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JUAZEIRO DO NORTE
2015
FERNANDO ANTÔNIO FONTENELE LEÃO
JUAZEIRO DO NORTE
2015
2
A arte que recria a vida: mediação cultural na comunidade do Tomé/Chapada do
Apodi-CE
PALAVRAS-CHAVE
ABSTRACT
The article presents a research-action on cultural mediation, held in the year 2014, in the
community of the Tome, Ceará, Brazil. Since the Decade of 1980, this region suffers the
impacts of the expansion of the agricultural model that has caused processes of
deterritorialization, loss of autonomy and imposed significant cultural changes for the
communities. Our goal is to contribute to the community-building through the development of
an aesthetic awareness. This research-action conformed as a process which artistic
presentations (theater, poetry, music, performance), artistic education activities with children,
young people and professionals from the schools in the region and actions of appreciation of
local culture. Along the way made use of participant observation, field journal, of individual
and collective interviews and bibliographical research.
KEYWORDS
Popular culture. Cultural mediation.Comunidade do Tomé.
3
1. Chegando à comunidade
1
“São muitas estações na vida. Na Terra, quantas situações. Nem sempre tudo está a nos favorecer, mas o dia
pode ser o que se quer. O sol está nos olhos de quem brilha, o céu está nos olhos de quem ver no sol a poesia
da alegria de viver”. Solencanto, ou Canto ao Sol, é uma composição do cantor, poeta e pesquisador musical
cearense João Wanderley Roberto Militão, conhecido como Pingo de Fortaleza.
2
Na década de 1990, empresas agroexportadoras nacionais e transnacionais foram atraídas à região pelas
condições climáticas, pela fertilidade das terras, e, principalmente, por incentivos fiscais e pela infraestrutura
oferecida pelos governos estadual e federal – a citar a implantação do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi
(PIJA) –, fenômeno esse que provocou uma série de problemas socioambientais como contaminação da água e
do solo, relações de trabalho precárias, expropriações, violência.
3
O Teatro do Oprimido é um método que reúne jogos, exercícios e técnicas teatrais, sistematizado pelo
teatrólogo Augusto Boal, e cuja finalidade é adquirir a consciência das situações de opressão e ensaiar as
possibilidades de libertação.
4
O Teatro-fórum é uma das técnicas do Teatro do Oprimido e consiste na participação direta do público,
intervindo cenicamente no lugar do personagem oprimido.
4
Em dezembro de 2013, numa conversa com amigos do Núcleo Tramas5, grupo
que se dedica a pesquisas sobre os impactos dos agrotóxicos e do agronegócio na Chapada do
Apodi desde 2007 – e que muito me instigou para a ação naquele território – surgiu, além da
percepção de que os jovens tinham pouca participação nas ações políticas da comunidade – o
que justificava o projeto que eu pensara – um dado importante e um tema a ser considerado no
trabalho: o medo. De acordo com pesquisas recentes do Núcleo,
Este seria um fator responsável por afastar os jovens dos movimentos sociais? Falei, então,
sobre a técnica intitulada Arco-Íris do Desejo, ou Método Boal de Teatro e Terapia, que
poderia – juntamente com os outros exercícios do Teatro do Oprimido – favorecer os jovens
participantes do projeto a ganharem consciência e compreensão desse problema, a fim de
superá-lo. O grupo considerou uma boa estratégia e acordamos uma data em que eu pudesse
apresentar minha proposta à comunidade e ao M216, movimento que congrega diversas
instituições e atores sociais em torno da problemática perpetrada pelo estabelecimento do
agronegócio na região do Baixo-Jaguaribe. Àquela altura, organizei algumas ideias, as
principais referências e as questões iniciais para dar início ao projeto. Meu propósito era o de
intervir, por meio de uma pesquisa-ação e a partir de atividades teatrais, para a mobilização da
juventude em favor das lutas da comunidade.
5
Núcleo Tramas – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde é um núcleo de pesquisa do Departamento de Saúde
Coletiva da Universidade Federal do Ceará, sendo coordenado pela Profa. Dra. Raquel Maria Rigotto, co-
orientadora deste trabalho.
6
M21 ou Movimento 21 é formado pela CPT - Comissão Pastoral da Terra, MST - Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, CSP-CONLUTAS - Central Sindical e
Popular, Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos – FAFIDAM/UECE e Núcleo Tramas/UFC, sendo o nome
do movimento uma referência à data de 21 de abril de 2010, dia em que o agricultor e líder comunitário Zé
Maria do Tomé foi assassinado.
5
que a ação precisava se estruturar conjuntamente, que se tratava de um trabalho ‘com’ a
comunidade e não ‘sobre’ ou ‘para’ a comunidade. As pessoas ali presentes receberam com
menos entusiasmo do que eu imaginei (ou que eu queria, talvez com certa vaidade um tanto
comum em artistas e acadêmicos), mas considerou uma boa proposta para ser realizada com
os jovens das escolas, do 6º ao 9º ano. Pensamos, então, junto ao M21, as primeiras atividades
que seriam o start do projeto e que, ao mesmo tempo, poderiam integrar a programação da
Semana Zé Maria, ação anual organizada para lembrar a luta do companheiro morto e a falta
de punição aos criminosos. Voltei à Fortaleza, sem saber ao certo como iria desenvolver as
ações. Mas animado pelo passo importante que tínhamos dado. O projeto havia sido
apresentado e tínhamos dado o pontapé inicial para a sua realização.
Voltei à comunidade do Tomé, onde conversei com uma das responsáveis pela
Associação Comunitária São João do Tomé, com uma poetisa da comunidade que me
apresentou tantos poemas, lendas e narrativas que eu não conhecia, com a família de Zé
Maria. Conheci alguns jovens, e falei sobre meu desejo de criar um grupo de teatro no Tomé –
pensei que expressando assim seria mais compreensível do que falar das especificidades do
projeto. Fui apresentado a um secretário de educação e a um secretário de cultura da região, a
técnicos de secretarias municipais de educação, a diretoras e professoras de arte de escolas da
7
Reunião com lideranças comunitárias de comunidades do Baixo-Jaguaribe, organizada pela Cáritas Diocesana
de Limoeiro do Norte, e realizada na data de 27 de fevereiro de 2014, em Limoeiro do Norte.
6
região. Com algumas exceções, muitas pessoas que encontrei e conversei demonstravam
algum desconforto quando eu falava na proposta de mobilizar os jovens para as causas
socioambientais. Senti certa preocupação – velada – por parte das diretoras das escolas em
envolver os alunos em atividades diretamente relacionadas à Semana Zé Maria, talvez por
temerem alguma reclamação dos pais ou de seus superiores8. Um gestor municipal foi,
pessoalmente, em uma das primeiras ações públicas que realizamos me fazer três perguntas:
“quem eu era”, “porque estava ali” e “como havia chegado ali”. Soube de algumas pessoas
que, ao saberem que o projeto se ligava de algum modo aos conflitos socioambientais, já
reagiam desfavoravelmente à execução do trabalho na comunidade. Por fim, nas três vezes
que marcamos encontro com os jovens para dar início à prática com as atividades teatrais –
seja pelo fato de ter ligação com as causas associadas ao Zé Maria, pela necessidade de
trabalhar ou estudar nos horários marcados, por falta de interesse, ou outros motivos que não
identificamos –, em duas ocasiões, nenhum jovem compareceu, numa terceira, apenas um
jovem esteve presente.
8
A comunidade do Tomé ainda sofre o desenrolar da ação judicial que decorre do assassinato de Zé Maria do
Tomé, em 21 de abril de 2010. Um importante empresário do agronegócio na região foi denunciado pelo
ministério público como possível mandante do crime e é comum ouvir depoimentos de ações de intimidação a
cada audiência de testemunhas, intimações, novas vistas ao processo, etc..
7
E eu, tendo levado o ‘desenho bonitinho’ do projeto que pretendia realizar, a partir do pouco –
ou nada – que eu conhecia daquela comunidade, como querer que o trabalho representasse os
anseios daquelas pessoas?
9
Para Barbier (2002), o pesquisador coletivo é um modo de organização do trabalho que busca assegurar a
maior participação do grupo envolvido na construção coletiva do processo de pesquisa e na sua continuidade.
8
Desvelávamos em nossas conversas a demanda do coletivo, ou seja, um projeto
de mediação cultural que intentasse promover diálogos interculturais, favorecer reflexões e
percepções acerca do mundo, fortalecer a identidade coletiva, estimular a criatividade, instigar
à prática cultural. Sabíamos que essas questões trabalhadas a contento poderiam levar a uma
autonomia de ação, abrindo possibilidades futuras para o engajamento crítico aos movimentos
de lutas. E concordávamos que
Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a
ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que
a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua
situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode
prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “bancária”
ou de pregar no deserto (FREIRE, op. cit., p. 100).
Essa percepção de que a ação político-cultural deveria se dar a partir do diálogo com a
comunidade estava cada vez mais clara, e o Grupo Pesquisação ganhava ânimo para gestar
uma realidade nova para o Tomé, tendo a arte como catalisadora desse sonho.
“Se cada ser carrega em si o dom de ser capaz e ser feliz” (SATER;
TEIXEIRA, 1990), como possibilitar a essa comunidade o encontro com a capacidade e a
felicidade ou o encontro com o que isso representa em termos de autonomia e liberdade?
Fomos nessa “toada” compondo nossa pesquisa-ação em mediação cultural.
Em uma conversa informal, uma jovem de 20 anos havia dito que nunca tinha
visto teatro lá no Tomé, com exceção de algumas breves representações da Igreja na Semana
Santa. A ausência de apresentações artísticas na comunidade também foi reforçada por outros
moradores. Essa constatação era a indicação de que precisávamos, antes de tudo, garantir o
acesso da comunidade às obras culturais. Então, pensamos em a) organizar uma série de
apresentações artístico-culturais, na Praça da Matriz da comunidade do Tomé, favorecendo o
acesso a expressões artísticas e estimulando o diálogo entre as representações do que é
apresentado e as representações do público a que se destina, ou seja, além das apresentações,
queríamos dar algumas informações sobre o artista/grupo, fazer reflexões, questionar,
comparar, etc.;
(...) muitos alunos têm o dom da pintura, do desenho, dos versos, da escrita, mas nós
não sabemos resgatar desse aluno, porque nós não tivemos aquela formação básica
para buscar do aluno. (...) Eu gosto de trabalhar com artes, mas sinto essa
dificuldade, porque não tive formação. Nós não temos formadores [na Secretaria
Municipal de Educação] dentro dessa área [de artes]. (depoimento de professora de
artes, durante entrevista coletiva, na comunidade do Tomé, em 28/03/2014).
Ficava clara a deficiência da política de educação do município, e definimos que seria muito
importante b) oferecer atividades de arte/educação a crianças e adolescentes, de modo a
10
fortalecer o impulso criador e a percepção de si e do mundo; e c) promover momentos de
reflexão e estudo acerca de artes para professores da educação básica, a fim de contribuir com
o aperfeiçoamento de sua prática didática;
(...) os meninos dos colégios, de vez em quando eles chegam: - “Dona M., faça um
versinho pra mim a respeito ‘disso assim’, que a professora pediu...”. Ali, de
repente, eu faço, eles passam à limpo, e pronto, tiram uma nota boa... (risos). Mas
tudo isso podia ter dentro da sala de aula, né? Eu não tenho vergonha, eu não me
importava se o professor chegasse... – “M., hoje vá dar uma ajuda a nós, contar uma
história, ler um verso, brincar com os meninos um pouco”. Mas quê? Eu é que não
vou chegar de gaiata, dizendo: - “Muié, eu vim contar história pros teus alunos
hoje”. Não tem nem sentido. Mas tudo isso são coisas que davam pro colégio
aproveitar, e eu acredito que não é possível que no meio de duzentos e tantos alunos
não tivesse um que se interessasse, porque tem. Não faz é ser estimulado. Mas tem.
Porque quando eles vêm pra a gente fazer um pedacinho de conversa, eles acham
bom. Quando dá fé, vem dois, mais três, e porque não no colégio? Não tem
incentivo. Os professores parece que faz aquela aula por obrigação, pra ver se
termina aquele horário, pra ir embora, e pronto, né? (depoimento de Dona M.,
poetisa, durante entrevista individual, na comunidade do Tomé, em 28/02/2014).
Por fim, decidimos que íamos d) registrar alguns poemas e dramas que já não eram mais
cantados a fim de apresentá-los à comunidade, valorizando e estimulando as produções
artísticas e culturais locais.
11
De acordo com Miranda,
Para Kurt Lewin, a pesquisa-ação é um processo em espiral que envolve três fases: a
primeira é a fase do planejamento, quando o pesquisador reconhece a situação e a
problemática que a constitui. A segunda é a fase da tomada de decisão, possível a
partir do conhecimento da situação. A terceira é a fase de encontro dos fatos, quando
são desenvolvidas as ações de intervenção, as quais possibilitam retomar o
planejamento reiniciando o ciclo (MIRANDA, op. cit., p. 19).
Havíamos, pois, completado a primeira fase e parte da segunda. Ainda nos faltava tomar
algumas decisões, antes de ir ao encontro dos fatos, ou às ações, propriamente ditas. Outras
questões, agora mais teóricas, surgiam. Quando falamos de cultura, a que concepção de
cultura estamos nos referindo? Diante de uma população que foi privada do acesso às obras
culturais, que peças de teatro, shows musicais, leituras de poesia poderiam oferecer um alento,
uma reflexão, um outro olhar sobre o mundo, um riso pra espantar o medo? Por que as
expressões artísticas populares dessa comunidade estão esquecidas? Qual a importância da
escola para esse processo de mediação artística e cultural? Em que consiste e como se opera
essa mediação?
As culturas não são iguais, a despeito de vários conceitos que sugerem essa
falsa impressão. O conceito antropológico mais amplo que opõe cultura e natureza coloca no
mesmo patamar toda a produção material e simbólica humana; o conceito das elites estabelece
que cultura é, única e exclusivamente, o “cruzamento de certas práticas culturais com as
dimensões metafísicas, espirituais e intelectuais” (DARRAS, 2009, p. 25), pautando a arte
que enobrece o espírito como aquilo que deve ser considerado cultura, sendo as demais
produções do ser humano “incultura”; há ainda outros conceitos mais recentes que se referem
à equanimidade cultural, trazendo a concepção de que “todas as produções valem e devem ser
tratadas de maneira equânime e equivalente” (ibidem, p. 30), induzindo pensamentos do tipo
“tudo é arte”, “todo mundo é artista”, na ânsia de desconstruir os valores elitistas do conceito
anterior.
Indagamos: um quarteto de cordas tem o mesmo valor cultural que uma dupla
de cantadores repentistas? Uma dupla de cantadores repentistas é considerada cultura? Como
se estabelece a cultura popular? Diz o antropólogo Néstor Canclini que os produtos do povo
12
“originam-se tanto da experiência direta das classes populares como do seu contato com o
saber e a arte ‘cultos’, sendo a sua existência, em boa parte, um resultado de uma ‘absorção
degradada’ da cultura dominante” (CANCLINI, 1983, p. 44). Tendo acordo com tal
afirmação, como sustentar o discurso de equidade das culturas, se algumas delas são
submetidas a trocas materiais e simbólicas desiguais?
Nesse contexto capitalista, há, pois, um poder cultural exercido pela cultura
hegemônica. “As relações capitalistas engendram ideias, noções, valores e doutrinas. Sem
estes elementos intelectuais, isto é, da cultura espiritual, as relações de apropriação econômica
e dominação política específicas do capitalismo não poderiam constituir-se nem subsistir”
(IANNI, 1976, p. 22). Ou seja, a classe dominante, a fim de manter o poder econômico e o
status quo, impõe sua cultura, oferecendo-a como o que é ‘naturalmente belo’ ou
‘naturalmente bom’, e ocultando a violência que subjaz a essa imposição, levando as culturas
populares a sentirem tal “adequação” como necessária para a vida em sociedade. Trata-se
claramente de uma relação de opressão, em que o oprimido assume como sua a cultura do
opressor, por meio do Estado, a partir dos aparelhos culturais (família, escola, igreja, meios de
comunicação, entre outros) e da ação de mecanismos repressivos (burocracia, polícia,
exército, entre outros).
14
é possível relativizar a visão de mundo atual, reconhecer que os significados dados às coisas
podem ser modificados, desvelar a ideologia dominante para possibilitar uma visão crítica.
Mas o que seria mediação cultural? Paulo Freire afirma que “já agora ninguém
educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo: os homens se educam em
comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, op. cit., p. 79). Mediação, ou mediatização,
seria a construção de uma relação dialógica entre sujeitos cognoscentes (educador-educando e
educando-educador) e objeto cognoscível (o mundo). Muito diverso de um ensinar ao outro
sobre o objeto, na mediação há o que Freire chama de superar o imediato no mediato.
Tomemos uma de nossas apresentações culturais da presente pesquisa-ação como exemplo. O
poema Da paz, do poeta Marcelino Freire, recitado pelo ator Edivaldo Férrer, relata a história
de uma mãe, de luto pela morte do filho assassinado, que se mostra bastante irritada quando a
convidam para ser parte de uma manifestação pela paz. Diz trechos do poema:
"Eu não sou da paz. Não sou mesmo, não. Não sou. Paz é coisa de rico! (...) A paz é
muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue! (...) Quem vai ressuscitar
meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo
lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida”. (FREIRE, 2011)
Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, “os órgãos da
sua individualidade”, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os
fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de
comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua
função, este processo é, portanto, um processo de educação. (LEONTIEV, 1978, p.
272)
Ou seja, a criança passa a significar o mundo, tornar-se um ser cultural, humanizar-se a partir
da relação com o outro, a partir de um processo de interação.
Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de
forma a atingi-lo no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade, e por aí despertá-lo,
tirá-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruição a que, por desencanto ou
medo, se sujeita, e por aí inquietá-lo e comovê-lo para as lutas comuns da libertação.
(MARCOS) [s.d.]
O ponto fundamental da criação artística talvez esteja – ao menos para nós nesta mediação
artística e cultural na comunidade do Tomé –, no acesso ao “pequeno núcleo macio de
sensibilidade”, de que fala Plínio Marcos, a fim de gerar novo ânimo para o espectador. É
preciso considerar que, talvez, as palavras que convocam à razão estejam saturadas e não
consigam mais mobilizar; enquanto esse diálogo de emoções, verdadeiro e sem falácias,
ecoando imaginários perdidos – ou ainda não encontrados – possa comover as pessoas “para
as lutas comuns (sua e de sua comunidade) da libertação”.
16
5. O projeto de mediação artística e cultural na comunidade do Tomé
17
No momento da apresentação, falei sobre o projeto de mediação cultural
elaborado em conjunto com moradores da comunidade, das ações que pretendíamos realizar e
da alegria de estar iniciando o projeto naquela data em que se comemora o Dia Mundial do
Teatro, assim como, em linhas gerais, sobre a peça que iriam assistir (enredo, autor,
encenação, grupo-intérprete). Uma fala rápida. Não queríamos transformar a experiência
estética em uma aula expositiva e precisávamos manter o público atento e animado com a
apresentação10. A peça ocorreu com o público muito à vontade, simpático, comentando com
quem estava ao lado, rindo. Alguns jovens, em suas motocicletas, não permaneciam na praça,
chegavam e saíam com frequência. Ao final da peça, a impressão era de satisfação geral.
Marcamos – junto aos moradores que ali estavam – a data para a próxima programação.
No dia seguinte ao da apresentação, logo pela manhã, várias pessoas que nos
encontravam na rua vinham cumprimentar, dizer que gostaram muito da peça, e perguntar
“quando vai ter teatro de novo?” – mesmo sabendo da data, combinada na noite anterior.
Íamos compreendendo que aquela pergunta tinha a ver com o desejo de ver outros espetáculos
teatrais, ou, em outras palavras, tratava-se do surgimento de uma aspiração à prática cultural,
em acordo com o pensamento de Bourdieu ao afirmar que “a aspiração à prática cultural varia
como a prática cultural e que a ‘necessidade cultural’ reduplica à medida que esta é satisfeita”
(BOURDIEU, op.cit., p. 69). A comunidade, pois, tendo acessado a obra cultural – obra essa
cujo nível de emissão (complexidade da obra) não excedia, significativamente, o nível de
recepção dos espectadores (controle dos código da obra), sendo, pois, uma obra legível – ia se
apropriando de um conhecimento que a levaria a uma necessidade cultural cada vez maior. O
espetáculo ganhou espaço nas conversas da comunidade nos dias posteriores.
10
Adotamos esse modelo sintético de falas para as ações seguintes. Nos dias em que acontecia mais de uma
apresentação, lançávamos uma ou duas questões de provocação. Ia ficando claro, também, que as professoras
das escolas que iam participando de encontros de formação, as crianças e os adolescentes que escutavam das
professoras e/ou participavam das oficinas, também seriam mediadores do processo, no dia-a-dia da
comunidade, tanto quanto o Grupo Pesquisação.
18
Figura 2 - Apresentação de ‘Um Zé qualquer também ama’, na comunidade do Tomé (2014)
11
Um grande grupo de camponeses e camponesas da Chapada do Apodi (CE) ocuparam, em conjunto com o
MST, com apoio do Movimento 21, no dia 5 de maio de 2014, uma área localizada em Limoeiro do Norte, a fim
de promover a discussão acerca da 2ª etapa do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi.
19
Figura 3 – Intervenção dos atores Edivaldo Férrer e Maruska Ribeiro, no Acampamento Zé Maria do Tomé (2014)
20
“meu filho não faça isso, com a mãe que lhe criou, espaço de nove meses, dores por ti que
passou”, ganha em dramaticidade quando cantado.
Figura 4 - Partitura da melodia-base cantada pela poetisa (transcrição por Fernando Antônio Fontenele Leão)
Ainda não consigo digerir tudo que vivemos nesses dois dias, que, por quantidade,
poderia parecer pouco, mas a sua intensidade fala, por si, a sua importância. (...) O
transbordar de informações ainda lateja: luta, resignação, amor, alegria mesclada
com a dor. E isso nos alimenta de exemplos, de aprendizado. Não somente em nossa
arte, mas em nós como seres humanos. Deixo aqui o meu sentimento de gratidão por
cada um ter vivenciado cada instante comigo (...) (relato de uma aluna do curso de
Licenciatura em Teatro/IFCE, após visitar a comunidade do Tomé, publicado em
rede social, em 02/09/2014)
Também foi significativo para as crianças e adolescentes das comunidades que buscavam
ansiosamente saber – ao final do encontro – quando seria a próxima aula de teatro (deixando
21
os alunos da licenciatura com o “coração apertado” por não poder corresponder às
expectativas).
E foi com essa clareza que o trabalho foi desenvolvido, não só considerando as habilidades
específicas da linguagem teatral (o gesto, o movimento, a fala, etc.), mas ampliando o foco
das atividades para possibilitar um estímulo à criatividade e à afetividade vivenciada em
grupo.
22
Abro um parêntese (Eu, Fernando) para uma explicação e uma reflexão. Entre
uma e outra edição, alguns amigos do Grupo Mandacaru de Arte, do município de Caucaia
(Região Metropolitana de Fortaleza), me contataram para oferecer uma peça teatral para ser
apresentada no âmbito do projeto. Eu disse, porém, que deixasse para o final do ano, pois que
essa programação tinha o caráter especial de contar apenas com artistas da região jaguaribana,
expliquei todo o propósito, mas eles insistiram, dizendo que a peça tratava da questão do voto
consciente, e que nessa edição, por ser às vésperas das eleições (as eleições aconteceriam uma
semana após a programação cultural na comunidade), se mostrava particularmente importante
pela oportunidade das pessoas debaterem o sistema eleitoral, entre outras coisas. Eu, então,
consultei minhas parceiras do Grupo Pesquisação sobre o que elas achavam da proposta de
alterar a ideia da programação. Elas não titubearam e incluíram a peça Confirma? na
programação, considerando muito importante discutir o tema. Ainda quis insistir pela ideia
inicial, mas as parceiras não abriram mão da peça. Fiz uma reflexão no sentido de que se a
programação estava sendo organizada pela comunidade, ela tinha - inclusive - total liberdade
para incluir outros grupos, sendo ou não da região, contrariando a proposta de uma
programação exclusivamente local (será que essa proposta tinha sido muito mais minha,
individualmente?), o que denotava a autonomia cada vez maior do coletivo no decorrer do
projeto.
23
Mais tarde, na Praça do Tomé, tivemos uma tocante e longa programação com
aproximadamente três horas de duração e um público médio de 250 pessoas. Para além da
peça teatral Confirma?, do grupo de Caucaia, tivemos um poema de nossa poetisa (sobre as
eleições no Brasil), cinco textos escritos e apresentados por jovens das escolas das
comunidades do Tomé e de Cercado do Meio, pernas de pau, um imitador de cantos/assobios
de pássaros, engolidores de fogo, malabaristas, palhaços, músicos, e uma dezena de figuras
interessantíssimas do Boi Mirim de Quixeré, que encerrou a festa daquela noite memorável. A
noite foi também memorável por um fato menos poético, muito diverso de um mundo tão
cheio de boniteza que estava sendo apresentado ali. Em determinado momento, um grande
número de ônibus, carros, motocicletas passaram anunciando um comício político, em volume
máximo, impossibilitando as apresentações. Temíamos que aquilo esvaziasse nossa
programação, mas, felizmente, isso não aconteceu. Passada a carreata, nossa praça recobrou a
atenção e permaneceu ali todo o tempo para contemplar as produções artísticas de seus
conterrâneos. A gestora da escola, integrante do Grupo Pesquisação, em depoimento no dia
posterior ao da apresentação, refletiu:
Eu até comentei que quando passaram os carros algumas pessoas iam sair, mas não,
quem estava aqui não saiu pra ir pra lugar nenhum. A gente começou com um
público e com aquele público terminou. E foi extenso ontem, eu até disse pro Toinho
[coordenador do Boi Mirim] pra ir um pouco mais rápido, porque sendo muito
extenso ia cansar o pessoal, tinha muita criança... mas, mesmo assim, ficamos até o
final, firme e forte. (...) então, é claro que isso é um ponto positivo pro trabalho e pra
todo o projeto, pra toda a ideia. A gente tira por ontem que foi um dos dias que tinha
mais gente, mesmo com o movimento de política e tudo o mais. (depoimento de L.,
gestora da escola e integrante do Grupo Pesquisação, durante entrevista coletiva, na
comunidade do Tomé, em 27/09/2014).
Abro outro parêntese (eu, Fernando) para falar da emoção daquele momento.
Ao final do espetáculo, fui parabenizar Toinho de Toni, do município de Quixeré, multi-
artista virtuoso, organizador do Boi e de várias daquelas apresentações, e lhe falei o quanto
estava impressionado com aquilo tudo, que tinha sido uma das noites mais tocantes de minha
vida cultural. Ele, por certo, não entendia o meu espanto e meus olhos marejados. Ou, talvez,
ele – intuitivo como era – muito tranquilamente me compreendia a emoção, e sabia que
choramos diante da beleza porque “ao contemplar a beleza, a alma faz uma súplica de
eternidade” (ALVES, 1995, p. 107), em meio a essa nossa vida tão efêmera. Apenas me
abraçou.
24
Figura 6 - Garotas apresentando trechos de Dramas Populares, na comunidade do Tomé (2014)
Uma das principais mudanças percebidas pela comunidade tinha relação com o
fato de que muitas pessoas evitavam sair de suas casas à noite, preocupadas com o aumento
da violência, o que impedia uma vivência social. Segundo moradores, após às 19h., em dias
comuns, há pouca gente na rua. Porém, nos dias em que organizamos as programações
culturais, tivemos um significativo movimento na comunidade, com uma reunião de 120 a
250 pessoas, aumentando a cada edição, entre 19h. e 22h., a participar ativamente da ação
cultural proposta. Essa mudança ficou bastante clara, pois, num depoimento de S., integrante
da associação comunitária, ligada ao Grupo Pesquisação:
Tem gente que não sai de dentro de casa, às vezes tem medo até de vir pra Igreja.
Diz: “não vou pra igreja, não, porque tem muito movimento na estrada, eu tenho
medo”. E se tranca, realmente, no seu mundo. Mas quando apareceu agora o
25
“teatro”12, sempre tão vindo. Aí a gente disse: “ah, agora você saiu de casa”; Ela
disse: “no meio de tanta desgraça, pelo menos a gente pode rir de alguma coisa, pra
distrair a mente!” (depoimento de S., integrante da associação comunitária, durante
entrevista coletiva, na comunidade do Tomé, em 27/09/2014).
nada se compara à grandeza de receber o outro, e aqui eu fui muito bem recebida e
senti toda a força de vocês. Eu queria poder passar mais tempo aqui no Tomé, morar
um tempo aqui, fazendo um trabalho de arte na escola, com as crianças.
Infelizmente, eu não posso. Só posso dizer obrigada por tudo. (depoimento de M.,
aluna do curso de Licenciatura em Teatro/IFCE, durante entrevista coletiva, na
comunidade do Tomé, em 27/09/2014).
Essa fala e alguns relatos escritos de alunos da Licenciatura em Teatro que lemos para o
grupo fizeram essas pessoas abrirem um belo sorriso. E não tínhamos como não lembrar que
“o sorriso, mais que o riso ou o pranto, é a mais suave forma de se dar razão à vida” (BOAL,
2003, p. 11).
12
Os moradores da comunidade chamavam as programações culturais genericamente de “teatro”, a despeito
de terem sido apresentadas obras de diversas linguagens artísticas. Possivelmente, porque as primeiras
apresentações eram peças teatrais. De todo modo, é interessante se pensarmos que o termo teatro deriva do
grego e se refere a “lugar de onde se vê”.
26
As falas dos moradores também apresentavam novas posturas num plano mais
individual, em relação às obras culturais, e inclusive por parte de crianças, conforme o relato
de uma moradora que participou de todas as programações. Diz a moradora,
O que eu observei lá onde eu tava sentada foi as crianças... tinha gente fazendo
zoada... e elas [crianças]: “‘psiu’, cala a boca, eu quero assistir”.Aí teve uma mulher
que disse: “eu tô com 30 anos, nunca meu pai mandou eu calar a boca quem é você
pra mandar eu calar a boca?” (risos)... aí ela disse: “pois então se arretire daí, se
você não veio pra assistir, eu quero assistir”. As crianças, né, pequenas, e elas lá,
olhando, dando risada, e reclamando com o adulto que tava fazendo zoada. Quer
dizer, elas tavam prestando atenção e tava gostando. (depoimento de Dona R.,
moradora da comunidade, durante entrevista coletiva, na comunidade do Tomé, em
27/09/2014).
A situação demonstra o interesse de uma plateia diante do que é apresentado, exigindo que o
indivíduo que faz barulho e está desatento se retire a fim de não perturbar a recepção. Essa
atenção também pode ser percebida em certo grau de apreensão da obra pelo espectador, ao
criar, por exemplo, conexões com o mundo real. As programações culturais faziam parte,
definitivamente, das conversas cotidianas dos moradores, como um estímulo para a percepção
da realidade. Diz L.,
(...) ontem tinha uma senhora que disse assim: “Ave Maria, esse pessoal [o grupo de
teatro] tá dizendo tudo o que é verdade, porque semana passada o candidato fulano
passou na minha porta e disse essa mesma coisa, e eu sei que é mentira, porque ele
não vai fazer mesmo” [referindo-se à peça teatral ‘Confirma?’, do Grupo Mandacaru
de Arte, sobre o voto consciente]. Então, assim, de uma maneira lúdica, de uma
maneira criativa, está despertando a consciência do povo. (depoimento de L., gestora
da escola e integrante do Grupo Pesquisação, durante entrevista coletiva, na
comunidade do Tomé, em 27/09/2014).
Canclini nos indaga em sua obra: “como suscitar, a respeito do modo de vida
que nos foi imposto mas que assimilamos como próprios, o distanciamento necessário para
que surja a visão crítica?” (CANCLINI, op. cit., p. 37). Tendo vivenciado essa pesquisa-ação,
cremos ainda mais no potencial emancipatório da arte. Concebemos mais claramente o que
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diz Boal ao afirmar que “uma estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de
produzir suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais que são obrigados a
tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos opressores” (BOAL, 2009, p.
167). Isso quer dizer que as classes oprimidas precisam se apropriar da palavra, da imagem,
do som, em suma, do capital cultural, não para assumir a cultura da elite, mas para não se
deixar manipular por ela, e para, crítica e livremente, estabelecer sua própria cultura. Cultura
que, sendo diversa, é respeitada em sua diversidade; que se desenvolvendo autonomamente,
possa estabelecer relações interculturais; que não sendo autossuficiente, não lhe sejam
impostas trocas materiais e simbólicas desiguais.
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confiança depositada em nós pela comunidade e por tantos parceiros e com a esperança de
referenciar futuros trabalhos de companheiros de anuncio da causa da emancipação humana
por meio da arte.
8. Referências bibliográficas
BOURDIEU, P. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. 2ª Edição. ed.
São Paulo; Porto Alegre: Editora da Universidade de São Paulo; Zouk, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 47ª. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2005.
LANGER, S. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, v. Coleção Estudos, 44, 1980.
MELO, M. Das águas que calam às águas que falam: opressão e resistência no curso das
representações da água na Chapada do Apodi (dissertação de Mestrado). Fortaleza: UFC,
2013.
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