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O psicanalista Contardo Calligaris, em suma, não integra a lista negra elaborada pela

imprensa politicamente correta e moralmente fascistoide, que pretende interditar


qualquer debate metendo um selo nas pessoas e nas ideias.

Contardo escreve hoje na Folhja um excelente artigo sobre a maioridade penal.


Afirma:

“Por exemplo, sou a favor de baixar a maioridade penal, drasticamente, como


acontece no Reino Unido, no Canadá, na Austrália, na Índia, nos Estados Unidos etc.
— sendo que, na maioria desses lugares, o juiz tem a autonomia para decidir por qual
crime um menor de 12 ou dez anos será, eventualmente, julgado como adulto.”

E tive de ouvir os ai-ai-ais e ui-ui-uis de uma gente que nem mesmo se ocupou de
saber como as democracias mundo afora tratam essa questão. No primeiro texto que
escrevi a respeito, citei justamente o caso da Inglaterra, lembrado por Contardo, e o
tratamento dado por aquele país a dois indivíduos de 11 anos que sequestraram um
bebê de dois num shopping torturou-o e depois o amarraram à linha do trem só para
saber, disseram, como era corpo explodindo. No Brasil, com menos de 12 anos, nem
mesmo ficariam internados na Fundação Casa.

Na noite de terça-feira passada (dia 9), em São Paulo, Victor Hugo Deppman,
estudante de 19 anos, foi assassinado. As câmeras mostram que ele entregou seu
celular, e o assaltante o matou sem razão, com um tiro na cabeça.

O criminoso se entregou à polícia declarando que faltavam dois dias para ele
completar 18 anos. Com isso, pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), aos
20 anos e 11 meses no máximo, ele voltará a circular. A gente não pode nem deixar
anotado o nome do assassino, para mantê-lo afastado de nossas vidas futuras: por ele
ser menor, seu anonimato é preservado. É assim que protegemos o futuro do
criminoso, para que, uma vez regenerado pela mágica de três anos de internação
(alguém acredita?), ele possa facilmente reintegrar a sociedade e ser um cidadão
exemplar, nosso vizinho.

Por exemplo, sou a favor de baixar a maioridade penal, drasticamente, como acontece
no Reino Unido, no Canadá, na Austrália, na Índia, nos Estados Unidos etc. — sendo
que, na maioria desses lugares, o juiz tem a autonomia para decidir por qual crime um
menor de 12 ou dez anos será, eventualmente, julgado como adulto.

Conheço só uma consideração racional a favor da maioridade penal aos 18 anos, e


ela não é boa: o córtex pré-frontal (zona do cérebro que controla os impulsos) não está
totalmente desenvolvido na infância e na adolescência.

Tudo bem, se aceitarmos essa consideração, deveríamos aumentar seriamente a


maioridade penal, pois o córtex pré-frontal se desenvolve até os 25 anos ou além.
Além disso, deveríamos julgar como menores todos os adultos impulsivos, que nunca
desenvolveram um córtex pré-frontal “satisfatório”.

4) As outras “considerações racionais” (que deveriam prevalecer sobre o impacto das


emoções) são apenas disfarces de emoções especificamente modernas que, à força
de serem compartilhadas, se tornaram chavões ideológicos.
Três deles são corolários de nossa “infantolatria”, ou seja, da paixão narcisista que nos
faz venerar crianças e jovens porque, graças a eles, esperamos continuar presentes
no mundo depois de nossa morte.

Primeiro, queremos que as crianças nos apareçam como querubins felizes como nós
nunca fomos e nunca seremos. Por isso, preferimos imaginar que os jovens sejam
naturalmente bons. Quando eles forem maus, atribuímos a culpa à sociedade e a nós
mesmos. Portanto, não podemos puni-los, mas devemos, isso sim, nos punir.

Tendo a pensar o contrário: as crianças podem ser simpáticas, mas são más
(briguentas, possessivas, invejosas, mentirosas, ingratas etc.); às vezes, elas
melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou piorá-las, claro).

Segundo, adoramos acreditar que sempre podemos mudar (para melhor, claro):
apostamos que a liberdade do indivíduo permita qualquer reviravolta –até a salvação
eterna pelo arrependimento na hora da morte. A possibilidade de os criminosos (ainda
mais jovens) se redimirem confirma nossa crença querida.

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Podemos constatar o quanto tem aumentado o grau de violência e o envolvimento de


adolescentes em atos infracionais. O desprezo pela vida alheia e a introjeção dos valores
da sociedade de consumo, em detrimento dos padrões morais de direitos e respeito aos
outros, mostra o quanto a sociedade contemporânea, com seus ideais cada vez mais
utilitários, banaliza a violência. Hedonista e permissiva, favorece uma espécie de empuxo
ao fora-da-lei, fazendo da busca do prazer imediato um alvo que não encontra limites.
Freud, em "O mal-estar na civilização", nos mostra que a civilização tem por objetivo
moderar e limitar a vontade de gozo, por meio da formação dos ideais. Contudo, não
estamos mais em uma época como a de Freud, em que os ideais e as ideologias estavam
no zênite do social. Ao contrário, vivemos em uma época de impasses, em que as leis
simbólicas, que regem os laços sociais, não têm tido consistência para assegurar as
relações do sujeito com o outro, em função do declínio dos ideais. Consequentemente,
estamos confrontados com certos tipos de comportamentos de jovens que colocam as
ações dos educadores em xeque e nos desafiam a novas intervenções.
No Brasil, é por meio do cumprimento de medidas socioeducativas que os jovens maiores
de 12 anos e menores de 18 são convocados a responder pelo ato infracional cometido. O
caráter sancionatório e educacional das medidas socioeducativas envolve um modelo de
atendimento articulado com o sistema de garantia de direitos e o desenvolvimento de
ações educativas que visam à promoção da cidadania. Contudo, a cada vez que a mídia
dá visibilidade ao ato infracional praticado por um adolescente, a sociedade clama pela
redução da maioridade penal como uma solução eficaz.
Não devemos confundir inimputabilidade com impunidade. O que assistimos na nossa
sociedade é ao incremento da sensação de impunidade. Convivemos bem com o
desrespeito às leis. Nesse sentido, a solução para o problema do envolvimento do
adolescente com o mundo do crime não está na produção de leis penais mais rígidas, mas
em fazer cumpri-las. O adolescente é um desafiador da lei, mas ele precisa que a lei se
mantenha, tanto para dar sentido à rebeldia que reintroduz, confusamente, moções de seu
desejo na relação com o outro, quanto para barrar os excessos que ele quer e não quer
cometer.
Jacques Lacan, seguindo Freud, aponta-nos uma direção possível na condução do
trabalho com jovens envolvidos em atos infracionais e em cumprimento de medidas
socioeducativas. Em "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia", um
ensaio de 1950, ressalta a importância do assentimento subjetivo da culpa e da função de
expiação do crime que tem a punição. A responsabilidade, isto é, o castigo, é função
exclusiva do Estado. É um chamado ao sujeito que infringe a lei para responder por aquilo
que fez. A partir da responsabilidade penal, seria, portanto, possível fazer com que o
jovem assuma as consequências para o ato cometido. Nessa lógica enquadra-se, no
Brasil, o cumprimento da medida socioeducativa que convoca o adolescente responder
pelo seu ato. Pela lei, o sujeito poderá responsabilizar-se por aquilo que lhe escapa e que
aparece realizado em ato.
No entanto, a psicanálise sustenta um caráter particular de responsabilidade que em nada
se relaciona à responsabilidade jurídica ou moral. A responsabilidade do sujeito está, para
a psicanálise, relacionada à coragem de deixar falar o inconsciente, esse saber não
sabido, que portamos em nós por sermos seres de linguagem, parlêtres, como diz Lacan.
Dessa forma, o ato, que teve como consequência uma resposta jurídica, desempenha uma
função na vida do jovem e na sua relação com a civilização. É importante recuperar sua
participação no ato infracional, para que ele possa responsabilizar-se por isso e retificar
sua posição subjetiva perante a vida. A psicanálise lacaniana nos ensina que conduzir um
trabalho nas instituições responsáveis pela aplicação de medidas socioeducativas aos
jovens infratores é encontrar formas de dar um tratamento ao gozo pela responsabilidade
e pelo assentimento. Promove o aparecimento de um sujeito implicado em seu ato.
No Brasil, é longa a tradição assistencial-repressiva no âmbito do atendimento à criança e
ao adolescente, principalmente para aqueles em conflito com a lei. Com ações
repressivas, muitas vezes pautadas na violência, principalmente nas unidades privativas
de liberdade, o adolescente se sente injustiçado, o que dificulta o assentimento subjetivo.
Por outro lado, tratá-lo como vítima também impede recolher responsabilidades. Nesse
contexto, é importante salientar, ainda, que embora oEstatuto da Criança e do
Adolescente tenha representado um avanço do ponto de vista do marco legal, o mesmo não
aconteceu na implementação de políticas públicas eficazes de promoção da cidadania de
forma a garantir a doutrina de proteção integral expressa na lei.
Christiane da Mota Zeitoune, psicanalista lacaniana, é Coordenadora de Saúde Integral do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro

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