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Resposta ao relatório de Ana Viotti do dia 27 de fevereiro de 2018

CCS, 3 de março de 2018

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente
Fernando Pessoa, Autopsicografia

Esta é uma das estrofes mais conhecidas da literatura, acredito pelo fato dela ser
uma das mais verdadeiras e, ao mesmo tempo, mais dissimuladas.

[…] quando falamos de efeito do nosso espírito, nenhuma


palavra é suave e sutil o suficiente e jogos de linguagem desta
espécie indicam eles mesmo uma necessidade do espírito, o
qual, uma vez que não podemos expressar como queremos o
que se passa em nós, procura responder a pergunta segundo
dois lados e assim como que apreender a coisa pelo centro.

Goethe, Sobre a verdade e verossimilhança das obras de arte


em Escritos sobre Arte

No conto Sobre a verdade e verossimilhança das obras de arte há um diálogo


entre uma personagem intitulada Defensor do artista e o Espectador. O ponto de
partida da discussão deles é uma pintura feita nos camarotes de um teatro,
representando vários espectadores como se eles estivessem participando do que é
encenado lá em baixo. A partir disso, Goethe aponta para uma discussão que permeia
limites entre realidade e ficção nas obras de arte. Não é sobre obras de arte que quero
falar, mas, a partir deste trecho de Goethe, permear um pouco da dificuldade e
necessidade da criação de ferramentas para acessar a linguagem. O que me levou a
questionar os meios que temos para isso é a seguinte frase:

A verdade é que sou uma dissimulada.


Ana Viotti
Acredito que a enunciação, ou o enunciado de algo, seja um processo que,
muitas vezes, caminha com seus próprios pés sem ter a necessidade de pisar pelas
mesmas terras daquele que o enunciou – e que, talvez, uma preocupação da literatura
é a de deixar que esta enunciação caminhe em vez de ser guiada por seu autor – que
tem aqui, inclusive, sua posição questionada. Ou seja, o eu desta frase não
necessariamente se identifica com o eu de quem a proferiu – pelo fato de a linguagem
reconhecer o sujeito desta frase mas não necessariamente reconhecer a pessoa que
criou este sujeito.
Ao escrever eu sou uma dissimulada, o sujeito ainda está muito próximo do fato
que quer anunciar, contaminando-se dele – próximo o suficiente para ver a cena do
crime desfocada – o que implica em que ele não está realmente próximo de si, mas
talvez precise distanciar-se, dizendo muito mais coisas pra, de fato, aproximar-se de si
e ver qualquer sujeira com mais clareza – e ver, aqui, implica submeter-se a uma
forma diferente daquela com ele quer expressá-la – e isso doerá e durará muito mais
tempo do que uma frase tão curta dura. Desse modo, pode-se dizer que, ao dizer sou
uma dissimulada, não estou ainda realmente sendo dissimulada como deveria – ou até
mesmo como queria. Diante de algo tão movediço como a escrita – como a vida é, na
verdade, mas que às vezes só somos capazes de enxergar isso sob a lente da escrita –
quem escreve vê-se impossibilitado de definir-se tão claramente em algo – pois a
escrita exige que seja mudado assim que ele escreve.
Para que a frase eu sou uma dissimulada se torne realmente verdade, para que
ela cumpra sua profecia, deve ser proferida de várias outras formas, inclusive de
formas que não a reconheçam de imediato, até que a dissimulação esteja impregnada
em sua linguagem, e não apareça apenas como uma palavra no meio de tantas outras;
à medida em que mais coisas forem ditas, a suposta verdade do fato de ser uma
dissimulada tornará-se, então, uma mentira – para então, num processo aparentemente
paradoxal, poder contemplar em toda sua falsidade – não que realmente precise disto
– o significado da palavra dissimulada.

Neste sentido, uma das coisas mais apaixonantes em Rubens é o fato de ele se
transformar a tal ponto que não mais sabemos qual lugar ele ocupa: o de sujeito – de
objeto – de eu – dele – de todos – até mesmo nenhum – como ele mesmo escreve:

[...] para prender-me ao que posso ser, sacrifico todo o resto


do que poderia ser, então não sou, pois abandonaria a
possibilidade real de ser-me em todas as vielas e labirintos
desta coisa pegajosa, viscosa que é a matéria dos meus
fracassos [...] não há vida fora da lei, mas para eu viver a lei
eu tenho que transgredi-la, a lei exige um corte, uma reflexão
lenta, nesta lentidão eu corto a ferida cicatrizada com pus
dentro, exponho o pecado seco, umedeço o sangue, devolvo
água para o poço seco - esta manobra exige mais que um
sacrifício, exige o corpo em chamas - isto é: palavras que
respirem sozinhas, e não por meio de máquinas, exige um
estado de êxtase para serem escritas, exigem que meus olhos
sejam trocados no ato de ver, exigem que eu opere o milagre
escrevente ao escrever, a cirurgia seja feita a olho nu, na
frente do leitor como um ato de comunhão a sangue quente,
em total falta não aceito me imiscuir do meu direito, nem do
meu dever, morro ao escrever o que não devo - este é um
preço da escrita que não dá para inventar - a afirmação está
em estado de pura virulência entre uma minúscula, tênue
camada, entre a pontinha de um vocábulo e todo o meu medo
em dizer algo - iceberg - a pontinha de um iceberg de dizer-
me: buceta, digo que sou uma mulher.

Rubens Espírito Santo, Texto crítico ao da Carol –


testemunho de um homem entre o ferro e fogo,
2 de março de 2016

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