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ABDALA JR O Cinema É Outra História
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O Cinema é uma outra história 3
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4 Roberto Abdala Junior
jamos, então, como a argumentação de Cer- também a fruição do filme e recorrem para
teau pode iluminar nossas reflexões. isso a uma linguagem diferente, específica.
Os cenários cinematográficos “materiali-
zam” nas telas (para a percepção do público) 2.2 Distanciamentos (?)
muitas das condições que os textos históri-
cos descrevem. Vale lembrar que as imagens As aproximações na construção dos discur-
apresentadas nos filmes entram na constru- sos da História e do Cinema não devem, en-
ção de seu discurso e que eles pretendem dia- tretanto, alimentar a ilusão de que existem
logar com outros discursos presentes no con- analogias e, menos ainda, identidades nas
texto da época de sua produção. Assim, as suas formas de abordagem dos acontecimen-
imagens tendem a estar mais próximas desse tos, nas motivações que lhes deram origem
contexto, mesmo em filmes “de tema histó- ou nas restrições a que esses discursos estão
rico” ou que recorram a contextos históricos submetidos, começando pela linguagem que
nas suas narrativas, sendo, por isso, muito empregam e finalizando nos objetivos que
difícil encontrar nelas uma fidelidade rigo- perseguem.
rosa.6 As narrativas da História e do Cinema
As narrativas fílmicas desenrolam-se em obedecem a finalidades completamente di-
cenários análogos ao do mundo da experiên- ferentes: no cinema, a narrativa já encerra
cia, construindo, portanto, relações de causa a sua finalidade – contar uma boa história,
e efeito, de forças sociais que se confron- esse é seu objetivo principal; na história, a
tam, de disputas históricas que adquirem um narrativa é o meio pelo qual os historiadores
significado diferenciado, somente porque es- compartilham com a sociedade os conheci-
tão na tela por uma escolha dos realizadores: mentos que construíram a respeito de uma
portanto representam um ponto de vista so- memória que fez/faz parte de uma dada so-
bre a realidade. Todas as proposições dos re- ciedade numa época determinada.
alizadores criam uma tensão dialógica (MI- Os discursos construídos pelos filmes são
TRY, 1989) com outros discursos que com- narrativas ficcionais;7 não têm a preocupa-
põem o contexto: o do próprio filme, o da ção de serem fiéis a qualquer acontecimento,
época em que a trama do filme acontece; o personagem, contexto e/ou conhecimento –
da época de produção e o de exibição. seus significados residem, principalmente,
Os cenários construídos pelos filmes tam- em contar histórias, sejam elas quais forem;
bém procuram instaurar uma “ordem natu- sua finalidade primeira é o entretenimento
ral” das coisas num discurso “hoje inteligí- – sua narrativa atende a esse fim e essa é a
vel”, como os cenários da História fazem. A 7
Os filmes são assim considerados porque esta-
construção desses cenários do Cinema, como mos abordando principalmente os filmes narrativos e
os da História, permite a compreensão do de- ditos “comerciais” e não, por exemplo, os documentá-
rios. No entanto, mesmo os documentários não fogem
senrolar dos acontecimentos, a estruturação muito a uma concepção de obras ficcionais. Uma dis-
do enredo. No caso do cinema, asseguram cussão a esse respeito escapa ao foco de nossa abor-
6 dagem.
A esse respeito consultar a obra do historiador
Marc Ferro.
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única premissa restritiva que, a princípio, se (METZ,1980) ou, em suas próprias pala-
submete. vras, “o filme enquanto discurso significante
Os discursos históricos, ao contrário, bus- (texto)” (p. 12). Jacques Aumont é mais pre-
cam escapar a qualquer possibilidade de se- ciso a esse respeito e esclarecedor para os
rem considerados ficção e, nessa medida, propósitos a que nos voltamos:
perseguem maior fidelidade aos aconteci-
mentos, aos personagens, aos contextos e ao “A narrativa fílmica é um enunciado que
conhecimento já construído a respeito da- se apresenta como discurso, pois implica,
quele objeto que abordam; ancoram sua legi- ao mesmo tempo, um enunciado (ou pelo
timidade social nos dados, nas fontes históri- menos um foco de enunciação) e um
cas a que recorrem para sustentarem sua nar- leitor-espectador. Seus elementos estão,
rativa. A premissa da qual se origina o dis- portanto, organizados e colocados em or-
curso histórico é um problema, uma questão dem de acordo com muitas exigências:
que pretende responder e sua finalidade pre- em primeiro lugar, a simples legibilidade
cípua é construir um conhecimento acerca do filme exige uma “gramática” (trata-se
dos acontecimentos que compõem a memó- aí de uma metáfora), a fim de que o es-
ria histórica de uma sociedade, debruçando- pectador possa compreender, simultane-
se, criticamente, sobre ele e os processos his- amente, a ordem da narrativa e a ordem
tóricos que lhes deram origem. da história. Essa organização deve es-
Além disso, os filmes são resultado de tabelecer o primeiro nível de leitura do
um trabalho coletivo que, por isso, tendem filme, sua denotação; ... em seguida, deve
a não dar um tratamento muito arbitrário ao ser estabelecida uma coerência interna do
material cinematográfico, expressando tra- conjunto da narrativa. ... finalmente, a or-
ços comuns a muitas pessoas; destinam-se dem da narrativa e seu ritmo são estabele-
e interessam às multidões anônimas (KRA- cidos em função de um encaminhamento
CAUER, 1988); os discursos históricos, ao de leitura que é, assim, imposto ao es-
contrário, são resultado de trabalhos indivi- pectador. É, portanto, concebido também
duais, são destinados aos círculos acadêmi- em vista de efeitos narrativos. ... , é um
cos, mesmo considerando que, ultimamente, discurso fechado, porque comporta ine-
têm apresentado uma tendência de não fica- vitavelmente um início e um fim, porque
rem circunscritos a esses. é materialmente limitado.” (AUMONT,
1995, p. 106 –108)
2.2.1 As linguagens
Muitos analistas, mesmo considerando
Na esfera cinematográfica, os filmes é que como esses autores, os filmes como discur-
têm sido considerados discursos.8 Se- sos não observam (ou talvez lhes escape) que
gundo Christian Metz, eles devem ser tra- a construção destes recorre a uma linguagem
tados como textos, unidades de discurso que não obedece às mesmas regras de pro-
8 dução e leitura que a escrita, ou seja, ne-
Mitry (MITRY, 1989, Vol I, p. 55 ss), Morin
(MORIN,1970, p. 207), Metz, Maingueneau e Au- gligenciam o fato de o filme ser um outro
mont, entre outros, assim o consideram.
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texto.9 Assim, nasce da especificidade da Chartier deve ser “entendida como o estudo
linguagem cinematográfica a necessidade de dos processos com os quais se constrói um
nos debruçarmos sobre os recursos de que sentido” e se dirigir às “práticas que plural-
ela dispõe para compreendermos os diálo- mente, contraditoriamente, dão significado
gos que realizam com os discursos da his- ao mundo.” (1989, p.17 e 27). Mas, para
tória. Foge às pretensões deste trabalho, en- que se possa realizar uma abordagem desta
tretanto, lidar especificamente com a lingua- natureza, é necessário contar com um ins-
gem cinematográfica, um tema tão estudado, trumento teórico-metodológico eficaz, pois,
sob diversas abordagens. Não obstante, esta- a “problemática do “mundo como represen-
remos fazendo algumas apreciações impor- tação”, moldado através das séries de discur-
tantes, buscando principalmente relacioná-la sos que o apreendem e o estruturam, con-
com a escrita da história. duz obrigatoriamente a uma reflexão sobre
Em síntese podemos considerar que tanto o modo como uma figuração desse tipo pode
os discursos da História como os discur- ser apropriada pelos leitores dos textos (ou
sos do Cinema (ou, a maioria pelo menos) das imagens) que dão a ver e a pensar o real.”
descrevem contextos que colocam em cena (Chartier, 1989, p. 23-24). Uma reposta me-
um enredo, o desenrolar de acontecimentos, todológica à questão de Chartier, pelo menos
construindo uma lógica que assegure a inte- acerca dos processos que envolvem os dis-
ligibilidade dos processos que representam; cursos, nasce a partir das reflexões de James
suas narrativas se aproximam bastante, mas Wertsch.
a especificidade da linguagem que as estru- O autor, ao se debruçar sobre as obras
turam não podem ser negligenciadas. Mas, de Vygotsky e Bakhtin, apontou “aproxima-
como reconhecer os seus respectivos discur- ções conceituais”, para empregar seus pró-
sos nas relações com o público? prios termos, nos aspectos concernentes ao
emprego de signos10 e discursos pelos indi-
víduos. Segundo Wertsch, ambos conside-
3 Discursos e significados
ram que o emprego do material semiótico
O historiador francês Roger Chartier faz disponível na cultura é organizador do sub-
uma extensa argumentação para apresentar jetivismo individual. Decorre dessa premissa
as premissas teóricas nas quais se assentam que a configuração da consciência e a reali-
os trabalhos reunidos na sua obra, Histó- zação do aprendizado são considerados pro-
ria Cultural: entre práticas e representações cessos que nascem a partir das interações so-
(1989). Ao refletir sobre a História Cultu- ciais e são mediados por signos e/ou discur-
ral, considera que ela tem por principal ob- sos.
jeto “identificar o modo como em diferentes Wertsch, nessa perspectiva, defende outra
lugares e momentos uma determinada rea- maneira de abordar a psicologia individual:
lidade social é construída, pensada, dada a rompendo com o conceito de sujeito univer-
ler.” (1989, p.16) A História Cultural para 10
Uma definição de signo oferecida por Santaella
9
Mitry discute a questão e a esclarece como aqui que atende bem os propósitos deste trabalho é: “O
a consideramos. (MITRY, 1989, Vol. I, p. 55-59). signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu
objeto.” (1986, p. 78)
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sal que caracteriza outras abordagens, con- zada pelos sujeitos que as empregam, sejam
sidera necessário “elaborar uma explicação cognitivas (“ação mediada”) e/ou sociais (os
dos processos mentais que reconheça a rela- discursos).
ção essencial entre estes processos e seus ce- A contribuição de Bakhtin torna-se essen-
nários culturais, históricos e institucionais”. cial à análise, porque seus trabalhos visam
O autor pretende “seguir uma proposta mais apreender os significados, não a partir dos
geral, segundo a qual os instrumentos medi- signos ou dos discursos isolados, mas se-
adores surgem em resposta a uma extensa sé- gundo o enunciado completo no qual estão
rie de forças sociais” (1993, p. 23). envolvidos, ou seja, considerando o contexto
A partir dessa consideração básica, sociocultural e histórico no qual signos ou
Wertsch defende que “é a ação, mais do discursos são, concretamente, empregados.
que os seres humanos ou o ambiente, con- Nessa medida, as teses de Bakhtin abrem
siderados isoladamente, que proporciona o possibilidades de reconhecermos as relações
ponto de entrada para uma análise” (1993, que se estabelecem entre os discursos da His-
p.25), pois como “a ação tipicamente hu- tória e do Cinema em diversos contextos so-
mana emprega “instrumentos mediadores” cioculturais e históricos. No entanto, as ca-
tais como ferramentas ou linguagem [, racterísticas das teses bakhtinianas exigem
...] estes instrumentos mediadores dão que o quadro conceitual no qual se inserem
forma a ação de maneira essencial” (1993, seja esclarecido, para que sejam entendidas
p.29; grifo nosso). Nessa perspectiva, a as considerações acima.
“ação” é concebida por Wertsch se enquadra
nas proposições defendidas pelas teses de
4 O enunciado: Discursos e
Vygotsky e Bakhtin: deve ser tomada de
maneira diferenciada. diálogos em contextos definidos
Wertsch explica que os referenciais a que Makhail Bakhtin foi um pensador russo, con-
devemos nos pautar estão definidos nas obras temporâneo de Vygotsky e Einsentein, que
desses autores de maneira muito peculiar: foi publicado no Ocidente somente na se-
Bakhtin enfoca o enunciado como forma de gunda metade do século XX. Nas suas obras,
ação e Vygotsky enfatizar o discurso do pen- Bakhtin caracteriza todos os discursos como
samento e mais genericamente à “ação me- dialógicos. O conceito de dialogismo é cen-
diada” (Wertsch, 1998, p.60,61).11 As refle- tral nas proposições do autor, porque é ele
xões de Wertsch nos remetem à argumenta- que converte o foco da análise dos discursos
ção de Chartier, pois o autor não está pre- para o enunciado.
ocupado com as ferramentas representacio- Bakhtin reflete sobre a ação de enuncia-
nais em si, mas com a “ação” concreta reali- ção, pretendendo esclarecer as relações que
11
A ação mediada a que se refere Wertsch é se estabelecem entre texto e contexto. Nesse
aquela realizada pelo sujeito, em processos cogniti- sentido, emprega o termo “tema” e explica:
vos/práticos, por meio dos “mediadores semióticos”
ou “ferramentas” (Estudos socioculturais: história, Um sentido definido único, uma signi-
ação e mediação. In:WERTSCH, 1998). ficação unitária, é uma propriedade que
pertence a cada enunciação como um
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um filme recebem uma apreciação diferenci- Uma visão bastante sumária das teses
ada daquela que tem na realidade e seu sig- bakhtinianas e suas assertivas acerca das for-
nificado é apreendido, segundo as relações mulações dialógicas dos discursos e seus
que estabelecem com outras imagens e ou- significados, cotejada com a argumentação
tros elementos cinematográficos apresenta- de Mitry sobre a linguagem cinematográfica
dos no contexto da película. nos fornecem novas chaves para uma aven-
Aproximando as reflexões de Mitry às te- tura pelo universo das relações entre História
ses de Bakhtin, seria correto analisar os dis- e Cinema.
cursos imagéticos que os filmes compõem As reflexões que apresentamos pretendem
segundo os diálogos que estabelecem em indicar um caminho teórico-metodológico
dois contextos: com o contexto sociocultural para a leitura de filmes que tenha como
e histórico de enunciação (de produção ou finalidade seu envolvimento nos processos
exibição) mais amplo – o da “comunicação de ensino-aprendizagem de história. Te-
cultural"; e outro mais restrito – o do filme. mos considerado também que tais orienta-
Noutras palavras, as imagens-movimento e ções apresentam possibilidades de apreen-
o filme no seu conjunto dialogam em duas dermos, com mais objetividade, as aborda-
esferas diferentes: de um lado com os dis- gens dos discursos cinematográficos (filmes)
cursos que circulam na cultura da sociedade nos seus contextos de produção (historiográ-
da qual se originou a produção ou na qual fico) e exibição (escolar). A extensão deste
é realizada a exibição; de outro, com a nar- trabalho, entretanto, nos impede de realizar-
rativa cinematográfica, com elementos que mos um exercício nessa direção. Mesmo as-
compõem a própria película. Cabe aqui uma sim, acreditamos que algumas diretrizes já
observação decisiva para nosso estudo: para possam ser traçadas e que iluminamos al-
que os diálogos possam ser realizados de guns horizontes para empregarmos filmes de
forma mais significativa e/ou com finalida- forma diferenciada nas aulas de história.
des educacionais é necessário que o público
tenha construído discursos com os quais o
6 Referências bibliográficas
filme se propõe a dialogar.15
15
ANDREW, J. Dudley. As principais teorias
A idéia de que os discursos têm origem nas re-
presentações é defendida por Chartier (1989, p.18). do cinema: uma introdução. Rio de Ja-
Observe-se que, sejam as representações, considera- neiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
das em seu sentido histórico-sociológico como em
Chartier, ou noutros enquadramentos teóricos, como AUMONT, Jacques et. al. A estética do
elementos constitutivos das formas de representação, filme. Campinas: Papirus, 1995.
não constituem impedimento para o emprego dos dis-
cursos como expressões destas. Nesse aspecto con- AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas:
sideramos que a argumentação de Geertz é decisiva: Papirus, 2001. 6a ed.
“Quaisquer que sejam suas outras diferenças, tanto os
símbolos ou sistemas de símbolos chamados cogniti- ser padronizada – mecanismos extrapessoais para a
vos como os chamados expressivos têm pelo menos percepção, compreensão, julgamento e manipulação
uma coisa em comum: eles são fontes extrínsecas de do mundo.”(GEERTZ, 989, p. 188; grifo nosso)
informações em termos das quais a vida humana pode
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12 Roberto Abdala Junior
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. GEERTZ, Clifford. A interpretação das cul-
Rio de Janeiro: Forense Universitária, turas. Rio de Janeiro: Guanabara Koo-
2000. gan S. A, 1989.
CERTEAU, Michel de. A invenção do co- GINZBURG, Carlo. Sinais. In: Mitos, Em-
tidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: blemas e Sinais. São Paulo: Cia das Le-
Vozes, 1996. tras, 1989, p.143-179.
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