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Abordagem do problema crítico na "Crítica da razão pura" de Kant

Octavio N. Derisi

1936

I - Exposição

O ponto de partida da Crítica da razão pura: existência de conhecimentos a priopri. --


"despertado do seu sono dogmático" por Hume, como ele diz, Kant quer desmontar as
peças do nosso entendimento, para examinar sua aptidão e alcance no conhecimento da
realidade e determinar com isso o valor da metafísica. Ou seja, quer solucionar o
problema ontológico mediante a solução do problema gnosiológico. Antes de tentar
determinar a realidade é preciso, disse Kant, determinar a capacidade do nosso
instrumento, do nosso entendimento, para chegar a ela. A Crítica da razão pura de Kant
é, segundo sua intenção, uma obra eminentemente gnosiológica, com finalidade de
discernimento metafísico.

Kant começa seu livro distinguindo entre conhecimento empírico e conhecimento a


priori; porque "embora todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por
isso se origina todo ele na experiência"(2).

(2) Crítica de la razón pura. Traducion de Garcia Morente. Tomo I, pag. 68.

De fato, a experiência, disse Kant, só nos ensina algo contingente e singular. E, no


entanto, estamos na posse de conhecimentos necessários e universais. Não podendo
chegar a estes pela experiência, eles serão conteúdos puros que a inteligência possui de
antemão a priori, originados pelas próprias estruturas de nossas faculdades
cognoscitivas "conhecimentos que tem lugar independentemente... de toda experiência"
(t. I, p.70). "Necessidade e universalidade estritas são, pois, sinais seguros de um
conhecimento a priori e estão inseparavelmente unidas" (t. I, p. 72).

De semelhantes conceitos a priori recorremos sempre à ciência, mas sobretudo à


metafísica, que opera exclusivamente com estes conhecimentos "sem prévio exame da
capacidade ou incapacidade da razão para um empreendimento tão grande" (p.78).

O exame prévio do valor destes conhecimentos a priori constitui o problema crítico que
Kant se propõe a solucionar. Eles têm valor objetivo? Até que ponto? Este é o objetivo
da "Crítica da Razão Pura", que Kant vai transformar em outro, mediante sua doutrina
dos juízos analíticos e sintéticos.
2 - Os juízos analíticos e sintéticos

Os juízos, disse Kant, podem ser analíticos e sintéticos desde que o predicado esteja
contido no sujeito (analítico) ou fora dele (sintético). Os primeiros podem ser
encontrados apenas pela análise do sujeito, diferente dos segundos, já que os predicados
não são encontrados nas notas constitutivas do sujeito.

Os juízos empíricos são todos sintéticos desde o momento que não basta só a análise do
sujeito e é necessária a experiência para formulá-los. De outro lado, dissemos que,
segundo Kant, todo conhecimento puramente empírico é singular e contingente.

Contudo, é um fato evidente para Kant (tão evidente que ele não crê ser necessário
demonstrar), que existem juízos sintéticos, os quais, apesar de possuir um predicado que
está fora do conteúdo essencial do sujeito, porém, nos são apresentados necessários e
universais. Esta universalidade e necessidade que não pode vir da experiência, segundo
exposto anteriormente, já estará no sujeito pensante e são elementos a priori. Este é o
modo como Kant fundamenta a existência de semelhantes juízos sintéticos a priori.

3 - Problema geral da razão pura

Duas são, então, as condições necessárias que Kant postula implicitamente para a
ciência: deve ser um conhecimento novo, por um lado, e por outro, um conhecimento
universal e necessário.

Dos juízos analíticos e dos sintetícos a posteriori (juízos de fatos puramente


contingentes), Kant prontamente se afasta, porque os primeiros, apesar de nos darem um
conhecimento universal e necessário, não nos dão um conhecimento novo e, quanto aos
segundos, ainda que incluam um conhecimento novo, carecem de interesse para as
ciências, pois não possuem características de universalidade e necessidade.

Nenhum destes juízos reúne, porém, ao mesmo tempo, as condições das ciências. Por
um lado, somente os juízos sintéticos a priori nos fornecem um conhecimento novo
(sintéticos) e, por outro, universal e necessário (a priori). Kant acredita que pode
encontrá-los na base de todas as ciências e da própria metafísica, sendo que tampouco
os especifica. Assim seriam juízos sintéticos a priori, v. gr.: "todos os corpos são
pesados" (física) (tomo I, p.84 e ss), "7 + 5 = 12" (matemáticas) (tomo I, p. 91). "O
mundo tem que ter um primeiro começo" (tomo I, p.96 e, antes, p. 88), etc.

O problema da razão pura se encontra neste ponto: "Como são possíveis os juízos
sintéticos a priori?" (tomo I, p. 97).

Porém, como as ciências são possíveis somente por estes juízos sintéticos a priori, que
reúnem as condições de novidade e universalidade, a questão proposta pode formular-se
de outro modo: "Como é possível a matemática pura? Como é possível a física pura?"
(p. 99), em outras palavras "Como é possível a ciência?".
Eis aqui, como se restringe ainda mais a finalidade da análise crítica do conhecimento
científico. Kant não vai analisar as condições de possibilidade das ciências para indagar
se valem ou não. "Estas ciências (matemática e física pura) são realmente dadas... Pois
isso tem que ser possível e constatado pela sua realidade" (tomo I, p. 99). Kant é mais
dogmático do que se pode acreditar e ele não duvida nem prova este valor nas ciências;
simplesmente o supõe. Sobre a ciência observa Kant que há unanimidade de pareceres e
cooperação na sua construção; não é assim na metafísica, onde cada filósofo levanta a
construção do seu sistema em oposição a outros, e então, diretamente contra a
metafísica, mas de maneira alguma contra a ciência. Mais ainda, o feito certo do valor
das ciências é o que vai pautar o filósofo de Königsberg para examinar o porquê do
fracasso da inteligência na sua obra metafísica e indagar se é possível uma sólida
construção desta sobre novas bases científicas. Na verdade, para isso ele vai desmontar
as peças da inteligência utilizadas na elaboração do conhecimento científico, para ver se
com elas é possível elaborar uma síntese metafísica. Esta é a finalidade da problemática
da Crítica da razão pura como visto antes (Como é possível a ciência?), para a partir
desta análise resolver esta outra questão: É possível a metafísica como ciência ? Mas
como a primeira pergunta equivale, segundo foi dito, a esta outra: Como são possíveis
juízos sintéticos a priori ? a segunda se traduziria desta forma: É possível uma
metafísica elaborada somente com juízos sintéticos a priori? sintetizando, então, os
passos sucessivos e cada vez mais restritivos da abordagem do problema crítico por
Kant, teríamos as seguintes etapas:

1º Só tem valor objetivo o conhecimento a priori.

2º já que o "a priori" tem tal valor nas ciências (o que Kant toma como certo), um
conhecimento metafísico com valor objetivo será possível, se é possível uma metafísica
como ciência. É possível uma metafísica como ciência?

3º Mas as ciências tem valor objetivo, graças aos juízos sintéticos a priori que estão em
suas bases, isto é, o a priori é válido nas ciências quando aplicado a uma síntese
empírica.

4 - Método da Crítica da razão pura

Para chegar precisamente a conclusão desta questão, Kant tentará destacar e estudar
ordenadamente o funcionamento dos conhecimentos "a priori" na elaboração que, com
eles e com os elementos empíricos, fazem a inteligência dos juízos sintéticos "a priori".

Este é o método transcendental que busca os elementos a priori do sujeito que


condicionam todo nosso conhecimento. "Chamo transcendental, diz Kant, todo
conhecimento que lida, em geral, não tanto com objetos, mas como nossos modos de
conhecê-los, e estes devem ser possíveis a priori. Um sistema de conceitos semelhantes
se chamaria filosofia transcendental" (tomo I, p. 106). Semelhante crítica transcendental
da razão, voltada não para os objetos, mas para as condições subjetivas que tornam
possível o conhecimento do objeto "deve, segundo o filósofo de Königsberg,
proporcionar a pedra-de-toque do valor ou não-valor de todos os conhecimentos a
priori" (tomo I, p. 107).

No entanto, Kant não tenta fazer uma filosofia transcendental, que abarcaria, em
detalhes, a análise do valor de todos os conhecimentos a priori para, em seguida, traçar
com eles o esboço de uma ciência; ele somente pretende fazer uma crítica
transcendental desses conhecimentos a priori ou puros, uma crítica transcendental da
razão pura, em que se analisa somente os conceitos puros da nossa inteligência, que
fazem possível a síntese a priori, sem experimentar a construção, com estes elementos
analizados, de uma ciência e filosofia transcendentais.

Todo o esforço desta crítica vai, então, para descobrir os elementos puros a priori das
nossas faculdades cognoscitivas (sentidos e inteligência) que tornam possível essa
síntese a priori, que é a condição do valor objetivo das ciências.

5- Síntese do objeto e método da Crítica transcendental da razão pura

a) Kant, dando por evidente o valor objetivo das ciências, encontra que este valor é
solidário e até equivalente ao valor dos juízos sintéticos a priori, que estão na base de
todas as ciências. b) Por outro lado, a história dos sistemas filosóficos que te mostra,
segundo ele, o fracasso da metafísica, te sugere a dúvida de se ele não obedecerá a falta
de capacidade de nossa inteligência na elaboração de uma disciplina semelhante. Por
conseguinte, nada mais razoável, segundo Kant, que antes de fazer um novo intento de
construção metafísica, analisemos (crítica transcendental) se possuímos o instrumento
subjetivo para isso. Como verificá-lo ? c) Desmontando as peças, os elementos a priori
que intervêm com êxito objetivo nas ciências ou, o que dá no mesmo, nos juízos a
priori que a constituem, e analisando esses elementos a priori pra ver si com eles é
possível constuir uma metafísica ou, o que dá no mesmo, vendo se é possível constuir
uma metafísica como ciência. Se, de fato, fosse possível essa construção, o valor
objetivo da metafísica estaria assegurado, pois é indiscutível para Kant o valor objetivo
das ciências. Porém, caso contrário, embora não pudessemos negar o valor da
metafísica, tampouco poderíamos afirmá-lo pela via da inteligência. d) O método desta
análise, como se viu anteriormente, não se dirige ao conteúdo empírico dos conceitos,
nem para a engrenagem das formas vazias dos conceitos (lógica), sendo que o mesmo
busca destacar e indicar o valor dos conteúdos puros a priori do sujeito, para assim
chegar à solução do problema geral da crítica: se é possível construir com esses
elementos a metafísica como ciência, ou se nossa inteligência pode conhecer a realidade
em si.

II - Crítica (falta revisão)


Sentroul, na sua obra Kant et Aristote, apontou alguns dos postulados ou praesupposita,
como ele os chama, que Kant simplesmente admitiu em uma crítica que ambicionava
nada menos que transformar a filosofia, dando-lhe novas e definitivas bases pela análise
transcendental.(3).

(3) Op. cit., págs. 9-19. Louvain, 1913.

Ademais, foram apontados com fundamento várias contradições em Kant, tal como a de
haver pretendido, mediante uma análise da essência do entendimento humano, obter a
conclusão de que não podemos conhecer essência alguma; ou o de ter tentado provar a
existência das coisas ou noumenons que, segundo ele, nos são desconhecidos, em uma
refutação do idealismo "material" embasada sobre o princípio da causalidade que, no
final das contas, está constituído, segundo Kant, por uma categoria pura e subjetiva da
inteligência. Estas e outras lacunas, que no sistema de Kant permanecem abertas aos
olhos da crítica, levam naturalmente à desarticulação e colapso de sua vasta construção
aparentemente trabalhada e perfeita da razão pura.

Porém, não é nossa intenção nem repetir aqui os postulados que Sentroul de forma
precisa aponta na base da obra de Kant, nem mencionar o frequente número de
contradições que podem ser encontradas no sistema da Crítica da razão pura. Nós
apenas vamos apontar: 1) O nocivo fundamento em que se apoia a própria posição do
problema de kant. 2) A deficiência radical do método transcendental para resolvê-lo.
Ambos os erros cometidos no limiar da crítica de Kant, malogram todo esforço analítico
ulterior contido na obra do filósofo de Konigsberg, pois o primeiro deles desloca sua
posição ontológica (como veremos) e deforma, por tanto, o objeto analisado, enquanto
que o segundo arbitraria e contraditoriamente destrói o único instrumento capaz de
solucionar o problema crítico: a inteligência. Com essas duas críticas direcionadas
contra o princípio fundamental em que repousa toda a análise ulterior de Kant, e contra
o método com o qual ele o executa, sem pedantismo, demonstrar, de um lado, que a
obra de Kant não apenas se colapsa por carecer de fundamentos, mas nem sequer possui
instrumento apto para se sustentar; e por outro lado, ganhamos na eficácia da crítica, a
causa de sua simplicidade.

6 – O ponto de partida e o objeto da Crítica da razão pura de Kant está deslocado


enganosamente da sua verdadeira posição graças a um sofisma. – O problema da crítica,
como já exposto acima, se resume em ultima instância a esta questão. Como são
possíveis os juízos sintéticos a priori, base de todas as ciências ?

Kant se pergunta sobre a possiblidade desses juízos, cuja existência é garantida, graças a
uma divisão dos juízos, como dito mais acima.

Contudo, esta divisão é arbitrária e inadmissível. Os juízos sintéticos a priori não


existem, estão introduzidos enganosamente nesta divisão, graças a uma definição
limitada do juízo analítica. Porque, deixando de lado as definições de Kant e, tomando
uma definição cabal dos juízos analíticos e sintéticos, encontramos que todos eles são
ou analíticos e a priori ou sintéticos e a posteriori. Por isso, o juízo analítico é aquele
pelo qual, somente pela análise ou consideração do sujeito, se chega a conhecer o
predicado, isto porque este está contido naquele. A definição de juízos analíticos de
Kant é, portanto, extremamente limitada, pois se excluem dela todos os juízos em que o
sujeito, sem conter formalmente o predicado, o exige, porém, essencialmente. Como v.
g.: o princípio da causalidade em que o sujeito: "o que existe contingentemente" (ou,
pela formula kantiana: "o que começa a existir") exige necessariamente, pela mera
análise, o predicado: "deve ter uma causa". Todos estes juízos são analíticos e a priori;
portanto só pela análise do sujeito e antes de toda experiência se conhece o predicado.

Juízo sintético, por outro lado, é aquele em que o predicado não estando contido o
exigido essencialmente pelo sujeito, sua identidade com ele só pode ser conhecida pela
experiência e a posteriori. Para os juízos de indução (no sentido moderno da palavra)
considerados apenas em si mesmo, são a posteriori; e são capazes de revestir-se de
universalidade e vir a formular-se a priori e é graças a um princípio racional analítico ("
O princípio de causalidade") que comunica essa universalidade e aprioridade que lhes
faltavam. Não são, portanto, estes juízos simples, mas compostos: são a conclusão de
um silogismo em que o princípio universal fundamental é um juízo analítico a priori.
Sempre, porém, que um juízo analítico é a priori, esta aprioridade vem de um juízo
analítico; e sempre que é a posteriori trata-se de um juízo puramente sintético.

Os juízos sintéticos a priori, ou seja, fundamento do valor das ciências e objeto da


análise de Kant com a finalidade de descobrir seu funcionamento e a possibilidade de
construir com ela uma metafísica, não existem.

Mas vamos avançar um degrau em nossa crítica. Ignoremos a divisão arbitrária dos
juízos da razão pura; há um erro mais grave e fundamental mesmo nesta da obra de
Kant.

Já, desde o começo da crítica, seu autor determina como princípios indiscutíveis os
seguintes: 1º) Nossos conhecimentos começam com a experiência, que nos oferece "a
matéria bruta" sobre a qual o entendimento não se fará sem ordenar, unificar, separar,
etc., para construir o "objeto conhecido". 2º) Sendo nossa experiência de algo
"constituído desta ou de outra maneira, mas não de algo que não possa ser de outra
maneira" (não necessário), de algo individual (não universal), argumenta Kant, estas
duas características, de necessidade e universalidade, não poderão vir dela, mas serão
conhecimentos puros a priori de que está dotada nossa inteligência.

Esta argumentação sofística se apoia em um desconhecimento e em uma deformação do


próprio funcionamento da nossa inteligência na medida em que ela surge de uma análise
objetiva do nosso conhecimento intelectual.

É verdade que todo nosso conhecimento começa com a experiência; mas isso não quer
dizer que a realidade se esgote alí, com o aspecto sensível tomado por nossos sentidos, e
outra faculdade, a inteligência, através dos mesmos dados sensíveis, não chegue a
absorver na mesma realidade, um novo aspecto dela: o inteligível.

Na realidade, é um fato indiscutível o contato imediato com a realidade sensível da


intuição empírica, assim como o contato imediato da inteligência com seu objeto
específico. Contudo, é arbitrário admitir – como fez Kant – o primeiro e negar o
segundo. Do fato de que é necessário a função sensível para que a inteligência chegue a
seu próprio objeto, não se conclui que a atividade desta termine nos próprios dados da
sensibilidade (e muito menos da sensibilidade subjetivamente considerada, como faz
Kant). Anteriormente a este problema (que é estritamente psicológico) da necessidade e
cooperação da sensibilidade à inteligência, se impõe a questão gnosiológica: o ato da
inteligência culmina imediatamente em um aspecto inteligível da realidade, visto que é
necessário respeitá-lo e explicá-lo sem, contudo, deformá-lo a priori. Porém, não faz
sentido esta conclusão a que chegou Kant: de que a inteligência possui essas
características a priori como conteúdo puro para informá-los aos fenômenos e atribuí-
los desta maneira, criando assim, o objeto; não resultam destas características, por outro
lado, no conceito do mero funcionamento com que a inteligência chega imediatamente
ao seu próprio objeto, o inteligível da realidade ontológica, prescindindo de outros
aspectos desta mesma realidade: o sensível individual e contingente.

Muito antes de Kant, Platão e Aristóteles levantaram e tentaram resolver este problema
fundamental do valor das ideias universais, e por vários séculos esta foi a questão
central da filosofia medieval, que com esforço tenaz e contínuo, e até mesmo à custa de
muitos tropeços, elaborou uma doutrina do realismo moderado, já exposta desde João
de Salisbury (1120-1180) e Pedro Abelardo (1079-1142), mas que com a máxima
precisão foi exposta por Santo Tomás (1225-1274). O valor desta doutrina está,
precisamente, em não ser uma construção a paiori onde se acomoda o conhecimento
que se pretende explicar uma teroria ou mesmo uma variedade de sistemas, sem uma
doutrina elabora com elementos obtidos de uma fina análise do modo de trabalho da
inteligência, além de articulados do ponto de partida do conhecimento.

O problema gnoseológico do valor do conhecimento, como afirmamos acima, é anterior


ao problema psicológico; antes de pensar em nosso pensamento, pensamos a realidade e
a pensamos com conceitos abstratos universais e necessários.

Este é o ponto de partida do conhecimento e que toda teoria gnosiológica deve explicar
sem distorcer: estamos na posse de conhecimentos universais e necessários da realidade.
Santo Tomás explica da seguinte forma, o processo de como a inteligência chega à
elaboração dessas ideias, aproximando-se fortemente do acontecimento da inteligência.

A inteligência necessita da experiência sensível para conhecer seu próprio objeto.


Graças às contribuições da sensação que entra em contato imediato com o objeto, a
inteligência, através delas, como média transparentes, chega imediatamente – na ordem
intencional (no psicológico) – ao seu próprio objeto: a realidade inteligível, a forma ou
essência constitutiva da realidade sensível; conhece-a não na sensação, nem mesmo no
ato, mas em si mesma, unindo-se e identificando-se intencionalmente com ela:
intelligens in actu est intelligibile in actu. Como a inteligência entra em contato e até
mesmo como se identifica com a realidade inteligível que está no coração da realidade
sensível através dos dados fornecidos pela sensação ? Por meio da abstração, responde
Santo Tomas - seguindo Aristóteles neste ponto – que é realizado através da ação da
inteligência, que toma (através dos sentidos) a forma ou essência da realidade sensível,
prescindindo notas sensíveis que são, precisamente, as que individualizam os seres
materiais. Ao abstrair deste modo a forma da realidade sem suas notas características ou
individuais das que prescinde, sem negar, é claro, que o conceito em que tal forma é
incluida expresa um conteúdo abstrato e univeral (e, portanto, necessário) que pode
aplicar-se a qualquer dos indivídios em que esta forma se encontre na realidade sensível,
o modo de universalidade (e por conseguinte de necessidade que sempre vai
logicamente unida àquela) não é, portanto, como pretende Kant, um conteúdo positivo
puro ou a priori imposto pela inteligência sobre os dados empíricos, mas apenas um
resultado de uma função bastante negativa da inteligência, um estado resultante no
conceito pelo simples fato de tomar a inteligência a forma constitutiva da realidade,
deixando de lado as notas materiais ou sensíveis que são, precisamente, as
individualizadoras.
Semelhante forma de universalidade (e de necessidade) que deste modo negativo advém
o conceito, não é reconhecida no ato primeiro pela inteligência. De fato, no ato direto a
inteligência pensa não o seu conceito, mas a sua realidade, mediante seu conceito, ou o
que dá no mesmo, que não é outra coisa senão a própria forma da realidade. Somente
em um segundo ato de reflexão sobre o primeiro conceito a inteligência, comparando-o
com diferentes individuos sensíveis da realidade, vê que esse conteúdo conceitual
identificado com cada um dos seres individuais, tem uma forma universal (e necessária)
na inteligência, graças a qual precisamente o conteúdo (e o próprio modo universal) da
ideia universal pode ser predicado pela identidade de cada um dos seres individuais, já
que este conteúdo é a própria forma constitutiva da realidade sensível. Em resumo, a
forma constitutiva da realidade sensível é a mesma que constitui o conteúdo do
conceito; só que na realidade está individualizada pelas notas sensíveis da materia com
a qual está unida e na inteligência está universalizada pelo mero fato da abstração das
notas sensíveis. A forma ou realidade inteligível, então, é a mesma na realidade sensível
e no conceito, porém o estado ou modo como ela se encontra é diferente:
individualizada ou universalizada em um ou outro caso, com a advertência de que se a
individualização vêm de algo positivo como é a matéria sensível, a universalidade está
no conceito pelo mero fato da função negativa abstrativa da inteligência relativa à essas
notas meteriais individualizantes, cada vez que toma da realidade seu próprio objeto.
Agora, a predicação por identidade é possível entre a ideia universal e o ser individual,
porque nela não se atribui o estado universal do conceito, mas apenas seu conteúdo,
sendo sensível de onde foi tirado pela inteligência.

Esta é resumidamente a explicação que Santo Tomás e os escolásticos dão ao problema


dos universais: o universal existe somente in intellectu sed cum fundamento in re,
segundo a forma explicada. Esta solução é a única que respeita o fato inicial do
conhecimento que se tenta explicar, que em nossos pensamentos sobre a realidade
pensamos a coisa e não o pensamento acerca da coisa.

Na verdade, como acabamos de ver, o conteúdo da ideia universal é tirado da realidade


e por isso se pode predicar de cada um dos indivíduos; o que está apenas no conceito
como consequência da abstração é a forma negativa da universalidade, que não se
predica da realidade. Assim dizemos: Pedro é homem (o conteúdo da minha ideia
universal homem identificada com este ser individual), mas não dizemos de maneira
alguma: Pedro é o homem universal (não atribuimos ao sujeito o estado de
universalidade com que o conteúdo desta ideia "homem" se encontra em nossa
inteligência). Em vez disso, em uma teoria superrealista como a de Platão, não se
explica como esta realidade da "Ideia" que é individual e existente possa ser universal
sem contradição. E na teoria oposta conceitualista de Kant ou em outras afins, em que o
caráter universal resulta positivamente das catergorías a priori, não se respeita o fato
inicial do conhecimento, pois não se vê como conteúdos puros semelhantes possam
identificar-se com a realidade sensível.

A solução escolástica é, então, a única admissível, por que, por um lado, explica a
unidade do conceito e sua multiplicidade, assim que é predicado em cada um dos
indivíduos; respeita e explica, por outro lado, o fato inicial do conhecimento: pensamos
no nosso pensamento (como aconteceria na teoria de Kant) sino la realidade.

Kant desconhecia esta solução, sem merecer sequer alguma menção, sendo que esta
representava a conquista definitiva de muitos séculos de esforço. E, porém, ela é
precisamente a que resolve o argumento básico do filósofo de Konigsberg. Vimos acima
que Kant argumenta da seguinte maneira: todo conhecimento vem da experiência, que
por sua vez só nos oferece o singular e contingente. Logo, o universal e necessário,
característico da inteligência, não podendo vir da experiência, devendo proceder como
conceito puro ou a priori da inteligência.

Entre os dois extremos deste dilema de Kant: o conhecimento individual e contingente


da experiência ou conhecimento universal e necessário de um conceito puro, a solução
escolástica coloca um meio-termo: conceito abstrato tirado imediatamente da realidade,
prescindindo das notas individuais e, por issso, negativamente universal. Em síntese,
dois erros capitais põem fim ao argumento que dá origem a doutrina fundamental do a
priori de Kant: 1) não é porquê o conhecimento se origina na experiência sensível que
se conclui que através dele a inteligência não possa chegar imediatamente ao seu
objetivo: a forma inteligível; 2) nem de que a universalidade (e necessidade) suponha a
inteligência, se conclui que ela contenha a priori e não a alcance pela abstração da
maneira explicada.

6 – O método transcendental é absurdo. O método transcendental de Kant, como todo


método que começa por duvidar da capacidade da inteligência de conhecer a realidade,
está irremediavelmente condenado a esterelidade e ao ceticismo, além da
impossibilidade intrínseca que implica ser realizado na prática.
Kant começa duvidando do valor da metafísica, sendo mais preciso, do valor da
inteligência para conhecer a realidade em si, e busca resolver este problema mediante a
análise transcendental, ou seja, mediante uma análise crítica das condições da atividade
intelectual. Agora, quem realiza esta crítica transcendental é a mesma inteligência cujo
valor posto em dúvida ? A que conclusões pode chegar Kant com uma análise executada
com um instrumento como é a inteligência, já condena de antemão e posta em dúvida
sua aptidão para conhecer a verdade ? É evidente que esta análise está condenada a
esterelidade, por ser executada por um instrumento sem valor. Toda crítica que começa
esvaziando o conteúdo da realidade e inteligência, negando ou duvidando do valor que
ela tem de captar a realidade, mas do quê inutilizar o único instrumento que possui para
resolver a questão (a inteligência), se condena de antemão a não encontrar,
evidentemente, na inteligência da realidade que previamente a excluiu.

A única crítica sólida e possível do valor da inteligência é a partir do fato inicial do


conhecimento, que nos é apresentado como uma captação imediata da realidade, e ver,
por reflexão sobre esse ato, se essa certeza espontânea pode ser justificada criticamente,
considerando se é possível duvidar de seu valor ou do valor da inteligência em geral. Se
isto é feito com honestidade crítica (não prejulgando e inibindo previamente com a
dúvida o único instrumento de solução que é a inteligência), verá que o valor da
inteligência para captar a realidade: 1) É apresentado como fato: em nosso ato primeiro
não conhecemos nosso pensamento, mas a realidade. 2) Que é impossível demonstrar a
capacidade da inteligência para conhecer a verdade, porque é impossível demonstrar
tudo, e toda demonstração terminará nos princípios evidentes, como é o da capacidade
da inteligência para conhecer a verdade, e 3) É impossível duvidade de tudo, inclusive
do valor da inteligência: não só porque essa dúvida é contraditória (como está
formulada e sustentada com o valor da própria inteligência), sendo impossível, já que
todo ato de inteligência não pode existir sem um conteúdo real, sem o ser, que
condiciona sua existência.

Como escrevemos em artigo publicado na Revista Critério: toda proposição, ainda a que
formule a dúvida sobre o valor da inteligência, só é possível graças ao ser em que foi
apoiado o predicado do sujeito. (4)

Revista "Critério", núm. 429. 21 de maio de 1936.

Por isso, não somente é contraditória a intenção do filósofo de Konigsberg ao querer


resolver a capacidade da inteligência para conhecer a realidade por meio da análise
transcendental realizada pela própria inteligência; este método não é somente estéril,
como de antemão estão condenadas suas conclusões obtidas pelo instrumento da
inteligência, cujo valor fora posto em dúvida, sendo que seu próprio posicionamento de
quer dúvidar de antemão desta capacidade intelectual para conhecer a realidade é
impossível, como foi exposto aqui.

7 – Conclusão – Estes são os fundamentos falhos da crítica de Kant: a falsa suposição


de que todo conceito universal e necessário está fundado em uma forma a priori que,
adicionado à experiência, dão origem ao juízos ou conceitos sintéticos a priori, além da
maneira absurda de apresentar o problema crítico.

Diante destes fundamentos, toda a obra de Kant – meritória, mais ainda, sob muitos
conceitos – entra em colapso. Constitui-se em uma análise prolixa e ainda dirigida a um
objeto inexistente, como é do método a priori kantiano; é uma análise ineficaz e
absurda, pois de antemão coloca em dúvida o valor da inteligência anlítica.

Por um esforço lógico tentamos corrigir o sistema de Kant destes erros fundamentais de
sua introdução, 1) devolvendo à realidade o objeto que Kant injustamente lhe roubou e
pôs fora do lugar, no sujeito como forma a priori, 2) Não começando a crítica com uma
intenção absurda e impossível, que é duvidar do da inteligência para chegar ao
conhecimento da realidade; veríamos, então, toda ou quase toda a soberda construção
lógica de Kant mover-se do plano do sujeito ào do objeto, da ordem transcendental à
ordem ontológica; veríamos como as três "ideias" kantianas, o "eu", o "mundo" e
"Deus", deixam de ser coroamento do jogo livre das categorias sem conteúdo empírico,
para constituírem-se na base substancial do mundo ontológico e o fim supremo que, na
ordem lógica, chega o entendimento humano.

Por um paradóxo insuspeito, encontraríamos que o sistema kantiano transposto ao


mundo ontológico por esta translação de seus fundamentos para a ordem real a que
correspondem, encontraríamos, quer dizer, que a síntese filosófica do filósofo de
Konigsberg coincide, em suas linhas fundamentais, com o sistema aristotételico-tomista
da philosophia perennis, e no fato desta coincidência não intencional mas por razões
objetivas, de estes dois genios filosóficos, Kant e Santo Tomás, veríamos com razão
uma confirmação de solidez do sistema filosófico do grande e angélico doutor medieval.

DERISI, Octavio N.. Filosofia moderna y filosofia tomista. Buenos Aires: Ed. Sol y
Luna, 1941. Pp. 143-164.

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