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“O terceiro de meus filhos não conseguia se alfabetizar. Nem lia nem escrevia,
diferentemente dos dois primeiros, que não tiveram esse tipo de problema. Eu recebia
comunicados da escola, atendia chamados para ir conversar com a professora, que me dizia
que procurasse um psicólogo, para tentar resolver o problema. Um dia, tomei uma decisão.
Comprei a cartilha “Caminho Suave”, e comecei a ensiná-lo em casa. Alguns meses depois,
recebi comunicado da escola, informando-me que ele estava indo muito bem, e que esse
resultado era uma demonstração de como o método construtivista que eles utilizavam era
excelente. Bem, resolvi não responder. O garoto estava alfabetizado e isso era o que
realmente me interessava”.
Esse relato me foi feito casualmente, um dia destes, por uma vizinha, esposa de um
médico professor universitário, que sempre investiu muito na educação dos filhos e os
manteve em escolas da rede privada. Relatou-me esse fato quando soube que eu pesquisava
na área da alfabetização e quis conversar sobre o que seria realmente isso que denominam
construtivismo nas escolas. Bem, não é meu objetivo aqui discutir a questão do
construtivismo. Mas sim discutir os vários papeis do psicólogo na educação. Defenderei aqui
a tese de que o psicólogo que trabalha com questões relacionadas à escolarização inicial
necessita dispor de conhecimentos sobre os processos de aprendizagem e ensino da
linguagem escrita, uma vez que uma proporção considerável das crianças que lhe são
encaminhadas estão em dificuldade para transpor essa porta de entrada no mundo das
sociedades letradas.
O psicólogo escolar tem sido chamado para “resolver os problemas” dos alunos “que
não aprendem”. Tem sido chamado para atender o que se convencionou chamar de “queixa
escolar”.
Consultemos o dicionário. Uma queixa, além de ser uma lamentação, um gemido,
uma expressão de dor e sofrimento, é também um sentimento de mágoa que se guarda de
injúria, ofensa ou agravo. É ainda uma advertência ou uma censura. Mais ainda, é a
participação por parte de uma autoridade ou superior hierárquico, de qualquer fato merecedor
de reparo. Na medicina é a parte importante do relato clínico que levou o paciente ao médico.
Então, em se tratando da queixa escolar, quem se “queixa”? Certamente não é a criança.
Dificilmente seria a família. Quem se queixa é o professor, ou, generalizando, “a escola”.
Mas, há que se reconhecer que a “queixa” surge porque “há um problema”. E esse problema
se expressa no aluno.
Como procede o psicólogo educacional que recebe essa “queixa”? Ou melhor, como
haverá de proceder o psicólogo de nossos dias? Possui ele os conhecimentos necessários para
avaliar e tratar com competência profissional essa questão? É essa a grande questão que nos
propomos a abordar aqui, por meio dos conhecimentos psicológicos disponíveis e por meio
de reflexões a partir de um caso real.
No momento atual, levando em consideração as análises, críticas e contribuições dos
especialistas da área, afirmamos que está surgindo um novo psicólogo escolar, reconhecido
mais pelas suas ações inovadoras do que pelo discurso. São psicólogos com familiaridade
com a arte de educar e com a instituição escola, conscientes da importância determinante das
redes de interações que se estabelecem entre professor e aluno. São psicólogos que
reconhecem o valor das pedagogias colaborativas, dos diálogos nas salas de aula, da ajuda
mútua através de tutorias, e, sobretudo,conhecem os avanços da ciência psicológica
contemporânea.
Esse psicólogo escolar vem adotando novas, criativas e variadas formas de atuação.
No campo do ensino fundamental, em que enfrentamos gravíssimos problemas de
ensino decorrentes de várias e diferentes condições que não vamos aqui analisar, cabe ao
psicólogo conhecer o processo psicológico através do qual aprendemos a ler e escrever. Esse
conhecimento lhe possibilitará uma base segura para identificar problemas e encaminhar
soluções.
Esse nosso modo de ver o papel do psicólogo escolar na escolarização inicial,
concorda em vários aspectos com idéias e relatos que surgiram de um encontro
interinstitucional voltado para a questão da atuação do psicólogo escolar, que ocorreu no
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 24 de março de 2004, designado
como “I Encontro Interinstitucional de atendimento à queixa escolar” . Dada a multiplicidade
de instituições participantes, julgamos que algumas das idéias expressas e discutidas
merecem ser aqui relatadas, uma vez que conferem força de evidência ao que aqui
expressamos.
Beatriz de Paula Souza referiu-se ao alto índice de encaminhamento de alunos para
atendimento psicológico e também à existência em muitas escolas de práticas cotidianas
produtoras de dificuldades escolares, como é o caso da rotatividade de professores, dos ciclos
e inclusão impostos de forma autoritária, das escolas desorganizadas, das aulas
desinteressantes e desestimulantes, e mesmo a presença de preconceitos sociais e raciais,
além da falta de suficiente apoio aos professores. Assim a demanda de atendimento
infanto-juvenil nas clínicas-escola de cursos de psicologia e em unidades de atendimento do
sistema público de saúde chega a atingir a surpreendentemente alta cifra de 70%. Edwiges
Silvares relatou que, na escola pesquisada por ela, começou por perguntar quais seriam os
problemas que as crianças apresentavam e constatou que em 99% dos casos, havia queixa de
mau desempenho escolar. Acrescentou que, em seu trabalho, atentou para a criança, a família
e a escola, evitando portanto a observada tendência de centrar-se em apenas uma das
vertentes. Gravou em vídeo situações reais de sala de aula, discutindo-as depois com as
professoras e muitas delas reconheceram e solicitaram ajuda para enfrentar as dificuldades
percebidas, o que foi possível fazer em uma segunda etapa do desenvolvimento de seu
projeto. Marilene Proença relatou dados de pesquisa que mostram que, na faixa etária entre 7
e 14 anos, dois terços dos encaminhamentos psicológicos ocorrem por problemas vividos
pelas crianças no seu processo de escolarização, ou melhor, no início do processo de
alfabetização. Em um dos levantamentos, a média de idade dos encaminhamentos é de 9,3
anos, sendo que 66% dos alunos estão cursando entre a 1a. e a 3a série; 35% deles estão na 2a
série.
Estes dados nos parecem suficientes para dar-nos a dimensão do problema que o
sistema educacional brasileiro tem que enfrentar nos dias atuais. Considerando-se que estes
são dados referentes ao estado de São Paulo, e que, como se sabe, outras regiões do País
possuem índices ainda mais elevados de mau resultado no início da escolarização e ainda que
alguns estados do sul e sudeste possam apresentar ínices menos elevados, eles estão longe de
expressarem a superação da dificuldade de alfabetizar com êxito todas as crianças que já
acederam ao ensino fundamental.
Estamos portanto, localizando o cerne da questão do encaminhamento de crianças ao
atendimento psicológico na formulação de uma “queixa escolar” por parte das escolas.
Marilene Proença, conforme descrito no referido relatório, apresentou uma leitura dos
“prontuários” das crianças, buscando identificar episódios e descrições que traduzissem o
sentido dos “problemas de aprendizagem e de comportamento” que estão na origem dos
encaminhamentos e encontrou expressões do tipo: “ troca de letras”, “dificuldade em ler as
palavras”, “não consegue ler e escreve tudo amontoado”; “ ainda está na fase dos rabiscos”;
“não consegue copiar da lousa”; “ dificuldade na coordenação motora fina”; “ não sabe ler e
escrever, somente copia,… só conhece a letra A”; “não acerta as contas”; “vai mal em
matemática”; “é lento”; “é distraído”; “tem dificuldade em fazer a lição de casa”. Os
chamados “problemas de comportamento” também aparecem descritos, como por exemplo:
“não responde às chamadas e às perguntas”; “compreende mas não obedece instruções”;
“esquece as regras e fala baixo”; “não apresenta ordem em seu caderno”; “não consegue ficar
sentado assistindo as aulas”; é muito agressivo”; “briga e faz bagunça; “é calado”; “não fala
com a professora, não conversa com os outros, não pede para ir ao banheiro”; “é facilmente
enganado pelas outras crianças; não se interessa pela escola, só quer saber de brincar na
escola”; “não presta atenção ao que a professora fala”; “muito nervoso, não aceita aprender
por medo de errar”.
Tais expressões nos parecem bastante reveladoras de dificuldades próprias do
processo inicial de escolarização, particularmente de alfabetização, quando as condições de
ensino não estão dando respostas adequadas às necessidades dos alunos. A criança acede à
escola com enormes expectativas, desejos, emoções, curiosidade…eu diria também com
enorme desejo de aprender o que são essas marcas que ela se habituou a encontrar nas mais
diversas situações de seu dia a dia, ainda que essas situações se limitem ao ônibus, às
embalagens, aos pedaços de jornais, panfletos ou mesmo livros, sobretudo considerando que
a grande maioria delas vive em cidades onde a presença da escrita é mais frequente. A
frustação das expectativas passa a ser a grande responsável por condutas caracterizadas como
agressivas, desatentas, polarizadas entre inibir-se ou hostilizar.
Proença admite que um dos principais motivos de encaminhamento refere-se ao fato
das crianças apresentarem dificuldades em relação à leitura e à escrita.
A “queixa” dirigida aos pais desinformados e frequentemente não-escolarizados, sem
oferta de solução a não ser o “encaminhamento clínico a um psicólogo” gera dúvidas e
questões, uma vez que se perguntam o que é que o filho tem, pois não vai bem na escola. Será
que ele tem problema de cabeça? Mas por si mesmos não chegam a perguntar-se o que é que
a escola tem, posto que o filho lá não está aprendendo, e frequentemente a solução que
encontram é a punição: bater, surrar, dado que o filho é visto como o único responsável pelo
mau desempenho escolar.
É aqui que colocamos nossa questão central: que entendimento possuem os
professores a respeito do processo psicológico de aprendizagem da linguagem escrita? E os
psicólogos que recebem as crianças encaminhadas por “queixa escolar”, que entendimento
possuem a respeito da mesma questão?
A intervenção que passamos a relatar tem como objetivo ilustrar algumas questões
teórico-práticas, na perspectiva de atuação do psicólogo escolar. Ela se realiza junto a um
aluno que parecia estar destinado, aos 7 anos de idade, a engrossar as fileiras dos “incapazes
de aprender”. Surgiu casualmente, quando uma amiga telefonou-me pedindo ajuda.
Estávamos no início do mês de novembro de 2003.
— Meu funcionário tem um filho de 7 anos na escola. A escola enviou aos pais um
documento para “Encaminhamento Médico Psicológico”, assinado pela coordenadora
pedagógica, para levar o aluno a um destes endereços (seguia nome e endereço de três
faculdades e Universidades que fazem atendimento clínico psicológico). O pai procurou essas
instituições e em nenhuma dela sencontrou vaga para o filho. Será que você poderia ajudar a
conseguir uma vaga para a criança na PUCSP ou na USP?
Minha primeira reação foi de explicar à minha amiga, em grandes linhas, a
problemática que se coloca atualmente no que se refere ao encaminhamento para atendimento
psicológico, feito pelas escolas, uma vez que problemas situados claramente no âmbito do
ensino são transferidos para a área clínica. Assumindo-se implicitamente que “a criança
apresenta problemas”, sem verificação das características do ensino que está sendo oferecido.
Perguntei: como é o garoto? Como ele se comporta? Como é a sua linguagem? Ele apresenta,
visivelmente, alguma deficiência? Veio a resposta.
— Não! Ele é uma graça de criança. Não tem, à primeira vista, nenhuma deficiência
aparente.
— E como são os pais, a família? perguntei novamente.
— Bem, o pai é semi-alfabetizado; é amoroso e dedicado. A mãe veio do campo,
nunca foi à escola. É tremendamente exigente com o garoto. E bate muito nele, quando
recebe recados da escola dizendo que ele não faz a lição, é distraído, não presta atenção nas
aulas. É estressada e colérica. Às vezes é agressiva com a criança; e também com o marido.
Chama a criança de burra, diz que ela não aprende mesmo, que não sabe nada.
Pensei comigo mesma: mais um SOS Criança; mais um garoto à beira do naufrágio
escolar.
Perguntei: o pai aceitaria que eu atendesse o garoto? Diga a ele que é uma professora
que trata desses assuntos, e que se ele e a esposa estiverem de acordo, poderão trazê-lo uma
vez por semana (evitei a palavra “psicólogo”, pelas conotações de que se reveste atualmente,
junto a esse tipo de população).
Começou assim minha história de psicóloga escolar com Maurício. Por um lado, uma
atividade voluntária. Por outro lado, uma investigação acerca das reais possibilidades de
aprendizagem de uma criança (considerada incapaz de aprender) quando lhe são dadas
condições para isso. Eu me encontrava em condições semelhantes às de um psicólogo em
uma unidade básica de saúde, que atende crianças que lhe são encaminhadas com “queixa
escolar”: sem condições de trabalhar diretamente com a escola, e atingindo indiretamente a
família. Observe-se que, quando por meio do pai e da criança convidei a mãe para vir
conversar comigo, ela respondeu que “não iria não; já estava cansada de ouvir queixas do
filho na escola, não queria ouvir de novo as mesmas coisas”, e, segundo o pai, advertiu a
criança de que não deveria contar que ela batia nele em casa. A grande angústia do pai: “meu
filho é doente da cabeça”? Obviamente tranquilizei-o, dizendo-lhe que o garoto era esperto,
inteligente, só estava indo mal na escola, mas que nós daríamos um jeito nisso.
Por solicitação da professora, escreví uma declaração atestando que a criança estaria
sendo atendida por uma psicóloga, em sessões semanais, para justificar as faltas decorrentes
do atendimento, uma vez que o pai só poderia trazer a criança ao ir para o trabalho e não
tinha condições de voltar a tempo de deixa-la na escola para as aulas.
Este relato tem algumas características do “estudo de caso”. Pretende testar hipóteses
colocando à prova algumas proposições teóricas a respeito da aquisição da linguagem escrita.
E desconstruir algumas “crenças” a respeito das razões pelas quais crianças no início da
escolarização “não aprendem” e passam a engrossar as fileiras dos repetentes ou permanecem
na escola embora continuando a não aprender e saem da escola na condição de “excluídos”.
Um estudo de caso pode servir para aumentar o conhecimento que se possui a respeito
de um indivíduo particular, como também pode visar a produção de mudanças nesse
indivíduo. É nesta segunda vertente que nos situamos. Com Michel Sabourin (1988),
considerarei 4 etapas, nem sempre claramente distinguiveis.
— Em primeiro lugar, tratei de obter a descrição mais completa possivel do que
ocorria com a criança objeto de nossa atenção.
— Procurei informações sobre as circunstâncias passadas que levaram à situação
presente. Isto me permitiu formular um certo número de hipóteses concernentes aos fatores
que estavam regendo a situação presente.
— Tratei então de avaliar as hipóteses sugeridas pelas informações coletadas. Aceitei
o pressuposto de que a maior parte dos comportamentos não são determinados por uma causa
única. Tratava-se então de eliminar algumas possibilidades e de reduzir assim o número de
fatores que provavelmente teriam gerado a situação.
— Na quarta etapa, coloquei à prova algumas hipóteses, aquelas que sobreviveram às
etapas anteriores, instaurando uma forma de ação interventiva. Depois seria preciso avaliar
novamente o estado atual do “problema” e tentar constatar, a partir daí, se existiam ou não os
efeitos da intervenção.
Como não frequentara a pré-escola, a primeira série do ensino fundamental foi seu
primeiro contato com a escola. Nascido em novembro de 1996, teve seu primeiro contato
com a escola aos seis anos e 3 meses. É o primeiro filho de mãe analfabeta e pai analfabeto
funcional.
O primeiro encontro foi marcado por muita timidez, medo e insegurança. O pai ao
chegar expressou diante da criança suas “queixas”, ou melhor, as queixas da escola que ele
tornava suas. Deixei que o fizesse diante da criança, em benefício da transparência, e para
que Maurício começasse a perceber que poderia confiar em mim, pois seríamos parceiros.
Era preciso explicar à criança o que é que ela vinha fazer alí. E foi o que fiz.
Conversamos sobre a escola, sobre os colegas, a professora, as reclamações que tinham sobre
ele, o que diziam os adultos, etc. Olhamos os cadernos, falamos do que gostávamos de fazer.
Eu lhe disse do que eu gostava e ele me disse do que ele gostava mais. Terminei dizendo-lhe
que eu sabia que ele era um menino esperto e inteligente e que iríamos trabalhar juntos, para
que ele aprendesse mais as coisas da escola e ficasse mais adiantado. Fizemos portanto um
contrato.
Maurício mostrou-se um menino extremamente bem comportado, educado, cheio de
boas maneiras. Sempre pergunta “se pode”; dificilmente toma alguma iniciativa. Pensa bem
antes de dizer qualquer coisa e quando perguntado, repete a pergunta, assim obtendo tempo
para pensar antes de responder.
Observando seus cadernos, encontrei enorme quantidade de “escritas”, muitas letras,
sílabas e palavras, que sugeriam boa motricidade fina, a tal ponto que acreditei – por pouco
tempo- a hipótese de que ele já dominava grande parte do alfabeto.
Pude também, nesses primeiros encontros, ter acesso ao documento de
encaminhamento para atendimento psicológico que havia sido encaminhado aos pais pela
escola: 4 páginas com questões às quais a professora havia respondido brevemente, do tipo:
23 perguntas amplas sobre comportamento, respondidas em geral com sim ou não,
terminando com a resposta à questão 23: “antes de tentar fazer diz que não sei”. As 11
questões sobre organização, tinham a mesma estrutura e terminavam assim: “criança muito
distraida, se descuidar não faz nada”. Cinco questões sobre lingua portuguesa e 9 sobre
matemática, com quase exclusividade no “não”: não sabe, não consegue, não faz. Na
solicitação para destacar os aspectos positivos da criança constava uma breve resposta: “é
uma criança que quando chamada atenção, mesmo que momentâneo, obedece voz de
chamada”. E finalmente, para “outras observações”: “é um aluno que gosta de cutucar e
empurrar os coleguinhas. Quando a professora faz perguntas dificilmente responde. É uma
criança ausente, de difícil concentração na aula (viaja). Se deixar fica a aula toda distraido
com o seu material escolar. Necessita da ajuda para fazer as atividades, dentro das suas
possibilidades”. Ao final do relatório, alguém registrou: encaminhamento para atendimento
clínico psicológico.
O pai relata que a mãe veio da roça, nunca foi à escola. Que a filha menor está com 4
anos e fala melhor que ele, fala tudo, -ele mesmo explica- ela vai na creche desde pequena e
aprende muito lá.
Em uma das primeiras visitas, afirmei ao pai e em presença da criança: ele é um
menino esperto, inteligente, só está com algumas dificuldades porque não fez pré-escola e
começou a ir à escola muito cedo, com 6 anos e 3 meses, e ficou atrasado. Mas, agora ele vai
recuperar. E, somente para o pai: “cuidado, nunca mais digam a ele que é burro e não
aprende. O senhor tem que fazer a sua esposa entender isso. Do contrário, vocês é que vão
fazer com que ele fique burro mesmo!”
Logo percebí que Maurício estava longe de compreender o princípio alfabético. Nem
mesmo as vogais estava compreendidas no contexto de um sistema alfabético de escrita, pois
não conhecia o som que representavam. Desenhava letras. Mesmo no caso da escrita de seu
nome.
Teoricamente, poder-se-ia dizer que se encontrava no estágio logográfico da escrita.
Não havia compreendido ainda que os sinais que utiliza para escrever representam sons.
Faltava-lhe portanto o que se denomina a consciência fonológica. Tentei fazer com que
buscasse palavras que começassem ou acabassem com o mesmo som e percebi que tinha
grande dificuldade em fazê-lo. Quando solicitado a ler, ou seja, identificar palavras, sua
estratégia era a de tentar adivinhar; fazia isso tanto para a leitura quanto para a escrita. Ao
utilizar letras, que desenhava com relativa facilidade, não identificava o som que
representavam. Por isso, até o seu nome era simplesmente desenhado, apesar das páginas e
páginas de “escritas” contidas em seus cadernos escolares.
Dei-me conta de um agravante: sua oralidade repetia o modo de falar dos pais, com
uso de uma variação linguística social, expressando-se ademais com pouquíssima articulação
vocal. Com essas características de linguagem oral, tinha certamente vários obstáculos a
superar para aproximar-se da escrita alfabética.
Fazendo jogos com Maurício, percebi que ele não conseguia dizer sua idade. Não
conhecia as horas (embora o pai lhe tivesse comprado um relógio que ele receberia quando
soubesse conhecer as horas, habilidade essa que ninguém lhe ensinava!). Conhecia alguns
algarismos, mas com facilidade os invertia, e não os relacionava com quantidades reais.
Segurava a caneta ou o lápis em má posição e utilizava estratégias menos apropriadas para
uma boa escrita, ou seja, não fazia uso dos movimentos mais adequados para a produção da
escrita manual. O mais provável: ninguém lhe havia ensinado os movimentos mais adequados
para escrever com eficiência.
A noção de números: desenhava algarismos mas não havia construído a noção de
quantidade. Começamos a utilizar objetos que pudessem ser contados, e sem muita
dificuldade ele compreendeu que a mesma quantidade, qualquer que fosse o objeto, seria
representada pelo mesmo algarismo. Assim, 2 feijões, 2 lápis, 2 cadeiras, etc. E começamos a
fazer pequenas somas, primeiro colocando lado a lado os dois conjuntos de objetos e depois
representando as quantidades e a soma por meio de algarismos. Não demorou para que ele
compreendesse e começasse a fazer suas primeiras continhas.
Foi possível perceber em Maurício algumas características do assim chamado
“desamparo aprendido”. Ele já se convencera de que não era capaz. Assim, surpreendia-se
quando verificava o contrário, e ouvia: está vendo como você sabe? Olhe aí, você conseguiu!
Percebi também sua carência de auto-estima e de senso de eficácia, no que diz
respeito às atividades escolares. Sim, porque em outros âmbitos suas reações eram outras:
gostava dos amigos, de jogar bola, de vídeo-game, de ir passear com o pai, de brincar com os
primos…
Sustentei a hipótese de que, por alguma razão, as relações com a mãe não eram da
melhor qualidade afetiva. Maurício se apegava sempre ao pai. Não mostrava entusiasmo ao
referir-se à mãe. De fato, segundo o pai, a mãe é excessivamente exigente, guarda os
brinquedos e não o deixa o filho utilizá-los para não quebrá-los; pune e bate com frequência.
Maurício tem uma irmãzinha de 4 anos, que aprendeu a reivindicar com sucesso seus
espaços e suas vontades. Há um ano frequenta a creche e ali aprendi muito. Até corrige a mãe
quando ela “fala errado”. É considerada como mais esperta e mais inteligente do que ele.
Sustentei também a hipótese de que a baixa auto-estima e sua crença na incapacidade
de aprender estavam de fato impedindo seu desempenho na escola. As relações com a
professora pareciam ser carentes de afetividade. Sequer conseguia dizer qual o nome da
professora: esqueço; não, não converso com ela. A variação linguística era também um
importante fator que vinha dificultando seu processo de aprendizagem da linguagem escrita.
Passei a conversar bastante com ele, a solicitá-lo para nomear objetos em seu campo
visual, e, quando pronunciava mal, ou não articulava suficientemente uma palavra, eu o
solicitava a repetir comigo, “do jeito que a gente tem que falar na escola”; “olhe a minha
boca; olhe onde a gente põe a língua”; diga comigo. Ele começou logo a fazer grandes
progressos. Sobretudo com os S do plural, que ele nunca utilizava.
Vejo Maurício como um garoto gentil, atento, concentrado. Entende perfeitamente o
que lhe é perguntado e reflete antes de responder. Convidado a fazer perguntas,
reciprocamente, fica pensando e não se atreve. Mostra um comportamento muito controlado.
Não diria que é um comportamento reprimido, mas sim cuidadoso e controlado. Sorri,
conversa, mostra interesse por tudo que lhe é proposto. Diz que gosta da professora e da
escola, mais do que do pré (uma pequena creche que frequentou por pouco tempo). “Nesta
escola tem mais lugar para brincar.” Sobre os amigos, diz que tem amigos. Pergunto quantos
amigos. Concentra-se para contar mentalmente; e depois responde: 5. É com eles que joga
bola. Desenhar e pintar são atividades atraentes para ele.
Convidado a escrever no computador, dispõe-se mostra algum reconhecimento das
letras e ajudado, escolhe escrever o nome próprio, o nome do pai, o nome da irmã. Contudo,
ainda não compreendeu como funciona o alfabeto.
Quarta etapa
Referências