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O Mito no tempo e espaço : aproximações entre a teoria Kantiana e as idéias de

Mircea Eliade
Immanuel Kant (1724-1804), importante filósofo da era moderna causou uma revolução epistemológica

renovando inteiramente a questão da objetividade do saber (Crítica da Razão Pura), da vontade (Crítica da

Razão Prática) e do julgamento (Crítica do Juízo). “Em vez de procurar conhecer as coisas afirma que antes

é preciso examinar o próprio modo de conhecer, suas possibilidades e seus limites.” [1] Kant revolucionou
o pensamento filosófico porque “em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do

conhecimento, dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos” [2] ,
colocou no centro a própria razão. Até então os filósofos preferiram dizer o que é a realidade. Kant preferiu

dizer como a razão chega ao conhecimento, denotando assim o caráter revolucionário e seu pensamento. O

próprio Kant afirmava que percorrer o caminho oposto seria como “alguém que, querendo assar um frango,

[3]
fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do forno.”

Assim com Copérnico concebeu o modelo heliocêntrico invertendo o geocentrismo, Kant constituiu uma

epistemologia invertendo o olhar sobre a metafísica e examinando o modo como conhecemos, nossas

possibilidades e limites; Kant elabora então o Criticismo transcendental, superando o dogmatismo

Racionalista e o ceticismo Empirista.

Conhecemos a razão como uma estrutura vazia, sem forma ou conteúdos. Tal estrutura é universal,

única e inata para todos os seres humanos, o que indica que ela não é adquirida pela experiência. Como diz

Kant a razão é anterior à experiência (a priori). Já os conteúdos que a razão conhece e com os quais pensa

dependem da experiência. “Assim, a experiência fornece a matéria (os conteúdos) do conhecimento para a

razão e esta, por sua vez, fornece a forma (universal e necessária) do conhecimento.” [4]. A matéria do
conhecimento vem depois da experiência (a posteriori). Percebemos então que a estrutura da razão é

universal e inata, enquanto seus conteúdos são empíricos variando no tempo e no espaço.

A razão, sendo uma estrutura vazia, funciona somente como reguladora e controladora da atividade do

sujeito do conhecimento.

A forma da sensibilidade é o que permite a percepção das coisas. “Nada pode ser percebido se não

possuir propriedades espaciais; por isso, o espaço não é percebido, mas é o que permite haver percepção

(percebemos lugares, posições, situações, mas não percebemos o próprio espaço.” [5]. Sendo assim o
espaço é uma forma a priori da sensibilidade. Da mesma forma não percebemos o tempo. Temos
experiência de passado, presente e futuro, não porém do próprio tempo, ainda que ele (o tempo) seja a

condição necessária para a possibilidade de percepção das coisas. Desta forma concluímos que o tempo

também é uma forma a priori. Kant, portanto, afirma que a razão e o sujeito do conhecimento possuem

estruturas para poder conhecer e, e tais estruturas são universais e necessárias, o conhecimento é racional

e verdadeiro para os humanos.

Kant, na Crítica da Razão Pura elabora categorias que denomina de transcendentais, são estruturas

“a priori” da sensibilidade e do intelecto, que possibilitam a experiência do objeto. Ele distingue três tipos de

juízo:

- Juízo Analítico a priori (universal e necessário) – esta forma de juízo não amplia o conhecimento, só

explica e é baseado no princípio da identidade, ou seja, o predicado não é nada mais que a explicitação do

conteúdo do sujeito. Ex: um triângulo tem três lados.

- Juízo Sintético a posteriori (não é universal, nem necessário) – esta forma de julgamento amplia o

conhecimento, pois realiza uma síntese, fundamentada na experiência.

- Juízo Sintético a priori (universal e necessário) – esta forma de julgamento amplia o conhecimento e é

formulado independentemente da experiência empírica.

Segundo Kant o modo originário do conhecimento é a intuição “que representa o objeto de modo

imediato” [6] e pode ser empírica (sensações) ou pura. A intuição pura é próprio do sujeito e é condição a
priori de possibilidade da intuição empírica, ou seja, são as formas da sensibilidade: espaço e tempo. A

experiência pressupõe o sujeito como condição de possibilidade, pois a forma do que sente ou pensa é o

fundamento do Juízo Sintético a priori.

Em seu estudo sobre a lógica, Kant constrói a tábua dos conceitos puros do intelecto:

- qualidade,

- quantidade,

- relação,

- modalidade
- totalidade.

São esses conceitos (e não a experiência) que tornam possível pensar os objetos; é o intelecto,

utilizando-se desses conceitos, que possibilita o conhecimento e sua objetividade, ou seja, o conhecimento

da realidade é a maneira como a razão, com sua estrutura universal, organiza os dados da experiência.

Graças às formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e dos conceitos a priori do entendimento

(categorias de substância, causalidade, relação, quantidade, qualidade, etc.), possuímos uma capacidade

de conhecimento inata, universal e necessária que não depende da experiência. [7]


O sujeito do conhecimento é quem torna possível a representação do fenômeno no espaço e no tempo e

impõe determinações (conceitos) que o tornam objeto da experiência.

Kant afirma existir duas modalidades de realidade, uma que se oferece a nós na experiência e uma

que não se oferece à experiência. A realidade que se oferece na experiência é o que ele chama de

fenômeno. O fenômeno é estruturado pelo sujeito com as formas do espaço e tempo. Também é sujeito de

um juízo e objeto de um conhecimento. A segunda realidade, aquela que não se oferece à experiência, é

chamada de númeno. O númeno é aquilo que não é dado à sensibilidade nem ao entendimento, mas é

afirmado pela razão, sem base na experiência.. Em outras palavras podemos dizer que o fenômeno é o

objeto do conhecimento e o númeno é a coisa em si.

Para Kant a razão só pode conhecer o que aparece como fenômeno, dado no espaço e no tempo, e que é

subsumido por categorias (conceitos); a coisa em si não pode ser conhecida. “Em outras palavras, a coisa

em si, o númeno, escapa à possibilidade do conhecimento. Só podemos conhecer os fenômenos”.

[8] Assim afirmamos, pois:


Só há conhecimento universal e necessário daquilo que é organizado pelo sujeito do conhecimento nas

formas do espaço e do tempo e de acordo com os conceitos do entendimento. Se o númeno é aquilo que

nunca se apresenta à sensibilidade, nem ao entendimento, mas é afirmado pelo pensamento puro, não

pode ser conhecido. [9]


A Metafísica buscava conhecer formulando juízos sintéticos a priori sobre a coisa em si

(númen), concebendo idéias que não se referem à experiência. Kant, no entanto, afirmava a possibilidade

lógica de elaborar conceitos sobre a coisa em si, mas essa não poderia ser tomada como possibilidade
transcendental das coisas. Em outras palavras a Metafísica tentava explicar aquilo que não se prova

cientificamente caracterizando-se como uma ilusão produzida pelo uso ilegítimo dos conceitos, sendo

portanto condenada no tribunal da razão.

A idéia metafísica de Deus é a idéia de um ser que não pode nos aparecer sob a forma do espaço e do

tempo; de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica; de um ser que, nunca tendo sido dado

a nós, é posto, entretanto, como fundamento e princípio de toda a realidade e de toda a verdade. Assim a

idéia metafísica de Deus escapa de todas as condições de possibilidade do conhecimento humano e,

portanto, a metafísica usa ilegitimamente essa idéia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é.

[10]
Kant, porém, levanta o fato das necessidades da razão não coincidirem com as do conhecimento,

pois são de esfera prática e não teórica. A Metafísica, para Kant, propõe regras morais, ou seja, idéias

reguladoras da prática dos homens.

Segundo ele é impossível demonstrar a existência, bem como a não existência de Deus, sendo esta

uma concepção justa do Ser Supremo. Buscava atributos de âmbito moral considerando Deus como o

Supremo Bem.

Kant afirmava que se o sujeito promover o Bem Supremo, junto à honestidade de suas ações,

assimila-se um elemento de felicidade: o direito de crer na existência do Supremo Bem derivativo a que o

sujeito, como agente moral, se propõe. Assim, afirmava a fé como ato teórico fundado, não demonstrável

teoricamente, somente por via moral para o apoio da obrigação de buscar o Supremo Bem.

Embora Deus não seja suscetível de demonstração empírica, a busca pelo Bem Supremo orienta a

ação humana e, de acordo com Kant, a razão, além de servir para pensar e argumentar, serve para orientar,

sendo primordial como função prática.

Com suas postulações a respeito da idéia de Deus, da Razão e da Metafísica, Kant levantou questões e

argumentos que atingem em cheio a Religião; e, por isso, ele pode ser considerado um pensador

fundamental para a filosofia da religião.

Kant afirma que a moral, por assim dizer, conduz à religião e, por ela, se amplia para além do ser

humano como vontade e objetivo desse. Enfim, temos a religião baseada em algo que não se conhece
(númeno), mas que tem função prática e reguladora da sociedade. O ser humano segue princípios morais

não somente para se organizar em sociedade, mas também por acreditar que um ser supremo (Deus) é que

determina o seguimento de tais regras.

Pode-se dizer que a forma de organização da sociedade tem como modelo principal seus mitos de

origem. Ainda que não se alcance empiricamente a essência dos mitos, devido aos limites da razão, sua

função prática permanece dominante na estruturação funcional das sociedades. Kant nomeia como númen

o inatingível pela razão, o qual assemelha-se com o que Mircea Eliade fala sobre mitos, pois os mesmos

são inatingíveis por meio da razão, mas ainda assim são lembrados, relembrados e vivos no mundo

humano das idéias, pois apresentam função organizacional para a sociedade, em outras palavras podemos

dizer que os princípios fundantes das organizações sociais são baseados em mitos. Não se pode dizer se o

mito existiu ou não, já que, devido limitações de nossa razão, não podemos atingir o conteúdo mito em si; o

que se pode dizer é que ele funciona como regulador de ações humanas em diversos contextos sociais.

Mircea Eliade (1907-1986) nascido em Bucareste, onde formou-se em Filosofia, partiu para Índia, tendo ali

estudado sânscrito e filosofias do sudeste asiático e contribuído de forma valiosa para a compreensão do

que entendemos por religião e também para a compreensão das funções do mito.

Eliade considera o pensamento simbólico, que precede a Linguagem e a Razão discursiva, como

consubstancial ao ser humano. [11] Afirma que estudar as religiões de modo racional, revela uma lógica do
símbolo, coerência e encadeamento, que devem ser analisadas como um todo em suas estruturas e

funções.[12]
Ao estudarmos tal autor podemos encontrar similaridades entre a função prática do Bem Supremo

elaborada por Kant e a função prática do mito:

A função mestra do mito é a de fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as ações humanas

significativas... fora dos atos estritamente religiosos, o mito serve igualmente de modelo a outras ações

humanas significativas: à navegação e à pesca, por exemplo. [13]


Em outras palavras, para sermos justos com o mito não podemos afirmar que sua narrativa se refere

a algo que realmente ocorreu num passado longínquo, tampouco podemos negar a importância que ele

exerce na formação de nossa real estrutura da sociedade humana.


Eliade afirma que o mito constitui importante papel na “geografia sagrada” de uma sociedade, como aquele

que revela a verdadeira realidade, representa um centro e um espaço real, ou seja, o “Sagrado”.

[14] Sendo a principal função do mito, segundo ele, romper as barreiras das situações históricas,
projetando os indivíduos para o Tempo Sagrado, no qual o cronológico é considerado Profano e deve ser

abolido; possibilita ainda estabelecer rituais visando abolir esse tempo cronológico e reatualizar a

cosmogonia da sociedade. Em suas palavras:

Um mito narra os acontecimentos que se sucederam in princípio, ou seja, “no começo”, em um instante

primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado. Esse tempo mítico ou sagrado é qualitativamente

diferente do tempo profano, da contínua e irreversível duração na qual está inserida nossa existência

cotidiana dessacralizada. Um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual,

cronológico, “histórico” – e projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Templo, num instante paradoxal

que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma

ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o Tempo

Sagrado. [15]:
Assim como Kant afirmava ser imprescindível a existência das formas de sensibilidade tempo e

espaço para que se conheça o objeto, Eliade também evidencia que essa necessidade ocorre quando nos

referimos aos mitos:

A Cosmogonia é o modelo de todas as construções. Construir uma cidade, uma nova casa, é imitar mais

uma vez, em certo sentido, repetir a criação do mundo. Com efeito, cada cidade, cada casa, encontra-se no

“centro do universo” e, nessas circunstâncias, a sua construção só é possível graças à abolição do espaço

e do tempo profanos e à instauração do espaço e do tempo sagrados. [16]


Kant afirmava ser impossível para o ser humano atingir o númen, devido à limitação da razão que

não permite conhecer a coisa em si. Por um outro lado não nega a existência de realidades que não

podemos compreender racionalmente (Deus). Da mesma forma, Eliade fala de um “real” inatingível ao ser

humano que se mostra através dos mitos:

Qualquer que seja a sua natureza, o mito é sempre um precedente e um exemplo, não só em relação às

ações – “sagradas” ou “profanas” – do homem, mas também em relação à sua própria condição. Ou melhor:

um precedente para os modos do real em geral... com efeito, uma boa parte dos mitos, ao mesmo tempo
que narra o que fizeram in illo tempore os deuses ou seres míticos, revela uma estrutura do real, inacessível

à apreensão empírico-racionalista. [17]


Segundo Eliade, o advento da Modernidade gerou o desprezo pelas mitologias e teologias, decorrente da

liberdade humana e da crescente racionalização; no entanto o ser humano moderno continuou a se

alimentar desses “mitos decadentes e das imagens degradadas”. [18] Para Eliade, o conteúdo desses
mitos e imagens permanece degradado em decorrência do processo de racionalização, já que “os mitos se

degradam e os símbolos se secularizam, mas eles nunca desaparecem” [19]; portanto na sociedade atual
“esse tesouro mítico aí repousa ‘laicizado’ e ‘modernizado’ ”, estando ainda presente mesmo com as

conseqüências da Modernidade. [20]


Parece-nos, portanto, que Kant, em suas críticas sobre a forma do pensar humano, iluminou os caminhos

tortuosos pelos quais temos percorrido, de forma que, ao aceitar nossas limitações da razão, possamos

prosseguir no caminho do conhecimento de maneira mais sensata e integrada.

Referências Bibliográficas

CAFFARENA, J. G. La Filosofia de la Religión de I. Kant. In: Filosofia de la Religión Estudos e Textos,

Edición de Manuel Fraijó .Editoria Trotta .

CHAUÍ, M. Convite à Filosofia, 5ª ed., São Paulo: Ed. Ática, 1995.

ELIADE, M. Tratado de História das Religiões, 2ª ed, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.

ELIADE, Mircéia. Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico religioso, Trad. Sônia Cristina

Tamer, São Paulo: Martins Fontes, 1991.

KANT, I. Textos Selecionados – Os Pensadores, São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1980.

ZILLES, U. Filosofia da religião, 4ªed , São Paulo: Ed. Paulus, 2002.

_________ Teoria do conhecimento, 2ª ed , Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

[1] ZILLES, U. Teoria do conhecimento, Porto Alegre, 2ª ed., EDIPUCRS, 1995, p.113.
[2] CHAUÍ, M. Convite à Filosofia, São Paulo, 5ª ed., Ed. Ática, 1995, p.77.

[3] ibid, p. 77.

[4] ibid, p.78.

[5] ibid, p.78.

[6] ZILLES, U. Teoria do conhecimento, Porto Alegre, 2ª ed., EDIPUCRS, 1995, p. 116.

[7] CHAUÍ, M. Convite à Filosofia, São Paulo, 5ª ed., Ed. Ática, 1995, p.232.

[8] ZILLES, U. Filosofia da religião, São Paulo, 4ªed., Ed.Paulus, 2002, p.49.

[9] CHAUÍ, M. Convite à Filosofia, São Paulo, 5ª ed., Ed. Ática, 1995, p.233.

[10] ibid, p.234.

[11] ELIADE, Mircéia. Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico religioso, Trad. Sônia
Cristina Tamer, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.8.

[12] ibid, p.33.

[13] ELIADE, M. Tratado De História das Religiões, São Paulo, 2ª ed., Ed. Martins Fontes, 1998, p. 334

[14] ELIADE, Mircéia. Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico religioso, Trad. Sônia
Cristina Tamer, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.36.

[15] ibid, p. 53-4

[16]ELIADE, M. Tratado De História das Religiões, São Paulo, 2ª ed., Ed. Martins Fontes, 1998, p. 305

[17] ibid, p. 339.

[18] ELIADE, Mircéia. Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico religioso, Trad. Sônia
Cristina Tamer, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.15.

[19] ibid, p. 21.

[20] ibid, p.14.

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