidelidade ¢ a multiplicagao enorme do poder de ilusio estabelecidas gragas a esta reproducao do movimento dos objetos suscitaram reacies imediatas ¢ reflex6es detidas. Estas tém uma longa historia, que se iniciou com a primei- ra projecéo cinematografica em 1895 ¢ se estende até nossos dias. Nos primeiros tem- pos, sio numerosas as crénicas que nos fa- lam das reages de panico ou de entusiasmo provocadas pela confusao entre imagem do acontecimento ¢ realidade do acontecimen- to visto na tela. Os primeiros teéricos fize- ram deste poder ilusdrio um motivo de elo- gio (ao cinema) ¢ de critica (aos explorado- res do cinema), que Ihes consumiu boa par- te de suas elaboragdes: os psicdlogos, desde Munstenberg (livro publicado em 1916) até 0s doutores da filmologia (pés-2* Guerra), passando por Arnheim (1933), tiveram af seu tema preferido, E a discussio do tema — a AJANELA DO CINEMA E A IDENTIFICAGAO 19 impressdo de realidade no cinema —torna-se 0 estopim para uma polémica fundamental desenvolvida recentemente na Franca, envol- vendo uma tradicao filmoldgica, que em cer- tos termos se estendea Jean Mitrye Christian Metz, de um lado, ¢ as revistas Cahiers du cinéma e Cinéthique do outro. Entre estas duas revistas, 0 conflito também é¢ flagrante ¢ dele vem participar a figura de Jean-Patrick Lebel. Esta € uma discussio a que pretendo chegar, mas nao estou preparado ainda para’ elucidd-la, Nada foi dito até aqui sobre a implicagéo fundamental contida no fato de um filme ser composto por uma sucessio de fotografias. Eu disse algo sobre a reprodusio do movimento, mas nao disse que o eixo das discusses esta justamente no modo como devem ser encaradas as possibilidades ofere- cidas pelo processo cinematogréfico. O con- junto de imagens impresso na pelfcula cor- responde a uma série finita de forografias nitidamente separadas; a sua projegao ¢, a rigor, descontinua. Este proceso material de tepresentagio nao impée, em principio, ne- nhum vinculo entre duas fotografias sucessi- vas. A relagio entre elas sera imposta pelas duas operagées basicas na construgao de um. filme: a de filmagem, que envolve a opcao de como os varios registros serao feitos, € a montagem, que envolve a escolha do modo como as imagens obtidas sero combinadas ritmadas. Em primeiro lugar, consideremos uma hipétese elementar: a cimara sé € posta em funcionamento uma ver ¢ um registro continuo da imagem é efetuado, captando um certo campo de visio; entre o registro ea projecio da imagem nada ocorre sen velagao e copiagem do material. Neste caso, temos na projegao uma imagem que ¢ perce- bida como um continuum. Uma primeira constatagéo é que, mesmo neste caso, 0 re tangulo da tela nao define apenas 0 campo de visio efetivamente presente diante da ci- mera ¢ impresso na pelicula de modo a for- necer @ iluséo de profundidade segundo leis da perspectiva (gracas as qualidades da len- te). Noel Busch nos lembra muito bem o fato clementar de que o espaco que seestende fora do campo imediato de visio pode também set definido (em maior ou menor grau). Burch nao nos diz. “pode sex”; ele é mais taxativo na admissio absoluta da virtual presenga deste espago nao captado pelo enquadramento: “Para entender o espago cinemitico, pode revelar-se til consideré-lo como de fato cons- tituido por dois tipos diferentes de espaco: aquele inscrito no interior do enquadramen- to e aquele exterior a0 enquadramento (Praxis do cinema). A meu ver, esta admissio ja €indicadora de uma valorizagio, onde cer- to tipo de imagem passa implicitamente a nao ser considerada “cinemética” apesar de ser materialmente cinematogréfica Isco fica mais claro, quando tentamos estabelecer de que modo este espago “fora da tela” pode ser definido dentro da hipéte- se inicial (registro e projegao continua). Neste caso, 0 espaco diretamente visado pela ci- mara poderia fornecer uma definigio do es- paco nio diretamente visado, desde que al- gum elemento visivel estabelecesse alguma relagio com aquilo que supostamente esta- ria além dos limites do quadro, Uma relagio 20 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO freqiiente vem do faro de que © enquadra- ‘mento recorta uma porgio limitada, o que via de regra acarreta a captagao parcial de certos elementos, reconhecidos pelo espec- tador como fragmentos de objetos ou de cor- pos. A visao direta de uma parte sugere a presenga do todo que se estende para o espa: go “fora da tela”. O primeiro plano de um rosto ou de qualquer outro detalhe implica na admissdo da presenga virtual do corpo. De modo mais geral, pode-se dizer que espago visado tende a sugerir sua prépria extensio para fora dos limites do quadro, ou também a apontar para um espaco contiguo nao visivel. Esta propriedade esta longe de ser exclusiva & fotografia ou ao cinema. Ela manifesta-se também em outros tipos de co- municagao visual, dependendo basicamente do critério adotado na organizagio da ima- gem. A tendéncia & denoragao de um espaco “fora da tela” ¢ algo que pode ser intensifica- do ou minimizado pela composigio forne- ida, Nestes termos s6 uma andlise mais cui- dada poderia verificar a validade da afirma- a0 de André Bazin: “Os limites da tela (ci nematogrifica) nao s4o, como o vocabulério técnico As veres 0 sugere, 0 quadro da ima- gem, mas um ‘tecorte’ (cacheem francés) que nao pode sendo mostrar um a parte da reali dade. O quadro (da pintura) polariza 0 es- paco em diregao ao seu interior; tudo aquilo que a tela nos mostra, contrariamente, pode se prolongar indefinidamente no universo. O quadro é centripeto, a tela é centrifuga” (Quest-ce que le cinéma? —v. tt, p.128). Bazin tem a seu favor alguns dados da histéria da pintura no século xtx. A tendén- cia A composigao que procura o detalhe nao auto-suficiente ¢ 0 fragmento como fragmen- to, em vez do todo completo que se fecha em si mesmo, foi crescentemente se mani- festando paralelamente ¢ sob a influéncia da fotografia (0 caso Deégas ilustra este efeito da fotografia na concepgao da estrutura da ima- gem pictorica). Além disso, seria forte carac- teristica do instantineo fotogréfico resultar numa composi¢ao espacial cuja tendéncia a a incompletude iria confirmar a tese de Bazin. De qualquer modo, no caso do cine- ma, hé algo mais do que isto. O movimento efetivo dos elementos visiveis seré responsé- vel por uma nova forma de presenca do es- pao “fora da tela”. A imagem estende-se por um determinado intervalo de tempo ¢ algo pode mover-se de dentro para fora do cam- po de visio ou vice-versa. Esta € uma possi- bilidade especifica da imagem cinematogré- fica, gracas 4 sua duragao. E claro que o tipo de definigio dado ao espago “fora da tela” depende da modalidade de entrada ou saida que efetivamente ocorre. Um exemplo sig- nificativo deste problema nos é dado pelo proprio estagio da chamada “linguagem ci- nematogrifica” no inicio do século. No pe- riodo dominado pelo sempre criticado “tea- tro filmado”, um caso limite de construgao filmica era o da adogio de um ponto de vis- ta fixo, A cimera, fornecendo um plano de conjunto de um ambiente (cendrio teatral), onde determinada representagao se dava nos moldes de uma encenagao convencional, si- tuava-se na clissica posicdo dos espectado- res. Aqui, a entrada ¢ saida dos atores tinha tendéncia a se definir dentro do estilo pré- prio as entradas ¢ saidas de um palco. Este seria um fator responsdvel pela redugao do AJANELA DO CINEMA E A IDENTIFICACAO 21 espaco definido pela cimera aos limites do espago teatral, portanto, nao cinematico na acepcao de Burch. Os elementos fundamen- tais para a constituicao da representagao en- contram-se todos contidos dentro do espa- 0 visado pela camera, ocotrendo, além dis- so, um reforco desta tendéncia ao enclausu- ramento, proveniente de dois outros fatores combinados: (1) a propria configuracio do cenério, tendente a produzir uma unidade fechada em si mesma; (2) a imobilidade e 0 ponto de vista da camera, ctimplice no efei- to sugerido pelo cenario, na medida em que a visio de conjunto evita a fragmentacéo do espaco em que a agao se desenvolve. Portanto, a ruptura com este “espago teatral” € a criagdo de um espaco verdadeira- mente cinematico estaria na dependéncia da ruptura com esta configuracio rigida. No caso deste plano fixo e continuo corresponder a filmagem de um evento natural ou aconte- cimento social em espacos abertos, apesat da postura de cimera ser 2 mesma, a ruptura frente ao espaco teatral estaria garantida pela propria natureza dos elementos focalizados, aptos a produzir a expansio do espaco para além dos limites do quadro gracas ao seu movimento. Nunca ninguém associou um plano fixo ¢ continuo numa rua, ou mesmo a famosa chegada do trem da primeira pro- jesa0 cinematogréfica, a algo como 0 “teatro filmado”. Mesmo num filme constituido de um Gnico plano fixo ¢ continuo, pode-se dizer que algo de diferente existe em relagao a0 espago teatral, e também em relagio a0 espago pictérico (especificamente o da pin- tura) ou mesmo o fotogrifico: a dimensio temporal define um novo sentido para as bordas do quadro, nao mais simplesmente limites de uma composigio, mas ponto de tensio origindrio de transformagées na con- figuracao dada. Na verdade, quando Burch fala em espaco cinematico ele esté se referin- do justamente & organizacio e a0 dinamis- mo nascidos desta diferenga. Minha aludida preferéncia pelo “pode ser definido” em vez do “é definido” em relagéo a0 espago “fora da tela’, vem da admissio de que, nao sé nesta hipétese elementar, mas também e es- pecialmente em estruturas mais complexas, uma construgio absolutamente cinemdtica pode ganhar seu efeito justamente por tra- balhar na direcao contréria, Neste caso, pro- curar-se-ia deliberadamente produzir uma indefinigéo do nao visto ¢ um enclausura- mento do espaco visado (sem ser teatro fil- mado). JA falei de algumas coisas especificas a0 cinema ¢ ainda nem toquei nos dois elemen- tos tradicionais sempre considerados como fundadores da arte do cinema: a chamada “expressividade” da cimera € a montagem. Entrar neste terreno significa caminhar em diregao a outras possibilidades advindas da propria natureza material do processo cine- matogrifico: numa delas, ainda mantemos 6 registro continuo, mas conferimos mobi- lidade 4 camera; na outra, introduzimos a descontinuidade de registro, o que implica em supor o pedaco de filme projetado como combinagao de, pelo menos, dois registros distintos. No caso do movimento continuo de cimera, a constante abertura de um novo 22 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO campo de visio tende a reforcar a caracteris- tica bésica do quadro cinematogréfico con forme a tese de Bazin: ser centrifugo. O movimento de cimera é um dispositivo tre- mendamente reforsador da tendéncia & ex- pansio, Concretamente, ele realiza esta ex- pansio e, como diz Burch, transforma o es- paco “fora da tela” em espago diretamente visado pela cimera. As metéforas que pro- poem a lente da camera como uma espécie de olho de um observador astuto apdiam-se muito no movimento de camera para legiti- mar sua validade, pois so as mudangas de direcdo, os avangos € recuos, que permitem as associagbes entre 0 comportamento do aparelho e os diferentes momentos de um olhar intencionado. Ao lado disto, 0 movi- mento de camera reforca a impressio de que hé um mundo do lado de l4, que existe inde- pendentemente da cimera em continuidade 20 espaco da imagem percebida. Tal impres- so permitiu a muitos estabelecer com maior intensidade a antiga associagéo proposta em relagdo & pintura: 0 retingulo da imagem é visto como uma espécie de janela que abre para um universo que existe em si € por si, embora separado do nosso mundo pela su- perficie da tela. Esta nogao de jancla (ou as vezes de espelho), aplicada ao retangulo ci nematogréfico, vai marcar a incidéncia de princfpios tradicionais & cultura ocidental, que definem a relagio entre 0 mundo da representacio artistica e 0 mundo dito real. Bela Balazs nos lembra tal tradigao ¢, a0 ‘mesmo tempo, aponta a radical modificacao que vé no préprio estatuto de tal “janela” com o advento do cinema. Ele aponta a con- vengao segundo a qual a obra de arte apre- senta-se como microcosmo, ¢ procura tes saltar o principio vigente de que hé uma se- paragio radical entre este ¢ 0 mundo real, constituindo-se a obra numa composicao contida em si mesma com suas leis préprias. Como Balazs nos diz, tal microcosmo pode apresentar a realidade mas nao tem nenhu- ma conexio imediata ou contato com ela. Precisamente porque ele a representa, est separado dela, nfo podendo ser sua “cont nuagio”. A conclusio a que Balazs procura chegar é que a janela cinematografica, abrin- do também para um mundo, tende a sub- verter tal segregagio (Fisica), dados os recur sos poderosos que o cinema apresenta para carregar 0 espectador para dentro da tela. “Hollywood inventou uma arte que nao ob- serva o principio da composigao contida em si mesma e que, nao apenas climina a distan- cia entre 0 espectador e a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusdo, no espectador, de que ele esta no interior da aga reprodu- zida no espago ficcional do filme” (Theory of the film, p.50). Aqui, o esteta htingaro faz coro com uma ampla faixa de te6ricos do cinema, em sua preocupacio em incluir, na propria ca- racterizagao basica da nova arte, esta moda- lidade de relagao marcada pelo forte efeito de presenga visual dos acontecimentos (na realidade ausentes) ¢ a sua nao-efetividade sobre a situagio fisica do espectador. A and- lise especifica do tipo de experiéncia forne- cida pela projecao cinematogréfica constitui tema privilegiado dos filmélogos da Revue Internationale de Filmologiea partir de 1947. AJANELA DO Modernamente, em diferentes momentos, ‘Christian Metz vai retomar estas reflexes em torno da segregacao dos espacos (o espago inreal da tela em oposigio ao espago real da sala de projegio) da experiéncia do espec- tador, marcada pela “impresséo de realida- de” ¢ pelo mergulho dentro da tela (identi cago com personagens, participagao afetiva no mundo representado). Num primeiro ar- tigo - “Sobre a impressio de realidade no inema” (1966) ~ ele trabalha num nivel fe- nomenolégico, buscando uma descrigao que revele quais caracteristicas da imagem e das condig6es de projecdo que tornam possivel a relagio de identificagao e 0 forte ilusionis- mo. Num segundo artigo — “O significante imaginario” (1975) — ele vai trabalhar num nivel psicanalitico, procurando o que do lado do espectador, em sua estrutura psiquica mais profunda, pode explicar a poderosa incidén- cia do cinema. Edgar Morin fez do processo de iden- tificagio/ projegio praticamente o miicleo de seu livto— O cinema ou 0 homem imaginario (1958). Neste trabalho, que ele préprio de- nomina “ensaio antropolégico”, seu interes- se concentra-se na discussao de um fendme- no que considera bisico dentro da cultura do século xx: a metamorfose do cinematé- grafo cm cinema. O primeiro seria simples- mente a técnica de duplicacio ¢ projegao da imagem em movimento; o segundo seria a constituigéo do mundo imaginario que vem transformar-se no lugar por exceléncia de manifestacao dos desejos, sonhos € mitos do homem, gracas & convergéncia entre as ca- racteristicas da imagem cinematografica IEMA E A IDENTIFICACKO 23 determinadas estruturas mentais de base. Dentro da literatura sobre cinema, Morin corresponde a um exemplo extremo da vin- culacio essencial entre o fendmeno de iden- tificagao € o proprio cinema como insticui- a0 humana e social. Para ele, a identifica- ao constitui a “alma do cinema”, A partici pago afetiva deve ser considerada “como estado genético ¢ como fundamento estru- tural do cinema” (p.91 do original francés), ou seja, daquilo que é algo mais do que o cinematégrafo (técnica de duplicacao), sen- do materializagio daquilo que “a vida prati- ca nao pode satisfazer”. Portanto, nesta qua- se-identidade (cinema = imaginério, lugar da ficgdo e do preenchimento do desejo), ele julga constatar um dado definidor da essén- cia universal do cinema. Dada sua perspec- tiva, vinculada a uma certa antropologia, Morin nao parte para a defesa ou ataque de tal fendmeno, do ponto de vista ideolégico ou estético (a sua propria definigao do esté- tico vai passar pela nogio de participagao afetiva). Ele estd convicto de que esta rela- 0, que um cinema particular num momen- to particular estabeleceu com o espectador, é imperativa, fazendo parte da esséncia do novo veiculo. Em 1966, a posigao de Metz é basicamente a mesma. Sua reflexdo, deposi- tada no mesmo tipo de cinema que inspirou Morin, nao acusa a presenga de pressdes em sentido contrario, Tal nao acontece no arti- go de 1975. Ele ainda dedica seu pensamen- to exclusivamente ao cinema narrativo tipo Hollywood, mas o contexto geral de produ- Gio e discussio cinematogrificas que 0 cer- «a, intensificando suas presses na quebra do 24 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO monolitismo da identificagao, 0 obriga a admitir outras possibilidades. Mesmo para um amante dos “bons tempos” da classica ficgdo cinematografica, a vocagao do cine- ma para a relagio de identificagao fica sub- metida a diividas. Este ligeiro deslocamento na atitude de Metz est relacionado com a polémica entre Cinéthique, Cahiers du ciné- ‘mae Lebel, a que me referi. Continuemos, asso a paso, a estabelecer as coordenadas de tal discussio, partindo de consideragies elementares. Vejamos 0 ponto critico onde a polémica sobre o ilusionismo ¢ a identifica- 40 “esquenta”. Dentro dos comentarios fei- {0s até aqui sobre o espago cinemitico e sua “realidade”, cheguei 4 questo do “efeito de janela” ¢ a0 papel do movimento de camera neste efeito; adiantei algo sobre a metdfora da “cimera-olho”, Esta metéfora ser um polo vivo das discusses mais recentes (pés- 1968); por longo tempo, permaneceu em segundo plano, diance da carga polémica concentrada na montagem ¢ em seu estatuto frente ao “efeito de janela”, Sabemos que a chamada expressividade da camera nao se esgota na sua possibilidade de movimentar- se, mantendo 0 fluxo continuo de imagens. Ela esta diretamente relacionada também com a multiplicidade de pontos de vista para focalizar os acontecimentos, o que justamen- te é permitido pela montagem. Partindo do registro clementar, chegamos & situagio que implica na instauragao de uma descontinui- dade na percepsao das imagens. O salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substicuiggo brusca por outra imagem, é um momento em que pode ser posta em xeque a “semelhanga” da represen- tacio frente a0 mundo visivel e, mais decisi- vamente ainda, é 0 momento de colapso da objetividade” contida na indexalidade da imagem. Cada imagem em particular foi impressa na pelicula, como conseqiiéncia de um processo fisico “objetivo”, mas a justapo- sigéo de duas imagens ¢ fruto de uma inter vengao inegavel mente humana e, em prin pio, nao indica nada senao o ato de manipu lagao, Para os mais radicais na admissio de uma pretensa objetividade do registro cine- matogrifico, tendentes a minimizar o papel do sujeito no registro, a montagem sera lugar por exceléncia da perda de inocéncia. Por outro lado, a descontinuidade do corte poderd ser encarada como um afastamento frente a uma suposta continuidade de nossa percepcio do espaco e do tempo na vida real (aqui estaria implicada uma ruptura com a semelhanga). Veremos que tal “ruptura” é perfeiamente superada por um determina- do método de montagem, com vantagens no que se refere ao efeito de identificacao. Para nao nos confundit, chamemos a descontinuidade visual causada pela substi- tuigio de imagens de descontinuidade cle- mentar. E lembremos que as alternativas de acao diane da montagem ocorrem esquema- ticamente em dois niveis articulados: (1) 0 da escolha do tipo de relagao a ser estabelecida entre as imagens justapostas, que envolve 0 tipo de relagio entre os fendmenos represen: tados nestas imagens; esta escolha traz conse- giiéncias que poderio ser trabalhadas num nivel (2), o da opcio entre buscar a neutrali- zacio da descontinuidade elementar ou bus- car a ostentagao desta descontinuidade. A JANELA DO CINEMA E A IDENTIFICAGAO Dependendo das opsocs realizadas diante destas alternativas, 0 “efeito de jane: la” ea fé no mundo da tela como um duplo do mundo real tera seu ponto de colapso ou de poderosa intensificacio na operacao de montagem. Um metodo especifico de inten- sificagio ser explicado no préximo capitu- BIBLIOGRAFIA ARNHEIM, Rudolf. Filn as art, Berkeley, University of California Press, 1957, BALAZS, Bela. Theory of the film, New York, Dover Public. Inc., 1970. BAZIN, André. Quest-ce que te cinéma? vol. ut, Paris, Editions du Cerf, 1960. BURCH, Noel. Praxis do cinema, (wadugao portuguesa do Praxis du Cinéma, Pa- tis, Gallimard, 1969). DEREN, Maya, “Cinematography: the crea~ tive use of reality” In Daedalus: the vi sual arts today, Cambridge, 1960. LEBEL, Jean Patrick. Cinéma et Idéologie, Editions Sociales, Paris, 1971. METZ, Christian. A significagao no cinema, Sao Paulo, Perspectiva, 1971 Jo, no qual vou falar algo sobre o cinema particular que instituiu ou aproveitou-se de fenémenos tais como a impress@o de realida- dea identificacao. Passemos a descrigao da decupagem classica, método que comprovou sua eficiéncia na neutralizacao da desconti- nuidade clementar. MITRY, Jean, Esehétique et psychologie du ci- néma, v. 1 ¢ th, Editions Universitaires, Paris, 1963/1965. MORIN, Edgar. Le cinéma ou homme ima- ginaire, Paris, Editions de Minuit. MUNSTERBERG, Hugo. The film: a psy- chological study (the silent phoroplay in 1916) New York, Dover Public. Inc., 1970. hatles $., Philosophical writings of Pierce, New York, Dover Publica- tions, 1955. Revistas: Cahiers du Cinéma, 0.209 .235/137 - 1969/1972. Cinéthique, n.1 a n.13/14 ~ 1969/1972. Communications n.23 (1975). U AA DECUPAGEM CLASSICA Classicamente, costumou-se dizer que um filme € constituido de seqiténcias ~ uni- dades menores dentro dele, marcadas por sua fungao dramatica e/ou pela sua posigio na narrativa. Cada seqiiéncia seria constituida de cenas — cada uma das partes dotadas de unidade espaco-temporal. Partindo dai, de- finamos por enquanto a decupagem como 0 processo de decomposigio do filme (e por- tanto das seqiiéncias e cenas) em planos. O plano corresponde a cada tomada de cena, ‘ou seja, & extensdo de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que 0 plano é um segmento continuo da imagem. O fato de que 0 plano corresponde a um determinado ponto de vista em relagio a0 objeto filmado (quando a relagao cémera- objeto ¢ fixa), sugere um segundo sentido para este termo que passa a designar a posi- particular da camera (distancia e angulo) em relagio ao objeto, Dai decorre a escala que, a grosso modo, apresento (conforme a fonte, esta classificagao de planos modifica- se, ndo havendo regras rigidas para a delimi taco entre um tipo € outro). Plano Geral: em cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos, a cimera toma uma posigéo de modo a mostrar todo © espago da acio. Plano Médio ou de Conjunto: uso aqui para situagdes em que, principalmente em interiores (uma sala por exemplo), a camera mostra 0 conjunto de elementos envolvidos na ago (figuras humanas € cenério). A dis- tingao entre plano de conjunto ¢ plano geral € aqui evidentemente arbitriria e correspon- de ao fato de que o tiltimo abrange um cam- po maior de visio. Plano Americano: corresponde a0 pon- to de vista em que as figuras humanas sio mostradas até a cintura aproximadamente, em fangio da maior proximidade da cimera em relagao a ela. Primeiro Plano (close-up): a camera, pr xima da figura humana, apresenta apenas um rosto ou outro detalhe qualquer que ocupa a 28 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO quase rotalidade da tela (hd uma variante chamada primeirissimo plano, que se refere um maior detalhamento—um olho ou uma boca ocupando toda a tela). Quanto aos angulos, considera-se em geral normal a posigio em quea camera loca liza-se a altura dos olhos de um observador de estatura média, que se encontra no mes- mo nivel ao da agio mostrada, Adotaremos as expresses: “camera alta” ¢ “camera baixa” para designar as situagoes em que a camera visa os acontecimentos de uma posicdo mais clevada (de cima para baixo) e de um nivel inferior (de baixo para cima). Para esquema- tizar 0s tragos basicos do que denominamos decupagem clasica, fagamos uma experién- cia, Voltemos aos primeiros tempos da ficgi0 cinematogréfica, supondo uma evolucio da decupagem muito bem comportada a titulo de clareza, embora nao seja totalmente corre- to admitir que as coisas empiricamente se passaram do modo exposto a seguir. ‘Tomemos 0 “teatro filmado”, Acaba~ mos de assistir a toda uma cena desenvolvi- da dentro de um mesmo espaco € fluindo continuamente no tempo, sem saltos. Supo- nhamos que uma outra cena em outro espa- 0 deve seguir-se a esta para dar andamento 2 est6ria. A construcéo provavelmente ado- tada seria a de filmar num sé plano de con junto a primeira cena es6 cortar no momento do salto para outro espaco. O corte estaria af justificado pela mudanca de cena diata sucesso, sem perda de ritmo, estaria justamente possibilitada pelo corte. Terfamos uma montagem elementar em que a descon- tinuidade espago-temporal no nivel da die- gese (diegético = tudo 0 que diz respeito a0 ea ime- mundo representado) motiva e solicita o cor- te. A montagem, inevitavel, s6 vem quando a descontinuidade é indispensdvel para a representagio de eventos separados no espa- G0 € no tempo, nao se violando a integrida- de de cada cena em particular. A platéia aceita esta sucessio nio-natural imediata de ima- gens porque esta sucesso caminha de encon- tro a uma convencao da representacto dra- matica perfeitamente assimilada. Tal conver- géncia redime o salto, que permanece acei- tavel ¢ natural porque a descontinuidade temporal ¢ diluida numa continuidade logi- ca (de sucessio de cenas ou fatos). A utilizacao depreciativa do termo “tea- tro filmado” vem desta obediéncia, tanto as convencées draméticas, quanto as préprias condigoes de percepsio do espetéculo tea- tral (0 espectador tem um tinico ponto de vista frontal cm relagéo 3 encenagao). As ce- nas filmadas em exteriores, apesar da imobi- lidade e unidade de ponto de vista da cime- ra permanecer como estilo constante, apre- sentavam algumas condigdes novas. Estas advinham da prépria configuragao do espa- 0 aberto e rendiam a produzir um afrouxa- mento da rigida estrutura presente na filma- gem de interiores. A cimera podia assumir um ponto de vista sob um Angulo diferente do frontal; as entradas e saidas (c em geral a movimentagao dos atores) eram efetuadas de modo mais livre, permitindo-se inclusive a movimentagio deles em diresao a camera, 0 que sugeria uma abertura que inclufa 0 es- paco atrés desta. Como ja apontei, ganhava mais forca a nocao de que o espaco visado é um recorte extraido de um mundo que se estende para fora dos limites do quadro. Os A DECUPAGEM CLASSICA 29 tedricos do cinema, interessados em definir 05 passos decisivos na evolugéo da “lingua- gem cinematogréfica” tiveram sempre ten- déncia a dar uma importancia decisiva ao que se passava atrés das cameras. O que implica em, frente aos filmes deste periodo, dar mais importancia a identidade de estilo no com- portamento da camera do que as diferencas que poderiam advir da oposigao exterior-in- terior em termos de configuracao espacial. Nio surpreende que a operagao habi- tualmente apontada como libertadora em relagao & pristo teatral seja precisamente a utilizagio do corte no interior de uma cena; a mudanga do ponto de vista para mostrar de um outro angulo ou de uma outra dis- tancia o “mesmo fato” que, supostamente, nao sofreu solugéo de continuidade, nem se deslocou para outro espaco. Aqui, estou me referindo ao efeito de identidade (mesma aso) e continuidade (a agao é mostrada em todos os seus momentos, fluindo sem inter- rupgao, retrocessos ou saltos para a frente). E é claro que estou considerando a aio tal como aparece na tela, dando a impressao de que foi cumprida de uma s6 ver. na integra, independentemente da camera. Todos sabe- mos que isto nao acontece na producao do filme ~a filmagem € o lugar privilegiado da descontinuidade, da repeticio, da desordem ede tudo aquilo que pode ser dissolvido, transformado ou climinado na montagem. André Malraux, em seu texto “Esboco de uma psicologia do cinema”, escrito em 1946, aponta o corte dentro da cena como 0 ato inaugural da arte cinematogrifica, expl citando algo naquele momento presente na mente de muitos tedricos. Tal consenso nada tem de estranho, porque muita coisa real- mente esta envolvida neste procedimento, embora nao se possa clevé-lo isoladamente a tal posigdo. Antes de comentar mais 0 que esta implicado neste tipo de corte, gostaria de citar outro exemplo, cuja importancia no cinema do inicio do século é também enor- me. Trata-se da montagem paralela, focal zando acontecimentos simultaneos, cujo modelo clissico é a montagem de persegui Ges. Desde os primeiros anos do século este foi um procedimento capital nas narrativas de aventura, extremamente populares, dada a carga de emogoes que caracteriza os desfe- chos na base da corrida contra o tempo, onde © bem persegue 0 mal ¢ a figura do herdi uta contra obstéculos para salvar a heroina, prestes a ser vitima de algum acidente ou uel ataque. Neste esquema, temos um tipo de si- tuagio que solicita uma montagem que esta- beleca uma sucesso temporal de planos cor- respondentes a duas ages simultaneas que ocorrem em espagos diferentes, com um grau de contigiiidade que pode ser variavel. Um elemento é constante: no final, sera sempre produzida a convergéncia entre as agGes ¢, portanto, entre os espagos. A propria natureza das agoes represen tadas corresponde a uma situacao mais com- plexa do que a desenvolvida numa tinica agdo. A necessidade de representar a evolu- ao simultinea de dois espagos, ¢ sua con- vergéncia, exige os saltos da camera € a su- cessio descontinua de imagens. Tal como no caso elementar da mudanga de cena no “tea- tro filmado”, também aqui a motivagao ini cial para 0 corte vem de uma necessidade da 30 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO 40 ¢, por sua vez, a visualizacio expli- cita dos acontecimentos 86 € possivel gracas ao recurso da montagem, Novamente, a que- bra na continuidade da percepcio € justifi- cada. A seqiiéncia de imagens, embora apre- sente descontinuidades flagrantes na passa- gem de um plano a outro, pode ser aceita como abertura para um mundo fluente que esti do lado de lé da tela porque uma con- vengao bastante eficiente tende a dissolver a descontinuidade visual numa continuidade admitida em outro nivel: o da narracio. ‘As imagens estao definitivamente sepa- radas ¢, na passagem, temos o salto; mas, a combinacio ¢ feita de tal modo que os fatos representados parecem evoluir por si mes- mos, consistentemente. Isto constitui uma garantia para que 0 conjunto seja percebido como um universo continuo em movimen- to, em relagio a0 qual nos so fornecidos al- guns momentos decisivos, Determinadas re- lacies légicas, presas a0 desenvolvimento dos fatos, ¢ uma continuidade de interesse no nivel psicolégico conferem coesio a0 con- junto, estabelecendo a unidade desejada. Hiscoricamente, este procedimento — montagem paralela — constituiu um dos pé- los de desenvolvimento da narracio cinema- togrifica. Esta, obviamente, envolve hoje uma série muito mais complexa de procedi- mentos, que inclui os casos elementares ci- tados. Mas, inegavelmente, a montagem pa- ralela ea mudanga do ponto de vista na apre- sentagio de uma tinica cena constituiram duas alavaneas bisicas no desenvolvimento da chamada “linguagem cinematogréfica” ‘Areflexdo de alguns tedricos na década de 1920 deu-se justamentena direcéo de uma anélise mais detida deste procedimento em suas caracteristicas especificamente cinemé- ticas. Tal € 0 caso de Vitor Chklovski, uma das figuras fundamentais no contexto dos “formalistas russos” (¢ também roteirista de alguns filmes), que ressaltou muito bem cer- tas caracteristicas particulares da perseguigao no cinema € suas diferengas em relago & narragio literdria. Preocupado com uma teo- ria da narragio, suas observagbes dizem res- peito as conseqiiéncias especificas que advém. da duragao definida que a montagem confe- re a cada imagem, acentuando a influéncia da organizagdo temporal (imposta ao espec tador) na prépria natureza dos fatos escolhi- dos para compor os momentos decisivos da intriga, Como um exemplo simples, ele a- ponta o largo uso de um tipo de ameaga cujo feito pode sempre ser adiado, o que se ajusta perfeitamente as necessidades da manipula- 40 emocional da montagem paralela: a morte iminente da heroina deve ser produto de um dispositivo de ataque mecanicamente elabo- rado — a serra que corta o tronco na qual ela esti amarrada numa posigio cada vez mais préxima da limina— de duragéo compativel com a aco do heréi, por sua vez, uma corri- da de obstéculos contra o tempo. Tais dispo- sitivos tornam mais eficiente 0 jogo de dur: des cada vez menores caracterizador da mon- tagem paralela e responsivel pela popular dade de muitos filmes. Esta combinagao en tre dispositivo elaborado ¢ corrida contra o tempo é ainda de largo uso nos enlatados exibidos na televisio. Numa versio menos elaborada desta situagao basica, também ainda séo numero- 50s 0s filmes de aventura em que todo 0 pro- A DECUPAGEM blema esté em inventar pretextos para o adia- mento da acio, que pela sua nacureza, leva- ria a um desfecho falminante (todos nés assistimos a filmes em que o vilio “fala de- mais” antes de dar o tiro final). Aos olhos do inicio do século, esta cons- truco, intercalando duas ages simultaneas em diferentes lugares, era uma das modali- dades de organizacéo espago-temporal mais evidentemente especificas a0 cinema. Embo- ra 0 procedimento do “enquanto isto...” te- nha raizes literdrias bastante claras, a mane ra de sua realizagio no cinema, dada a inten- sificagao do efeito em fungio do ritmo e da movimentagao plistica das imagens, era vis- ta como marca de um poder exclusive 20 novo veiculo, Neste particular, esta monta- gem chamava tanto @ atengio dos cinéfilos quanto a expansio espacial da comédia, ba- seada nas desabaladas correrias pelas ruas. Nestas, em suas primeiras versGes, a cimera permanecia fixa, estando no inicio de cada plano a uma considerdvel distancia dos pro- tagonistas, que vinham rapidamente em di- recio a ela, dentro da confusio geral estabe- lecida; a tomada de cena nao se interrompia enquanto o desastrado cortejo (em geral de perseguidores e perseguidos) nao passava préximo & cémera, indicando a expansao do espaco da ago para outro ponto, onde a cé- mera teria com eles um novo encontro. Uma variante mais claborada incluia a colocacéo de algo (obstaculo ou pessoa entretida numa atividade qualquer) a alguns metros da ci mera e na trilha dos protagonistas, de modo a criar uma antecipacio do efeito através da expectativa frente & iminente colisio: esta consumava-se, as vezes fazendo uso de uma SICA 31 nova surpresa. Aqui, 0 efeito de suspense, de expectativa a ser aliviada no momento da convergencia, era baseado, ndo na monta- gem, mas na profundidade do espaco visado pela camera imével ¢ no conseqiiente tempo transcorrido para que os protagonistas 0 atra- vessem. Falo no pasado, mas é extremamente facil encontrar tais procedimentos na cons- trugio de filmes atuais. Por outro lado, in- sisto nos exemplos ilustrativos destes dois métodos de dramatizagao — uso da monta- gem ou 0 uso da profundidade — para ressal- tar a sua presenga desde a primeira década do século. Tal presenga é mais significativa se lem- brarmos que, estes procedimentos jé eram utilizados e reiterados em diferentes produ- Ges, antes da utilizagao dos movimentos de cimera, cujo uso mais sistematico desenvol- veu-se com maior lentidao. A mesma lenti- dao que caracterizou a incorporacio no re- pertério cinematografico do uso de corre em cena, bastante taro em 1908, se tomarmos ainda os filmes de D. W. Griffith como refe- réncia. E somente usado quando carregado de uma motivagio precisa — mostrar com maior detalhe uma aco importante ou dis- positivo chave no desenvolvimento da est6- ria, que nao poderia ser entendido no usual plano de conjunto (ou plano geral) com que se filmava tudo. O que é mais importante para mim aqui, nao ¢ 0 fator cronolégico, mas a constatagio basica de que 0 uso do primeiro plano deu-se em fungao de uma necessidade denotativa - dar uma informa- io indispensavel para o andamento da nar- rativa, Com outros procedimentos, nao foi outra a trajetéria, como mostra 0 caso dos 32 © pisct movimentos de cimera, de inicio ligados & necessidade de acompanhar as personagens em cenas exteriores. E notavel 0 fato de que © uso sistemdtico das “panorimicas” (rota- io da camera em torno de um eixo fixo), no cinema ficcional, precedeu ao uso dos ravellings (ou catrinho; movimento de trans- lacio da cimera ao longo de uma direcio determinada). Basicamente, os mesmos fatores respon- saveis pela “naturalidade” da montagem que liga duas cenas desenvolvidas em espacos di- ferentes estardo aptos a conferir “naturalida de” ao corte no interior de uma cena. Ja vi- mos o papel de convengGes tradicionais dra- maticas € narrativas na aceitagao da descon- tinuidade existente entre as imagens nos dois exemplos citados; passagem de cena no “tea- tro filmado” ¢ a intercalagao de planos na montagem de perseguigées. Do mesmo modo, os cortes que decompéem uma cena continua em pedacos nao estilhagam a repre- sentagao também em pedagos desde que se- jam eferuados de acordo com dererminadas regras, Estas, de um lado, esto associadas manipulagio do interesse do espectador; de outro, ao esforgo efetuado em favor da ma- nutengio da integridade do fato representa- do, As famosas regras de continuidade fun- cionam justamente para estabelecer uma combinagao de planos de modo que resulte uma seqiiéncia fluente de imagens, tendente a dissolver a “descontinuidade visual elemen- tar” numa continuidade espaco-temporal re- construida, O que caracteriza a decupagem classica & seu carécer de sistema cuidadosa- mente elaborado, de repertério lentamente sedimentado na evolugao histérica, de modo IRSO CINEMATOGRAFICO a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair 0 maxi- mo rendimento dos efeitos da montagem € a0 mesmo tempo torné-la invisivel, Em ter- mos das alternativas colocadas ao final do capitulo anterior, a opgao aqui é, primeiro estabelecer entre os fenémenos mostrados nos dois planos justapostos uma relagao que reproduz. a “légica dos fatos” natural ¢, no nivel da percepgao, buscar a neutralizagao da descontinuidade elementar. O trabalho para conseguir tais efeitos pode ser dividido em varios aspectos. Hé, presidindo toda a claboragéo, uma primeira delimitagao: 0 conjunto de planos se insere dentro de um filme cujos objetivos esto ancorados 4 narracio de uma estéria, o que implica na incorporagao de convengées nar- rativas ¢ dramaticas nao exclusivas ao cine- ma. Na sua organizacao geral, o espago-tem- po construido pelas imagens e sons estara obedecendo a leis que regulam modalidades narrativas que podem ser encontradas no ci- nema ou na literatura. A selecio ¢ disposi- fo dos fatos, 0 conjunto de procedimentos usados para unir uma situagéo a outra, as eclipses, a manipulagio das fontes de infor- magio, todas estas so tarefas comuns ao es- critor e ao cineasta. Apontei a equivaléncia entre paralelismo da montagem ¢ 0 “enquan- to isto...” da lireratura. Posso apontar equi- valéncias também em relagao ao procedimen- to considerado chave na génese da arte cine- matogrifica. A mudanga do ponto de vista dentro de uma mesma cena, importante rup- tura frente ao espaco tcatral, pode ser apro- ximada a procedimentos freqiientemente usados pelo escritor ao compor literariamente A DECUPAGEM CLASSICA 33 uma cena qualquer. Também este expoe os fatos através de um conjunto de deralhes particulares ou através de observagées que dizem respeito ao conjunto, tal como na representagao do cinema. Esta aproximagao, evidencemente, nao pode ir além desta indi cagao de uma semelhanga de estrutura. Em ambos os casos, trata-se da representacao dos fatos construfda através de um processo de decomposigao e de sintese dos seus elemen- tos componences. Em ambos afirma-se a pre- senga da selegio do narrador, que estabelece suas escolhas de acordo com determinados critérios. O faro de um ser realizado através da mobilizagio de material linguistico ¢ de outro ser concretizado em um tipo especifi- co de imagem introduz. todas as diferengas que separam a literatura do cinema. Dife- rengas que, em geral, sio associadas ao su- posto contraste entre 0 “realismo” da ima- gem ea flagrante convencionalidade da pa- lavra escrita. O que tal comparacio esconde & a natureza particular das convengdes que presidem um determinado método de mon- tagem, pois a hipétese “realista” implica na admissao de que ha um modo normal, ou natural, de se combinar as imagens (justa- mente aquele apto a nao destruir a “impres- sao de realidade”). Dentro desta moldura narrativa, 0 in- teresse segundo o qual, em cada deralhe, tudo pareca real torna obrigatérios os cuidados ligados & coeréncia na evolugao dos movi- mentos em sua dimensio puramente fisica. Se ha um corte em meio a um gesto de uma personagem, toma-se todo o cuidado para que 0 momento do gesto correspondente ao fim do primeio plano seja o instante inicial do segundo, resultando na tela uma apresen- tagio continua da ago. Todos os objetos eas posigdes dos varios elementos presentes se- Go rigorosamente observados para que uma compatibilidade precisa seja mantida na se- qiiéncia. As entradas e saidas (de quadro) das personagens serao reguladas de modo a que haja légica nos seus movimentos ¢ o especta- dor possa mentalmente construir uma ima- gem do espaco da representagao em suas co- ordenadas bdsicas mesmo que nenhum pla- no ofereca a totalidade do espaco numa tini- ca imagem. As diregoes de olhares das perso- nagens serio fator importante para a cons- trugao de referenciais para o espectador, ¢ vio desenvolver-se segundo uma aplicagao sistematica de regras de coeréncia. Dentro desta orientagdo, a decupagem sera feita de modo a que os diversos pontos de vista res- peitem determinadas regras de equilibrio ¢ compatibilidade, em termos da denotacio de um espago semelhante ao real, produzin- doa impressao de que a agao desenvolveu-se por si mesma ¢ 0 trabalho da camera foi “capté-la”, Num outro nivel, superposto aos ante- riores, temos a continuidade produzida como resultado de uma manipulacio precisa da atengo do espectador, onde as substituigdes de imagem obedecem a uma cadeia de moti vagoes psicolégicas. Passamos de um plano de conjunto a um primeiro plano de um tos to porque, da propria natureza da agio re- presentada, surge uma solicitagio que éaten- dida justamente por esta mudanga de plano. Contendo nova informagao necessiria 20 andamento da historia, precisando a reagio de uma personagem particular diante dos 34 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO fatos, denunciando alguma aio marginal imperceptivel para 0 espectador nos planos anteriores, 0 novo plano é sempre bem vin- do, e sua obediéncia as regras de equilibrio e motivagao 0 transforma no elemento que sustenta 0 efeito de continuidade, em vez de ser justamente a ruptura, Tal pritica corresponde a uma exten- séo do esquema elementar do Griffith de 1908 acima apontado, ¢ a grande exposicao erica e didatica de seus principios foi ela- borada por V. Pudovkin; no seu livro Film technique (1926), cle nos explica com gran- de clareza toda a receita. Algo mais pode ser encontrado no livro de Pudovkin, assim como jé era encontrado na realizagao de filmes competentes da épo- ca: a preocupacio fundamental com o ritmo de sucessio das imagens ¢ a observacio de que devem haver certas compatibilidades entre duas imagens sucessivas, de modo a se definirem certas relagdes plisticas. As corre~ lagdes entre o desenvolvimento dramético € o ritmo da montagem, assim como 0 jogo de tensdes € equilibrios estabelecido no desfile das configuracdes visuais, sio dois instrumen- 0s 8 disposigio de qualquer cineasta. O que € caracteristico da decupagem classica é a utilizagéo destes fenémenos para a criagao, no nivel sensorial, de suportes para o efeito de continuidade desejado e para a manipula- Gio exata das emogoes. Assim afirma-se um. sistema de ressonincias, onde um procedi- mento complementa e multiplica o efeito do outro. Longe de termos um esquema linear que vai da “impressio de realidade” a fé do espectador, 0 que temos é um processo mais, complexo: uma interagdo entre o ilusionis- mo construido ¢ as disposigées do especta- dor, “ligado” aos acontecimentos e domina- do pelo grau de credibilidade especifica que marca a chamada “participacio afetiva". Nes- te sentido, um dos procedimentos mais sutis e de conquista mais tardia, de tremenda efi- ciéncia no mecanismo de identificagao, é constituido pela combinacio de dois clemen- tos: 0 esquema denominado no contextoame- ricano “shot (plano)/reaction-shot” ¢a deno- minada “camera subjetiva’. A camera € dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista deuma das personagens, observando os acon- tecimentos de sua posicao, e, digamos, com os seus olhos, O shot/reaction-shot correspon- de & situagéo em que o novo plano explicita 0 efeito (em geral psicoldgico) dos aconteci mentos mostrados anteriormente no com- portamento de alguma personagem; algo de significativo acontece na evolugao dos acon- tecimentos ¢ segue-se um primeiro plano do heréi explicitando dramaticamente a sua re- aso. E também corresponde a0 esquema invertido, que concretiza uma combinacio de grande eficiéncia: num plano, o herdi observa atentamente ¢, no plano seguinte, a camera assume 0 seu ponto de vista, mos- trando aquilo que ele vé, do modo como ele vé. Neste tiltimo caso, temos a tipica combi: nagio das duas técnicas ~ shot/reaction-shot e cimera subjetiva. Um dado importante em relacio & ca- mera subjetiva é que nem sempre sua pre- senga é evidente. No caso em que o heréi realiza um movimento em certa direcio e a camera, ao assumir 0 seu ponto de vista, re- produz exatamente o seu movimento, é mais ficil o espectador tomar consciéncia do pro- A DECUPAGEM CLASSICA 35 cesso. Ou também quando o heréi, penetran- do em novo espago, assume uma atitude ex- ploratéria dramaticamente importante, ¢ a cimera substitu os seus olhos, explorando o novo ambiente de modo a fornecer & platéia a sua experiéncia visual. Mas, em boa parte das situagdes em que ela é utilizada, o fato de que o espectador observa as ages através do ponto de vista de uma personagem, per- manece fora do alcance de sua consciéncia. E neste momento que o mecanismo de iden- tificag4o torna-se mais eficiente (nao surpre- ende que seu uso sistemético seja nos mo- mentos de maior intensidade dramatica) Nosso olhar, em principio identificado com 0 da cémera, confande-se com o da petsona- gem; a partilha do olhar pode saltar para a partilha de um estado psicolégico, e esta tem caminho aberto para catalizar uma identi- dade mais profunda diante da totalidade da situagio. A titulo de esclarecimento, lembro que € preciso nao confundir o procedimento da camera subjetiva com a representacio direta (visualizagao) de processos psicolégicos de alguma personagem (lembranga, sonho, ima- ginacdo), caso em que se trata de projetar na tela um equivalente visual, apto a denotar 0 proceso psicoldgico em questo (nao temos aqui uma questao estrita de uso do ponto de vista). Um caso fundamental de combinacio entre camera subjetiva ¢ shot/reaction-shot é © do chamado campo/contra-campo, proce- dimento chave num cinema dramitico cons- truido dentro dos principios da identifica- fo, Seu ponto de aplicagio maxima se dé na filmagem de didlogos. Ora a camera assu- me o ponto de vista de um, ora de outro dos interlocutores, fornecendo uma imagem da cena através da alrerndncia de pontos de vis- ta diametralmente opostos (dai a origem da denominagao campo/contra-campo). Com este procedimento, o espectador € lancado para dentro do espago do didlogo. Ele, ao mesmo tempo, intercepta e identifica-se com duas diregoes de olhares, num efeito que se multiplica pela sua percepgio privilegiada das duas séries de reagdes expressas na fisiono- mia e nos gestos das personagens. Falei dos didlogos. Acentuei 0 uso do sistema campo/contra-campo. nos fornece um exemplo flagrante do papel da trilha sonora na obtencéo dos efeitos rea- listas ¢ na mobilizagao emocional do espe tador. De certo modo, a sua consolidacio e 0 seu refinamento devem-se & sincronizagao do som com a imagem, uma ver que, no perfodo mudo, a seqiiéncia de planos era interrompida pela presenga dos letreiros in- dicadores das falas. Com 0 som, a cena dia- logada ganhou maior coeficiente de realida de e também ganhou em ritmo e forca dra- matica, Na verdade, 0 advento do cinema so- noro, tao lamentado por diferentes estetas, constituiu um passo decisivo no refinamen- to do sistema voltado para o ilusionismo ¢ a identificagio. © que nao significa dizer que nao havia ourras propostas de utilizagao da trilha sonora, pelo contrario. Desde 1928, 0 manifesto de Eisenstein, Pudovkin ¢ Alexan- drov, assim como intimeras proclamagoes de cineastas ¢ criticos, apontavam para outras direges ¢ faziam sua critica incisiva ao prin- cipio do som sincronizado com a imagem fe sistema 36 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO (principio que estabelece a colocagéo das palavras ¢ ruidos nos exatos momentos em que vemos funcionar a fonte emissora, de modo a produzir uma correspondéncia aceita como natural entre a imagem € 0 som). O fato € que este principio era necessério para 0 aperfeigoamento do método cléssicos tor- nar audivel que ja esta sendo visto é uma forma de torni-lo mais convincente. A ma- nipulagio do chamado ruido ambiente, as- sim como a presenga efetiva da palavra, vem conferir mais espesstura ¢ corporeidade 3 ima- gem, aumentando seu poder de ilusio. O Cinema sonoro nos tem dado intimeras pro- vas disto na representagao de eventos natu- rais € conflitos humanos. Particularmente, a clissica “cena de briga” tem cada vez mais baseado sua credibilidade no som dos gol- pes desferidos de parte a parte, tanto quanto ou mais do que na precisa simulagao visual dos gestos. Por outro lado, a ressonincia de efeitos fornecida pela trilha musical, no nema mudo baseada na presenga da orques- tra na sala de projegio, teve uma enorme ampliagio de suas possibilidades com o ci- nema sonoro. A entrada, a safda, a modula- Gio ¢ a propria peca musical escolhida pas- sam para total controle dos realizadores do filme. Estas observagies sobre a eficiéncia da trilha sonora no interior de um estilo parti- cular estariam escondendo algo fundamen- tal se eu nao insistisse no faro de que cine- ma sonoro significa imagem e som como ele- mentos integrantes de mesmo nivel, € nao, como muitos preferem, imagem acrescida de um acess6rio. A passagem mudo-sonoro re~ presenta um momento de extrema impor- tancia na construgio da decupagem clissica. E inegavel que os anos que antecederam a guerra de 1914 constituiram um momento chave de conquista de boa parte dos proce dimentos. Nao € por acaso que Griffith é 0 cineasta que permeia todo este capitulo. Foi ele sem duivida o primeiro grande sistemati- zador, o modelo a ser seguido pelos cineas- tas. O uso psicolégico do primeiro plano, os seus grandes finais marcados pela convergén- cia de tensdes e pela aceleragao, a combina- ¢a0 coerente dos varios recursos até entao presentes de maneira dispersa em diferentes filmes, estes si0 méritos que Griffith con- centra em torno de si. Mas muita coisa ain da estava por ser feita e aperfeigoada; o pro- cesso de formacio estende-se pela década de 1920 e dé um verdadeiro salto com o adven: to do som — de inicio, uma implantagao com alguns pontos criticos, mas em pouco tem- po perfeitamente integrado no sistema, com excepcionais vantagens. Voltemos ao principio. Eu havia defi- nido decupagem como simplesmente uma decomposigao das cenas em planos; agora é preciso lembrar 0 que est4 implicado nesta decomposicao. Em primeiro lugar, a rigor, eu deveria falar em decupagem/montagem pois uma pressupde a outra — sao logicamente equivalentes. O uso dos dois termos deve-se uma ordem cronolégica encontrada na pré- tica, onde decupagem identifica-se com a fase de confeccio do roteiro do filme « monta- gem, em sentido estrito, ¢ identificada com as operacbes materiais de organizacao, corte ¢ colagem dos fragmentos filmados. Em se~ gundo lugar, aos que estranharam o faco de eu dar énfasc ao som num discurso sobre a A DECUPAGEM CLASSICA a7 decupagem, lembro que esta, em um senti- do mais amplo, corresponde & construgéo efetiva de um espago-tempo préptio ao ci- nema. E construir um espago-tempo através da combinagio de imagens define um tipo de trabalho, enquanto que construi-lo atra- vés de imagens ¢ sons é algo qualitativamen- te diferente. Ou seja, a decupagem/monta- gem passa a ter também uma dimensao so- nora, 0 que traz uma infinidade de novos recursos € possibilidades, ao lado de novos problemas. Temos duas fontes de estimulo independentes, ¢ 0 que vemos na tela nem sempre precisa constituir a fonte emissora do som que ouvimos. Mais ainda, este som nem sequer precisa pertencer ao espaco definido pelo que vemos. Em ermos de decupagem classica, falo de vantagens excepcionais por- que, mesmo dentro dos limites do principio do sincronismo, restam muitas possibilida- des de combinagao de imagem/som. Na construcio do espaco “natural” que a carac- teriza, tal decupagem recebera uma substan- cial ajuda no momento em que contar com uma dimensao sonora: ~ (1) diante de cada plano, 0 som pre- sente é mais um fator decisivo de definigao clara do espaco que se estende para além dos limites do quadro; na construgio de toda uma cena, a descontinuidade visual encon- tra mais um forte elemento de coesdo numa continuidade sonora que indica tratar-se 0 tempo todo do “mesmo ambiente”. — (2) nos momentos de transigao ¢ nos saltos bruscos de um espaco para outro, a manipulacao do som e de suas surpresas vai constituir um recurso basico de preparagio c envolvimento do espectador. — (3) além do mais, nao ficam exclui- dos do método classico certos assincronis- mos especiais, utilizados sempre a partir de uma motivagio especifica e guardando com: patibilidade com os objetivos gerais de cria- 20 de um espaco que parega natural Gozando ou nio de tais vantagens ex- cepcionais, o sistema de procedimentos que constitui a decupagem classica foi, dentro de certa orientacio, identificado com a verda- deira conquista da especificidade cinemato grifica, Mas, 0s seus adeptos, pelo menos no plano tedrico, nao puderam ficar tranqiiilos por muito tempo. Nem bem Griffith havia, nas suas linhas basicas ¢ na sua versio muda, consolidado este método, a dentincia de seus limites jé surgia. O que nao impediu que, sob a observancia de seus principios, déca- das de cinema ficassem marcadas pelo pre dominio absoluto deste método de narragio no nivel da produgio industrial em escala mundial, sem excesoes. Enquanto isso, as limitagdes apontadas pelos primeiros esteras do cinema, em seu momento ainda acompanhadas pelas home- nagens que todo cinéfilo sempre gostou de prestar a Griffich ¢ a seus companheiros de pioneirismo, serao crescentemente lembra das ¢ reanalisadas. A medida em que a frente sinica em defesa do prdprio cinema, em sua acepgao mais abstrata, perde importincia, maior a tendéncia a se interpretar as “con- quistas” do cinema americano de 1908 1914 como a construcéo de um cinema particular, 38 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO carregado de nogées particulars, e nao como aconstrugao do Cinema. Neste sentido, tam- bém ganha formulagio cada vez mais clara.a idéia de que este cinema particular inscrevia o novo veiculo dentro dos limites de conven- g6es particulares, naquele momento jé pre- sentes e vigentes em outras formas de discur- so dramatico e/ou narrativo Nao se trata apenas de dizer, como ja foi dito, que uma série de construgées mos- tra-se cada vez mais como manifestagdes ci- nematogréficas de estruturas nao exclusivas ao cinema, Dentro da formulagao atual, tra ta-se mais de acentuar o fato de que determi- nadas “descobertas” do comeco do século foram fundamentais porque abriram para 0 cinema a possibilidade de apresentar certas rclagdes e estruturas, cumprindo a seu modo tarefas jf antes assumidas por outros meios de representacao no interior da sociedade. O que implica dizer: a construgéo do método clissico significa inscrigao do cinema (como forma de discurso) dentro dos limites defini- dos por uma estética dominante, de modo a fazer cumprir através dele necessidades cor- relatas aos interesses da classe dominance. ‘Asafinidades do cinema de Griffith com um certo tipo de literatura popular e com tum conceito de representacéo do século xix tornam-se gradualmente mais relevantes para a reflexdo critica. E passam a ser tio ou mais importantes do que as solugées por ele en- contradas no nivel especifico do cinema. ‘Mesmo porque, a expressao “nivel especifico do cinema” nao tem hoje a conotacao heréi ca do comeco do século, nem encontra no nivel tedrico uma definigao clara, De certo modo, tornou-se hoje mais um problema sofisticado do que uma palavra de ordem de feito prético, nao se constituindo no grande pélo de discussio que punha em conflico os estetas de 1920. Estaé uma razao porque nao € meu interesse aqui discutir a questio da especificidade. Inevitavelmente, ao longo da exposigdo 0 tema vai aparecer, por forga da prépria postura de alguns autores analisados. Mas, 0 meu interesse maior esti na avaliagao das estéticas cinematogrificas em sua relacao com 0 conceito de representago implicado neste mérodo que chamei de clissico. De um lado, encontraremos propostas que, assumindo tal mérodo como um dado, concentram seus esforcos no debate ideold- gico-estético enderegado a outros niveis da pritica cinematogrifica. De outro, encon- traremos as varias oposicées contra ele, cada uma trazendo consigo suas motivagoes par- ticulares. O que torna estimulante a minha tarefa, € a0 mesmo tempo define os seus li- mites, € 0 fato de que o trajeto que vai dos ptincipios ideolégicos-estéticos gerais a to- mada de posigéo diante do processo de de- cupagem/montagem tem sido, em geral, cheio de bifurcacdes. E muitas vezes tem sido percorrido originalmente em sentido inver- so. Em ambos os sentidos, cada ponto de partida, coerente ou incoerentemente, tem Jevado a pontos de chegada distintos. Neste ponto, via de regra, os estetas ¢ cineastas en- contram companheiros ou conclusdes inde- sejéveis, 0 que os obriga a mais um vai-e- vem na sua reflex4o, Em todo caso, ¢ prd- prio de uma apresentacao sintética agar percursos claros, 0 que me trangiiiliza dian- te das simplificagoes e desembaralhamentos a que serei obrigado. A DECUPAGEM CLASSICA 39 BiBLIOGRAFIA BAZIN, André. Qu’est-ce que te cinéma? vol. it, Paris, Editions du Cerf, 1960. BURCH, Noel. Praxis do cinema, (traducio portuguesa do Praxis du Cinéma, Pa- ris, Gallimard, 1969). CHKLOVSKI, Vitor. Cine y lenguage, Bar- celona, Ed. Anagrama, 1971. COHEN-SEAT, Gilbert. Essai sur les prin- cipes d'une philosophie du cinéma, Pa- ris, PUF, 1946. MALRAUX, André. Esquisse d'une psycholo- gie du cinéma, Paris, Gallimard, 1946. MARTIN, Marcel. 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