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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

SALOMÃO NICILOVITZ

RESISTÊNCIA ESCRAVA E INFLUÊNCIA INTERNACIONAL: UMA


PONDERAÇÃO QUANTO AS SUAS INTERFERÊNCIAS NO LONGO
PROCESSO DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA BRASILEIRA

PORTO ALEGRE
2017
1. Introdução

A transformação do Brasil de colônia a Império trouxe consigo a inauguração de


um novo momento ao recente país. Em ao processo, novas questões foram colocadas e
tensões sociais deflagradas. Afinal, como o país se organizaria sem as ataduras de
Portugal? Como seria a sua Constituição? Como o novo Estado organizaria sua
produção e geraria sua riqueza? Em meio a continuidades e descontinuidades, o país
passou por alterações, porém o sistema escravista de produção se manteve. Em uma
espécie de movimento contrário ao do resto do mundo, em que a maior parte dos países
vinha pondo fim ao modo de produção escravista, o Império brasileiro reajustou-se
como pode para mantê-lo, consagrando o Brasil, assim, como o país cujo tempo de
dominação sobre populações negras foi o mais longo. Triste marca para a nossa história;
maior ainda é a cicatriz que vivemos no presente, cujos índices secretos¹ não nos
permitem ignorar a infeliz realidade da população negra no Brasil de hoje.

A história da escravidão no período imperial é permeada por atritos,


negociações, avanços e recuos, conquistas e derrotas. Esse fervor é inevitável frente a
um regime que, não só mantém boa parte da sua população cativa, como sustenta a
própria coesão da sociedade sobre tal atrocidade. Em dado momento, O historiador João
José Reis chega a afirmar a existência de um “compromisso com a escravidão muito
generalizado entre as pessoas livres em geral”. (REIS, 2003, p.32). Nesta perspectiva, é
possível analisar o regime escravista como um sistema complexo que permeava todas as
esferas da sociedade, e suas oscilações e instabilidades eram resultados de dois fatores
principais: o primeiro, as movimentações sociais das suas populações – principalmente
a escravizada -, e o segundo, as interferências externas, que influenciavam o andamento
deste.

Frente a este quadro, cabe a nós nos perguntarmos: mas qual destes fatores,
então, teria sido o crucial para por fim a escravatura? Embora parta do pressuposto de
que não é possível eleger um deles como o maior deteriorador do sistema, neste trabalho
pretendo ponderar o seus graus de abalo ao regime, tendo em vista que esse debate pode
ser útil a movimentos libertários da atualidade – afinal, ainda hoje existem incontáveis
injustiças sistêmicas em diferentes partes do mundo.

Para cumprir tal objetivo, farei uma análise de ações de resistência escrava
durante o Brasil Império, dando atenção ao choque que estas causavam ao sistema –
seja por ações individuais ou coletivas -, bem como da conjuntura internacional do
período, fundamentalmente em relação às pressões exercidas pela Inglaterra ao Brasil.

2. Independência e participação escrava

De acordo com o sociólogo Sidney Tarrow, os movimentos sociais que


confrontam os sistemas opressores conseguem se desenvolver a partir de oportunidade
políticas, ou seja, dimensões que encorajam o engajamento dos setores oprimidos contra
os seus dominadores. Frente a estas oportunidades, também existem as restrições, isto é,
os fatores que desencorajam esse enfrentamento (2009, p.30). Durante o Brasil império,
as oportunidades e restrições para a resistência escrava foram oscilantes, mudando a sua
forma de acordo com a conjuntura frente a qual os escravos se deparavam.

A primeira participação escrava na luta pela sua emancipação se deu no próprio


processo de Independência, principalmente na Bahia, ocorrida em 2 de julho, data
destoante do restante do país. Dizem os historiadores João José Reis e Eduardo Silva
que a Bahia estava dividida entre o partido dos portugueses e o partido dos brasileiros,
sendo que no segundo, os interesses não estavam conciliados, havendo setores que
defendiam desde a conciliação da colônia com a metrópole aos que propunham uma
ruptura republicana para o Brasil. Frente a essa divisão, os autores colocam a existência
de um terceiro partido, o “partido negro”, que

significava os vários grupos negro-mestiços de escravos, libertos


ou homens livres que, cada qual à sua maneira, tentaram
negociar uma participação no movimento da Independência, ou
subverter a própria ordem escravocrata no calor do conflito luso-
brasileiro. (2005, p.80).

Boa parte dos escravos tentou participar do processo de emancipação da metrópole, e


não tiveram maior influência pois foram barrados pelas elites. Muitos viam no decurso
de independência uma possibilidade de, após concretizada, conseguirem alcançar a tão
sonhada liberdade, afinal, já que ela chegaria ao país, por que não poderia chegar a eles
também? (Ibidem, 2005, p.80) Muitos deles, inclusive, fugiram para unirem-se às forças
brasileiras, ato que rendeu diversas alforrias após a independência, que mesmo abrindo
essa lacuna, ainda assim manteve o seu caráter elitista e escravista. Em meio à euforia
do momento histórico, as elites tiveram o cuidado para que “a ‘revolução’ fosse feita
antes que o povo a fizesse” (Ibidem, 2005, p.88).

Neste cenário, o mais importante é reconhecer a participação escrava na guerra,


que não foi passiva, sabendo se aproveitar das poucas oportunidades políticas criadas.
Esse envolvimento rendeu uma movimentação nas elites, que protagonizaram o
processo de Independência sempre com medo da rebelião escrava, necessitando fazer
concessões após a Independência. Já no alvorecer do Brasil imperial, a participação
ativa dos escravos tencionava o domínio dos poderosos.

3. Período Regencial, revoltas e o seu poder de abalo

O período regencial foi um momento conturbado para a política e a sociedade. A


renúncia de D. Pedro I em 7 de abril foi feita baixo forte pressão popular, e os seus
reflexos se cristalizaram na sedimentação dos principais partidos políticos, bem como
nas revoltas populares do período. Como coloca Marcelo Basile, o clima entusiasmado
situou a política como assunto nas ruas, popularizando debates sobre o rumo do país
após a queda do imperador. As divisões entre restauradores, liberais moderados e
liberais exaltados é uma expressão dos anseios dessa população mais politizada, apesar
de que nessa manifestação não estava representava a população escrava. (2009, p.59, 60
e 61)

Frente às desilusões das reformas liberais capitaneadas pelos regentes, a grande


quantidade de escravos trazidos da África para suprir as necessidades produtivas
geradas pela alta do café e da cana entre os anos 1822 e 1830, e os descontentamentos
tanto das populações livres quanto escravas com as suas condições sociais, diversas
revoltas populares foram deflagradas. Em relação aos movimentos escravos, o mais
relevante ocorreu em 25 de janeiro de 1835. Nesta noite, as ruas de Salvador foram
tomadas por africanos muçulmanos, conhecido na época como Malês, que lutaram em
busca da sua liberdade. Após esse movimento, no entanto, as revoltas passaram por um
recrudescimento que só se intensificaria novamente na década de 1880.

Embora a Revolta dos Malês tenha encerra um ciclo de rebeliões, as diferentes


formas de resistência nunca cessaram. Apesar da proibição do trafico internacional de
1831, o Brasil viveu uma expansão da escravidão entre os anos 1833 e 1837 nunca antes
vista, o que gerou, entre outras consequências, um temor por parte dos senhores de uma
insurreição geral dos cativos. Em 1838, escravos liderados por Manoel Congo
protagonizaram uma grande fuga da Fazenda da Freguesia, de Manoel Francisco
Xavier, libertando cerca de 300 pessoas. Mesmo frente à captura dos revoltantes, como
costumava ocorrer, pode-se dizer que os escravista, nesse período, passaram a investir
esforços na contenção das movimentações escravas, chegando a formar uma Comissão
Permanente, que buscava prevenir possíveis levantes. Como colocam Grinberg, Borges
e Salles, os “atentados de escravos contra os seus senhores repercutiram muito além
daquele momento específico”, mostrando novamente o potencial destes movimentos
(2009, p.253).

As revoltas citadas, e principalmente a Revolta dos Malês, colocam uma questão


fundamental a ser debatida quanto aos rumos que a escravidão tomou no país. Por um
lado, as suas consequências atacaram o sistema diretamente: ela influenciou uma
movimentação individual dos escravos contra os seus patrões, estimulou a reflexão no
país quanto à escravatura e, mesmo sem a intenção direta, trouxe publicidade a causa
abolicionista, cujos ataques direcionados ao Brasil na década de 1830, principalmente
por parte de abolicionistas ingleses, se intensificaram. Olhando por outra perspectiva,
porém, é possível dizer que, junto à proibição formal (mas não efetiva) do tráfico em
1831, a partir de 1835 os senhores foram forçados a mudar as suas atitudes frente às
populações escravas, principalmente a africana. Em outras palavras, os escravistas
adaptaram-se frente à instabilidade do regime, criando, a partir de então, uma nova
relação com a população escrava. Como consequência desta alteração, as revoltas
escravas coletivas com objetivos definidos passaram por um período de adormecimento,
como dito acima, mudando, aos poucos, o seu eixo de resistência para as negociações. A
pergunta que pode ser feita é: as brechas abertas pela maior possibilidade de negociação
foram uma conquista ou apenas enfraqueceram um potencial revolucionário,
mascarando a opressão e alongando-a? Teriam, então, as atitudes dos revoltosos de
1835 contribuído ou prejudicado os esforços pelo fim da escravatura?

Seria cruel avaliar a Revolta do Malês como uma resistência que solapou
avanços. Em primeiro lugar, porque os avanços não vinham de fato ocorrendo, e em
segundo, porque toda a forma de resistência é válida e em certo grau abala o sistema.
Caberia aqui utilizar a metáfora cunhada por Carlo Ginzburg, a de uma “jaula flexível”
(1995, p.20). Nessa percepção, é possível ao dominado agir de forma a flexibilizar o
sistema que o encarcera, mudando os seus moldes e abrindo espaços antes mais
restritos. Porém, trazendo esse debate em direção ao objetivo deste trabalho, pergunto:
seria o enjaulado capaz de, não só flexibilizar, mas romper as grandes do cativeiro?
Colocado de outra maneira: dadas as condições dos escravizados do país, haveria
alguma outra forma de ação capaz de subverter o sistema, independente da interferência
de agentes externos?

4. Novas questões e dilemas a partir do final do tráfico

Seguindo uma análise cronológica, os anos 1850 e 1871 foram anos que tiverem
um peso enorme na mudança da configuração da escravidão no Brasil. Em uma
perspectiva global, o Brasil vinha cada vez mais se isolando, tendo em vista que os
países ao seu redor iam gradualmente abolindo as suas escravaturas. A Inglaterra vinha
exercendo uma pressão cada vez maior, exigindo o final do tráfico e da escravidão.

O autor Dale Tomich cunhou o conceito de segunda escravidão, concepção que


propõe que o século XIX, em meio a um conjunto de acontecimentos e tendências
históricas, principalmente a Revolução Industrial na Inglaterra e a sua hegemonia
internacional, levaram a reconfigurações profundas no mercado mundial. Nessa nova
formatação, Marquese sugere a formação de um “bloco histórico [escravista] de regiões
que refundaram a escravidão” (2015), composto por Brasil, fornecedor de café, Estados
Unidos, de algodão, e Cuba de açúcar. A partir de então, uma série de contradições
surge no país.

Com a transformação do café em produto de massas, vindo a fazer parte da cesta


básica dos trabalhadores britânicos e possibilitando aos ingleses modificarem a forma
de exploração dos seus trabalhadores (MARINI, 1990, p.54), o Brasil recebia um
estímulo natural ao aumento da sua produção. Como colocam Marquese e Tomich, é
impossível “compreender o processo de montagem da cafeicultura escravista brasileira
sem se remeter a processos globais mais amplos” (2009, p.344), sendo que “os senhores
de escravos que investiram café na década de 1810 responderam claramente aos
incentivos do mercado internacional” (2009, p.355). Ao mesmo tempo em que esse
estímulo acontecia, a Inglaterra - que desde 1825 exigia o fim do tráfico de escravos
como parte do acordo para o reconhecimento do Brasil enquanto país independente -
passa a exercer cada vez uma pressão maior sobre o império para por fim de vez à
pratica. Em 1845, os britânicos promulgam unilateralmente a bill Aberdeen, lei que
autorizava o governo inglês a julgar navios brasileiros como piratas em tribunais
ingleses, onde quer que fossem capturados(RODRIGUES, 2009, p.329). Essa
conjuntura ampliava o dilema dos senhores e ao Estado imperial. Por um lado, e
necessidade era aumentar a sua produção, e os escravistas, apesar de muitos almejarem
uma substituição da mão de obra africana por uma na sua visão “mais civilizada”, não
vislumbravam substitutos efetivos para tal. Por outro, as pressões inglesas estavam se
acirrando e colocando o Brasil em uma situação cada vez mais complicada. Junto a isso,
o crescente medo das ações escravas, principalmente no Vale da Paraíba (SALLES,
2008, p.62), urgiam uma mudança dos escravistas. Dessa forma, em 1850 é a provada a
lei Eusébio de Queirós, que ira por fim definitivamente ao tráfico.

Desse momento, que aparentemente apresentou um passo em direção à abolição,


novamente nos colocamos frente à questão inicial. Para Salles, a lei de 1831 pouco está
vinculada às movimentações escravas, enquanto a lei de 1850, apesar de
primordialmente ter sido uma resposta às ações navais inglesas, teve também
fundamentação no temor de revoltas por parte da elite. (2008, p.62) Jaime Rodrigues
corrobora em certos aspectos com a análise de Salles e outros autores em relação às
pressões inglesas, no entanto, propõe a necessidade de uma interpretação mais ampla,
que dê atenção a aspectos como “a maior coesão por parte das elites, o esgotamento do
projeto de construção do mercado de mão de obra baseado exclusivamente nos escravos
africanos, a estreita vinculação entre a suposta ‘corrupção dos costumes’ e a escravidão
[...]”, entre outros. (RODRIGUES, 2009, p.331).

5. Dos prenúncios do final da escravidão à abolição de fato

O fim do tráfico modifica a configuração da escravidão no país. Afinal, como


desenvolver uma economia baseada no escravismo tendo em vista que este estava
assentado majoritariamente na importação constante destes trabalhadores?

A partir da década de 1850, fatores endógenos como a taxa de natalidade e


evolução familiar escrava ganham mais importância, pois eram a forma dos senhores
manterem um contingente de trabalhadores que sustasse a sua produção. A tendência,
então, passou a ser a concentração social e territorial de escravos, com os grandes
proprietários comprando os cativos dos menores, tornando, gradualmente, a escravidão
não mais algo tão disseminado por todas as camadas da sociedade, como no início do
século, mas algo mais localizado. (SALLES, 2008, p.64 e 65)
As mudanças na composição da população escrava, na sua valorização bem
como na sua localização, alteraram também a relação a entre escravos e senhores. Salles
coloca que, a partir dos anos 1860, as alforrias, práticas costumeiras que sempre
compuseram parte essencial do sistema, começam a se restringir a escravos que
trabalhavam em locais menores, alcançadas com mais dificuldade. Além disso, boa
parte dos escravos vendidos por esses produtores menores trocavam de senhores,
perdendo, com isso, barganhas já antes conquistada, alterando o seu local de trabalho,
sendo separados de suas famílias, e indo parar grandes em plantations, onde eram
submetidos a uma rigidez de trabalho maior. Em suma, a “elasticidade” da escravidão
brasileira, que assegurava a ela certa estabilidade, fora alterada.(SALLES, 2008, p.66)

Frente a um ambiente de solidariedade maior entre escravos e pobres livres, a


pressão interna de abolicionistas, às pressões externas por parte da Inglaterra bem como
o clima de instabilidade no país gerado pela Guerra do Paraguai, se cria o ambiente
necessário para, em 1871, ser aprovada uma lei que modificará fundamentalmente a
sociedade escravista e alterará as formas de luta dos cativos. Apesar da influência de
setores do senado que acreditavam ser irreversível o fim da escravidão e lutaram por
ela, a historiadora Joseli Nunes Mendonça vê como necessária uma análise que coloque
em pauta a agência escrava, ou seja, dos debaixo, e trate-os como protagonistas, o que
de fato foram (2001, p.9).

A Lei do Ventre Livre, aprovada em 1871, contou com um debate acirradíssimo


entre os seus defensores e críticos. O argumento da oposição era o de que o ventre livre
representava um ataque ao direito à propriedade privada, garantido pela Constituição,
mas ele não foi suficiente. A promulgação da lei desestabilizou uma relação que há anos
vinha vingando, a entre os senhores e o poder público. Como coloca Mendonça,

a intervenção do poder público por meio de uma legislação que


definia direitos aos escravos, tenha sido importante elemento
perturbador do controle senhorial sobre os cativos e, portanto,
definidor dos rumos da abolição. (2001, p.13)

A partir dessa data, não somente os nascidos de ventre escravo tornar-se-iam


libertos – apesar dos desvios colocados pela lei para isso -, mas fora aberto o direito aos
cativos formarem pecúlio legal para a compra da sua alforria. A alforria costumeira, que
já acontecia antes, agora estava amparada pela lei, podendo o escravo comprar a sua
liberdade pela quantia estipulada do seu valor. Para essa prática, foi cunhado o termo
“alforria forçada”. Com base nela, o campo jurídico se torna uma arena privilegiada de
luta política. (MENDONÇA, 2001, p.56).

As possibilidades de luta escrava se ampliavam, estando presente desde o


momento da estipulação do valor do escravo, até as articulações entre estes e os
abolicionistas que trabalhavam no campo jurídico.

Mendonça, a partir das alforrias forçadas, traz o debate quanto ao abalo destas no
sistema escravista. Afinal, “o que seriam algumas dezenas de escravos libertos frente a
tantos cativos?”. (2001, p.85) Para o autor, apesar dos escravos sem dúvidas quererem a
abolição da escravatura, não era nesse sentido que eles direcionavam as suas lutas nos
tribunais, mas sim como uma batalha individual que, por outro lado, minava o sistema
como um todo, avivando nos demais escravos a possibilidade da redenção e colocando
em questão a continuidade do domínio senhorial. (2001, p.86).

Já na etapa final da escravatura brasileira, o isolamento do Brasil como resistente


à escravidão junto a Cuba (que a aboliu em 1886), frente a um amplo movimento no
país contrário ao regime, tornou insustentável o sistema escravista.

O historiador Walter Fraga Filho chama atenção aos “fios que ligavam os
escravos dos engenhos aos abolicionistas e às populações livres, libertas e cativas da
cidade”. É impossível retirar o caráter popular da abolição. As fugas se intensificaram,
pois os cativos reconheciam, através de um amplo círculo de comunicações, a
colaboração da sociedade com a sua causa, e cada vez mais ficava difícil aos senhores
realizarem capturas. (FRAGA, 2006, p.99 e 100). O sentimento antiescravista se
alastrara por todos os setores do país, sendo, para Mendonça, “improcedente separarmos
o Parlamento da sociedade” (2001, p.14). Fraga sintetiza o momento de forma clara:

Foi a atitude antiescravista das camadas populares que conferiu


força política às manifestações do abolicionismo organizado na
década de 80. (2006, p.104)

Em relação ao momento interno que o país passava, pode-se dizer que o esforços de
escravos, a indignação das camadas populares e o trabalho dos abolicionistas da elite
foram capazes de instaurar, finalmente, a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.
6. CONCLUSÃO

Na última década da escravidão, já estava evidente para toda a sociedade que o


seu fim era iminente, porém, o tempo que essa iminência levaria a se concretizar ainda
era relativo. Nesse período, a ação direta dos escravos e demais setores da sociedade foi
fundamental para alterar o ritmo dos avanços abolicionistas. Como comenta Mendonça,
sem essas intervenções, quem sabe não comemoraríamos uma “abolição ocorrida por
volta de 1930 ou 1950” (2001, p.55). Na verdade, é necessário dizer que as ações de
resistência escrava foram fundamentais em todo o período. Diferentes autores têm
posições distintas quanto ao papel determinante destas movimentações para por fim à
escravidão, mas apesar de discordarem quanto ao seu caráter determinador, não
discordam quanto a sua imprescindibilidade.

Autores como Salles afirmam que “não há como como estabelecer de forma
inequívoca uma relação direta entre um aumento nas ações de rebeldia dos escravos e a
motivação do Estado imperial para colocar a questão da escravidão em pauta”. (2008, p.
63) Marquese também tem uma percepção mais macroeconômica, tendendo a ver as
pressões da Inglaterra com mais preponderância dentre os fatores que levaram à
abolição. Nessas percepções, a agência humana não tem menos importância, mas é
colocada com uma consequência maior do bloco histórico na qual está envolvida.

Em uma outra perspectiva, Jaime Rodrigues, por exemplo, busca analisar os


principais acontecimentos do século XIX através da visão de um país menos dependente
da influência britânica, pelo menos em relação à escravidão. A autora Joseli Mendonça,
em um caminho parecido, busca dar voz “aos debaixo”, tirando o protagonismo da
abolição somente das elites e dando participação aos cativos. Na sua visão, não é
possível apresentar o termino da escravidão como uma defesa dos interesses das elites
devido à pressão do capitalismo mundial; sem a ação popular, ele teria durado muito
mais tempo.

Em meio a esses inúmeros debates, sem grandes pretensões, e reconhecendo as


minhas amplas limitações quanto ao conhecimento do assunto, busco aqui emitir algum
parecer quanto a este processo.

Analisando o século XIX como um todo, me parece evidente que as ações de


resistência escrava abalaram o sistema veementemente. O medo constante dos senhores
era justificado: os escravizados lutaram contra a os seus algozes sempre. Entretanto,
como aconteceu e ainda acontece em qualquer sistema opressivo, este tende a cooptar as
ações de resistência que ameaçam a sua sobrevivência, utilizando-as para se fortalecer.
Acredito que o filósofo sloveno Slavoj Zizek faz uma análise do sistema capitalista que
pode se servir, pelo menos a fim pedagógico, para ilustrar o ocorrido no Brasil:

Uma demanda particular, num dado momento, possui poder de


detonação global, funcionando como um substituto metafórico para a
revolução global. Se, de maneira inflexível, insistimos nela, o sistema
pode explodir. Se, entretanto, esperamos por tempo demais, o curto-
circuito metafórico entre essa demanda particular e a derrubada global
é dissolvido, e o Sistema pode, com hipócrita satisfação, perguntar,
“não era isso que você queria? Então, fique com o que pediu!”, sem
que nada de realmente radical aconteça. (2003, p.171)

As ações escravas, dessa forma, tinha potencial de “detonação global”, utilizando a


expressão de Zizek, mas como não explodiam, eram apropriadas. A reação dos
senhores, então, era a de ceder em alguns aspectos, como as brechas camponesas e as
possibilidades de negociação de alforrias para que, com isso, abafassem o real
problema: a escravidão em sí.

Nos anos 1880, a conjuntura foi tão expressivamente combativa à escravidão


que as resistências não conseguiram ser cooptadas nem abafadas, explodindo. Acredito
que durante essa década, de fato, foi à ação escrava e popular a capaz de antecipar o
final da escravidão, tendo um papel determinante. Já nas décadas anteriores, as revoltas
abalavam, mas devido à existência de um sistema de escravidão com grande
elasticidade, com forte potencial de cooptação, que mantinha um grande número de
libertos a fim de estabilizá-lo, foram os agentes externo os principais responsáveis por
empurrar o Brasil à última década antes da sua abolição.
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