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'7ábu
Primeiro trabalho em língua portuguesa a tratar
de forma científica dos aspectos simbólicos do
doCorpo
L- .
corpo humano. O autor demonstra como os

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princípios estruturais se reproduzem no corpo
de maneira a dotá-lo de um sentido particular.
Para o antropólogo José Carlos Rodrigues, o corpo
humano é socialmente concebido, e, portanto, um
objeto do cientista social. Estabelece para tanto
uma distinção. No corpo, existem aspectos
instrumentais, universais, que são as funções - > José Carfos Rodrigues
orgânicas estudadas pelos cientistas nàturals. Mas
existem também os aspectos expressivos,
portanto simbólicos, ou seja, as codificações
particulares de um grupo social, objetá do sociólogo.
O prof. José Carlos Rodrigues afirma: "estudar
a apropriação social do corpo é estrategicamente "
importante para os cientistas sociais, uma vez que
ele é sem dúvida, o mais natural, o mais concreto,
o primeiro e o mais normal patrimônio que o
homem possui."
Talvez por isso, ..Os tabus. do corpo se
constituam numa' das mais. fascinantes e
elucidativas iniciações à Antropologia Social e seu
objeto por excelência, a cultura. ~ que no corpo
se encontram indissociadas as dirnensôeâ
orgânica' e social do homem, domlnios
respectivos da natureza e da cultura.

achiamé
;70-

o Paradoxo do Coringa - Luiz Felipe


Baêta Neves

o autor de O Combate dos Soldados


de Cristo na Terra dos Papagaios, um dos
mais importantes títulos em Ciências
Sociais dos últimos anos, reúne aqui os
seus dispersos. São artigos e ensaios
aparecidos em jornais, livros, revistas ou TABU DO CORPO
catálogos, quase totalmente esgotados.
São artigos irnpreqnados de grande e
generosa juventude. Não só porque o
autor os tenha escrito em sua mocidade,
mas sobretudo porque dotados do que
talvez seja essencial ao espírito da
juventude: permanente desconfiança em
relação ao senso-comum.
Entre os cientistas sociais, como
entre poetas e artistas, há os visionários e
há os reverentes. Os primeiros são
ex ímios construtores de castelos na areia.
Os seguros, como as comadres, se
comprazem com os lugares-comuns (e
como são freqüentes entre intelectuais).
O antropólogo Luiz F. B. Neves
demonstra ao longo desses artigos, em
que focaliza temas vários sob diversos
enfoques teóricos e metodológicos, uma
coerência exemplar: permanente desdém
pelas seduções dos castelos de areia, e
constante estado de alerta contra as
ciladas da mesmice, da redundância e da
impostura.
José Carlos Rodrigues

TABU DO CORPO
Dissertação de mestra do apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

achiamé
Rio de Janeiro
1979
SÉRIE UNIVERSIDADE

Direitos desta edição reservados a


Edições Achiamé Ltda.
Praia de Botafogo, 210 - grupo 905
Rio de Janeiro - RJ CEP 22250 - Brasil

Copyright © do autor

É vedada a reprodução total


ou parcial desta obra. A minha mãe,
que primeiro me inspirou
Coordenação editorial: Marcia Della Libera o desejo de saber.
Diagramação: Helio Lourenço Netto
Capa: Ler)J1Algamis

Composto na Compositora Helvética


Impresso na Di Giorgio & Cia. Ltda.

301.2 Rodrigues, José Carlos.


R696 O Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Edições
Achiamé Ltda., 1975.
XII, 174 p. ; 21cm
Tese (Mest.) - UFRJ . MN. Prog. Pós-Grado
Antropol. Soco
Bibliografia.

1. Antropologia Social -- Teses. 2. Teses _.


Antropologia Social. 3. Etnologia - Teses. 4. Cultura
- Teses. 5. Antropologia Estrutural - Teses. 6. An-
tropologia Religiosa - Teses. 7. Sirnbologia - Teses.
8. Misticismo - Teses. 9. Preconceito - Teses. I.
Museu Nacional, 'Rio de Janeiro. Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social. 11. Título.
CDD. 18.ed.
" ... deve-se considerar o agrega-
do em sua totalidade. É este que
pensa, que sente, que quer, ainda
que não possa querer, sentir ou
agir, senão por intermédio de cons-
ciências particulares".
Emile Durkheim
iJ

AGRADECIMENTOS

Este não é um trabalho solitário. Pessoas e instituições torna-


ram-na material, intelectual e emocionalmente possível. A estas,
deva a meu mais íntima agradecimento e a consciência nítida
de que o trabalho intelectual - talvez mais que qualquer outro
- é obra coletiva.
Sei que seria inteiramente dispensável dizer que assumo a
responsabilidade exclusiva pelo que escrevi. Contudo, não po-
derei deixar de assinalar o meu reconhecimento aos professores
Lui: de Castro Faria e Wagner Neves Racha por me haverem
introduzido no estudo da Antropologia, e por me haverem des-
cortinado o seu fascinante panorama.
Agradeço aos meus colegas e proiessores do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Museu Nacional da
Universidade Federal do Ria de Ianeiro, ao meu orientador de
tese, Professor Roberto Augusto Da Matta, a Ana Maria
Ramos, secretária executiva do Programa, pelo incentivo inte-
lectual que O' ambiente humano que formam permitiu.
AO' me dotarem de bolsas de estudos e de pesquisa, res-
pectivamente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífica e Tecnolágico e a Fundação Ford tornaram este trabalho
materialmente viável, além de permitirem que em difíceis mo-
mentos eu pudesse dedicar tempo ao estuda e à pesquisa.
Respondo com sincero sentimento aos meus alunas Gratia
Domingues, Gioconda Sugar, Leonor Amaral, Mônica Peixoto
Sant'Ana, Neuza Saraiva e Renato Bernardi, que trabalharam
otnigo - interessando-se pela tema, colhendo dadas e discu-
til/d -os comigo.
Às pessoas que entrevistei - e muitas vezes incomodei -
deve este trabalho a sua eventual originalidade, e devo eu res-
peito e gratidão.
Com Elisa de Alencastro Bezzi contraí uma dívida de
que não poderei me libertar.

Rio de Janeiro, março de 1975


J.C.R. SUMÁRIO

Introdução '1

Capítulo I
A Sociedade como Sistema de Significação 9
A Cultura e a Natureza 20
O Sagrado e o Profano 24
O Distante e o Próximo 29
O Desvio e a Norma 32
O Consciente e o Inconsciente 39

Capítulo II
Corpo ou Corpos? 43
O Corpo: Vida e Morte 49
O Corpo: Suporte de Signos 62
O Corpo: Fome de Símbolos 65
A Gramática dos Sexos 69
Feiticeiros, Médicos e Semiólogos 87
O Corpo: Denotação e Conotação 95
Higiene: Mito e Rito 108
Os Códigos da Emoção 121

apítulo III
O Nojo do Corpo ou a Magia sem Magos 127
Os Códigos do Corpo e os Códigos da Sociedade 129
Tabu do Natural 159

R ·f rcn 'ia Bibliográficas 169


INTRODUÇÃO

Mesmo que nós pudéssemos supor, absurdamente, que todo o


esforço intelectual de Freud e seus seguidores tivesse redundado
em uma enorme falácia, seríamos forçados a admitir, e a lhes
reconhecer, o mérito de pelo menos três elaborações teóricas
que marcaram decisivamente os caminhos do pensamento cien-
tífico, filosófico e moral contemporâneos: em primeiro lugar, a
demonstração da existência de um sistema de significação de
natureza inconsciente; em segundo lugar, a demonstração da
importância desse sistema, tornado inconsciente exatamente por-
que relevante, e, em terceiro lugar, o haverem colocado como
objeto de investigação científica séria um enorme domínio de
fatos que, exatamente em virtude de sua relevância, jazia aban-
donado de uma preocupação acadêmica, que tendia a consi-
derar sacrílega qualquer referência ao mesmo.
Toda a moderna produção no campo das Ciências Sociais
e a própria concepção que os cientistas sociais têm hoje de
suas disciplinas são, de uma forma ou de outra, uma pro-
funda dívida intelectual a estas descobertas sacrílegas. O pró-
prio trabalho que o leitor tem em mãos é uma ilustração dessa
dívida ao esforço freudiano, pois, sem ser uma pesquisa psi-
canalítica, seria, sem dúvida, impossível e sem sentido, se lhe
fossem retiradas as contribuições do movimento da Psicanálise.
A partir delas, pôde o cientista social de nosso tempo des-
cobrir e difundir o conhecimento de que as crenças e práticas,
os hábitos .e costumes, significavam mais do que a si próprios
e eram mais do que simples subprodutos do relacionamento das
instituições econômicas e políticas; pôde descobrir serem estas
práticas elementos significacionais capazes de encaminhar o es-
pírito para domínios não freqüentados habitualmente. pela cons-

1
ciência e que estes eram os únicos por meio dos quais se tor- costumes não o pusesse diante de um recorte operado de an-
nava possível o entendimento do pensamento e do sentimento temão. .. procedem de si, e que a análise deles, ainda que a
dos homens, e pôde descobrir, finalmente, que muito do sen- mais objetivamente conduzida, não poderia deixar de integrar
tido da vida social residia exatamente onde não existia sentido na subjetividade" (51, p. 167-8). Então, a minha consciência
algum aparente. pode ser objeto de minha própria consciência, desde que eu a
As práticas corporais e a evitação dos produtos orgânicos ponha como objeto do meu pensamento e como objeto de um
justificam-se, dessa maneira, como objeto de estudo sociológico, método particular de análise, dissociando-a de si, em um ní-
embora possam parecer um esdrúxulo objeto àqueles menos ha- vel, para objetivá-Ia, e subjetivando-a, em outro, para com-
bituados aos recentes campos de investigação da Antropologia preendê-Ia.
Social, conforme vêm se corporificando, sobretudo a partir das Portanto, não há para as Ciências Sociais o que, na vida
contribuições da escola sociológica de Durkheim e Mauss. social, não possa ser erigido em objeto de uma ou de todas
Aqueles que aprenderam a pensar que a Antropologia é um elas, e não há mentalidade de observador que não seja, ela
estudo de comportamentos e mentalidades estranhas ao obser- mesma, um objeto. O fato social, tal qual o apreendem as
vador ocidental também não reconheceriam com facilidade, na Ciências Sociais, é um fato total do qual não se pode excluir
presente pesquisa, um trabalho antropológico, pois ela visa nem mesmo a relação do observador com o observado, pois ela
compreender crenças e práticas a que o próprio investigador, é, antes de tudo, uma relação social. Isto significa que qualquer
como cidadão comum, não é indiferente. pesquisa social faz de si mesma um objeto, porque os próprios
Todavia, sabemos hoje que a ciência não se faz no plano métodos e conceitos utilizados podem afastar o sujeito da pos-
dos eventos físicos e materiais e que os objetos das diferentes sibilidade de ser "objetivo"; além disso, o cientista é um ho-
ciências são construídos teoricamente pelo próprio exercício da mem, que observa, descreve e explica, e, como tal, é objeto da
atividade científica, e que as diferenças entre as ciências são, observação e da descrição das Ciências Humanas.
antes', de "pontos de vista" e de "estratégias". Não há, portanto, Ademais, a Antropologia busca, mediatamente, compreen-
o que impeça que os comportamentos dos membros da socíé> der, por detrás das "alteridades" e "diferenças", as invariâncias
dade do observador sejam vistos a partir de pontos de vista do intelecto humano, razão pela qual a própria subjetividade
diferentes dos dela própria, e que ela seja analisada como obje- (e a do observador também) se constitui em laboratório de expe-
to de uma ciência que procura compreender as leis gerais de riências e em meio de demonstração objetiva, como observou
estruturação das sociedades humanas. Lévi-Strauss (52, p. 58). Disso resulta que, para o antropólogo,
As "aIteridades" e "diferenças" a que se associou muito a introspecção se constitui em método válido de produção de co-
freqüentemente a Antropologia - e de que ela fez o seu objeto nhecimento objetivo, não somente como neutralizador de pre-
imediato - não são, todavia, simples "alteridades" e "diferen- conceitos e hábitos intelectuais tendenciosos e etnocêntricos do
ças" empíricas ("civilizações, "culturas", "usos e costumes". observador, mas também como método de exame de estruturas
"direções evolutivas", "difusões culturais", "áreas culturais"., .), intelectuais que se inscrevem na própria subjetividade do obser-
mas, fundamentalmente, formas de relacionamento entre um vador e que ele toma como objeto, tornando, então, conscientes,
sujeito e um objeto. Como Lévi-Strauss escreveu, "toda socie- os processos por meio dos quais ele toma consciência do mundo.
dade diferente da nossa é objeto; todo grupo da nossa sociedade Os conhecimentos "objetivos", em última instância, caem nas
que não seja aquele donde procedemos, é objeto; todo uso desse malhas da subjetividade.
grupo ao qual não adiramos é objeto. Mas esta série ilimitada Quando nós entrevistamos pessoas, quando nós pedimos '1
de objetos que constitui objeto da etnografia, e que o sujeito de- elas que respondessem às perguntas do nosso questionário,
veria dolorosamente arrancar de si se a diversidade dos usos e quando observamos os seus comportamentos concretos em re-

2 3
lação aos seus corpos e aos alheios, esforçamo-nos por adotar Mas, além dessa técnica de "participação observante", usa-
uma postura "objetiva". Todavia, os dados, assim recolhidos, mos técnicas tradicionais tais como entrevistas formais e in-
não deixaram de ser matizados pelo corpo teórico da ciência formais, questionários, sondagens, pesquisa de documentos, re-
que nos guiou ao elaborarmos os questionários, entrevistas e gistros e arquivos, pesquisa bibliográfica, estudo de casos, ca-
observações, e por ingerências exteriores ao corpo teórico da derneta de anotações de campo. .. e muitas vezes procuramos
Antropologia, muitas vezes de natureza subjetiva e individual, o produzir as reações que queríamos estudar, ao colocarmos as
que vale também para a seleção do tema da pesquisa. pessoas diante de problemas determinados, ligados ao tema ge-
Entretanto, sem sustentarmos a possibilidade de uma obje- ral do "nojo". Contudo, pensamos que um sistema de perguntas,
tividade absoluta, os fatores extracientíficos intervenientes no seja o mais bem elaborado, tende a moldar um sistema de res-
processo de conhecimento podem ser controlados - e o exame postas, razão pela qual parece-nos ser a melhor técnica de pes-
da subjetividade do pesquisador, o autoconhecimento em fun- quisa social a de, sempre que possível, deixar o informante falar
ção da problemática da pesquisa, é uma das maneiras de o fa- . e proceder livremente.
zer. Por isso, as próprias práticas, crenças e hábitos do pesqui- Não apenas é verdadeiro que os melhores informantes for-
sador foram aqui objeto de investigação e, ao mesmo tempo, o necem sempre uma imagem inadequada de uma sociedade, ou a
mais precioso instrumento de prova de que as práticas e emo- imagem de um aspecto dela somente, como também não há ma-
ções do investigador, nesse caso especial, nada mais são do que neira de se produzir um conhecimento que não seja afetado
mensagens individuais radicadas em um mesmo código geral, pelo instrumental utilizado, ou pelas teorias que determinam as
e, em virtude disso, caminhos por meio dos quais a investiga- maneiras de o pesquisador selecionar e analisar os seus dados.
ção pode induzir esse código. Não há atitude totalmente neutra e objetiva; há esforço de se
Poder-se-ia, ainda, argumentar que o tema, bem como a conseguir, ou de se aproximar a uma postura de neutralidade e
maneira de tratá-lo, que estamos propondo, é de natureza mais objetividade. Contudo, não nos iludamos: mesmo que uma ati-
psicológica que sociológica. Mas, como tentaremos mostrar no tude neutra e objetiva fosse possível, na produção do conhe-
primeiro capítulo, todo fenômeno psicológico é em certo senti- cimento, o produto dessa atividade, ao ser absorvido socialmen-
do um fenômeno sociológico, na medida em que o mental, por te, não seria neutro, pois, na prática social, teria sempre o ca-
discrepância ou por conformismo, se identifica com o social, ráter de legitimação ou de denúncia.
e já que, em última instância, o sentido dos fenômenos sociais Se escolhemos um tema de certa forma proibido, se qui-
só pode ser apreendido em intelectos individuais com que o semos estudar um domínio "menos digno" da vida social, é
pesquisador entra em contacto, pois os símbolos são puras con- porque pensamos que a sociedade não deve ser estudada apenas
venções abstratas que os indivíduos observam para tornar a vida pelo lado de seus valores positivos, do que é desejado e apro-
social, ao nível humano de organização, possível. vado; é porque pensamos que todas as manifestações da vida
Durante os 30 meses que durou o trabalho de campo dessa social devem ser levadas a sério pelo cientista social, porque
pesquisa, ao observarmos e participarmos de diferentes con- todas são igualmente sérias, já que expressam sempre um
textos e situações sociais, ao lidarmos com diferentes tipos de significado humano.
pessoas, enfim, ao convivermos com elas, investigávamos. Isto Entretanto, o propósito dessa pesquisa não é o de estudar
porque, para o cientista social, o seu laboratório é a própria o lado "negativo" do homem e da sociedade; não é o de com-
vida em coletividade, e a relação com as pessoas é, fundamen- preender as coisas rejeitadas, por elas mesmas; nem é um es-
talmente, relação com mentes humanas, que permitem a ele a in- forço "corajoso" para compreender aquilo a que em geral as
ferir o que se passa nestas e em outras mentes humanas. pessoas dão as costas: é uma tentativa de compreender ambos

4 5
os lados - o adorado e o odiado, o protetor e o temível _. cidas. Isto, todavia, requer uma demonstração que não temos
como faces indissociáveis da mesma realidade fundamental, ainda condições de efetuar e que faz parte de um projeto mais
como componentes da estrutura social. amplo e ambicioso. Uma hipótese, entretanto, que não é nova,
Se, nesse esforço de observar e interpretar, modificamos a pois é partilhada por um bom número de antropólogos con-
realidade observada, não é menos verdade que também somos temporâneos.
modificados pela observação; e se, muitas vezes, o leitor se sen-
tir agredido pelos fatos relatados e pela maneira como eles são
interpretados. também não é inverdade que o observador o foi
igualmente, e que as próprias emoções do observador e do lei-
ror, no momento da pesquisa ou no momento da leitura, são
partes integrantes dos dados a observar e a analisar.

o primeiro capítulo é uma explanação geral dos conceitos


fundamentais que utilizaremos, bem como do quadro teórico
geral em que a pesquisa se enquadra. Em seguida, faremos
uma exposição panorâmica sobre as maneiras pelas quais o cor-
po tem sido enquadrado pelas diferentes culturas em seus siste-
mas de classificação, e sobre alguns processos corporais que
particularmente chamaram a atenção dos cientistas sociais. No
terceiro capítulo, estudaremos, de maneira mais minuciosa, o
significado social da repulsa aos produtos do corpo humano.
Procuramos centrar a pesquisa sobre dados sincrônicos e
sobre pessoas que normalmente freqüentam o mesmo círculo de
relações sociais que o pesquisador (faixa de renda, relações fa-
miliares, nível de instrução, preocupações, aspirações, etc...),
embora tenhamos, eventualmente, lançado mão de dados histó-
ricos 'e provenientes de outros meios sociais, sempre que estes
nos pareceram úteis para facilitar o entendimento e para auxiliar
o exercício de descentramento sem o qual o raciocínio antropo-
lógico é impossível.
Não obstante, levantamos aqui a hipótese de que o código
que governa as relações com o corpo, no grupo pesquisado, por
se apoiar no eixo da oposição Natureza/Cultura, é de extensão
bastante mais ampla, relativamente invariante para a sociedade
ocidental, e, nos seus princípios básicos, fundamentalmente pa-
recido com o que se observa na maioria das sociedades conhe-
7
J
CAPÍTULO I

A SOCIEDADE
COMO SISTEMA DE SIGNIFICAÇÃO

"Tudo oferece um sentido, senão


nada tem sentido."
Lévi-Strauss

A sociedade humana foi vista tradicionalmente a partir de qua-


dros de referência que lhe eram estranhos. Encarada algumas
vezes como um mecanismo possuidor de forças, dinâmica, vo-
lume e dispositivos e, outras vezes, como se fosse organismo do-
tado de necessidades, órgãos e funções - ela não pôde ser en ..
tendida em seus próprios termos. Walter Buckley (11, p. 24-36)
chamou a estas abordagens, respectivamente, analogia mecâ-
nica e orgânica e as viu como inspiradoras de uma multiplicida-
de de pesquisas e construções teóricas no domínio das ciências
sociais. A predominância desses modelos "importados", ao que
parece, teve muito a ver com o impacto que causou no pensa-
mento ocidental, o desenvolvimento das ciências físicas e bio-
lógicas. Todavia, o estado embrionário das ciências sociais não
deve ser desprezado na consideração dessa questão.
Modernamente, existe acentuada tendência a se encarar a
vida social como um sistema no qual a razão de ser dos elemen-
tos que o constituem é significar; da mesma forma, considera-
se que as relações entre esses elementos significantes são sem-
pre produtoras de significação. Sob a influência da lingüística
saussureana, Lévi-Strauss propôs uma abordagem da sociedade
humana que tem por característica fundamental o postulado de
que o comportamento humano e as relações sociais constituem
uma linguagem. Com este passo, Lévi-Strauss teve o mérito de.
oferecer à ciência social contemporânea uma orientação mais
intensamente ligada à natureza da sociedade humana, já que o
objeto da Linguística é, dentre os fatos sociais, o mais genui-
namente humano.
Lévi-Strauss (49, p. 96) acredita - e este é um ponto basi-
lar de sua teorização - que a atividade do espírito humano

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~ \. é a de um estruturador
inconsciente que funciona como um lingüística saussureana, o problema da Antropologia Social con-
temporânea é exatamente o da compreensão das relações exis-
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) C e-

~ ordenador do relacionamento
('o. ••• entre o homem e o mundo, não
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o C o principalmente porque necessite controlar a natureza ou os tentes entre esses sistemas de pensamento e a experiência social , '" t ~
o \li\,. ~ ~ eventos, visando a fins práticos, mas porque precisa determi- dos indivíduos. ~..., '" lJ'
•• ;;. ~ ~ nar e sistematizar. Privilegiada resultante da atividade do es- Não obstante a importância da questão para a Antropologia ~ O; ~
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pírito humano, a Cultura consiste, no seu entender, na substitui-
~ :'..('1 ~ ção do aleatório pelo organizado, assegurando assim a existên-
Social moderna, vamos nos esquivar de discuti-Ia, passando di-
retamente à consideração das características dessa realidade de
"";... li'
t; ~
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v '!"5'

~g,~
cia do grupo humano como grupo.
Por organização, Lévi-Strauss (49, p. 96) entende presença
pensamento, tomada como sistema de significação. é ~
~ .,
~.
~ ~ e atribuição de sentido, ou seja, o reconhecimento de que em
~ (!" sutis diferenças e nuances de olhar, de posturas de maneiras de A Cultura, distintivo das sociedades humanas, é como um
c ó. '
~ ~ cumpnmentar, de atividades econômicas, de procedimentos ri- mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida
~ -~ tuais, exprime-se um juízo acerca das relações que existem entre social. Puramente convencional, esse mapa não se confunde
1>' quem se olha, se comporta, se cumprimenta, trabalha ou age, e com o território: é uma representação abstrata dele, submetida
y acerca do relacionamento entre estes e outros que não se rela- a uma lógica que permite decifrá-lo. Viver em sociedade é viver v-
cionam diretamente com os primeiros. sob a' dominação dessa lógica e as pessoas se comportam segun- 2 ';.
Para ele, a organização fundamenta-se num conjunto de do as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham cons- "t io -;,
normas que estipulam, instituem e convencionam valores e ciência. Podemos, então, inferir que, se a vida coletiva, como ~ e- ~
significações que possibilitam a comunicação dos indivíduos e <avida psíquica dos indivíduos, se faz de representações, ou seja, ? g~
~~ grupos sobre um terreno comum; e as relações sociais que po- das figurações mentais de seus componentes - sendo, então, ~
r <.:.
;:: dem ser abordadas do exterior, e que consideraríamos funções a sociedade, de natureza intelectual - o seu conhecimento re- O
o de uma realidade "objetiva", supõem sempre outras, que são quer uma teoria social do conhecimento. I,
s-:
; s- "concebidas", que não constituem uma realidade objetiva, por- Os sistemas de representação historicamente existentes não (";> 1ft

" ~ que só encontram existência na consciência ou na inconsciên- se podem ter originado senão de efervescência do relacionamen- ~ ~ ~
~ cia de um sujeito particular. As primeiras, realidades de "or- to dos indivíduos e dos grupos sociais; mas, ao mesmo tempo, ~ ~
"t dem vivida", são incompreensíveis, fazendo-se abstração das regulam esse relacionamento, de forma que as questões reI a- \h JS

~ segundas, realidades de "ordem concebida", que representam os tivas ao seu nascimerito - como na anedota do ovo e da ga- ~ j,.

ó sentidos que a estas realidades vividas se atribuem. Portanto, linha, ou como o problema da origem do mundo para os nossos ~
~ desde que é fundamentalmente concebida, a sociedade não é cientistas naturais - não pode ser colocado em termos de uma '8 '
simplesmente uma "coisa", mas uma construção do pensamento. relação causal simples, mecânica e puramente empírica.
As relações sociais envolvem crenças, valores e expectativas tan .. O fato é que, uma vez constituídos, os sistemas de repre- ,... "
to quanto interações no espaço e no tempo. A Sociedade é uma sentações e sua lógica são introjetados pela educação nos indi- tA ~ ~
entidade provida de sentido e significação. víduos, de forma a fixar as similitudes essenciais que a vida co- ~ ~ (!\

Animados pelo fascínio do panorama que esta teorização letiva supõe, garantindo, dessa maneira, para o sistema social, » c r
lhes descortinou, os antropólogos atuais começam a deixar as uma certa homogeneidade. Essas categorias do pensamento co- .~ Ó
e
l"4

simples análises de estrutura dos anos 40, de inspiração morfo- letivo são, pois, verdadeiras instituições fixadas em nossas almas ~ ~
lógica, e passam a se interessar vivamente pela análise das ca- pelo processo de socialização. Na expressão de Marcel Mauss, o. !' 8
tegorias do pensamento coletivo e pelo entendimento dos sis- <60, p. 272), "os homens se reúnem tanto em torno das idéias O1~
temas de pensamento. Como no caso da dualidade língua-fala na comuns, religião, pátria, moeda, como sobre sua terra". 'S ~
• D ~ Z.
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10 11
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1
Mesmo que, diacronicamente, possamos levantar a hipó- uma ordem natural por outra que não o seja; também não é um
tese plausível de que os sistemas de representação têm sua ori- ordenar específico de coisas já existentes no mundo: ela institui
gem na morfologia social, a ligação entre eles e os sistemas mor- fiO mundo novos elementos, imprevisíveis, inconhecíveis e mes-
fológicos não é de forma alguma direta. Q..s produções míticas, mo inexistíveis sem a lógica que lhes é imposta.
artísticas e rituais, as crenças, os valores e os costumes não têm Se esta estruturação que ordena o mundo e as relações
caráter instrumental e pragmático o maior número de vezes, sociais não está na mundo como realidade objetiva, mas figura
mas são expressões metafóricas ou metonímicas, muitas vezes como fenômeno psíquico, consciente ou não, nas mentes dos
inconscientes, cujas finalidades são teóricas, estéticas, antes que indivíduos, e se esta ordenação é culturalmente variável segundo
de ordem prátic~ No dizer de Sapir (65), "o indivíduo e a so- as diferentes sociedades, que a introduzem nas mentes dos indi-
ciedade, num jogo interminável de gestos simbólicos, constroem víduos, ela só pode ser de natureza abstrata e conceptual. Alguns
a estrutura piramidal chamada civilização. Nessa estrutura, mui- antropólogos, contudo, acreditam que a estrutura social seja al-
to poucos tijolos tocam o chão". Respondendo ao argumento de guma coisa existente na sociedade, algo que está "lá" na so-
que as espécies naturais eram escolhidas para representar ciedade. Para estes, a estrutura social confunde-se com os dados
porque eram boas para serem comidas, Lévi-Strauss (49, p. empíricos, dos quais é uma classe especial e privilegiada: a es-
131) retrucou que elas foram consideradas boas para serem trutura é, então, sempre apreensível se se "aprofundar" um pou-
comidas porque antes foram consideradas "boas para pensar". co mais a análise. A estrutura é, pois, algo inarredável, absoluto,
De natureza prática ou teórica, os sistemas de representa- que jaz "no fundo" da ordem social, como determinados dispo-
ção atuam como uma grade que se estende sobre o mundo, bus- sitivos dos mecanismos, ou certos órgãos e funções dos orga-
cando classificá-Ia, codificá-Io e transformar suas dimensões nismos.
sensíveis em dimensões inteligíveis. São como uma rede, cujas Os antropólogos que se esforçam por ver os sistemas so-
malhas instituem os domínios da experiência sobre um terreno ciais como sistemas de significação tendem a acreditar que a es-
antes indiferenciado e estabelecem os limites dos comportamen- trutura desse sistema lógico de classificação é também de ordem
tos dos indivíduos e dos grupos; como códigos constituídos, lógica e abstrata, e partem do postulado, para o qual Saussure
aplicam-se a esses componentes para decifrá-Ias, pois, ao dividir havia chamado a atenção, de que nada há de absoluto no da-
os domínios da experiência, os sistemas de representação esta- minio da linguagem. Dessa forma, qualquer conjunto de dados ~;;- ~
belecem cortes e contrastes e instituem diferenças. Saussure pode apresentar várias estruturas lógicas, diferentes, conforme .;:;~ ~
(67) nos ensinou que a diferença faz o sentido: a partir daí, variem os pontos de vista, em que, em relação a ele, se situe o"," '1?' ~ li
'1 éO.... \)
as coisas, os comportamentos, os 'pensamentos e os sentimentos observador. A estrutura, portanto, para estes antropo ogos, ~ -
<;)
se constituem em mensagens significantes. construída sobre dados, a partir de dados, mas não é um dado -;. o 0\
Os sistemas de representação, se funcionam dessa maneira, nem se confunde com eles. O observador toma os dados como \I' ~ J'\ '$
são, pois, sistemas de classificação. Nesse sentido, isto que as mensagens que tenta decifrar e procura explicitar os códigos nos ~ '"'
pessoas chamam normalmente de "mundo real" é inconsciente- quais estas adquirem sentido. Tanto quanto para os sujeitos da c"
mente construido a partir dos códigos da sociedade. O cérebro vida social, a estrutura aparece ao observador como realidade ,;'l> 5
humano seleciona e processa as informações que lhe oferecem de razão e ele deve assumir o máximo cuidado para não "coisi- t.o

os órgãos dos sentidos segundo um "programa" que lhe é intro- ficá-Ia" (50, capo 15).
jetado pela socialização. A consciência individual tem a impres- Todavia, a discussão epistemológica que começamos a es-
são de estar lidando com um mundo intrinsecamente ordenado. boçar, não é nosso objetivo presente. Interessa-nos saber as ca-
Entretanto, essa ordem postulada pela Cultura não se confunde racterísticas do código que estrutura o mundo e o comporta-
com a ordem da Natureza, nem é apenas uma substituição de mento físico, intelectual e sentimental dos indivíduos enquanto

12 13
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membros de grupos SOCiaIS, prevendo o número e a qualidade estrutural é uma condição sine qua non da constituição do 81S- ~
das respostas possíveis, requerendo ora um comportamento for- tema da própria estrutura. Para a análise significacional, por- r
mal, ora um proceder informal, definindo um sistema de posi- tanto, levando o raciocínio às conseqüências mais profundas, a
ções sociais às quais atribui direitos e obrigações e possibili- própria ausência de significação se constitui na possibilidade de
tando certeza e segurança onde é definido, ou produzindo, na qualquer significação. Contrariamente, então, ao seu estatuto na
alma dos indivíduos, temor, insegurança e confusão quando é ~ abordagem tradicional, o extra-estrutural, embora diferente do
indeterminado e impreciso. que é estruturalmente instituído e desejável, tem sua considera-
ção não menos imprescindível nos quadros de uma análise sim-
bólica.
Pela natureza do seu espírito, o homem não pode lidar Este ponto merece um melhor detalhamento. Para Victor
com o caos. Seu medo maior é o de defrontar-se com aquilo Turner (71, p. 93), o modelo básico da sociedade é o de uma
que não pode controlar, seja por meios técnicos, seja por meios estrutura de posições e de repartições de domínios. Sendo, os sis-
simbólicos. Este código estruturador gera a lei e a ordem, e a temas de classificação, construções intelectuais, e desde que o
expectativa de organização responsabiliza-se por todo o medo pensamento não é idêntico à realidade que lhe é exterior, ao
à anarquia e à confusão de domínios que por definição devem- mundo real, qualquer sistema de classificação dá nascimento a
se manter separados. A possibilidade de que as categorias anomalias, o que significa que qualquer cultura está destinada li
venham a perder o controle que exercem, ou parecem-lhe exer- enfrentar eventos que desafiam os seus limites interiores e exte-
cer, sobre o mundo repercute como verdadeiro pânico em sua riores, bem como os seus princípios e as definições que estes
consciência. Por esta razão, o homem reconhece a existência de princípios estabelecem, Tais eventos são elementos que não se
algo intrinsecamente bom e virtuoso na lei e na ordem. conformam às definições culturalmente postuladas, ou que per-
A conseqüência é que qualquer estrutura de idéias está in- tencem simultaneamente a domínios diferentes e incompatíveis,
vestida de poderes que cumprem a missão de se oporem aos po- eu elementos intersticiais que se situam exatamente sobre os li-
deres antagônicos da ausência de estrutura e do comportamento mites entre os domínios que as categorias sociais definem. Mary
desviante dos indivíduos. Dessa forma, esses poderes reconhe- Douglas (18) vê esses elementos desafiadores como pertencendo
cem e preservam os limites das categorias estabelecídas, prote- a dois conjuntos básicos: o das coisas "anômalas", isto é, que
gendo as estruturas formais de autoridade das energias emana- não preenchem determinado conjunto ou série, e o das coisas
das do exterior do sistema social ou de áreas menos articuladas "ambíguas"l ou seja, passíveis de duas interpretações. Reco-
do mesmo. Por essa confrontação de forças intra e extra-estru- nhece, entretanto, que para efeito das relações sociais ambos
turais, o sistema desenvolve o seu interminável esforço de criar desempenham o mesmo propósito prático.
contornos e definir formas sociais. Para Douglas (18), Leach (43) e Turner (69, 71), onde S-
O extra-estrutural foi considerado "marginal", "disfuncio- o sistema reconhece posições explícitas e definidas, reconhece o ';:

nal" ou "patológico" pelos autores de orientação mecanicista e também poderes controlados, conscientes e aprovados; onde o t' ~ 1Y ~
organicista, e por isso mesmo tendeu a ser relegado a um plano sistema é ambíguo e hesitante, poderes incontrolados, incons-S ~ ~
menos valorizado de suas atenções. Para a abordagem significa- cientes, desaprovados e perigosos. Tudo o que representa o:" (J'>
c •••

cional, de inspiração saussureana, que se apóia numa lógica bi- insólito, o estranho, o anormal, o que está à margem das \.,. o ~
nária (em que a existência de cada termo supõe a de outro que normas, tudo o que é intersticial e ambíguo, tudo o que é 15" :, ~

lhe é oposto, e em que o sentido de cada elemento é uma resul- anômalo, tudo o que é desestruturado, pré-estruturado e!. ~
tante da oposição dos seus componentes aos componentes dos rt antiestruturado, tudo o que está a meio caminho entre o que é g. ~
sentidos de outros elementos dos quais se distingue), o extra- próximo e predizível e o que está longínquo e fora de nossas;; B ?
I..,
14 15 t,. g
t.I
preocupações, tudo o que está simultaneamente em nossa pro- Compreendemos, por essa perspectiva estrutural, porque a
l,. ximidade imediata e fora do nosso controle, é germe de inse- madrugada (tempo que se situa entre um dia e outro) é o tempo
..•
c guranca, inquietação e terror: converte-se imediatamente em estruturalmente conveniente para a prática de certos delitos e
r fome de perigo. para a vida de certas pessoas; porque as esquinas (que se si-
Uma consideração mais próxima de nossas existências co- tuam entre uma rua e outra) são lugares considerados adequados
tidianas tornará mais clara a questão. David Sudnow (68), num para a prática de certos ritos, de certo tipo de comércio e para
livro em que estuda a organização social destinada a lidar com a permanência de certas categorias de pessoas; podemos en-
a morte em dois hospitais americanos, relata alguns aconteci- tender porque as estações ferroviárias e rodoviárias (que simbo-
mentos fatais que causaram pânico, surpresa e comoção entre as licamente são portas e limites das cidades), bem como as zonas
pessoas que constituíam o corpo de funcionários do estabeleci- de transição entre diferentes bairros, são campos onde germinam
mento. O primeiro foi o assassinato de uma pessoa nos domí- aqueles tipos de pessoas e atividades que alguns integrantes da
nios dos hospital; o segundo, o suicídio de um paciente psiquiá- escola sociológica de Chicago chamaram de "parasitas sociais";
trico, e o terceiro, a morte acidental de um técnico de Raio X, porque a "meia-noite" desempenha funções importantes nos fil-
eletrocutado quando manipulava a máquina. O pânico e a co- mes de terror; porque se celebra ritualmente a passagem do
Ano Novo; porque se preservam os orifícios do corpo (que são
moção, com que as pessoas enfrentaram, nesses casos, a morte,
uma espécie de "abertura") em alguns procedimentos rituais que
num contexto em que ela faz parte da rotina diária, tem a ver
tratam de "fechar o corpo". Todos esses fenômenos são, de certa
com o fato de que essas mortes, não são mortes de hospital -
forma, intersticiais.
ou seja, ocorridas de acordo com um conjunto de normas que
Analogamente, tememos alguns elementos que se nos apre-
admite a morte como rotina e que dispõe de um sistema de ex-
sentam como ambíguos, como o sapo (que simultaneamente é
pectativas capaz de desconhecer, atenuar ou neutralizar o seu
vivo e frio, e anda ao mesmo tempo no chão e no ar), ou o
impacto - mas mortes ocorridas no hospital, isto é, fora das morcego (simultaneamente mamífero e voador e "vidente", ac
possibilidades de controle do sistema institucionalizado. mesmo tempo que "cego"), ou a coruja (que enxerga no escuro).
Os nossos veículos de informação exaltam-se na cobertura Podemos entender porque é que algumas figuras que nos pare-
de acidentes (desastres, quedas de pontes e viadutos, terremo- cem perigosas são representadas por meio do recurso a domí-
tos, etc.) para nos conscientizar da morte catastrófica de algu- nios díspares e incompatíveis: o lobisomem, o demônio (pés de
mas dezenas de pessoas, enquanto pronunciam-se mais mode- cabra, chifres de bode, tronco humano, rabo, feições caninas,
radamente acerca dos milhares ou milhões de pessoas que mor- asas de morcego, etc.), a sereia (como a conhecemos atualmen-
rem periodicamente em conseqüência de guerra ou de fome. O te, ao mesmo tempo mulher e peixe), o peixe-boi e o boto
fato é que, de um ponto de vista simbólico, os primeiros nos (concomitantemente mamíferos e peixes). Esclarecemo-nos de
aparecem como mais inquietantes e ameaçadores, porque se pro- porque as prisões, os elevadores, os banheiros, os velhos, as
duzem fora do nosso universo de controle, além das fronteiras crianças, os mendigos e os estrangeiros, por estarem simultanea-
da estrutura social, colocando em risco toda a ordem estabele- mente em contacto com a sociedade, mas, em certos planos, iso-
cida e toda a sistematização da nossa apreensão do mundo. Es- lados dela, requerem de nós uma atitude especial.
tes eventos "catastróficos" denunciam a precariedade da condi- Recordo-me de um acontecimento pitoresco ocorrido na
ção humana, na sua insegurança estruturadora, ao passo que os cidade de Ouro Preto, quando, com uma certa provocação, per-
outros são um modo particular de operação da estrutura social guntei ao rapaz que trabalhava como cicerone de uma das igre-
e, consensualmente ou não, produtos de uma vontade humana, jas barrocas do local, para quê servia a segunda das portas da
cujas conseqüências são perfeitamente previsíveis. igreja (como se sabe, nas igrejas desse tipo há duas portas, co-

17
locadas uma imediatamente atrás da outra, sendo que a primei- cvitação das coisas incertas, obscuras, vacilantes, irregulares, ex-
ra estabelece comunicação com o mundo exterior e a segunda, cepcionais e aberrantes afirmam e reafirmam as definições ca- ~
sempre fechada, permite a passagem dos fiéis apenas pelos lados, tcgoriais a que tais coisas não se conformam. r.- '" ~
para atingir o interior do templo). Respondeu-me o rapaz que Ante a incapacidade do homem de ter uma experiência ~ (t' ~
esta porta tinha a função de impedir que o vento que penetra- com sentido isolado das codificações do grupo social, a ordem ~ t;.. :.
va a construção atingisse as costas das pessoas que estavam den- cômica institucional ergue um escudo, para defendê-lo do su- Lo é
tro dela, ou apagasse as velas. J;; provável que a porta desempe- remo pânico da solidão e da desordem, I ..
egitiman d o as est ru- v- C..••.
P l!P

nhasse a função técnica a ela atribuída pelo guia turístico, mas, turas institucionais. Ao mesmo tempo, porém, a sociedade ne-t-
". c:-("
l.""
além disso, parece que desempenhava também a função ritual cessita dos fenômenos que rejeita, porque, por oposição, expri-v- ~ ~ e-
(simbólica) de separar, ao nível da edificação, uma' parte do es- me-se positivamente através deles, numa expressão em que seus {...
paço sagrado na qual se realizam atos que não são sagrados conteúdos adquirem sentido através do que repelem, e através O" z
(manipulação de dinheiro, etc.). Nesse espaço intermediário e da qual ela faz-se significar a si própria. ~ ~ ~
ambíguo situava-se, além disso, a pia batismal (onde se faz a - (), C
.••t ~
transição do neófito) e o pote de água com a qual os fiéis se jSo '" o
benziam ao penetrar ou ao deixar o templo. Este acontecimen- A era do Homem não é o primeiro capítulo da história do C <:
~
to ilustra o fato de que as categorias do pensamento, seus limi-
tes e suas relações não figuram necessariamente explícitos na
mundo e provavelmente não será o derradeiro. Seu aparecimento
é resultante de processos biológicos que não são eventuais aci-
(\
" ",.
consciência dos indivíduos, podendo ser inconscientes. Todavia, dentes aleatórios: a Natureza é regida por uma ordem. Parte do
são possíveis de serem apreendidos pela consciência do cien- Homem, o cérebro humano é parte da Natureza e está submetido
tista social. a suas leis. A Cultura é produto dessas leis: um modo - dentre
outros - de operação do aparelho cerebral. É parte da Nature-
za e uma de suas formas de manifestação.
o
3'1
-> As sociedades dispõem, contudo, de meios simbólicos de li-
A Cultura instaura o que chamamos Natureza do Homem
(;\
dar com estas forças numinosas, canalizando-as, atenuando-as
o e tem a ver com as condições orgânicas e sociais que dialetica-
C' \,. ou evitando-as. Nos ritos mágicos, por exemplo, o homem ima-
o mente relacionadas lhe estão na base. Não há comportamento
c gina que o controle que tem sobre as idéias permite-lhe exercer
....•
V
-controle sobre as coisas. Van Gennep (32) demonstrou que os
c. ~c- ~ ritos de passagem atuam como instrumentos de exercer controle
bumano fora da Cultura, ou resultante de qualquer abstração
que se faça desta. Os comportamentos antropóides não são com-
portamento humano, e aqueles que se formam em situação de
C. ~ simbólico sobre os perigos inerentes às fases de transição entre
Ç" c- ~
- -
c ~ oC" posições ou estados constituídos pela estrutura social. Roberto
isolamento (meninos selvagens) não são ilustrações de uma Na-
tureza Humana primordial, liberada das roupagens acessórias
o Da Matta (14) mostrou como o complexo de crenças Panema
'",. v "" opera a conversão de um sistema regido pela probabilidade e im- da Cultura, mas casos que antes deveriam ser vistos como mons-
possibilidade de previsão - que faz parte do universo das nor- lruosidades naturais ou culturais (54, p. 37).
mas sociais, mas não é completamente controlado por ele - em Vimos que a Cultura se constitui como um sistema de re-
um sistema regido pela determinação. I resentações, uma atividade que consiste em estabelecer as ru-
.J Estes meios de controlar as coisas anômalas, incertas, ambí- turas, os contrastes e as distinções indispensáveis à constituição
guas, estranhas e intersticiais (que tendem a romper as cate- do sentido do mundo, das coisas e das relações sociais.' Con-
gorias estabelecidas), representam uma reação contra algo amea- vém-nos agora examinar - tomando por critério selecionador
IIS necessidades da análise a que procederemos nas seções poso
çador. E, quanto maior a reação, maior a evidência de que as
c isas contraditadas são valorizadas socialmente. As regras de I 'ri res desse trabalho - alguns contrastes estruturalmente re-

lH 19
queridos para a construção do sentido deste (neste) sistema de Ao nível do indígena, a categoria de "Natureza" é um fato
significação que é a vida social.
cultural; o "natural" confunde-se com o culturalmente definido
como natural. Variável culturalmente, a categoria de "Nature-
za" é particular a cada sociedade e tem muito a ver - ao mes-
A Cultura e a Natureza mo tempo como causa e como conseqüência - com as rela-
ções que cada sociedade mantém com a Natureza real. Como
~ ~~itura só apresenta o seu próprio sentido na mente dos diz Mircea Eliade (26, p. 129), falando do "homem religioso",
mdlvI~uOS (nos termos da lógica que temos procurado seguir) "a natureza não é jamais natural".
a partir do momento em que delimita os seus contornos exter- Num ou noutro dos planos de sua existência, a oposição
n?s~ o~ondo-se a uma "não-Cultura". Se a Cultura é o atributo entre Natureza e Cultura nunca é real, pois, se, para o cientis-
distintivn ~a Humani?a.de, como crê a maioria dos antropólogos ta, por um lado, a Cultura é uma manifestação especial da Na-
contemporaneos, a _dlstI~ção ~ntre Homem e não-Homem figu- tureza e uma forma particular, entre outras, do relacionamento
ra como preocupaçao primordial no seio de todos os sistemas de social, na mente do indígena, por outro lado, a "Natureza" é
pensamento.
uma criação artificial da Cultura para afirmar a sua existência
A condição lógica de identificação da Cultura enquanto e originalidade. Num caso, a oposição representa um instru-
Cultura é a de opor-se à Natureza, assim como a condição logi- mento metodológico criado pela mente do cientista social para
camente necessária a uma cultura particular de reconhecer-se melhor divisar seu ponto de partida e seu prisma de observação:
como cult~r~ ~,sp,ecífica em sua individualidade é a de opor-se, não é para ele nem um dado primeiro nem um aspecto obje-
como um nos, as outras culturas, consideradas um "outros" ou tivo da ordenação do mundo; no outro caso, a oposição é uma
"eles". Freqüentemente afasta para o lado da Natureza as outras obra defensiva, um artifício significacional, destinado a fazer
ulturas, realizando, ~ssim, num gesto único, duas operações: com que a Cultura se identifique e se reconheça a si própria .
.ançadas para o domínio da Natureza as outras culturas, reco-
nhece-se como a Cultura - absoluta, única e universal.
~ont~do, essa dualidade conceptual vigora em dois níveis Desde que construída socialmente, a idéia de Natureza é
de aphcaçao que devem ser mantidos cuidadosamente distintos' variável culturalmente. Há culturas que não a expressam coos-
a) operando na mente ,do observado, do indígena, e b) concebida ciente e explicitamente: algumas crêem numa antinatureza e
pela men~e d.o antropologo, do cientista. Na mente do observa- num comportamento antinatura1; certas culturas acreditam em
dor, ~o cientísta social, a dualidade tem o caráter de uma expli- uma realidade sobrenatural, enquanto outras não fazem distin-
~I:açao conceptual e de uma generalização às quais não atribui ção entre natural e sobrenatural; nossa própria concepção de
JUIZOde valor e que pretende integrar mais do que dicotomizar uma ordem e de uma lei "naturais" não existe em alguns povos.
ou .~u~, mesmo quando dicotomiza, reconhece ser este um gesto Para alguns, o universo é uma ordem moral, ou social, subme-
artificia] cujo propósito é antes metodológico que substantivo. tida não ao império da natureza, mas à ordem dos costumes ou
. ~ara o .antropólogo, é natural tudo o que não depende da dos ritos .
tradição SOCIal, tudo o que não é comportamento aprendido Mas não são apenas as categorias de Natureza e Cultura
tudo o que transcende o domínio das normas dos hábitos do: que variam socialmente: a relação entre elas também varia se-
costumes tud nfi ,. ' , gundo as culturas. Enquanto o nosso pensamento corresponde
. ' o, e rm, que e uníversaí e que, portanto, não é
p:cuhar a nenhum grupo social humano particular. Por oposí- fi uma cultura que alguns consideram alienada da Natureza (por
çao: entende por Cultura tudo o que é particular a determinada .xemplo Leach, 45, p. 183), o dos Hidatsa corrobora uma cul-
SOCIedade e depende de suas regras. tura solidária com a natureza; enquanto valorizamos a ordem

21
social, alguns indígenas australianos preferem valorizar a ordem /l.1l1f'i .antcs
do seu sistema. Em quase todas as sociedades, as
natural (Kluckhon, 40, p. 453), sendo o equilíbrio dessas I 111 ( s sociais se pensam com o auxílio de relações retiradas
ordens importante para o bem-estar dos membros de ambas 011 ntribuídas à natureza. Lévi-Strauss (53, 55) demonstrou como
as sociedades, e, por isso mesmo, mantido por uma série de () I tcmísmo e o sistema de castas realizam separações entre
ritos e atos. Diferentes culturas enfatizam diferentemente os ter- I mentes sociais, inspirando-se em diferenças entre elementos
mos da oposição Natureza/Cultura: algumas culturas orientais, 11111 mais ou culturais, respectivamente, e como eles conotam a
por exemplo, tratam de promover integração entre os termos an- N paração de uma qualidade cultural no primeiro caso e natu-
titéticos, ou seja, transformar a "barra" em um "hífen" (56), rui no segundo; é ele ainda quem ensina que os sistemas culi-
tentativa que não nega a oposição, que, aliás, continua real exa- uário , destinados a promover a transformação de elementos
tamente porque é negada. nnturais em elementos culturais, são também inconscientes siste-
Como conseqüência, a própria concepção de Natureza Hu- matizadores do pensamento e da ação. Não fazemos coisa dife-
mana torna-se variável culturalmente. Quase todos nós temos I" nte quando classificamos as torcidas dos nossos clubes de fu-
dificuldade de admitir que comportamentos que sempre associa- I .bol a partir de uma inspiração análoga à do totemismo
mos à "natureza humana" não são absolutamente Natureza Hu- ("u rubus", "bacalhaus", "galos", "periquitos", "cachorros", "ga-
mana, mas comportamentos aprendidos, de uma variedade par- los", etc.) ou do sistema de castas (se inserirmos o "pó-de-arroz"
ticular. Crenças, para nós fundamentais, como os nossos con- - elemento da cultura, que designa um grupo de elite, consi-
ceitos de "masculinidade" e "feminilidade" são mostradas pela lerado como sendo "naturalmente" diferente).
Antropologia como susceptíveis de variar largamente de uma Esta relação da Cultura com a Natureza coloca-nos diante
cultura para outra, conforme demonstrou Margareth Mead (61); ele um dos mais efervescentes debates da Antropologia Social
enquanto para a cultura hispano-americana o homem encontra- .ontemporânea: o da origem da noção de ordem, Emerge a no-
se sumetido à natureza, os americanos crêem o inverso e os ão de ordem da natureza ou da sociedade? É provável que uma
chineses dos séculos mais recentes postulam uma integração; en- ordenação de origem social seja projetada sobre a natureza, o
quanto para umas culturas a natureza humana é boa (segundo que se dá, por exemplo, quando pensamos a gestação humana
critério que cada uma define a seu bel-prazer), para outras ela orno tendo duração de nove meses (categorização de um ritmo
é má, enquanto outras consideram o problema improcedente e ultural) e não nove períodos menstruais (ritmo natural) -
não cogitam absolutamente do mesmo. Para umas, a Natureza projeção antropocêntrica que produz um mundo antropomórfico.
Humana é boa e corruptível ou boa e incorruptível; para outras, Posição primeira, que parece ser a de Durkheim e Mauss (21),
é má e alterável, ou definitivamente má. Para Radcliffe-Brown (64, p. 164) não se trata exatamente de
Isto significa que, embora queiramos adiar a discussão da uma "projeção" da sociedade sobre a natureza, mas antes de
polêmica questão da repressão da Natureza pela Cultura - a uma "incorporação" da natureza pela sociedade, já que não são
qual, nos termos em que colocamos o problema parece basica- todos os fenômenos da natureza os incorporados pela socieda-
mente ideológica - estamos com Durkheim quando afirma que de: a ordenação das relações sociais seria então concebida a
"o homem que a educação deve realizar em nós não é o ho- partir de um modelo de ordem aue os homens teriam percebido
mem tal qual a natureza o faz, mas tal qual a sociedade quer que na natureza (leis, regularidades, propriedades, etc.); segunda
ele seja" (22, p. 117-8). A concepção que o homem tem de si posição, para a qual a ordem é constatada e depois incorpora-
mesmo, portanto, é função da estrutura social. da. Mas, enquanto Radcliffe-Brown não nos disser quais são os
Não obstante a oposição sempre presente, toda sociedade princípios que regem esta constatação e esta incorporação, dei-
volta-se para a Natureza, em busca de elementos escolhidos para xará a questão cair no domínio do acaso - o que significa co-
representar as frações e as r-Iacões sociais; procura nela os I á-la fora do da ciência. Uma terceira posição, a de Mallinows-

22 23
ki (57, p. 44-7), considera que os elementos naturais seriam in- simples definição: o Sagrado e o Profano são completamente
corporados e conhecidos pelo fato de serem úteis, ao que Lévi- diferentes e opositivos.
"~ Strauss (55) retruca que as espécies animais e vegetais não são O ser sagrado é o ser proibido que não pode ser violado, do
conhecidas pelos fatos de serem úteis: "são decretadas úteis ou qual não ousamos nos aproximar, porque ele não pode ser to-
interessantes, porque são primeiro conhecidas". cado. Está permanentemente protegido desse contato pelas in-
Lévi-Strauss adota uma posição que, sob certos aspectos, terdições que o isolam e protegem do profano. Tudo o que é
poderia conciliar Durkheim e Radcliffe-Brown. Para ele, a co- sagrado existe à parte: não pode ser colocado em pé de igual-
nexão existente entre a natureza, a morfologia social e o pensa- dade com o que é profano e muito menos estar com ele mis-
..-
p
mento não é direta e sofre uma série de mediações simbólicas; turado.
c,.
\ além disso, sem abandonar o primado da Cultura, que "conhe- Qualquer contato indevido tem por efeito a sua profanação
ce" antes de "usar" ou de se "interessar", e que atribui valor ou seja, o desaparecimento dos atributos que o constituem. Por
simbólico aos elementos utilizados ou rejeitados, Lévi-Strauss isso, as relações com ele devem observar prescrições rituais que
admite que as propriedades "objetivas'" e intrínsecas do mundo contêm as fórmulas de separação e de demarcação que regem
vegetal ou animal propõem ao homem um método de pensa- as condições e as modalidades desse relacionamento. Por detrás
mento, motivando a incorporação. O fato de que a água seja destes ritos, figuram as crenças sobre os perigos de se cruzar as
utilizada largamente para significar "purificação", ou de que a f.ronteiras interditadas e que transformam o sagrado em objeto
circuncisão tenha significado freqüentemente "iniciação" e que de respeito e temor:· os Tikopianos acreditam que aquele que
a fumaça sirva para referir-nos ao "etéreo", ao "volátil" e ao inadvertidamente tocar a cabeça do chefe correrá grande peri-
"imaterial", não deriva de um ditame, de uma imposição mate- go; acreditou-se na morte do ímpio que tocasse a Arca do Ta-
rial desses elementos, nem somente da difusão cultural: resulta bernáculo; para os ingleses, na época dos Tudor, as vestes do
de eles nos proporem algo; resulta não de serem primariamente rei tinham o poder de curar escrófula; cremos na necessidade de
bons para lavar, começar ou desprender: mas de serem "bons respeitar e comportar-nos de maneira especial em relação às
para pensar". A noção de ordem, tendo seu berço localizado, imagens dos santos e à água-benta.
explica-se, entretanto, dialeticamente: conjuga a ordem da Na- A idéia do Sagrado não é fácil de se expressar, na integra-
tureza e a ordem da Cultura (55, p. 36-7). íidade de seu sentido, nos idiomas modernos. Não é simples si-
nônimo de puro, santo ou venerável, em português. Em razão
dessa dificuldade semântica, Radcliffe-Brown (64, p. 169),
o Sagrado e o Profano
propõe, como alternativa, as expressões relação ritual e atitude
A dualidade Natureza-Cultura desenha os contornos de um ritual, querendo, por meio delas fazer referência a um modo de
sistema social e o institui como bloco significativo: funda o sen- proceder que inclui o respeito e o temor que tradicionalmente
tido. Edificado o bloco, seus compartimentos internos devem são requeridos como atitudes no relacionamento com determi-
significar: outros contrastes, outras oposições emergirão na nados objetos. Na atitude do católico com relação à Hóstia Sa-
cena. Dentre estas, a que existe entre o Sagrado e o Profano, grada, ou ao altar das igrejas, podemos ver exemplos claros des-
um dos mais importantes articuladores do sentido na estrutura sa relação ritual: isto é, a suposição de um conjunto de atitu-
social. Vejamos como. des obrigatórias e especiais que se devem observar diante desses
Na mente dos indivíduos, o Sagrado e o Profano são ma- objetos.
neiras de serem as coisas. Duas modalidades de ser no mundo: A terminologia de Radcliffe-Brown tem, ademais, o mé-
tudo o que é objeto de interdição é Sagrado, ao passo que o rito de não permitir que a sacralidade seja centrada no objeto
Profano é aquilo a que estas interdições se aplicam. Eis a mais sagrado, mas na atitude, na relação. A sacralidade é um atributo

24 25
que depende da natureza de situações particulares, indicando, definida e está em todas as partes; de algo que não possui signi-
não valores absolutos, mas, contrariamente, situações respecti- ficado intrínseco, mas é condição de toda significação.
vas. Um homem, que é ordinariamente profano, é sagrado quan-
do se torna nosso hóspede; um ministro tem um grau ou tipo
de sacralidade aos olhos do povo e outro diante do rei; as fa- Durkheim demonstrou a origem e o caráter sociais do mana
mílias Brâmanes são mais sagradas que umas e menos que ou- e erigiu-o como categoria do pensamento coletivo: afinal, nos
tras. Além disso, as atitudes rituais podem variar de formas in- termos durkheimianos, de onde poderia provir a idéia de força?
definidas até formas altamente organizadas, de formas explíci- O mana é fonte do Sagrado. Tudo o que é sagrado, tudo o que
tas, defendidas e reconhecidas, a formas inconscientes, rejeita- é tabu, tem mana. Tudo o que se liga essencialmente à vida do
das ou latentes. A terminologia permite ainda conceber clara- grupo, tem mana e é sagr~do. Tudo o que diz respeito ao que g ~
é crucial na estrutura social deve ser separado e resguardado.
mente que as pedras, árvores, etc., que se consideram sagradas
são meros significantes, que representam e que mostram o Sa-
O mana impõe uma classificação das coisas e fundamenta juízos O~~
sobre elas (23). e: ~ ~
grado, não sendo, portanto, adoradas ou temidas enquanto sim-
Ao venerar as forças e as divindades, o homem cultua e '" ;,.
ples pedras ou árvores. A atitude ritual básica para com o Sa-
respeita sua sociedade simbolicamente representa~a. ~ função ~ ~
grado consiste em não permitir que este entre em contato com da atitude ritual é a de expressar e manter a sohdanedade do O S.
o Profano e, mais importante, em evitar que coisas sagradas de grupo, de onde provém toda bênção e toda ameaça. O Sa~rado é O
espécies diferentes sejam postas em contato. a fonte de nossa experiência do valor permanente da SOCiedade;
Estas duas interdições, configuram o que na literatura etno- ao cultuar os deuses e as forças, o homem está admitindo e con-
lógica classificou-se de tabu. O tabu isola tudo o que é sagrado, firmando em si e para os outros a experiência dos poderes pro-
inquietante, proibido, ou impuro; estabelece reserva, proibições, tetores que formam a sociedade: os deuses, como a Cultura, im-
restrições; opõe-se ao ordinário, ao comum, ao acessível a to- põem determinadas regras de comportamento e estão prontos
dos. As pessoas e objetos tabu são sede de. extraordinária ener- para punir ou perdoar os transgressores.
gia e de uma força incomum - espécie de carga elétrica que se Durkheim reconhece duas formas diferentes de manifesta-
abandona incontinenti sobre o transgressor, ou sobre aquele que cão do Sagrado: o Sagrado Puro e o Sagrado Impuro. Ambas
não se muniu dos cuidados rituais de conduta diante do objeto relacionam-se com o Profano da mesma maneira: é-lhes vetado
sagrado. A característica principal do tabu é a de que não exis- qualquer contato. Todavia, inspiram reações diferentes: em u~m
tem mediações entre a transgressão e a punição, derivando H caso, o respeito; no outro, o horror. O Puro e o Impuro s~o
segunda automaticamente da primeira. variedades de um mesmo gênero e não estabelecem solução de
continuidade no terreno da sacralidade.
Esta força é o elemento-base do Sagrado; é a raiz comum b
Contudo, não podem ser postos em contato: existe entre o
das crenças de sacralidade; é o mana. O mana não é apenas
Sagrado Puro e o Sagrado Impuro uma repelência igual à que
uma força: é ação, é qualidade, é estado e eficácia. Não é um
separa o Sagrado do· Profano. O contraste entre eles é o mais
poder pessoal ou localizado. É um poder ou potencialidade ge-
extremo possível: o Impuro nega e contradiz a Pureza.
neralizada de produzir efeitos. Não é esta ou aquela força, mas
Para Durkheim, essa dualidade do Sagrado corresponde a
a força. Corresponde ao Manitu dos Algonquinos, ao Orcnda
uma outra dualidade - a da vida social: "há entre o sagrado
dos Iroqueses, ao Walkan de alguns indígenas da América do fasto e o sagrado nefasto o mesmo contraste que entre os estados
Norte, ao Nyoro dos Muhanos: em todos, o reconhecimento de de euforia e de disforia coletiva" (23, p. 422). O primeiro ins-
uma "eficácia" que não se situa em parte alguma de maneira pira-se na estrutura social e reproduz os seus 'poderes: os do de-

26 27
finido, do estável, do seguro; o segundo representa os poderes o Distante e o Próximo
do infra-estrutural, do pré-estrutural ou do extra-estrutural: os
do indefinido, do incerto, do instável. As coisas puras corres- Vimos serem as coisas sagradas representantes de uma ordem
pondem ao querido e desejado; as impuras, ao repelido e rejei- social abstrata, modelos de ser e de não-ser para a vida cole-
tado: daí pô-Ias em contato ser tabu. tiva profana. Tendo uma existência separada, a Ordem do Sa-
grado está distante do homem comum, ao mesmo tempo que
muito próxima, como elemento balizador, de todos' os seus com-
Além das idéias de separação, pureza e impureza, encontra- portamentos, pensamentos e sentimentos. O Sagrado exprime
mos respeito, repulsa e temor. Respeito, repulsa e temor que o que é importante, positiva ou negativamente, para a estrutura
não se dirigem, entretanto, ao mundo dos homens - mas ao social, pois a manutenção da ordem depende do adequado grau
mundo das normas. O homem está sempre longe do Sagrado. ou tipo de respeito ou temor a determinadas idéias, coisas, pes-
Quer do Sagrado Puro - fonte de bênçãos - que ele busca, soas ou símbolos.
quer do Sagrado Impuro, do qual está constantemente fugindo. Esse abismo que separa o Sagrado do Profano, ou tipos
O Sagrado não diz respeito à sociedade real, tal qual feita pelos diferentes de coisas sagradas, não é, entretanto, a única forma
nossos comportamentos concretos, cotidianos e ordinários. E de manifestação da distância social. Não apenas a sociedade
nem poderia ser assim, pois o Sagrado é exatamente o contrário real está. afastada da sociedade ideal, como também qualquer
do cotidiano e do ordinário. A heteróclita sociedade real, forma de comunicação implica necessariamente um distancia-
ordinária e cotidiana, é suficientemente confusa, indefinida e mento prévio que o ato comunicativo pretende superar. A Socie-
turbulenta para não comportar as necessidades de separação, dade inteira é um gigantesco ato comunicacional; sem comunica-
definição, demarcação e ordenamento que o Sagrado requer ção não há sociedade: mesmo quando entre duas posições se
para existir. imagina uma distância tão infinitamente grande que se procura
vetar qualquer possibilidade de comunicação, a própria proibi-
Não podendo empobrecer-se pelo contato com as relações
ção é já, em outro nível, uma maneira de expressar a natureza
comezinhas e banais do cotidiano, nem podendo depositar-se nos
da relação entre ambas e entre estas e o resto do sistema, tal
indivíduos comuns - que são, ambos, profanos por excelência
como acontece quando se proíbe aos reis que desposem plebeus,
-, o Sagrado só pode residir em uma ordem social ideal e
ou, como em algumas sociedades, se evita entre genro e sogra
abstrata, em uma representação ideal da vida social por que se
qualquer contato.
deva aspirar ou de que se deva fugir. A Ordem Sagrada é a
Há, portanto, um distanciamento profano, que a própria
ordem social ideal e pura; ou então, sua negação, o Impuro, a
idéia de comunicação implica, e seu estudo é tão importante
outra forma de manifestação do Sagrado.
quanto o estudo do processo social de comunicação (aliás, um
Não sendo, embora, um dado empírico observável, esta não faria sentido sem o outro), pois é dos espaços existentes
ordem ideal não está fora da sociedade real, pois o Sagrado entre eles que os diferentes elementos sociais retiram seus valo-
Puro e o Sagrado Impuro estarão para a vida social cotidiana res respectivos. A própria distância física, como Edward Hall
como parâmetros extremos, entre os quais esta e o comporta- (33, 34) demonstrou, é função de uma categorização social, de
mento concreto de seus membros estarão oscilando e, assim, um distanciamento interno ou mental.
adquirindo sentido. Os homens, e as coisas com que se relacio- Cada modalidade de relação social envolve distância so-
nam livremente, estão entre a perfeição e a imperfeição totais; cial; e toda relação social é, de certa forma, uma manipulação
olhando em volta saberão reconhecer-se ou reconhecê-Ias: bro- de posições que se situam em pontos diferentes do espaço social.
tará o sentido. A variedade e a diversidade da vida social não pode ser estu-

28 29
dada sem o conceito de distância social. Nesse sentido, é uma o mimmo grau de parecença com eles e mesmo de dignidade
pena que os cientistas não se tivessem debruçado sobre a proble- comparável à sua.
mática do distanciamento social horizontal com a mesma aten- Ponto sensível da vida social, porque dá a cada coisa o
ção que dedicaram ao estudo do espaço vertical (posições su- seu' lugar, a distância social é manipulada pelos indivíduos.
periores e inferiores, dominantes e dominadas, ascensão social, Estes lançam mão de mecanismos formais e informais que lhes
etc.). são oferecidos pela própria organização social, de maneira que
Sem privilegiar os aspectos verticais do espaço social, po- possam evitar conflitos e ambigüidades no desempenho de
demos dizer de um modo geral que as relações sociais envolvem seus papéis. A amizade, por exemplo, é uma obrigação de dei-
uma dialética de aproximação e afastamento e que, muitas vezes, xar a intimidade ser freqüentada por outro sem entrar com ele
atitudes opostas coexistem numa mesma relação: os procedi- em conflito. As relações jocosas institucionalizadas prescrevem
- mentos que me aproximam das pessoas com que me relaciono licitude e liberdade privilegiada em vez de respeito, implicando
devem, ao mesmo tempo em que me tornam próximo, indicar a na obrigação, por parte do paciente, de não sentir-se ofendido
que grau de distância eu permanecerei. Isto acontece, por exem- como desrespeito, que, nesse caso, desempenha a mesma fun-
plo, quando ao nos dirigirmos a pessoas que nos são estranhas ção do respeito nas relações sociais: a manutenção da ordem
damos preferência a assuntos neutros e públicos, como o tempo, das coisas.
(I vento; ou então, quando numa situação física de maior proxi- Atribuir a alguém posiçao distinta da devida ou conside-
. midade que a permitida, como em um elevador, tratamos de rada desejável (chamar alguém de "plebeu", "burro", "bastar-
- neutralizá-Ia fazendo recurso ao desvio do olhar, ao silêncio ou do", "mendigo", "vagabundo", "lixeiro") é sempre ofensivo; da
a assuntos distantes e neutros. mesma forma, um elogio é sempre aproximar alguém de
As distâncias sociais não têm caráter absoluto. Às vezes posição desejável (fulano é um "santo", um "rei", um "deus").
\ são superáveis, como a distância que existe entre um estudante Isto significa que o sistema de distanciamento é defendido por
e um oficial do exército; outras, insuperáveis, como a que existe uma série de racionalizações ideológicas ("pureza de sangue",
em nossa sociedade entre homem e mulher. Por vezes são re- "destino", "ordem das coisas", "vontade de Deus", "igualdade
versíveis, quando cruzadas, como a promoção e o rebaixamento de oportunidades") e por uma simbologia que lhe atribuem o
em estruturas hierárquicas; mas há as irreversíveis, como a dis- mana inerente à sacralidade, de forma a fazer com que seus
tância que existe entre a posição de solteiro e a de casado em extremos tendam a coincidir com os pólos do Sagrado; ou mes-
nossa sociedade. Mesmo quando a passagem de uma posição a mo, em nome desses símbolos e racionalizações, defendido pela
outra é impossível, uma se define sempre relativamente a outras força física.
~ é sempre situacional: posso, no exterior, considerar próximos, A vida cotidiana se afigura, então, para o indivíduo, como
e tratar como pertencendo a um "nós", conterrâneos meus que um continuum de tipificações para cima, para baixo e para os
aqui consideraria distantes, fora do meu relacionamento íntimo, lados, que variam desde as relações contínuas, freqüentes, in-
e que tenderia a considerar notadamente como um "eles". tensas e face a face, que configuram nele uma consciência de
O "nós" e o "outros" fazem parte desse movimento de "nós' com indivíduos que se reconhecem como pertencendo ao
aproximação e afastamento com que os grupos sociais concretos mesmo grupo e como tendo as mesmas coisas em comum, até
se reconhecem a si próprios e aos outros, muitas vezes fazendo relações vagas, intermitentes, fracas e indiretas com indivíduos
confundir, como os Kiowa, os Déné e os zum, seus próprios e coisas que se lhe apresentam como anônimas abstrações intei-
nomes com o significado "homem", pelo qual se identificam e ramente remotas. A estrutura social envolve o conjunto dessas
se aproximam, e por meio do qual recusam a qualquer "outro" tipificações polares.

30 31
o Desvio e a Nonna dade psíquica, existente nas e pelas consciências individuais de
seus membros.
A sociedade é um conjunto de relações que simultaneamente Cada um à sua maneira, ambos acreditam ser a educação
ultrapassam as consciências individuais e são-lhes imanentes, um processo repressor através do qual se incutirá nos indivíduos
Possui todas as características de uma autoridade que tem as- um certo número de princípios que aberta ou disfarçadamente
cendência sobre os indivíduos e que eles devem respeitar, pois são comuns a todos os membros de uma sociedade e que muito
dela provém todo o bem; da mesma forma, todo o mal está poucos indivíduos têm a coragem de negar ou desafiar explici-
associado à sua ausência. tamente. A despeito das possíveis divergências, tais princípios
Para Durkheim, o indivíduo é um sistema de instintos que figuram na base do que se chamou "civilização" e são garantias
tende à desagregação quando sua energia não está subordinada de uma certa homogeneidade que faz a vida social possível.
a uma ordem normativa específica, sendo a socialização o pro- A socialização é, então, o processo por meio do qual uma
cesso que realiza em nós o ideal pedagógico de nossa sociedade criança torna-se membro da sociedade: uma pessoa pode ser
- ideal que traça o retrato do homem que devemos ser e no considerada socializada quando abre mão de sua autonomia fi-
qual ela reflete a sua organização. Para Freud, a socialização siológica em favor do controle social e quando comporta-se a
representa o triunfo do "princípio de realidade" sobre o "prin- maior parte do tempo como as outras pessoas, seguindo rotinas
cípio do prazer", fazendo com que o homem "aprenda a culturalmente estabelecidas.
renunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo, subs-
O conteúdo e a forma desse processo variam culturalmen-
tituindo-o pelo prazer adiado, restringido e garantido" (59,
p. 345). te. Nas sociedades ocidentais as crianças tendem a ser vistas
como "puras" e "meigas", enquanto outras sociedades as enca-
Entre Durkheim e Freud existem alguns pontos de apro-
ximação e de afastamento, no que diz respeito à relação do ram como "perversas" e "pecaminosas". :É claro que assunções
indivíduo com a autoridade social. Enquanto Durkheim está desse tipo afetam os diferentes programas culturais de sociali-
preocupado em saber como o obrigatório para o indivíduo se zação, embora quase todas as sociedades tenham, como método
transforma em desejado por ele e tem como sua preocupação de realização de seus programas educacionais, os castigos e as
principal a questão da consciência coletiva, Freud dirige sua recompensas, quer sob formas concretas, quer sob formas abs-
atenção na direção do entendimento de como o desejado/dese- tratas. No entanto, as perguntas "quando", "como", "por que",
jável se torna proibido pela ação da força repressora do prin- "para que" e "por quem" castigar ou recompensar só podem
cípio da realidade, centrando sua análise na problemática do ser respondidas levando-se em consideração as particularidades
inconsciente individual. No caso de Durkheim, o estudo da ação de cada cultura.
da sociedade sobre o indivíduo focaliza em primeiro plano a Em suma, o treinamento educativo consiste em introjetar
sociedade ou aquilo que, no indivíduo, foi socializado. No caso
nos indivíduos determinados valores i! determinadas regras que
de Freud, o indivíduo representa o interesse primordial. Para
orientarão os seus comportamentos em suas relações com o
ambos, a oposição entre indivíduo e sociedade importa para a
mundo e com a sociedade. Os valores, de caráter genérico, di-
delimitação das noções de "indivíduo" e de "sociedade". Freud,
entretanto, insiste mais decididamente sobre a oposição, já que fundem-se por todo o universo social, conotando todos os seus
para Durkheim o indivíduo é impensável e incapaz de pensar- elementos constitutivos. Todavia, não são suficientes ao cientis-
se a si próprio sem o auxílio da sociedade. Esta, por sua vez ta para a explicação desse emaranhado de comportamentos que
é indefinível sem se levar em consideração os átomos que a são suas operacionalizações mediatas. As regras, de natureza
formam, pois o fato social é, em última instância, uma reali- mais específica, ligam-se mais diretamente aos comportamentos

32 33
dos indivíduos e dos grupos e, por isso, constituem-se em guias a organização social começaria a perder terreno. Por outro lado,
relativamente mais ricos para a ação. as próprias idéias de conformismo e de regra deixariam de ter
sentido, pois só podem ser identificadas por oposição às noções
de ausência de regra e inconformismo.
Quer sejam simétricas ou assimétricas, formalmente pro- A discrepância que há entre o comportamento real e a
mulgadas em lei e feitas observar pela força policial do Estado, pauta ideal de procedimento não é, portanto, função da igno-
quer sejam acordos informais sancionados pela tradição, quer rância, negligência ou desinteresse dos indivíduos, mas existe
sejam cumpridas ou não, as regras, associadas aos valores so.. como imperativos estruturais da própria constituição do sistema
ciais, transformam a ação e a inação em expressão e consti- social. Tanto isto é verdade que as sociedades admitem uma
tuem todos os comportamentos em mensagens significantes: fun- espécie de "licenciosidade obrigatória", que se apresenta sob
cionam como um código. a forma de situações ou momentos controlados e regulados so-
Esse código é um orientador da conduta dos indivíduos, cialmente pela tradição, em que se permitem determinadas trans-
não basicamente porque estes o vejam como agradável, fácil gressões. Contrariamente ao que acontece em relação ao tabu,
ou eficaz, mas porque eles o consideram adequado e justo. Em em que os indivíduos estão proibidos de fazer o que fazem
virtude das tipificações de procedimento que gera, o impacto habitualmente; nesses casos os indivíduos podem fazer o que
desse código de ação sobre os indivíduos é o de produzir obri- habitualmente lhes está proibido.
gações e expectativas, cujas transgressões merecerão ser sancio- Esses casos de "licenciosidade obrigatória" têm a função
nadas negativamente pelo grupo. de quebrar a rotina do cotidiano para assinalar um aconteci-
Mas também não é apenas porque temem as penalidades mento digno de nota: ilustra bem isso a obscenidade permitida
que os homens observam as regras de conduta. Obedecem-nas em nossos ritos de casamento, que coincide com o momento
porque elas interessam às suas sensibilidades, já que, não exis- em que os noivos deixam o grupo e partem para a lua-de-mel,
tindo o indivíduo sem a sociedade, este não pode negá-Ia sem, como elemento marcador da passagem de um status em que a
no mesmo ato, estar negando a si mesmo. Nesse sentido, a so- sexualidade está proibida para outro em que ela está permitida.
ciedade é um bem e suas regras apresentam-se como desejá- Outras vezes, a licença permite, em situações especiais, deter-
veis. É a transformação do obrigatório em desejável, cuja efe- minadas práticas habitualmente proibidas, exatamente para sigo
tivação é a função de muitos ritos e mitos realizar. nificar que tais práticas são permitidas apenas porque a situa-
Embora a maioria das pessoas costume respeitar a maior ção é especial, sendo, portanto, interditadas em situações nor-
parte das regras, a investigação empírica tem demonstrado em mais: posso fazer isto e aquilo, porque é carnaval. Há ainda
relação a elas uma variedade de atitudes diferentes. Regras for- certos ritos de inversão das normas de disposição hierárquica
malmente estabelecidas podem ser diferentemente encaradas em dos indivíduos e grupos que cumprem precisamente essas mes-
suas implementações práticas, e algumas regras existem apenas mas funções.
para serem transgredidas.
Raciocinando com rigor, aliás, toda regra, tanto quanto
para ser obedecida, existe para ser quebrada, seja esta quebra Os exemplos acima nada mais fazem que institucionalizar
um gesto concreto, seja ela uma possibilidade puramente teó- afirmar, com toda sua força, determinadas funções significa-
rica e hipotética. O fato é que, se as regras' fossem sempre ciouui da transgressão, como elemento pertencente à estru-
e totalmente observadas, o ideal de integração social que elas íurn social, ao mesmo tempo em que servem para apontar o
portam deixaria de existir nas mentes dos indivíduos que as p qucno papel reservado ao indivíduo transgressor no conjunto
observam: deixaria de ser buscado por eles, o que significa que dllH relações que compõem este terreno.

34 35
AS transgressões não. são. vistas cama idênticas ou igual- que o indivíduo que possui um traço desviada é também pos-
mente graves. Quem avança um sinal de trânsito, esquece-se suidor de outros traças desviantes, estigma que adquire um
esporadicamente de cumprimentar ou agradecer, au a homem valor simbólico generalizado e tende a atingir, por difusão,
solteiro que pratica relações sexuais, não. é vista cama muita inclusive as pessoas que se situam próximas ao. transgressor: ao
dessemelhante de nós mesmas, e estes pequenas deslizes ser- indivíduo. que viole um tabu, a grupo. poderá matar, expulsar
vem para ilustrar a imperfeição. normal da homem profano. ou prender, num gesto. de "salubridade mística" que tem a fun-
Par outro lado, tendemos a ver cama verdadeiras marginais ção de isolar a grupo. e protegê-lo do perigo terrível a que foi
os praticantes de homicídios, assaltas e crimes sexuais, chegan- submetida. Para o cientista, entretanto, é necessária conhecer
do muitas vezes à condição de negar-Ihes qualquer faculdade qual norma específica foi desprezada e qual componente espe-
mental ou a própria humanidade: ferem-nas em alga socialmente cial da status individual está afetado, para, então, poder com-
muita valorizado. preender que valor simbólico específica possuí esta conduta
O desvia não. está, portanto, presente na conduta mesma. transgressora, assim corno o processo de generalização. de estig-
b função de interação entre as pessoas que praticam determi- ma na direção. da totalidade do status individual e do grupo a
nados cometimentos e pessoas que a eles reagem: aos desvias que a indivíduo está associada.
secretas, ninguém reage, nem deles se dá canta cama trans-
gressão. ou violação. E função da interação entre a agente, o
paciente e a sistema social total, já que todos correm a ameaça Que a indivíduo. viole ou não. determinada regra é antes
IJ atribuída ao. ato. função. da vontade grupal que da deseja individual. A noção.
O indivíduo. avalia suas próprias condutas, bem coma as de doença pode ilustrar bastante claramente esse fato: cada
de seus companheiros, em termas de aprovação. ou desapro- cultura escolhe, dentre muitas virtualidades, algumas que con-
vação (sanções positivas ou negativas) sociais. Isto. a que fre- figurarão. sua definição. de "homem normal" - as Kwakiutl
qüentemente se chama consciência é, em grande medida, a re- apreciam a exaltação da "eu" individual, a que as Zuni excluem
flexo nas indivíduos das sanções da sociedade, quaisquer que radicalmente; a agressão. é uma conduta que os Dobuanos pri-
sejam as formas par que se manifestem: sobrenaturais, de opi- vilegiam e que os Pueblos reprimem. Em decorrência, "cada
nião pública, organizadas, difusas, afetando as interesses par- cultura formará da doença uma imagem cujo perfil é delineado
ticulares das indivíduos, mediatas, imediatas (cama nas tabus), pela conjunto de virtualidades antropológicas que ela reprime
legais - ou até mesmo sob a forma de desculpa, que é um ou negligencia" (29, p. 72-3).
ma do muitas vezes socialmente aceitável de se reduzir. a culpa. Cada cultura tem as seus distúrbios mentais prediletos: os
O mais importante das sanções, porém, é que não devem rnalaios se tornam amuck; alguns índias da Canadá dão-se à
ser encaradas em relação às pessoas que praticam as atos san- agressão. canibalística; na sudeste asiática, alguns povos tor-
cionadas, mas como expressões significativas da euforia ou dis- nam-se possuídos de espírita de tigres; em Sumatra existe uma
foria social a eles associados, já que nem as atos nem as trans- "loucura de parca"; em algumas sociedades é mais comum os
gressões ligam-se primariamente a pessoas, mas a forças e con- homens tornaram-se doentes mentais, ao. passa que em outras
dições sociais responsáveis pela constituição. da sentida e pelo suo as mulheres que preferentemente são. consideradas fáceis de
reíorçamento e reiteração. dos sentimentos da grupo. úas mentes adoecer mentalmente; em algumas tribos da Sibéria existe uma
dos indivíduos. na "histeria ártica", conjunto de sintam as resultantes de uma
Tanta isto. é verdadeiro que a conduta dos indivíduos pede possessão por espíritos: medo à luz, gritas e gesticulações incon-
ser conformista em certas atividades e desviadas em outras. Ao. II nl lveis, sucedidas por um estado de prostração, de tentativas
nível das pessaas envolvidas nas relações sociais, acredita-se 11 Icvita ão, de escaladas de árvores e rochedos" (63, p. 138).

36 37
Muitos povos consideram normal que os indivíduos tenham boa sorte relativamente à deles e, ao darmos esmolas, conse-
visões, alucinações e transes. Entre os povos de Bali, o transe lhos, ajudas, estamos encontrando uma maneira de nos elevar,
é importante em várias cerimônias; considerado anormal no de nos sobrepor: por isso, podemos ter pena, piedade e com-
Ocidente cristão, o transe é tido como normal por numerosas paixão dos infelizes, dos pequeninos, dos inválidos, dos coita-
culturas, inclusive para o catolicismo da Idade Média, quando dinhos, dos que sofrem.
a experiência do êxtase era tida como sinal de santidade. Da O conformismo ou inconformismo, portanto, não depen-
mesma forma, algumas sociedades africanas apresentam índices dem dos temperamentos ou personalidades individuais, mas in-
de suicídio muito baixos, ao passo que estes índices são relati- tegram um conjunto de símbolos relacionados com a múltipla
vamente altos em algumas sociedades européias. A esquizofre- variedade de modos de participação no sistema social: "em toda
nia .
- , rara nas sociedades tradicionais, é uma característica das sociedade, pois, seria inevitável que uma percentagem de indi-
sociedades submetidas a bruscas transformações que desorien- víduos se encontrasse colocada fora do sistema, ou entre dois
tam seus membros '(42, p. 112). Boltanski (9, p. 58) mostrou ou vários sistemas irredutíveis. A estes, o grupo pede e até
~0lI}0 as idéias de corpo e doença são susceptíveis de variar impõe que figurem certas formas de compromissos irrealizá-
segundo as diferentes classes de uma mesma sociedade. veis no plano coletivo ... Em todas essas condutas, na aparên-
Portanto, existe uma patologia geral e abstrata, situada cia aberrantes, os "doentes" não fazem senão transcrever um
além das patologias mentais e orgânicas individuais - que mui- estado do grupo e tornar manifesta tal ou qual de suas con-
tas vezes se pretendem de caráter universal - que as domina. dutas ... A sua posição periférica em relação a um sistema local
Esta patologia dominante é de natureza cultural. As formas de não impede que, ao mesmo título que este, eles sejam partes
perturbação e desvio são função de cada sociedade e do tipo integrantes do sistema total. Mais exatamente, se não fossem
de equilíbrio em que se fundamentam. A expressão de Lévi- essas testemunhas dóceis, o sistema total correria o risco de se
Strauss (50, p. 156) sintetiza o pensamento: "o domínio do desintegrar em sistemas locais. Pode-se, pois, dizer que, para
patológico nunca se confunde com o domínio do individual: cada sociedade, a relação entre condutas normais 'e condutas
os diferent.es tipos de perturbações se estabelecem como cate- especiais é complementar" (50, p. 159). O aforismo de que
gorias, admitem uma classificação e as formas predominantes "a lei faz o crime", nesse terreno, expressa o verdadeiro.
não são as mesmas, segundo as sociedades ou segundo tal ou
qual momento da história de uma sociedade".
A doença e o desvio são outros sentidos possíveis em re- o Consciente e o Inconsciente
lação a sentidos primeiros definidos culturalmente como nor-
mais. Rejeitados por um sistema, não o são senão parcialmente, As regras que acabamos de estudar são-nos introjetadas pela
uma vez que, em outro plano, retomam a ele para aí desem- educação. Quando crianças, habituamo-nos a absorver as ca-
penhar uma função significativa: a de, embora a contragosto, racterísticas de nossa cultura de uma maneira tão inconscien-
expressa!" por meio. daquilo que ela não quer st:r, aquilo que te como aquela pela qual aprendemos o idioma que falamos.
a sociedade é. De fato, o comportamento social liga-se a uma pauta que está
A. psicologia moderna mostrou que a criança fugidia e re- para a consciência do agente de maneira tão sutil e disfarçada
belde tenta pateticamente dizer algo significante sobre suas re- como as regras da língua estão para o falante. Da mesma for-
lações com o meio; a perseguição que muitas vezes se faz aos ma, os contrastes e oposições que se responsabilizam pela cons-
homossexuais proc:ura garantir a contra-imagem de uma mas- tituição do sentido das coisas e do mundo estão muitas vezes
culinidade insegura; os mendigos que se rebaixam e exibem suas implícitos e dissimulados numa região de difícil acesso para a
misérias e suas enfermidades não nos deixam negar a nossa consciência dos indivíduos.

3 39
Portanto, os indivíduos seguem muitas vezes modelos cul- Kluckhohn, "cultura aberta" (visível e facilmente discernível) e
turais de conduta que não conhecem e que não podem des- "cultura coberta" (que oferece dificuldade mesmo ao observa-
crever. Freqüentemente desconhecem os contornos, os limites dor treinado), de Linton, "função manifesta" (deliberada e cons-
e as significações dos comportamentos que adotam e que estão ciente) e "função latente" (involuntária e inconsciente), de Mer-
sempre implícitos nesses comportamentos mesmos. Estes mo- ton, entre outras tentativas que não conseguiram captar o pro-
delos exteriores à consciência dos indivíduos estão, é claro, fora blema em todas as suas dimensões.
de suas preocupações explícitas: não pensam sobre eles e os têm O aparecimento da Psicanálise e da Lingüística estrutural,
como garantidos e estabelecidos, assumindo que são universais. bem como o desenvolvimento teórico da noção de inconsciente,
O fato inconsciente é, então, um fato não apreendido; não foram cruciais para os cientistas sociais, na procura das solu-
obstante, muitas vezes podemos apreender conscientemente um ções para estes problemas: assim como os enunciados lingüísti-
fato sem conhecermos as causas profundas que nos levaram a cos, os comportamentos, pensamentos e sentimentos, por meio
realizá-Io (por que tratamos as pessoas que têm poder ou ascen- dos quais as pessoas se relacionam socialmente, organizam-se
dência sobre nós empregando o gênero feminino: Excelência, num modelo que pode figurar explícito nas consciências dos
Majestade, Eminência, Reverendíssima, etc.?). Isto significa que indivíduos. Todavia, estes modelos supõem, sempre, outros
as condutas não podem ser grosseiramente rotuladas como cons- por meio dos quais se formam, e que existem como uma es-
cientes ou inconscientes, mas que se deve procurar distinguir pécie de gramática gerativa do discurso comportamental. Estes
nas ações sociais, quais são os seus aspectos explícitos e cons- são na maior parte das vezes inconscientes ou figuram fora da
cientes e quais são as suas dimensões dissimuladas e incons- consciência no momento do comportamento, tais como seus con-
cientes. gêneres lingüísticos.
I E mais: um comportamento cristalinamente claro para um Um exemplo poderá tornar mais nítido e que queremos
ator pode sê-Io em grau muito menor para o seu destinatário, expressar: certa vez, fazendo uma investigação sobre a visão
o que faz emergir imediatamente a pergunta: que grau de cla- que as donas-de-casa de classe média urbana, no Rio de Ja-
reza delineia a consciência? Por outro lado, como nos prevenir neiro, possuíam da vida política, perguntamos sobre os pontos
do perigo de tomar, por inconscientes, fenômenos que se apre- fundamentais de atuações que a ação política deveria visar.
~entam como tais apenas para o analista? Responderam, de um modo geral, que a ação deveria propor-
cionar "ruas e cidades limpas", "alimentação para todos", "as-
sistência social ao menor", "melhores condições de saúde",
Não obstante a dificuldade, a solução desse problema é "instrução melhor e mais acessível" . Estas expressões corres-
importante para as Ciências Sociais, na medida em que o olhar pondem aos seus discursos conscientes. Observamos, contudo,
do cientista não pode se limitar à superfície das palavras de que estas expressões tinham muito a ver com suas posições de
seus informantes, sob pena de se deixar "mistificar" por elas, donas-de-casa e que poderiam ser aproximadas de expressões
assumindo como teorias explicativas aquilo que na realidade elo tipo "quartos e salas limpos e arrumados", "mantimentos
não é mais do que dado de observação e ponto de partida para suficientes e alimentos bem preparados", "educação e saúde
a análise. das crianças" e assim por diante. O fato é que existe um mo-
Em busca de soluções, formularam os cientistas sociais delo "doméstico", subjacente ao discurso manifesto, que expri-
conceitos como os de "dentro da consciência" e "fora da cons- me a consciência que as donas-de-casa têm da vida política.
ciência", de Sullivan, "cultura explícita" (aquilo de que as pes- Este modelo subjacente dita a forma pela qual o modelo explí-
soas falam e a respeito de que podem ser explícitas) e "cultura ito e consciente será expresso. Em outros termos, a vida do-
implícita" (aquilo que existe nos interstícios da consciência), de méstica fornece o modelo por meio do qual a vida política será

41
40
concebida e conhecida. Este modelo, através do qual a cons- CAPíTULO 11
ciência se forma, é, basicamente, inconsciente.
O modelo explícito, que expressa o tipo de apreensão pela CORPO OU CORPOS?
consciência e que as pessoas podem reconhecer com facilidade,
configura o que Bohannahn (8) denominou "teoria de folk", "Se os judeus se tivessem ligado
conceito aproximado ao de "modelo consciente" de Lévi-Strauss a Jeová perfurando-se os septos,
quantos erros a menos na litera-
(50). Ele tem normalmente a função de justificar, legitimar, ou tura etnogrâiical"
mitificar os procedimentos das pessoas. O modelo consciente, A. Van Gennep
para o analista, é um conjunto de dados e teorias "feitos em
casa" que permite a ele aceder aos modelos inconscientes res-
\ ponsáveis pela manifestação dos fenômenos conscientes.
Procuramos esquematizar no capítulo anterior as principais
Esta construção teórica tem o mérito fundamental de nos dimensões presentes no pensamento. antropológico contempo-
ensinar que o aprofundamento da análise pode nos mostrar que râneo, notadamente entre aqueles pesquisadores que pretendem
elementos aparentemente vagos, flutuantes e independentes são entender a natureza da sociedade humana como sendo basica- ""(T'>
signos enraizados em estruturas coerentes, em códigos subja- mente a de um sistema de significação. Vimos que a Cultura i»

-
11
c
centes, de onde extraem os seus valores, e que sistemas muitas funciona como uma espécie de grade que se aplica sobre um
vezes distanciados do ponto-de-vista da consciência podem des- território originalmente indistinto, seccionando-o e estabelecen- 5
cobrir um terreno comum em que se torne viável a tradução do entre as partes, assim constituídas, contrastes e diferenças
recíproca: cozinha e ritual, mito e arte, astronomia e sistema ..".
que se responsabilizam, a partir de então, pela constituição do ~
de parentesco ... sentido. Vimos também que esta atribuição de sentido ao c-
Desde que a consciência esquece os fundamentos incons- mundo só se torna possível porque a sociedade é, ela mesma, J" ~
~ Ç)
ciencientes que a codificam, ela torna-se fonte de erro e deve um sistema estruturado cujos componentes relacionam-se se- 0'1
\~ :
ser vista com muito cuidado: "quanto mais nítida a estrutura .....J
gundo uma determinada lógica, lógica esta que é introjetada
manifesta, tanto mais difícil se torna apreender a estrutura pro- nas mentes dos indivíduos e, por esse caminho, "projetada", ("I

funda, por causa dos modelos consciente e deformados que se o


interpõem como obstáculos entre o observador e seu objeto"
sobre o mundo, na medida em que este, para ser apreendido
pelos indivíduos, deve ser representado em suas mentes e, por-
g
(50, p. 318). Freud, por outro lado, mostrou que nada se proí- tanto, "concebido". ~
be senão em razão de sua desiderabilidade ou de sua importân- Observamos que a Cultura adquire, ou funda, o seu pró- Vi
cia, e que proibir algo realça a importância da coisa proibida. prio sentido, aos olhos de seus membros, a partir do momen- -\
~
Quais as deformações que nossa consciência projeta no to em que se opõe à Natureza, ou melhor, a um conceito de c
natureza culturalmente fabricado. Por meio deste artifício, a :>
mundo? Qual a importância dos fenômenos dos quais nossa
consciência se vê compelida a se omitir? De que maneira co- Cultura cria os seus contornos externos, instituindo os seus o
limites e a sua fisionomia própria (que se torna específica (\\
lorem e matizam o nosso mundo, as lentes que se interpõem
entre nós e ele? Por serem inconscientes, esses fatores não dei- quando ela se opõe como um "nós" às outras culturas vistas ~
xam de ser reais já que estão constantemente atuando. Desco- como um "eles" ou "outros"). I;)
;:::
brir as fórmulas inconscientes das lentes por meio das quais Estabelecida a sua identidade própria, precisa instituir -
..",
"internamente" os cortes e contrastes por meio dos quais o -
os homens enxergam o mundo e nele projetam sentido, eis a <')

missão do cientista social. seu domínio íntimo se carregará de sentido e fará sentido nas »
-e>
mentes dos indivíduos. Tratamos, então, de definir as carac- ~,

42 43
terísticas do Sagrado e .do Profano corno constituintes da opo- algum dos indivíduos, quer como exigência da sociedade glo- ~ _
sição entre a vida social ordinária e a vida social extraordinária, bal, quer como requisito da fração social a que o indivíduo", c:
mostrando corno esta última, em suas maneiras de manifestação se associa particularmente. Portanto, é a sociedade em sua > ;;, _ S
e- t''''n
(o Puro e o Impuro), traça parâmetros em relação aos quais globalidade e cada fragmento social em particular que decidem ~ ~ ~ ~
a' vida social profana oscila e adquire sentido. Depois, anali- o ideal intelectual, afetivo, moral ou físico que a educação deve ,. ? :: Ô
samos de maneira sumária a problema do distanciamento entre implementar nos indivíduos a socializar, e, tanto quanto no ; ~ ;::; o
os componentes dos sistemas sociais, mostrando ser a distância espírito, uma sociedade não pode sobreviver sem fixar no fí- ê ~.:::. /J'\
um dos principais agentes de significação, ao mesmo tempo sico de suas crianças algumas similitudes essenciais que as ~ i:,' ~,
que condição lógica de todo processo de comunicação. Final- identifiquem e possibilitem a comunicação entre elas. -;:
mente, tentamos mostrar como o comportamento individual É claro que existem certos comportamentos que estarão o
está subordinado a determinados códigos - muitas vezes in- presentes em todos os seres humanos independentemente da
conscientes - que programam coletivamente a maneira de formação específica que cada um por ventura tenha tido; é ine-
agir, de pensar e de sentir consideradas adequadas ou justas, gável que existem conjuntos de motivações • orgânicas que con- ~ ~'l> í2'" Ü
r
e que estes comportamentos - quer se conformem às normas
_
duzem os seres humanos a determinados tlpo~ de _atuaç.ao ,c?m- (T> ~ & -;.'
coletivamente estabelecidas, quer delas se desviem - são ine- portamental. Mas a cada uma dessas motivações biológicas ~ ~ ~ ; I
xoravelmente mensagens significantes e expressam a natureza a cultura atribui uma significação especial em função da qual ~ S ;, ~
do sistema social. assumirá determinadas atitudes e desprezará outras. Além disso, ~ .~\ "E '[; ,
'Trataremos, nas páginas seguintes deste trabalho, de com- cada cultura, à sua maneira, inibe ou exalta esses impulsos, j;
preender como estes princípios estruturais se reproduzem no selecionando, dentre. todos, quais ser~o os inibidos, .quais ~ér~o B">
corpo humano de maneira a atribuir a ele um sentido parti- os exaltados e qUaIS serão os considerados sem importância --"
cular que - contrariamente ao que poderiam supor muitos e, portanto, tenderão a permanecer desconhecidos.
~ não é o mesmo segundo os diferentes sistemas sociais. Ao realizar este trabalho, a Cultura dita normas em re-
Queremos dizer com isto que, como qualquer outra realidade lação ao corpo; normas a que o indivíduo tenderá, à custa
da mundo, o corpo humano é socialmente concebido, e que de castigos e recompensas, a se conformar, até o ponto de
a análise da representação social do corpo oferece uma das estes padrões de comportamento se lhe apresentarem como tão
numerosas vias de acesso à estrutura de uma sociedade par- naturais quanto o desenvolvimento dos seres vivos, a sucessão
ticular. das estações ou o movimento do nascer e do pôr-da-sol. En-
tretanto, mesmo assumindo para nós este caráter "natural" e
"universal", a mais simples observação em torno de nós po-
-_~abe-se que cada sociedade elege um certo número de derá demonstrar que o corpo humano como sistema biológico
atributos que configuram o que o homem deve ser, tanto do é afetado pela religião, pela ocupação, pelo grupo familiar,
ponto de vista intelectual oú moral, quanto do ponto de vista pela classe e outros intervenientes sociais e culturais.
físico; que esta constelação de atributos é, em certa medida, Além disso, sabemos que, inspirado no seu próprio corpo,
a mesma, para todos os membros de uma sociedade, embora o homem concebeu relações entre os astros, as estações, as
tenda a se distinguir em nuances segundo os diferentes grupos, coisas, os animais e os deuses; reconhecemos no nosso corpo
classes ou categorias que toda sociedade abriga. Reconhece-se o no das pessoas que conosco se relacionam um dos diversos
ser função da educação inculcar nas crianças esses atributos, indicadores da nossa posição social e o manipulamos cuida-
de maneira a garantir um certo número de estados mentais e dosamente em função desse atributo. Vemos, no nosso próprio
físicos, alguns dos quais impossíveis de estarem ausentes em dia-a-dia, o corpo se tornando cada vez mais carregado de

44 45
conotações: liberado física e sexualmente na publicidade, na gamcas, está fora da abordagem sociológica e pertence ao do-
moda, nos filmes e romances; cultivado higiênica, dietética e mínio dos cientistas naturais.
terapeuticamente; objeto de obsessão de juventude, elegância
e cuidados.
Estudar a apropriação social do corpo é estrategicamentJ
Cumpre uma função ideológica. A visão que se tem do
importante para os cientistas sociais, .uma vez que ele é, sem
homem primitivo, "pré-histórico", é de proporções desequili-
dúvida, o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais
bradas, exageradamente peludo, pesado. Classificamos as pes-
normal patrimônio que o homem possui. Como tal, portanto,
soas quanto à "aparência", habilitando-as ou não a determi- c-
deve ser visto pelos cientistas sociais como uma categoria 1>
o nados empregos, e nos surpreendemos quando uma pessoa própria, sistematicamente relacionada às outras categorias so- ~
~ "bem apresentada" é identificada como transgressora das nor- (J ~
ciais. Classificá-Ia como "outros" ou "vários" é esquecer que
&". mas sociais e considerada criminosa. Nunca esperamos ser aten- ele possui o seu lugar próprio - e de importância - no __ -:;;
o
didos por um médico negro e normalmente não nos ligamos domínio das Ciências Sociais, ~
~c ~l> ~ ~
c
ao fato de apenas raríssimas vezes sermos atendidos nos res- Este lugar é o ponto de convergência de fenômenos sin- G'~ ~ ~ ~ ~
taurant=s por garçom de pele preta. guIares que põem em relação íntima a natureza orgânica e a~c~,;.~
. do homem, onde a Cu Itura e a Natureza dila- ..•.v<: ~~l'> >
('O~
I.
Ao corpo se aplicam, portanto, crenças e sentimentos natureza social
logam, on de o grupo e o m . diIVI'd·uo se mterpenetram. Es t e e' a e o o~
IA
que estão na base da nossa vida social e que, ao mesmo tem-
po, não estão subordinados diretamente ao corpo. O mundo o lugar dos fatos dos quais Lévi-Strauss (51, p. 154) diz que ~~
seria necessário estudar bem depressa, pois neles a natureza ;.;,
das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamento
social se liga muito diretamente à natureza biológica do ho- ).
natural e material, sem provir diretamente dele. As forças
mem.
físicas e as forças coletivas estão simultaneamente juntas e
O estudo da maneira pela qual cada sociedade pressiona
separadas.
os seus indivíduos a fazerem determinados usos de seus corpos,
Nesse sentido, para que possamos compreender sociolo- e a se comunicarem com eles de maneiras particulares, abre
gicamente o corpo, para que possamos transformá-Ia em ob- novas perspectivas para o estudo da integração social, uma
jeto da Ciência Social, é necessário apenas que apliquemos a vez que, por meio dessa pressão, a marca da estrutura social
ele a distinção que os sociólogos formularam entre o que cha- imprime-se sobre a própria estrutura somática individual, de
..,.
mamos de aspectos "instrumentais" e "expressivos" do com- forma a fazer do psíquico, do físico e do coletivo um amál-
= '"c- portamento humano. A atividade expressiva é um modo' de gama único que somente a abstração pode separar.
~ dizer ou expressar alguma coisa, uma idéia ou estado espiritual; Nesse terreno, todavia, muito pouco, infelizmente, se pro-
(,. CJ'>
-I. é uma atividade simbólica, à qual convém sempre indagar o duziu, "a este respeito, nada se fez, ou quase nada. .. Nin-
"'" "'"
r;:.
'-"
que está sendo dito ou o que significa. Da atividade instru- guém, na verdade, abordou ainda esta tarefa imensa de que
c
mental, procuramos saber para que serve, a que fim visa. Mauss sublinhava a necessidade urgente, a saber, o inventário
<h ~ e a descrição de todos os usos que os homens, no decurso
C C Tudo o que for expressivo no corpo, tudo o que comunicar
~ da história, fizeram e continuam a fazer de seus corpos ... "
e-• alguma coisa aos homens, tudo o que depender das codifica-
(51, p. 151). De fato, os trabalhos que incidem explicita-
& ções particulares de um grupo social, é objeto de estudo so-
mente sobre este terreno são escassos; representam normal-
..• \" ciológico. Tudo o que for universal, tudo o que for apenas mente artigos programáticos ou formulações de esquemas teó-
~ instrumental, tudo o que cumprir funções exclusivamente or- ricos que têm por finalidade constituir o estudo da sociologia
~
!. 46
I' ("I
47
um olhar amplo sobre a apropriação geral que a sociedade faz
do corpo em domínio próprio, diferente do das outras disci- do corpo humano, procurando destacar alguns tópicos que nos
plinas (Medicina, Antropologia, Física, Biologia, etc.). São parecem mais importantes ou, do ponto de vista desse traba-
extremamente raros os trabalhos empíricos de caráter eminen-
lho, mais interessantes.
temente sociológico, e muitos dos que dispomos, como os de
Ruth Benedict (4) e Margareth Mead, (61, 62) fizeram-no
de maneira esporádica e assistemática, encarando as manifes- o Corpo: Vida e Morte
tações corporais como subprodutos das motivações psíquicas
variáveis segundo as diferentes culturas.
No conjunto das modificações que o homem sofre no decorrer
Uma discussão da apropriação cultural do corpo exige de sua existência, há duas mudanças que se destacam e predo-
que tomemos por base o exame de uma larga relação de formas minam sobre as outras: o nascimento e a morte. Rechaçada
culturais possíveis, porque somente assim poderemos distinguir como tabu na vida cotidiana, a morte está, não obstante, pre-
entre os comportamentos humanos que são culturalmente con- sente, em todos os momentos, nas mitologias, no ritual, no
dicionados e os que são comuns a toda a humanidade; além
inconsciente.
disso, como vimos, a introspecção simples não pode na maioria
Os nossos jornais relatam e dissecam dezenas de mortes
das vezes nos fazer distinguir entre os comportamentos "ins- I.
diariamente. A morte exerce fascínio e é ambicionada merca-
tintivos" e os culturalmente determinados, já que tende a to-
doria jornalística. O espectador dos meios de comunicação de
mar como naturais os comportamentos específicos do grupo a
massa, como diz, Kientz (37, p. 140), "é um espectador in-
que o indivíduo pertence.
saciável dos casos de morte". O jornal e o cinema fazem re-
Todavia, ao utilizarmos dados extraídos de diferentes cul- verberar o tabu de morte, vendendo para cada um de nós
turas, tomamos consciência dos limites desse procedimento e um sentimento que está reprimido na profundidade de cada
procuramos nos resguardar da suposição de que possamos in- alma.
ferir a significação de cada um deles fazendo abstração do
De fato, esta exaltação da morte nos diários contrasta
sistema a que cada um pertença e do contexto etnográfico em
com a sua silenciosa dissimulação na vida 'cotidiana, em que
que este sistema mesmo adquire significação. Pelo contrário, a
ela é banida das conversas, obscurecida por metáforas e es-
exposição que segue procurará demonstrar que em Antropolo-
condida das crianças que podem ver os cadáveres empilhados
gia duas coisas podem freqüentemente ser a mesma coisa e
nas telas de cinema e televisão, mas a quem é furtado o
que uma coisa normalmente é duas ou mais coisas, segundo
conhecimento da realidade da morte em seus círculos familia-
as variações dos sistemas culturais.
res, e de quem se afastam os velhos, porque estes seres enru-
Os dados de diferentes procedências etnográficas que en- gados, curvados, decrépitos, são capazes de transmitir a idéi.a
tram na composição do texto seguinte apenas cumprem a fun- de decadência e morte. Quantos jovens viram ou se aproxi-
ção dupla de nos fazer sair de nós mesmos, para que nos
maram de um cadáver?
possamos apreciar como objeto, e de colocar intelectualmente
Ninguém permanece perto de um cadáver, sem que sua
as mesmas coisas em novas relações, de forma que possamos
Iisionomia ateste que é precisamente um cadáver o que está
deduzir novas relações e novos conhecimentos.
vendo. Se a pessoa não está habituada, apresenta certas rea-
ções típicas, ousa olhar rapidamente para o cadáver e. afasta
Antes de procedermos à análise específica e mais deta- os olhos imediatamente, de maneira a não deixar dúvida de
lhada de um dos tabus do corpo, as evitações chamadas de que quer separar sua visão de algo que não quer ver; há quem
"nojo" - o que faremos no capítulo seguinte - vamos lançar .ubra os olhos e quem desmaie.

48 49
~ o certo é que o morto, como as coisas insólitas, anormais secar. servirá a ele como seu mais poderoso fetiche (12, p.
c. (':>
165-6).
"' .... ou ambíguas, constitui um ser impuro, cujo contato representa
A morte tem mana e atribui mana. David Sudnow (68,
Ó perigo para o mundo das normas. Em muitas sociedades, amea-
ça manchar a todos e a tudo que tem ou teve contato com ele p. 71) relata o estigma que recai nos hospitais que estudou
"V ~~ - incluindo os seus pertences - já que tudo que se relaciona sobre os indivíduos que se relacionam com cadáveres. Descreve
."v- com ele participa de sua perigosa personalidade: se ele é tabu, que, sempre que se constata a presença desses indivíduos, des-
são também tabu suas propriedades, sua casa, seus parentes, confia-se da ocorrência de morte; de onde quer que esses in-
seus amigos. Estes, segundo os casos e em grau variáveis, se divíduos venham, e para onde quer que eles se encaminhem,
tratam com cuidados especiais, se evitam, se destroem ou se são sempre vistos e imaginados como indivíduos que recolhem
purificam. cadáveres, ou que se acham envolvidos nas horripilantes tare-
Em algumas sociedades, como entre os Maori, os que to- fas de necrópsia. Vistos como poluídos por causa de suas ati-
caram um morto, ou participaram de seu enterro, estão ex- vidades, estes indivíduos tentam dissimular de toda maneira
tremamente poluídos. Qualquer contato com outras pessoas os aspectos mais degradantes de seus misteres: evitando falar
lhes está interditado. Estão proibidos de entrar em casa ou no assunto, não usando guardanapo manchado de sangue; dis-
tocar algum objeto, sob pena de os tornarem impuros também. simulando que fazem a limpeza do chão depois das autópsias,
Nem sequer tocam com as próprias mãos os seus alimentos. etc. É fácil verificarmos este poder negativo nas conotações
I
Apenas indivíduos miseráveis e abandonados que vivem de es- negativas com que vemos os "papa-defuntos", os coveiros e
molas podem se aproximar deles. Ao fim desse período de todos os que de uma forma ou de outra se relacionam com a
isolamento tudo o que teve algum contato com eles, tudo morte.
o que os serviu no tempo de perigo, é sumariamente destruído Tanto isto é verdadeiro, que nos hospitais existe uma evi-
e eles são purificados. Coisa fundamentalmente parecida acon- dente divisão de tarefa, na maneira de se lidar com cadáveres.
tece com os Dayaks marítimos que praticam o enterro imedia- Os médicos que entrevistamos (e o trabalho de Sudnow (68,
tamente após a morte, porque acreditam que se o conservassem p. 57, 97, 100) o confirma, somente tocam cadáveres quando
perto por muito tempo estariam se expondo a sinistras influên- diagnosticam a morte ou realizam autópsia, considerando a
cias. A mais simples observação de nossos costumes demonstra manipulação de corpos mortos um trabalho de menor dignidade,
que não sentimos coisa essencialmente diferente. destinado às pessoas de status menos elevado. Os médicos e
À morte reconhecemos uma eficácia ritual. A morte tem enfermeiras de status mais elevado são normalmente os que
mana. Basta olharmos em volta dos muros dos cemitérios e menos chance têm de presenciar falecimentos e de ver cadá-
veremos a quantidade de ritos mágicos de que ela é objeto. veres, e os que menos probabilidade têm de os manipular fi-
Ritos que exprimem o seu poder temível. Entre certos Pigmeus, sicamente, já que "o trabalho de locomoção e preparo dos
a iniciação dos magos exige provas para o ingresso na socie- cadáveres é feito por pessoas de menos nível", conforme nos
dade secreta dedicada à magia negra, muitas delas ligadas ao declarou um informante médico. Num dos hospitais que
contato. com a morte e com a impureza: em uma delas se Sudnow estudou, a tarefa de preparar os cadáveres estava a
coloca atado, peito contra peito e boca contra boca, o can- .argo de funcionários de baixa posição, 95% dos quais eram
didato, a um cadáver, levando-os, ambos, para o fundo de negros.
um fosso, que se cobre de ramagens, onde permanecem três
dias; outros três dias, o neófito passa em sua cabana, atado
ao morto que se putrefaz e de cuja mão ele deve se servir A morte não pode ser esquecida com facilidade. Sobretudo
para a alimentação, esta mesma mão que, depois, posta para quando se trata de uma pessoa próxima, é talvez o golpe mais

50 51
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violento que a existência dirige ao homem. Ela significa uma dáver qualquer: é necessano dar-lhe uma sepultura. Não por
terrível ameaça ao grupo humano e exige alterações .••..substan- simples gesto instrumental de motivação higiênica, mas por
ciais na organização da vida, sobretudo quando é inesperada, obrigação moral e por necessidade de exprimir alguma coisa.
A morte de uma pessoa adulta significa normalmente dor e Não se poderia explicar, por exemplo, o enterro, por motivos
solidão para as pessoas que sobrevivem a ela: verdadeira chaga puramente utilitários (afastar a sociedade de uma possível fonte
que põe em risco a vida social. de elementos patogênicos), porque, se isto fosse verdade, não
Van Gennep (32) e Hertz (35) mostraram que a morte, se entenderia o porquê de algumas sociedades enterrarem os
para a consciência coletiva, representa um afastamento do in- seus membros antes mesmo de estes falecerem. :-
divíduo da convivência humana; esta exclusão, entretanto, tem O enterro, e as outras formas de se lidar com o corpo ~ ~
um caráter temporário e tem por efeito fazer com que o morto morto, é um meio de a comunidade assegurar a seus membros .•.C.
- ,.
C"<>

passe da sociedade palpável dos vivos para a sociedade invisí- que o indivíduo morto caminha na direção da ocupação do 1::00\ r1:>
vel dos ancestrais. Como fenômeno social, a morte consiste na seu lugar determinado, devidamente sob controle. Estas práti- t:
realização do penoso trabalho de desagregar o morto de um cas comunicam ao grupo uma mensagem que evolui da inse- .:
s: \l
domínio e introduzi-lo em outro. A feitura desse trabalho exige gurança ao sentimento de ordem, e representam a maneira » ~
toda uma desestruturação e uma reorganização das categorias especial que cada grupo tem de resolver o mesmo problema ,.
~
mentais e dos padrões de relacionamento social. E, apenas ao fundamental: o drama da finitude humana.
termo desse doloroso esforço, o grupo se recobra, restabelece Hertz (35, p. 34) relata que, entre os lndonésios, os
sua paz e vence. parentes, e particularmente a viúva, têm obrigação de recolher,
Nessa passagem de um mundo a outro, do conhecido ao de tempos em tempos, os líquidos produzidos pela decompo-
desconhecido, do seguro ao misterioso, o indivíduo recebe um sição dos cadáveres, a fim de aplicá-los sobre o próprio corpo
acondicionamento que se concretiza em ritos que o preparam ou de misturá-Ias aos alimentos. Aqueles que observam este
para a nova vida: muda o nome, as roupas, ou o gênero de ritual justificam-no alegando que o afeto pelo defunto e a
vida. Este estágio intermediário, intersticial entre um mundo tristeza que sobre eles se abate, em virtude de haver perdido
e outro, coloca em jogo forças perigosas. Entre a desintegra- a sua presença, os obrigam a proceder dessa maneira. Obser-
ção do indivíduo excluído de um mundo e a sua integração à va, todavia, que esta alegação não basta para explicar o rito,
sociedade dos mortos, pratica-se uma série de procedimentos já que ele é estritamente obrigatório, inclusive ameaçando de
rituais que visam completar o processo e proteger a comunida- punição capital às mulheres que não o observarem. Diz ele:
de. Ninguém estará livre do perigo antes que o processo fune-

-
"não se trata, pois, simplesmente de um sentimento individual,
rário esteja completado em todas as suas etapas, e antes que mas de uma participação forçada de certos sobreviventes à
todas as coisas estejam em seus devidos lugares. condição presente do morto".
Nesta fase intermediária, o grupo está sujeito à ação das Trata-se de manobras sociais, por meio das quais o grupo I
forças nefastas que a morte irradia - forças nocivas que amea- reafirma, por meio do morto, a solidariedade do grupo a que
çam o homem. Deve, então, se prevenir e se munir dos re- ele pertenceu. Coloca-se a morte no seu devido lugar e evita-se
cursos simbólicos capazes de alterar essas forças e de neutrali- assim que ela continue agindo no interior da sociedade. OsJ
zá-Ias. É necessário exorcizar o cadáver, a morte, e tudo o que parentes próximos, que realizam estes atos, comungam de al-
diga respeito a eles. Nesse ponto está a inspiração das práticas guma forma com o defunto; imunizam-se a si mesmos e evitam
funerárias e de seu valor expressivo. que a sociedade sofra outras infelicidades; acreditam que ab-
Valor expressivo, porque, por tudo o que se disse, o sorvem as qualidades do morto ou a potência mística que re-
corpo humano morto não pode ser considerado como um ca- side no cadáver, tornando-se, assim, capazes de a controlar.

52 53
Entretanto, estes parentes estão em contato íntima e sólido rUIlI liu se deitava fora porque, na sua dor, esta não podia
com a morte - o que é um argumento para a comunidade t r interesse por coisas que lhe pertenciam nem utilizá-Ias. As
completar a construção de uma muralha protetora em torno pr prtas tendas eram desmontadas e dadas a outras pessoas.
de si, expulsando-os temporariamente do seu convívio. Uma Nada ficava para a viúva, além do cobertor em que ela pró-
prática parecida, o próprio Hertz diz existir entre os Dayaks, pria c envolvia. Os cavalos favoritos do morto eram levados
de Bornéo, que promovem a comunhão com os mortos mis- 110 pé de sua campa e aí mortos, enquanto todos gemiam".
turando com arroz os líquidos que provém da decomposição Um dos costumes mais comuns entre os diferentes povos
do cadáver, fazendo com que os parentes próximos se alimen- c que em certo grau podemos constatar entre nós mesmos -
tam dele durante o período fúnebre. .onsiste na proibição de se tocar no nome do morto em deter-
Entre os Bororo verifica-se a dupla inumação. Realizam minados períodos, ou sem observar determinadas condições.
um: primeiro enterro, rápido, quando durante várias semanas Para alguns povos, inclusive, o pronunciar o nome do morto
se joga água sobre o cadáver para apressar a decomposição. m determinadas circunstâncias, ou diante de determinadas
Quando esta se encontra adiantada, abrem a sepultura e lavam pessoas constitui uma profunda ofensa, sujeita a penas com-
o esqueleto, retirando dele todas as carnes. Pintam, então, de paráveis às dos mais graves crimes. Outros grupos costumam
vermelho, os ossos, e os enfeitam com plumas. Colocam-nos 1 roc~rdo nome dob.morto ime?iatamente após o seu faleci~ento, I.
em um cesto e os submergem, em ato solene, em um rio ou recaiu o as proi ições de CItar o nome sobre o antenor. O
lago, onde moram as almas, completando o processo (53, p. tabu do nome em alguns povos atinge o extremo de deter-
193). A água e a morte, em decorrência disto, estão para minar com que todos os que possuem nomes, idênticos ou
sempre associadas no pensamento desses indígenas. Para evitar parecidos ao do defunto tomem outros diferentes; ou ainda de
associação com a morte, provavelmente, os Esquimós pres- ditar a modificação do nome de animais ou coisas quando
/Erevem que a morte deve ter lugar fora das casas. Talvez incidentes com o do falecido.
1
encontremos também, nesse ponto, a explicação de porque, O nome, de qualquer maneira, está associado àquele que
nos nossos velórios, se coloca sempre o defunto com os pés o porta, sendo uma parte constitutiva da identidade social da
voltados para o lado de fora de casa, e porque a tendência pessoa. Portanto, é lógico que possa ser envolvido no tabu que
a velar o corpo em lugares especialmente dedicados a isto diz respeito ao defunto. Pronunciar o nome de um morto é
Ucapelas), abandonando-se as residências. lima forma de entrar em contato com ele, ou, o que pode ser
Ruth Benedict (4, p. 78) narra que "nas planícies do mais grave, de invocá-Io. -.1
oeste a atitude do sobrevivente durante o luto era tudo o Todo esse trabalho social ligado à morte diz respeito -- ~ ~
que há de mais distante de uma tal ansiedade: era um ren- específico a cada sociedade. Quem pode pronunciar o nome; 1; ~ l>
der-se dionisíaco a uma dor sem restrições. A conduta seguida do morto e quando, o que se pode comer e como, como se~ ~ g~
intensificava, em' vez de evitar o desespero e o abalo que a tratar o corpo do morto, vestindo-o, lavando-o, pintando-o, I; -
morte implica. As mulheres golpeavam a cabeça e cortavam r' .hando os orifícios corporais, mutilando uma parte de seu ~:: >
os dedos. Longas filas de mulheres com as pernas nuas a corpo, enterrando-o, cremando-o, quem deverá temer, quem F- O 6
verter sangue atravessavam o acampamento quando morria 11 .vcrá chorar - tudo isso é função de cada cultura e expressa' ('\) ?,
qualquer pessoa importante. Não limpavam o sangue da cabeça purücu, Ian ida dI'es c e sua propna. cosmo I'ogra e d e sua estru- - II -\ };.
o- (l' -,
nem das pernas, deixando formar uma crosta. Logo que o turu social. "
corpo saía da tenda a enterrar, atirava-se ao chão, para quem Não obstante, os antropólogos têm observado que os
o quisesse, tudo que nela existia. Os bens próprios do morto pro .cdimentos funerários mostram uma similaridade bastante
não deviam ser poluídos, mas tudo o que existia em casa da grall Ic através do mundo e através da história. Parece que,

54 55
em todas as sociedades, o ato de morrer, talvez o mais íntimo para si; isto é, na sua solidão, pode levá-Io com ela ( ... )
da existência humana, é transformado em uma ocasião pública. Por conseqüência, é tratado com todas as precauções com que
Há quase sempre uma manifestação de tristeza mais ou menos foi a pessoa que morreu. Deve isolar-se durante quatro dias
real, mais ou menos convencional. O cadáver é sempre con- de toda a vida corrente: não deve falar com ninguém nem
siderado perigoso ou repugnante. Há sempre ritos que cum- ninguém se lhe deve dirigir; toma um em ético todas as manhãs
prem a missão de preparar o morto para sua viagem em para se purificar, e sai da aldeia para ofertar com a mão es-
direção ao outro mundo. Mallinowski (57, p. 49) observa a querda milho moído, fazendo girar quatro vezes a mão em
dupla e contraditória tendência de, por um lado, preservar torno da cabeça e arremessando o milho para 'arrancar de si
o corpo, deixar suas formas intactas, ou reter partes do mesmo, o desgosto', como se diz. No quarto dia crava no chão as varas
e, por outro lado, o desejo de despachá-Ia, de aniquilá-lo de orar pelo morto e roga-lhe, na única prece que em Zuni se
completamente. Para ele, a mumificação e a cremação corres- dirige a um indivíduo natural ou sobrenatural, que o deixe em
pendem às duas expressões extremas dessas tendências, paz, que o não arraste consigo e que lhe conceda:
enquanto o canibalismo mortuário - praticado, ao mesmo
tempo; com extrema repugnância e asco, e em nome da reve-
rência, do amor e da devoção que se dedica ao morto - Toda a vossa boa sorte
representa o ponto intermediário, onde elas se encontram e Que nos guarde ao longo
conflitam. E acrescenta: "é impossível ver a mumificação ou De um caminho seguro."
a cremação ou qualquer forma intermediária como determi-
nadas pelo mero acidente de crença, como um traço histórico
de uma ou ·de outra cultura que ganhou sua universalidade
A morte de um homem ou de uma mulher, para· um
pelo mecanismo da difusão e do contato apenas. Porque nesses
grupo de reduzidas dimensões, é um evento de enormes pro-
costumes está claramente expressa a atitude mental fundamen-
porções. Os parentes e amigos são abalados no mais profundo
tal dos parentes, amigos ou amantes sobreviventes ... "
de sua vida emocional. A morte mutila uma sociedade pequena
A ·descrição de Ruth Benedict (4, p. 76-8) do seguinte e no lugar do morto deixa um vazio indisfarçável. Ela quebra
ritual resume tudo o que estamos tentando dizer: "(Aos r N
Zuni), o que mais interessa é que a pessoa enlutada esqueça
o curso normal das coisas e questiona as bases morais da
sociedade, ameaçando a coesão e a solidariedade do grupo .". ~
C
,.
e- -f\
( ... ) Reúnem-se para alimentar o morto pela última vez e ferido em sua integridade. ~ V. ~) ,
despedi-Io ( ... ) Então, expulsam-no da aldeia, levando-o A reação do homem é um impulso contrário a essas 1/1 Ô
para fora dela (e) enterram tudo (o que era seu). Voltam forças desagregadoras. A violência das manifestações > <:"' g
contrá- 0\
para casa a correr e sem olhar para trás, e trancam a porta rias à morte significa que a sociedade continua viva. Quanto à") ~ o
t..• g
contra o morto, gravando nela com uma faca de sílex uma
cruz para evitar que ele entre, o que corresponde ao formal
mais ela chora,quanto maior a sua dor, tanto mais intensa
a su~ presença na alma de seus membros. A sociedade reaje
'"
:a ::b. 't
( I it o-
rompimento com o morto. O chefe fala às pessoas, dizendo- com veemência igual à da força que a feriu. Os indivíduos ~
(\ (i

Ihes que o esqueçam para sempre ( ... ) Despedem as pessoas nunca a amam tanto quanto quando ela é ameaçada, Visa

""
e terminou o luto. Mas qualquer que seja a tendência de um >.
>
com isto reagir ao desabrigo a que seus membros se viram li
povo, a morte é um fato impiedosamente iniludível ( ... ) submetidos, restabelecendo, pelo calor da solidariedade dos
'TI ~
uma morte que toca muito de perto uma pessoa nem mesmo que ficaram, a integridade do grupo. Aproximando-se, os o ~
em Zuni é coisa fácil de esquecer ( ... ) o cônjuge que sobre- sobreviventes conseguem ocupar o vazio deixado pelos que ~ -I

partiram. ~~
vive. corre grande perigo. A sua falecida mulher pode puxá-lo ~
(.,-----

56 57
Tudo isto porque os efeitos da morte não se restringem os indigentes, os militares, os sacerdotes, merecem, cada um, um
absolutamente a dar termo à existência material do homem. procedimento particular. Em muitas sociedades, o cadáver de I
Ela atinge, diretamente o capital investido nesse corpo pelo um suicida suscita um pavor especial e mais intenso, e por tt
grupo social. Ela incide sobre uma individualidade física car- isso é imediatamente abandonado. Entre nós, cristãos, os
regada de sentido. Quando um homem morre, não é apenas suicidas não podiam ser enterrados no mesmo cemitério que
uma fração do grupo que foi roubada: algo de dignidade infi- os mortos regulares, nem suas sepulturas receber a bênção
nitamente mais elevada foi afetado - a própria estrutura sacerdotal, acreditando-se que iam para o inferno. Mas, se, I-
social, que se reproduz no organismo. Atingido em seu por um lado, o suicídio pode gerar entre os parentes que ~
princípio mais sagrado, o edifício social corre o risco de sobrevivem um certo sentimento de vergonha, por outro, os ;,
desmoronar. sobreviventes de um suicida altruísta, de um mártir, de alguém ~ ~
Aí está a razão do pavor que a morte inspira. A putre- que se deixou morrer em defesa dos ideais patrióticos, dos ,?'

fação, a decomposição, não ameaçam apenas a materialidade valores da moralidade coletiva, dele podem se orgulhar, e sua ,.
corporal, já que, a ser isto verdadeiro, todos os corpos deve- memória se torna, para sempre, objeto das mais solenes
riam provocar o mesmo horror. Entretanto, a experiência reverências.
etnográfica demonstra que o sentimento que a morte deter- Também é diferente, e mais branda, a reação que a morte
mina varia enormemente com o tipo de morte e com a qua- de crianças produz na consciência coletiva. Na realidade, a
lidade do morto. A morte do rei, do governante, ou de qual- comunidade investiu nelas pouco mais que esperança. Não
quer alto mandatário, é normalmente seguida de intenso chegou a lhes imprimir a sua marca. Sente-se pouco atingida.
assombro, pois nele se resume toda a personalidade social. A Tudo se passa como se fosse uma morte menor. Um fenômeno
morte do rei anuncia a iminência do caos. A decadência de "infra-social", como diz Robert Hertz (35, p. 80). Em muitos
sua majestade se apresenta aos homens como catastrófica, hospitais, os natimortos são lançados ao lixo.
deixando-os perplexos. À iminência do caos, muitos povos Hâ ainda a morte insólita, ocorrida fora da rotina, longe
respondem com rituais de inversão da ordem, procurando
das previsões, colhendo de surpresa os sentimentos sociais,
produzir, sob controle social, a desordem que poderia provir
São os desastres,a morte do casal que retorna da lua-de-mel,
de fontes implacáveis: nas ilhas Sandwich muitos matam,
do jovem assassinado no dia de sua formatura, do rapaz
pilham e incendeiam, enquanto as mulheres se prostituem.
fulminado por um raio, do filho que morre eletrocutado ao
Reações da mesma natureza podem ser vistas nas ilhas Fidji.
tentar salvar o pai, as chacinas e monstruosidades. Estas
Esta licenciosidade ritual é obrigatória e não tem fim, muitas
mortes provocam uma comoção especial: ferem incisivamente.
vezes, antes que a decomposição do cadáver real se complete
e não reste senão um esqueleto imputrescível. O terror que Devem ser seguidas das mais cristalinas reiterações dos sím-
acompanha a morte do rei coloca-se acima das divergências bolos de solidariedade. Os Ao-Naga, familiares de um morto
políticas profanas: aponta, de modo inequívoco, para a extre- por acidente, matam todo o seu gado, permanecem seis dias
ma precariedade da organização social, trazendo, para a sem sair, deixam de lado tudo que pertenceu ao defunto,
proximidade da consciência, a possibilidade de uma existência constroem outra casa e passam a viver miseravelmente. Na
anômica que não poderá mais ser humana. Austrália, os que morreram por acidente não' são conside-
rados merecedores de honras fúnebres (12, p. 123). Em
Além disso, o gênero de morte determina reações dife-
rentes no trato com o cadáver, o que se expressa na diver- muitas sociedades, o grupo que teve um de seus membros
sidade das fórmulas rituais. Os que sofrem mortes violentas, assassinado por um membro de outro grupo acha-se no direito,
as mulheres virgens, as crianças, os natimortos, os suicidas, ou na obrigação, de matar um membro do grupo do assassino.

58 59
o horror que o cadáver inspira, portanto, não tem a ver essencialmente agramatical. Mas deixa claro que, nos ritos e
essencialmente com as transformações naturais que se operam crenças funerários, a Cultura busca se impor com todas as
no corpo. Estas transformações, por elas mesmas, não signi- dimensões com que tenta estruturar O' mundo: Natureza /
ficam tanto. Elas valem, na realidade, por aquilo a que reme- Cultura, Sagrado / Profano, Puro / Impuro, Próximo / Dis-
tem o espírito do homem. Nenhuma sociedade pode suportar tante, Conformidade / Desvio, Ordem / Desordem ...
um corpo alheio ao controle cujo aprendizado é uma das A sociedade tem que se apropriar desse processo natural
primeiras tarefas que ela impõe ao recém-nascido. Por isso, porque, se os indivíduos morrem, ela, pelo contrário, sobre-
tratamos o corpo cuidadosamente depois de sua morte: ves- vive. Se ela vê no homem a sua imagem projetada, gravada,
timo-lo, fechamos-lhe a boca e os olhos, obturamos-lhe todos as forças que o constituem devem ter a mesma perenidade.
os orifícios pelos quais ele pode manifestar alguma atividáde A destruição do corpo turva a sua imagem, sobretudo enquan-
de uma natureza escapada ao domínio da coletividade. to ele se consome. Obriga a sociedade a refletir sobre si e
Ê esta atividade incontrolada que sobrevém ao cadáver os homens a pensar em seus destinos. Evidencia-lhes suas
- e que o consome - que a sociedade não pode suportar. vulnerabilidades. Para uma sociedade que se crê imortal, o
f: preciso esconder, apressar, intervir de alguma forma. Enter- espetáculo de degradação do objeto em que se vê não pode
rar, comer, cremar, são formas de interferência, tentativas ser suportado. Não pode suportar que os membros que a
simbólicas de definir o irreversível processo por caminhos representam, que os corpos em que existe, estejam destinados
demarcados. Assisti certa vez, em um programa de televisão, a perecer. Ê bastante comum dizermos que a morte é trai-
a um debate sobre a cremação, tendo os participantes quase çoeira, pois diante dela nos sentimos como vítimas: dificil-
unanimemente tomado o partido desse processo como um mente perguntamos "por quê?", quando nos noticiam a morte
método "mais econômico", "mais racional" e "mais digno". de uma pessoa, mas "de quê?"
A cremação, como o cozimento, representa uma transformação Cada sociedade dá à morte a sua resposta e esta resposta K
culturalmente orientada. é uma espécie de teste projetivo da estrutura social. Mas todas
A transformação culturalmente canalizada aparece real- elas respondem ao mesmo problema: a morte do símbolo que
mente aos indivíduos como "mais digna". Um jornal de 4 de o corpo é. A morte do corpo é a morte do símbolo da estru-
setembro de 1973, traz a notícia de haver sido derrotado em tura social, é a evidência da entropia, é a imposição ao homem
primeira instância um recurso contra a medida do prefeito da "de se pensar na finitude" (1, capo 9).
cidade de Pirassununga, no estado de São Paulo, que mandou O que se teme na morte é exatamente o que ela tem de
retirar do cemitério municipal um epitáfio que continha os morte, e por isso se procura dar ao cadáver aparência de
seguintes dizeres: "Bípede, meu irmão: eis o fim prosaico vida: vestindo-o, engravatando-o, banhando-o, maquiando-o,
de um espermatozóide que, há mais de oitenta anos, pene- dando-lhe, enfim, uma "boa aparência". As flores, com que
trou um óvulo, iniciou o seu ciclo evolutivo e acabou virando cobrimos os cadáveres, cujas pétalas separamos e lançamos
carniça. Estou enterrado aqui. Sou o Chico Sombração. Xingai nas sepulturas, que enviamos em coroas, estão presentes tam-
por mim." Aí se recusa o enquadramento cultural, pois se bém . em outros ritos muito proximamente ligados à vida
descreve o processo de transformação em termos puramente (aniversários, casamentos, nascimentos, convalescença, corte,
naturais; substituem-se por palavras profanas os termos sagra- Ano Novo, etc.), e, se quisermos aprofundar, são os órgãos
dos que deveriam figurar; impele-se para a natureza, a comu- responsáveis pela reprodução da vida vegetal. . . ~
nidade; matam-se as esperanças de ressurreição e de vida Os ritos que lidam com a morte solucionam o problema G>-c,:
eterna. Fala-se na primeira pessoa, quando os mortos devem que ela implica, prometendo, implicitamente, a ressurreição e ~ ?... e:\
silenciar. Ameaça-se. Peca-se. No contexto, a expressão é a vida eterna. A noção de morte está sempre, ligada à de? à>
"'"
60 61
ressurreição, e esta ligação não se dá explicitamente, apenas, dos lábios, das faces, decepamento das falanges, perfuração
nas religiões institucionalizadas: o avanço material já permite do ouvido, amputação das unhas, circuncisão, inscrustrações,
a alguns (ou a milhões?) a audácia de sonhar com um conge- apontamento dos dentes, deformação cefálica, atrofiamento
lamento, na esperança de que a ciência do futuro lhes possa de membros, obesidade, compleição atlética, prescrição de
devolver a vida. E cada povo tenta trazer a certeza dessa peso, forma e cor considerados desejáveis esteticamente, pin-
vida eterna para perto de si, lançando mão dos recursos que tura das unhas dos pés, das mãos, barbeamento, corte de
lhe parecem viáveis - quer recuperando, após o luto, os cabelo; transformações de coloração da pele por meios quí-
nomes que haviam proscrito, dando-os às novas crianças que micos ou físicos; tatuagem (injeção de pigmentos embaixo da
nascem, quer carregando no peito as caveiras dos' parentes pele, ficando a superfície inteiramente lisa), moko (estrias
falecidos (como as viúvas Bena-Bena, de Nova Guiné), quer praticadas sobre a pele e sobre as quais se esfregam pigmen-
expondo os corpos mumificados dos grandes líderes e os ossos tos), kakina (introdução de uma agulha e linha impregnados).
de sacerdotes e arcebispos (como no convento de Santa Cata- Cada uma dessas práticas se explica por uma razão
rina, no Monte Sinai), ou ainda, assimilando, por meios cani-
particular, ritual ou estética: ritos propiciatórios, marca tribal,
balísticas ou não, as virtudes das grandes personalidades que
signo de status social, ritos de passagem, etc.; os japoneses e
desapareceram fisicamente, mas que não podem perecer moral-
os polinésios, entre outros, são conhecidos pela extrema sofis-
mente. Hertz constatou, em todos os ritos que estudou, que as
ticação e pelo agudo refinamento de seus trabalhos sobre o
partes moles dos cadáveres, quando não eram preservadas corpo, especialmente no que diz respeito à habilidade de
por procedimentos artificiais, eram pura e simplesmente des- tatuar. Muitas vezes, essas marcas fazem referência direta a
truídas. E nós mesmos tomamos, como símbolo da morte, a
relações sociais: o amor à mulher, o amor aos pais, o elogio
caveira - exatamente o que, da morte, fica. o. que se teme
à facção social a que se pertence... Em cada sociedade
na morte é exatamente o que ela tem de morte, e o que
poder-se-ia levantar o inventário dessas impressões-mensagens
nela se cultua é o amor à vida.
e descobrir-lhes o código: bom caminho para se demonstrar,
na superfície dos corpos, as profundezas da vida social.
Não há, praticamente, sociedade que não fira de alguma
o Corpo: Suporte de Signos
forma o corpo de seus membros, havendo, inclusive, prefe-
rências que podem parecer estranhas à primeira vista. Por que
Que o corpo porta em si a marca da vida social, expressa-o
a coincidência largamente difundida no espaço e no tempo, da
a preocupação de toda sociedade em fazer imprimir nele,
preferência pelas partes genitais? - perfurando ritualmente a
fisicamente, determinadas transformações que escolhe de um
repertório cujos limites virtuais não se podem definir. Se con- uretra, na base do pênis, para controlar a fecundação (disci-
siderarmos todas as modelações que sofre, constataremos que são da uretra); furando o prepúcio e introduzindo algum
o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a objeto que impossibilite as relações sexuais; ou costurando' as
sociedade imprime formas segundo suas próprias disposições: paredes da vulva de forma a reduzir o orifício vaginal (infi-
formas nas quais a sociedade projeta a fisionomia do seu bulação); praticando-se a excisão do clitóris, ou procedendo
próprio espírito. à labiotomia; abrindo parcial ou totalmente a parte inferior
Arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele - da uretra peniana, de forma a fazer com que homens e mulhe-
imprimem-se cicatrizes-signos que são formas artísticas ou res assumam a mesma posição ao urinar; distendendo os
indicadores rituais de status, como as mutilações do pavilhão lábios por meio de manipulação ou outros métodos; escari-
auricular, corte ou distenção do lóbulo, perfuração do septo, ficando-os de modo a colarem-se durante a cicatrização; pra-

62 .63
ticando a circuncisão; a castração total ou unilateral; ou o necessidade de combater a inflamação prepucial, a fimose, o
desvirginamento ritual ... desenvolvimento da resistência da mucosa da glande, é pro-
Todas essas intervenções da comunidade sobre o sexo duzir racionalizações que se destinam a legitimar uma prática
são maneiras de ela tentar controlar - agindo sobre o órgão sem dúvida muito anterior ao argumento. A origem dessas
- uma função cujo exercício deve responder pela própria práticas é social, não havendo outro fundamento: são signos
continuidade da existência do grupo humano. Não têm, por- de pertinência ao grupo c de concordância com os seus
tanto, importância maior que a sociológica. Nesse, ponto, a princípios.
reprodução

materializar
da espécie e a persistência

os sentimentos
das' tradições sociais
se encontram, e o sexo se transforma em um bom objeto para
da comunidade acerca de sua o Corpo: Fome de Símbolos
--
sobrevivência.
Portanto, nenhuma prática se realiza sobre o corpo, sem Enganam-se os que pensam que o sistema gastro-intestinal
que tenha, a suportá-Ia, um' sentido genérico ou específico. é aquele por meio do qual o corpo se relaciona fundamental-
Não há razões para se supor que as pessoas a elas se subme- mente com objetos. Na realidade, são as convenções sociais,
tam a contragosto ou sem conformidade intelectual: aqui todos como se sabe, que decidem o que é alimento e o que não é
concordaram que o ladrão devesse ter a mão amputada; ali, alimento, bem como quem pode comer o quê e quando.
que as mulheres que ultrajaram o marido devessem ter o Portanto, podemos esperar encontrar uma relação mais ou
nariz cortado; acolá, que os homens, diferentemente dos ani- menos Íntima entre os tipos de alimentos conhecidos e aceitos
mais ou dos seres impuros, deveriam ser circuncidados, ou que por uma população e o gênero de estruturação social da
as mulheres deveriam ter os lábios vulvares distendidos, para comunidade. Analogamente, é bastante provável que exista
poderem ser consideradas belas e desejadas sexualmente como correspondência entre os tipos de alimentos prescritos para
boas parceiras. Pelo contrário, essas ocasiões são normalmente determinadas ocasiões e a natureza dessas ocasiões.
aguardadas pela comunidade com uma certa ansiedade e Os Talensi, da África Ocidental, não permitem que as
recebidas mesmo pelos seus pacientes, com alegria, já que mulheres cozinhem ou comam galinhas caseiras ou cães; per-
significam a possibilidade de uma situação de dignidade seguem e matam hienas - que os jovens recusam como
maior, o ingresso em uma classe privilegiada, ou o restabele- alimento, pois as consideram impuras por desenterrarem e
cimento da ordem das coisas. comerem cadáveres, enquanto os anciães as consideram um
E os homens não perdem a possibilidade de lançar mão delicioso manjar (27, p. 17). Os Pueblos, contrariamente a
desses recursos, para se aproximarem do ideal de estética grande parte das populações indígenas que travaram contato
corporal que a sociedade define, destacando, dissimulando ou com os povos de tradição ocidental, rechaçam as bebidas
atenuando particularidades de sua aparência: submetem-se a alcoólicas com extremo asco (4, p. 64). Boltanski (10, p. 9)
dietas especiais, praticam exercícios físicos, pintam-se ou dei- demonstrou como varia a categorização dos alimentos segundo
tam-se em mesas de operações cirúrgicas - porque creem os estratos da sociedade francesa.
que, procedendo assim, estarão incrementando a vitalidade É verdade que, quando um homem come, está reagindo
de sua constituição orgânica e social. a determinadas motivações internas, isto é, às contrações de
:É claro que as explicações utilitárias e instrumentais não fome que decorrem da redução da taxa ele açúcar na compo-
bastam para nos fazer compreender a permanência e a difusão sição sangüínea. A outro nível, porém, a sua reação não pode
destas práticas. Explicar, por exemplo, a circuncisão, por ser entendida apenas com recurso aos conhecimentos fisio-
razões higiênicas, pela aversão ao cheiro do esmegma, pela I( gicos. O fato de um indivíduo sentir fome pela manhã, pelo

64 65
meio-dia, pela tarde, e à noite, na hora de jantar, (um enqua- ti 1:-1 r< r ·as orgarucas
instintivas, existem outros fatores atuan-
dramento cultural, assim como o é, em grande parte, a quan- Il'H. O .. prazos de desmame variam enormemente pelas dife-
tidade de alimentos que é ingerida. A fome de um trabalhador I 'nt 'S ulturas, sendo as mulheres, muitas vezes, obrigadas a
braçal não é exatamente idêntica ao apetite de um burguês; rlim .ntar, com seu seio, animais. Algumas culturas manipu-
nem a disposição do italiano coincide com a do francês, à 111111 o prazo de desmame como instrumento de controle da
mesa. É bastante conhecida a resistência dos samurais à sen- reprodução. A transição do seio para alimentos sólidos não se
sação de fome, pela qual não podiam se deixar vencer: deviam, dó também da mesma maneira em diferentes culturas: as
quando famintos, dar aparência de terem acabado de comer, -riuncas Hopi recebem pequenos pedaços de alimentos pre-
palitando ostensivamente os dentes (5, p. 128). viumcnte mastigados por vários membros da família e postos
Também não se pode comer e beber de uma maneira 'ITI sua boca, cedo aprendendo a sugar milho, carne e frutas
qualquer. Há alimentos especiais para cada ocasião. Há ali- ( 5, p. 368), sendo o seio uma das muitas fontes de satis-
mentos proibidos a determinadas pessoas. Há quantidades rllçiio oral que uma criança recebe. A boca é, portanto, um
estabelecidas para cada tipo de pessoas, ou para cada sexo. importante instrumento de comunicação com o mundo e com
Há maneiras especiais de prepará-los, de servi-los e de comê- Il sociedade, mesmo se se abstrair a comunicação verbal: cada
los. Há alimentos de ricos e alimentos de pobres. Há alimentos vez que se lhe nega, ou recebe, um alimento, de tipo particular
com virtudes excepcionais. Alguns alimentos se servem em ou em situações especiais, a criança aprende algo sobre a
horas fixas; outros podem ser comidos a qualquer tempo. As viela.
refeições, em algumas culturas, se fazem normalmente a sós, Tanto é a alimentação uma atividade expressiva que a
noutras com o grupo familiar, ou com toda a comunidade. untropofagia parece ter sido muito raramente praticada com
No ato de comer, alguns membros ocupam uma posição, no fins puramente, ou fundamentalmente, alimentícios (a rigor,
tempo e no espaço, especial. Certos alimentos podem ser talvez nunca, porque nenhuma alimentação humana é apenas
tomados diretamente com as mãos, outros exigem algum ins- instrumental) - a vítima tem sempre uma qualificação espe-
trumento mediador. A alimentação exige, às vezes, purificação cial: um parente, um possuidor de virtudes notáveis de que se
anterior; outras vezes, posterior, e às vezes negligencia essa qu r partilhar, um morto canibalisticamente transformado em
atitude. Certos assuntos podem ser mencionados à refeição, alimento, a fim de evitar o horror de uma lenta e indigna
outros são tabu e muitas vezes se exige silêncio. Há povos que decomposição, dando-lhe a mais honrosa sepultura.
usam mesas e povos que não as conhecem.
Não poucos antropólogos observaram já o estreito para-
Todos esses hábitos, que cada cultura elege a seu gosto I lismo existente entre a prática cristã da comunhão - em
particular, configuram princípios normativos que muitas vezes que se ingerem o corpo e o sangue de Cristo - e os ritos
definem a condição de humanidade. É comum uma pessoa canibalísticos de muitos povos que acreditam estar ingerindo,
não conseguir comer ao lado de outra que observa práticas JlO ato de comer a carne humana, as virtudes veneradas na
diferentes, sobretudo se se colocam em evidência os distan- ·omunidade, e celebrando, por meio desta ingestão, o estreita-
ciamentos sociais e as regras de higiene. Nessas horas, como 111 nto dos laços que ligam, por meio destas virtudes, os
em todas, o estômago se submete ao intelecto. 111 rnbros à coletividade.
A alimentação contém algumas das primordiais doutri- Causou grande repercussão, há poucos anos, a notícia ele
nações a que o homem assiste ao se socializar. Inclinamo-nos que um grupo de sobreviventes de um desastre aéreo, nas mon-
muitas vezes a pensar que o comportamento ao mamar é algo (nuhas geladas dos Andes, na ausência de outro tipo de ali-
instintivo e automático, mas quem quer que tenha tido uma 111 .nto, serviu-se da carne dos companheiros que haviam
razoável experiência com culturas diferentes percebe que, além inurrido. É claro que este gesto resultou da opção entre mo r-

67
rer e viver um pouco mais, já que as possibilidades de sal, o asco que senti foi profundo. O mal-estar explica-se
vação eram remotas. Isto prova não estar esta prática. tão pela inversão total dos termos de uma gramática que nos
afastada, quanto imaginamos, elas alternativas abertas à defesa permite controlar culturalmente os eventos naturais. Ao tor-
da vida, para a nossa sociedade: outros povos, seguramente, ná-Ios crus, a descrição transformou os alimentos em fontes
prefeririam a morte. A ser confirmada a integralidade da de terror e perigo. Nesta situação está sempre o homem em
notícia, mesmo neste caso, não poderíamos considerar o gesto relação aos alimentos, independentemente das definições cul-
como puramente famínico, uma vez que, segundo consta, cada turais particulares: enquanto animais, fazemos parte da Natu-
indivíduo deveria evitar de comer aqueles com quem tivesse reza; mas, enquanto seres humanos, somos partes da Cultura
algum laço de parentesco, e deveriam preferir certas partes do - nossas sobrevivências, enquanto animais e enquanto
organismo a outras. Disso podemos concluir que, mesmo à homens, dependem da ingestão de alimentos, que são, pro-
beira da anomia, a Cultura não se furtou ao esforço da tenta- priamente, elementos da Natureza, e da sobrevivência das
tiva de controlar os processos naturais. categorias intelectuais com que pensamos ° mundo, que per-
As regras alimentares de uma sociedade apresentam, por- tencem ao domínio da Cultura.
tanto, profundas dimensões inconscientes, e residem no âmago Como poderiam os homens manter esses domínios sepa-
de cada ser. Qualquer procedimento agramatical pode trans- rados e a Natureza sob o domínio da Cultura? Lévi-Strauss
tornar violentamente um indivíduo. "Certa vez conheci a (53) observou que os homens sempre empregaram o fogo,
esposa de um comerciante do Arizona que tinha um prazer para fazerem os seus alimentos passarem de um estado cru
algo diabólico em produzir reações culturais. Servia a seus natural, a um estado cozido cultural, função que pode ser
convidados, não raro, deliciosos sanduíches recheados com também preenchida por outros elementos intermediários, que
uma carne que não parecia nem frango nem atum, mas que realizam um "cozimento" simbólico: talheres, copos, pratos
vagamente lembrava as duas. Quando lhe faziam perguntas, e, no caso que acabamos de descrever, palavras ... Os homens
não dava resposta alguma, até que cada um tivesse comido a não são instrumentalmente obrigados a cozer seus alimentos;
sua porção. Explicava então que o que tinha comido não era eles o fazem por razões puramente expressivas: reafirmar, nos
frango, nem atum, mas a carne branca e suculenta de casca- detalhes, as particularidades da estrutura social e, no todo, a
véis recentemente mortas. A reação era imediata: acesso de supremacia da Cultura sobre a Natureza, supremacia esta que
vômitos, não raros violentos. Um processo biológico é envol- as reações emocionais, profundamente incrustadas no incons-
vido numa trama cultural" (39, p. 30). Eu mesmo, quando ciente, procuram proteger, reagindo aos argumentos "cientí-
ficos", "racionais" e "lógicos" que advogam a sua mudança,
criança, senti algo muito parecido ao ler em uma revista uma
pois estão em causa - nas regras dietéticas - a unidade,
descrição, mais ou menos como a seguinte: "um povo do
a integridade e a identidade do sistema social.
hemisfério norte costuma ingerir pela manhã, num estranho
ritual, a secreção de uma glândula de um determinado mamí-
fero, ao qual misturava-se líquido de uma cor terrivelmente A Gramática dos Sexos
negra; figurava, ainda, nessa tétrica cerimônia, uma gosma
que determinados insetos vomitavam, células reprodutoras de Sabe-se hoje que a capacidade de reação erótica está pre-
aves e determinadas pastas gordurosas." Talvez o leitor tenha sente desde o nascimento, num determinado grau, e que esta
percebido tratar-se de uma apetitosa refeição matinal, ao estilo capacidade passa' por um desenvolvimento gradual. Obser-
americano, constituído de leite, café, mel, manteiga, queijos vou-se que durante o primeiro ano de vida as crianças são
e ovos. genitalmente reativas e podem empenhar-se numa espécie de

68 69
masturbação. Pode-se observar, muitas vezes, crianças de idade um certo exagero, proclamar "sou mulher" é quase tão natu- R
variável dedicando-se a brinquedos sexuais e masturbação. Em ral como dizer "sou general do Exército dos Estados Unidos". ~
muitas sociedades as crianças constroem "casas" e brincam de O papel sexual define também um ideal de comportamento e
G'-

"casamento", muitas vezes participando de coitos simulados. que cada indivíduo tentará realizar. Margareth Mead (61,
p. 159) observa que um homem Mundugumor tratará sua
Toda cultura se preocupa com as manifestações da sexua-
única mulher como se ela fosse uma no meio de diversas,
lidade, coibindo-as ou estimulando-as. Algumas sociedades
porque o ideal para o homem bem realizado, nessa sociedade,
impõem a mais estrita monogamia para ambos os sexos, ou
é possuir várias mulheres, enquanto um homem Arappesh,
para um deles apenas, enquanto outras admitem que um
com duas mulheres, tratará cada uma como se fosse a única.
homem se una sexualmente a várias mulheres, ou vários
Algum sexo poderá ser privilegiado com um status considerado
homens a uma só mulher. O homossexualismo foi aceito em
mais elevado pelo grupo social: então o seu órgão sexual será
várias sociedades, como no mundo greco-romano e em certas
áreas do Islã, e terminantemente banido em várias outras. exibido com orgulho, será invejado, poderá ceder o lugar no
Em diversos períodos da história cristã e entre certos grupos ônibus ...
do Tibete, o celibato foi admirado e desejado. Definir. os Todavia, qualquer que seja a forma! pela qual as dife-z: ~
papéis sexuais do homem e da mulher e a forma de relacio- rentes sociedades se apropriem da constituição genética da S,~ <j;
namento de ambos é um problema muito menos biológico do espécie humana, cada sociedade ditará normas para o rela- ;. ~ %
que se tem comumente pensado. cionamento de homem e mulher e associará a cada um ~e
1/'1

Além disso, o fato de um indivíduo ser do 'sexo mas- um complexo de valores e de símbolos: divisão do trabalho, ~ ~ ~
culino ou do sexo feminino não significa apenas que ele possui divisão do poder, divisão de riqueza, dignidade, etc. E claro 2. ~ ~
uma determinada conformação anatômica e fisiológica. Signi- que tais símbolos, normas e valores são suceptíveis de variar !. ,...;
fica também que ele possui um status social cujos limites, culturalmente, não se podendo assumir as postulações de v
direitos e obrigações estão devidamente convencionados e em nenhuma cultura particular como absolutas e universalmente
relação aos quais a comunidade mostra determinadas espec- válidas.
tativas. Cozinhar ou dirigir empresas, caçar ou costurar, Lévi-Strauss (54), seguindo um raciocínio que está des-
cuidar das crianças ou ler jornal, são ilustrações destas espec- tinado a dirigir, por bastante tempo ainda as teorizações dos
antropólogos sociais, demonstrou a necessidade lógica de, em ~ c
tativas, que cada sociedade define à sua maneira. r<.:
todas as sociedades, se interditarem as relações consideradas ~ c.
Em toda sociedade as crianças e os adolescentes se
ajustam ou são enquadrados nessas definições de papéis e as incestuosas, ou seja, a aproximação - por relações sexuais '3l ~
vêem como as mais naturais e as mais desejáveis. A própria ou por casamento - de parentes socialmente definidos como - ~ ~
bipartição dos sexos, a que estamos acostumados, não é con- consangüíneos. Mostrou que a razão da universalidade da ~ s ) ~
siderada universalmente, existindo sociedades que definem uma proibição do incesto é de ordem lógica e sociológica, repre- ~ ~ ~
terceira posição - a que a tradição etnológica resolveu cha- sentando uma operação ao mesmo tempo natural e cultural, Cl () ~
mar berdache - quando um homem assume o status e o já que, embora sendo a interdição universal, o parente especí-
papel de mulher, vestindo-se, pensando e se comportando fico que se proíbe é culturalmente escolhido e definido: o
como tal, e simulando ciclos menstruais e gravidez, sem que conceito de "consagüinidade" não é universal. Contudo, fugi-
seja homossexual ou hermafrodita. Tais, práticas podem 'ser ríamos ao nosso propósito se nos detivéssemos aqui nas
constatadas em diversas sociedades - Crow, Dakota, Zuni, minúcias desta importante demonstração.
Dayak, Chukchee - e os berdaches podem muitas vezes ser Interessa-nos, especificamente, o fato de o tabu das rela-
investidos em funções religiosas. Como afirmou alguém, com ções incestuosas figurar como a mais sólida regulamentação

70 71
do relacionamento entre os sexos na sociedade humana e .utcronômlo, capo 22: "Se houver de entre vós, homem
dentre as mais zelosamente guardadas de qualquer profana- q 11' do noite tenha padecido impureza entre sonhos, sairá
ção. Kluckhohn (39, p. 30-31) relata um incidente ocorrido P Ira fora do arraial, e não voltará, menos que à tarde se
em uma escola pública para índios americanos em que, inad- I 11ha lavado em água: e depois do sol posto tornará a ir
vertidamente, uma professora provocou profundo mal-estar, parti o campo." Dessa maneira, no mundo ocidental, o que
em ambos, ao sugerir que um rapaz e uma jovem dançassem .hama "amor carnal" foi posto em oposição a um "amor
juntos: tratava-se de integrantes do mesmo clã, o que repre- divino", tendo o primeiro sido rebaixado às "sujidades terre-
sentaria - pelo tipo de proximidade corporal e de sugestão n ", e o segundo elevado "às sublimes regiões do trans-
que a dança produz, segundo o autor, que se propusesse que . ndcnte". Há culturas ainda mais rígidas quanto à vida
a professora e seu irmão fossem para a cama juntos. Nesse , xual, mas há também aquelas que consideram - com res-
caso, a indignação virtual da professora e a vergonha que os trições a certas pessoas e a certas situações - o sexo em si
índios sentiram representam reações emocionais igualmente me mo natural e uma das boas coisas da vida. .---
~ <'
padronizadas pelas respectivas culturas. Não é sem razão que Os conceitos de "decente" e "indecente", é claro, são ~ ~
os palavrões de sugestão incestuosa figuram entre os mais socialmente aprendidos - e não há cultura que não tenha o ";. ~ ~
poderosamente ofensivos em quase todas as línguas. 11 \I conceito de decência. Todavia, não é verdadeiro que esteja '\ ~
Reconhecemos, então, que nenhuma sociedade deixa de sempre associado primordialmente com a indumentária e com r-
restringir de alguma forma o comportamento sexual de seus 11 obertura dos órgãos sexuais. Sabemos que existem inúme-

membros. Entretanto, a atividade do sexo fora do casamento I'OS povos que sustentam a nudez absoluta ou quase absoluta.

não é sempre clandestinamente realizada nem inspiradora de 'I'umbém não se dirige universalmente para as funções excre-
culpa. Muitas religiões ocidentais construíram teorias segundo 16das, já que muitas sociedades as vêem como ingênuos e
PO\l(;O especiais. O pudor, para os muçulmanos, como sabe-
as quais o ato sexual é vergonhoso, indigno e desonroso,
devendo ser realizado na obscuridade da noite, em solidão, a 1110', está no rosto, não existindo em relação às pernas e às
portas fechadas e furtivamente, devendo visar apenas à pro- coxas, o que permite com que as mulheres levantem as saias,
criação - mas, mesmo assim, intrinsecamente pecaminoso. A m qualquer pejo, para se coçarem nas vias públicas; para
IA chinesas, o pudor está mais nos pés, que são cuidadosa-
relação sexual foi proibida, em diversos momentos da história
americana e européia, nos dias anteriores ao Natal, nos dias monte ocultos, enquanto os japoneses não têm tabus contra a
nudez, não havendo separação de sexos no banho; algumas
anteriores à Páscoa, antes da comunhão dominical; entre os
itas indus recusam exibir, descobertas, as cabeças; em
judeus e maometanos, durante uma semana antes ej ou depois
da menstruação e durante certas fases da lua; alguns códigos muitas regiões do Brasil, mulher casada de cabelos soltos seria
limitam as relações sexuais a determinada semana do mês considerado "sem vergonhice". O pudor pode estar na barba,
JlO parto, no ato de comer, nas palavras, etc.
lunar; a palavra "masturbação" prende-se etimologicamente
a manu estupro, impurificar com a mão; os comportamentos A noção de decência estende-se também ao discurso,
eróticos em público são contra-indicados e qualquer indício proibindo-se determinadas frases, palavras ou referências.
de excitação deve ser imediatamente dissimulado; as roupas '!'o lavia, nem aqui se encontra universalidade. A este propô-
servem para nos separar dos corpos alheios, mas servem tam- dlo Boltanski (9, p. 38) observou, nas classes populares fran-
bém para nos separar dos nossos próprios; mesmo em situa- l'I'SUN, a impossibilidade de se distinguir o discurso educado
ções em que se permite o nudismo (saunas, vestiários coleti- ("('ulto", "elevado" ... ) sobre a sexualidade, do discurso obsce-
vos, etc.), a nudez dos órgãos genitais é disfarçada e encarada 110, por falta de vocabulário específico para esta distinção. Em
111d1lS, li na maioria das sociedades, o discurso obsceno, s6
com uma artificial naturalidade.
73
72
é considerado ilícito em relação a determinadas pessoas (sogra, podem ser abraçadas e apalpadas, na medida em que o recato
mãe, etc.) ou em determinadas situações (templo, salas de que comanda as relações entre os sexos, especialmente em _
c.
aula, etc.) - às vezes, inclusive, de maneira não simétrica, público, é suspenso" (14, p. 139-40). i ~
~
"c- já que a outra pessoa pode não ser obrigada a uma conduta . A esta altura, par~ce claro que o que é sexualmente ~ ~ C;
igual perante a primeira, o que é muito comum, entre nós nas estimulante em um SOCiedade pode exercer o efeito exata- ~ ~ ::.'
relações hierarquizadas. :É possível, ainda, acontecer de mente contrário em outra. Há, na África Central, um ideal de-- 0\, S
aquilo que deve ser reprimido e escondido no cotidiano, estética feminina que identifica e beleza com a obesidade, ~ ::
por ser considerado indigno e inferior, deva ser ritualmente sendo a moça, à época de sua puberdade, submetida às mais ?
liberado, mostrado e dito, em certas ocasiões, como nos diversas técnicas, capazes de fazê-Ia o quanto mais gorda; ~
festejos carnavalescos, nos trotes estudantis e nas festas de alguns povos na África do Sul costumam arrancar os incisivos ~
casamento. superiores; outros se tingem de diversos m~dos e alguns têm (t'
Existem freqüentemente crenças de teor mágico asso- o hábito de arrancar as sobrancelhas e substituí-Ias por outras
ciadas com o sexo. Em muitas sociedades ele é considerado que saem quando se lava o rosto, ou de beber vinagre para
perigoso, ou a relação sexual perigosa, se executada em ficar com: a cor pálida que encanta os poetas ...
determinadas circunstâncias. :É comum temer-se que as se- Sociedades _inteiras ignoram o orgasmo feminino, e os
creções sexuais sejam utilizadas com fins mágicos contra. a Trobriandeses não reconhecem no orgasmo o clímax da rela-
pessoa de que emanaram; também é freqüente a crença de ção 'sexual, como o fazemos, considerando-o como apenas
que as relações sexuais com mulheres grávidas ou menstruadas uma entre um agregado de experiências agradáveis (48, p.
são capazes de efeitos nocivos: podem provocar impotência, 185). Em algumas sociedades de rígida organização militar ou
esterilidade, produzir monstros ou desgraça generalizada. de grupos de idade, em presídios ou em situações de guerra,
Contudo, é exatamente por causa do mana, que em são comuns as práticas homossexuais, admitidas expressamente
geral se lhe reconhecem, que as relações sexuais - muitas por muitas sociedades e submetidas inclusive às regulamenta-
vezes proibidas em nome da separação entre o Sagrado e o ções convencionais (proibição do incesto, etc.) que muitas
Profano - são sacralizadas por certos ritos. As religiões ate- vezes impedem que o indivíduo seja considerado como um
niense, romana, hndu e muitos povos primitivos atribuíram pervertido ou aberrante e, portanto, não lhe causando trans-
sacralidade ao ato sexual e o incluíram em rituais. O tantrismo tornos íntimos e não prejudicando sua atividade heterossexual.
indiano ilustra corro um ato fisiológico pode ser erigido em Sociedades há, também, que pura e simplesmente desconhecem
ritual e valorizado como uma espécie de técnica mística: não a homossexualidade como categoria do pensamento coletivo.
se trata mais, aí, de um ato fisiológico, "mas de um rito Cada sociedade tem o que se poderia denominar de sua
místico: os parceiros não são mais seres humanos, mas estão ctnogenética: já se pensou que os homens e animais eram
desligados e livres como deuses... pelos mesmos atos que gerados por um barro leitoso produzido no interior da terra;
fazem queimar certos homens no Inferno durante milhões de que o sêmen era a espuma do que havia de melhor no nosso
anos, os iogues obtêm sua eterna salvação" (26, p. 144-5). sangue, uma parte da matéria constitutiva do cérebro, ou um
Nas ilhas Fidgi, conhecem-se ritos, no curso dos quais se ornpósito de tudo a que entra na formação do corpo; a
realizam exatamente os atos que mais rigidamente se consi- pr dução de crianças pode ser atribuída a espíritos, à espuma
deram como sexualmente proibidos, ligados às interdições de d mar, aos astros, a sonhos, a animais, a plantas e ao acaso.
incesto; Roberto Da Matta chamou atenção para o fato de S Pilaga, da América do Sul, crêem que a ejaculação do
que no carnaval brasileiro há uma "suspensão de normas que homem projeta um homúncuIo completo no interior da mulher
comandam as relações entre os sexos" e "que. .. as mulheres que aí ele se desenvolve até estar suficientemente grande

74 75
para sair (7, p. 150). Os Arapesh não imaginam que o tra- forma, a posiçao que os europeus e americanos pensam ser
balho da paternidade fisiológica se resuma ao ato inicial e biologicamente normal para as relações sexuais, não é obser-
que o pai possa ir embora e voltar nove meses depois, consi- vada em várias outras partes do mundo e talvez não tenha
derando tal forma de paternidade impossível e repulsiva, pois sido usada muito frequentemente na Grécia e em Roma anti-
a atividade sexual é considerada importante para, a alimen- gas: nesse ponto, as possibilidades são muito mais numerosas
tação e formação da criança durante as primeiras semanas no que a nossa capacidade de imaginação.
ventre matemo: a criança é produto da contribuição idêntica
Lévi-Strauss observou que "todas as sociedades conce-
do sêmen e do sangue (61, p. 55-6).
bem uma analogia entre as relações sexuais e a alimentação;
O caso dos trobriandinos foi bastante polemizado nos
mas, conforme os casos e os níveis de pensamento, ora o
círculos antropológicos. Leach estranhamente sustenta, em
homem, ora a mulher, ocupa a posição do que come e do
cada um desses trabalhos (43, 44), posições absolutamente
que é comido" (55, p. 156), a analogia que se manifesta em
antitéticas acerca das teorias genéticas desses indígenas,
um grande número de língua, ao nível do vocabulário, em
admitindo uma de suas posições, que eles desconhecem a
que se aplicam palavras idênticas para designar os atos de
paternidade fisiológica e atribuem o papel da produção de comer e de manter relações sexuais: "em Yoruba 'comer' e
crianças a um espírito que penetra no ventre de uma mulher 'casar' se dizem por um único verbo, que tem o sentido
e .aí se transforma em criança, ficando os homens completa- geral de 'ganhar', 'adquirir'; uso simétrico ao francês, que
mente excluídos do processo (crença, aliás, que não parece aplica o verbo consommer ao casamento e à refeição. Na
muito distante do que desejam alguns mitos cristãos). Para os língua dos Koko Yao da península do cabo York, a palavra
Lacker, são os homens que depositam uma "semente" no ven- Katakuta tem o duplo sentido de incesto e canibalismo, que
tre de uma mulher, semente esta que deve germinar, crescer são formas hiperbólicas de união sexual e de consumição ali-
e se transformar em criança: para eles, supor que entre a mu- mentar: pelo mesmo motivo, a consumição do totem e o
lher e a criança existe algum laço de consanguineidade, cor- incesto se dizem da mesma maneira em Ponapê; e, entre os
responde a um absurdo semelhante ao de supormos a existên- Mashona e os Matabele da África, a palavra totem tem igual-
cia de algum víncu..o genético entre um pinto e um ninho (43). mente por sentido 'vulva da irmã', o que fornece uma verifi-
Para algumas sociedades, são pais tantos quantos tiveram rela- cação indireta da equivalência entre copular e comer" (55,
ções sexuais com lima mulher, e, para outras, as crianças são p. 130); "os Tupari designam o coito por locuções cujo sentido
trazidas por cegonhas que as carregam peio bico. próprio é 'comer a vagina' (Küma Ka), 'comer o pênis' (Ang
. Os Mundogumor consideram as relações sexuais que exe- Ka). O mesmo se passa em Mundurucu ... Um mito Cashibo
cutam no mato, de forma "atlética" e "violenta", muito mais (M160) relata que apenas criado o homem, pediu de comer,
satisfatórias que as que realizam cautelosa e silenciosamente e o Sol o ensinou. . . plantar milho. .. e outras plantas comes-
nos cestos em que dormem, e mais atraentes ainda aquelas tíveis. Então o homem perguntou a seu pênis: 'E tu, que
queres comer?' O pênis respondeu: 'o sexo feminino'" (53,
que se realizam em plantações dos outros, estragando-lhes a
p. 266). O tema da vagina dentada, que encontramos na mito-
colheita de inhame (61, p. 213). Muitas tribos da Nova
Guiné consideram suas hortas lugares quase tão Íntimos como logia de diversas regiões do mundo, parece confirmar a hipó-
suas casas, considerando-as, como fazem os Arapesh, o lugar te 'c; aparece em muitas fórmulas populares, no Brasil,
apropriado para as relações sexuais (61, p. 44). Muitos povos írcqüentemente sob forma jocosa; além disso, as revistas por-
consideram que as relações sexuais devem ser entretidas ao no ráficas e a imaginação erótica popular brasileiras (graffitti,
ar livre e à luz do dia, não sendo necessário, para vários, por exemplo) estão cheias de referências às práticas oro-
escondê-Ias das crianças ou das outras pessoas. Da mesma gcnitais, sem falar no próprio vocabulário ("comer", "passar

76 ., 77
\I'~ct;.o
'fC C- ~. '"()\
-P~I.A~
e- O -
--I.~
na cara", "gostosa", "papar" ... ), na atribuição de elevado
~&';.
manifestam com referência ao sexo: ambiguamente situado ~ ~
valor erótico aos seios da mulher (que, evidentemente, estão dentro do controle social e fora dele, põe em perigo as ~
associados à alimentação) e à conjunção oral com os mesmos, possibilidades de existência de um universo simbólico estru-~'" ~
e, ainda, na valoração das práticas anais, já que ânus é parte
do sistema digestivo.
turado e de uma taxa de natalidade adequada, à estrutura-je ~ t
social. ~ e-
Entre os Tikopia e os Nuer, diz Lévi-Strauss (55, p. O sexo está entre a Natureza e a Cultura. Em nome da -= l'
130), citando Firth e Evans-Pritchard, o marido se abstém de necessidade de mantê-Ias separadas, as culturas devem con- C' e,
consumir os animais ou as plantas proibidas a sua mulher, trolá-Io - problema para o qual cada uma obteve a sua ~..•."'~
temendo que o alimento, que contribui para a formação do solução. Algumas, encarando-o de frente; outras, como a c: •.•••
esperma, fosse introduzido, por esse meio, no corpo da mulher. sociedade ocidental, confinando-o a obscuros domínios do
1">
~ (V
("

Os Ndembu caracterizam o intercurso sexual como "mel doce", pensamento, numa tentativa de preservar certas posições social- ~
consideram "salgados" os fluidos sexuais e pensam que o mente valorizadas pela tradição (e, portanto, tidas como
esperma é uma espécie de sangue misturado com! água; vêem, particularmente sagradas para serem diminuídas pela submissão
então, uma conexão entre "sangue", "sêmen", "sal" e "inter- à Natureza) do seu contato nefasto (os sacerdotes, os presi-
curso": para os Ndembu, no contexto de alguns rituais, tanto dentes, os reis, não são pensados no ato de copular, e também
o comer sal, como o manter relações sexuais, estão cercados os próprios pais, cujas relações sexuais admitimos com certas
de tabus (69, p. 234-5), o que, de forma direta e indireta, dificuldades e classificamos como do tipo "papai e mamãe")
manifesta a associação entre a alimentação e a manutenção ou, ainda, afastando-o de seus arredores, empurrando-o para
de relações sexuais. detrás das portas fechadas, para o "mato", para - as noites
Esta discussão, talvez sob forma não tão específica, apa- (que são períodos intermediários entre um dia: e outro, em
receu nos tratados clássicos de Etnologia, envolvida na pro- que o ritmo e a efervescência da vida social diminuem),
blemática das relações entre as proibições alimentares e as referindo-se às relações sexuais como "dormir" (porque quan-
regras de exogamia - fundamentalmente o mesmo problema do se dorme se está, de certa forma, "fora" da vida social),
a que nos referimos acima ao narrarmos o episódio dos sobre- ou associando-as a "escuro", "escurinho" (o que cumpre K
viventes do desastre dos Andes: desde que relações sexuais
e alimentação estão simbolicamente associadas, o comer a
carne de seus parentes significaria, num plano simbólico e
inconsciente, para os sobreviventes, o cometimento de uma
prática incestuosa. Afastado o tabu do canibalismo, a inda-
estruturalmente a mesma função, uma vez que - para um
sociedade que enfatiza a visão na sua codificação do mundo
- onde não há luz, simbolicamente não há informação, e,
onde não há informação, as relações sociais obscurecem).
Todavia, qualquer que seja a solução que uma sociedade
qS- -~
e, %;
gação atual recairia sobre qual seria o último a ceder: o amor adote para o problema, aqueles que observarem suas fórmulas ~ v.
à vida, ou horror ao incesto? tenderão a se considerar "felizes" por seguirem um procedi- ~ o
O sexo é duplamente social - por um lado, é o único mento que acreditam "natural" e "justo": como alguém ~
instinto cujo funcionamento implica no estímulo do outro, observou, a mulher vitoriana, que não esperava ter prazer nas ~
como observou Lévi-Strauss (54, p. 45); por outro lado, é relações sexuais, e que efetivamente não tinha, não era mais "T'

o "aparelho" responsável pela perpetuação do grupo social. frustrada que as suas descendentes que acham pouco satis- 6...
Todavia, como a alimentação, o sexo é fundamentalmente f'atórias as atividades que elas consideram como capazes de
uma atividade natural, e as leis a que está submetido iludem Ihes fornecer prazer.
o esforço social de controlá-Ias. Eis a razão central da preo- De qualquer forma, quer naturalizando a Cultura e
~ cupação que as sociedades, de uma maneira ou de outra pensando que as normas sociais correspondem objetivamente

1"' 78
à "natureza humana", quer culturalizando a Natureza e pen- status: em muitas sociedades, os neófitos recebem novos nomes,
sando que o homem é um ser aprimorado, "racional", "lógico", ou são conduzidos no colo ou pelas mãos, como se fossem
<" > "feito à imagem e semelhança de Deus", pela ação da Civili- bebês; outras vezes, aprendem a falar uma língua nova ou
zação - ou realizando simultaneamente as duas operações - choram como recém-nascidos. Em diversas ocasiões, espera-se
as sociedades convencionaram práticas e incutiram crenças que dos indivíduos que mudam de posição, que sejam capazes de
têm muito menos do que comum ente se imagina a ver com o tolerar torturas e castigos que se julgam como situados além
corpo e com o sexo propriamente ditos. das resistências da categoria anterior: exposição ao frio,
picadas de insetos, surras, abandono, jejum ...
Não há dúvidas de que existem fenômenos biológicos que Tais ritos tratam de resguardar a sociedade do perigo
coincidem com o que chamamos de "puberdade" ou "adoles- representado pelos indivíduos que nesses estados intersticiais
cência". Todavia, umas culturas os ignoram, enquanto outras se encontram: são, por isso, rebaixados, humilhados, reduzi-
prescrevem atitude de indiferença' diante dos mesmos. Para dos a matérias amorfas capazes de adquirir as formas que a
certas, a puberdade é importante em relação apenas, a um sociedade lhes quiser impingir, ou então, torturados, espan-
dos sexos. Em algumas culturas, a primeira menstruação é cados, castigados, como punição pela mancha de que são
objeto de festividades públicas, ao passo que, para outras, é portadores. "..
um acontecimento íntimo e vergonhoso. Acontece o mesmo, Entre nós, a adolescência corresponde a uma dessas _ S
com respeito ao rapaz, em relação à primeira emissão de categorias. Representa uma categoria cujo conteúdo é ele mes- ~ ~ g
esperma, em boa parcela das sociedades conhecidas. mo visto como ambíguo, já que o adolescente é aquele que ~ ~
Para as culturas, tudo o que evolui, tudo o que muda, já não é criança, mas ainda não é adulto. É claro que muitas ~ r~
deve ser previsto e enquadrado em categorias, de forma que dificuldades que costumamos associar aos adolescentes têm ; ~ 0-,
qualquer mudança seja uma passagem de uma categoria a sua origem exatamente no fato de o seu papel não ser defi- ; 8~
outra. Entre nós por exemplo, um indivíduo pertence à cate- nido com clareza: ora deve se comportar como adulto, ora C'" >
goria dos que e tão sendo esperados mas ainda não nasceram, como criança. E procuramos racionalizar esta atitude de
passam para a categoria dos homens vivos, são batizados e ambigüidade, recorrendo a argumentos de ordem anatômica e
incorporados -, categoria dos seres sociais (status, religião, fisiológica: os problemas dos jovens decorreriam, então, das
nomeetc.), assam a "rapaz solteiro", casam... e, final- mudanças biológicas que têm lugar em seu organismo.
mente, deixa
! o mundo dos vivos para ingressar no reino Acontece, em primeiro lugar, que a puberdade física é
dos mortos. l2\ssim como a sincronia, a diacronia está sob extremamente difícil de ser fixada cronologicamente e os seus
o > controle e tudo nela tem o seu lugar. sintomas parecem variar com os diferentes costumes, hábitos
~ ~ t<I Contudo, os limites que separam uma categoria da outra, alimentares, condições climáticas, profissões, hereditariedade
"'2 ~...••. Á~ por não pertencerem completamente nem a uma nem a outra - entre outros fatores - tanto para os indivíduos do sexo
-c
o ,-c. -,l' categoria, tendem a desafiar o sistema de classificação e a feminino, como para os membros do sexo masculino: apare-
17', o li ameaçá-lo de crise: daí toda sociedade estabelecer procedi- cimento de barba, secreção de múcus, emissão de esperma,
b 6 8 mentos rituais específicos, que são operações destinadas a crescimento, aparecimento de regras, crescimento dos seios e
~ Ir> :> exercer um certo grau de controle sobre estes momentos tran- da bacia - não podem ser datados consensualmente. Em
.J) ~ o sitórios e intersticiais. segundo lugar, o que se espera, em cada cultura, dos indiví-
'5. Circuncisões, subincisões, mutilações, tatuagem, bênçãos, duos, durante as diferentes fases de sua vida, não são, absolu-
~ C" são artifícios freqüentemente usados para assinalar a morte tamente, as mesmas coisas, atividades ou responsabilidade:
(,0.." em relação a um estado anterior e o nascimento para um novo sntre nós, por exemplo, a idade em que se permite aos jovens

80 81
o casamento não coincide com a sua puberdade fisiológica, ao No que diz respeito ao sangue menstrual, muitas vezes
passo que em outras culturas a puberdade se celebra com o foi associado a "maldição", determinando sentimentos de
casamento e em algumas o casamento antecede a puberdade. v 'I" nha ou culpa. Associa-se freqüentemente à crença de que
Portanto, os fatos fisiológicos da adolescência são inter- 11 comida poderia se estragar ou apodrecer se uma mulher
pretados culturalmente, e a cada interpretação corresponderá, menstruada a tocasse, à proibição de praticar ato sexual, a
no espírito dos indivíduos, uma atitude particular em relação xcrcícios físicos, a banhos de mar, a lavar a cabeça, a pisar
a esta fase da vida orgânica e aos fenômenos biológicos e rn escamas de peixe, a andar descalço, a comer alimentos
sociais a ela associados: os dados etnográficos deixam supor, ácidos, a tomar banho frio, a comer peixe, a tocar em flores,
por exemplo, que são muito reduzidas as possibilidades de a tomar gelado, a comer ovo, a comer galinha choca. Em
as transformações biológicas que operam ao nível do organismo muitas sociedades, a mulher menstruada é segregada em
serem responsáveis pelas perturbações nervosas e comporta- lugares especiais, e obrigada a se alimentar apenas de alimentos
~ mentais com que comumente tentamos definir a adolescência. .rus.
z: ~ A puberdade cultural, portanto, não coincide com a Em certas sociedades, a primeira menstruação é objeto
'"
C'
..•..• puberdade fisiológica, e são, pelo contrário, coisas essencial- de importantes cerimônias, e, em outras, um acontecimento
C.
e-
ti> mente diferentes, já que um organismo evolui enquanto as íntimo que deve ser escondido. A mulher menstruada é muitas
....•.• Õ sociedades classificam. As cerimônias, comportamentos, cren- vezes considerada doente e fora de seus juízos normais _
c ~ 6'\
ças e emoções ligadas a puberdade, na nossa sociedade como irritadiça, nervosa, mal-humorada e tendo suas faltas justifi-
'"
> f'
1» em outras, antes de resultarem de determinações do aparelho cadas no trabalho. Outras vezes, está formalmente proibida de
A ~ natural, celebram um fato cultural. trubalhar, proibição que pode também estender-se a seu
r- <'"' marido, e é comum, entre muitos povos, a mulher definir a
r- C
.",. o
CJ, r-
menstruação como sendo a impossibilidade de penetrar em
tA
-n
G o sangue está sempre presente na vida social. A ele se (n um templo.
"TI
~)
reconheceu, muitas vezes, um misterioso poder de catalisador ó ~ O sangue menstrual é muitas vezes considerado vene-
C'
~ social: mana. Os primitivos trabalhos de Etnologia deliciavam ~ ~ DOSO. Eis, por exemplo, um texto surpreendido em um livro
-e- ol'I!. os seus leitores, desenhando quadros fantásticos de povos que ~ que se propõe a difundir educação sexual: "Não é totalmente
r) '<)
~> se regalavam com a ingestão de sangue -
e
especialmente o ~ infundada a crença popular de que o sangue menstrual é
humano - como capítulo específico da fascinante história ;- tóxico e por isso em tais dias a mulher não deverá tocar em
e-
1J que a antropofagia constituía para os ocidentais. Todavia, a ~ flores, frutas, etc. O sangue - e não só ele como o suor, o
atitude ?iante do san~ue é culturalmente variáv~l: os Bororo CD ~ hálito, etc., contêm durante a menstruação um tóxico, a
se consideravam poluídos em alto grau, ao mmimo contato ~ () menotoxina, capaz de danificar flores, frutas, conservas, etc.
com ele, enquanto os Nambiquara consomem suas caças meio '1; t"'- orno nem toda mulher elimina uma quantidade suficiente
cruas e sangüinolentas (53, p. 303-4). Entre os Manus, não r para fazer mal, deverá sempre experimentar se durante a mens-
existe palavra para virgem e o sangramento proveniente da truação suas excreções corporais são venenosas." Algumas
ruptura do hímen é considerado da mesma forma que a vezes, é perigoso para algumas pessoas particularmente, e
menstruação. Às vezes, é considerado impuro, e às vezes Jnofensivo em relação a outras.
cumpre em ritos de purificação a mesma função que a água. Todavia, o pavor pelo sangue, e pelo sangue menstrual
Em algumas ocasiões se lhe reconhece um valor regenerador particularmente, não é universal. Para os Walbiri, o sangue
e o vêem como um princípio vital; noutras oportunidades, o menstrual não precisa ser evitado e não se acredita que o
têm como portador de destruição e de desgraça. . ntato com ele possa trazer algum perigo (53, p. 55);

82 83
D -\
r; ~-
A. C

algumas sociedades empregam o sangue menstrual como remé- As técnicas obstetrícias também variam segundo as culturas. ".: ;:.
dio para determinadas enfermidades. Os Idatsa acreditam que Em algumas sociedades, as mulheres dão à luZ em pé. Em ~_ ~
as mulheres menstruadas exercem benéficas influências na certas sociedades, temperatura, limpeza, luminosidade, são de- c:;:
caça às águias e influências negativas em relação a qualquer talhes considerados sem importância. Algumas adotam técnicas ~
outro tipo de caça (55, p. 73-4). cirúrgicas para apressar ou facilitar o nascimento, outras as
A exemplo da menstruação, a gravidez é também, quase desconhecem. Para alguns grupos, o parto é um momento de
sempre, objeto de atitude ritual. Em Bali, por exemplo, mens- dramática dor e sofrimento físico; para outros, a dor física
truação e gravidez são cerimonialmente desqualificantes: as ~ão se inclui no problema. Algumas técnicas culturais de parto
mulheres grávidas ou puérperas não podem entrar no templo incluem a presença de outras pessoas (médicos, parteiras,
de alguns deuses nem podem chegar perto de um sacerdote curandeiros, parentes, etc.), enquanto outras são exercidas so-
(62, p. 137). Em algumas sociedades, estão impedidas de litariamente pela parturiente, muitas vezes sob a interdição de
o fazer diferente. ~ ~
trabalhar e devem observar uma alimentação especial. Toda-
O parto e o recém-nascido
O; ~~
via, esses impedimentos são de ordem ritual, uma vez. que são tidos freqüentem ente como o-
:ç- Ó
poluídos ou poluígenos - Levítico, 12: "se uma mulher, tendo .
há sociedades que os desconhecem
prescrevendo aos homens
e outras que os invertem,
o que algumas esperam das usado do matrimônio, parir macho, será imunda sete dias e t-
mulheres. estará separada da mesma sorte que nas suas purgações mens- !~
Da mesma forma, o parto requer uma atitude especial, tt:uais. ~o oitav~ di~, será o .~enino circuncidado. E ela ficará (J 't
já que, para muitas sociedades, coloca a mulher em estado de ainda tnnta e tres dias a purificar-se das conseqüências do seu Ô" é
impureza. Cada cultura prescreve práticas particulares: no norte parto. Não tocará coisa alguma santa, nem entrará no san- é i
de Nigéria, a família deve ter consigo a placenta e todo o san- t~ário, até s~ ?cabarem os dias de sua purificação. Se ela parir ~ ~
gue perdido durante o parto, às vezes para queimá-los e im- gemeos, sera imunda duas semanas, como nas suas purgações e o
pedir eventuais práticas mágicas- contra a parturiente e seu menstruais; e ficará sessenta e seis dias a purificar-se das con- t c;.

filho. Em algumas sociedades o parto deve se realizar em . eqüência do seu parto". E uma fórmula da liturgia do ba-
lugares pré-determinados (fora da aldeia, na residência do irmão tismo cristão dizia: "Afasta-te, espírito imundo da alma desta
da mãe, etc.) sob pena, às vezes, de a criança não poder ser criança". Mencione-se, ainda, o hábito largamente difundido
aceita como membro da comunidade, ou não poder viver. No de se lavar a criança logo após o parto.
Japão os nascimentos são tão reservados quanto as relações se- Uma das mais significativas invariâncias neste terreno é .,.. '\:)
xuais, estando as mulheres interditadas de gritar durante o tra- o ~ato de .que talvez em nenhuma sociedade conhecida a criança ~ "C\ ~;.

balho de parto, para não dar ao ato algum caráter público (5, seja considerada
. um membro completo da sociedade apenas c t o~
~~
p. 216). Algumas vezes, as mulheres ficam sujeitas a determi- em virtude do nascimento: é necessário incorporá-Ia por pro- ~ ~ ?~
nadas precauções, devendo observar resguardo, enquanto, em .cdimentos simbólicos e dar-lhe um lugar particular no sistema ~~
outras sociedades, ambos, ou apenas o pai, devem tazê-Io. Os social, aplicando-lhe um nome, atribuindo-lhe papéis, Iazen- ~ e 6
partos de gêmeos são festivamente celebrados em algumas cultu- do-a, enfim, nascer socialmente. Trata-se de procedimentos ~ l.. I:s
o G\ ~
ras,e considerados de péssimo augúrio em outras. Um parto rituais destinados a promover a sua transição do estado de c
múltiplo poderá ser motivo de orgulho para um ocidental e
Natureza para o estado de Cultura. S ~ t.l>
~ ~ ~
para um Bakundo do vale do Congo, e de vergonha para uma A exposição da mulher à periodicidade biológica fez com" '>,>Js '"
mulher Murgin, que sentir-se-á como uma cadela. Entre as po- que em muitas sociedades ela fosse considerada como fonte t·
pulações do delta do rio Níger, a norma é que morram a mãe ele poder religioso ou mágico: outras sociedades tornaram-na
ufa .tada desses poderes e inferior no escalonamento da dig-
e os gêmeos.

84 85
nidade religiosa. Todavia, todas devem assumir e.m relação à ociais, de um sangue "mau", que brota do corpo em desafio
mulher uma atitude capaz de dar conta de suas características à vontade humana, que comove e amedronta. Por detrás da
biológicas, mesmo que esta atitude seja o desinteresse e a des- distinção entre sangue "bom" e sangue "mau", a distinção
preocupação em relação a estas funções. Fundamentalmente, entre Natureza e Cultura, já que o primeiro é culturalmente
a mulher, mais que o homem, tem a potencialidade de funcio- produzido, enquanto o segundo emerge de forças naturais.
nar simbolicamente como perturbador dos sistemas sociais de Cada cultura tem a sua maneira de resolver o problema
classificação, uma vez que é um ser da Cultura, ostensivamente da dualidade da natureza feminina: algumas exaltam a mulher
submetido a processos naturais que escapam aos esforços que nessa fase; outras, as proscrevem, enquanto outras ainda es-
o aparelho cultural dispende para controlá-los. Nesses períodos, colhem uma alternativa intermediária de exaltá-Ias em um nível
a própria mulher coloca-se fora da Cultura e se aproxima da e castigá-Ias em outro. Parece que as culturas de tradição oci-
Natureza (o que se vê nas inúmeras práticas de fazer com que dental escolheram a terceira possibilidade: exaltar, no plano
a mulher se retire da aldeia, coma alimentos crus. .. etc.). ideológico, a maternidade como o acontecimento "mais subli-
Nessas oportunidades, seu estado fisiológico e seu estado me" e submeter, no plano psíquico, a mulher, à tortura de
social são incompatíveis. Às culturas se abrem, para solucionar enjôos, desejos, etc. Já que em muitas culturas o enjôo matinal
o problema, três alternativas básicas: banir a mulher, esconder no período da gravidez é desconhecido, resta-nos supor ser
a menstruação, ou desconhecê-Ia, tratando a mulher nessa fase uma manifestação cultural típica de uma sociedade particular.
como o faz normalmente. Todavia, as três alternativas repre- O enjôo da gravidez, assim como os distúrbios psicossomáticos
sentam a mesma atitude fundamental, que é o reconhecimento, que associamos a ela e ao estado puerperal (que inclusive pode
por ação ou omissão, desses processos como sendo, em última
funcionar como atenuante de penas), pode muito bem ser re-
instância, rebeldes ao controle social e passíveis de serem su-
sultante dessa conjugação agramatical a que é obrigada a mu-
primidos apenas ao nível da consciência.
lher a se submeter: ser um ser da Cultura, tê-Ia como o má-
A mesma dualidade fundamental aplica-se ao recém-nasci-
ximo valor, e estar escravizada à ação de inarredáveis processos
do, que também está simultaneamente na Natureza e na Cul-
da Natureza.
tura (apenas que a dualidade para a crian a se dá na diacro.ni<},
en uanto ue ara as mulheres se dá na sincronia . Diante
dessa conjunção lógica, não é por acaso que as mulheres são
-e quase universalmente consideradas como indicadas e adequadas Feiticeiros, Médicos e Semiólogos
para as tarefas da primeira educação: estando mais próximas
da Natureza que o homem (em virtude de estar mais sujeita Supomos freqüentemente que se uma criança, ou mesmo um
a seus processos), a mulher é o personagem estruturalmente adulto se alimenta diferentemente do que prescrevem as normas
articulado para a realização, como mediadora, da transição sociais, ou se esquiva de qualquer outro cuidado corporal
da criança do reino da Natureza para o domínio da Cultura. que pensamos necessário, isto destruirá sua saúde. Mas, em
Aos homens, estariam reservados os níveis mais elevados n muitas sociedades, as crianças recebem alimentos toda vez
sofisticados da tarefa socializadora. que choram, sem que isto Ihes traga qualquer prejuízo à saúde.
O sangue é signo da possibilidade de violência, se não se Ensinamos a nossos filhos que os horários de comer' e de
tomam as precauções devidas. Não é por acaso que muitas dormir, que os hábitos de tomar banho diariamente e de es-
sociedades distinguem o sangue voluntariamente derramado, o covar os dentes após as refeições, ou de lavar as mãos quando
sangue controlado, a que atribuem propriedades vivificantes e e chega da rua, são de fundamental importância para a exis-
benéfica, um sangue "bom", que serve para selar alianças tência de uma estrutura biológica saudável. Entretanto, muitos

87
povos atingem graus de saúde comparáveis ou superiores aos di 111 I, janelas abertas para respirar ar fresco, achando que
nossos através de convenções completamente diferentes. 111pu 1'111 perigo as suas saúdes e as dos seus bebês (28,
:É certo que os índices de longevidade variam com as so- p, J li). O . No Japão, a proporção de loucos reconhecidos
ciedades, mas isto não significa que a sociedade ocidental seja ,',IIII\) l/li,' é basicamente a mesma registrada nos Estados Uni-
a que melhores resultados tenha obtido neste terreno. Dentro dor, IllUA ti tolerância é maior e a taxa de internação em hos-
dela mesmo, sabemos que a estimativa média de duração da p I ti psiquiátricos é muito menor; e se podem constatar va-
vida varia com enormes discrepâncias entre os indivíduos das I /I ' ) H nos Indices de internamento em diferentes períodos da
classes superiores e das classes populares. Da mesma forma, "L 1()I'ill de uma sociedade (29, p. 90), A mais simplesobser-
as doenças incidem diferentemente sobre os diversos estratos I '110 '111 torno de nós não deixará dúvidas de que a atitude dos
da população, e existem doenças típicas de determinadas classes I' unllturcs de um doente, em relação a ele, difere da dos demais,
e de determinadas sociedades. di numcira notável.
Cada sociedade determina, de certa maneira, quanto tem- Sabemos que as culturas valorizaram e tornaram social-
po os indivíduos viverão e de que forma normalmente deverão ruoutc necessários alguns tipos humanos que elas próprias con-
morrer. As próprias categorias de morte legítima e de causas 11 rnvam doentes, mas em que viam, por isso mesmo, um
de morte são entidades construídas culturalmente, e algumas no de especialidade e de importância: corcundas, cegos,
sociedades não acreditam em "morte natural", devendo cada "pllvl i 'os, mudos, etc. Os Xamãs da Sibéria costumam , ao
uma ser atribuída a uma vingança, ou atos de feitiçaria. Não IIHIIIOH m certas fases, ser loucos, irresponsáveis, esqueléticos,
obstante, é possível que todas as culturas reconheçam como IIldtos a ataques de catalepsia, e visionários (4, p, 176) - e
patológicas algumas mesmas manifestações - o que nos ajuda 111'111 por isso deixam de ser objetos de honrarias e respeito,
a compreender que, quando divergem, fazem-no por imposição ('.11110 stcs atributos variam culturalmente, podemos facilmente
de particularidades de suas estruturas sociais. ,"lll'IlIir que o que lhes concede virtudes mágicas não são pro-
Assim como as doenças, a medicina varia através do tem- 1'111111nte as suas peculiaridades físicas, mas a atitude da
101 IIvldade diante delas, assim como aqueles que são consi-
po e do espaço. Se a nossa medicina nos parece ter atingido
um sucesso que consideramos largamente satisfatório, isto não Ihw/ldoll doentes o são por não receberem apoio das institui-
pode, contudo, nos impedir de constatar que outros sistemas r /l sociais para as suas características individuais: são doen- ~
médicos possam ter atingido resultados comparáveis, mesmo nuo porque o sejam, mas porque assim são considerados. '6
C" c
porque, a rigor, toda medicina parece amparada pela natureza "I) ença" e "doente", portanto, são categorias sociais e 5, ~ -;
mesma da doença, já que o destino da maioria delas é o de 11 se esperar que cada cultura lhes dê explicações próprias. ~ ~ I:-
serem superadas pela própria reação do organismo: morremos () Indígenas do sudoeste da América do Norte compreendem \lio ~'t"!> -
apenas uma vez e, em geral, de apenas uma doença; as outras, 11 do nças como resultados de uma perturbação da ordem de ~:;
são curadas - pelo organismo, ou pela medicina? I lnolonamento dos homens com os animais e vegetais: revol- ~,v.
Não somente variam as doenças e as medicinas, como IlIdos iontra os homens, os animais os atacaram com doenças, 11
também variam as atitudes dos pacientes e da comunidade em uqu 11110os vegetais aos homens se aliaram, dando-lhes os
I 111dias; para eles, cada espécie de doença se deve a um
relação a elas. Enquanto os americanos pensam que estão mal
quando estão doentes, os Navaho acham que foram enfeitiça- IHI 111111 particular e requer um tratamento com uma planta
dos ou que transgrediram algum tabu (33, p. 58); em Quito, 111(' 1'1'11- o mesmo acontecendo entre os Pima do Ari-
Equador, é comum às .mulheres criticarem os hospitais, por 11I11l 55, p. 193), Para os Nuer, doenças se devem 'a quebras
111 1I0l'ltlHS sociais, cada uma associada a uma doença: o in-
lhes obrigarem a determinadas práticas que consideram pre-
II 111produz doenças de pele, o adultério provoca dores na
judiciais, como limpar as unhas, tomar banho diariamente,

88 89
regiao lombar (18, p. 93); para os Ponapê, a violação dos ntre os Fipa, existem dois modelos fundamentats, segun-
tabus alimentares acarreta distúrbios fisiológicos semelhantes do s quais se tenta compreender as causas das doenças. O
às reações de alergia (55, p. 123). primeiro modelo, que existe de um modo geral entre as pes-
As diferentes culturas lançam mão diferentemente das di- s as ordinárias, é o a que ele chama de modelo "Ieizo" ou b ,

versas formas de banhos, fumigações, desinfecção, massagens, teoria de folk. O segundo é particular a uma pequena classe
purgantes, vomitórios, práticas sanitárias e preventivas, técnicas de e pecialista, pessoas que adquiriram a habilidade de exercer
de cirurgia, de curativos, de anestesia, de ritos mágicos, etc. Il medicina, mediante alguns anos de aprendizado com um
Os Navalho têm cerca de sessenta cantos aplicáveis em ritos mestre renomado. A medicina destes últimos está para a dos
de cura, segundo fórmulas prescritas para alguns tipos de doen- primeiros como uma espécie de paradigma, a fornecer modelos
ças físicas e mentais, mediante a associação delas com deter- de problemas e de soluções para uma comunidade de prati-
minados personagens de seu universo cosmoló gico (31, p. 19). 'antes (72, p. 369). A teoria dos leigos é uma versão con-
Os Ndembu não conhecem causas naturais para as doenças, d insada e simplificada desse paradigma, embora ambos se
acreditando-as produzidas por fantasmas punitivos ou feiticei- construam sobre alguns pressupostos comuns acerca da vida
ros; seus diagnosticadores, então, são "advinhos" e seus tera- humana e do universo que permeia o pensamento e as emoções
peutas "mestres de cerimônia", como expressou Victor Turner tunto dos "doutores", quanto dos leigos (72, p. 377).
(69, p. 361); por estes procedimentos, procuram corrigir im- Para os leigos, a doença resulta geralmente da contami-
perfeições biológicas, como a frigidez, os problemas menstruais, unção proposital da comida e da bebida, por um pequeno
a esterilidade, supondo que estes males decorram da desobe- irupo de seus companheiros, que eles consideram Aloosi
diência às normas sociais e culturais (70, p. 88). (feiticeiros). Os especialistas propõem um modelo que elabora
este primeiro da diversas maneiras: a pessoa é vista como um
(' 'l1t1'O do qual se irradiam diversos "caminhos" que são iden-
As doenças, suas causas, as práticas curativas e os diag- liri .ados com as diversas modalidades de relacionamento social
nósticos, portanto, são partes integrantes dos universos sociais que pode ter um homem e uma mulher na sociedade Fipa.
e, por isso, indissociáveis das concepções mágicas, das cos- Pura os "doutores", quaisquer distúrbios em alguma dessas
mologias e das religiões. Não fazem mais do que traduzir, modalidades de relacionamento social se manifesta como a
às suas maneiras, o conjunto das relações sociais e os princípios intromissão, na pessoa, de forças injuriosas - identificadas
estruturais que as governam. Quem reflete sobre os crucifixos, .orn os espíritos ancestrais, no caso de perturbações no rela-
sempre presentes, nos nossos hospitais, na especialização dos clonamento com descendentes, com os espíritos territoriais, no
hospitais segundo classes de pessoas, na cruz simbolizando ('11,'0 de abalo das relações com co-residentes, e com a feitiçaria,

hospital, nas muletas, e nos órgãos de cera que enchem as 110 .aso caso de distúrbios das relações entre um indivíduo e

salas de milagres de muitas igrejas, não pode deixar de consta- nll!ro indivíduo que interage com ele (72, p. 370).
tar essa associação, mesmo que sustentemos que possuímos !\ interpretação dos especialistas e suas reações à doença
uma medicina "científica". IIJlI HCUS pacientes são moldadas por sua concepção do corpo
Willis em um interessante artigo denominado Pollution hllll111110 como sendo ele o ponto de interseção do processo
and paradigm (72), analisa a concepção de doença dos Fipa d( vida da sociedade humana com o mundo da natureza sel-
e põe de manifesto o caráter expressivo de suas práticas médicas, VII/', '111.
É no corpo concreto, tangível, das pessoas, que os
em alguns pontos semelhantes às que observamos na sociedade 1111\1101' 'S agem, aplicando uma força que tem por objeto a
ocidental, em que costumamos estabelecer uma distinção entre 11111, .cucão de algumas transformações desejáveis no ambiente
medicina "científica" e medicina "popular". IIIIllirll1c cultural. Nesse corpo, associam a parte superior do

90 91
tronco, e mais particularmente a cabeça, às forças intelectuais represente, para todos, a sua condição ritualmente desqualifi-
dominantes que caracterizam a sociedade humana em relação cada - razão pela qual ele deve ser mantido à distância. Em
à natureza selvagem. A parte inferior do abdômen e a região algumas sociedades, é comum que os portadores de certas
genital formam uma área moralmente inferior, sede de forças doenças, e aqueles que a sociedade considera condenados,
poderosíssimas que o intelecto deve ter o propósito de contro- sejam mortos, ao invés de se tentar tratá-los e salvá-Ias.
lar e de explorar racionalmente. O coração ocupa uma posição Tais práticas, a que não faltam paralelos com o que se
intermediária, pertencendo ambiguamente às duas regiões opos- pensa e se faz (talvez inconscientemente) entre nós mesmos,
tas. Como em nossa sociedade, é concebido como sede da representam o contínuo esforço que as sociedades desenvol-
emoção e seus conteúdos são normalmente inacessíveis ao vem para lidar com as forças invisíveis que as ameaçam, for-
intelecto. O coração dos feiticeiros é negro, cor associada com ças estas que - sem querer eliminar totalmente, pelas razões
a parte baixa do corpo (72, p. 371). significacionais que consideramos no capítulo anterior - toda
Porque o corpo se encontra ligado por "caminhos" ao sociedade tem um certo interesse em minimizar.
resto do cosmos, as ações sobre o corpo são também ações
Portanto, as tentativas de compreensão do patológico como
sobre o cosmos. E a direção dessas ações, ou seja, as intenções
fenômeno exclusivamente biológico e individual estão fadadas j.~
terapêuticas, são tomadas pelos "doutores" a partir de suas
a um sucesso bastante relativo: a capacidade de pensar, ex-
percepções do corpo humano como estruturas e processos cós-
primir e identificar as mensagens corporais está subordinada
micos (72, p. 371). Os "remédios", por eles escolhidos, são
a uma linguagem, o que faz dela um fato eminentemente social,
significados simbólicos que expressam estas intenções.
variável com as diferentes taxionomias das sociedades e das
A partir dessa estrutura conceptual, o "doutor" está mu-
classes sociais.
nido do instrumental necessário para diagnosticar e tratar as
doenças, e classificá-Ias como graves ou leves, e, direta ou Lévi-Strauss (50, p. 228) compreendeu bem a logicidade
indiretamente, de controlar as relações sociais. O corpo é, interna dessa linguagem que as crenças e práticas médicas cons-
então, entre os Fipa, uma espécie de mapa cosmológico, en- tituem: "mas a doente, tendo compreendido, não se resigna
volvido diretamente com as relações da Cultura com a Natureza apenas: ela sara. E nada disso se produz em nossos doentes,
- em que a sociedade se arvora em posição cultural e domi- quando se lhes explica a causa de suas desordens, invocando
nante, controlando e explorando os ilimitados domínios da secreções, micróbios ou vírus. Acusar-se-nos-á talvez, de pa-
natureza exterior (72, p. 371); não há pensamento sem modelo radoxo, se respondermos que a razão disso é que os micróbios
de pensamento, sem um sistema de traduções do desconhecido existem e os monstros não existem. E não obstante, a relação
para o conhecido, e o pensamento médico dos Fipa, como entre micróbio e doença é exterior ao espírito do paciente, é
qualquer outro, não pode escapar a esta regra. uma relação de causa e efeito, ao passo que a relação entre
monstro e doença é interior a este mesmo espírito, consciente
.>, O temor da doença, a razão de ser socialmente vista
ou inconsciente: é uma relação de símbolo à coisa simbolizada,
~ ~ como perigosa, está no ser ela - para a nossa sociedade e
ou, para empregar o vocabulário dos linguistas, de significante
;;. ~ muitas outras - uma categoria de posição intermediária, am-
biguamente situada entre a condição de vida e a condição de a significado. O xamã fornece à sua doente uma linguagem
~ ~ morte. Por isso, é comum as sociedades se cercarem de pro- na qual se podem exprimir imediatamente estados não formu-
teções simbólicas, não somente para proteger o doente, como lados de outro modo informuláveis. E é a passagem a esta
para protegerem-se a si próprias: freqüentemente se lhe proíbe expressão verbal que provoca o desbloqueio do processo fisio-
lavar-se ou barbear-se e se o obriga a permanecer sujo e re- lógico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da se-
~ . pulsivo, numa tentativa de fazer com que a sua impureza física qüência cujo desenvolvimento a doente sofreu".

2
Para além das discussões sobre o caráter científico ou tência de outras, o que deixa bastante nítida a verificação de
não científico dos sistemas médicos não ocidentais, existem que a semiologia dos médicos, neste terreno, não é essencial-
fatos que dificilmente poderão ser negados: os casos dos doen- mente diferente da semiologia dos semiólogos.
tes não ocidentais cujos estados se agravam nos nossos hospi-
tais e que, de retorno a suas comunidades, encontram alívio e
cura nas mãos dos seus feiticeiros, casos não diferentes essen- o Corpo: Denotação e Conotação
cialmente do papel que reconhecemos à sugestão nos processos
terapêuticos (placebos, etc.) - quer positivamente, pela cren- Uma das mais notáveis características do homem como animal,
ça do doente, nos poderes do médico e da medicina, quer ne- e que o caracteriza de certa forma, é a plasticidade de seu
gativamente, pela descrença dele nessas instituições. organismo, capaz de permitir a ele as mais diversas adaptações.
Então, as etiologias das doenças fazem parte de um sis- São poucos os animais que conseguem sobreviver em desertos
tema coerente do qual participam, em pé de igualdade, o doente, e montanhas, em climas secos e úmidos, em temperaturas ge-
o curador e a comunidade, e que se relaciona com determi- ladas e abrasadoras. Vários povos consomem alimentos com-
-.' nadas concepções acerca da existência humana, - o que sig- pletamente diferentes uns dos outros, e, mesmo perto de nós,
nifica que os debates em torno da cientificidadej acientificidade não é difícil encontrar indivíduos que se alimentam de carne
das práticas médicas estão, de muitas maneiras, deslocados. em decomposição, de terra, ou de quantidades praticamente
Na realidade, não é necessário, nesse trabalho, determo- insignificantes. Nenhum animal transforma voluntariamente,
nos na consideração dos substratos químicos e biológicos que como o homem, o seu próprio corpo: extraindo os dentes,
estão presentes na desorganização de comportamento que ca- amputando os membros, perfurando órgãos, derramando o
racteriza a doença: basta nos limitarmos a seu caráter expres- sangue, deformando o crâneo. Sabemos que cada cultura apro-
sivo e observarmos, por exemplo, que o transe, pelo menos em veita diferentemente a energia muscular e que alguns homens

--
alguns de seus aspectos somáticos, não se dá da mesma ma- são capazes de vomitar deliberadamente, verter lágrimas e
neira em todas as religiões e que as sociedades são capazes de assumir posturas que outros considerariam impossíveis. A res-
levar, por meios puramente simbólicos e conceptuais, à morte, piração, os gestos, a voz, a fome, apresentam-se com fisionomias
os seus integrantes: incutindo-lhes a perda da vontade de viver, particulares em cada povo.
fazendo-os deprimidos, abalando-lhes de toda forma o sistema
A respiração, como alguns povos europeus e americanos
nervoso, consumindo-lhes, até o fim, as suas energias físicas
a praticam, em ambientes fechados e enfumaçados, não satis-
pela ausência que provoca de apetite, inculcando-lhes a idéia
faria absolutamente a um camponês, acostumado à vida ao ar
de condenação, marginalizando-os socialmente, privando-os de
livre. A hora e o lugar para a realização das necessidades fi-
todos os pontos de referência intelectuais e afetivos, desinte-
grando-os de tal forma que num determinado ponto a morte siológicas, e também para a alimentação, variam largamente
passa a ser apenas um simples detalhe biológico. Como diz no tempo e no espaço. O que é sexualmente excitante e esti-
Lévi-Strauss (50, p. 194), "a integridade física não resiste à mulante aqui é repelente e vergonhoso, em outro lugar. In-
dissolução da personalidade social". divíduos nascidos em uma sociedade, e socializados em outra,
Aos argumentos de que estes fatos são inexistentes ou apresentam os costumes e os hábitos corporais da segunda. As
raros em muitas sociedades, lembramos que - exatamente maneiras de andar, de nadar, de saltar, de dormir, são tão
por serem verdadeiros - estes argumentos demonstram que convencionais como as regras de etiqueta ou os códigos ju-
a presença da morte por sugestão da coletividade depende da rídicos, o mesmo acontecendo com as danças, as ginásticas, as
existência de determinadas instituições, assim como da inexis- lutas, as marchas, as posições de micção e defecação, coito, etc.

94 95
As culturas determinam as posiçoes que devemos adota! o social se faz presente nas menores ações humanas. Em
para dormir, ficar de pé, sentar e descansar. Da mesma forma cada caso, para cada cultura, essas práticas, na aparência in- ....••..
dita as maneiras de utilizar ferramentas e de movimentar o significantes (a ponto de muitos cientistas sociais clelas não ~ \5
corpo durante o trabalho - direta ou indiretamente, pois, as tomarem conhecimento), traduzem mensagens, normalmente -c ())
dimensões do cabo de uma enxada podem determinar toda inconscientes - sobre o que é certo e o que é errado, o que ~') í
uma disposição do aparelho ósseo e muscular. Quando pensa- é próprio dos homens e o que é "coisa de bichos", o que é. .lo,
~ 'J)
mos que o deitar-se para dormir é algo universal, estamos igual ao "nós" e o que dele difere, o que é respeitoso e o que 0,,-("
bastante afastados da verdade. As crianças pequenas dormem é profanação, o que é nobre e o que é indigno - e cujos ~ ~ ,
nos braços da mãe em algumas culturas, penduradas nas costas efeitos conotativos vão muito além do que se poderia esperar ~
dela em outras e em berços em outras; há pessoas que dor- do seu fraco poder denotativo. (';; (-
mem em trouxas, em redes, em bancos e em cadeiras. Há Todavia, não é apenas involuntária e conotativamente ~ (' c
povos que dormem agachados, como alguns bosquímanos, e que o corpo cumpre sua função significacional: o repertório ••••O g
outros que dormem em pé, acreditando muitas vezes que deitar de gestos cujos conteúdos são manifestadamente denotativos, O ~ O
é assumir a posição dos mortos. No Japão, diz Ruth Benedict jamais teria fim em um inquérito etnográfico geral. Os ociden- ("-;
(5, p. 225), "o pudor na posição da mulher dormindo é tão tais afirmam com um aceno vertical da cabeça, os turcos sa-
forte quanto o de andar nos Estados Unidos. .. a menina tem codem a cabeça, os abissínios atiram suas cabeças para trás
de aprender a dormir estendida, de pernas juntas, embora e levantam simultaneamente as sobrancelhas, os Dayaks levan-
o menino tenha maior liberdade". Há povos que dormem mais tam o supercílio, e os neozelandezes elevam a cabeça e o queixo.
e povos que dormem pouco, povos que dormem prepondera- O mesmo gesto, muitas vezes, indica coisas diferentes; e coisas
damente de dia e povos que dormem de noite. Da mesma for- idênticas são, muitas vezes, como a afirmação, referidas por
ma, variam as posições consideradas adequadas para descançar. gestos diferentes.
No Brasil mesmo, enquanto em algumas regiões o descançar A utilização do corpo como sistema de expressão não tem
é sentar-se em cadeiras, em outras é agachar-se sobre as pontas limites. A palavra coração aparece na Bíblia mais de mil vezes,
dos pés, erguendo os calcanhares, e, em outras, permanecer mas raramente com o seu sentido fisiológico. Para alguns, o
em pé sobre uma só perna, encostando a sola de um pé no coração representa a sede da vida intelectual; para outros, da
lado do joelho da perna de apoio. E todas essas posturas vida emotiva. A raiva, o ódio e a cólera já foram atribuídos
devem ser aprendidas, da mesma forma que nós, ocidentais, ao fígado; a inveja já esteve associada ao baço. Quem não
aprendemos a não cair da cama. tem entranhas é perverso ou mau. As pessoas ficam com "nó
Há regras especiais para tossir, para espirrar, para cuspir, na garganta", "perdem a fala", precisam "ter estômago" para
para o asseio corporal, para a estética corporal, para a prática suportar alguma coisa. Falamos em "amigo do peito", em pes-
de esportes, para o lazer corporal, para a infância, para a soas de "coração mole", em pessoas de "fibra", em "sangue
adolescência, para a velhice, para a dança, etc. Tais práticas, quente", em "ter garra", em lutar "com unhas e dentes", em
a que Mauss (60) denominou "técnicas do corpo", oferecem pessoas de "pé frio" ou que alguém é "dedo duro". Ajudar
ao cientista social um campo de trabalho ainda não explorado, é "dar a mão", pessoas bobas são "babacas", corajosas são
cuja capacidade de produção de conhecimento é similar aos "peitudas". Fugir é "dar no pé", ser teimoso é ser "cabeçudo",
sistemas de parentesco, aos sistemas políticos e às religiões - invejar é ter "olho grande". Um bom: professor "mastiga a
porque em cada uma delas está presente uma confluência de matéria", enquanto um mau professor "vomita a matéria". Coi-
forças sociais, em relação às quais a base física do corpo não sas caras custam "o olho da cara"; persuadir é "salivar". Ser
é senão a matéria sobre que se aplicam. indiscreto é "bater com a língua nos dentes", dormir é "tirar

96 97
Lima pestana". Tais expressões são exemplos de um repertório gramática de vital importância para o convívio social: não basta
vocabular que dificilmente poderia ser concluído. sabermos bem a língua pátria, é preciso que saibamos a dicção
A saliva, durante muito tempo, foi usada nas cerimônias correta e a altura apropriada.
do batismo, quando o sacerdote molhava os dedos com ela e Explícita ou implicitamente, no comportamento corporal
tocava o nariz e os ouvidos dos batizandos. Em muitas socie- há muita expressão: botões, alavancas, pedais, manivelas, cé-
dades, o proprietário de um objeto, a fim de torná-Io tabu para lulas foto-elétricas, expressam silenciosamente uma sociedade.
as outras pessoas, costumam cuspir no mesmo - prática que Falo dos meus pára-brisas, dos meus pneus, dos meus vidros, do
presenciei muitas vezes em um internato para adolescentes, por meu volante: legitimo no meu próprio corpo um sistema político. V
parte daqueles que queriam garantir para si o melhor quinhão Penso geralmente que meus gestos e posturas são universais e
da comida. naturais (tanto que "falo" por gestos quando não conheço o
Observar os' gestos da cabeça, das mãos, dos braços, do idioma de meu interlocutor): legitimo a cultura no meu pró-
corpo inteiro, enfim - seria um interessante trabalho socio- prio corpo.
lógico: as maneiras de chamar alguém, de cumprimentar, de Na realidade; quando nos comunicamos socialmente situa-
indicar objetos, de mandar alguém embora, de ofender, de in- mo-nos simultaneamente em diferentes planos, nem todos igual-
dicar intimidade, de expressar desconfiança, de expressar ami- mente conscientes. Recebemos signos verbais e não-verbais,
zade, de exprimir aborrecimento e raiva. .:É claro que cada tácteis, visíveis e audíveis: contatos corporais de diferentes tipos,
cultura o fará segundo o seu próprio estilo: os Maori usam posturas, aromas, aparência física, expressões faciais, movi-
como expressão de amizade o dobrar o indicador e colocar mentos das diferentes partes do corpo, posição das mãos, di-
a saliência da segunda junta na ponta do nariz; a mãe chinesa reção do olhar, tom emocional, altura da voz, timbre - enfim,
empurra para a frente e para trás a cabeça do filho, querendo um complexo de informações que tendemos a considerar na-
com isto dizer que está zangada; em certas tribos da África, turais, mas que estão altamente codificadas e que variam de
apontar com o dedo um objeto é amaldiçoá-lo; beijar a mão sociedade para sociedade: uma linguagem, tão coletiva como
em algumas sociedades é obediência para alguns e não para qualquer outra.
outros; apertá-Ia por muito tempo pode ser pacto de amizade
para nós, e provocação para outros; pôr a mão na boca é
pedir segredo para algumas culturas, e outra coisa para outras; O trabalho mais importante, nesse terreno, ainda é, cer-
colocar a mão nos bolsos da calça não é de bom tom, e as pes- tamente, La Prééminence de la main droite, de Robert Hertz
soas nervosas "não sabem onde por as mãos". Há toda uma (36), a quem devemos a maior parte das observações que se-
simbologia envolvendo os pés, as mãos, o bocejo, o sopro, o guem. Hertz começou por se interessar por um novo método
sono, o sonho, os cabelos, as barbas, a calvície, os beijos. Em pedagógico que desenvolvia as habilidades de ambas as. mãos
muitas sociedades, o beijo é substituído por atrito de narizes, e terminou por demonstrar que a predominância de uma das
toque de nariz nas faces, atrito das faces, beija-mão apenas, mãos é um acontecimento sobre o qual a atuação da sociedade
ou é permitido somente entre certas pessoas e em determinadas não é das menos importantes.
situações.
Comecemos pela consideração dos valores atribuídos à
Entre nós, uma pessoa que não saiba se portar, sentar, direita e à esquerda: à primeira, retidão intelectual, bom senso,
quando e onde tocar o seu interlocutor, é uma pessoa "sem bom caráter, integridade moral, norma jurídica; à segunda, as
modos" e tendemos a discriminá-Ia . .:É claro que o desconheci- idéias contrárias: caráter mau, erro, esquisitice, etc. Empre-
mento dos limites do seu corpo, e das condições de controle gamos freqüentem ente expressões como "entrar com o pé di-
a que ele deve ser submetido, é o desconhecimento de uma reito", "acordar com o pé esquerdo", falando de nossa boa

99
ou má sorte. Cumprimentar pessoas, ou receber presentes, com nesse hemisfério está também a sede da capacidade de lin-
a mão esquerda não é de boa educação. Não devemos levar guagem articulada e dos centros que presidem os movimentos
o alimento à boca com a mão esquerda, mas devemos pegar voluntários do corpo. Aceita, então, inicialmente, o pensamento
com ela os feitiços das esquinas, pois assim obtemos proteção. de Broca de que "somos destros da mão, porque somos ca-
Na língua portuguesa, "sinistra" é o sinônimo de "mão es- nhotos do cérebro". Mas questiona em seguida: não há dúvida
querda", ao passo que consideramos a mão direita a nossa de que existe uma correlação regular entre a predominância
mão melhor. Os Yoruba, usam a mão esquerda apenas para da mão direita e o desenvolvimento superior do cérebro es-
manipular alguma coisa suja, porque a mão direita é usada querdo. Mas, destes dois fenômenos, qual é a causa, e qual é
para comer e as pessoas imaginam que correriam o risco de o efeito? O que é que nos proíbe de retomar à proposição de
serem contaminadas, ou de contaminar a comida, se este pro- Broca e dizer "nós somos canhotos do cérebro porque somos
cedimento não fosse observado. Na Turquia e em outros países, destros da mão? (36, p. 85). "Assim, não é necessário negar
a mão esquerda foi associada à limpeza corporal, pois era con- a existência de tendência orgânica para a assimetria; mas, ex-
siderada impura em relação à mão direita. Há notícias de ceto alguns casos excepcionais, a vaga disposição para a di-
uma firma americana que procurou introduzir determinado pro- reita, que parece difundida na espécie humana, não bastaria
duto alimentício na índia e obteve pouco sucesso, porque havia para determinar a preponderância absoluta da mão direita, se
no cartaz de propaganda uma pessoa que segurava o produto influências estranhas ao organismo não a viessem fixar e refor-
com a mão esquerda: os indianos não tocam os alimentos çar" (36, p. 86).
senão com a mão direita. Os Árabes também utilizam uma mão Hertz (36, p. 87) observou que alguns povos tinham o
para comer e outra para realizar suas abluções. A oposição entre hábito de amarrar o braço esquerdo de suas crianças, para que
direita e esquerda é freqüentem ente associada respectivamente dele não se pudessem servir; que, quando especialmente trei-
com a fortuna e com o infortúnio, o macho e a fêmea, o forte nada, a mão esquerda era de rendimento similar à destra,
e o fraco, e o seu significado cultural é tão forte que a palavra como no piano, em cirurgia, em datilografia, etc; quando um
"educação" pode ter como sinônimo a palavra "adestramento". acidente priva uma pessoa da mão direita, a esquerda aprende
Segundo a opinião corrente, a predominância da mão di- a substituí-Ia adequadamente, adquirindo a habilidade, a força
reita deveria resultar diretamente da estrutura do organismo e e a rapidez que lhe faltavam; portanto, nada impede que a
nada deveria ter a ver com as convenções e crenças sociais. mão esquerda seja "adestrada".
Entretanto, até aproximadamente a idade de oito meses, a Diante disso, concluiu que a mão direita é obrigatória,
criança é ambidestra, servindo-se, para pegar um objeto, in- imposta pela coerção, garantida pela sanção. Ao contrário, uma
diferentemente de qualquer das mãos, e, em geral, de ambas verdadeira interdição pesa sobre a mão esquerda e a paralisa.
ao mesmo tempo. Alguns. atribuem a predominância da mão A diferença existente entre os valores e funções dos dois lados
direita a particularidades da acuidade visual, outros à influência do nosso corpo apresenta as características de uma verdadeira
da posição pré-natal da criança dentro do útero, à assimetria instituição social, e o estudo do fenômeno pertence ao campo
anatômica do corpo, a diferenças de estrutura do sistema ner- da Sociologia (36, p. 88).
voso, a diferenças das maneiras de a criança ser segurada no Para ele, a mutilação que sofre a mão esquerda, sob a
colo por sua mãe. ação das sociedades humanas, exprime, como outras mutilações,
Hertz admite que, de todas as explicações, uma só parece a vontade que anima o homem de fazer prevalecer o Sagrado
re istir à prova dos fatos: a que liga a predominância da mão sobre o Profano, de fazer predominar os desejos e interesses
direita ao maior desenvolvimento, no homem, do hemisfério da coletividade sobre os desejos e interesses dos indivíduos, e
cerebral esquerdo, que governa os músculos do lado direito, de espiritualizar o corpo, inscrevendo nele as oposições de va-

I()() 101
li" lores e os contrastes violentos do mundo moral (36. p. 107-8). considerar as maneiras pelas quais os homens aprenderam a
Q
IJ'.
r::. Como o corpo humano, este microcosmos, escaparia à lei da interpretar suas experiências.
-f)
c ~ polaridade que rege todas as coisas? A sociedade, o universo :É fácil descobrir as conotações culturais dos sentidos:
<n ::,
o inteiro, tem um, lado sagrado. nobre. precioso e um outro um provado r de vinho, um controlador de qualidade de pro-
profano e comum, um lado masculino, forte, ativo e um outro dutos, um afinador de pianos - capazes de perceber, porque
~ b para isto foram treinados, as menores diferenças do gosto, as-
feminino, fraco e passivo, ou, simplesmente, um lado direito e
h -o
1>
Ú>
um lado esquerdo (36, p. 92-3). Se o lado direito se associa pecto visual e som. As pessoas que moram perto de fábricas
C -\ ao Fasto, ao esquerdo não resta senão o Nefasto, o domínio de cigarros, de papel, de farinha de osso, de matadouros, etc.
a'>
't')
J
em que a mão esquerda reina. A mão esquerda seria, então, acabam por conviver normalmente com cheiros que, a outros,
b
IJI o signo de uma natureza contrária à ordem, de uma disposição agrediriam a sensibilidade. Um vendedor de perfume é capaz
~ perversa e demoníaca. Eis porque a educação se aplica a pa- de identificar diversas marcas por sutis diferença do aroma.
o
ralisar a mão esquerda, enquanto desenvolve a direita (36, Muitos povos não distinguem entre algumas cores (por
p.101-2). exemplo o verde do azul, entre os Navaho e os Guarani), por-
Encontramos aqui, então, as principais oposições que con- que, fundamentalmente, suas culturas tornam essas diferenças
figuram a constituição do sistema social ao nível do pensamen- desnecessárias -, da mesma forma por que os americanos
to: Sagrado/Profano, Puro/Impuro, Natureza/Cultura, Coníor- acham necessário estabelecer uma série de distinções dentro
mista/Desviante, Consciente/Inconsciente. .. oposições univer- do que nós, brasileiros, chamaríamos de "cor de rosa". Há
sais na definição do problema Direita/Esquerda. Todavia, não casos, na literatura etnográfica, de os membros de algumas
podemos acreditar, como nos parece ter querido Hertz, na uni- sociedades perceberem diferentemente do ocidental a mesma
versalidade semântica e na invariabilidade dos valores respec- forma: pedidos para desenhar, por exemplo, a planta de sua
aldeia, que o etnólogo havia percebido, suponhamos, como
tivamente associados com a Direita e com a Esquerda. Em
duas fileiras paralelas de cabanas, desenham uma forma cir-
outros termos, podemos acreditar na universalidade da gra-
cular - caso evidente em que a concepção se sobrepõe e
mática que constitui um espaço dividido em direita e esquerda
inibe a percepção. o
a partir da constituição orgânica, mas não podemos aceitar a o
Todas as sociedades se aproveitam dos sentidos para co- <;5
universalidade do vocabulário desse espaço: "o homem Kaguru.
dificar o mundo, não se pode negar. Entretanto, toda sociedade ""f,
para os gestos do amor, emprega a mão esquerda, a mulher codifica esses próprios sentidos. Para nós, por exemplo, os ~ e-
Kaguru a mão direita, isto é, as mãos que são respectivamente órgãos sensoriais estão para o pecado assim como o espírito LA 1>
<n """(""
impuras em cada sexo" (53, p. 171). está para a virtude, o que está claramente manifesto nos rituais c:-\
~,
de extrema-unção em que o moribundo, para obter a salvação,
é convidado a detestar os pecados cometidos por cada sentido, 8
(,.
Os etólogos nos têm demonstrado que cada especie vive sendo, então, o órgão, lavado, ungido o bento. No dialeto
em um mundo próprio que determina, antes de qualquer coisa, Wintu da Califórnia, diz Lévi-Strauss, há cinco modos verbais,
a natureza de seus órgãos sensoriais, pois o organismo e seu alguns dos quais correspondentes aos sentidos a que se deve
ambiente constituem um campo único. Os membros das diversas atribuir o conhecimento narrado (50, 207).
sociedades humanas vivem também em um universo que lhes Todas as experiências do homem são mensagens percebi-
é próprio, mas as consideráveis diferenças de suas percepções, das por intermédio dos sentidos e devem ser decodificadas de
sentimentos e atitudes com relação ao seu ambiente físico e alguma forma. Todavia, cada mensagem percebida pela cons-
social não podem ser atribuídas a causas fisiológicas: é preciso .iência corresponde a um amálgama de experiências olfativas,

10 103
visuais, táteis, e assim por diante. Cada uma dessas experiên- disso que chamamos de "gosto". Todavia, nem todas as culturas
cias corresponde a uma mensagem particular, capaz de afetar se apropriam conscientemente dessas propriedades.
todas as outras percepções. Portanto, devem existir, além desse A própria identificação é culturalmente variável em rela-
código que nos dá uma única experiência total, códigos que ção às sensações: o cheiro de alguns queijos é considerado
nos podem permitir o acesso a essas experiências específicas: profundamente nojento por diversas populações, o cheiro do
daí ser cada sentido governado por um código especial. corpo do homem branco ocidental, a exemplo de que fazemos
Contudo, cada sociedade atribui, a estes códigos sensoriais em relação a indivíduos de outras procedências, é, por muitos,
especiais pesos diferentes, quer no contexto do código de nossa considerado desagradável. O odor que produz a decomposição
experiência total, quer no contexto de situações ou problemas dos cadáveres é considerado pelos Dayaks, segundo dizem
particulares. Sabemos, por exemplo, que alguns cegos são ca- freqüentemente, particularmente agradável a suas sensibilidades
pazes de ultrapassar parcialmente suas deficiências sensoriais, olfativas, sobretudo se se tratasse da cabeça cortada de um
aperfeiçoando o seu domínio sobre outro código sensorial, inimigo (35, p. 7). Para nós, a concepção de estragado é ba-
quando, por exemplo, se tornam capazes de inferir o valor de sicamente olfativa (o que se expressa no nosso hábito de chei-
uma nota pela simples manipulação tátil da mesma. Os Api- rar os alimentos), o que pode ser substituído, em muitas cultu-
nayé, observou Lévi-Strauss (53, p. 144), codificam a oposi- ras pelo aspecto visual, ou pelo paladar. O cheiro dos órgãos
ção entre vida e morte, ao nível da mitologia, segundo sím- sexuais é tido por agradável e excitante em algumas culturas e
bolos auditivos, enquanto os Krahó o fazem de maneira os- repelente e associado à podridão em outras, como os Tupari,
tensivamente olfativa. O calendário dos Adamaneses baseia-se que acreditam ser o cheiro dos órgãos sexuais de uma jovem
numa sucessão de perfumes, que as flores e as árvores exalam inofensivo e o de uma mulher velha perigoso. Alguns grupos
nos diversos períodos do ano. árabes tinham por costume o cheirar a noiva, pelo pai do
Algumas culturas enfatizam, de modo global, um sentido, noivo, para dar aprovação ao casamento.
enquanto outras sobrecarregam outros. Todavia, existe sempre Em nossa vida cotidiana, damos enorme importância a
uma espécie de "colaboração" entre os códigos sensoriais espe- determinados signos olfativos. Basta lembrar a nossa classifica-
cíficos (por exemplo, quando lemos um jornal, estamos tam- ção dos perfumes (fresco, sensual, viril, doce, feminino, agres-
bém recebendo mensagens táteis que atuam de maneiras dife- te ... ). Ao olfato está associada uma série de preocupações
rentes) e também a possibilidade de tradução dos termos de sociais: beleza, status, afirmação ... Nossa atitude diante das
um nos termos de outro. Os numerosos paladares, por exemplo, sensações olfativas, dos conhecimentos que por essa via nos
de comidas e bebidas apenas em parte constituem gostos pro- chegam é de desconfiança, suspeita e insegurança, como ex-
priamente ditos: se contrairmos as narinas, de maneira a im- presso no nosso vocabulário "isto não me cheira bem", "estou
pedir que qualquer odor chegue aos receptores olfativos, fica- sentindo cheiro de confusão", "isto está cheirando mal", etc.
remos impossibilitados de distinguir entre o gosto de café e o Ê possível que, do ponto de vista da utilização cultural
de uma solução fraca de quinina, ou entre suco de maçã e do aparato olfativo e de outros sentidos, nós, ocidentais, es-
suco de cebola - café e quinina têm em comum certo amargor tejamos em situação bastante desfavorável, comparativamente a
e a cebola e a maçã têm certa doçura em comum, o que é outras sociedades. Os esquimós, por exemplo, apoiando-se na
tudo o que recebe um indivíduo de nariz fechado. O interior da direção e no cheiro do vento, fundamentalmente, são capazes
boca é dotado de sentidos da pele e do gosto; um gosto picante de viajar milhas e milhas por um território que, para nós, seria
é, parcialmente, dor e um gosto suave, de alguma forma, uma visualmente indiferenciado (34, p. 55).
sensação tátil; a temperatura de um alimento, bem' como a O mesmo acontece com a apropriação cultural da visão.
sua consistência material, contribui também para a constituição Alguns nativos africanos, por não darem grande importância

104, 105
a códigos visuais a que faltam a dimensão de profundidade, jogo de futebol - embora ambos tendam a enfatizar a visão (
foram incapazes de decodificar imagens de televisão, e outros, como principal ferramenta de apropriação do mundo, pois esta
postos a assistir a imagens fílmicas produzidas por movimentos parece ser uma característica da nossa cultura. J
de câmara, interpretaram-nas como sendo árvores e pedras se- Tomando por base esta característica da nossa cultura,
moventes; personagens de filmes eram vistos como mágicos, algumas interpretações históricas dela se construíram - do
porque tinham o dom de mudar de tamanho e de roupa ins- que o pensamento de McLuhan pode ser um exemplo recente.
tantaneamente, entre duas seqüências (13, p. 337). Klineberg :É claro que não se pode cair nesse reducionismo, mas é ver-
(38, p. 226-7) narra o seguinte acontecimento: "viajando pela dade que as ênfases culturais sobre os diferentes sentidos atuam
Nova Zelândia, certo pintor inglês fez uma quantidade de re- constantemente sobre a vida dos membros dessas sociedades.
tratos de nativos, inclusive o de um chefe cuja face estava co- Nós, por exemplo, suspeitamos dos outros sentidos que
berta pela tatuagem em espiral típica de sua qualidade. O não a visão e o tato: precisamos ver para crer, ou, como São
artista mostrou o retrato ao modelo: esperava sua cordial Tomé, tocar as chagas de Cristo para acreditarmos; precisamos
aprovação. O velho olhou o retrato e devolveu-o com estas escrever as coisas, para não nos esquecermos delas e para
palavras: "não é isto que eu desejo". Pediu-lhe então o artista firmar compromissos seguros; criamos diferentes sistemas para
que desenhasse o seu próprio retrato. Quando entregou ao nos ajudarem a ver o que ouvimos; chamamos as pessoas de
branco o retrato com estas palavras: ':É isto que eu sou', este maior arrojo ou sensibilidade de "visionários" ou "videntes";
não pôde ver mais nada além do feitio da tatuagem do velho representamos a onipotência e onisciência de nosso Deus por
chefe e que significava a sua conexão tribal!". Comenta o um olho; dizemos que os olhos são "o espelho da alma"; os
caso dizendo que, para os Maori, o pensamento ocidental de sábios são "iluminados"; quando cuidamos de algo damos
valorizar o indivíduo é desconhecido, importando fundamental- "uma olhadinha"; em Paris, a polícia é "l'oeil"; quando nos
mente o conceito de comunidade. Nesse caso, a concepção despedimos de alguém, dizemos "até a vista"; quando tomamos
que o chefe tem de si determina a maneira pela qual ele se conhecimento superficial, dizemos que é "à primeira vista";
"vê". Alguns programas de prevenção da saúde, ao exibirem uma pessoa estimada é "bem vista"; quando compreendemos
filmes que mostravam os efeitos daninhos das moscas e das bem, "vemos claramente". Temos "visão da história", "pontos
formigas, a alguns indígenas, receberam a seguinte resposta: de vista"; acreditamos que "no princípio eram as trevas e fez-se
"vocês têm razão ::le se preocuparem com estes animais, mas a luz"; damos "uma luz", para solucionar um problema; um
os nossos não são tão grandes!". caso pode ser "obscuro", uma solução "nítida"; um lugar triste
Diante disso, a associação de valores semânticos a cores é um lugar "sombrio" e já houve quem dissesse que "a luz é
particulares (preto: morte / branco: limpeza/ vermelho: perigo / informação em estado puro".
verde: esperança/ amarelo: desespero, etc. ) se transforma em Aqueles que não acreditam no que a sociedade quer que
um problema banal para a Antropologia, em que pesem os acreditemos são "visionários" ou estão "alucinados". Não pode
esforços brilhantes de Victor Turner (69) de provar o contrá- haver dúvidas de que a visão cumpre uma importante função
rio, sustentando que haveria uma profunda motivação emocio- de controle social, e, por isso, tendemos a considerar as noites
nal associada às cores do sangue, das feses e do sêmen. e os lugares escuros como perigosos, castigamos nossos filhos
Na nossa própria sociedade, podemos constatar, como colocando-os em quartos escuros, surpreendemo-nos com um
observou Hall (34, p. 65), que homem e mulher habitam crime "em plena luz do dia", relegamos certas práticas para o
universos visuais bastante diferentes, pois aprenderam a usar a "escurinho" e fazemos com que o ritmo da vida social decresça
vista com atenção a diferentes objetos - basta observarmos à noite. Observemos, por exemplo, o que acontece quando se
os comentários de ambos após um passeio, uma festa, ou um apagam inesperadamente as luzes de uma cidade: as pessoas
,4.

]06 -fi 107


-.F
se expandem, como um gás que se visse repentinamente libe- às crianças. Parece claro que as nossas crianças de tenra idade
rado da pressão que o continha, e gritam. Todavia, se a falta não têm pelas matérias eliminadas pelo organismo a mesma
de luz se prolonga, os "mapas" de direcionamento no mundo repelância que os adultos manifestam em relação a elas -
começam a fazer falta e sentimo-nos inseguros: por isso, as do que resulta uma espécie de batalha entre os pais e a criança,
pessoas ficam alegres e gritam novamente quando a luz re- batalha que os adultos acabam invariavelmente vencendo.
toma ... Este processo, pelo qual as mães e babás terminam fa-
Portanto, a crença de que dois corpos humanos subme- zendo com que a criança acabe por abrir mão de sua autonomia
tidos ao mesmo estímulo sensorial reagiriam da mesma maneira, fisiológica e aceite o controle cultural, representa uma espécie
não pode ser vista sem restrições no atual estágio do desenvol- de "treinamento" em que se manifestam basicamente duas
vimento do conhecimento científico. Na realidade, quando se tendências: por um lado, o reconhecimento da acumulação de
trata de culturas diferentes, "mesmo estímulo" é, na realidade, pressões na bexiga e no reto, como avisos da necessidade de
uma multiplicidade de "dados" e de "informações" que devem inibição do esfíncter automático e para atividades tais como
ser "lidos" e "processados" segundo códigos diferentes, capazes pedir ajuda, locomover-se ou controlar-se e, por outro lado,
de atuarem uns sobre os outros conotativamente, de forma a aprender a evacuar a urina ou as fezes somente quando a
produzir um universo novo - infinitamente distanciado das evacuação é pedida pela mãe ou ama. Estes processos, então,
origens orgânicas das, experiências sensoriais - em que os não são puramente fisiológicos, mas acontecimentos culturais,
sons têm cores (como na publicidade de um televisor: "todas na medida em que a sua ocorrência passa a depender de si-
as cores do som"), as cores têm cheiro ("o branco com cheiro tuações exteriores ao organismo, e não apenas de necessidades
de limão", como quer o anúncio de um sabão em pó) e em que funcionais intra-orgânicas. São processos por meio dos quais o
as ações e condições humanas têm cheiros e gostos ("sabor educador incute toda uma visão do mundo e todo um com-
de aventura", "sabor de loucura" como dizem alguns textos plexo de símbolos.
publicitários) . As funções excretórias começam, nesse processo, a ser ob-
Para podermos compreender o homem, é claro que deve- jeto de reservas para a criança, a se indentificar como impuras
mos saber a natureza dos seus sistemas sensoriais, mas devemos - pelas caras-feias, pelas palmadas, pelas alterações de tom
saber também, e principalmente, como é que a Cultura modi- de voz, pelo mistério com que estas funções passam gradativa-
fica as informações que alimentam esses órgãos receptores. mente a ser envolvidas. A criança começa a aprender que os
Como disse Wittgenstein, no seu Tratacius Logicus - Philo- produtos das eliminações são tão ruins que, se permanecerem
sophicus, 5634: no corpo por tempo diferente do prescrito culturalmente, po-
derão ocasionar uma série de problemas para a saúde. Qualquer
> "No part of our experience is at the same time a priori falha é punida com a ameaça de perda do carinho materno,
Whatever we see could be other than it is com a lembrança da possibilidade de a criança não vir a ser
Whatever we can describe at all could be other than it is incorporada pela coletividade.
There is no a priori arder of things." Quando já um pouco maior, a criança descobre a ofensi-
vidade potencial dessas matérias. Descobre o caráter pejorativo
das palavras associadas a estas funções. Desacostuma-se a pen-
Higiene: Mito e Rito sar que as pessoas associadas a posições socialmente importan-
tes possam estar submetidas a estas regularidades, porque o
Existem bastantes indícios - e a Psicanálise tem insistido sintagma que assim se forma terá por efeito profanar o pri-
sobre eles - de que as funções eliminatórias são agradáveis meiro termo. Assim, dificilmente imaginamos "aquela" mulher

108 109
em tão antiestética situação, ou os sacerdotes nos mictórios - Em compensação, os Brâmanes seguem rituais de purifi-
no que Sade parece ter descoberto uma de suas melhores cação muito mais complexos a respeito da defecação, a co-
fontes de inspiração ... meçar pela escolha de lugar apropriado, para onde levam um
Tais concepções manifestam-se na arquitetura igualmente: vaso cheio de água - descalçam-se e não devem olhar para
os banheiros devem estar escondidos, separados de outras partes o que fazem, sob pena de cometerem grave falta: depois, lavam
da casa; os banheiros masculinos são mais numerosos que os os pés e as mãos com água do pote, indo depois a um riacho
femininos, porque se espera que as mulheres procurem menos onde se purificam do terível ato que praticaram, limpando o
esses lugares; os banheiros públicos são escassos e só existem ânus com água e terra e depois os órgãos genitais, terminando
onde há grande concentração de pessoas. por lavarem por diversas vezes as mãos e por fim o rosto e a
boca. Também é conhecida a austeridade dos japoneses em
Aprendemos a nos referir com discrição a estas funções
relação a este assunto.
e a usar sempre que possível um pretexto para ir ao banheiro:
:É claro que há nessas práticas, para cada uma, uma
refazer a maquiagem, lavar as mãos, etc. Contudo, tal dis-
relação com o conjunto do sistema social. Tomemos por exem-
crição não é absolutamente universal. Na Melanésia, segundo
plo, os lugares destinados às funções excretórias. Entre os
informa Mallinowski, (58, p. 43-4), não se pode descobrir
Arapesh, por exemplo, toda terra plana é considerada um lugar
nenhum traço disso que chamamos de "indecências infantis",
bom e todo lugar inculto é considerado um mau lugar; há
com referência às funções excretórias. Para os Hopi, "os bran-
uma série de "maus lugares" em volta do povoado, usados
cos esperam demais das criancinhas", como observaram fre-
para porcos ou para latrinas e onde se constroem cabanas
qüentemente a Dorothy Eggan (25, p. 368), e castigavam as
para as mulheres menstruadas ou em parto, de quem o sangue
crianças que urinavam na cama somente quando passavam
perigoso poderia trazer ameaças para a aldeia, que é plana e
muito tempo do período considerado normal para se abandonar
boa e está associada com alimentos (61, p. 34). Deuteronômio,
a prática. Para os Arapesh, a excreção não é uma função em
capo 22: "terás fora do arraial um lugar onde vás satisfazer
relação à qual se exija recato, indo os adultos até o limite da
as necessidades da natureza, levando um pauzinho no cinto:
aldeia para resolverem os seus problemas. Entre eles, estas
e tendo satisfeito à necessidade, cavarás ao redor e cobrirás
funções poderiam estar cercadas de timidez, mas raramente de
com a terra que tiraste". o -s
vergonha, e as crianças aprendem a observar as regras de hi-
giene, não por meio dos sentimentos de vergonha, mas através
Parece bem clara, nesses exemplos, a associação das t ~
funções excretórias, como em outras que já examinamos, com <
de expressões de nojo, e a associação da excreção com os
a Natureza, por oposição à necessidade cultural de afastá-Ias. c"7
órgãos genitais é pouquíssimo desenvolvida
culturas em que os pais ignoram o comportamento
(61, p. 69). Há
anal de
Nesses casos, observamos o interesse da comunidade em mar- 'f: ~ S
seus filhos e deixam a cargo das crianças mais velhas levar os
ginalizar essas funções, coisa que acontece também entre nós, ~ g. ~
expressa pelo nosso antigo hábito de construir o banheiro fora ~ ú .-~C'
pequenos para o mato, a fim de que possam livrar-se de suas
d e casa (aa vcasi
casm h a ") ,ou nas partes do fundo da casa, ou o. ~ ,
cargas.
perto da cozinha, e - nas construções mais modernas, longe p
(!>ara nós, o organismo precisa ser um maquinismo meca- da cozinha, mas perto dos quartos. v.
nicamente bem treinadoJ Os banheiros públicos existem para Nessas disposições arquitetônicas, parece encontrarmos va-
uma emergência, para aqueles que não souberam planejar, e riações de soluções para um mesmo problema - soluções que
são normalmente lugares imundos, quase punitivos. Enquanto são "variações sobre o mesmo tema", como diria Lévi-Strauss.
isso, em muitas culturas, as pessoas aliviam-se normalmente Em todas elas encontramos, como invariante, a separação entre
nas vias públicas. Natureza e Cultura, já que, em todos os casos, o banheiro é

l10 111
aproximado das partes íntimas do espaço doméstico e, conse- estava presente no hábito de se colocar urinóis debaixo dos
qüentemente, separado dos seus domínios sociais ou públicos colchões.
(as salas, as fachadas, etc.), e já que a) as cozinhas, assim
corno os banheiros, se caracterizam pela ambigüidade de serem
lugares culturalmente destinados aos imperativos da Natureza, A noção de higiene parece estar presente, de urna ou de
em que se realiza a transição de elementos do estado de Na- outra forma, em todas as culturas. A abundância ou a escassez
tureza para o estado de Cultura, processo do qual a cozinha de água não significa necessariamente a medida de limpeza ae-
é um ponto inicial, e b) os quartos também são lugares cul- que as tradições sociais deverão se limitar: há grande preo-~
turalmente destinados à prática de atos naturais (dormir, man- cupação com a higiene em locais onde a água é difícil e, além ~
ter relações sexuais, etc.). disso, a água não é o único instrumento utilizado para a lim-
Dentre essas soluções - todas "boas" - a justaposição peza nos diferentes povos. O
do banheiro aos quartos parece 'ser a "melhor", quer por razões As normas de higiene variam muito e o próprio conceito e
(J\
de ordem prática, quer, fundamentalmente, por questões de de limpeza não é o mesmo segundo as sociedades, assim corno
ordem simbólica, uma vez que entre banheiro e cozinha parece as partes do corpo que devem ser especialmente protegidas de s:
haver, quanto a duas dimensões, urna certa repelência: a) poluição costumam variar. Alguns povos lavam-se antes e de- ~
pois de comer, outros apenas antes ou apenas depois, e outros ~
quanto à relação entre sincronia e diacronia, pois, se a cozinha
é o ponto inicial de um processo de transformação de elementos
ainda não associam a idéia de praticar higiene à idéia de ali- >
mentação a ponto de considerarem necessário praticar rito
da Natureza em elementos da Cultura (dentro do espaço do-
especial. A limpeza dos dentes, que são quase urna obcessão
méstico), defecar é um ponto terminal da transformação de
das mães burguesas, está presente de maneira muito menos
elementos da Cultura (alimentos) em elementos da Natureza,
marcada entre as classes populares. O banho diário, com abun-
e b) quanto à qualidade da transformação, pois, se o cozinhar dância de água e sabão, característico dos americanos, é subs-
é .um processo cultural de transformação, o defecar é um tituído em algumas sociedades européias pelo emprego de per-
processo de transformação natural. fumes, talcos, etc. Alguns povos se higienizam empregando cin-
. Existe, portanto, entre as duas atividades - a de comer zas, óleos, gorduras ou graxas sobre o corpo.
e a de defecar - e em relação a tudo o que diz respeito a Alguns povos tornarão banho fundamentalmente para inibir
elas, urna inversão lógica que as põe, sob certos pontos, em o cheiro natural do corpo, outros para manter a saúde e outros
o incompatibilidade - razão pela qual os quartos, também in- ainda porque os óleos e perfumes que passam no corpo, ex-
r termediários na dicotomia Natureza/Cultura, mas sem as in- plícita ou latentemente, têm a função de evitar os mosquitos.
Q>
compatibilidades referidas, têm possibilitado a formação de O disfarçar o cheiro do corpo pode ser conscientemente atri-
um sistema cada vez mais desejado e cada vez mais aperfei- buído a vários motivos: porque ele é considerado desagradável,
çoado (urna vez que os banheiros estão progressivamente se porque ele é urna abertura da intimidade, porque ele é urna
agressão à intimidade do outro... Alguns povos cortam as
afastando dos corredores - que são áreas públicas, dentro
unhas de ambas as mãos e as limpam, enquanto outros cuidam
do íntimo - e se interiorizando nos quartos, sempre que há
apenas das de urna delas, abandonando as da outra, e outros
possibilidades materiais para tal: "suítes", etc.) - gradativo
povos não se preocupam com o problema, ou somente com as
aperfeiçoamento, aliás, que não representa urna inovação com-
unhas da mão.
pleta, do ponto de vista simbólico, posto que a prática de Os cabelos se cortam, se penteiam, se arrumam e se subs-
realizar as necessidades fisiológicas nos quartos de dormir já tituem por outros artificiais. Em torno deles, há toda urna es-

II 113
tética e toda uma magia. Cada sociedade os corta de uma quente para secar as mãos, portas que não abrem se não se
maneira e por um motivo: beleza, luto, idade, etc. Para nós, der descarga ...
até pouco tempo, uma cabeleira emplastada de óleo ou vase- Há todo um aparato "científico" para nos proteger, e acre-
lina representava "boa aparência", e o movimento natural do ditamos que as nossas práticas higiênicas se caracterizam como
cabelo deveria ser evitado pela aplicação de gomas. diferentes das dos outros povos por esta sua cientificidade. De
Dumont (20, p. 71) observa que um Brâmane deverá um manual de educação higiênica podemos extrair a seguinte ci-
praticar severos atos de higiene quando acorda e quando se tação: "todo progresso no campo das ciências em geral pro-
alimenta, e que estas práticas devem estar associadas à oração, jeta-se na evolução da Higiene e da Medicina. .. o objeto da
para que ele possa recuperar o seu estado de pureza mais Higiene é evitar as doenças, proteger e manter a saúde utili-
elevado; se ele trabalha fora, deve tomar o cuidado de se ba- zando os conceitos que nos fornecem a Física, a Química, a
nhar antes de entrar em casa. Medicina e a própria Engenharia". Os anúncios publicitários
Em certa região da Itália, as populações rurais, colocadas de produtos de higiene conotam-se de cientificidade: "bacté-
em condição de viver em casas modernas equipadas com ba- rias", "vírus", "micróbios", "microorganismos", "flúor", "ioni-
nheiros e com vasos sanitários - habituadas a fazer suas zação", "deosteral", "cloridóxido de alumínio"... termos de
necessidades no campo - usavam os referidos aparelhos para uma linguagem que os espectadores não conhecem, mas em que
realizar a limpeza de azeitonas, que envolviam em uma pequena acreditam como em um mito.
rede presa por um fio e que eram agitadas pela pressão da Entretanto, a observação da implantação dessa teoria na
descarga de água. Alguns povos se opõem violentamente ao vida prática cotidiana não nos deixa acreditar em sua coerência
tratamento e limpeza da água, pois muitas vezes acreditam ter e veracidade. As pessoas usam o banheiro e depois se limpam
ela caráter sagrado e que tal ato seria, conseqüentemente, com papel higiênico: em seguida, lavam as mãos e não as
uma profanação; ou que homens viris não devem beber água partes que tiveram contato direto com a matéria que se con-
limpa, e assim por diante. sidera poluída e poluígena; e a crença de que o hábito de
Sabemos como era diferente o conceito de higiene entre lavar as mãos visa proteger a saúde das outras pessoas não
os nossos antepassados medievais. Qualquer atenção para o pode ser verdadeiro, porque as torneiras não são imediata-
corpo poderia ser considerada falta grave. Muitos monges não mente lavadas.
somente não se banhavam, como também não lhes era permitido Na raiz dessas crenças parece estar a concepção de que
lavar os pés. Conhecemos histórias de alguns santos que, por a Medicina, disciplina principal deste domínio, é, ela mesma,
pudor, só se banhavam de túnica, prática que não havia de- inteiramente técnica, instrumental, e livre de conotações rituais.
saparecido até há pouco tempo em alguns internatos femininos Entretanto, sabemos quantas ritualizações cercam a prática
de orientação religiosa. da Medicina e que não são poucos os médicos que se sentem
Há informações de que a prática de limpar o ânus com pouco à vontade para trabalhar sem os seus "paramentos"
papel é bastante recente, pelo menos com o papel especial- brancos. Além disso, um bom número dessas práticas higiê-
mente destinado para esta função, e que entre os romanos as nicas são anteriores à descoberta da existência dos micro-
"privadas" eram públicas, limpando-se as pessoas com as pró- organismos patogênicos.
prias mãos, servindo-se da água que corria por debaixo, de Portanto, não seria deslocado interpretar o hábito de lavar
onde provém a palavra "latrina", corruptela de lavatrina - as mãos após as atividades de eliminação como uma espécie
O que contrasta de certo modo com os nossos esforços de des- de rito que marca uma transição entre domínios diferentes da
abrir métodos de tornar os banheiros mais privativos e de- vida social, da mesma forma que devemos lavar as mãos
sinfcctados: aparelhos de luz ultra-violeta, aparelhos de ar antes das refeições ("para não contaminar os alimentos") e

114 115
depois delas (para não ser contaminado pelos alimentos? - mente a mesma e seria portadora de microorganismos qual-
podemos perguntar), ao chegarmos do trabalho (por que quer que fosse a cor sobre a qual se aplicasse. Na realidade,
razão de ordem instrumental?) ou ao chegarmos da rua - o que importa não é o seu caráter instrumental, mas o que a
para celebrarmos a transição do Público para o Privado, do sujeira tem de expressivo. E, na medida em que se transforma
Sagrado para o Profano, da Natureza para a Cultura, e assim a sociedade, na medida em que começa a exigir das pessoas
por diante. E, nessa comparação das práticas higiênicas com que produzam em outras áreas, torna inviável o dispêndio de
as práticas rituais, poderíamos arriscar, com um certo arrojo, uma parcela igual de tempo e de atenção nas atividades de
~"l>.
limpeza. A cor que "suja menos" cumpre, então, a mesma
-'"'
("'l

".
\.11
colocar no mesmo pé os instrumentos utilizados para a higiene
corporal (lenço, toalhas, papéis, algodão, etc.) e os objetos função racionalizadora
profundamente e rápido".
das fórmulas científicas que "limpam
utilizados nos ritos sacrificiais, porque devem, .ambos, ser des-
~ J. truídos ou purificados, por haverem tido contato com forças
-,::
..•. ç; sagradas consideradas impuras. Por outro lado, as regras de
c.
)) - ~, higiene podem ser invertidas e transgredidas em determinadas
c situações, geralmente ligadas à exaltação da emotividade (amor,
Um estudo detido do processo de socialização revelaria,
provavelmente, que as maiores violências praticadas em nossa
<A r-. ódio, perigo de vida, competições, festejos carnavalescos, etc.), sociedade contra uma criança se ligam à introjeção nelas das
~ regras de higiene: tapas na mão que foi posta em lugares inde-
t.. o que também acontece com as normas rituais, em geral, nas
licenças rituais, nos rituais de "communitas", nos ritos de vidos, pimenta ou esparadrapo nos dedos para a criança não
inversão, etc. chupá-Ios, ridículo à criança que evacua nas calças ("que
vergonha! deste tamanho!") ...
Chegaríamos ao mesmo ponto se lembrássemos que
Existe aí, fundamentalmente, a necessidade de se incutir
Durkheim construiu a sua teoria dos ritos negativos inspirado
um sistema de signos que se apóia basicamente na superiori-
em um modelo que lembra as práticas higiênicas, o que se
dade do Puro sobre o Impuro, mas que contém também muitos
manifesta de pronto na própria terminologia que adota: con-
outros princípios de diferenciação e de organização social. c
tágio, puro, impuro, purificação, imunização. .. O fato é que
nao se trata de dizer que as práticas higiênicas, que a socie-
dade ocidental tem desenvolvido com tanto cuidado, estão
A própria maneira que consideramos "correta"
do corpo constitui uma espécie de código de "boas maneiras"
de falar
t
completamente desprovidas de fundamentação objetiva e que que abriga em si um instrumento de assimetria social, pois
são puras convenções simbólicas, mas de lembrar que são implica, imediatamente, em uma distinção entre quem é
"cultivado" - e pode falar em termos "nobres", "elevados"
também práticas simbólicas, nem sempre consubstanciadas
e "científicos" - e quem é "rude" - e só pode se exprimir
pelas demonstrações científicas - e que, mesmo quando existe
por um vocabulário "baixo", "vulgar" e "indecente".
por detrás delas uma fundamentação objetiva constatada ou
~~ constatável pela ciência, esta fundamentação é, ao nível do A inculcação das regras gerais implica sempre uma
r pensamento e do comportamento das pessoas, que não são ameaça em termos de higiene e de posição social: "se você
~ cientistas e que não estão se comportando nesse' momento não estudar, vai ser lixeiro". As revistas femininas, ao divul-
r- como cientistas, de ordem mítica e ritual. A cientificidade é, garem os produtos de beleza e higiene, difundem também um
então, um instrumento racionalizador. modelo de vida de classes superiores, e um modelo de com-
portamento, em relação ao corpo, procedente de estratos supe-
Compreendemos, então, porque é possível a substituição
riores da hierarquia. Por esta via, suscitam vergonha de seus
da cor branca, tradicionalmente associada à limpeza, nos
próprios corpos, naqueles que não se enquadram nas defini-
banheiros, geladeiras e hospitais, por outras cores, que, segun-
ções desses modelos - o que ocorre invariavelmente, pela
do argumentos, "sujam menos". Ora, a sujeira é evidente-

117
11
própria diferença de estilo de vida que classes diferentes são ausência do bidê é então um signo de marcação da discre-
obrigadas a observar. Esta vergonha não é senão uma maneira pância social e um signo indicador das posições respectivas.
õ de se expressar a vergonha de classe, funcionando, então, o Além disso, a higiene separa as mulheres dos homens:
corpo, como mais um dentre outros objetos possuídos - como "tão bonita e cheirando igual a um homem", "00 desodorante
um signo de marcação de um sistema de assimetrias sociais que protege a mulher onde ela é mais mulher", dizern as
e de desigualdade de distribuição do poder: o mais íntimo e publicidades de desodorante. Determina-se à mulher que ocupe
o mais importante dos signos, porque nunca pode ser desvin- o .seu. lugar. Os desodorantes masculinos devem ter nomes
culado da pessoa a que pertence (9, p. 41-2). viris "Brut", "Agreste" ...
A ascenção na hierarquia está constantemente presente E preciso expulsar a sujeira; expulsá-Ia das profundi-
nos textos publicitários: no do dentrifício que tem "gosto de dades, pois ela se infiltra: os sabonetes são "penetrantes", os
vitória" e que "faz de você um vencedor", no' do desinfe- cremes 'limpam profundamente", os microorganismos "pene-
tante que "foi criado para você", porque "ninguém gosta de tram" nas pessoas - no que talvez encontremos uma das
limpar vasos sanitários". Recentemente, uma: propaganda de razões de ser a boca um dos mais poluíveis pontos do corpo,
papel higiênico narrava uma pequena história: ele era usado pois leva diretamente às "profundezas" - profundezas que
pelo mordomo e pela cozinheira, às escondidas, porque seu são tocas onde se trama uma destruição e que se ligam tam-
uso deveria estar reservado a aristocratas: o mordomo põe um bém à intimidade física pessoal, e um domínio onde operam
~. rolo do mesmo sobre uma bandeja, para levá-Io ao patrão. poderosas forças naturais.
Exprime-se então: a) que este papel tem a dignidade das Os produtos de higiene não são para todo o mundo, para
coisas que vão à bandeja - aparente agramaticalidade, que qualquer pessoa, mas, no máximo, para você e para a sua
sugere que ele realmente pode purificar; b) que há aí uma família: respeitam a sua intimidade. Com as crianças, discute-se
relação de poder: ele é bom demais para simples empregados, a higiene apenas enquanto elas estão sendo "iniciadas"; depois,
dos quais se supõe deverem se purificar menos eficientemente respeita-se a intimidade delas. A oposição entre público e
e c) o cometimento do ato às escondidas sugere a marcação privado sempre está presente. É preciso considerar a impressão
da relação de poder, pois, se o patrão viesse a saber, imedia- que se causa aos outros, quando se exibe a intimidade: toma-se
mente haveria represálias. banho para ser consultado por um médico, para se encontrar
Esta relação de poder está em toda parte nas regras de com uma mulher... A aproximação do íntimo é a aproxi-
higiene: sujam-se lenços, roupas, banheiros, etc. e as limpezas mação de uma Natureza que deve ser culturalizada, para se
são feitas por pessoas situadas em posições inferiores da hier- preservar o status, a imagem, a representação social, o pres-
quia. Muitas vezes, a prática dessas atividades purificatórias tígio. .. o pOVOo diz "roupa suja se lava em casa" ...
é, ela mesma, símbolo de uma baixa posição: O' "lavador de A oposição entre Normal e Patológico também está aqui:
latrina", o "lixeiro", o "estar na merda", o "ser um merda" ... acreditamos que os nossos dentes se estragarão se não forem
O trabalho feminino tem sido quase sempre associado a estas escovados, que os cabelos cairão se não forem devidamente
atividades: os árabes, por exemplo, usam uma mão para comer lavados, que as impurezas são portadoras de doenças. Toda-
e outra para a higiene corporal, mas as mulheres árabes são via, a principal preocupação é com a possibilidade de o indi-
obrigadas a utilizar ambas as mãos para lavar roupas, e limpar víduo se tornar socialmente patológico: as regras de higiene
crianças (41, p. 75-6). E, entre nós mesmos, os banheiros de estão associadas à personalidade sadia. Por isso, os dejetos
empregada doméstica são desprovidos de, bidê, O' que deixa ão jogados para longe: no lixo, no mar ou no fogo - de
crer que há uma suposição quanto a ser o seu organismo maneira a desaparecer do nosso convívio, sob pena de nos
diferente, ou, então, ser diferente a sua condição social. A expulsar do convívio com os nossos. As pessoas de mau-

118 119
.hálito e de mau-odor são marginalizadas. Pelo contrário, quem é de se temer que sirvam a disfarçar algum defeito natu-
usa Halitol pode casar com um parceiro invejável e quem ral dessa espécie, o que deu aliás origem a estes aforis-
usa Rexona sempre encontra um lugar. Enquanto isso, na mos de poetas antigos: 'é sinal de fedor o bom odor'."
expressão publicitária os bandidos são mal barbeados e os
loucos mal penteados e, na expressão popular, os criminosos
cospem no chão, os negros e portugueses são mal-cheirosos Os Códigos da Emoção
e os mendigos sujos e fedorentos - mecanismos que cumprem
a função de identificar o "nós" como oposto ao "eles" e que Dentre as capacidades fisiológicas relativamente bem desen-
já serviu para medir o grau de cultura de um povo pela quan- volvidas em crianças de pequena idade está incluída a de reação
tidade de sabão que consumia ... orgânica àquilo que poderíamos chamar de "estímulos emo-
A oposição entre a Cultura e a Natureza também está cionais". O fato social que deixa este ponto relativamente
('
presente, e é operante em todos os níveis da constituição das claro é o de que no treinamento e educação de criança, desde
c
C' mensagens produzidas a partir da utilização deste código. No as mais tenras idades, a punição e a recompensa constituem
2- filme de Truffaud sobre o "Enfant Sauvage", o primeiro signo importantes instrumentos: violência ou prêmio físicos, senti-
~
-e, de ausência da Cultura é a sujidade e o primeiro indicador da mento de segurança ou de medo, afeto ou negação de afeto.
~ presença da Cultura é o aprendizado, ou a submissão às regras E parece que tudo o que diz respeito ao corpo está, de uma
1>
-\
de higiene. Entretanto, não é preciso ir à origem da Cultura, ou de outra maneira, envolvido em emoções.
c; pois a oposição está aqui mesmo - no out-door que pede Todavia, da mesma forma por que se aproveita da capa-
{'\
~ que você deixe "o banho demorar em você", porque entre a cidade emocional para fazer valer os seus princípios, o pro-
N
sua Natureza, o seu organismo, e a limpeza existe uma incom- cesso de socialização é também, e de maneira muito impor-
> tante, um processo inibidor das expressões emocionais que a
patibilidade, e as forças impuras que emanam do seu orga-
.nismo podem ser controladas apenas provisória e precaria- coletividade tem por inaceitáveis, e incentivador das emoções
mente; na nossa recusa de designar o papel higiênico pela desejáveis: a ética puritana tendia a inibir a expressão de
vinculação da sua função ao órgão a que está associado; no alegria e a exaltar a seriedade; entre alguns orientais, sobre-
lWSSO hábito de lavarmo-nos todas as manhãs e todas as noites,
tudo chineses, a expressão livre da emotividade não é tida
por de bom tom, e, entre nós mesmos, não é difícil ouvir-se
depois ou antes de dormir, para realizarmos mediações entre
dizer que "homem não chora".
os estados naturais e culturais (respectivamente, "dormir" e
Portanto, não é difícil concluir que as estruturas neuro-
"estar acordado"); na nossa preocupação de que os perfumes
lógicas são, até uma medida considerável, formas vazias que
sejam "discretos", "suaves" e "naturais" (?), porque um
as diferentes culturas preencherão diferentemente, e que os
perfume mais exaltado cumpriria a função semioIogicamente
complexos emocionais assim formados estarão a serviço das
inversa da que se deseja, chamando, por contrariedade, a diferentes sociedades, como mecanismos avaliadores e contro-
atenção sobre o cheiro que se quer disfarçar ou banir - o ladores da observância ou não observância das normas com-
que Montaigne percebeu mordazmente: portamentais culturalmente constituídas. De fato, tanto quanto
os sentimentos de vergonha e culpa, ou de desgosto de um
"Eis porque Plauto diz - 'O mais delicioso perfume modo geral, que acompanham a transgressão das normas
de uma mulher está na ausência de qualquer odor'. sociais, as satisfações alcançadas pela realização dos ideais
Quanto aos bons odores provenientes de perfumes agre- sociais são também mecanismos de controle social, sediados no
gados ao corpo, há que desconfiar de quem os usa, pois íntimo de cada individualidade.

120 121
Além disso, é preciso considerar que o "sentir emoção" do estamos aflitos ou quando estamos alegres - mas quase
é também algo que se aprende. O tom emocional dos pais, sempre associamos a emergência de lágrimas a um impulso
ao ensinar as crianças a falar, ou no ensinar a analisar os natural. Todavia, a literatura etnológica registra inúmeros
seus comportamentos, são um importante transmissor dos casos de sociedades que treinam os seus membros a, verter
padrões culturais da emotividade. O fumante neófito de maco- lágrimas quando têm vontade, e cada uma associa as lágrimas
nha - como Becker (3) demonstrou - não sente esponta- a fatos particulares. Entre nós, por exemplo, é relativamente
neamente as emoções e as sensações que caracterizam o ato fácil compreender este fenômeno, se resolvermos observar as
de fumar; há necessidade de aprender, de indivíduos com atitudes das pessoas, dentro ou fora da sala em que se vela
experiência anterior, a reconhecer os efeitos da droga, e de um corpo; ou, num hospital, se resolvermos comparar as
identificar os sinais que indicam o começo da "viagem", assim reações dos médicos e enfermeiras a mortes naturais de
como de aprender a conhecer o significado das diferentes doentes às suas reações a mortes excepcionais (acidentes, por
sensações e emoções que ocorrem "durante a viagem". exemplo), ocorridas no interior do mesmo e vitimando os
As próprias rotulações com que designamos as diferentes próprios médicos, enfermeiros e funcionários.
emoções ou as associações que delas fazemos com diferentes Seria oportuno lembrar aqui as palavras de Durkheim
eventos, não podem ser traduzidas com facilidade de um sis- (23, p. 410): "se o cristão, durante as festas comemorativas da
tema cultural para outro. Otto Klineberg (38, p. 212) observou Paixão, se o judeu, no aniversário da queda de Jerusalém,
que entre os Kwakiutl, a morte de um filho ou de uma esposa jejuam e se mortificam, não é para dar curso a uma tristeza
é ocasião de tristeza, mas, não de uma tristeza acidental, espontaneamente experimentada. Nestas circunstâncias, o
porque é também um insulto que a natureza dirige aos que estado interior do crente carece de proporção com as duras
permaneceram vivos, o que determina que o seu sentimento, abstinências a que se submete. Se, está triste, é, antes de tudo,
nessa oportunidade, seja a configuração de tristeza, vergonha porque se obriga a estar triste e se obriga a isto para afirmar
e raiva. A mesma coisa pode acontecer em relação à emoção a sua fé. A atitude do australiano durante o luto se explica
do amor que, em algumas sociedades, estará associada ao da mesma maneira. Se chora, se geme, não é simplesmente
desejo de posse; em outras, separada dele. O próprio amor para expressar uma dor individual; é para cumprir um dever
"romântico", que celebramos e desejamos, está ausente em que a sociedade circundante não deixa de recordar-lhe quando
muitas sociedades e, mesmo entre nós, é de história relativa- chega o caso". De fato: quando choramos pela morte de uma
mente recente. Rir, para nós, é fundamentalmente expressão pessoa e não choramos pela morte de outra, estamos, no pri-
de alegria, mas sabemos que, em muitas ocasiões, o riso pode meiro caso, cumprindo uma obrigação que diz respeito à rela-
exprimir outra coisa, como deboche, por exemplo. No Japão, ção entre o nosso status e o status da pessoa que morreu, e
rir nem sempre significa que a pessoa está alegre, pois pode dispensados dessa obrigação, no segundo caso.
também expressar que ela está passando por uma situação Se estas expressões emocionais respondem efetivamente
embaraçosa. Ensinamos às nossas filhas que não devem rir a sentimentos verdadeiramente sentidos pelos indivíduos, é
em qualquer lugar, muito menos sorrir para qualquer homem, um problema que escapa do domínio da competência do cien-
e deixamos que elas sintam que podem chorar em caso de tista social; todavia, podemos dizer que estas expressões de
dificuldades - o que para um homem seria humilhante, sobre- sentimentos que estão relacionadas com diferentes posições e
tudo se em público. com os diferentes papéis sociais, mesmo que não signifiquem
Quando, porque e com que intensidade chorar é algo que tristeza para o indivíduo, significam para a comunidade. Além
deve ser aprendido. O aparecimento de lágrima nem sempre, disso, se o abaixar a cabeça significa socialmente "obediência",
como sabemos, significa tristeza, pois choramos também quan- "respeito" e "humildade", é provável que o indivíduo que

122 123
abaixe a cabeça se sinta também "obediente", "respeitador" que significa que têm sempre uma origem intelectual, baseada
e "humilde". em sistemas de classificação da sociedade.
Uma lista de termos que as pessoas rotulam normalmente
como emoções - medo, ira, furor, horror, terror, angústia,
ansiedade, amor, ciúme, vergonha, perturbação, aversão, pesar, Quando os nossos corpos se sentirem cansados, sentir-
tédio, desânimo, mágoa, tristeza, desprezo, repulsa, desgosto, nos-emos sonolentos e procuraremos dormir. Estaremos
remorso, inveja, frustração, dor, ódio, raiva, orgulho, excita- cedendo a impulsos naturais. Todavia, antes de dormir, pro-
mento, animação, prazer, divertimento, felicidade, alegria, curaremos nossos parentes e desejaremos a eles que tenham
humor, sensação estética, disposição, impaciência, admiração, uma boa noite; escovaremos os dentes; escovaremos os cabe-
exaltação, êxtase, etc. não revelaria elementos cujos domínios los; às vezes tomaremos banho; mudaremos de roupa e,
sejam nitidamente demarcados e, arriscaríamos dizer, univer- conforme o nosso credo, rezaremos ou não; e, pela manhã, ao
salmente presentes segundo as diferentes sociedades e as acordarmos, repetiremos alguns desses atos. Dormir é uma
classes sociais.
necessidade natural, mas é também um fato cultural e um
Os próprios psicólogos têm enfrentado uma série de difi-
rito. A relação dos homens com suas necessidades naturais
culdades para definir "emoção" e para fazer o conceito dife-
não é simplesmente uma relação com a Natureza: sofre a
rente de outros conceitos afins . ("sentimento", "sensação",
mediação de uma Cultura que imprime nela as suas próprias
etc.), e observaram que nenhuma das reações envolvidas orga-
nicamente nas emoções - seja visceral, endócrina, esqueletal concepções.
ou nervosa - é específica a determinadas emoções, não Não se pode compreender a Natureza do homem apenas
sendo, então, possível, neste plano, estabelecer uma linha em termos de Natureza, pois na mesma matéria coexistem um
divisória entre as diversas reações emocionais (15, p. 11) _. corpo biológico e um corpo social. A experiência do corpo é
o que sugere que as reações orgânicas, se bem que importantes sempre modificada pela experiência da Cultura. O que cha-
na predisposição e na expressão das emoções, não são, por mamos de "necessidades naturais" só nos é acessível após ser
.,..., si mesmas, suficientes para dar conta da questão. traduzido e retraduzido por todo um conjunto de normas e
...
v'
~t) Portanto, uma análise do fenômeno corporal da emoção valores que constituem a lente sem a qual somos todos cegos
~ ~ está simultaneamente fora do corpo. Como qualquer sistema e insensíveis. Portanto, a percepção do corpo é função da
~ t.' de comunicação, as emoções estão submetidas a uma gramá- organização da sociedade e do modo de relação do corpo com
~ tica, ou seja, a um sistema de convenções que ditam a inten- as coisas - e as práticas corporais são atualizações de repre-
~ sidade, a situação, a razão e a forma delas, por um lado, e
sentações mentais. E, consciente ou inconscientemente, expres-
(' que servem, por outro, para conotar ou para' classificar outros
sa essas práticas e essas representações, desencadeando um
0...... sistemas de convenções e outras relações sociais, o que acon-
processo de redundâncias que as fazem sempre vivas e mais
Zc tece, por exemplo, quando se considera determinado procedi-
mento como "odioso", "triste", "nojento" ...
C>
reais.
,.!:. Sendo um código conotador e controlador, as emoções No corpo está simbolicamente impressa a estrutura social;
g. não podem ser consideradas, pelo sociólogo, como simples e a atividade corporal - andar, lavar, morrer - não faz mais
/ desordens psicofisiológicas, pois, em graus variáveis de cons- do que torná-Ia expressa. A estrutura biológica do homem
/' ~ ~. ciência, são parte integrante das relações sociais, e um dos possibilita-lhe ver, ouvir, cheirar, sentir, e pensar, mas a Cul-
___-t '1. níveis de significação delas, - quer como respostas à ordem tura fornece o rosto de suas visões, sentimentos e pensamentos,
J\
C; das coisas, quer como conseqüência da ausência de ordem, o
,.
criando novos cheiros, sons e visões, constituindo novos uni-

4 125
versos e -r-r- novos corpos. Universos e corpos novos, simbó- CAPíTULO III
licos e reais. Reais, exatamente porque simbólicos, porque
todo símbolo se define por um sistema e todo sistema por o NOJO DO CORPO
uma lógica. Lógica que impõe, a todos, os seus pressupostos,
OU A MAGIA SEM MAGOS
de forma que, tomando esses pressupostos por verdadeiros e
sendo eles mesmos termos dessa lógica, os homens-crentes
"Classifica-se como se pode, mas
confirmam-se reciprocamente as suas interpretações do mundo.
classifica-se" .
Lévi-Strauss

Procuramos apontar, nos capítulos anteriores, alguns princípios


estruturais da organização das sociedades humanas e as ma-
neiras pelas quais as diferentes culturas os expressam simbolica-
mente em suas apropriações do corpo humano. Mantivemo-nos
a um nível de generalidade capaz de traçar de modo simples o
perfil geral da questão, bem como de esboçar o caráter dos
principais problemas envolvidos. Trataremos agora de voltar os
nossos olhos para (J panorama específico da apropriação social
do corpo humano na nossa sociedade, objetivando compreender
o significado particular da relação que aqui os homens mantêm
com seus próprios corpos e com os alheios.
Para realizar este trabalho de especificação e aprofunda-
mento, ser-nos-á necessário retomar alguns pontos já aborda-
dos: conceitos, teorias e problemas que, burilados, permitirão
a sistematização maior da análise e o aguçamento mais desen-
volvido da nossa percepção do significado social da questão.
Portanto, para progredirmos no nosso trabalho, será necessário
fazermos uma espécie de marcha-à-ré: retrocesso teórico e ana-
lítico cujo escopo é o do enriquecimento da nossa marcha para
a frente. Todavia, ao andarmos para a frente, analisando os
comportamentos, pensamentos e sentimentos das pessoas em re-
lação aos componentes do corpo humano que elas consideram
"nojentos", não sairemos do lugar: apenas progrediremos na
compreensão do mesmo problema fundamental, que é o da re-
lação entre a natureza biológica e a natureza social do homem.
É claro que não chegaremos ao entendimento cabal da
questão - pois ela é o principal desafio com que se defronta
a Antropologia - mas poderemos lançar alguma luz sobre a

126 127
natureza do nosso comportamento e sobre o sentido dos nossos nificacionais são as relações entre elementos do corpo e não os
sentimentos. elementos propriamente.
Este é um ponto a estabelecer claramente: quando pro-
curamos compreender as práticas e as concepções de que o
o historiador das teorias sociais poderá registrar, desde os corpo humano é objeto, não estamos buscando relações entre
primórdios do pensamento social, a intuição da relação entre "órgãos" e "instituições", nem entre "funções" e "papéis". O
corpo e sociedade. Quer para efeitos didáticos, quer para efeitos que queremos é compreender como é que um sistema de opo-
teóricos, não foram poucos os sociólogos que viram na socie- sições entre "órgãos" e "funções" foi tomado como modelo
dade um organismo, formulando analogias, às vezes entre o para plasmar a representação das relações sociais, e, por outro
sistema orgânico e o sistema social, às vezes entre partes do Jado, como um sistema de relações sociais serviu de modelo
sistema orgânico e partes do sistema social. Para alguns, a so- para se pensar as relações entre os "órgãos" e as "funções" do
ciedade era um todo orgânico, composto de órgãos e funções: corpo humano.
(I casamento teria a função de satisfazer o instinto sexual; o
sistema culinário, a de satisfazer as necessidades alimentares;
o econômico, satisfaria necessidades gerais. .. Para outros, as Os Códigos do Corpo e os Cédígos da Sociedade
vias de transporte seriam vias "circulatórias", o governo seriá
o "cérebro" da sociedade, e assim por diante. Embora as religiões continuem a insistir sobre a metáfora do
corpo nas expressões do tipo "não estamos isolados porque fa-
Portanto, não é nova a idéia da relação entre o corpo e a
zemos parte de um Corpo Místico", embora a palavra "corpo"
sociedade. Entretanto, a colocação exata do problema vem
continue a ser empregada para designar a idéia de "comuni-
tomando forma apenas em estágios relativamente recentes do
dade", embora o vocabulário corporal sirva freqüentem ente de
conhecimento social. Hoje, os antropólogos sociais sabem da
vocabulário sociológico e político, a consciência social moderna
inconveniência epistemológica de se considerar o sistema social
parece reconhecer cada vez menos as dimensões culturais do
como um sistema em que os órgãos "servem" para desempenhar
corpo humano. Para a consciência moderna, à primeira vista, a
determinadas funções; conhecem também a "arbitrariedade"
fisiologia é cada vez mais "fisiológica" e a anatomia cada vez
dos signos, a ponto de não mais poderem sustentar a necessi-
mais "anatõmica". A alimentação e a satisfação das necessida-
dade da relação significacional entre, por exemplo, a mão e o
des fisiológicas são, para o homem moderno, com o seu cien-
trabalho, a cabeça e o poder, os olhos e o conhecimento, o
tificismo, processos simplesmente naturais, e a associação desses
sangue e o parentesco.
processos com crenças e procedimentos místicos e religiosos
A análise significacional de inspiração saussureana esta- pertencem ao domínio da primitividade 'e das "superstições".
beleceu que os termos não valem por seus conteúdos intrínse- Todavia, o corpo é sempre uma representação da sociedade,
cos, mas significam por suas posições em um sistema de opo- e, como acabamos de ver, não há processo exclusivamente bio-
sições. Os significados sociais da cabeça, dos pés, dos órgãos lógico no comportamento humano. Se a consciência social mo-
sexuais, são funções das relações entre esse sistema e o sistema derna se omite da explicitação desses aspectos sociológicos, é
social global. Além disso, como pretendemos deixar claro nas porque ela não é o lugar em que estes podem ser encontrados.
páginas posteriores, não poderá ir imuito longe na análise, se Como parte do comportamento social humano, o corpo é um
esta procurar estabelecer relações unívocas e diretas entre "par- fato social. É parte de um fato social "total", em que cada
tes do corpo" e "partes da sociedade", uma vez que o sistema é parte depende da totalidade para extrair o seu sentido. É parte
fundamentalmente conotativo e uma vez que os elementos sig- de um "todo". Contudo, considerando a "totalidade", poderá o

128 129
cientista preencher a lacuna da consciência social, lacuna esta linguagem falada, ou a linguagem escrita, que apenas se "refe-
que, por si mesma, cumpre já sua função significacional na "to- rem" a coisas com as quais não se confundem, que apenas "re-
talidade". presentam" intelectualmente as coisas que expressam, que ape-
Na análise da problemática do "nojo do corpo", estaremos lias apontam a consciência para determinados fatos. Nas codiíi-
lidando com esta lacuna. Estaremos pisando em um terreno em cações do corpo, a apropriação intelectual é matizada de emo-
que o cientificismo da consciência social moderna obscurece a cionalidade; a consciência intelectual se obscurece por condutas
sua expressão social, o retrato que traça do sistema social atra- emocionais que expressam sentidos inconscientes. As reações do
vés dos produtos do corpo, de seus orifícios, de sua articulação, nojo são condutas dessa espécie: simbolizam, sob a capa da
de seu controle. Estaremos buscando uma imagem inconsciente emotividade, significados infinitamente afastados das coisas de
da sociedade em que se apresentam como "naturais" e "desejá- que se tem nojo, mas que a elas se reúnem no plano do in-
veis" todo um sistema de pensamento e todo um sistema de consciente.
poder, e como naturais e "indesejáveis" a negativa deles. Ao realizar esta condensação, os elementos do corpo, que
Estaremos lidando com processos simbólicos mais que com se erigem em significantes das relações sociais, se transformam
processos naturais, pois, como vimos, porque é elemento de em unidades polissêmicas. Cada elemento ou relação corporal
um complexo social, o corpo é um complexo de símbolos; um refere-se não a um aspecto apenas da ordem social, mas a mui-
sistema simbólico que porta a sua mensagem, mesmo que os tas realidades. O que temos é a relação entre um elemento de
seus receptores e emissores não estejam ou não sejam conscien- um sistema significante e um elemento de um sistema significa-
tes dela. Um sistema de símbolos que está sempre presente no do, do que resulta que cada elemento significante e cada ele-
comportamento social em relação ao corpo, ou 110 comporta- mento significado apresenta-se como função de dois sistemas.
mento do corpo em relação à sociedade, mesmo que esta Portanto, a relação é multívoca e polissêmica, já que poucos
]1 presença seja apenas uma associação simbólica, presença elementos corporais representam toda uma estrutura social.
in absentia, porque qualquer mensagem supõe a totalidade O corpo significa ao mesmo tempo a Vida e a Morte, o
do sistema de que provém. Normal e o Patológico, o Sagrado e o Profano, o Puro e o Im-
No corpo, a ordem fisiológica material se une à ordem puro. Ocupa, como diria Victor Turner (71, p. 59), uma "po-
ideológica moral, como signos nos quais se encontram e se sição nodal com referência às séries entrecruzadas de classifica-
reúnem o sensível e o inteligível, o significante e o significado. ção", embora, para cada efeito, possa um dos seus significados
O~ fenômenos e processos fisiológicos se erigem em significan- ser especialmente destacado, tornando-se ele, então, monossê-
tes, cujos significados são fenômenos e processos sociológicos. mico, para o propósito ou a situação, pela predominância de
Em um mesmo e único signo reúnem-se as duas modalidades um de seus sentidos sobre outros que permanecerão latentes.
de existência do homem, estabelecendo-se um diálogo do ser Este caráter polissêmico dos símbolos corporais representa,
com o dever ser - um diálogo em que nenhum dos interlocuto- para a análise, uma enorme dificuldade. É impossível levantar
res deixará de se matizar peJo outro. A reação do nojo é exa- um léxico variável pelas etimologias, empregos e contextos par-
tamente o produto dessa troca de qualidades entre o sensível ticulares. O estudo completo da semântica corporal compreen-
e o inteligível; é, como pretendemos mostrar, a expressão, ao deria um estudo completo dos contextos sociais que contribuem
nível psicofisiológico, de agramaticalídades ao nível socioló- para o significado dcs termos em cada mensagem. As definições
ico. formais dos significados dos termos dizem bastante pouco sobre
As codificações do corpo condensam em si as codificações as frases em que estes termos são empregados. Teríamos que
h, organização social. Não são como os códigos telegráficos, a realizar o trabalho de classificar as diferentes situações sociais

I O 131
em que estes símbolos são empregados e as transformações que É, enfim, mostrar que existem modelos, subjacentes à cons-
eles sofrem em cada uma. Teríamos que observar o uso que ciência, que a plasmam. Modelos que funcionam como uma es-
as pessoas fazem dos símbolos corporais que utilizam para se pécie de gramática generativa estruturadora, capazes de suprir
comunicar, e não apenas apreciar o que as pessoas dizem desses as lacunas do vocabulário, de produzir sentido pela atribuição
símbolos. Resta-nos, então, na impossibilidade de realizar o das qualidades estruturais do conhecido ao elemento novo des-
estudo completo, compreender, pelo menos, a gramática desse conhecido, capazes de fazer com que os indivíduos considerem
código. nojentas coisas até então desconhecidas por eles (um verme
Sobre as coisas consideradas nojentas, é sempre necessário particular desconhecido, tal ou qual secreção ...), porque o novo
perguntar quando, como e por que elas são nojentas e quando é apreendido e incorporado por um sistema codificador que
como e por que deixam de ser nojentas. É preciso compreender o analisa e o identifica em função de determinadas dimensões do
as situações em que aparecem e a identidade que então os pro- já conhecido (Natureza/Cultura, Dentro/Fora, Intimo/Público,
dutos corporais adquirem. Uma mulher considerará repulsivo o Sagrado/Profano ... ), antes de o posicionar em um sistema
catarro que escorre do nariz de sua cozinheira, mas verá comple- cIassificatório e de ditar as atitudes convenientes em relação a
tamente diferente o que provém de seu filhinho adoentado. É ele.
preciso explícitar o código dessas situações. É este código das codificações, esta estrutura fundamental,
Da mesma forma que existem situações codificadas, exis- abstrata e geral, que queremos compreender, a partir da análise
tem códigos situacionais, isto é, códigos alternativos, paralelos, das práticas e das crenças que identificam os produtos do corpo
que o indivíduo elege de acordo com as situações particulares humano como "nojentos".
em que se encontra. Uma criança socializada em duas línguas
utilizará uma delas em casa e outra na escola com os amigos.
Vimos que as praticas corporais são. comportamentos ri-
Igualmenfe, em relação. às codificações do comportamento para
tuais sustentados por crenças míticas. Todavia, a expressão sig-
com as coisas tidas por nojentas, haverá códigos para situações
nifica pouco se não procurarmos estabelecer o que entendemos
públicas, íntimas, eróticas, formais', etc ... por rito e mito e se não aproveitarmos estas constituições con-
Portanto, falar em "código" é falar de uma abstração. É ceptuais para levar adiante o entendimento dessas práticas e
tentar reunir, ao nível do. intelecto, separando as diferenças, rea- dessas crenças. Tentaremos conceptualizá-los de maneira pro-
lidades múltiplas e heteróclitas. É pensar na generalidade so- pícia à análise significacional a que estamos procurando proce-
ciológica e esquecer as particularidades dos indivíduos. É pen- der, já que estes conceitos não são consensuais entre os cientistas
sar em regras abstratas e negligenciar as situações concretas em sociais e já que mesmo os antropólogos (ou principalmente) não
que são. implementadas. É codificar as codificações. se encontram sempre de acordo sobre os seus exatos significados.
É codificar as codificações dos sexos, das idades, das po- Dentre os modos de se abordar o comportamento ritual,
sições sociais, das situações. É determinar os diferentes níveis um dos mais difundidos é o de considerar os seus propósitos ou
de codificação do. pesquisado, relacionando o que os informantes finalidades manifestos, o que ilustra a própria terminologia:
dizem com o que os informantes fazem - o que poderá ser ritos de inversão, ritos de passagem, ritos propiciatórios, ritos
completamente diferente em cada caso. É distinguir cuidadosa- comemorativos, etc. Todavia, o propósito de um rito, se bem
mente as codificações dos atores sociais, os seus modelos cons- que importante para a análise, diz muito pouco sobre suas reais
cientes, das codificações do analista, do cientista social, incons- dimensões: as práticas higiênicas são ritos purificatórios - e
cientes para os atores, quê mais?

132 133
E preciso, então, ver nas práticas rituais os seus compo- Contudo, nenhum rito expressa, segundo entenderemos nes-
nentes expressivos, as mensagens que portam sobre a vida so- te trabalho, diretamente o comportamento social. Os mitos e os
cial. Em todo rito, ao se fazer alguma coisa, diz-se alguma coisa. ritos têm uma certa liberdade em relação às' particularidades da
Os ritos. propiciatórios prometem tanto quanto expressam. Um vida social e os ritos higiênicos, sob esse aspecto, não são dife-
feiticeiro fazedor de chuva, antes de produzir chuva, produz toda rentes: não pretendem expressar diretamente as regras do com-
uma etnometeorologia. portamento cotidiano (embora sejam, eles mesmos, regras de
A assepsia corporal é também uma profilaxia simbólica. comportamento cotidiano), mas atualizar e reforçar uma estru-
Um rito não se pode compreender apenas por suas ações inter- tura de pensamento a que o comportamento cotidiano está sub-
nas, imanentes, por seus propósitos, pelas crenças míticas que metido. Eles são práticas que portam em si, disfarçadamente,
o suportam: é preciso remetê-Io à sua significação exterior, à teorias sobre o mundo e a sociedade, porque, quando a eles nos
sua relação com o complexo etnográfico de que faz parte e que submetemos, não temos consciência de estarmos entrando em
faz parte dele, aos poderes que lhe dão autoridade e às normas contato com a totalidade condensada da estrutura social. Ao
de comportamento e pensamento que a partir destes poderes es- escovarmos os dentes, lavarmos as mãos ou espirrarmos em len-
tabelece. Enfim, o comportamento ritual não pode ser entendido ços, estaremos inconscientemente atualizando o velho princípio
como um simples meio de se conseguir algo: é preciso também místico de que é sempre possível a uma coisa ser representada
considerar a sua eficácia simbólica. por outra coisa.
Também e principalmente - porque a eficácia instrumental O conteúdo manifesto dessas práticas remete, portanto, a
dos ritos não é senão um subproduto de sua eficácia simbólica. conteúdos implícitos. Os signos corporais são significados de
As práticas higiênicas imunizam mais as idéias que as coisas; elaboração secundária, com nova ordenação, com novos propó-
os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social sitos. São mensagens decodificáveis a outro nível: vomitar não
que a vida orgânica, e, por isso, são objeto de ritos purificató- é mais simples perturbação do aparelho digestivo, mas signifi-
rios. O microorganismo, como vimos, é, para os indivíduos, cante das oposições entre Natureza e Cultura, Interior e Exte-
conceito de uma linguagem mítica que se apresenta sob a capa rior, Aceitação e Recusa, e assim por diante; suar não é mais o
da cientificidade. resultado do trabalho das glândulas sudoríparas, mas a repre-
Pelos ritos, os homens expressam, afirmam e reafirmam a sentação material da oposição entre Trabalho e Repouso; lavar
sua solidariedade e a sua interdependência, expressas em senti- não é mais uma prática instrumental de cuidado e preservação
mentos, valores e forças naturais que eles dominam e manipulam da saúde, mas um mecanismo simbólico-inconsciente de mediar
simbolicamente, a fim de garantir, pela reafirmação periódica, ou separar domínios em oposição.
a ordem ideal do universo: um sistema de pensamento em que São portanto,essas práticas, ritos que traduzem, para a
o mundo é apresentado como um todo ordenado, que em cada linguagem do corpo, toda uma linguagem do comportamento
coisa tem o seu lugar. social; ritos que imprimem no homem uma espécie de consciên-
O propósito principal, então, das crenças e práticas higiê- cia visceral do mundo, altamente codificada, estruturada, rigo-
nicas é fixar modelos para o comportamento das pessoas, impe- rosa e socializada, em que as possibilidades de escolha são limi-
dindo que transgridam limites ,e desorganizem a ordem simbó- tadas a mínimos parârnetros - porque qualquer liberdade é
lica. As coisas poluídas, as coisaspoluígenas, as coisas nojentas, altamente significativa e põe em risco a totalidade do sistema
são coisas perigosas para a ordem intelectual. Portanto, as ra- de ordenação do mundo.
zões sociais dos ritos higiênicos não podem ser encontradas neles A estruturação do corpo reproduz condensadamente a es-t
mesmos, mas apenas no sistema social que expressam. truturação do mundo, e esta condensação não pode, sem correr

134 135
o risco de transgredir os limites que separam categorias diferen- po encaminha, motiva, convida o pensamento a pensar a erga-
tes, permitir um largo campo de alternativas sintáticas. Também nização da sociedade. As características do corpo abrem para
em virtude da condensação, as mensagens possíveis são em gran- o pensamento a possibilidade de formular analogias com a es-
de medida repetições de um repertório restrito de possibilidades, trutura social e estimulam o homem e revivê-la, Como vere-
de maneira que cada prática veicula consigo a totalidade dos mos, as características do corpo são, como diria Lévi-Strauss,
princípios estruturais envolvidos, numa repetitividade redundante "boas" para pensar a vida social.
que faz recorrerem os pontos importantes, duplicando-os, trípli-
Todavia, é necessário nos precavermos contra o perigo de
cando-os no mesmo ato básico, tornando-os cada vez mais vivos
supor que existe algo no corpo que determina uma imagem par-
e atuantes.
ticular da sociedade. Pelo contrário, é a sociedade que mani-
Tal condensação não é, entretanto, uma redução dos sím-
pula o corpo para expressar-se. A sociedade não procura so-
bolos que governam o comportamento social a um ou dois de-
mente dar um sentido às secreções e aos componentes da estru-
les: é uma reprodução abstrata das relações que unem um sím-
tura somática: ela atribui sentido a si própria, por intermédioj
bolo a outro. O corpo é um modelo cujo sistema de relações
deles. Sem que os homens o saibam expressamente, ao
pode representar outros sistemas de relações: seus limites, seus
pensar o corpo estão pensando a estrutura social e, ao defendê-
componentes, seus produtos, seu equilíbrio, seus poderes - por- 10, estão defendendo a ordem social.
que todo sistema apresenta uma certa semelhança formal. É a
Antes de tudo, as categorizações do corpo são categoriza-
esta forma semelhante que se refere a reprodução que o corpo
ções sociais. A linguagem que apreende o corpo é uma insti-
expressa.
tuição social: uma linguagem que volta a suas fontes para apre-
O seu conteúdo é uma outra forma. A mensagem socioló-
ender a própria sociedade. A sociedade codifica o corpo e as
gica do corpo, e das práticas e crenças que a ele se ligam, não
codificações do corpo codificam a sociedade. As relações da so-
. está em nenhum conteúdo substantivo privilegiado, mas na
ciedade com o corpo são relações da sociedade com ela mes-
aproximação de duas padronizações formais de relações lógicas,
ma; são codificações lógicas tanto quanto morais.
de maneira a fazer com que uma equivalha à outra, numa rela-
Ao controlá-los e evitá-Ios, a atitude ante os componentes
ção de substituição por meio da qual uma unidade de sentido
do corpo que a sociedade considera "nojentos" ajuda a contro-
se estabelece,
lar as relações sociais. As proibições e prescrições significam,
As codiíicações do corpo e as manifestações afetivas que
então, pela sua observância ou pela sua transgressão, um outro
acompanham as reações de nojo, respondem. à intolerância do
sistema de significação, anterior, do ponto de vista lógico e
homem à ausência de sentido no mundo em que ele vive. O cronológico, ao sistema de signiíicantes corporais.
inconformismo da conduta corporal corresponde ao inconfor-
Victor Turner (70, p. 87) observou que "uma sociedade
mismo da conduta intelectual: as codificações do corpo são
não é uma coleção de individuos, mas um conjunto de con-
também codificações do mundo. São de ordem intelectual, e as
ceitos". Isto é verdadeiro, uma vez que as próprias idéias de
reações afetivas não são senão uma maneira particular de ma-
"pessoa", "indivíduo" e "individualidade" são conceitos social-
nifestação, para a consciência, da estruturação intelectual in-
mente construídos e, portanto, variáveis culturalmente. Temos
consciente do mundo.
insistido sobre o fato de ser a ordem uma questão de sobre-
As partes e os produtos do corpo que se consideram "no- vivência para este sistema de classificação que é a sociedade
jentos" traduzem relações concebidas pelo pensamento; as pro- humana, por mais que a importância vital dessa exigência não
priedades que a sociedade neles reconhece deixam entrever pa- figure abertamente expressa para a consciência dos atores
ralelismos com a própria estrutura social. A organização do cor- sociais.

13 )
137
Em um mundo equilibrado e organizado, cada coisa ocupa militar, cuja lei básica é a da inversão e transgressão totais da
o seu lugar e cada categoria de coisas deve estar nitidamente ordem social normal.
diferenciada das demais. Entre elas, nenhuma mistura deve ser O terreno do nojo é o da confusão de domínios, o do des-
produzida, pois arriscaria corroer a fisionomia organizada do regramento, ou, como no caso do Castelo Sadiano, o da "outra"
mundo, que é fonte de bem-estar. É necessário respeitar a sepa- ordem antagônica. Ingerir alimentos no banheiro, ao defecar;
ração dos elementos, pois esta separação é criadora de sentido. espirrar, tossir ou pentear-se em uma cozinha ou restaurante;
As evitações dos elementos corporais "nojentos" são re- falar sobre feridas purulentas à mesa; colocar papel higiênico
gras de manutenção da ordem do universo simbólico estrutu- sobre a mesa de refeições - ilustram a gramaticalidade funda-
rador. A sociedade tanta questão faz de que estas regras sejam mental que está na base dessas relações que a consciência po-
observadas, de que esta ordem de conceitos seja respeitada e pular rotula de "nojo".
mantida, que qualquer transgressão é sentida pelos indivíduos Todavia, essas agramaticalidades não têm apenas um con-
como uma enorme violência, com pesadas conseqüências para teúdo negativo. A desordem, a transgressão, a confusão de do-
o seu equilíbrio psíquico e fisiológico. Se a observância dessas mínios, cumprem também a função semiológica de afirmar a
regras é exigida com tal intensidade, e se as transgressões delas ordem que ameaçam. A impureza, do ponto de vista lógico, ao
não colocam a sociedade em risco material aparente, é porque mesmo tempo enfatiza o valor social das instituições que faz
essas regras devem apresentar, a um nível inconsciente, cru- periclitar. A desordem põe em evidência semiológica a ordem
cial importância simbólica para a ordenação do sistema social. contra a qual ela trama.

O Marquês de Sade apreendeu magnificamente este prin- A nossa evitaçãodo sujo é de ordem simbólica e classifi-
catória, antes de orgânica e patológica. A descoberta dos orga-
cípio e o utilizou propositalmente como instrumento agressor
nismos patogênicos é posterior, muito posterior, à idéia de su-
à ordem social, procedendo ao que Rolland Barthes (2, p. 38-9)
jidade - quer do ponto de vista histórico-cronológico, quer do
denominou "violência metonímica", encadeando, em um mesmo
ponto de visa biográfico-individual, quer, ainda, do ponto de
sintagma, elementos heterogêneos imisturáveis, pertencentes a
vista lógico (já que o "perigo" dos microorganismos está 'an-
domínios diferentes do pensamento. No seu Castelo - referimo-
teriormente presente em outras formas de poluição).
nos a Os cento e vinte dias de Sodoma as dejeções eram
Uma pessoa entrevistada narrou que "certa vez estava
alimentos, os banheiros eram capelas e os parceiros sexuais
andando pela rua, quando um homem, que vinha na direção
eram consangüíneos.
oposta, escarrou; o produto desse ato depositou-se sobre o meu
Sade, conscientemente, feriu a sociedade no que ela tem braço. Então corri para a casa de uma amiga, onde lavei e
de mais basilar - as relações entre o Sagrado e o Profano, o desinfetei o braço. Isto aconteceu realmente e acho que foi uma
Puro e o Impuro, a Natureza e a Cultura - produzindo um das coisas mais nojentas que já me ocorreram, pois, além do
novo mundo social, caracterizado pela transgressão dos prin- nojo, fiquei com medo de que 0' catarro transmitisse-me alguma
cípios mais caros à sociedade exterior aos muros do Castelo. doença". A expressão que grifamos deixa-nos ver claramente
De preferência, o efeito se produzia pela mais completa mescla que a patogenicidade é independente do nojo, e que existem
de todas as classes e pela inversão simultânea de todos os outros fatores atuando, além dos microorganismos portadores
princípios: a mais imunda relação sexual, entre um bispo e de doenças.
sua filha; a invocação do "eu de Deus"; a reingestão do ex- Embora possa haver uma coincidência bastante larga entre
cretado fisiologicamente, suponhamos. A sociedade sadiana a poluição da Microbiologia e a poluição da Sociologia, o pon-
tem uma ordem, como qualquer sociedade. É uma ordem rígida, to importante a considerar é exatamente a sustentação ideoló-

138 139
gica que o recurso a uma pseudomicrobiolcgia fornece para a o fato de uma pessoa ser ameaçada de morte, ou de se
legitimação das regras de evitação do corpo. É claro que exis- ver desprotegida diante de um animal feroz pode produzir medo,
tem regras de higiene que não encontrariam apoio em uma mas não representa perigo para mais ninguém e não requer
verdadeira Microbiologia e prescrições microbiológicas inteira- nenhum procedimento ritual posterior. Entretanto, um indivíduo
mente desconhecidas pelas regras e hábitos sociais. As regras poluído é também poluígeno, uma coisa suja deve ser afastada,
de higiene mudam tanto com a mudança dos nossos conheci- e a normalidade só pode se restabelecer por meio de procedi-
mentos microbiológicos, quanto com a mudança do sistema mentos simbólicos que recolocam as coisas em seus devidos lu-
social ou das situações sociais em que são implementados os gares. O medo que as pessoas têm de um leão não é exata-
comportamentos dos indivíduos. Como resumiu Mary Douglas mente igual ao medo que têm de baratas, ratos, e outros ani-
(18, p. 17), "nossa idéia de sujo é composta de duas coisas: mais associados a obscuros orifícios, a lugares sujos, ambíguos
cuidado pela higiene e respeito pelas convenções". c perigosamente situados no espaço intelectual.
A reação de nojo é uma reação de respeito pelas conven- Baratas, ratos e vermes são tão destrutivos como leões
ções que classificam e separam, assim como o ato de purificar - mas de uma maneira diferente. Quem tem contato com
é um ato de retirar as manchas que borram as linhas de mar- eles se torna impuro; quem convive com leões, controla-os. O
cação dos limites de cada categoria, porque é necessário haver primeiro caso não representa perigo material, mas desloca as
separação para haver comunicação e haver sentido para a po- regras, e questiona a ordem do mundo. O segundo caso re-
luição ter sentido. Uma coisa nojenta é sempre uma coisa que presenta um perigo material: conviver com leões ou defrontar-
cruza indevidamente uma linha demarcatória, estabelecendo-se se com eles é um rompimento da regularidade material cotidia-
em um lugar impróprio e deslocado no sistema de ordenação. na, representa insegurança e gera medo. O contato com ratos,
A reação do nojo é uma reação de proteção contra a trans- vermes, baratas, etc. é um rompimento com a ordem intelec-
tual que estrutura a regularidade cotidiana; representa inse-
gressão da ordem.
gurança simbólica e gera nojo. Enquanto o medo pode ser uma
Para haver nojo é preciso haver perigo de impurificação, reação instrumental (prevenir um perigo real e concreto), o
e esta aparece sempre que uma estrutura de idéias é contraria- nojo é sempre expressivo e deve ser simbolicamente tratado
da, e quando as regras são transgredidas e as coisas deslocadas por ritos purificatórios.
de seus lugares. O sujo é a manifestação do desorganizado e do
As reações de nojo, e os ritos de higiene, protegem uma \
incontrolado. É a expressão da desordem. "As crenças em po-
estrutura frágil que qualquer contato agramatical pode destruir.
luição derivam da atividade racional, do processo de classificar São uma espécie de reação contra os elementos que escapam
e ordenar a experiência", escreveu Mary Douglas em seu ver- do sistema de classificação e o desafiam por suas simultâneas
bete na Iruernational encyclopaedia of lhe social sciences. pertinências a domínios opostos - o Natural e o Cultural, o
A reação do nojo se aproxima da reação do medo, na me- Humano e o Animal, o Sagrado e o Profano, o Puro te o Im-
dida em que ambas se defrontam com o perigo representado puro, o que o homem produz mas não retém - como todas
pelas coisas anômalas, ambíguas, intersticiais e transgressoras, as emanações do corpo humano.
que ameaçam o controle que o homem exerce sobre o mundo, Estas emanações não podem representar outra coisa senão
controle que lhe proporciona toda a sua segurança. A impureza um perigo simbólico, isto é, são símbolos de perigos sociais.
é anormal, insólita e excepcional, como as coisas de que se Como tal, são partes integrantes da estrutura social, porque as
tem medo - mas, diferentemente do que acontece no medo, pressões que uma sociedade sofre, assim como as suas contra-
o nojo exige purificação. dições, são elementos constitutivos da totalidade do sistema

140
social, e os limites que separam as categorias do pensamento "Nojo é uma coisa viscosa que abala o sistema nervoso
exprimem também as maneiras corretas pelas quais estas ca- central, que geralmente vem pelo sentido do cheiro, às
Ltegorias podem se intercomunicar. vezes do tato, às vezes da imaginação." (F-25)
Seria interessante examinarmos a categoria "nojo", hem "Definir nojo é quase impossível: a definição exata é a
como algumas situações sociais concretas em que ela se ma- nossa reação perante ele: nossas expressões faciais, nossas
nifesta, a partir de dados de entrevistas, para que possamos contrações e a nossa expressão verbal." (M-20)
levar um pouco adiante a análise, pisando em terreno empírico "Ê aquilo que sentimos quando deparamos com uma subs-
seguro. Arrolaremos alguns trechos destacados de entrevistas, tância qualquer, dentro de uma característica anti-higiê-
incidindo, em primeiro lugar, sobre a definição de "nojo", e, nica." (M-26)
em segundo lugar, narrando alguns acontecimentos em que as "Ê o que se sente quando por percepção visual ou física,
pessoas entrevistadas sentiram nojo em relação, basicamente, a se tem contato com coisas que, pelos nossos conceitos dian-
partes e produtos do corpo humano: te delas, não nos sentimos bem. Sinônimos: enjoativo, por-
Primeira pergunta: "Dê uma definição do "nojo" e cite caria, imoral." (M-27)
sinônimos". "Nojo não tem definição, pois é uma coisa que a gente
Respostas: sente." (F-21)
"Quando se olha para alguma coisa suja e melada, dá arre- "Nojo é uma coisa que nos dá repugnância. Quando eu
pio e revolta o estômago." (F-26) sinto nojo de alguém ou alguma coisa, eu estou sentindo eno-
"Nojo": atitude de repúdio associada a algo que, psicolo- jôo, vontade de vomitar; ou estou sentindo mal-estar de
gicamente, é negativo para o indivíduo que experimenta a ver o que não queria e também de estar perto de alguém
sensação. A pessoa projeta a sua rejeição naquilo que lhe de que não gosto." (F-37)
lembra ou é realmente o objeto de sua antipatia." (F-18) "Ê algo que causa repugnância e mal-estar; é um conceito
"Nojo é uma careta, uma sensação de repulsa em relação relativo; pode ser apontado radicalmente como podridão."
a algo ou alguém. Sinônimos: asco, repulsa." (F-19) (F-24)
"Nojo pode ser a racionalização do medo de algo. Tenho "Repulsa a animais (insetos) nocivos; à sujeira, ou a atos
nojo de fezes, isto é, tenho medo daquilo que eu não apro- morais condenáveis." (F-40)
veitei." (M -24 ) "Nojo é uma atitude em que o corpo e o espírito se unem
"Nojo é a repugnância a alguma coisa através dos sentidos, para repudiar alguma coisa bastante desagradável." (M-30)
isto é pela visão, pelo tato, pelo olfato, etc. Também é "Ê uma sensação desagradável que eu tenho quando vejo
individual porque uma coisa que repugna a um não repug- excrementos fora do local apropriado, ou também secre-
na a outro." (M-42)
ções (catarro, por exemplo ) na rua, na calçada ou 'em um
"Nojo é tudo aquilo que provoca ânsias, desejo de se afas- muro." (F-43)
tar, coisas de mau odor, pessoas muito sujas." (F-20)
"Nojo é uma situação puramente psicológica. O que pode
"Nojo é a repulsa que o organismo apresenta diante de algo ser nojento em um determinado momento, não o é em ou-
que lhe possa ser prejudicial. Ê o medo fisiológico." (F-33) tro. Caracteriza-se por um mal-estar, em que é comprome-
"Nojo é um sentimento de repulsa a alguma coisa. Se algo tido o aparelho digestivo, com possíveis regurgitações. Sen-
nos ,causa náusea, a gente trinca os dentes e franze o nariz sações de frio e dispnéias são comuns. Sinônimos: aversão,
que é uma atitude típica de quem sente nojo." (F-19) asco, pavor." (M-33)

ItI 143
"Nojo é aquilo que ocorre como uma reação a algo que "Nojo é uma sensação que nos causa repúdio por ferir
nos afeta negativamente." (F-21) uma idealização de estética e de agradabilidade." (M-28)
"Nojo é tudo o que nos causa um mal-estar físico, trans- "O que provoca ânsia de vomitar, de um modo geral, sali-
mitido pelaepiderme." (F-50) vação da boca, dor no estômago, dor de cabeça, nariz comi-
"É uma certa repugnância orgânica contra algo que senti- chando." (F-44)
mos, é uma sensação desagradável de alguma coisa que fi- "O nojo é a sensação que provoca as pessoas encolherem-
sicamente ou mentalmente o organismo repulsa." (F-56) se fisicamente, fazerem caretas, levar a mão em direção ao
"Nojo é uma sensação de algo que nos dá repulsa, é algu- rosto para não verem, a fecharem os olhos e taparem o
ma coisa que não se quer tocar, sentir (cheiro) é real- nariz, a terem engulhos e vontade de vomitar." (F-34)
mente alguma coisa que nos faz verdadeiramente mal." "É uma sensação de vômito, como se houvesse reboliço in-
(F-31 ) terno na barriga 'e no peito." (M-39)
"Nojo é sentir cheiro de uma pessoa suja, fedorenta e mal- "É o que dá vontade de se afastar do local ou da pessoa
trapilha: cheiro de esgoto, ver alguém escarrando, nojo de que causou a sensação de nojo; pode inclusive chegar a um
pus aparente em qualquer parte do corpo, ferida, cheiro de grau mais forte, como suar frio, queda de pressão, pânico,
excreção, de caspa nos cabelos, etc ... " (F-27) histeria, desmaios, etc." (F-23)
"É aquela coisa que a gente não se sente bem; quando se "É o que causa tonturas e vômitos." (M-26)
fala: 'ai que nojo!' é porque não gosta daquilo." (F-19) "Nojo é repulsa. As pessoas recuam, recusam, torcem o
"É uma sensação de repulsa que sinto, começando no es- nariz, levam a mão ao nariz, reclamam ou vomitam."
tômago, quando olho qualquer coisa que me causa mal-estar, (M-54)
associada com mau cheiro e gosto." (F-32) "É repulsa, aversão, náusea, arrepios, caretas, frios, calo-
"É tudo o que nauseia o estômago ou o cérebro. Sinôni- res e suores." (F-54)
mos: Repugnância, escrotidão." (F-24) "O nojo é um estado em que o organismo se encontra fora
"É uma sensação desagradável que sentimos ao perceber de seu comportamento normal, envolvendo modificações,
alguma coisa que vai contra a nossa educação e sensibili- principalmente no fígado e no estômago, que, diante de de-
dade." (F-31) terminadas situações, se comprime ou se dilata, provocando,
"Nojo é uma repugnância a tudo o que você vê de sujo, às vezes, o vômito; é um estado incompatível com a norma-
de aspecto porco, com uma apresentação que revolta a sua lidade do comportamento do nosso organismo que advém
visão, ao seu olfato, ao seu contato. Considero nojento de situações que se nos apresentam de forma contrária ao
ir ao banheiro, fazer as necessidades, após o banho, comer que julgamos limpo, correto, sadio, etc., nos trazendo mal-
com o nariz escorrendo, destilando sobre os lábios e se estar." (M-24)
misturando com os alimentos; ir ao banheiro, fazer as ne-
cessidades e não lavar as mãos para comer; unhas grandes Segunda pergunta: "Relate um acontecimento real ou fic-
e sujas; roupas gordurosas; bichos falsos de borracha, ma- tício em que você tenha sentido nojo."
leáveis como cobras." (F-40)
Respostas:
"É um amontoado de coisas que se detesta." (M-22)
"Aquilo que causa arrepios, ânsias de vômitos." (M-29) "Fui convidada a fazer uma reportagem policial, quando um
"É aquilo que faz mal à sensibilidade orgânica de cada um, assassino faria a exumação do seu desafeto. Foi o maior
variando de indivíduo para indivíduo." (M-25) nojo sentido em minha vida, quando de puxou a cabeça e

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vi pingar uma matéria branca e leitosa que era o miolo. tinha comido. O ônibus teve que parar, porque além dele
Que nojo!!! Saí correndo ... ". (F-35) mais duas pessoas vomitaram." (F-37)
"O corpo humano destroçado em um acidente. Embora a "Uma vez entrei em um ônibus e um assento estava total-
reação de nojo tenha sido mesclada com a de piedade." mente vomitado, só isto já me deu nojo. Como não bastasse,
(M-45) entrou um homem que passou a viagem inteira olhando o
"A visão, numa pessoa atropelada, de sangue, carnes, gor- vômito. Aquele deliciamento do homem diante do vômito
duras, partes expostas dos órgãos digestivos e principalmente me provocou mais nojo." (F-27)
miolos expostos. Trata-se de uma exposição de coisas in- "Servindo a um tuberculoso, senti nojo ao carregar suas
ternas." (M-47) fezes, pois seus intestinos estavam se decompondo. Era
"Encher um copo de vômito 'e tomá-lo." (M-23) forçada por ofício a prestar serviços mais humildes e não
"Ter dormido, no escuro, com uma mulher menstruada; podia me recusar a carregar os seus escarros. Tinha grande
quando cheguei ao banheiro, para lavar-me, quase vomitei. nojo, a ponto de sempre vomitar." (F-56)
Já o sangue que aflora em nossa pele, devido a um corte,
"Vi uma pessoa colocando o dedo no nariz e comendo o
não é bem visto; que sle dirá desse tipo de sangue que pro-
que conseguia tirar do mesmo." (F-27)
vém de um organismo interno não muito conhecido, resul-
tante do apodrecimento dos óvulos?" (M-24) "Um vômito de bêbado, avermelhado, fedido, profunda-
mente nojento. Dava a impressão de estar expelindo as pró-
"Fato real: num dos sanitários da empresa, alguém escre-
prias vísceras." (F-40)
veu: "campeonato de melecas, deixe aqui a sua." E as me-
Iecas foram surgindo dos maiores tipos, tamanhos e padrões. "Conversei uma vez com um rapaz; ele era simpático, sabia
Saí do banheiro a ponto de uma crise de vômito. Havia conversar, mas tinha um mau-hálito terrível. Isto é um nojo!
acabado de almoçar." (M-25) a boca é uma das partes que tem que manter-se bem limpa.
Se não for problema de dente, tem que se fazer um trata-
"Um Modess usado que vi numa área interna de um edifí-
cio. Por causa do aspecto e do mau-cheiro que exalava. mento interno. Mau-hálito é coisa que não consigo supor-
(F-31 ) tar." (F-21)
"Os filmes e revistas pornográficas misturando e relacio- "Qualquer pessoa que cuspa na rua, porque cada coisa deve
nando pessoas humanas com animais em atos sexuais. Filme ser feita no seu lugar." (F-22)
mostrando amor de mulheres lésbicas e homossexuais." "Tenho trabalhado em meio hospitalar, e em laboratório,
(F-40) acostumei-me a muita coisa. Mas o que até hoje eu não
consigo pegar, ver, é escarro. O aspecto de um escarro den-
"Por exemplo: em um elevador fechado, alguém solta um
gás fedorento; não tem para onde fugir e temos que sentir tro de um vidro é muito pior do que aquele que se vê
o mau-odor. Você 'está presente em um restaurante e vê na rua. É uma pasta de excremento pulmonar, cheia de
alguém vomitar, porque você está comendo e o outro bo- veios esverdeados, azulados, sei lá. Muito horrível!" (F-22)
tando para fora aquilo que comeu. Uma cozinheira que "O ato de beijar uma pessoa leprosa é uma situação que
faz a comida e exala mau cheiro. Cabelo na comida: dá causa nojo. O cheiro exalado pelas feridas e as próprias
repulsa imediata." (F-27) feridas e deformações causam nojo. É preciso explicar por
"Ia num ônibus, quando um sujeito vomitou. Além do quê?" (M-24)
cheiro, as pessoas começaram a descrever o que o sujeito -- "Ato sexual bucal. Nojentíssimo." (F-31)

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"Ao entrar em um veículo público, notei no chão uma nojo que eu senti, e quando me lembro disso, ainda hoje
enorme quantidade de vômito, e, pulando sobre o mesmo, me causa um certo embrulho no estômago." (F-20)
três ascaris (vermes) gordos e vermelhos." (F-39)
"Este é real: uma criança vomitando no ônibus. O vômito
era banana amassada pura. Mas o pior foi qu,e a mãe punha Estes fatos indicam que a reação de nojo tem a caracte-
a mão para apanhar. Então, o vômito escorria das mãos rística peculiar de requerer alguma forma de contato - físico
da mãe e ela tinha aquelas sensações de vômitos também. ou psíquico - e de se definir por uma "repulsa" ou "repú-
Neste dia não consegui almoçar." (F-19) dio" de alguma coisa. Peculiariza-se por ser uma "atitude em
"Há muitos anos, presenciei um acidente que vitimou um que o corpo e o espírito se unem para repudiar alguma coisa
menino jornaleiro. A sua cabeça foi totalmente destruída e bastante desagradável". O "horrível", o "nojento", realiza uma
os miolos ficaram expostos no asfalto. Os transeuntes co- transferência de sentimentos: faz reverberar, ao nível das sen-
briram toda aquela tragédia com os jornais que o pequeno sações físicas, o mal-estar do transtorno da ordem intelectual.
venderia." (M-29) A evitação das coisas nojentas, o seu repúdio, é um me-
"Curativo de um ferimento: repugna." (F-52) canismo de ligação da ordem intelectual moral com a ordem
"Uma criança, no berço, que brincava com suas fezes e as física, de maneira a articular a última com a ordem das idéias
comia. Porque fezes são excrementos, ou melhor, detritos e de modo a proceder a uma ordenação da experiência, codi-
do organismo e causam nojo." (F-34) ficando e procurando as relações do homem com o seu próprio
"Sinto nojo toda vez que viajo com crioulo suado." (F-30) corpo e com os alheios.
"Ver revistinha de sacanagem. Não existe coisa mais de- As regras de evitação das coisas impuras defendem os prin-
gradante." (F-20) cípios sagrados da estrutura social, como podemos reconhecer
"Uma vez eu vinha andando pela rua e cruzei com um facilmente no fato de o se cuspir no rosto de uma pessoa ser
cego que me deu uma cusparada. Foi o pior momento de a maior ofensa que se pode endereçar a ela: é que o rosto, na
minha vida." (F-20) nossa sociedade, é o principal signo da identidade social, e
"Banheiro de botequim, quando está bastante sujo. Pode- cuspir nele corresponde a torná-Ia baixo como o chão e des-
se passar a quilômetros de distância que a gente sente aque- prezível como as coisas de que se tem nojo, porque, ao entrar
le cheiro nojento - imagine entrar no banheiro! Mendigos em contato com o cuspe, o rosto - que as pessoas em geral
na rua, nas calçadas, deitados, pedindo esmolas, com as consideram "a parte mais limpa do corpo" - se torna impuro
pernas cheias de feridas." (F-35) c nojento, do que resultaria a indignidade da pessoa.
"Uma mendiga, sentada na calçada, em Copacabana, com a Os fatos mostram o perigo com que as coisas nojentas
saia levantada. Seu órgão sexual estava à mostra: além de ameaçam a ordem (seria interessante, aliás, lembrar, aos inicia-
estar tremendamente sujo, exibia vestígios de menstruação." dos em Teoria da Comunicação, a relação etimológica entre
(F-30) "náusea" e o "noise", da língua inglesa), a ponto de as pessoas
"Aos 13 anos, quando voltava do colégio, eu sem querer muitas vezes se inclinarem a retirar do "nojo" a sua caracterís-
pisei num monte de pedacinhos amarelos que estavam no tica principal de ser uma convenção, e atribuírem a ele um
chão. Tocaram no meu braço e disseram-me que aquilo era status de "coisas" - "o nojo é uma coisa que nos dá repug-
os miolos do crânio esfacelado de uma criança que havia nância ... " - o que significa que se atribui a uma coisa um
sido atropelada horas antes. Aquilo me deu uma convulsão perigo objetivo que se pode ver, e não algo subjetivo e cultu-
estomacal e vomitei no mesmo instante. Foi um tremendo ralmente padronizado e definido. Quando as pessoas definem

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o nojo como "algo que causa repulsa", estão substituindo uma uma transgressão inconsciente, consciência inscrita em todas as
convenção social por um atributo objetivo e "natural" que a fibras do ser de cada indivíduo. As reações do nojo são rea-
coisa teria. ções emocionais e apresentam o caráter mágico que nas emo-
Contudo, a mais elementar observação pode mostrar que se ções J. P. Sartre (66) viu: tratamento simbólico que acredita
aprende a- classificar as coisa!'. como nojentas ou não, e, mais possuir uma eficácia real, suprimindo da consciência a coisa
importante do que isto, que se aprende a sentir o nojo e a que desafia e ameaça, e vivenciando, na conduta corporal, uma
expressá-Io, comunicando-se às crianças por palavras, mímica metáfora da rejeição intelectual, que acredita modificar o mun-
ou violência,o pavor que deverão sentir das coisas "nojentas"
do, como se as coisas do mundo não tivessem as suas próprias
e do seu contágio.
propriedades.
A observação revela, ainda, o caráter emocional da rea-
ção de "nojo", caráter que se manifesta na própria procedên- Contudo, se a teoria sartreana das emoções reserva um
cia -etimológica da palavra: in odiare = "ter ódio a". Não obs- lugar irrelevante ao papel do inconsciente, ele é fundamental
tante, as pessoas entrevistadas, como se pode observar, não para o cientista social. Para este, a hipótese fundamental é a
- descrevem de maneira consensual o que é essa reação emocio- da consciência que o indivíduo tem da existência de uma regra
nal e as maneiras de ela se manifestar ao nível orgânico. e da transgressão da mesma - mas considerando sempre que
Como vimos no capítulo anterior, os próprios psicólogos esta regra e esta transgressão são significantes cujos significa-
discordam enormemente quando penetram nesse domínio. Por dos não são dados no plano da consciência imediata. Se o nojo
isso, não seria interessante endereçar a análise por esse cami- é um problema de consciência para o psicólogo, como quer
nho, já que, para o cientista social, a veracidade da emoção Sartre, é, na maior parte das vezes, um problema de incons-
é menos importante que a sua expressão social. Para nós, o ciente para o cientista social.
que importa é que o indivíduo demonstra socialmente que se- Segundo Sartre, no momento da emoção, o indivíduo tem
. gue, ou não, os padrões culturais que programam as emoções consciência do fenômeno e do seu significado, uma consciência
que ele deve sentir em determinadas contingências, mesmo que emocionada (triste, alegre, colérica), mas não tem consciência
as caretas e os sons guturais que traduzem a reação do nojo de sua consciência - no que podemos encontrar uma explica-
não correspondam a uma objetiva e sincera vontade de vo-
ção para o fato de determinados especialistas poderem escapar
mitar.
das emoções normais, ao lidarem com coisas das quais deveriam
O nojo representa regras culturais que dizem respeito ao
sentir nojo: a sociedade permite a eles o desenvolvimento dessa
corpo (no caso específico em estudo) e que produzem seus efei-
"consciência da consciência", neutralizando a emoção, para
tos imediatos no próprio corpo. Como tal, o nojo não pode ser
realizar as suas tarefas respectivas (médicos, exumadores, etc.).
visto, como freqüentemente acontece com as emoções, como
puras perturbações correspondentes a desordens fisiológicas. É claro que esta possibilidade não pode ser dada a todos
Não é, absolutamente, uma manifestação caótica, mas uma os indivíduos, ou a um mesmo indivíduo em todos os momen-
mensagem organizada que avisa a consciência contra o perigo tos, em toda!'. as circunstâncias, e em relação a todos os domí-
inconsciente do estabelecimento da desordem e do caos. Nesse nios e regras da sociedade - sob pena de permitir a ele o au-
sentido, ele tem um sentido e significa algo. sentar-se do controle social. O indivíduo que possui esta meta-
As reações do nojo são uma maneira de refutar, de negar, consciência é apenas um possuidor de técnicas de controlar
de rejeitar, de afastar simbolicamente a eficácia dos elementos outras técnicas de controle social, pois as oposições fundamen-
desafiadores. É uma consciência emocional que tenta rechaçar tais da ordem coletiva estão presentes também nessa consciên-

150 151
cia de segunda ordem, que são os códigos tecnológicos e cien- verso comunicacional e significacional especificamente humano,
tíficos. ela se constitui no ponto mais particularmente suceptível de ser
poluído. Além disso, a boca conota proximidade e intimidade
nas relações sociais cotidianas, razão por que qualquer contato.
Todç) o problema do nojo é, em última instância, o de uma com ela adquire, de imediato, dimensões exageradamente mar-
· dialétic~ entre a~eitaçãoe recusa de eventos, em função de um cadas , sobretudo se se tratar de um contato proibido.
esquema conceptual. O nojo, a repulsa, é a recusa daquilo que
A boca é uma espécie de ponto-de-equilíbrio de todo. o
· corroeriaa estruturação de idéias e conceitos que mantém er-
sistema de aceitação/recusa: muito freqüentemente, as pessoas
guido o edifício social. Os gestos que expressam o nojo por-
entrevistadas declararam não sentirem nojo de coisa alguma,
tam diretamente o significado dessa oposição: tapar a respira-
mas mudavam rapidamente de opinião diante da sugestão da
+ção, virar o rosto para o lado, são maneiras de interromper os
hipótese de levar o objeto à boca, e a observação constata fa-
canais de comunicação com o mundo, e, portanto, de recusar a
cilmente a vulnerabilidade das pessoas a toda espécie de po~
recepção da mensagem.
luição quando estão comendo.
Da mesma maneira, o hábito de cuspir quando se sente A recusa não se limita à coisa nojenta, mas se estende a
· nojo representa uma espécie de recusa à aceitação, devolvendo tudo o que diz resptito a ela. As palavras que as designam não
ao exterior algo que é tido por ofensivo à sensibilidade. O cus- escapam a esta regra (sobretudo quando dizem respeito ao.
pir, assim como o emitir sons guturais-exofagais quando se sen- corpo humano - como ilustram os palavrões da língua portu-
· te. nojo, representa uma espécie de "vômito" simbólico: são
guesa, quase todos relacionados com a função sexual ou outras
termos de um mesmo paradigma, que têm como traço comum funções naturais e excretórias). Quase se lhes proíbe a menção,
a repulsa e a rejeição a uma impureza que penetrou o interior, como se o significado tivesse o poder mágico de agir sobre o
o íntimo das pessoas, mas que elas não podem de modo algum
significante. Na recusa de se pronunciar o nome das coisas
absorver. A rejeição orgânica, concretizada na inversão do nojentas, está expresso o temor de seu contágio, mas também
fluxo do processo digestivo, representa uma rejeição intelec- o temor de sua realidade, porque falar de uma coisa aumenta o
· tual, a exemplo do que acontece em muitos ritos religiosos
grau de realidade dessa coisa.
de cura por "milagres", em que freqüentem ente o mal é extraído
Quando falo a outro sobre alguma coisa, o meu falar traz
sob a forma de eliminação pela boca de uma "gosma", de vo-
a coisa à minha consciência e à consciência do outro; põe a
mitar um "líquido preto", etc ...
minha consciência como objeto dela própria e da consciência do
Em entrevistas, quisemos saber dos informantes porque
outro. Enquanto isso, o mesmo acontece com a consciência do
cuspia-se em geral quando se tinha nojo, ao que se respondeu outro diante da minha. Aí está a razão de as pessoas sentirem
freqüentemente que "é porque o nojo provoca um aumento da nojo "só de falar", pois ao mencionar uma coisa que deve estar
salivação". Cuspir não é entretanto, a única solução para o isolada, de certa forma,evocâmo-Ia e tornâmo-la próxima.
excesso de salivação, e pode freqüentemente ser considerado ina-
Poder-se-ia objetar que os produtos do corpo podem ser
propriado e deselegante: na realidade, o cuspir expele simbo-
objeto de conversação, desde que se usem termos apropriados,
Jucamente um mal, pois engolir seria aceitá-Ia.
retirados de um vocabulário "científico" ou "respeitoso" e "não
Daí o papel estrategicamente nodal que a boca exerce vulgar". Os termos "científicos" são, entretanto, instrumentos
nessa dialética de aceitação/recusa: porque representa a via
elaborados de controle, e, por isso, ao evocarem o perigo não
direta de acesso ao interior, porque é o órgão de aceitação
derrubam proteção alguma, pois, se trazem o perigo para pró-
por excelência, porque está associada estreitamente a um uni-
ximo de nós, mantém-no como que "enjaulado".

152 153
No corpo, portanto, há poderes que se exercem segundo vida eventual), o que expressa a confusão do domínio da ca-
a estrutura social e outros que representam perigo para a estru- tegoria "vida" com o domínio da categoria "morte", já que
tura social ao menor contato. As coisas nojentas produzidas um corpo "vivo" produz uma manifestação "morta" - racio-
pelo organismo enquadram-se no segundo tipo, e o perigo do cínio este que pode ser encontrado latentemente na atitude em
contágio delas não nos permite deixar de ver nas evitações do relação à maioria das emanações corporais.
nojo um estreito paralelismo com os ritos e práticas mágicas. O A conotação de doença e de morte parece ditar umaati-
próprio Durkheim não deixou de admitir que os ritos mágicos tude especial em relação aos corpos dos velhos e anciãos:
fossem uma forma primitiva de higiene e de interdições mé- "senectus est morbus", diz o adágio latino. David Sudnow
dicas ao postularem os efeitos nefastos da desordem e da con- (68, p. 123) pres·enciou, num dos hospitais em que pesquisou,
fusão entre domínios diferentes. numa ocasião de emergência, um dos internos fazer respiração
A desordem, a confusão, a indefinição, a ambigüidade, boca a boca em um menino, e este mesmo interno declarar
são as fontes de poder mágico das emissões corporais conside- morta uma mulher que estava na mesma situação, dizendo
radas nojentas. Muitas vezes, são coisas "pastosas", "melosas", mais tarde que "nunca poderia suportar fazer respiração boca
"gosmentas", "viscosas", 'lamacentas", "pegajosas", "moles", a boca a uma anciã como aquela".
"cerosas", "geleosas", "cremosas", "gordurosas", "sebosas", en- Além de acreditarem que as coisas nojentas produzem
quadrando-se em um estado ambíguo e indefinido da configu- doenças, as pessoas acreditam que as doenças produzem coisas
ração material, já que costumamos classificar os "estados da nojentas. Todavia, as doenças "nojentas" são apenas aquelas que
matéria" em "sólido", "líquido" e "gasoso" (a propósito, seria afloram, que se manifestam exteriormente, que agridem o "ou-
interessante observar que muitas pessoas consideram nojento o tro": "doenças de pele", "feridas", "doenças que provocam se-
estrume de vaca quando em seu estado pastoso, mudando de creções", "doenças desagradáveis à visão e ao olfato" - o que
opinião quando ele seca e passa a ser sólido). A palavra inglesa nos faz lembrar das cores dos modernos banheiros e geladeiras
slimy significa ao mesmo tempo "viscoso", "pegajoso", "lodo- que "sujam menos", pois, latentemente, acredita-se que o pe-
so", "repugnante", "imundo" e "sujo", e, em português, a pa- rigo da doença deriva do seu aspecto exterior.
lavra "seboso" é muitas vezes usada como sinônimo de "no- As pessoas doentes procurarão cobrir e disfarçar estas
jento". doenças, capazes de arruinar-lhes o prestígio social, cobrindo-
Uma série de secreções corporais deriva do estado ambí- as com gazes, curativos, ou até mesmo silenciando sobre as
guo da doença (entre a vida e a morte): catarro, pus, etc ... mesmas, numa complexa manipulação da relação entre o "eu",
Muitos acontecimentos narrados por informantes colocam em ou "nós" ("amigos", "familiares" ... ), e o "eles" ("estranhos",
evidência situações insólitas, como aquela em que um indivíduo "conhecidos" ... )
recebeu um arroto em pleno rosto, ao dobrar à altura do es- A oposição aceitação/recusa governa também o relaciona-
tômago, para vesti-Io, um defunto (caso em que o morto se mento cotidiano das pessoas, quanto às distâncias corporais a
comportou como se estivesse vivo). Da mesma forma, costu- observar. Como Eduard HaU (33, p. 11) observou, "os limites
mamos identificar a vida pelo calor do corpo, acreditando in- do seli se estendem além do corpo", sendo a presença ou a
clusive que a alma o deixa quando ele esfria, o que responde ausência de calor, proveniente do corpo do outro, um impor-
pelo nosso horror ao corpo frio de cadáveres 'e a muitos ani- tante meio de marcação entre o espaço pessoal íntimo e o es-
mais simultaneamente vivos e frios. paço pessoal não íntimo - a ponto de determinadas pessoas
Alguns informantes associaram o nojo de sangue mens- evitarem sentar-se em poltronas e bancos onde se tenha sentado
t rual a fato de ele ser "um cadáver" (isto é, negação de uma outra pessoa. O cheiro do corpo alheio, ou o perigo de que o

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"outro" sinta o cheiro do nosso corpo, é um verdadeiro sinal A distância social existente entre um indivíduo e outro, ou
de alarma para o relacionamento entre as pessoas. entre um grupo social e outro, é um dos princípios fundamen-
Temos aí, em estado prático, um sistema de classificação tais que governam as evitações de nojo. Boltanski (9, p. 16)
de pessoas e de comportamentos em "íntimos", "privados", assinalou que a freqüência e a intensidade das relações entre
"públicos", "sociais", "coletivos", etc., bem como uma classifi- médicos e enfermos, aumentam à medida que diminui a distân-
cação de situações em que se podem observar estes comporta- cia social entre o médico e seu cliente - do que resulta que
mentos, situações passíveis de determinar diretamente a natu- os membros das classes superiores, pertencentes à mesma clas-
reza do comportamento - especialmente nesse terreno, já que se social do médico e, muitas vezes, ao seu círculo de familia-
muitos comportamentos são realizáveis apenas em público, al- res e amigos, mantém com ele uma relação bastante "familiar",
guns são nojentos no contexto doméstico, outros não o são no contrariamente ao que acontece relativamente aos membros das
contexto erótico e assim por diante ... camadas populares: posssuem os mesmos códigos, os mesmos
Como resultado, o corpo humano será controlado segundo hábitos mentais, a mesma socialização geral, diferentemente do
as exigências de controle social que a presença do outro exige: que caracteriza os membros dos estratos inferiores. Em decor-
controle respiratório, intestinal, gástrico, etc. A liberdade que rência disso, os membros destes últimos tendem a considerar
as pessoas têm na intimidade do banheiro ou no quarto de muito rápido o exame médico e a ver na duração da consulta
dormir, quando estão a sós, expressa o afrouxamento dos vín- uma de suas qualidades mais importantes, o que vale também
culos sociais, o abrandamento do aspecto coercitivo do fato so- para a capacidade do médico de dar explicações e de entender
cial. A ausência do "outro" é, de certa forma, liberadora, e as os problemas pessoais das pessoas. Sudnow (68, p. 42-3)
virtudes e defeitos encontram-se neutralizados em certo grau. observou, entre médicos, que "é muito comum escutarem-se
conversações em que se criticam os pacientes, especialmente
Isto significa que, na prática, existe sempre certa diferen-
aqueles cujas condutas, modos de vida, etc., são considerados
ça entre o que a regra prevê para o comportamento das pessoas
moralmente degradantes, a partir do ponto de vista da classe
e o que as pessoas realmente fazem quando se encontram a
média. Um dos temas favoritos de conversa e imitação é a con-
sós, o que se exprime no ditado "Não há grande homem para
duta dos alcoólatras; outro tema são os odores que desprendem
seu criado de quarto". Não se pode entender a problemática do
as pessoas de classe baixa, alguns dos quais considerados di-
nojo sem distinguir que o que é ilícito em situações públicas,
retamente repulsivos". Um médico entrevistado informalmente
pode não o ser em situações de intimidade,e que o que um
indivíduo aprova para si e para os que se situam no seu círculo disse que "se perder a aposta vou tratar de hemorróidas no
Senegal".
privado não se confunde com aquilo que ele aprove para "ou-
tros": ao contrário de um amigo, nenhum estranho poderá mor- A relação entre impureza e distância social é tão clara,
der um pedaço do meu sanduíche. que é muito comum ser a primeira um instrumento explícito
A presença do "outro" implica sempre uma espécie de ele marcação da segunda. No sistema de castas da índia, a es-
contenção (e o "outro", não nos iludamos, sempre está pre- pecialização em determinadas tarefas é responsável pela atribui-
sente) a ponto. de sermos, para não lhe causarmos mal-estar, ção da condição de impureza a certas categorias de pessoas,
obrigados a não evidenciar termos sido atingidos involuntaria- exigindo-se das posições inferiores que desempenhem as fun-
mente por um perdigoto seu: o "outro" é, então, intrinseca- ções equivalentes às mais impuras - o que se verifica na divi-
mente dotado de autoridade. Como observou Peter Berger são social do trabalho, também entre nós. Mary Douglas
~6, p. 47), "o outro na situação face a face é mais real para (18, p. 17) observou que um dos requisitos da caridade (que
mim que eu próprio". é um movimento voluntário para baixo na hierarquia social,

157
apagando. as diferenças entre a "eu" e as "outros") é a supe- nojo, são coisas que não prestam, que não têm utilidade al-
ração. da rigidez higiênica, o que levou Santa Catarina de Sena, guma" (F-30).
quando sentiu nojo das feridas de que estava tratando, a beber
Entretanto, embora as pessoas não tenham a atenção com-
deliberadamente um pote de pus.
pletamente voltada para isso, a saliva, que é considerada no-
Além disso, a nojo é manipulado estrategicamente na jogo jenta na maioria das situações é utilizada praticamente em um
da estrutura hierárquica, cama ilustram a "cuspir na rosto", a sem número delas: pegar brasa de cigarro, apagar velas,
empregada que para vingar-se das patrões escarra na comida, colar selos e fechar envelopes, lubrificar objetos, fechar cigarro
as mendigas que executam uma espécie de chantagem, exibin- de palha, descobrir a direção da vento, testar a temperatura de
do suas feridas, e fazenda com que as pessoas lhes dêem dinhei- objetos, verificar vazamento de ar. .. Não é improvável que
ro (ao menos em parte, para não verem mais aquelas coisas). possamos encontrar um paralelismo acentuado entre a tendên-
Os mendigas, que expõem suas feridas, chocam, provocam cia a identificar, no corpo humano, o "vil" e o "nojento" com
nojo, mas conseguem a que querem: quem dá esmola pratica o "inútil", e a atitude pragmática do sistema capitalista, que
uma caridade, diminuindo. a distância social que separa as pes- procura valorizar no corpo o que ele tem de aproximado aos
soas e apagando a hierarquia de pureza: todavia, essa dimi- instrumentos e ferramentas.
nuição. é artificial, parque o mendiga é incapaz da reciproci-
Idade. O movimento na hierarquia é unilateral e assimétrico:
ao "dar", desço e marco minha posição privilegiada de "doa- o Tabu do Natural
dar" e superior, e, ao responder "Deus lhe pague", o mendigo
L-confirma a justiça da ordem social. O corpo, pelo que vimos até agora, é mais social que indivi-
A posição altozx purorbaixo-zzimpurn está impressa na dual, pois expressa metaforicamente os princípios estruturais da
estrutura simbólica do nosso pensamento. e na própria 'estrutura vida coletiva. É sagrado, se observarmos a definição durkhei-
somática, razão par que tendemos a ter nojo de animais que miana que assimila o Sagrado ao Coletivo. Embora material,
rastejam, colocamos Deus nas alturas, vemos o. Inferno embaixo ele é sagrado porque é símbolo da vida social. Para os cristãos,
da Terra ("nas profundezas do Inferno"), chamamos de "bai- a matéria é profana, mas o corpo tem mana, porque sua mate-
rialidade é um significante contaminado pela força que repre-
xas" as pessoas vis, falamos em "golpes baixos" e trabalhamos
senta. Como observou Durkheim (23, p. 142), "o organismo
com mais requinte as cabeceiras de nossas camas, Muitas pes-
humano aculta em suas profundidades um princípio sagrado
saas declararam apoiar-se com os pés em privadas públicas,
que, em determinadas circunstâncias, aflora ostensivamente".
"para evitar contaminação".
Há, no organismo, forças controladas e forças que igno-
Freud (30, p. 791-2) tentou encontrar um fundamenta ram o controle social e a ameaçam: o corpo simboliza também
natural para a associação do "alto" com o "puro" e o "nobre" aquilo que a sociedade não quer ser. A estrutura somática hu-
e do "baixo" com o "vil" e o 'impuro": "... a adoção da 10- mana abriga uma sacralidade fasta e uma sacralidade nefasta,
comoção ereta, o nariz que se distancia do solo, e com isto uma sacralidade pura e uma sacralidade impura. Eis o porquê
uma série de sensações ligadas ao solo que outrora foram interes- de o corpo ser tabu: entre o que tem de Fasto e o que tem de
santes: tudo isso par um processo que até agora ignoro. ("Ele- Nefasto, nenhuma mistura pode ocorrer.
va muito o nariz" = considera a si mesmo como particular- O tabu do nojo, o temor a determinados objetos represen-
mente nobre", O nojento é visto como "vil" e "inútil", pais tativos do Nefasto, daquilo que a sociedade não quer ser, ex-
"o sangue menstrual e as outras coisas saem do corpo e dão. pressa o respeito, a atitude ritual sem a qual a manutenção da

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ordem social é impossível. É preciso compreendê-Ia, porque, na também potencialmente poluído ou poluígeno. Em resumo, para
perspectiva que estamos adotando, compreender o que uma so- que haja nojo, assim como para que haja magia, não é neces-
ciedade não quer ser é tão importante como compreender o sário que as coisas e pessoas entrem 'em contato direto, pois
que ela é: é impossível compreender o que é permitido, sem entre todas as coisas existem ligações possíveis ao nível do
que se compreenda o que é proibido. intelecto - algumas aceitáveis e gramaticais, e outras inaceitá-
O nojo, como outros tabus, é sancionado ritualmente. Isto veis e agramaticais. No nojo, encontramos os mesmos processos
significa que as regras de nojo não são sanções idênticas às contagiosos fundamentais da magia, isto é, as associações simpá-
ticas e as associações homeopáticas. Uma coisa pode se tornar
demais, embora, para flua eficácia, dependam, como as outras,
impura e nojenta, pela contiguidade a outras coisas nojentas,
das idéias e sentimentos que as pessoas tenham acerca das con-
seqüências de suas ações. A quebra das regras de nojo, embora ou pela similaridade que mantém com coisas impuras. Um al-
godão que toca uma ferida é digno de nojo como a própria fe-
possa provocar reações de outras pessoas, ou em outras pes-
rida, e uma coisa nojenta transmite sua qualidade a outras coi-
soas, não define sua sanção por estas reações, mas, diferente-
sas parecidas com ela. O nojo, como a magia, produz-se quer
mente, pela ação de forças impessoais, interiores imanentes à
, . ' metonímica quer metaforicamente, ou seja, por um contato di-
p~opna transgressão, e automáticas. As sanções do nojo agem
reto ou por um contato figurado - o que exprime o seu ine-
diretamente ao nível das idéias, dos sentimentos e do organis-
gável caráter simbólico. A lógica do nojo é a mesma da magia,
mo; são, ao nível do indivíduo transgressor, um puro fenômeno
embora nele não haja mágicos e embora as pessoas não reco-
de crença e de engajamento do corpo em uma tecitura socioló-
nheçam, em suas práticas de evitação das coisas nojentas, a
gica. Como já se observou acerca dos tabus em geral, o tabu do
prática de um sistema mágico. -
nojo se vinga a si próprio, porque tem a sua própria autori-
dade e não depende diretamente de nenhuma outra, pois, aos Esta lógica configura os processos cerebrais interpostos
olhos daqueles que a ele se submetem, são "naturais" e não entre as experiências, as idéias e as emoções que constituem o
precisam ser explicados: derivam automaticamente da crença nojo. É um sistema da decodificação de mensagens que aciona,
na eficácia dos símbolos, independentemente da intencionalida- nas pessoas, todas as fibras dos seus seres. A emoção do nojo
de do transgressor. Tudo o que se pergunta no terreno do nojo é semelhante à emoção da magia; não se explica por considera-
é se algum contato agramatical teve lugar. ções psicológicas apenas. O argumento de MaIlinowski, de que
a magia seria um meio de o homem abolir ou atenuar a ansie-
- O mana da coisa tabu faz também tabu aquele que viola.
dade das empresas que oferecem risco, é menos válido, no ter-
A pessoa suja é tão tabu quanto a própria sujidade. Pessoa e
reno do nojo, que o pensamento de RadcIiffe-Brown (64, p.
coi::.a, no nojo, têm poder mágico, embora não, haja magos.
186), de que é ela também um meio de criar tensão eansie-
Estão dotados de uma eficácia pura: o poder localizado e ma-
dade.
ter~alizado na coisa nojenta é, ao mesmo tempo, vago e ima-
terial. Perguntar acerca da veracidade da eficácia do nojo e das No nojo, as 'emoções expressam, mas não explicam. São
coisas nojentas, simplesmente não faz sentido, pois as verdades conseqüências de um sistema de ordenação, ou da ausência
do. nojo, como as verdades mágicas, são definidas por seus pró- dele, e, portanto, manifestações afetivas na superficialidade, mas
pnos postulados. intelectuais na profundidade. No nojo, o problema da emoção
Como os ritos mágicos, o tabu do nojo funda-se sobre uma mágica torna-se mais claro, pois, desde que afastado o mito
gramática dos contatos e difunde-se por uma teoria dos contá- da cientiíicidade, as práticas e ritos mágicos nele existentes não
gios. ~quele que toca em uma coisa impura fica impuro também lidam com perigos objetivos de as pessoas serem tragadas pelas
, aquilo que está simbolicamente associado às coisas impuras é águas de um rio, ou de serem atacadas por um animal selva-

161
gemo São perigos simbólicos, e as coisas impuras e perigosas como muitas outras práticas e muitas outras instituições. É
- como queria Radcliffe-Brown e mais recentemente Lévi- um expulsar, para fora do nosso mundo, de realidades incompa-
Strauss (49, p. 107) - são assim exatamente porque a comu- tíveiscom a ordem, com o controle social. Ê o estabelecimento
nidade assume em relação a elas uma atitude ritual. da descontinuidade indispensável em relação à Natureza, sem a
qual a Cultura é logicamente inexistível,
A magia do nojo, como toda magia, não carece de sentido,
vemos mais claramente agora. Corresponde a um sistema de Todas as secreções do corpo humano correspondem a
codificação do mundo e traduz figuradamente uma estrutura de atividades naturais que escapam do controle cultural, pois ma-
idéias, que as relações entre as atividades e produtos do corpo nifestam-se independentemente das disposições sociais, e, por
humano condensam. As evitações do nojo e as práticas higiê- isso, tendem a ser consideradas nojentas. A lágrima, entretanto,
nicas são uma linguagem por meio da qual a sociedade se diz é talvez a única secreção (e em certo grau também a saliva)
a nós e nós dizemos a sociedade. Como os ritos e as práticas que emerge sob o controle social, pois é a Cultura que deter-
mágicas, e ao contrário do que pensam os seus praticantes, mina, de um modo geral, quando, e por que motivos, ela deve
antes de serem instrumental e objetivamente eficazes, os ritos ser vertida. Então, é vista como "cristalina" e "pura", e, mui-
higiênicos e as reações de nojo são de ordem simbólica e 'ex- tas vezes, considerada "sublime". Da mesma forma, o "suor
pressiva. atlético", que é, de certa maneira, produzido culturalmente,
tende a ser considerado como "menos digno de nojo", por al-
guns informantes.
o nojo dos produtos do corpo, e o poder mágico a eles Por essa impossibilidade de se submeterem ao controle
atribuídos, expressam, antes de qualquer coisa e na base de da coletividade, os aspectos orgânicos da vida humana se eri-
tudo, uma transgressão ou um perigo sobre os limites entre a gem em fundamentos elementares e universais da impureza e
Natureza e a Cultura. A desordem a que o nojo reage é essen- da desordem. Portanto, é necessário ao homem rejeitar, expul-
cialmente o cruzamento irregular da linha de separação desses sar simbolicamente de seu convívio, tudo o que em si é Natural
domínios. As coisas nojentas são freqüentemente associadas a e rebelde; e, ao rejeitar nele o que é Natural, o homem marca
"formas pouco poéticas" ou "coisas anti-estéticas", e sabemos o que em si existe de Cultural.
que a beleza, vista sociologicamente, é antes de mais nada o Portanto, a exemplo do que acontece com o totemismo e
l
, produto de uma atividade ordenadora e sistematizadora, a pon- com o sistema de castas, conforme demonstrou Lévi-Strauss
to de estarmos de certa forma moralmente obrigados a preser- (55, capo 4), as práticas e crenças relacionadas com a evitação
var a beleza e adotar dela tudo o que porventura produzamos. das emanações corporais, parecem-nos representar um meca-
Tendemos a identificar a Cultura com o belo e consideramos nismo de mediação e de separação entre a Natureza e a Cul-
a Estética, e tudo o que com ela se relaciona, entre as mais tura, pois, se o totemismo separa elementos da Cultura (clãs)
elevadas manifestações culturais; analogamente, os gestos trans- por meio de elementos da Natureza (animais e plantas), se-
gressores são gestos "feios", os palavrões são "nomes feios" parando, então, naturalmente, elementos da Cultura; e se o
e um homem ou uma mulher são em geral julgados bonitos sistema de castas separa elementos da Natureza (relações se-
na medida em que suas formas se afastam da animalidade. xuais) por meio de elementos da Cultura (objetos, profissões),
O homem é o único animal que se horroriza do seu sangue, separando, então, culturalmente, elementos da Natureza - o
do seu vômito, de suas secreções sexuais, e que se sente cruel- sistema do nojo e as práticas corporais ocupam uma posição
mente atingido por eles, porque é o único a possuir Cultura. intermediária, ao separarem a Natureza da Cultura, e ao con-
O nojo é uma forma de separação entre a Natureza e a Cultura, trolarem as relações entre elas por meio de atribuição de valor

163
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cultural às coisas de Natureza (lágrimas, sangue, pus, catarro, sinorumo, em português, de "decomposição", "desalinhamento",
etc.) ou de valor natural às coisas da Cultura (palavrões, ofen- "desordenado", "desarrumado". Em nossa investigação, "po-
sas, etc.: "o professor é uma merda" ... ). dre" foi muitas vezes apontado como sinônimo de "nojo" e de
As secreções do corpo são associadas a um "interior" te- "nojento". As culturas tendem a enfatizar o que elas controlam
nebroso, e sua manifestação "exterior" é um deslocamento e é e a negar e expulsar o que não conseguem controlar.
sempre uma agressão. O vômito, símbolo cristalizado do nojen- As ofensas ligadas a estes elementos não-controlados con-
to, é exatamente a ilustração fisiológica de uma violência ao têm grande capacidade de liberação emocional, como os pala-
nível da relação Natureza/Cultura. As situações que eviden- vrões, as inscrições dos banheiros públicos e as revisas porno-
ciam a inversão Interior = Natureza/ Exteriorzx-Comroiado-» gráficas. Muitas vezes, são usados para agredir a sociedade,
Cultura inscrevem-se entre as de efeito mais nojento: engolir a como os grajjitti nas paredes dos banheiros públicos, com es-
saliva, enquanto ela ainda pertence ao "interior", enquanto ela critos e desenhos violentadores, objetivando agravar a agres-
está no seu lugar, não representa aberração alguma, mas um são às vezes servindo-se do próprio excremento para escrever:
informante narrou que "certa vez quase desmaiou ao ver um "vai gozar na boca da tua mãe", dizia um, com o desenho de
menino que encheu um copo de cuspe e depois bebeu-o", por- uma mulher praticando coito oral (notar a agramaticalidade
que, nesse caso, a saliva emergiu, mudou de fisionomia e foi do contato oro-genial; a ingestão de excreção; o incesto; a
ingerida, como acontece com os alimentos, 'estabelecendo-se violação do Sagrado, a maternidade, pelo Natural). Na invasão
uma identificação agramatical "excreção= alimento". da Cultura pela Natureza, encontramos a maioria dos insultos
A oposição interior/exterior é essencial para o en- e agressões graves, como o nojo, todos sociologicamente muito
tendimento da problemática do nojo, pois os produtos do corpo interessantes, uma vez que apontam para aquilo que é social-
não são nojentos no mesmo grau quando representam uma mente sentido como o grau mais cruel de degradação para os
Natureza "natural", isto é, devidamente colocada em seu lugar membros da nossa sociedade.
e controlada pela própria organização biológica do corpo. O Entretanto, poder-se-ia argumentar que muitas agramatiea-
que é real e extremamente perigoso é a Natureza deslocada, a lidades provocadoras de nojo são muitas vezes excitantes e tidas
secreção, que é Natural, mas ocupa um espaço exterior, reser- por agradáveis no terreno do comportamento sexual. De fato,
vado à Cultura. O que repugna especialmente é a ambigüidade indivíduos incapazes de escovar os dentes com a escova de uma
desses produtos que o homem produziu, mas não pode contro- mulher, beijarão com paixão os seus lábios introduzindo-lhe a
lar. O "interior", por si só, não é necessariamente perigoso (tan- língua na boca; a riparofilia e as topo-inversões são menos in-
to que é sede de alma, da consciência), é-o a sua ação, a sua comuns do que comumente se supõe. Um informante declarou
manifestação incontrolada, a invasão que promove do mundo que "a sangue frio, acho ruim a relação sexual com mulher
culturalmente controlado (não é, por 'exemplo, de bom tom menstruada; com o sangue quente a coisa é diferente. Entretan-
abrir a boca, de forma a exibir a garganta; ou lavar uma fruta to, sempre sinto uma sensação desagradável depois. Certa vez,
na pia do banheiro, pois o efeito seria o inverso do purificató- após relação com mulher menstruada, vi uma mancha de sangue
rio, em virtude da inversão de direção do eixo da oposição sobre a cama, Isto teve um efeito muito ruim sobre mim na-
ingestãojexcreção) . quele momento, e alterou profundamente o meu relacionamento
O "podre" é outro símbolo cristalizado do "nojento" e posterior com aquela mulher",
representa, como Lévi-Strauss observou, uma transformação É claro que há, aí, inversão dos princípios da gramática
natural distanciada do controle cultural e, por isso, se constitui do nojo; mas há também uma inversão contextual da relação
em inimigo da ordenação cultural, sendo a palavra "podre" entre Natureza e Cultura, já que, na relação sexual, a excreção

1M 165
é buscada e desejada, a aproximação dos corpos é indispensá- reza dupla: pura e digna quando controlada, e impura e degra-
vel. etc.:. atenua-se a peso da Cultura e enfatiza-se a ação dos dante quando desviante e rebelde, O Homem, então, não pode
processos naturais. reconhecer-se integralmente na sua corporalidade, e é obrigado
Ao contrário do que acontece na vida cotidiana, em que a rejeitá-Ia e afastá-Ia como decaída e perigosa. O Homem
a Natureza é rejeitada, em que o corpo é objeto de nojo, na aprende a detestar em si, metaforicamente, aquilo que em si a
vida sexual tenta-se uma reintegração do homem à Natureza, o sociedade necessita odiar: a expressão latina, que está na origem
que está expresso também no fato de as relações sexuais matri- da palavra "nojo", exprime-o claramente: in adio habere.
moniais não serem as que mais se prestam a este tipo de rein- Para afirmar-se como ser da Cultura, - o Homem se vê
tegração, evitando os maridos fazer objeto de suas "perversões" obrigado a esquecer que sua humanidade e, portanto, sua Cul-
as suaspróprias esposas: é que, no eixo da oposição Natureza/ tura mesma, está profundamente enraizada em sua natureza ani-
Cultura, a esposa é mais Cultura, e a relação sexual com ela mal, representada pelos processos orgânicos negados, rejeitados
figura na imaginação das pessoas sem os característicos de Na- e odiados. Para afirmar o Homem como ser da Cultura, a nossa
tureza que possui a relação extramarital. A relação sexual com cultura faz do Homem uma leitura tal que o próprio Homem
a esposa, relativamente à relação extramatrimonial, então, está não consegue reconhecer-se em si: o mito da dignidade da "na-
mais para o lado da instituição culturalmente convencionada tureza humana" não é compatível com as tendências e manifes-
que para o da reintegração naturalmente desejada, e, no exem- tações irreprimidas da própria Natureza. O conceito de "natu-
plo anterior, a relação com mulher menstruada, a "sangue reza humana" mutila o Homem, separando-o da própria Na-
quente", é um obscurecimento e neutralização da coerção cul- toreza,. com a qual ele não se pode confundir, porque deve
tural, e o "efeito ruim", a "sangue frio", uma rejeição calcula- controlá-Ia; e faz uma dimensão da morte, das manifestações
da, enf'atizada culturalmente, para restabelecer o domínio da de vida corporal que não pode controrar,
Cultura sobre a Natureza. Todavia, o horror às manifestações corporais é uma es-
pécie de fascínio que estas exercem sobre o Homem, porque a
ele evocam, obscuramente, algo que é seu, algo que é ele, roas
Há, na corporalidade humana e na natureza do homem, em que não pode reconhecer-se: as práticas corporais e o nojo
de modo geral, segundo as leituras que delas fazem as socie- do corpo não buscam dizer sobre o corpo e explicá-Io, funda-
dades, uma contradição fundamental: a de ser o homem ao mentalmente; pelo contrário, o corpo que é aquilo por meio de
mesmo tempo um ser da Natureza (isto é, um animal) e algo que se diz e se explica. Abriga, em nós, um Inferno que costu-
diferente de um animal (um ser cultural). Ao erigir-se em sím- mamos ver nos outros: a Natureza Humana que é estranha
bolo da estrutura social, o corpo, simultaneamente Natureza e aos Homens. Nesse sentido, o corpo é uma filosofia.
representante da Cultura, condensa em si esta ambigüidade, e
reproduz simbolicamente, e ao mesmo tempo, o que a socieda-
de deseja le o que a sociedade teme, as forças fastas e as forças
nefastas. Paralelamente culturalizado e rebelde ao controle cul-
tural, o corpo é "bom para pensar" a dualidade da estrutura
social, exprimindo, no que é corporalmente "puro" e "impuro",
respectivamente, o que a sociedade quer ou não quer ser.
Ao dicotomizar assim o corpo, projetando-lhe a dualidade
da estrutura social, a sociedade faz reconhecer nele uma natu-

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173
172
Oficina da palavra - IvoBarbieri
uma análise intertextual da obra de Mario
Faustino.

Sobre Mario Faustino


"Cr ítico de formação poundiana,
seus trabalhos caracterizavam-se pelo
agudo discernimento criativo e pela
dinâmica instigação de idéias. Faustino
fez o mais ágil e inteligente jornalismo
literário que jamais vi entre nós. Como
poeta, aberto ao novo, dotado de um
manuseio dúctil e sutil das técnicas do
poema em verso, capaz do fragmento e
da ruptura, mostrou-se sempre
generosamente sensível aos experimentos
mais radicais da poesia concreta, embora,
na sua produção pessoal, conservasse
ainda certos elos com a tradição
discursiva. ~ uma grande e inesquecível
figura de intelectual e de homem ... "
(Haroldo de Campos)

Sobre Ivo 8arbieri

"No plano existencial, há também


um encontro entre o poeta estudado e o
autor deste livro. "Fazer e criticar",
"fazer para renovar" se integram na
prática poética de Faustino. "Fazer e
criticar", "fazer para renovar" se
integram quando Ivo trabalha cultura e
educação. Nele, a sondagem experimental
da cultura está sempre em estado nascente,
o professor está sempre "se inaugurando",
na sua recusa a respostas definitivas. Se
para Faustino o poeta não é só inventor,
mas também professor, em Ivo o
professor é também inventor,
desestruturador inquieto, reativador de
velhas situações."
(Dirce Côrtes Riedel)

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