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I Congresso

Artes-Manuais
na Academia
25 e 26 de Janeiro de 2020
São Paulo/ SP

Organização: Ana Lygia Vieira Schil


da Veiga [Nina Veiga] e Adélia Nicolete
Organização
Ana Lygia Vieira Schil da Veiga [Nina Veiga]
Adélia Nicolete

Comissão Editorial
Adélia Nicolete
Cláudia Soares de Oliveira
Joedy Luciana Barros Marins Bamonte
Luciana Aguilar
Nathalia Abdalla
Paula Martins Costa

Agradecimento especial:
Maria Claudia Vieira Fernandes

Edição
Nathalia Abdalla
Luciana Aguilar

Revisão
Paula Martins Costa

Diagramação
Nathália Abdalla

SÃO PAULO/ SP
2021
Realização

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Congresso em Artes-manuais na Academia (25 e 26. :


2020 : São Paulo, SP)
Anais do I Congresso em Artes-Manuais na Academia
[livro eletrônico] / Congresso em Artes-manuais na
Academia ; organização Adélia Nicolete, Ana Lygia
Vieira Schil da Veiga. -- 1. ed. -- São Paulo, SP :
Museu Nacional de Belas Artes , 2021.
PDF

Vários colaboradores
Bibliografia
ISBN 978-65-993599-0-3

1. Artes 2. Artesanato 3. Artes manuais


4. Congressos 5. Filosofia 6. Professores - Formação
I. Nicolete, Adélia. II. Veiga, Ana Lygia Vieira
Schil da. III. Título.

21-54874 CDD-759.98106
Índices para catálogo sistemático:

1. Artes manuais : Congresso 759.98106

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964


Apresentação
Profa. Dra. Ana Lygia Vieira Schil da Veiga
[Nina Veiga] uma epígrafe
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
(Paulo Leminski Filho)

outra epígrafe
daquilo que cada um faz
o que é que se escreve?
(Certeau)

um cumprimento
prezadas e prezados congressistas e demais leitoras e leitores,
estes são os Anais do I Congresso Artes-Manuais na Academia,
celebrado nos dias 25 e 26 de janeiro de 2020, na capital de São Paulo.

uma repetição
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
(Paulo Leminski Filho)

um sentido
fazer do conhecimento
o mais potente dos afetos
uma vontade
compor território existencial
junto às artes-manuais

outra vontade
tornar audíveis as vozes
que brotam do fazer manual

uma intenção
invadir o território do logos
com a materialidade do vivido
do sentido

outra repetição
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
(Paulo Leminski Filho)

um porque repetir
para deixar marcado que
pensa-se educação
como tornar-se o que se é

outra intenção
dar voz aos fazeres artífices
um motivo
compor experiência que investigue
um fazer manual cotidiano e ancestral, amalgamando
corpo-mente-coração

outro motivo
fazer escrita acontecimento
na íntima relação mão-cabeça

uma estratégia
arrancar as dobradiças
ao abrir as portas
da academia

uma necessidade
fazer conhecimento
por uma estética
da vida viva

mais uma vontade


propor modos de ver e dizer
que permitam tornar visíveis
regimes de enunciação e subjetivação e que,
na pesquisa das artes-manuais,
ajudem a investigar a aprendizagem do corpo
e seus afetos

um convite
vem
O I Congresso de Artes-Manuais na
Academia e suas múltiplas narrativas
Adélia Nicolete

“A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos


não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos.
Eles fazem uma história tornar-se a única história.”
Chimamanda Adichie

Anos atrás, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie fez um pronunciamento que viralizou
nas redes e ajudou a torná-la mundialmente conhecida. Publicado posteriormente em livro
e disponível na internet, “O perigo de uma história única” convoca à reflexão sobre algumas
poucas narrativas tomadas como verdade absoluta em detrimento de uma variedade imensa
de outras, ocultadas. Afirmações tantas vezes repetidas que se tornam inquestionáveis e, aos
poucos, soterram com grossa camada de legitimação a própria vida pulsante.

Assim, as artes-manuais estiveram por séculos relacionadas tão somente à casa e às ativi-
dades domésticas femininas. As mulheres, seus paninhos e suas agulhas são um exemplo
de estereótipo a que se refere Chimamanda Adichie. E se pensarmos no quanto a casa e
a domesticidade ainda são consideradas como de menor importância em relação ao mun-
do “de fora”, “da rua e da cidade”, bem como em relação ao “trabalho produtivo” e à ação
masculina da conquista e do poder, notaremos o grau de rebaixamento das artes-ma-
nuais à condição de “trabalhos manuais” e, portanto, dissolvidas como sal num oceano
indiscriminado de posturas e gestos. Ao longo do tempo, tomamos como verdade um
estereótipo que deixou tantos meninos e moços longe de um grande prazer criativo e es-
tético; que desmereceu e sufocou tantos talentos artísticos em nome de sua “inutilidade”
e que fez desaparecer tantos saberes e fazeres.

Contra a ditadura de uma narrativa única e arbitrária é que se propõe um Congresso de Ar-
tes-Manuais na Academia, que não apenas visa a congregar e a dar visibilidade a um amplo
espectro de ações relacionada à área, como também a demolir paredes e diluir fronteiras.
Assim, as artes-manuais instalam-se na casa e fora dela - na escola, na rua, na universidade e
onde bem se entender. Seu propósito pode ser estético e utilitário, sem deixar de ser ético,
poético, político, pedagógico. Não precisam mais ser exclusivamente relacionadas à mulher
ou à dona-de-casa, ganham mundo, movem a economia, afetam e produzem afetos.

Ao elaborar os Anais do I Congresso nos deparamos com a multiplicidade de narrativas re-


lacionadas às Artes-Manuais. Tal variedade nos permitiu agrupar os artigos em quatro gran-
des áreas, que tanto se inter-relacionam quanto se desdobram em um sem número de outras:
Feminino, Cuidado, Memória e Educação. As mais de 400 páginas dão conta de projetos e
práticas em todo o território nacional, levados por estudantes, pesquisadoras e artistas.

Tal variedade de textos-têxteis não poucas vezes nos colocou diante de uma outra narrativa
única: a da Academia. Assim, volta e meia nos perguntávamos: o que são ou como devem
ser os Anais de um Congresso? Quais os critérios a serem tomados como referência? Como
avaliar artigos tão fora dos padrões? Perguntas como essas levaram-nos, finalmente, a ques-
tões mais profundas: a quem serve o padrão consolidado de registro? Quem ou o quê pode
determinar o que merece e o que não merece constar no documento geral do evento se todas
as experiências foram vividas e ali compartilhadas? E se todas elas instalaram-se na vida e no
devir, o que impede que ganhem seu lugar na reunião de escritos? A forma fora das normas
- normas que são fôrmas, que con-formam? O jeito estranho de comunicar com o verbo o
que tão perfeitamente se comunica na ação, no fazer? Essas e outras questões povoaram os
encontros da Comissão Editorial até bem próximo à publicação dos Anais. Questões abso-
lutamente necessárias à produção de novos e mais flexíveis paradigmas.

Depois de muita reflexão, discussão e de muitos acordos, chegamos a um consenso:


todos os artigos constariam dos Anais. Os que passaram por revisão rigorosa de língua e
de estilo dividiriam o mesmo espaço daqueles que, por opção das autoras, se mantiveram
tal e qual o texto original, recebendo, por isso, uma anotação. Tal procedimento pare-
ceu-nos mais adequado a um Congresso que visa a contestar estereótipos e a acolher,
produzir e compartilhar narrativas múltiplas.

Saudamos pois, com os Anais do I Congresso de Artes-Manuais na Academia, todas as pes-


soas que dele participaram e desejamos que a segunda edição seja ainda mais gratificante.
SUMÁRIO

Cuidado
Arte aproxima
Aline Gonet e Robertha Blatt 16

Bordar a academia: Antropologia estética e saber do corpo


Celia Leticia Gouvêa Collet 22

Bordar coletivamente: Um gesto menor que possibilita o cuidado que liberta a Vida
Cláudia Soares de Oliveira 34

Caminhar com as mãos: Modus para tecer inoperâncias na rua


Fernanda Rodrigues Perondi 48

Escutas que o fio traz: As artes-manuais como caminho de cuidado de si e do outro


Juliana Carvalho de Assunção Ribeiro 54

Costurando retalhos de vida em reabilitação:


Grupo de intervenção terapêutica em patchwork na AACD
Isadora Di Natale Nobre e Márcia Gallo de Conti 66

Entrelinhas, sinais e sentidos: Vivências com alunos surdos nas


aulas de artes do ensino médio em uma escola pública.
Elizabeth Renata Gladcheff Fonseca 82

Artes Manuais e Objetos Afetivos: Oficinas de Arte e Manualidade


e a Produção de Memórias Afetivas
Patrícia Amantino Estivallet 87

Relato do grupo virtual: Arte sana – artes manuais


Beatriz Marcos Telles 98
Feminino
Além do bastidor: Ciranda de narrativas femininas
Ana Maria Gomyde de Oliveira 113

Bordando Cicatrizes
Olívia Marinho Silva Lima 128

A trama do continuum: Dizeres femininos


Joedy Luciana Barros Marins Bamonte 137

Flores da Tina: Narrativas tecidas em crochê


Marcela Araujo Melo 146

Nós entrelaçadas: Projeto de intervenção urbana têxtil


Rossana Cilento e Telma Terezinha Souza Ribeiro 156

Quando as Saias Rodam


Abadia Maria de Oliveira, Marta Rosa e Eduardo Brito da Cunha 166

O despertar para a lã de ovelha: Investigação


e experimentação no pensar, sentir e querer
Natahalie Capistrano Guimaraes D’Arêde 181

Memória
A palavra bordada: Desdobramentos da pesquisa
Renata Matteoni Macera 207

Abrindo o baú: As questões do enxoval nas artes-manuais


Profª Drª Adélia Nicolete 222
Arte Têxtil em telas de patchwork:
Um catalizador de sentidos e valores sociais
Cristiane A. Fernandes da Silva 244

Construindo memórias: Revalorizando as artes-manuais


como aprendizado de afeto nas relações intergeracionais
Elaine Cristina Russo 257

Notas sobre a renda sol na américa


e apontamentos para sua história no Brasil
Elizabeth Horta Correa 275

Bordado Richelieu em Cahoeira, Bahia


Maria de Fátima Ferreira 293

A cidade e as artes-manuais: Memória e apagamento


Vanessa Garcia Sanches 310

Redes que embalam crescimento


Alice Mariana Neves Pereira 327

Da memória familiar aos labirintos do Ingá


Marly Burity Dialectaquiz 346

Educação
Artífice comunitária: A criação de um espaço para o exercício do agir
Maria Aparecida de Morais 357

Bordado como intervenção poética:


Intermídia e remediação no uso de têxteis e textos
Erika Viviane Costa Vieira 366
A cartografia da Casa e a Experiência do Vivido
Flávia Lopes 383

Embonecando: O trabalho manual como ferramenta da educação


empreendedora de jovens e adultos.
Luana Fidelis da Silva 395

Fios e Histórias nos fazeres das artes-manuais:


Uma peregrinação com Tim Ingold pelo emaranhado das linhas e tramas
Claudia Valéria de Assis Dansa, Cristina Yamazaki, Elissângela Freitas Leite,
Elizabeth Renata Gladcheff Fonseca, Flávia de Almeida Alves Lopes, Marcia
Gallo De Conti e Maria Cláudia Vieira Fernandes 409

Fios, brincadeiras e poesia: As artes-manuais


na sala de aula da educação básica da rede pública
Simone Maria de Lima 419

Línguas e jogos: Confecção, adaptação e resultados em sala de aula


Emerson Aparecido dos Santos Bezerra 432

Manualidades recicladoras em “árvores dos desejos”: Atuações


e observações em workshops colaborativos multimídia no Brasil, Namíbia e Índia
Rosana Bernardo 442

Vivências com a lã: A criança, a fibra e as artes-manuais dentro e fora da escola


Laura Erig Salimen 454

Artes-Manuais: Experimentação artística para composição de outras linguagens


Lara Arce 481

Bordado como intervenção política: Artivismo na universidade


Isabella Maria Albuquerque dos Santos Carneiro 491

Subsistindo, Superando, Existindo: A mão que tece o fio que tece o mundo
Néria Lima de Souza 500
cuidado
arte-manual
afetos
corpo

ausências atravessamentos

potência vida

experiências

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No tempo em que vivemos, é urgente o debate acerca dos modos estabelecidos
para nos relacionarmos com o mundo, com os outros e conosco (éthos) e o estu-
do sobre o cuidado pode fortalecer este debate uma vez que existem diferentes
formas de cuidar e que algumas ampliam e outras restringem a potência da vida.
Cuidado é mais que um ato singular ou uma virtude ao lado de outras, é um
modo de ser, ou seja, a forma como o humano se estrutura e se realiza no mundo
com os outros. Envolve a pessoa cuidada, o seu contexto e o contexto social.
Cuidar implica cuidar de si e do outro, ter noção da realidade, possibilidades e
limitações; implica sentimentos éticos e estéticos.

Não se trata de binarismo, muito menos de julgamento, onde se oporiam modos


de cuidar. A questão é todo um agenciamento no qual coexistem vetores de es-
tratificação e formatação que controlam e limitam o acesso às potências da vida
e do cuidado; mas há, também, uma série de forças presentes que cavam buracos
nessas formatações, que traçam linhas de fuga, que abrem espaços no que está
dado. Interessa-nos pesquisar formas de cuidado que nos leve para outro lugar.
Algo muito mais próximo da relação entre amigos onde não se busca dominar
e controlar aquele de quem cuidamos, mas elaborar uma relação de liberdade;
uma “associação de amigos” onde as relações estabelecidas sejam relações de cui-
dado de si e cuidado do outro e que sejam mediadas pelos fazeres manuais sendo
o tempo desse fazer um tempo próximo ao tempo de cuidar.

Cada encontro para esse fazer manual traz a possibilidade de criação e invenção
de outros mundos. Dar visibilidade a esse plano significa promover estratégias
de produção de saúde, outros mundos de ação de saúde e cuidado, como produ-
ção de encontros que aumentam nossa potência de agir ou força de existir, que
ampliam e produzem vida no sentido intensivo, como forma de vida. Vida como
criação e [c]o[m]posição. Crochetar, tricotar, bordar mas também tecer enlaces,
conexões e gerar territórios de experimentação que permitam a construção de
um conhecimento que se faça nos corpos, com corpos e como criação de corpos.
Experimentação singular, baseada na ideia de sujeito que se constrói, que é mo-
dificável e que se relaciona a partir da ação ética no mundo como elaboração de
uma estética da existência. Trabalho que se enreda como costura das muitas teias
de afetos que envolvem tanto um ‘memorar-corpo’ quanto um ‘bordar-tricotar-
crochetar-cuidar’. Os textos que se seguem tratam disso. Escutar o que a mate-
rialidade diz e alinhavar vivências, retalhos, mundos, hábitos, estranhamentos,
entornos, afetos, ritmos, memórias e silêncios.

Ao sugerir uma interferência entre artes-manuais e cuidado como potência para a


criação de outros estados composicionais, busca-se criar fluxos móveis, flexíveis,
perturbadores e instáveis. Fluxos mutantes em novas contorções criativas a cada
cristalização e a cada ruptura, sem expectativas de construção de uma forma ou
modelo para produzir um corpo aberto ou um tipo de cuidado ideal, mas como
estados criativos suscitados em uma prática híbrida. Trata-se de um encontro
[entre]. O [entre] dos corpos, ele mesmo um Corpo, conectando-o a outros ma-
teriais, explodindo a fixidez das formas. Esta matéria afeita a devir, exige espa-
ços de manifestação, de percussão, de proliferação de seus modos. Não se pode
percutir o vazio, o hiato... Há, então, que se constituir um plano material onde
o vazio é um pré-plano, uma exigência para a produção de um outro regime de
encadeamento. Algo que faça passar, atravessar, um modo conectivo, que seja ao
mesmo tempo expressão, passagem, produção, devir, marca, entre. Corpo, uma
produção do Tempo no Espaço.

Cláudia Soares
Arte aproxima por Aline Gonet e Robertha Blatt

Museu Nacional de Belas Artes Outubro


de 2018 a Janeiro de 2019

Artes-Manuais e Psicoterapia são uma porta de interação do indivíduo consigo próprio


e com o mundo. Unir os dois temas aproximou ainda mais duas amigas que possuem
práticas profissionais distintas. A admiração de uma pela área de atuação da outra pro-
porcionou essa interseção e frutificou no trabalho de psicoterapia com crianças e famí-
lias e, posteriormente, na exposição "Arte Aproxima".

A exposição é um transbordamento do trabalho clínico da psicóloga Robertha Blatt


com crianças, adolescentes e familiares e foi desenvolvido ao longo de um ano em cola-
boração com pedagogos, psicólogos, artistas e ativistas. Foi realizada no Museu Na-
cional de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA), no período de outubro de 2018 a
janeiro de 2019.

“Arte Aproxima” formou um corpo educativo que recebeu 16 escolas públicas e parti-
culares contabilizando, aproximadamente, 800 visitantes agendados, além do público
espontâneo do Museu, atingindo, no total, cerca de 6.000 pessoas.

A ativação das Artes-Manuais dentro da exposição "Arte Aproxima" teve como objetivo
promover vivências sensíveis que despertassem o encontro dos seres humanos consigo
próprios e o encontro com o outro, desenvolvendo intimidade emocional, consciência
dos processos internos e transformação em vários âmbitos do pensar, sentir e querer.

16
Isso porque uma das formas de trazer para crianças e adultos a vivência orgânica do ser
humano é dar-lhes a oportunidade de experienciar diferentes técnicas manuais com o
objetivo de entrar em contato consigo próprio, com o outro e com o mundo, sutilmente,
através dos materiais utilizados, do seu manuseio, das texturas e cores, das técnicas, das
formas desenvolvidas durante as vivências.

A exposição contou com curadoria de Lisette Lagnado e proposições desenvolvidas por


Robertha Blatt, Aline Gonet, Emilia Estrada e Priscila Fiszman. Como elemento ino-
vador, obras em construção que ganhavam forma a partir da participação do público.
Em paralelo, esculturas de Ernesto Neto e Efrain Almeida dialogaram com a pintura A
Primeira Missa (1948) de Candido Portinari.

“Arte Aproxima”, dessa forma, foi um convite feito ao visitante para pausar, sentir, dei-
xar fluir e ampliar as possibilidades e recursos imaginativos e relacionais, respeitando
o vasto repertório que cada organismo possui de intuir o que precisa viver. Um campo
sagrado do brincar, do descobrir e do estar junto.

A obra “Rosa dos Ventos” surgiu a partir das atividades de crochê e tricô de dedo que a
psicóloga Robertha Blatt, em parceria com a pedagoga e artesã Aline Gonet, vem de-
senvolvendo durante sessões de psicoterapia.

Sessões de psicoterapia:

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“Rosa dos Ventos” é uma mesa que se desdobra em um grande tear circular em que
o público torna-se cocriador da trama tecida. Os visitantes tiveram a oportunidade de
participar com todo o seu corpo como se fossem os dedos a tramar o fio. Também pude-
ram vivenciar o crescimento da trama provocando diferentes sentidos à experiência. O
tecido tubular amarelo que se formou dentro do tear nasceu para alguns como um sol;
para outros, como uma estrela que ilumina, gera calor, conforto, confiança e vitalidade.

A vivência proporcionada por


“Rosa dos Ventos” deu-se através
da exploração do grande novelo, do
ato de tecer e também do manuseio
da trama; cada caminho levou a uma
interação e a uma experiência dife-
rente. Assim, foi possível perceber a
alegria das pessoas ao vivenciarem
a experiência de decodificar e de se
apropriar da técnica trazendo sen-
sação de pertencimento, vitalidade
e reconhecimento de sua potência.

Na exploração do tubo, diversos


relatos foram compartilhados.
Dentre eles, o esforço ao nascer,
em que a passagem pelo túnel e a
saída por dentro da mesa remeteu
à origem da vida e chegada a Terra.
Surgiram também sentimentos de
contentamento e libertação, outros
de sufocamento e medo. Insights,
imagens e memórias vieram à tona
integrando a experiência estética,
emocional e psíquica.
Por meio da Focalização de Eugene Gendlin, olha-se para dentro e se encontra uma
espécie de sentir corporal chamado de “Felt Sense” e, através dele, orienta a atenção
para a ampliação do contato com sensações, percepções e sabedoria das informações
que nosso corpo produz. Por isso, foi fundamental proporcionar aos visitantes a possi-
bilidade de vivenciar suas próprias sensações corporais por meio dos estímulos provo-
cados na exposição.

Outra questão observada foi que o ato de tecer em grupo trouxe ritmo, conexão e cum-
plicidade entre os visitantes. Observação, pausa e parceria foram necessárias para o de-
senvolvimento da trama e ficou perceptível o quanto os indivíduos se complementam
para que uma ação se organize e se manifeste com qualidade.
A possibilidade de vivenciar trabalhos
com início, meio e fim também foi im-
portante, já que desenvolve seguran-
ça, autonomia e o sentimento de ser
útil ao mundo. De forma complemen-
tar, o tricô de dedo, com sua capaci-
dade de trazer consciência não só das
mãos, mas de todos os dedos, trouxe
entusiasmo para as rodas de trabalho
que se formaram.

Isso porque, segundo Matti Bergs-


trom, a capacidade de discriminação
das mãos é semelhante à dos olhos,
já que as pontas dos dedos têm uma
grande densidade de terminações
nervosas, que permitem ao cérebro
identificar o que os dedos estão ex-
plorando. Bergstrom apontava para
a necessidade de que as crianças e os
jovens trabalhassem com suas mãos
para que não se transformassem em
"cegos dos dedos" e, por isso, incenti-
vava o uso das mãos na infância para
evitar que a rica teia nervosa presente
nos dedos ficasse empobrecida, o que
poderia representar uma perda tam-
1
bém para o sistema cognitivo .

1 Neli, Ortega. O fio do trabalho manual na tessitura do pensar, sentir e agir humanos: e seus princípios no Ensino
Waldorf do 1°ao 5° ano. São Paulo, 2017.

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Adultos e crianças passavam muito tem-
po em grupo desenvolvendo essa técni-
ca. Era perceptível como a vontade de
desenvolver algo que parecia ser impos-
sível, em um primeiro momento, trazia
satisfação e um novo olhar para suas
próprias capacidades.

Assim, ficou claro, durante a exposição, como o trabalho manual possui uma qualidade
intrínseca que proporciona aproximação e intimidade. A partir de conversas, da troca
de experiências, do olho no olho, nós são desatados e laços são criados. Manifesta-se a
união entre os seres através das artes-manuais formando uma grande teia universal mo-
vimentando-se a caminho de uma consciência maior em que o campo relacional convida
para a sintonia com o sagrado que somos.

Através de dinâmicas, artes-manuais, conversas, meditações e estímulos lúdicos, as ex-


periências da exposição "Arte Aproxima" se deram de forma transformadora promoven-
do vivências sensíveis e encontros que geraram aproximação, transformação e consciên-
cia. Ao final, os visitantes levavam consigo uma parte da exposição: os tricôs tecidos e,
muitas vezes, transformados em adornos.

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Bordar a academia:
antropologia estética
e saber do corpo
por Celia Leticia Gouvêa Collet

RESUMO
O curso “Bordando o mundo”, oferecido na Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral Fluminense (UFF), pretendeu vivenciar o bordado como prática de investigação
antropológica e intervenção nas performances acadêmicas. Bordamos panos, objetos,
subjetividades, corpos, encontros, políticas, escritas, pensamentos, em um movimento
de conhecimento em que não há mais distinção entre dentro e fora das pessoas, da uni-
versidade, do tecido. Partindo de exercícios inspirados pela metodologia do Teatro do
Oprimido, criado por Augusto Boal, e de trocas com outras artistas, experimentamos
nossos corpos em fluxo e inserimos o bordar neste movimento. Assim, pudemos colocar
em estranhamento algumas práticas acadêmicas, como a escrita alfabética e as formas
acostumadas de produzir conhecimento. O que é escrever? Como é o nosso modelo de
pensamento? Como seria um pensamento sensível? Também o bordado pôde ser desa-
fiado: será o nosso bordar moldado pelo pensamento moderno centrado na submissão
da natureza pela cultura, do objeto pelo sujeito e da materialidade pela representação e,
também, pela máquina da escrita alfabética? E, neste caso, como podemos perceber nos-
sas habituações e nos abrirmos para novas experiências ao bordar? A antropologia aqui
é afetada em suas práticas, performances e pressupostos epistemológicos. Passamos a
inventar uma antropologia não mais do pensamento sobre a materialidade, o corpo e a
arte, mas, em seu lugar, um pensamento com a materialidade, o corpo, a arte.

PALAVRAS-CHAVE: Bordado. Corporalidade. Academia.

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INTRODUÇÃO
O que acontece quando o bordado entra na universidade? Mais especificamente na
Antropologia? Esta é a pergunta que me move nesta escrita. Vou tratá-la a partir da
experiência do curso “Bordando o mundo”, oferecido para uma turma de Pedagogia da
Universidade Federal Fluminense, em que atuo como professora de Antropologia da
Educação. O programa foi pensado da seguinte forma: “Este curso fará uma costura en-
tre bordado, artes manuais, práticas corporais, estéticas de desabituação e investigação
sobre pensamento corporal, a partir da proposta de Estética desenvolvida por Augusto
Boal.” (COLLET, 2019a)

O curso está inserido no projeto de pesquisa “Antropologia e educação entrecorporal”


(COLLET, 2019b), que aborda o lugar do saber do corpo na universidade, na antro-
pologia e na educação. Através do bordado, investigamos o saber do corpo, partindo
da relação entre práticas manuais e corporalidade. E também colocamos na universida-
de performances diferentes, possibilitando desnaturalizar as performances acadêmicas
costumeiras.

O bordar, assim, se transforma em prática antropológica. A antropologia praticada


como intervenção – aquela que inventa, parte da criação, e não da descoberta, da re-
presentação ou da verdade prévia – tem no bordado um campo criativo muito rico. As
tão faladas redes (LATOUR, 2012), malhas ou teias (INGOLD, 2015), são produzidas
concretamente nos bordados. Nós, bordadeiras, não falamos sobre redes: tecemos re-
des (com fios, gentes, palavras, ações...). Não fazemos antropologia do feminino: parti-
mos de técnicas ancestralmente dominadas por mulheres para fazer antropologia. Não
falamos diretamente sobre o capitalismo: vivemos o tempo lento, sem objetivo, jogado
fora. Rejeitamos o anzol que o capitalismo nos pesca: o nosso tempo. Não escrevemos
etnografias em computador: escrevemos através do tecido, furando-o com a agulha; es-
crevemos com o tecido-superfície (não sobre ele)! Nossa escrita não é sobre nem na ma-
terialidade, ela é com. E essas escritas-bordado soltam fios infinitos que vão ganhando
outros espaços que, a partir da escrita-com, nos possibilita relacionar com, falar com, pes-
quisar com, viver com, no lugar da relação sobre, falar sobre, pesquisar sobre, viver sobre.

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O bordado antropológico ou melhor só o bordado (o antropológico seria redundância
pelo que estamos vendo) nos permite ir além do tecido de pano, criando outros tecidos:
de gente, de ideias, de espaços, de corpos. É o bordado-mundo. Nos permite olhar os
avessos como criação paralela. Nos faz ver o mundo de forma fractal, interligada, com
conexão de diversos planos materiais. É bordar grupos, gentes, tempos, relações, políti-
ca, encontros, ambientes, novas subjetividades. Como comentaram as alunas:

“Bordar o mundo é fazer das atividades rotineiras um verdadeiro teatro da


vida real, trazendo o novo e o velho, remendando os tecidos que a correria
destruiu, analisando o que o corpo suporta e para onde ele nos chama, tra-
balhando a mente e as emoções.” (Sthefanye Galdino)

“Momentos de conexão uns com os outros, com a natureza e principalmente


com nossos corpos.” (Julia Vieira Rodrigues)

“Afirmei mais ainda a importância da minha própria companhia. Sento em


casa para bordar, coloco músicas que gosto e fico pensando e conversando
comigo mesma.” (Carolina do Nascimento)

“Em cada encontro, descobri novas partes de mim. Fui me tecendo, conhecen-
do pessoas novas, ampliando minhas leituras de mundo.” (Jéssica Montuano)

“Nos proporciona nos abrir, falar de nossos sentimentos, colocar para fora
aquilo que sentimos.” (Valéria Eduardo)

“Bordei sentidos, sentimentos, frustrações, esperanças... Amei ser imperfeita!


Bordei até um ketchup!” (Luana Santoro)

O bordado, assim, traz para a antropologia a possibilidade de fugir da representação,


do falar sobre, e permite nos aproximarmos da materialidade da disciplina, levantando
questões tais como: “O que pode se escrever?” “O que é pesquisar com?” “O que é fazer
teia e não apenas falar sobre ela ou usá-la como metáfora?”

24
2 BORDAR, DESMANCHAR E BORDAR NOSSOS CORPOS E MUNDOS
Para Augusto Boal, o Teatro do Oprimido é uma ferramenta de libertação política
através da percepção e da estética. Segundo ele, é através da desmecanização de nossos
corpos e da desabituação de nossos sentidos que poderemos sentir e transformar as re-
lações de opressão, as quais elas nos são impostas através de elementos estéticos desde
que nascemos. A arte, portanto, é política, pois nos possibilita ver e sentir o mundo de
forma diferente da hegemônica. (BOAL, 2009)

Com este objetivo, Boal, a partir de muitos anos de experiências coletivas em vários paí-
ses, construiu um método estético de desabituação, baseado em práticas e exercícios que
deslocam nossa percepção acostumada. Ao fazer a formação nos cursos do Centro do
Teatro do Oprimido, comecei a trazer esses exercícios para a prática do bordado como
maneira de deslocar o bordado de sua normalidade e, também, do próprio bordado servir
como deslocamento de outras normalidades, como aquelas pressupostas na academia.

O curso “Bordando o mundo” foi proposto como forma de aprofundar a pesquisa desta
interação entre bordado, Teatro do Oprimido e Antropologia, todos eles vistos como
práticas de estranhamento e transformação dos mundos constituídos. Usamos os jogos
e exercícios do Teatro do Oprimido para nos aproximarmos do “pensamento sensível”,
“uma forma de pensar não verbal” (BOAL, 2009, p. 27) e, assim, ampliarmos a potência
da prática do bordado.

Jogo do novelo
O exercício do jogo de bolas do Teatro do Oprimido foi adaptado para um jogo de
novelos de linha. Nele, treinamos nossa atenção ao momento, pois não podemos deixar
as bolas caírem no chão, mesmo quando elas começam a chegar com mais rapidez.
Boal diz que “o pensamento sensível é veloz; o simbólico, lento.” (BOAL, 2009, p. 92).
Assim, jogos como esse são muito importantes para nós, pessoas dominadas pelo pen-
samento simbólico. Outros jogos deste tipo também foram realizados.

Como gostaríamos de estar agora


A experiência estética “O que mais me impressionou nos últimos tempos” (BOAL, 2009)
foi adaptada para o exercício “Como gostaríamos de estar agora”. Começamos por escre-
ver sobre o tema, depois os textos de todos do grupo foram lidos e cada um pegou o texto
de um colega para transformá-lo a partir de uma linguagem estética, no caso, o bordado.
Terminados os bordados, conversamos sobre a atividade e demos de presente ao dono
do texto o bordado correspondente, como uma espécie de brincadeira de “amigo oculto”.

Completar a imagem
O exercício de completar a imagem (BOAL, 1998, p. 186) não estava pensado para
ser realizado, mas surgiu a oportunidade depois de uma conversa sobre a dificuldade
de bordar “qualquer coisa”. As alunas comentavam que estavam muito acostumadas a
receber ordem e direção na criação e não sabiam agir quando colocadas em liberdade
para criar. Foi quando me lembrei deste exercício em que uma dupla de pessoas dá
um aperto de mão, depois um dos dois sai da posição e o outro continua. O que saiu
tem que interagir com o outro a partir de uma nova postura e, assim, os corpos vão
dialogando e inventando imagens.

Depois deste exercício, vimos que o bordado poderia fluir de qualquer ponto ou traço
original que iria “puxando” outros, ou seja, nos libertamos do modelo de que temos que
ter tudo pronto na mente para depois passar para a execução das mãos. Nos permitimos
experimentar o que iria acontecer no processo mesmo do bordar.

Cinco sentidos
Nesta mesma direção de exercícios, eu inventei também alguns, como o de usar os
cinco sentidos para entrar em contato com a linha e experimentar sua materialidade.
Assim, de olhos fechados, tocamos nosso corpo com a linha, cheiramos, tiramos sons
dela e sentimos o seu sabor. Depois, abrimos os olhos e tentamos ver a linha de forma
diferente da que a víamos até então. Pudemos perceber que bordar passa por uma re-
lação entre o nosso corpo e o corpo do fio e do tecido. Que bordar pode ser uma dança
entre nós e as linhas. Que podemos romper com a relação hierárquica de nós sermos os
sujeitos do bordado; o tecido e a linha, os objetos. Nós também nos fazemos ao fazer o
bordado. Somos todos corpos, somos todos participantes ativos.

Bordar com o corpo


Outro exercício que inventei, inspirada na metodologia do Teatro do Oprimido, par-
tiu da interação dos nossos corpos com o corpo da agulha, da mesma forma que o
anterior fazia com a linha, explorando os cinco sentidos. Depois, partimos para nos
experimentar como agulha e tecido. Propus que as alunas mexessem seus corpos pelo
espaço, estimulando movimentos e gestos pouco convencionais, fazendo o corpo se
colocar em posições pouco frequentadas por ele. De tempos em tempos, dizia “está-
tua”, e elas tinham que parar como estavam. Depois de algumas paradas, pedi que
guardassem a posição em que estavam, se aproximassem das colegas e voltassem a
mesma posição, mas agora em interação com todo o grupo, fazendo uma só malha
corporal. Uma das pessoas ficava de fora, pois ela seria a agulha que iria se costurar no
tecido de corpos, passando pelos espaços entre eles. Quando ela terminava, passava
a ser linha dando a mão a outra colega que agora seria a agulha, e ambas teriam que
costurar o tecido. Isso aconteceu até não haver mais muita gente para formar o tecido.
Depois conversamos, e a turma falou que foi muito interessante se sentir agulha com
todo o corpo para depois passar a usar a agulha. Passaram a utilizá-la de outra forma,
como se o corpo inteiro fosse um prolongamento da agulha.

Durante o curso, tivemos também algumas trocas com outras artistas e suas práticas. A alu-
na do curso Louise Lanate nos proporcionou uma oficina para bordar mamilos (no tecido),
o que nos levou a conversar e a bordar nossos corpos de mulher. Esta atividade foi realizada
no gramado da orla o que fez com que o nosso bordado incluísse o céu, a terra e o oceano.

Já Cyntia Matos nos proporcionou participar da colcha de memórias afetivas realizada


pelo projeto “Entrelaços: costurando histórias, memórias e afetos”, em que mulheres
de várias localidades do Rio de Janeiro bordam suas histórias em pequenos quadrados
que são costurados uns aos outros.

Potira Faria, por sua vez, nos levou literalmente para bordar o mundo e nos provocou
outro olhar para a paisagem pela qual passamos todos os dias. Saímos com ela para
coletar material pelo campus e recolhemos papéis, ferro, folhas, palha, plástico, papel de
bala, frases e, com eles, fizemos bordados inusitados.

Além desses trabalhos desenvolvidos com o bordado, frequentamos duas oficinas re-
alizadas por Aline Bernardi em seu projeto “Lab Oficina Corpo Palavra”. Desta parti-
cipação, derivou uma nova experiência que colocou lado a lado o bordado e a escrita.
Proponho a seguir desenvolver esta experiência como forma de explorar mais detalhada-
mente um caso da potencialidade de se colocar em vizinhança saber corporal, bordado e
academia como prática antropológica.

27
Bordado, corpo e escrita
O projeto de pesquisa “LabCorpo Palavra”, de Aline Bernardi, é

uma investigação das relações entre o corpo e a palavra no processo de criação artística, que
tem como pontos de partida algumas perguntas-chave: O que o bailarino pensa quando está
dançando? É possível escrever dançando? Por que a predominância da produção de conhe-
cimento se dá na relação de frontalidade com o espaço e na posição sentada com estabilidade
nos ísquios? Quais são os afetos e afecções entre razão e sensibilidade; movimento e pensa-
mento? Qual a implicação do corpo durante o ato de escrever? Como posso atravessar a fron-
teira entre escrita e movimento para que a poesia do corpo interfira no fluxo criativo da palavra
e a palavra no fluxo poético do movimento? De que maneira “razão” e “sensibilidade” dialogam
na construção do corpo-pensamento? Onde o pensamento é carne e quais caminhos o corpo
pode percorrer para construir uma fisicalidade da escrita? O intuito é oferecer um ambiente de
experimentação para o desenvolvimento de uma escrita cartográfica e sensória, com a libera-
ção da motricidade dessa escrita dos códigos da produção de conhecimento e a abertura para
uma escrita poética do corpo em devires múltiplos. (BERNARDI, 2019).

Depois de realizarmos as oficinas com a artista resolvemos fazer uma derivação da proposta
para colocarmos em relação nossos corpos, a escrita bordada e a escrita alfabética ocidental.

O exercício Bordado, corpo e escrita


Primeiro, nos conectamos com nossos corpos individuais e coletivos através de algu-
mas práticas corporais. Depois, cada uma das participantes pegou um pedaço de teci-
do, uma agulha e uma linha. Iniciamos em pé, dispersas na sala. A proposta era bordar
ao mesmo tempo em que o corpo se movimentava sobre o espaço, andando, dançando,
fazendo movimentos desabituados, sentando, deitando, deslocando o olhar do tecido
por alguns momentos. Lentamente, para ninguém ter perigo de se ferir com a agulha,
nem ferir outra pessoa. Depois continuamos a prática em dupla, em quatro e, por fim,
com toda turma reunida, formando um único bordado coletivo.

Na sequência, ainda inspiradas no trabalho de Aline Bernardi, sentamos e cada pessoa


pegou uma folha de caderno. Pedi que fechassem os olhos e escrevessem sem pensar
sobre a experiência que haviam acabado de ter. Depois disso, abriram os olhos, leram
o que haviam escrito e, a seguir, releram seu texto marcando palavras que chamaram
atenção. Em roda, demos de presente para as colegas algumas destas palavras, ou es-
crevendo em seus corpos ou em pequenos pedaços de papel. A seguir, formamos
duplas para fazer um texto apenas com as palavras selecionadas pelos componentes
da dupla e as que foram ganhas de presente. Em roda, novamente, compartilhamos
nossas criações. Então transformamos em escrita-bordado a escrita-palavra.

Texto e bordado de
Alessandra Araújo e
Fabíola Paixão

.Texto e bordado de
Larissa Martins e
Luana Santoro.
Nesta atividade, experienciamos a expansão do movimento do bordado, geralmente
concentrado na relação mão-olho-mente. Dessa vez, colocamos em movimento todo o
corpo e sua relação com o espaço e com os outros corpos. Assim, além de incluir novas
dimensões, pudemos nos liberar um pouco da preponderância do olhar e do pensamen-
to mental na prática do bordado.

Tanto a criação materializada no tecido quanto nos corpos-sujeitos foi transformada


por esta prática ao entrar em contato com o movimento dos fluxos-fios que entrelaça-
ram tecidos corporais, fios de linha e fios sutis, explicitando, desse modo, as conexões
tecidos-sujeitos-palavras-linhas-espaço. Foi um exercício de pensar na exterioridade, ou
como chama Luiz Rufino (2019): “pensar praticado”.

Também, rompemos com a submissão da superfície à linha, comum no bordado afetado


pela escrita alfabética. Em nossa prática, ao exacerbarmos nossas linhas-fluxos corpo-
rais, pudemos entrar em contato com as linhas-fluxo, tanto aquelas linhas coloridas que
colocamos nas agulhas, quanto com as linhas que compõem o tecido, liberando-o assim
de seu caráter passivo de paisagem de fundo ou de suporte.

Ao liberarmos as linhas de suas funções impostas pelo modelo da escrita-alfabética pu-


demos, em um movimento reverso, liberar a própria escrita-alfabética do modelo da es-
crita-alfabética, criando textos-fluxos que puderam seguir novos movimentos. As alunas
ficaram muito surpresas com suas criações. Não imaginavam que pudessem escrever
poeticamente. Não sabiam que tinham esse “dom”.

Neste ponto, me lembro de Augusto Boal (2009) que dizia que todo mundo faz teatro.
Podemos dizer, neste caso, também, que todo mundo é poeta. A questão é nos liberar-
mos da exigência de interioridade que nos foi imposta como modelo único de criação
dentro da sociedade que tem o “indivíduo” como fundamento.

A zona de vizinhança (DELEUZE; GUATTARI, 2009), criada quando o bordado é


trazido para a academia, ao colocá-la em devir, evidencia seu pensamento habituado ao
modelo da interioridade, do indivíduo, da racionalidade, da escrita alfabética academi-
zada, da inexistência do movimento corporal. Modelo este de linhas-fluxos curtas por

30
serem ou cortadas ou dadas nó muito rente ao sujeito, não permitindo a formação de
teias mais amplas, quem sabe, entre as pessoas, as áreas de conhecimento, as diversas
espécies vivas, as coisas e espaços, a universidade e o mundo.

Ao percebermos este modelo de pensamento, temos a possibilidade de criar formas de


desmecanizá-lo (BOAL, 2009), fazendo com que a vida possa fluir, pois esta só existe em
movimento, através da passagem por habituações-ponto e desabituações-linha. Podemos
também refletir sobre os modelos de poder com os quais tanto lutamos externamente, mas
acabamos por reproduzir em nosso cotidiano na universidade, através das relações, do
modelo-pensamento e da escrita, sempre baseados na representação e na subordinação.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma das primeiras coisas que aparecem quando levamos o bordado para a universi-
dade e para a Antropologia é uma visão diferente sobre o que é a escrita alfabética oci-
dental. Ela é uma prática realizada através do desenho com tinta sobre um papel. Mas
isso já está tão mecanizado que nos esquecemos da materialidade da ação, que passa
pela relação entre o corpo-mão, o papel e a tinta. Ou, cada vez mais, entre corpo-mão e
teclas do computador.

A escrita, como temos hoje, é uma construção de séculos, como nos mostra Havelock
(1996), que foi se distanciando cada vez mais da materialidade da ação e do som, se alie-
nando da relação com os corpos e se tornando uma máquina cada vez mais automática e
abstrata. O bordado, sendo colocado ao lado dela, por ser também uma escrita, nos faz
voltar a vivenciá-la novamente como materialidade.

E, assim, podemos fazer o exercício de desmecanizar o processo da escrita alfabética e


investigar o que acontece com nosso corpo, o que acontece conosco quando fazemos
parte desta máquina. Podemos perceber que nossa cognição de alfabetizado é uma
construção social de muitos séculos, o que nos possibilita, entre outras coisas, entender
que muitas outras pessoas no mundo têm outro tipo de cognição que não passa pela
máquina do letramento. Também podemos entrar em contato vivencial com essas tec-
nologias que nos conformam, ver que nosso pensamento acontece dentro de formas de

31
cognição produzidas. Isso pode nos abrir a outras estratégias políticas de libertação do
pensamento. Também novas formas de alfabetização, talvez não tão alienantes. Isso
mesmo: pensamos os analfabetos como alienados, mas não vemos como a escrita nos
aliena de nossa materialidade.

Por suposto, não estou fazendo uma defesa da não-escrita. Conheço seu poder de liber-
tação no contexto social em que ela impera, o mundo ocidentalizado, e todas as políti-
cas que são feitas para não aproximar grande parte da população da leitura e da escrita.
Entretanto, se nos aprofundarmos como nosso pensamento é moldado pela escrita,
podemos nos fortalecer ainda mais ficando atentos sobre formas de alfabetização e de
vivência da escrita. E, assim, criarmos novas escritas, mais sensíveis, menos desvincula-
das dos nossos corpos.

O bordado é uma escrita feita da linha com a superfície. O fio entra na malha do tecido,
e o próprio tecido já é feito de fios. No bordado, podemos ver mais claramente a relação
entre superfície e linha, o que pode nos ajudar a perceber a escrita alfabética também
em sua relação com o corpo do papel. O papel não sendo apenas um suporte neutro
sobre o qual colocamos ideias. É muito importante percebermos a relação entre linha
e superfície com a relação que funda a modernidade entre cultura e natureza. Neste
pensamento, a natureza é uma paisagem, um suporte, um objeto passivo que é subme-
tido a uma cultura ativa que sobre ele imprimirá uma forma, que dele se utilizará para
moldá-la. Sem participação nenhuma do que chamamos de natureza conforme destaca
Wagner (2009) e Ingold (2015).

Podemos pensar que sendo de mesmo tipo, a máquina de escrita alfabética nos im-
peça de perceber a relação de submissão da natureza à cultura. Então, se através da
prática do bordado, ou outra, podemos nos distanciar da naturalização da relação de
submissão da superfície à letra, a relação entre cultura e natureza pode ficar mais clara
também. Pensar a escrita é pensar o nosso pensamento e, assim, aprofundarmos nossas
desabituações em relação ao que nos oprime.

Por outro lado, é interessante perguntarmos o que é o bordado neste mundo talhado e
visto através do pensamento-máquina-de-escrita. Neste caso, o que temos geralmente

32
é o bordado submetido ao pensamento-escrita alfabética. Assim, ainda hoje, majorita-
riamente, vê-se o bordado como uma técnica de escrita em que a linha é tratada como
um lápis e o tecido como um papel.

Através da vizinhança entre bordado e escrita, e bordado e universidade, podemos alte-


rar ambos os lados, os deslocando das práticas acostumadas e, desse modo, abrir múlti-
plas possibilidades de investigação e criação. Uma escrita e uma academia que partam
da corporalidade e da materialidade em que são feitas, e um bordado que se liberte do
modelo-escrita-alfabética e possa se tornar plano de investigação e pensamento.

REFERÊNCIAS

BERNARDI, Aline. Lab corpo palavra: corpo que escreve corpo e o artista cartógrafo. Mono-
grafia de Conclusão de Curso, Pós-Graduação Lato Sensu em Preparação Corporal nas Artes Cêni-
cas, Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro, 2019.

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
______. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

COLLET, Célia. Programa de curso “Bordando o mundo”. Niterói: Faculdade de Educa-


ção/UFF, 2019a.
______. Projeto de Pesquisa “Antropologia e educação entre-corporal”. Niterói: Facul-
dade de Educação/UFF, 2019b.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs, vol. 4. Lisboa: Editora 34, 2009.

HAVELOCK, Erik. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1996.

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petró-
polis: Vozes, 2015.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator-rede. Salva-


dor: Edufba, 2012.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Morula, 2019.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

33
Bordar coletivamente:
Um gesto menor que possibilita
o cuidado que liberta a Vida
por Cláudia Soares 1

RESUMO
Neste artigo, relato uma parte da minha pesquisa de Mestrado em Gerontologia Social
em que proponho reflexões e questionamentos em torno do cuidado com a Vida na atua-
lidade. O que vemos hoje é que a formação técnica prevalece com ênfase nas disciplinas,
nas especialidades e na tecnologia, resultando numa medicina que controla e exige auto-
controle do corpo a partir de um cuidado prescritivo, pois o que interessa é agir de modo
integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes vin-
culados à produção dos modos de existências, pautados pelo olhar do risco de adoecer e
morrer. Nesse sentido, falar do cuidado na atualidade é falar do cuidado da saúde com
enfoque no corpo biológico. Por isso, busco trilhar outro percurso a partir do encontro
da filosofia com a arte-manual elaborando um pensamento em torno do cuidado que nos
prepare para este mundo e libere as potências da Vida.

PALAVRAS-CHAVE: Bordado. Cuidado. Envelhecimento. Vida. Gesto menor.

1 Mestre em Gerontologia pela PUC-SP com a dissertação Velhices e envelhecimento: potências do cuidado tecido
nas dobras e redobras do bordado (2019). Terapeuta Antroposófica na Associação Travessia e Fundadora e Terapeu-
ta do Espaço Conexão Corpo.

34
Introdução
Vemos que atualmente os saberes constitutivos da Gerontologia não estão dissociados
do controle e do governo do corpo, isto é, da vida. Configura-se, desse modo, um dispo-
sitivo biopolítico em torno do corpo do velho, produzindo uma identidade da velhice,
uma formatação, que nasce do encontro entre saber e poder. O saber, isto é, os enun-
ciados e os regimes de veridicção do dispositivo gerontológico, não tem nada de pensa-
mento. Precisamos nos atentar que, de acordo com a filosofia de Gilles Deleuze (2000),
o pensamento é inimigo do bom senso e do senso comum (da doxa); é o pensamento
dobrado: pensamento que não mais está no desenrolar, no encadear, na subsunção re-
presentativa, na determinação ou na convocação dos fins.

Os enunciados produzidos pelos experts em envelhecimento, não só médicos, circulam


pela sociedade e se transformam numa espécie de imperativo que faz com que todos
repitam em consonância os mesmos enunciados e, também, acabem por controlar as
suas próprias condutas e dos demais em prol de uma vida saudável para se alcançar a
longevidade. Um dos efeitos é a Constituição de um novo sujeito: o sujeito-velho; ou
seja, outro equacionamento do direito e do aparato jurídico-político, em cuja criação de
todo um bloco de direitos de ‘minorias’ se insere o direito do velho. O velho como cida-
dão de direito, ou seja, “uma pessoa definida, registrada, vigiada, controlada, assistida”.

Entretanto, a constituição de um sujeito-velho não se dá somente no âmbito da cap-


tura pela lei, pelo direito e pelo Estado (transcendente), mas também na minúcia dos
exercícios de poder que atravessam a sociedade e marcam os corpos. Grande parte das
técnicas de poder se calca no controle da vida, próximo daquilo que Foucault (1988)
denominou como biopoder. Já as práticas de governo se dão no âmbito do cuidado da
população enquanto espécie, tratando de seus processos biológicos, como, por exem-
plo, taxas de natalidade e mortalidade, otimizando e gerindo a vida.

Podemos dizer que o poder se incumbe de fazer viver. Nesse sentido, trata-se de cuidar
da vida de toda a população a cada instante, individual e coletivamente, da vida miúda e
cotidiana de um velho, pois o que se busca é o bem viver que visa à longevidade de todos.

Assim, é exercício de cada súdito autogovernar-se e governar os demais, o que dissemina


as relações de poder por toda a sociedade e garante a eficiência dessas relações. Nesse

35
contexto, algumas abordagens buscam promover o cuidado com vistas ao desenvolvi-
mento de recursos para gerenciar doenças crônicas e/ou modificar estilos de vida, de
modo a melhorar o estado de saúde e bem-estar das pessoas. Tudo isso funciona por
uma racionalidade compartilhada por todos, em que o cuidado com sua própria vida se
confunde com o autogoverno a fim de se alcançar determinado modelo de vida.

Nesse sentido, podemos dizer que há um saber relacionado à velhice, ou seja, um mo-
delo, uma identidade maior, uma espécie de ideal que deve ser buscado por todos. Um
saber que, como foi dito, está entranhado nos enunciados e nas práticas de poder que
sujeitam o corpo do velho, mas também de toda sociedade. Entretanto, há um pensar
sobre a velhice, que é totalmente diferente do saber, pois este não se dá em relação a mo-
delos preestabelecidos, mas nas singularidades do envelhecer. Um pensar que se coloca
contra o bom senso e o senso comum do pensamento sobre a velhice, um pensamento
que viola a si mesmo e permite que pensemos o impensável. Não é uma tarefa fácil, no
entanto, é preciso aprender a pensar.

Segundo Foucault, é o contato visceral com a atualidade que nos obrigaria, ético-politi-
camente, a um trabalho do pensamento sobre o próprio pensamento. Por não se realizar
na impunidade da cultura, o ato de pensar remete à atitude política de resistência. Ao
comentar o estatuto do pensamento na obra foucaultiana, Gilles Deleuze afirma:

No momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se


aventura para fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar no-
vos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar tor-
na-se, como diz Foucault, um “ato arriscado”, uma violência que se exerce primeiro
sobre si mesmo. (DELEUZE, 2013, p. 132).

Buscamos mostrar, assim, que é possível que um corpo fuja da disciplina e se abra aos
afectos – potência de afetar e ser afetado. Esse processo se dá pela experimentação de
outra saúde, não aquela entendida como bem-estar, mas sim a saúde como produção
de vida. Não é uma saúde de ferro, de um corpo nunca acometido pelas enfermidades
da vida, mas a saúde de que goza uma vida artista, uma vida que se experimenta em um

36
momento “grande demais”. E não se trata de ser jovem ou velho para experimentar algo
grande demais, mas sim de inventar sua existência, sem perder do horizonte uma grande
saúde. Reconhecer que a vida é a arte de viver.

Em tempos apequenados em que vivemos, é urgente o debate acerca dos modos estabe-
lecidos para nos relacionarmos com o mundo, com os outros e conosco (éthos) e o estudo
do cuidado pode abrir a possibilidade de olhar a velhice sob a perspectiva da vida. Desse
modo, estudar o cuidado de si a partir da obra de Foucault não tem a intenção de buscar
algo perdido, mas sim nos fazer diferentes daquilo que somos.

Olhar para o envelhecimento sobre outra ótica não é instaurar um binarismo, muito me-
nos um julgamento, em que se oporiam dois modos de cuidar da vida. A questão é todo
um agenciamento no qual coexistem vetores de estratificação e formatação que contro-
lam e limitam o acesso às potências da Vida e do Cuidado. Além disso, há também uma
série de forças presentes que cavam buracos nessas formatações, que traçam linhas de
fuga, que abrem espaços no que está dado.

Hoje, o que pauta as ações em torno do envelhecimento e da velhice, nos diferentes âmbi-
tos da sociedade, é a política do Envelhecimento Ativo que possui diretrizes válidas, mas
que perde sua potência uma vez que o documento não problematiza o funcionamento do
capitalismo e seu poder em relação ao corpo e ao processo de subjetivação. Dessa forma,
ficamos presos a modelos formatados dos modos de vida daqueles que envelhecem.

Partindo de um percurso trilhado em torno desta política em projetos realizados ante-


riormente a este artigo, buscamos responder às seguintes perguntas: Mas será que é
possível vazar ao que está colocado na atualidade? Ainda é possível traçar novas rotas
e, mesmo dentro do sistema capitalista e produtivo em que vivemos, buscar as linhas de
fuga que nos permitam potencializar a vida? Quais são os possíveis caminhos a serem
traçados em um espaço onde as relações em torno da velhice se dão em consonância com
os modelos estabelecidos pela OMS de Envelhecimento Ativo? E também quais são as
linhas ainda não amarradas, as pontas soltas, as brechas para se elaborar um modo outro
de se relacionar com todas as questões e práticas de cuidado?

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Assim, na busca por novas possibilidades de envelhecimento que traduzam as potências do
cuidado, farejamos um experimento ético-estético que vem sendo vivido por um grupo de
mulheres que se encontra semanalmente para bordar há quase 20 anos. Ao acompanhar o
grupo de bordado Teia de Aranha é possível compreender como elas criam essa rota de fuga.

A metodologia escolhida para esta pesquisa foi a cartografia e, para tanto, mergulhei no uni-
verso dessas bordadeiras criando um projeto: bordar meu memorial. Nunca havia bordado
e, por isso, o processo foi intenso, apesar de contar com o apoio do grupo que, passo a passo,
de forma muito acolhedora, me conduziu para adentrar no universo do Teia de Aranha.

A primeira etapa é a de riscar e corresponde à fase da preparação de todo trabalho do bor-


dado. Mas antes temos que imaginar para criar o desenho e só então transferir o molde
do bordado para o tecido. Usualmente são utilizados desenhos em papel, papel vegetal
ou papel para pão, que são transferidos para o tecido usando lápis grafite. Então, fiz o
risco em papel craft e o transferi para o tecido.

Em seguida, separei linhas e agulhas para começar a espetar, contornar, alinhavar e preen-
cher percursos e indagações, além de arrematar os fios de linhas e dos pontos do bordado.
Passei a bordar e, a cada instante, mirar, admirar, apreciar não só o bordado, mas a minha
trajetória. Agenciar o bordado com a narrativa de experiências vividas. Fazer uma reto-

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mada de minhas experiências passadas considerando as minhas experiências presentes e
adentrar, assim, em outro tempo: o do ainda não vivido, mas já presente no bordar.

Além disso, na medida do possível, participei dos eventos, das viagens, das comemora-
ções que aconteciam paralelamente aos encontros semanais. E foi assim que pesquisa,
bordado e amizade foram sendo tecidos.

Ao frequentar o grupo, passei a refletir e a buscar respostas para novas perguntas: Que
mundos se tecem a cada ponto? Que pontos se tecem em cada mundo? Como se dá a
produção de novas subjetividades no tempo da velhice nesse grupo de bordado coletivo?
Que cuidado se estabelece no encontro entre amigas, literatura e bordado?

Grupo de bordado coletivo: Teia de Aranha


Teia de Aranha é um grupo de bordado coletivo criado por mulheres de diferentes ida-
des e que se reúnem semanalmente desde 2001. Elas bordam a partir da leitura de obras
literárias escritas, por exemplo, por Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Mia Couto,
Euclides da Cunha e também a partir das contingências da vida, tais como aniversários,
nascimentos, mortes etc.

39
São mulheres que bordam pelo prazer
do encontro e que tecem os fios das li-
nhas e os fios da vida. Elas não determi-
nam tempo para finalizar os seus borda-
dos, não aceitam encomendas e não os
vendem. Assim, estas mulheres estão na
contramão de uma sociedade capitalista
e produtiva já que a proposta do grupo é
apenas fazer com que seus bordados dia-
loguem com outras linguagens artísticas.
No entanto, os trabalhos são disponibili-
zados para exposições culturais, teatros,
shows, saraus. Estão sempre habitando
territórios de intercessão e fronteira. Te-
cem um envelhecer compartilhado entre
amigas. Tecem um envelhecer povoado
pela literatura, panos, linhas, agulhas.

Primeiro Bordado do Grupo Teia de Aranha – Painel Grande Sertão: Veredas.

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Encontro de Arte e Cultura
ao pé da Pirâmide do Sertão
– Morro da Garça – MG. Sa-
rau “7 garças para Marily”.

As reuniões acontecem todas às terças-


feiras, de 20h às 22h, na casa de uma delas.
Existe uma dinâmica familiar que nunca
é suspensa nas noites dos encontros. O
bordado estabelece outro território que
convive paralela e harmoniosamente com
o território familiar. Isso se repete a cada
semana, como um ritual. Assim, o grupo
Teia de Aranha, nesse espaço-temporal,
constrói o território existencial: a sala de
estar da casa de Maria Alice.

Podemos dizer que a sala de estar nesse


momento se configura como um “fora/
dentro” da casa: um espaço existencial
envolvido pela casa, mas que escapa às
suas dinâmicas. Também se configura
como um “fora/dentro” da sociedade,
Tia Anna, bordadeira do Teia de Aranha.
em relação a seus modos de cuidado. Sarau de lançamento do Calendário “Elas,
No grupo Teia de Aranha, o cuidado é alinhavos no tempo”. Grupo Mãos de Ariadne,
tecido no plano de relações produzido inspirado no Teia de Aranha.

41
nesse território existencial. Cuidado e tecido a partir do estar junto, do acolhimento às
diferenças e também da abertura para a produção da diferença por meio do encontro.
É, nesse momento, através do gesto de bordar entre amigas, que nos atentamos às
coisas mínimas e cotidianas que valem a pena ser vividas. É nesse momento que se dá
o cuidado com a Vida.

Cada projeto é um convite delicado a um investimento afetivo, corporal e vincular para


mergulhar no desconhecido e se fazer mais presente para viver e produzir ‘acontecimen-
tos’, inventando modos de criar, de se comunicar e de construir corpos. São mulheres
que sabem que nada pode ser programado na ordem dos encontros, pois não sabemos
o que iremos encontrar e, portanto, não há dúvida de que a vida é esse mergulho na in-
certeza. Isso não as assusta e nem as inibe de seguirem, ao contrário, é exatamente essa
incerteza que produz a energia que as faz avançar e criar. Incerteza como potência para
gerar inquietação, movimento, vida; inventar novos modos de ser.

Mas é preciso se preparar para os encontros, não apenas escolhendo os encontros que se
quer ter, mas exercitando um cuidado de si que permita enfrentá-los. É um exercício so-
bre si mesmo, visando não à conservação do que se é, mas, ao contrário, a transformação

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de si. No encontro dos corpos nada permanece o mesmo, pois se trata de um encontro
de forças que interagem entre si, ampliando-se ou subtraindo-se. O outro é a chave dos
encontros, mas esse outro não se reduz a uma pessoa.

Paremos para pensar nos encontros que se dão no grupo Teia de Aranha — encontro
com amigas, com obras literárias, com paisagens do sertão mineiro, com outros grupos
de bordados, com o teatro, com a música, com a dança, com os sabores, com a memó-
ria, com a política. Inúmeras forças interagindo, dobrando e se redobrando sobre cada
corpo, produzindo diferenças, possibilitando a construção dos próprios problemas, a
invenção de novos modos de existência e, sobretudo, novos modos de estarem juntas.
O que foi e o que será não importa. O que é mais importante é o [entre], lugar onde o
movimento acontece, onde se dão os devires. O que há na vida de mais vivo é o que está
acontecendo.

É preciso pensar como fazer de si um deserto que possa ser povoado por devires, mo-
vimentos, intensidades. Trabalho de criação e reinvenção permanente desse deserto,
tomando cuidado para não ser invadido, ficar passivo e à mercê do que entra nesse de-
serto. Não é o acúmulo de corpos estranhos, mas uma arte da composição e seleção na
aliança com a vida. Não podemos afirmar um Eu pré-existente que faria essa seleção,
mas um si que nasce dessa própria seleção.

Teia de Aranha, lugar de ser ou lugar de ter?


Para Deligny, ser é tramar. No percurso da pesquisa, fomos convidadas para bordar

[...] o que o aracniano nos ensina é que não se trata, para a aranha, de querer,
por meio da tessitura de sua teia, ter moscas; é tramar que importa. [...] O
aracniano não é um ter, mas, antes, um achado incessante, uma descoberta,
pontilhada de surpresas, sendo estas bem estranhas coincidências que só po-
dem ter lugar se o querer permanece limitado ao que pode fazer e ao que lhe
diz respeito. (DELIGNY, 2015, p. 65-66).

um dos quadradinhos da colcha de retalhos que seria presenteada ao neto de uma das
bordadeiras. Aprendemos a fazer um ponto chamado “trama” a fim de tecer uma lua:
a forma desenhada é preenchida ao traçar um percurso que não está predeterminado.

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As linhas não são conectoras de pontos preestabelecidos para se formar um ponto, pois
a ideia é fazer um entrelaçamento dos fios de forma que eles fiquem atados. Com este
ponto, cada lua bordada será diferente da outra, até mesmo se bordadas pela mesma
bordadeira, pois é impossível estabelecer um percurso idêntico.

E não é assim a vida? A vida surge ao longo dessas linhas-fios ou linhas de deriva. Ao
longo delas, pontos não são conectados, mas ultrapassados na corrente de movimento.
(DELEUZE & PARNET, 1998)

Qual é o modo de viver dessas bordadeiras?

Vidas que nunca estão exclusivamente aqui ou ali, vividas neste ou naquele lugar, mas
sempre no caminho de um lugar ao outro. Vidas que se desdobram não em lugares, mas
ao longo de caminhos, que percorridos, deixam uma trilha (INGOLD, 2015). Assim, no
ponto em que as bordadeiras se encontram, trilhas são entrelaçadas conforme a vida de
cada uma vincula-se à de outra. Isso se estende para encontros com outras pessoas que
não sejam bordadeiras, como cantores, artistas, contadores de histórias que atravessam
os caminhos do grupo. A partir dos relatos e percursos dessas bordadeiras, pensamos
esse tipo de movimento que observamos como peregrinação, uma vez que:

[...] o peregrino está continuamente em movimento. Mais estritamente ele é o seu


movimento. [...] Na verdade, o peregrino não tem destino final, pois onde quer
que esteja, e enquanto sua vida perdure, há algum outro lugar aonde pode ir. [...]
Para o peregrino, no entanto, o mundo não é apresentado como uma superfície a

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ser atravessada. Em seus movimentos, ele costura o seu caminho por este mundo,
ao invés de atravessá-lo de um ponto a outro. [...] O que forma, como já vimos,
não é uma rede de conexões ponto a ponto, mas uma malha emaranhada de fios
entrelaçados e complexamente atados. Cada fio é um modo de vida, e cada nó é
um lugar. (INGOLD, 2015, p. 221- 224, grifos do autor).

Grupo Teia de Aranha, uma rajada de vida. Mulheres que tecem agenciamentos, terri-
tórios, fluxos e vida. Bordar para afirmar a vida. Arte do bordado como cuidado de si,
modos de existir por uma estética da vida, pois “Viver — isto significa, para nós, transfor-
mar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge;
não podemos agir de outro modo.” (NIETZSCHE, 2012, p. 12, grifos do autor)

Esses corpos-fazedores das bordadeiras, ao saírem do território existencial criado pelo


bordado, continuam gestos que cuidam da casa, da família, do trabalho e de si. Mas
esses gestos agora estão atravessados pelas marcas deixadas pelos outros corpos-fazedo-
res, com suas diferentes vozes e olhares; pelas histórias lidas ou contadas nos encontros,
pela poesia vinda de outros amigos. Elas afetaram e foram afetadas. E, assim, as molari-
dades vão sendo quebradas e outros modos de ser e de convívio vão sendo produzidos.
Novas [c]o[m]posições de bordados e da própria vida.

Bordar coletivamente: um gesto menor


Os conceitos de Deleuze — acontecimento, devir, menor —, atravessados e rearranja-
dos pelas formulações de Erin Manning, em seu livro The Minor Gesture, produzem
uma composição curiosa e potente para pensarmos o gesto de bordar no grupo Teia de
Aranha. Manning trabalha para criar um campo de ressonância para o menor e diz que
o “gesto menor é a força gestual que abre a experiência para seu potencial de variação. O
menor realiza isso do meandro da própria experiência, ativando uma mudança de tona-
lidade, uma diferença de qualidade.” (MANNING, 2016, p. 1, tradução livre). Segun-
do Manning, em ressonância direta com Deleuze, as estruturas da vida cotidiana são
igualmente da ordem do acontecimento. E, sendo assim, como em todo acontecimento,
podem ser moduladas por gestos menores.

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Falar em gestos menores é falar de tudo aquilo que, conscientemente ou não, desestabili-
za certo sistema de controle e normatização. Em alguns casos, é preciso um nível de abs-
tração para encontrar alguns padrões gestuais, de comportamento, linguagem, para que
“desaprendamos” aquilo que já havia sido marcado em nosso corpo. Entretanto, um gesto
menor pode emergir de qualquer prática sensível desestabilizadora. O gesto menor pode
ser compreendido quando não é observado a partir de um dispositivo panóptico externo,
julgador, um aparato policial de julgamento, mas sim a partir do próprio acontecimento
ou em sua nova acontecimentalização por meio de um pragmatismo especulativo.

Todo o ideal imaginário de controle é o de que devemos desenvolver estratégias anterio-


res aos futuros atos para torná-los subversivos ou reiterar seus elementos conservadores,
ainda que isso não se configure, de nenhuma maneira, um novo e estável agenciamento.
“Nós queremos acreditar que podemos decidir aonde o acontecimento nos levará. Isso
é uma miragem que subestima a força do involuntário em nosso cotidiano.” (MAN-
NING, 2016, p.21, tradução livre)

O gesto e a possibilidade de produzir novas concatenações de causas e efeitos materiais


que consigam quebrar as rotinas e os códigos dos dispositivos de controle e de julga-
mento devem ser localizados no campo do acontecimento, não por meio de uma des-
crição externa, mas de dentro dele, em algo que pode ser definido como uma presen-
tificação das relações nas quais estamos envolvidos e que nos produzem como sujeito.

Assim, o gesto é operativo e material, é um ativador, que desloca a organização dos cor-
pos e das ideias. O sujeito, no caso, é sempre o sujeito da experiência. “Condições devem
ser inventadas, no acontecimento, para torná-lo operacional. Esse tornar operacional, do
interior do próprio acontecimento, produz não somente novos modos de vida, mas uma
vida mais vivida.” (MANNING, 2016, p. 37). A autora ressalta, desse modo, a proposta
ética de uma mudança na maneira de perceber, sentir e lidar com o contato de corpo com
o mundo experiencial. Podemos dizer que essa é uma questão micropolítica de como
viver intensamente, viver de maneira plena, com poderes de existência aumentados.

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A pesquisa, junto ao grupo de bordado coletivo Teia de Aranha, buscou construir ou-
tro sentido de cuidado em íntima conexão com a vida. Trata-se de um cuidado que
honra as complexas formas interrelacionais e cria modos de encontro para a diferença.
Bordar coletivamente no grupo Teia de Aranha: um gesto menor, que afirma a vida e
acredita neste mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter PálPelbart. São Paulo: Editora


34,2013.

DELEUZE, G; PARNET, C. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São


Paulo: Editora Escuta, 1998.

DELIGNY, F. O Aracniano e outros textos. Tradução de Lara de Malimpensa.


São Paulo: n-1 edições, 2015.

FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução


de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.

INGOLD, T. Estar Vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e des-


crição. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

MANNING, E. The Minor Gesture. Durham: Duke University Press, 2016.

NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:


Companhia das Letras, 2012.

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Caminhar com as mãos:
Modus para tecer
inoperâncias na rua
por Fernanda Rodrigues Perondi1

Estamos imersos na civilização das máquinas e na cultura dos mecanismos em que a


velocidade tem o seu valor absoluto. Caminhar é “um ato de insubordinação a essa ide-
ologia, um ato contra essa tirania.” (LABUCCI, 2013, p. 39). Um gesto que desarticula
a técnica, que abre uma sutura na cadeia da utilidade da técnica. Caminhar atrás das
pernas: ausentar os fins a fim de reparar no tempo. Labucci vai ainda afirmar que “cami-
nhar é um triplo movimento: não nos apressar; acolher o mundo; não nos esquecer de
nós mesmos no caminho.” (LABUCCI, 2013, p. 39).

O verbo “caminhar” produz o caminhante; o movimento dos passos constrói o caminho.


Eis que, a partir dessa perspectiva, identifico na caminhada dos pés o mesmo gesto da
caminhada das mãos nos trabalhos manuais como um desmonte contemporâneo das
demandas do trabalho, do consumo, da velocidade etc. Caminhar é um desmonte tem-
porário das diferenças sociais, em que todos tornam-se ordinários.

Acontecimento 1: Eu estava assistindo a uma conferência de Maria Filomena Mol-


der, escritora portuguesa, em Lisboa, fazendo crochê, quando ela disse: “Só começamos
depois de continuar.” Eu estava a crochetar qualquer coisa enquanto ouvia Filomena.

1 Graduada em Teatro pela UNESPAR/FAP. Mestranda em Teatro pela UDESC. Pesquisa de Pós-Graduação
orientada pela Profª. Dra. Bianca Scliar Cabral Mancini

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Quando a frase é dita, o fazer das mãos toma uma proporção tamanha que frase e fazer
renascem juntos naquele momento. A trama-qualquer-coisa só seria começada depois
de continuar a ser-qualquer-coisa.

Acontecimento 2: Caminhando na rua, reparo no gesto da caminhada. A possibili-


dade de caminhar atrás das pernas me desacelera e esvazia a função de locomoção que
há nas pernas. Caminho para passear por dentro da própria caminhada. Escuto o mo-
vimento contínuo da cabeça do fêmur deslizando por dentro do quadril, o soltar e o
firmar dos joelhos, o crânio que paira leve sobre a coluna, os olhos que se aconchegam
na paisagem, a coluna flutuante, a ponta dos dedos dependuradas nas mãos, a cidade
acolchoando cada passo, a calçada que parece sempre o mesmo pedaço de calçada. Não
feito metáfora, mas feito fisicalidade - eu estou a acompanhar a formação do corpo, con-
tínuo aparecer da forma, contínua aparição do mundo.

Acontecimento 3: Alguém dança em pé, outros estão sentados a ler e a conversar; eu


estou tricotando. Em dado momento, levanto o olhar das minhas mãos para o Largo.
A experiência é de uma compreensão de cidade que chega por inteiro. Minhas mãos
continuam a caminhada enquanto o olhar aprende sobre a passividade da visão, sobre o
gesto inverso que é deixar que a imagem lhe chegue, ao invés de olhar por dentro aquilo
que está fora. As mãos, na altura do plexo solar, tecem o pulsar do coração.

Acontecimento 4: Às quartas-feiras, durante o ano de 2016, estou na casa da tia de


uma amiga fazendo trabalhos manuais com outras pessoas que se reúnem por ali para
exercitar as mãos. Aquele ajuntamento de pessoas se denominou “Coletivo Com as
Mãos”. Rosana, a tia da minha amiga, é professora de trabalhos manuais numa escola
waldorf e propositora de tal Coletivo. Motivada por esses encontros, em fevereiro de
2017, foi inaugurada a prática “Com as Mãos na Rua”, que consiste em fazer trabalhos
manuais no espaço urbano. Naquele ano, às sextas de manhã, estou na escadaria Júlio
Moreira, uma passagem entre a praça Tiradentes e o Largo da Ordem, no centro histó-
rico de Curitiba, fazendo trabalhos manuais.

Perguntas: “Fazer trabalhos manuais na cidade pode tecer porosidades que desmeca-
nizem as lógicas hegemônicas?” “Pode, desse caminhar com as mãos, emergir uma ex-
periência que, citando Eleonora Fabião, turbine a relação do cidadão com a pólis, que

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o aproxime do tempo, do espaço, do outro, consigo mesmo?” Pois bem, esse primeiro
momento é uma ginástica da pergunta: “Como ‘Com as Mãos na Rua’ negocia outra
forma de viver no mundo?”

“COM AS MÃOS NA RUA”: AÇÃO PARA TECER A CIDADE


Convido uma amiga e vamos para o Largo da Ordem, centro histórico de Curitiba.
Sentamos numa mureta, depois ao lado da porta da igrejinha e, por fim, caminhamos
fazendo trabalhos manuais. Chegamos numa escadaria que tem ao fim do Largo. Nos
demoramos por ali. De sexta em sexta, foram se achegando outros conhecidos.

Somos quase sempre um coletivo de cinco pessoas sentadas na escada fazendo tricô, cro-
chê e bordado, de 9h às 12h. Os passantes nos cumprimentam com um “Bom dia” ou per-
guntam se é um curso de trabalhos manuais ou já chegam empolgados contando uma his-
tória sobre um parente que borda. Um moço chamado Flávio pede licença para se sentar
e fica por duas horas conosco. Ele conta sua vida inteira, pede dinheiro antes de ir embora
e segue. Eventualmente, quando chove, às vezes só tem uma pessoa a trabalhar as mãos.

Minha participação se deu de fevereiro de 2017 até janeiro de 2018 de forma quase inin-
terrupta. Depois, a minha demanda de mudar de cidade por conta do Mestrado redire-
cionou a prática: passei a carregar agulhas e fios de lã por onde vou.

C o m ã o z a r: palavra-verbo que nasceu entre nós, traduzindo o fazer manual na rua. Tem
a ver com se pôr a escutar e habitar o mundo por dentro do gesto das mãos. Nas mãos, são
tecidas as paisagens urbanas. Numa sexta-feira, estava apenas eu quando um senhor che-
gou e disse: “Onde eles querem que você passe, pare. Pare na frente deles. Eles querem que
você não pare para que eles passem, para você ir, mas pare. Não faça o que eles querem!”

Enquanto eu bordo, a cidade se tece, as relações se entrelaçam e o entendimento de uma


presença revolucionária, em sua sutileza, floresce. Fazer trabalhos manuais na cidade,

é antes de tudo ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte
que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e
um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento se define antes de
tudo por sua capacidade de des-criar o real. (PELBART, 2016, p. 339).

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INOPEROSIDADE, O USO IMANENTE DE SI E DO MUNDO
A pesquisa etimológica do verbo chresis, feita no livro “O uso dos corpos”, de Giorgio
Agamben, tornou-se referencial indispensável para esta pesquisa. No Capítulo II, inti-
tulado Chresis, apresenta-se o verbo grego chresis, traduzido por uso na língua portugue-
sa. Chresis parece não ter significado próprio, mas assume diferentes sentidos conforme
o contexto. Nem ativo nem passivo, é um verbo médio que indica um processo que tem
lugar no sujeito, ou seja, o sujeito realiza algo que se realiza nele. Por exemplo: “(...)
chresthai logoi significa literalmente “usar a linguagem” = falar; chresthai te polei, “usar a
cidade” = participar da vida política; chresthai symphorai, “usar a desventura” = ser infe-
liz.” (AGAMBEN, 2017, p. 44)

O que essa reflexão evidencia é que o verbo em questão não significa utilizar-se de algo
somente, mas trata-se todas as vezes de uma relação-com, como, por exemplo, somatos
chresthai, usar o corpo, que significa “a afeição que se recebe enquanto se está em relação
com um ou mais corpos.” (AGAMBEN, 2017, p. 48). Eis que, nessa argumentação, a
construção de sujeito e o mundo se apresentam como processos, pois o uso supõe o uso
de si e do mundo como relação primeira e imediata do ser, e que se dá in-ato da relação.

Agamben nos apresenta o ser-já-antecipadamente-em-relação-consigo-em-um-mundo,


que é a forma de vida em relação de absoluta e recíproca imanência com o mundo. Nesse
caso, o uso emancipa-se completamente de toda relação com um fim predeterminado a
fim de afirmar a relação do ser vivo consigo mesmo para além das finalidades:
Essa noção faz refletir a arte contemporânea e as liminaridades que ela assume em rela-
ção à vida cotidiana, ordinária.
[...] na descoberta do uso de si mesmo o que se destaca é a relação com; o meio
e as coisas com as quais um “si” se relaciona, incluindo a si mesmo. Tais relações
trazem à tona o uso de si e o uso do mundo num sentido desapropriador, que
não tem por finalidade fazer uso útil de nada, que não pretende tornar o mundo
objeto de propriedade, só de uso. (AGAMBEN, 2017, p. 78).

CO-MOVER, OU A AÇÃO DAS PARTES


Distanciando-se de um improviso relacional, o que se instaura na prática “Com as Mãos
na Rua” são presenças cotidianas, que assumem em si um campo relacional com o en-

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torno, sem antever o que vem, mas na escuta do que ali está. Engajados mais em susten-
tar um encontro permeável do que necessariamente em atrair pessoas a fazer trabalhos
manuais, tenciona-se assim a questão da participação na arte contemporânea. Sabemos
que a interatividade com uma obra de arte não é neutra em relação ao poder e, de acordo
com Foucault, entre “os mais odiosos regimes de poder estão aqueles que impõem um
imperativo de participar, particularmente se o imperativo é “verdadeiramente” ou “auten-
ticamente” se expressar.” (MASSUMI, 2008)

Até hoje ninguém parou e sentou para fazer trabalhos manuais junto conosco. O grupo
formou-se mais pelo boca a boca de que eu estava lá toda sexta. Ainda assim reparo que
a questão da participação foi em muito ginasticada por nós.

Numa sexta, aproximou-se um rapaz, Flávio. Disse-nos “Bom dia” e perguntou se podia
se sentar conosco. Alguém respondeu com um sorriso levemente sarcástico que a rua
é de todo mundo. Ele começou a contar sua vida e logo pedi licença para gravar nossa
conversa. Respondeu-me com um sorriso animado: “Eu sou do mundo, pode gravar!”

FLÁVIO COM AS MÃOS E O CORPO TODO NA RUA


Flávio – “Um dia, ele dura, tipo assim, 60 horas. Eu já fiquei em situação de rua, mas
pras pessoas que estão na rua, tipo assim pra sociedade, a única coisa que serve é catá
lixo reciclável, porque a sociedade vê como se as pessoas fossem originárias do lixo.”

Aline – “E essas pessoas, às vezes, muito humildes de informação e conhecimento do


mundo, são extremamente alienadas. A sociedade aliena, põe à margem, põe na rua por-
que não tem documento pra alugar uma casa. Cara! É muito desumano!”

Flávio – “Olha, eu vou te dar uma outra perspectiva. Você vai se assustar! Na rua, pas-
sa fome quem qué, anda sem documento quem qué e passa frio quem qué… Vai muito
do que a pessoa qué.”

Aline – “Sim! Do entendimento da vida dela também, dela enquanto pessoa, porque...”

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Flávio – “Sim, mas eu vô te dá outra perspectiva que vai te chocar: 99% das pessoas que
estão na rua escolheram estar na rua e preferem ficar na rua.”

Fernanda – “É que querer inserir nessa lógica de trabalho também não é o que as pes-
soas querem, do tipo: ‘Ah, vem aqui eu vou te dá um trabalho’. Você vai trabalhar, sei lá,
12 horas por dia pra ganhar 30 reais. Não, eu vou continuar na rua…”

Flávio – “Olha, gente, eu vou ser bem sincero, eu sou formado, sou publicitário e o que
eu ganho na rua supera o meu salário...”

Aline – “Eu imagino. Talvez eu tenha uma visão que eu precise morar numa casa e ter
um emprego…”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, G. O uso dos corpos [Homo Sacer, IV, 2]. São Paulo: Boitempo Edito-
rial, 2017.

FABIÃO, E. Performance e teatro: poéticas de políticas da cena contemporânea.


Sala Preta, 8, 2008, p. 235-246.

LABBUCCI, A. Caminhar, uma revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

LEIDERFAR, L. Maria Filomena Molder: “Só começamos depois de continuar”.


Expresso Impresa Publishing S.A., 28 maio 2016. Seção Sociedade. Disponível em:
<https://expresso.pt/sociedade/2016-06-06-Maria-Filomena-Molder-So-comecamos-
depois-de-continua>. Acesso em: 27 out. 2019.

MASSUMI, B. O Pensamento-Sentimento do Que Acontece. Canadá: Revista IN-


FLeXions, nº 1, 2008.

PELBART, P. O Avesso do Niilismo, cartografias do esgotamento. São Paulo, SP:


N-1 Edições, 2013.

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Escutas que o fio traz:
As artes-manuais
como caminho de cuidado
de si e do outro
por Juliana Carvalho de Assunção Ribeiro

RESUMO
Pretendo investigar as artes-manuais enquanto caminho de observação e cuidado a ser
trilhado através da experiência de se estar presente e atuando, com as próprias mãos, em
fazeres com linhas e fios. A prática de manualidades como elemento catalisador a permitir
uma maior percepção do indivíduo e das suas necessidades faz parte das reflexões deste
artigo. A investigação recai sobre alguns fazeres das artes-manuais dos fios – tais como
crochê, tricô, bordado e costura – e, ainda, nas possibilidades de atuação de tais dispositi-
vos na saúde e no bem-estar. Entendo que as artes-manuais podem servir como ferramenta
terapêutica e me questiono de que modo e em quais circunstâncias isso pode acontecer.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-Manuais. Mãos. Saúde. Vozes femininas.

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INTRODUÇÃO
Nas linhas a seguir, busco refletir sobre a possibilidade de as artes-manuais1 serem consi-
deradas um possível meio de proporcionar maior bem-estar e vitalidade. Um dos fatores
que me inquieta – e que me conduziu ao assunto – é a percepção de uma provável subutili-
zação das mãos, em funções as mais rotineiras, e do consequente impacto disso na saúde.

Seria o uso das mãos, e suas possibilidades de produção, um importante caminho para
o estímulo da imaginação e o fortalecimento da capacidade criadora? Nesse percurso
de observação, questiono-me em que ponto o contato com o material, o ambiente e os
fazeres manuais poderiam levar a encontros e escutas, capazes de acionar positivamente
tudo aquilo que envolva o âmbito do sentir.

Penso na possível sensação de vitalidade e pertencimento aos que experienciam os fazeres


manuais e sobre a importância dessa percepção “eu-como-parte”, “eu-no-mundo”. Poderia a
vivência com fios e agulhas, e a qualidade e as especificidades desses materiais, atuar como
elemento sanador? Tais vivências facilitariam conexões e poderiam fortalecer vínculos?

A possibilidade de as artes-manuais atuarem de forma terapêutica é a motivação para o


estudo do qual faz parte esse artigo. O fazer com as próprias mãos talvez possa indicar
um caminho no qual atue como catalisador de processos que levariam a uma harmonia
nos sentires, por seu possível potencial de acessar memórias e vivências do ser humano,
trazendo uma maior percepção de um estado de equilíbrio.

A TEIA: ARTES-MANUAIS, MULHERES E SENTIRES


Meu caminho nas artes-manuais se fez essencialmente após a maternidade, em meio a ou-
tras mulheres, entre conversas, trocas, olhares. E em muitos momentos se deu no contato
tão próximo de corpos e mãos, realidades ali a se compartilhar, desde os mais amenos co-
mentários sobre rotinas diárias até nossas tantas dúvidas, receios e planos diante da vida.

1 Artes-manuais e seu hífen. Hífen que apontaria para um lugar que se ocupa entre a arte e o artesanato, entre o artista
e o fazer manual. Um “entre” a indicar a existência dessa condição e o tensionamento nessa relação.

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Planos que muitas vezes se iniciavam tímidos, entre os fios e agulhas, e se fortaleciam,
tomavam corpo ou até mudavam de rumo no decorrer desses encontros. E em cada vi-
vência me despertava a atenção ao que, muitas vezes, se revelava no ambiente. Existiria
algo a favorecer todos aqueles sentires que ali se colocavam? Que magia era aquela a
possibilitar que juntas, a pretexto de confeccionarmos pequenas peças e desenvolver-
mos habilidades com nossas mãos, deixássemos fluir o que ia tão dentro de nós? Seria o
ambiente propício? O fazer das mãos e as técnicas experimentadas? Ou ainda o contato
com determinado material?

Com frequência, nesses encontros em torno dos trabalhos manuais, havia uma sensação
como se nos entrelaçássemos em uma teia afetuosa, segura. E com a percepção das qua-
lidades que eu imaginava sobre uma teia: alguma resistência na estrutura, apesar da apa-
rente delicadeza no entrelaçamento dos fios individuais. Cada uma com suas próprias
histórias, a carregar vivências, mas a encontrar-se em algum ponto. Fios que, apesar de
delicados, se cruzavam, garantindo sustentação.

A resistência pela delicadeza sempre me deu a pensar. E as memórias que vieram à tona me
trouxeram certas lembranças: de minha admiração, desde a infância, pela resistência e en-
frentamento mais sutis, pela força e vigor que poderiam vir também com um tanto de beleza.

A aproximação com as artes-manuais em consonância com minhas inquietações sobre uma


melhor forma de estar e se colocar no mundo reforçaram questionamentos que já vinham
reverberando dentro de mim. Seria o fazer manual um elemento a possibilitar o fortale-
cimento de nossas potencialidades? Poderia considerá-lo enquanto dispositivo capaz de
favorecer um caminho de maior observação e cuidado com nossas próprias necessidades?

Nas vivências as quais tive a oportunidade de estar, segui a ouvir as vozes daquelas mu-
lheres e a buscar apurar a escuta. E penso que novos elementos sobre o tema talvez
possam se revelar por algumas falas que trago a seguir.

Tão logo nos reunimos, em mais um encontro dedicado às manualidades com os fios,
materiais escolhidos e assuntos já a preencher aquele espaço, uma voz se coloca: “Quan-
do desejo suavizar meu dia ou fazer um afago em mim mesma, penso logo em fazer algo

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com as mãos. E tem dias que não quero nada que já esteja começado! Quero a novidade,
quero um projeto iniciado do zero. Ontem mesmo fui pegar meu crochê, mas olhei aquela
agulha mais grossa, e não animei, logo a larguei. Parece que eu precisava de algo mais de-
licado; foram os fios mais finos que me chamaram”.

Quando o assunto surge, muitas vezes se sucedem relatos a conversarem entre si: “Às vezes
me vem o medo, não sei se trazido pela mente e alimentado por minhas inseguranças. Aí, o
corpo parece ser tomado por um mal-estar. A barriga que dói, a respiração que encurta ou o
pensamento que se turva. Acabo por buscar uma agulha. Tenho algumas pequenas sacolas,
com trabalhos iniciados: tem sempre mais de um crochê pelo caminho, alguns poucos borda-
dos, um tricô. E, quando percebo, minha mão já escolheu o que precisa naquele momento”.

Algumas narrativas parecem levar a pontos que se encontram, como uma percepção
do trabalho manual enquanto apoio no olhar para si mesma, para as emoções que nos
tomam em determinados momentos. E seria o próprio fazer das mãos o responsável
por abrir um espaço-tempo de forma a possibilitar essa observação de sentimentos e
sensações? Seriam as agulhas e os fios o que nos levariam nesse caminho de percepção e
cuidado de si, de produção de algum silêncio interno ou em torno?

Ainda nesse sentido, surge outra fala: “Penso que preciso terminar trabalhos iniciados,
finalizar etapas que ali ficaram incompletas. Mas o que me diz essa incompletude? O que
falta para que [os trabalhos] se encerrem? Tempo? Inspiração? Vontade? Espaço e momen-
to adequados? Pego o material para concluir o bordado, escolho as cores, separo-as. Mas
sinto que o tempo pesa sobre mim como um grande relógio a se impor. Com alguma afli-
ção, pego um fio comprido e corto. Comprido demais para que flua com ritmo adequado,
percebo ao primeiro embolar dos nós... os nós ali, no avesso do pano, no meu avesso. Mas
o que embola o fio? Talvez a frouxidão? Não é necessária certa tensão para que se teça
e produza de forma adequada? Com o passar dos dias, olho aqueles mesmos trabalhos e
penso: ‘Por que não me satisfazem? Será mesmo que há ali uma falta, um desacerto?’”

Parece-me um corpo na investigação de si, a produzir gestos que permitam trazer mais
à superfície elementos muitas vezes silenciados ou adormecidos. E o que é capaz de
despertar o corpo e os nossos sentidos? Ou será esse corpo que desperta os sentimentos
que nos habitam? Podemos, através dele, acessar nossas memórias?

57
MÃOS QUE SENTEM E CRIAM
Ela adentra a sala esbaforida, com criança em um braço e sacola no outro. Entra falando
sobre seu cansaço, sua realidade atual de dormir pouco e correr mais do que gostaria.
Lamenta a falta de paciência com os filhos bem pequenos e também a falta de tempo
para si. Os olhares e as palavras a apoiam, mas são logo interrompidos por ela mesma,
que parece ter pressa em mostrar o que trouxe. Espalha sobre a mesa o material, leve,
colorido. Ele se avoluma à frente dos olhos e todas se animam. “Que cores!”; “Veja este!”;
“Tenho mais agulhas aqui, posso emprestar!” Os sorrisos e falas, todos ao mesmo tempo,
preenchem a sala. Ela amamenta, a criança adormece, tudo se acalma. E o sorriso se
abre, diante dos planos que ali surgem, já com as mãos a se movimentar.

E os dias nos encontros em meio às artes-manuais seguem assim: alguns de mais si-
lêncio, a parecer um silêncio concentrado. Outros atravessados por desabafos. Há os
momentos de sorrisos calmos, de gargalhadas a preencher o ambiente ou ainda de lá-
grimas incontidas. Confissões a se compartilhar sobre a casa, os filhos, sobre tanto do
que abarca o feminino.

As questões sobre a infância se fazem bastante presentes dentre os temas que mais sur-
gem nesses momentos do fazer em grupo que presencio. É também um tema caro a mim
e que acaba por se refletir na presente investigação.

Minha primeira experiência com as mãos, agulhas e fios tinha se dado lá na infância, ain-
da bem pequena, diante da paciência de uma querida tia que se alegrava ao me ensinar.
Cachecol para a boneca, foi isso. Tenho a lembrança de me sentir incrível ao fazer aquela
pequena peça apenas com um fio e duas agulhas. E quando refiz o contato com tais artes
dos fios, já na fase adulta, peguei-me a buscar na memória aquela experiência de tantos
anos atrás. Ali tive a percepção de algo como uma memória do corpo, que guardava em
si os gestos daquela primeira experiência. E como isso seria possível... tantos anos de-
pois? A alegria do resultado do trabalho feito à mão me parece que foi a mesma, o sorriso
e o brilho no olhar daqueles tempos infantis. Mas e a insegurança ao pegar aquela fer-
ramenta que não mais me era familiar? E a dúvida se instalou, criando certo receio – de
fato, eu seria capaz de realizar aquele trabalho? Seria mesmo então a memória do corpo
a atuar, trazida pela repetição do gesto?

58
As mãos humanas, assim como os olhos, possuem alta capacidade de percepção e distinção.
Elas possuem direta ligação com nosso cérebro e em toda a sua extensão. Na palma, nas
laterais, ao longo dos dedos ou em suas pontas, existem diferentes terminações nervosas.

O não uso adequado delas poderia nos levar a uma atrofia de nossas capacidades, com-
prometendo o desenvolvimento do indivíduo, de possíveis habilidades e experiências.
A habilidade de “ver” com nossas mãos estaria ligada ao fato de que, através delas, iden-
tificamos de maneira concreta e palpável a unidade das coisas. São as mãos, diretamente
ligadas ao cérebro, que nos trazem as vivências na materialidade, possibilitando a per-
cepção da capacidade de atuação do ser humano no ambiente em que vive 2.

Não apenas na infância, e sim por toda a vida, tateamos o mundo pelos sentidos e, por
eles, poderíamos melhor nos guiar, percebendo que somos parte, apreendendo seus ci-
clos. Isso parece nos orientar, nos situar e nos vitalizar, aumentando nossa capacidade
de compreensão e de atuação, além de nos mostrar a possibilidade de habitar nossa rea-
lidade com mais significado.

As escutas que os fios trazem me conduzem pelas possibilidades que as mãos podem
ocupar ao nos relacionarmos, ao atuarmos no mundo e nele materializarmos nossas cria-
ções, intervindo de maneira única. Somos mão, toque, gesto, escuta e expressão, como
um retrato da alma, ao atuarmos na concretude da matéria, fortalecendo nossa individu-
alidade e produzindo futuro. Nosso agir no mundo através das mãos indica potência no
caminho de um atuar criativo e parece revelar também intenções, sentimentos, sensibili-
dades e expressões mais íntimas.

O fazer manual talvez seja dispositivo possível a nos dar a dimensão do pertencimento,
3
da concretização de ideias através da arte, fortalecendo nossa vontade . Para além disso,

2 No livro O Artífice, de Richard Sennett, o autor aborda a íntima ligação mão-cérebro-olhos e analisa a relação entre o
trabalho do fazer manual, seus gestos e significados, e o desenvolvimento/fortalecimento de valores éticos. (SENNETT,
Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009).

3 Vontade, aqui, destacada como força criadora e impulso de realização no mundo. Enquanto energia a movimentar o fazer
humano, atua tal qual motor de nossas ações. Daí seu lugar de importância em cada caminho de desenvolvimento, pois seu
fortalecimento nos leva a agir, com ânimo, em direção ao futuro, no esforço de criação e realização do que se deseja.

59
parece ainda nos revelar o permanente decurso do tempo, pois somos parte do processo
de realização do que virá. Ele nos insere no contínuo correr das horas e no caminhar dos
dias, coloca-nos na contagem do ponto-a-ponto, do fio-por-fio.

O FAZER COM AS MÃOS E O CUIDADO DE SI


Ela ganhara de presente um novelo, diferente daqueles que costumava ver. Um novelo
bem grande, muitos metros de uma mistura de lã com algodão, macio ao toque. Mais de
uma cor se mesclava naquele fio. Ela adorava aquele tom de verde e, também, a mistura
com o azul, que a agradou demais. Começou a pensar em fazer algo especial para si mes-
ma, essa era sua vontade. Um xale. Tecer um xale para si parecia ser o que precisava na-
quele momento. Será que queria o desafio de uma peça grande, que lhe exigiria atenção,
paciência e persistência? Talvez quisesse mesmo uma certa orientação dada por aquela
receita pronta, em tempos nos quais sentia-se atordoada com notícias e afazeres. Mas o
que lhe agradava mesmo era pensar naquela grande tessitura a cobrir suas costas ou seu
peito, a envolvê-la como um abraço. Parecia um abraço naquela que ela se tornou, por
caminhos não óbvios. Um abraço dela para ela mesma, construído com tempo e aten-
ção. Um tempo de afeto dedicado ao próprio cuidado.

Um olhar sobre si mesma, atento ao que se é e ao que se sente, a possibilitar ainda uma
percepção sobre o que se tornou. Relatos como esse preenchem alguns dos espaços de
fazeres manuais que frequento, compartilhados com outras mulheres e permeados pelo
movimentar das mãos.

Nesse percurso, a refletir sobre o que consistiria ou levaria a uma vida com maior qua-
lidade, considero determinada noção de saúde: não o simples oposto de doença, ou um
ser livre de males que acometam o corpo físico, mas o ser humano diante do mundo e,
especialmente, inserido nele e capaz de atuar nesse lugar.

4
Apoiei-me aqui na noção de Salutogênese , que tem seu enfoque em indagações acerca
de determinada compreensão da saúde humana: o que a origina, o que a mantém e o que
a protege? Quais são nossas fontes de vitalidade? Quais podem ser nossos caminhos a

4 Do latim salute = saúde e do grego génesis = geração.

60
garantir uma vida de mais qualidade para além do aspecto puramente físico, mas consi-
5
derando o bem- estar do ser humano de forma integral?

Não é o intuito me aprofundar nos estudos da Salutogênese nas linhas deste artigo, mas
me inspirar por seus princípios que indicam um certo olhar sobre as condições de vida
específicas e individuais. Por esse paradigma de compreensão da saúde, pergunto-me
o que capacita o indivíduo a lidar com situações adversas e desafiadoras mantendo seu
estado de bem- estar de maneira integral.

Considero, como hipótese, que as artes-manuais com os fios poderiam atuar enquanto
dispositivos capazes de viabilizar a promoção de um viver com maior qualidade. Tal-
vez não sejam a garantia de um viver mais saudável, mas sim de um campo fértil que
possibilite meios de auto-observação e autoconhecimento sobre nossas questões, sobre
o que nos traz equilíbrio, sobre o que nos levaria a alguma resiliência, flexibilidade e
resistência diante de situações várias que possam se apresentar e, muitas vezes, causar
adoecimento ou perda de vitalidade.

Nesse sentido, algumas percepções surgiram: “Meu caminho com as mãos me coloca em
um certo lugar de observação: do meu corpo, da respiração, dos meus pensamentos. Come-
ço a tricotar e sinto às vezes como se assistisse aos pensamentos dentro da minha cabeça.
Parece que, em muitos momentos, eu os deixo passar, de forma proposital. Porque estou
empenhada em seguir tricotando ou porque desejo terminar o trabalho. Ou porque quero
mesmo fugir de alguns pensamentos. Algo me leva a seguir num ritmo, ainda que eu não
saiba quando aquele tecer chegará ao fim. Cada parte de fio que se transforma em ponto
parece prender ali, muitas vezes, minhas preocupações.”

Bem ao seu lado, com as mãos trabalhando, outra companheira de grupo dizia que, quando
por vezes sentia-se aflita ou imersa em preocupações mais urgentes, percebia que acelerava

5 “A Salutogênese traz a possibilidade de um novo olhar, não mais na direção da doença e de seus fatores externos, mas um
olhar para a saúde, considerando sua origem e sua promoção. Tem por objetivo chamar a atenção para o desenvolvimento
das fontes de saúde e de cura individual e social, e de como isso pode ser feito mediante um aprendizado contínuo numa
educação intra e extraescolar, configurando um trabalho que acrescenta um desenvolvimento interno ao ser humano. (...)
Pesquisar as origens da saúde, de onde ela provém e como pode ser fortalecida; estudar como o organismo pode lançar mão
de suas próprias forças que, estimuladas adequadamente, reverterão em vitalidade e saúde – esse é o caminho proposto pela
Salutogênese.” (MARASCA, Elaine. Saúde se aprende, educação é que cura: da Pedagogia Waldorf à Salutogênese. São
Paulo: Ed. Antroposófica, 2009, p. 116-117).

61
o movimento, intensificava o entra e sai da agulha. E, segundo ela, seu tecer mais intenso
costumava ir diminuindo o ritmo quando do peito vinha um suspirar mais profundo. Inspi-
rava forte e expirava por vezes pela boca, a retirar de dentro de si algo que não cabia mais.

Talvez sejam os fazeres que aguçam os sentidos, ou o movimento rítmico repetitivo a dar
cadência à respiração ou ao pensamento, mas o que talvez nos tragam os relatos acima
é a possibilidade de, dentro desse espaço-tempo criado pelo atuar das mãos, uma obser-
vação mais cuidadosa acerca das condições individuais. Parece ser um aprendizado, um
caminho de auto- observação, com percepção de nossos ritmos internos diante também
do que vem de fora. O respeito aos tempos frente às situações que se apresentam.

Nesse percurso, percebo indícios de que o fazer das mãos junto a fios e agulhas poderia
atuar ainda, dentre outras possibilidades, como um ato de resistência, mantendo-nos
no esforço de trabalhar a matéria. Seja por gestos mais firmes e cadenciados ou por um
toque suave e delicado, é por vezes no silêncio desse trabalhar que cabeça-visão-mãos-
tato-coração-pulmão- respiração se movimentam todos juntos na tentativa de um har-
monizar-se sincronizado. O trabalhar com as mãos pode ser a resistência à força bruta
ou à frieza dos nossos tempos, enquanto ação que proporciona maior equilíbrio, o que
poderia nos deixar menos vulneráveis frente às adversidades e fragilidades.

Quando atuo, me reconheço força, imprimo certa pressão e me percebo vontade e ma-
téria. Mas não é força desmedida. É aquela de manter-se no ato desejado, no movimen-
to nem sempre planejado, na observação que revela. É preciso disposição interna para
seguir no movimento, para manter-se no ritmo, no fluxo, no atritar-se. E talvez não seja
tanto a força de mãos e braços, mas um ímpeto que venha do meu “avesso”.

O criar parece impulso que anima, com possibilidade de vitalizar e colocar em movimen-
to. E quando acessamos tal capacidade criadora, presente em todos nós, não se trata de
destacar talento artístico, mas de acionar algo – seja um maior ânimo, um desejo, maior
disposição, inspiração ou vontade – que pode beneficiar diferentes áreas da vida.

Tecer como um exercício, como a busca de um ritmo, como um esvaziar-se ou alimentar-


se, como um estar no mundo, como a marcar um tempo... como um bailar da agulha e

62
nada mais. Posso tecer como a observar, através de minhas mãos, a materialidade a se
fazer no mundo e, com esse ato, preencher o lugar que habito ou além.

Em relatos daquelas que experimentam ou já praticam alguma técnica de trabalho ma-


nual, encontro com certa frequência uma dúvida inicial quanto à sua própria capacidade
de realizar aquele ato, possivelmente um enfraquecimento da convicção na habilidade
de nossos corpos e mãos atuarem na matéria e a transformarem. E multiplicam-se as
narrativas daquelas que, ao experimentarem vivências com fios e agulhas, alegram-se
com a percepção de seus corpos enquanto possibilidade de potência 6.

Seja seguindo uma receita, um risco pronto ou em uma produção de execução mais intui-
tiva e experimental, seriam as diferentes técnicas manuais – tais como crochê, tricô, cos-
tura ou bordado – capazes de puxar nossos fios mais internos? De permitir um momento
de atenção silenciosa em meio a dias confusos e acelerados? Seria possível um equilibrar-
se através dos fios, a se entrelaçarem de forma cadenciada e a conectarem cabeça-olhos-
mãos? Talvez a resgatarem o ritmo que, por vezes, se acelera na vida de todo dia.

São fazeres que nos trazem a vivência do toque, o segurar suave ou mais firme de agu-
lhas e fios, a escolha das cores. O acalmar-se e conter-se ao atravessarmos linhas na es-
treiteza dos buracos das agulhas. Exercitar e produzir através dessas técnicas com fios
pode ser a manifestação mais forte daquilo que, muitas vezes, queremos expressar com
palavras e não conseguimos. Porque existem as vozes e as escutas, mas há também, pela
arte-manual, um comunicar-se de forma não verbal.

As artes-manuais, ao serem capazes de trabalhar corpo e mãos com alegria, parecem


favorecer caminhos de percepção e consciência, de compreensão do lugar onde habitam
nossas próprias forças. Essa expansão da experiência pode se reverter em vitalidade e po-
tência para lidar com a vida em tempos que parecem caminhar para o embrutecimento.

6 Juhani Pallasmaa, ao tratar sobre mãos-cérebro-ferramentas, menciona que essas últimas “expandem nossas faculdades
e guiam nossos atos e pensamentos de maneiras específicas.” (PALLASMAA, Juhani. As mãos inteligentes: a sabedoria
existencial e corporalizada na arquitetura. Tradução de Alexandre Salvaterra. Porto Alegre. Ed. Bookman, 2013, p. 52).

63
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Artes-Manuais são assim uma espécie de mãe de tudo que existe e até do que
ainda não foi retirado do escuro. Ela é mãe de tudo isso, dona de qualquer coisa
deste e do outro mundo. Ela tem o poder de criar, nutrir e curar, porque só faz tecer
a vida das coisas, dia após dia. Cria o brilho das almas e, na noite, borda estrelas no
tecido escuro do vazio-firmamento. Acaso não vê o quanto ela nos ensina a Ser?
Cristina Tomé 7

Nas artes-manuais, experimentamos materiais e ferramentas. Testamos possibilidades


como nas experimentações do viver. Afrouxamos o ponto para torná-lo mais flexível.
Acrescentamos cor para trazer alegria ou limitamos os tons para, talvez, intensificarmos
a concentração e equilibrarmos o que vai dentro do peito. Apertamos o ponto para uma
trama mais densa e firme. Mudamos o final do projeto. Alteramos o rumo. Adaptamos
a receita. Tentamos um acerto de cor, tamanho. Emendamos linhas. Lidamos com os
nós, o novelo embolado. Tentamos encontrar caminhos outros para o resultado que não
nos satisfez. O fazer, o desfazer, o refazer, o recomeçar.

Nesse exercício das manualidades, os fios nos parecem generosos, moldáveis, podendo
estar à espera das mãos e daquilo que elas carregam de nós: histórias, memórias, querer,
desejos, afetos, inspirações, aflições, projetos, ideias, reflexões, alegrias e, muitas vezes,
a esperança de um devir outro, de um bem viver.

O movimentar das agulhas pode ser o exercício do fazer enquanto prática, para tecer
algo, para atingir um fim e ter o resultado depois nas mãos. Uma peça de crochê, um
tecido bordado, ou uma malha em tricô: seriam todos como a materialização do que nos-
sas mãos são capazes. Mãos diretamente ligadas ao cérebro, ligadas à atenção de nossos
olhos e também ao nosso sentir. Podem ser caminhos para estímulo e fortalecimento da
criatividade, para expansão de nossa imaginação. E, ainda, a possibilidade concreta de
atuar no mundo de maneira única, de imprimir nossa individualidade na materialidade
e, ao mesmo tempo, cuidar, com afeto, de nosso campo mais íntimo.

7 TOMÉ, Cristina. Psicólogo-artífice: a arte-manual como recurso terapêutico. Uma escrita de si. São Paulo:
Ed. Círculo das Artes, 2018, p. 48-49.

64
Talvez as artes-manuais possibilitem não só o esvaziar-se daquilo que já transbordava, mas
também sejam capazes de nos preencher, tecer com mais cadência e ritmo nosso espaço
interno, que merece estar tomado por afetos. Elas podem ser um meio de produção do
belo, de encantamento dos sentidos, um alegrar-se da alma, um agrado aos olhos e ao tato.

Exercitar-se nas artes-manuais indica um caminho de cuidado de si quando nos permite


“abrir espaço” dentro de nós, quando tecemos não apenas atentas aos pontos e à execu-
ção do trabalho, mas criamos com o que vem em nossas mãos a transbordar, a libertar-
se, a sensibilizar o corpo que produz o gesto e que carrega a vida. Parece que tecemos
com aquilo que escapa de nós, ou com o que vem à superfície, em um movimento de
aflorar, nessa trama material que está a ser construída pelas mãos.

Entre observações dos meus fazeres e de outros, e vivências que tive a oportunidade de es-
tar junto, encerro este artigo com reflexões sobre os processos com potencial terapêutico a
envolver as artes-manuais, na direção de um caminho aberto à pesquisa e ao apontamento
de possibilidades. O momento único daquela feitura, naquele ponto, com um trançar de
fios e movimentar das agulhas: seria um mergulho em nós, em nossas memórias e pers-
pectivas futuras, em nossas fragilidades e potências? Seria, talvez, um adentrar pela nossa
pele, um constante aprendizado de si, moldando possíveis modos de habitar a existência?

REFERÊNCIAS
MARASCA, Elaine. Saúde se aprende, educação é que cura: da Pedagogia Waldorf à
Salutogênese. São Paulo: Ed. Antroposófica, 2009.

PALLASMAA, Juhani. As mãos inteligentes: a sabedoria existencial e corporalizada


na arquitetura. Tradução de Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Ed. Bookman, 2013.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Edi-


tora Record, 2009.

TOMÉ, Cristina. Psicólogo-artífice: a arte-manual como recurso terapêutico. Uma


escrita de si. São Paulo: Ed. Círculo das Artes, 2018.

65
Costurando retalhos
de vida em reabilitação:
Grupo de intervenção terapêutica
em Patchwork na AACD
por Márcia Gallo De Conti
Isadora Di Natale Nobre

RESUMO
O grupo de Patchwork da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) é in-
terdisciplinar e composto por uma psicóloga e uma arteterapeuta na unidade Ibirapue-
ra em São Paulo, com o objetivo de trabalhar o resgate da autonomia e autoestima de
mulheres com deficiência física. O grupo se reúne em encontros semanais, com duração
de seis meses. São utilizados contos e dinâmicas para sensibilização visando introduzir
os temas trabalhados, tais como: autoimagem, autoestima, autoconfiança, superação,
feminilidade, entre outros. Para cada tema, é realizada a costura de blocos com reta-
lhos de tecidos formando um panô final. A técnica do Patchwork foi escolhida devido às
suas particularidades, pois, através da junção dos retalhos, vivências, corpos, saúde são
ressignificados. O trabalho manual ainda favorece o processo de reabilitação das partici-
pantes, resgatando habilidades e construindo/costurando caminhos para lidar com um
novo contexto de vida após aquisição da deficiência física.

Palavras-chave: Patchwork. Reabilitação. Saúde. Psicologia. Manualidades.

66
INTRODUÇÃO

“Arte não se sabe, se faz para saber.”


(DERDYK, 2010)

O grupo de Patchwork da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) é


um grupo composto por uma abordagem em Arte Reabilitação e Psicologia, oferecido
como uma das intervenções terapêuticas no tratamento de reabilitação interdisciplinar
para adultos e idosos com deficiência física.

Ao contemplar a vivência humana na sociedade e na cultura dos povos, a Arte representa


um tempo no qual ela habita. É utilizada em vários segmentos, mas o presente estudo
apresenta o cerne terapêutico que estabelece o ponto de encontro vivenciado entre o
mundo interno e externo de um grupo de mulheres em processo de reabilitação física.
Segundo Francisquetti (2016), a arte no contexto da reabilitação proporciona mudanças
de ordem emocional, física e mental.

O trabalho manual no ateliê de Arte Reabilitação caracteriza-se, assim, como uma fer-
ramenta que utiliza recursos das habilidades manuais e possibilita que o indivíduo entre
em contato com o próprio universo proporcionando mudanças, além de ampliar a vivên-
cia de um corpo desviante, que, impactado por uma lesão ou doença, necessita elaborar
conflitos, minimizar sofrimentos, vislumbrar novos horizontes.

O objetivo do grupo na instituição é promover a melhoria da autonomia e autoestima


de mulheres com deficiência física através da técnica do Patchwork. A experiência com o
primeiro grupo ocorreu em 2016 e, até o momento, já foram realizados sete grupos, de
caráter fechado, com duração de seis meses, reunidos em encontros semanais de 1h10m
no ateliê de Arte Reabilitação da AACD, unidade Ibirapuera em São Paulo, com capa-
cidade de atendimento de seis mulheres por grupo.

Contamos com a diversidade de contextos, histórias e fases de vida, assim como a hete-
rogeneidade de todas as clínicas atendidas na instituição (amputados, lesão encefálica
adquirida, doenças neuromusculares, lesão medular e sequela de poliomielite). Ao lon-
go dos anos, tanto os recursos quanto os manejos foram adaptados a depender da dinâ-

67
mica e das particularidades de cada grupo. Dessa forma, a proposta também foi sendo
desenvolvida e aprimorada ao longo das vivências e das necessidades compartilhadas.
Além dos depoimentos e da produção do panô final de cada participante que revela
as particularidades de seus processos, são utilizados como indicadores de evolução a
1 2
escala de autoestima de Rosenberg , o desenho da autoimagem e a Classificação In-
ternacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF (2015), desenvolvida pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) que se baseia na abordagem biopsicossocial,
classificando funcionalidades, incapacidades e saúde dos indivíduos em vários domí-
nios. Os objetivos do grupo, segundo a CIF, são: b1528 - funções emocionais, outras
especificadas (autoestima); b1264 - disposição de viver novas experiências; b1266 - con-
fiança; b1301- motivação; b1644 - autoconhecimento; b1801- imagem do corpo.

2 CRONOGRAMA
No primeiro atendimento, é realizada uma dinâmica para apresentação das participan-
tes, além da explicação da proposta do grupo e o contrato terapêutico (duração, dias
e horários, regras institucionais de faltas). A partir do segundo encontro, iniciamos a
3
confecção dos blocos com temas específicos. Para tanto, são dispostos tecidos crus
para a base de suas produções e utilizam-se dos materiais disponíveis para a confecção
de cada bloco (tecidos de algodão de estampas variadas, botões, lantejoulas e canutilhos
de cores variadas, tule branco, brilhos adesivados variados, entre outros). São utilizadas
dinâmicas e contos são lidos como estratégias de sensibilização para mobilização dos
conteúdos propostos. Isso porque os

contos nos ajudam a nos apropriar da história pessoal, assim, podemos desenvolver
nossa verdadeira identidade e autoestima e viver muito melhor. Eles descrevem per-
sonagens, situações como medos, angústias, ansiedades e inquietudes que habitam o
pensamento humano e na medida em que se desdobram oferecem alternativas para
transformação, mostrando modelos de enfrentamento. (GIORDANO, 2007, p. 34).

1 Escala validada de avaliação da autoestima composta por 10 afirmações com respostas através da escala Likert
(HUTZ; ZANON, 2011).
2 É entregue uma folha A4 deixando disponíveis lápis de cores diversas, com a orientação “Desenhe você mesma”.
3 Termo utilizado na técnica de Patchwork, em que pedacinhos de tecido são costurados para formar um determi-
nado desenho.

68
1. Conto do vaso chinês 4. Abordagem: valorização de si na convivência com uma defi-
ciência; capacidade de mudar o olhar para si através do outro.

2. Crônica “Milho da pipoca”, de Rubem Alves 5. Abordagem: transformação pela dor;


a produção de si pela doença.

3. Conto da Fátima Fiandeira 6. Abordagem: superação de adversidades; esperança e


confiança.

4. Dinâmica do espelho (Há uma caixa que dentro dela contém um espelho escondido.
Orientamos que ali está a imagem de um personagem famoso e que elas terão que falar
dele, sem poder identificá-lo para que as outras mulheres tentem adivinhar, mantendo
o mistério e a surpresa. Cada uma tem sua vez: é mostrado o espelho e perguntado o
que ela enxerga naquela imagem, o que ela teria a falar daquela pessoa). Abordagem:
autoimagem.

5. Dinâmica da natureza: animal que me habita (Realizamos uma sensibilização, soli-


citando que as participantes fechem os olhos, prestem atenção na respiração por alguns
segundos. Pedimos então para imaginarem um lugar de natureza, se atentando aos sons,
cores, odores, sensações e sentimentos que aquele lugar proporciona. Aos poucos, so-
licitamos que vislumbrem um animal que se aproxima devagar e, com o tempo, vão en-
trando em contato com ele, interagindo. Após alguns minutos, se despedem do animal,
reconhecem os sentimentos que foram despertados e, com calma, vão se reconectando
com suas respirações, corpos, espaço do ateliê, até abrirem os olhos novamente. Então,
conversamos sobre a vivência). Abordagem: defesas e medos.

6. Conto da Moça Tecelã 7. Abordagem: autonomia e protagonismo.

4 Conto do vaso chinês. Disponível em: <http://denisrezende.blogspot.com/2009/06/conto-do-vaso-chines.html>.


Acesso em: 08 jan. 2020.
5 ALVES, Rubem. Milho de pipoca. Disponível em: <https://www.clubedapipoca.com/blog/milho-de-pipoca-
rubem-alves/>. Acesso em: 08 jan. 2020.
6 SHAH, Idries. Histórias da Tradição Sufi. São Paulo: Nova Fronteira, 1976.
7 COLASANTI, Marina. A moça tecelã. Projeto Releituras. Disponível em: <http://www.releituras.com/i_ana mco-
lasanti_imp.asp>. Acesso em: 08 jan. 2020.

69
Após a confecção dos seis blocos, iniciamos a fase final do processo com a junção dos
blocos com os retalhos de tecidos que elas escolheram, dando origem ao panô de cada
uma. Nos últimos atendimentos, realizamos as avaliações finais e fazemos as devolutivas.

3 JUSTIFICATIVA
A escolha pelo trabalho interdisciplinar com Patchwork no entrecruzamento da Psico-
logia e Arte tem como base a compreensão de que o fazer e o ser estão em uma constante
e intrínseca relação. Assim, o fazer-ser, à medida que as mulheres costuram, legitimam a
existência, resgatam histórias, valores, dores, ressignificam lutos, corpos, saúdes... cons-
troem e desconstroem... costuram e descosturam...

O arquétipo feminino do uso das mãos para a costura no sentido histórico-cultural faz
resgatar experiências e histórias de vida e de ancestralidades, mas também permite a
aprendizagem de uma nova abordagem.

O Patchwork possibilita a ressignificação dos retalhos, pois “velhos trapos rasgados” ga-
nham novos sentidos. É isso o que ocorre em reabilitação: para um corpo modificado,
atribuem-se novos olhares, outras costuras possíveis. É através da experimentação que
isso ocorre. A manualidade implica o sensorial, a percepção, os afetos e as forças que
atravessam o corpo e que ganham novos devires. No grupo, emerge uma saúde que não
é ausência de doença, mas enfrentamento e potência. A doença compreendida como
estímulo ao mais-viver. (NIETZSCHE, 2008)

A saúde considerada, em sua dimensão ampla e mais próxima da vida, uma grande saúde,
como Nietzsche (2008) nos ensina, compreendendo o mal-estar constitutivo do ser e a saú-
de como potência para lidar com a existência. A doença nesse panorama pode fortalecer a
saúde, como afirma Deleuze (1988-1989): “para mim, a doença não é uma inimiga, [...] ela
aguça uma visão da vida, uma sensação da vida. Quando falo em visão da vida, em vida ou
em ver a vida, é ser tomado por ela. A vida em toda a sua potência, em toda a sua beleza!”.

Nobre ressalta que

70
Resgatando a espontaneidade e o desejo humanos, adentramos o campo de outro
corpo, que vive e se abre aos diversos fluxos de forças que o atravessa e constitui. Cor-
poreidade porosa, esburacada, em constante relação, como um grande tecido feito de
tramas que, unidas, constituem um todo, mas que permite a passagem e a troca de
intensidades e afetos. Um corpo que na doença se descobre e se fortalece, expandindo
forças e sentidos de vida. (NOBRE, 2019, p. 33).

O trabalho com Patchwork, desse modo, desperta sensações nas quais ações fazem o su-
jeito pensar, sentir e querer. Através do contato com uma técnica que mobiliza conteúdos
psíquicos, permite um tecer pessoal no decorrer do processo da reabilitação e da vida.

Os desafios enfrentados diariamente pela pessoa com deficiência física constituem uma
exposição severa frente às dificuldades motoras e as perdas sofridas. O grupo no ateliê
de Arte mostra-se como um alento para tais mulheres, um lugar em que irão explorar
recursos e descobrir novos fazeres.

O ato da costura realiza um movimento solitário que liga e une tecidos, rendas, aviamen-
tos e entremeios, transformando de forma singular o material utilizado. “A costura repre-
senta o construir e desconstruir. Une, através da linha, a mistura de texturas e cores que
ressignifica e conduz a revelação daquilo que inova.” (CONTI, 2016, p. 9) Os recursos,
materiais e técnicas buscam estratégias a serem trabalhadas através de um projeto que
permite penetrar no universo das manualidades costurando-se outra vertente no espaço
do ateliê.

O termo Patchwork significa “trabalho com retalhos”, unidos através da costura. Atraves-
sando o tempo, a arte de unir e costurar retalhos passou a despertar interesse e ganhou
sofisticação e requinte, proporcionando hoje exposições e eventos pelo mundo.

Ao manipular os tecidos, texturas, cores e percepções variadas, estimula-se a motivação


e efetiva-se a socialização, promovendo a autoestima coletiva. A elaboração de uma nova
imagem simbólica após a lesão transpõe, através dessa modalidade inventiva, uma nova
trama entre a reabilitação e a nova condição existencial das mulheres, oferecendo uma
tessitura potencializada pela produção coletiva.

71
O ato de costurar compreende o corpo em sua relação constante e intrínseca com o mun-
do. É por meio dos sentidos que chegam as informações do mundo exterior para assim
ocorrer a produção de respostas. Em um movimento permanente, ao ser estimulado,
o corpo se mobiliza e se sensibiliza, ativando áreas da percepção, cognição, motora e
psíquica. A vivência corpórea espontânea promove a liberação de forças que motivam
emoções, restabelece funções prejudicadas e estimula a criatividade, desenvolvendo e
resgatando potências.

Inserido na contemporaneidade, o modelo implantado no conceito de Arte Reabilitação


estabeleceu um novo paradigma na área da saúde, que passou a ser ampliado e a fazer
mais sentido aos processos evolutivos dos pacientes.

O universo de atuação do terapeuta numa instituição de saúde de reabilitação preconiza


o envolvimento consigo mesmo, desenvolvendo suas competências e construindo um
corpo teórico de atuação. Ao aprofundar-se em conhecimentos de diversas áreas dos
saberes, elabora propostas que favorecem a compreensão do público a ser trabalhado e,
efetivamente, passa a entender e a se relacionar com a linguagem dos materiais.

Atender às demandas do paciente na reabilitação instiga o reabilitador a um saber fisio-


lógico. Entender as lesões é muito importante, pois compõe o cenário de atuação e pos-
sibilita maior domínio na realização de sua prática. É através da observação respeitosa
do terapeuta que se caracterizam as especificidades e limites ao reabilitando:

O profissional deve estar atento às condições do paciente e não subestimar a sua


capacidade de executar as tarefas por conta própria e, mesmo que isto demande
um maior tempo para execução, deve ajudá-lo o suficiente para que a atividade
não gere impaciência e angústia. (FREIRE, 2016, p. 78).

O espaço terapêutico reabilitador legitima o paciente e o terapeuta, uma vez que nele se faz
o exercício do sentido proprioceptivo, na qual a prática vislumbra elementos que compõem
a existência terapêutica. Neste ambiente, são promovidos dispositivos que transformam,
despertam e acolhem o paciente através da motricidade composta pela materialidade.

72
Segundo Francisquetti (2016), a reabilitação tem por objetivo desenvolver habilidades,
melhorar aspectos funcionais, manuais, psíquicos e cognitivos, promovendo qualidade
de vida e inserção social. Em um trabalho interdisciplinar, a reabilitação se utiliza da
proposta terapêutica para integrar aspectos socioculturais. Os pacientes participam de
ações externas interdisciplinares, vivenciam grupos terapêuticos que oferecem novas ex-
periências, que são tanto desafiadoras quanto acolhedoras.

Dentro das propostas de tais grupos está o de Patchwork, que tem por objetivo princi-
pal trabalhar a autoestima das mulheres participantes. O sentimento que cada pessoa
tem por si mesma compreende o processo da autoestima e da consciência do seu va-
lor pessoal oferecendo uma perspectiva que contempla o respeito, o amor e a crença
em si mesmo. Resgatar o amor próprio, baseado no autoconhecimento, é valorizar os
próprios sentimentos e vontades, resultando no reconhecimento dos próprios limites e
potencialidades.

No grupo, a valorização de si é trabalhada através da costura que permite autonomia


que une, fura, desmancha, corta e, desse modo, inventa, transforma e liberta. Os contos,
utilizados como dispositivos, possibilitam que a intervenção seja estabelecida e o recur-
so desempenhe o papel de sensibilizar e chamar a atenção para algo que possa ser atri-
buído às vivências. Os detalhes na produção de cada bloco formando os panôs trazem
características particulares de suas criadoras, personalizam o trabalho e abrem perspec-
tivas diante do novo.

As participantes vivenciam uma experiência simbólica na qual a utilização dos contos


aliada à prática do Patchwork cria e associa as imagens e situações contadas com suas
próprias experiências. Confecciona-se uma experiência simbólica na qual a utilização
dos contos é aliada à prática do Patchwork, em que imagens e situações contadas se
comparam. Confecciona-se um trabalho que reverbera a ressonância interna, proporcio-
nando um novo olhar para o tecer de si e do grupo.

Neste trabalho, o grupo passa a se apropriar das habilidades das mãos, compondo novas
formas de manipular os recursos para realizar as tarefas. As mãos passam a ser um dispo-
sitivo para construção da ideia principal. A percepção tátil proporciona uma valorização

73
das habilidades e características preservadas após a lesão, reverberando a sensibilidade
afetiva e simbólica. Tecidos, tamanhos e estampas variadas, tesouras, agulhas, linhas,
papel termocolante, ferro de passar, lápis e máquina de costura... Um olhar mais atento
aprofundando o processo de autoconhecimento nesta fase da reabilitação.

Figura 1 - Panôs finalizados


com a junção de cada bloco.
Mãos que costuram; fios e
histórias que se entrelaçam.

No contexto deste estudo, quando as participantes iniciam o processo, a saúde do seu


corpo está reduzida e apreendida sob o viés da lesão. O processo grupal e artístico amplia
a compreensão e a vivência de um corpo desviante para um corpo dos afetos e das inten-
sidades, permitindo a retomada de um encontro pessoal com as forças do corpo coletivo.

Os grupos representam um encontro destas forças que se unem para a retomada de devi-
res (RIZZO, 2008). São corpos diferentes pelas lesões, pelas histórias de vida e por suas
particularidades, mas que, na ação coletiva da construção do pano, são corpos que se
alinham em uma só trama, unidas pela construção de si, “matéria em movimento, em fluxo,
em variação.” (DELEUZE & GATTARRI, 2004, p. 451 apud INGOLD, 2017, p. 305)

74
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Cada história, um conto...
E, cada conto, um retalho.
Cada retalho conta um pedaço de mim
E cada pedaço é parte da minha história.
Memória marcada por tantos momentos coloridos
Outros nem sempre bonitos, nem sempre felizes...
Meus limites, meus desafios
E meus sonhos, por que não?
Meu momento, o hoje:
Mereço uma nova história,
Vale a pena sonhar!
Sempre há tempo para viver!”

Depoimento de M.F. (2019)

O processo terapêutico em Patchwork proporciona uma tessitura interna e externa, um


fazer-ser que assegura a invenção, a autonomia e a exploração de habilidades. As forças
são ampliadas frente ao trauma, minimizando as dores e as perdas. Configura-se uma
plástica diante do futuro das mulheres, reverbera-se a nascente no tecer dessas histórias.

Ao utilizar os contos, o grupo manifesta o exercício da abstração e apropriação de suas


capacidades, promovendo autoconhecimento e valorização de si no momento presente.
“Para que o acontecimento aconteça, é preciso de uma diferença de potencial [...]. E o
desejo é isso, é construir.” (VEIGA, 2015, n. p)

No discurso coletivo, a análise do panô evidencia medos, expectativas, conflitos e afetos,


assim como a aprendizagem desse tecer possibilita a apropriação das texturas, tesouras,
linhas e agulhas, de forma adaptada, porém livre, reinventando possibilidades, desejando.

Ao salientar que o Patchwork acontece com adversidades, tecem-se as diferenças. Com


a urdidura, os grupos intensificam a liberdade de compor, manifestam a emenda que se

75
faz de dentro para fora e de fora para dentro; instâncias que não mais se separam, mas se
misturam e se compõem. Emerge então a diferença do outro, mas também de si mesmo,
a capacidade de diferir seguindo, produzindo-se.

“Convivendo, fazendo, trabalhando com nossas frágeis mãos,


fomos criando o patchwork, como uma colcha de retalhos.
Foram encontros inesquecíveis, onde nos conhecemos, rimos,
às vezes também choramos. E brincamos, como crianças. As-
sim fomos construindo nossas colchas de retalhos.
Nosso trabalho final registra a marca do encontro de todas
nós com nossas queridas terapeutas Isadora e Márcia”.

Depoimento de M.F. (2019)

Os desenhos que elas próprias produzem antes de iniciarmos o grupo e, no momento


final, após o encerramento do processo, também revelam suas transformações, criações
e a potência do encontro vivido. Através do outro, um novo de si.

Figuras 1 e 2 - Desenhos inicial


e final de S.

76
Figuras 3 e 4 - Desenhos inicial
e final de C.

Figuras 5 e 6 - Desenhos inicial e final de M.


No primeiro desenho, ela explica: “Aqui sou eu vendo
a vida passar” (sentada na cadeira, de costas, olhando a
janela); ao lado, a representação da sua fé. No segundo,
ela opta por se desenhar como uma grande árvore, com
raízes e folhas abundantes.
Figuras 7 e 8 - Desenhos
inicial e final de C.C.

Figuras 9 e 10 - Desenhos
inicial e final de L.

Figuras 11 e 12 - Desenhos inicial e final de M.F.


Escrito no desenho final: “Tento ser como o girassol, que sempre escolhe
o lado bonito da vida”.
Os desenhos evidenciam as transformações na imagem que cada participante tem de
si. É no espaço do grupo, no fazer coletivo em Patchwork, que essa mudança vai encon-
trando força e contorno.

Fazer-ser. Corpos que iniciaram sem cor, com linhas finas, às vezes até invisíveis, tra-
ços fracos, tímidos, transparecem o que sentem: a impotência de não conseguirem mais
fazer o que faziam antes da lesão, o sentimento de inutilidade, de que estão sentadas
“vendo a vida passar”. Um corpo tido e sentido como desviante, para os outros e para si
mesmas – já não se reconhecem mais. O valor de si está atrelado ao passado, a lugares e
a espaços ocupados antes da lesão.

Iniciamos o grupo. Vínculos começam a se construir. Histórias começam a se entrela-


çar. Tecidos começam a se juntar através de mãos que unem, colam, costuram... As mes-
mas mãos, que também gesticulam, expressam afetos, acolhem, compartilham dores e
vitórias do processo que as unem. Mãos que vão produzindo blocos e que, ao produzir,
também tecem novos olhares, caminhos, corpos.

Mesmo que o limite ainda se faça presente, no grupo conseguem se permitir a uma expe-
riência nova e, em um movimento de cuidado e respeito, estímulo e acolhimento, experi-
mentam suas capacidades, resgatando ou mesmo descobrindo a potência de seus corpos.

Nos desenhos finais, encontramos cores, formas, afetos, escritos, Vida. Árvore que ocu-
pa praticamente o espaço todo da folha, com tronco, raízes e ramos que expandem e
revelam forças. Não negam o sofrimento, as adversidades, as dores. Mas, ao final do
processo, as mulheres conseguem olhar para além da doença e da lesão. Conseguem se
aliar ao que as fortalece, “como o girassol, que sempre escolhe o lado bonito da vida”.

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REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Milho de pipoca. Disponível em: <https://www.clubedapipoca.
com/blog/milho-de-pipoca-rubem-alves/>. Acesso em: 08 jan. 2020.

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. Projeto Releituras. Disponível em: <http://


www.releituras.com/i_ana_mcolasanti_imp.asp>. Acesso em: 08 jan. 2020.

CONTI, Márcia Gallo de. Patchwork e Arteterapia: Retalhos da vida, uma nova pos-
sibilidade na reabilitação. Patchwork como facilitador do resgate da autoestima em pa-
cientes vítimas de AVE. Trabalho de conclusão de curso. Pós-Graduação em Artetera-
pia – Universidade Paulista – UNIP, São Paulo, 2016.

Conto do vaso chinês. Disponível em: <http://denisrezende.blogspot.com/2009/06/


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DELEUZE, Gilles. Abecedário de Gilles Deleuze. Realização de Pierre-André Bou-


tang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris, 1988-89. Tradução e Legendas:
Raccord. (Entrevista).

DERDYK, Edith. Linha de costura. 2ª ed., ver. e ampl. Belo Horizonte: C/ Arte, 2010.

FRANCISQUETTI, Ana Alice (Org.). Arte-reabilitação: um caminho inovador na


área da Arteterapia. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2016.

FREIRE, Tania Cristina. Arteterapia na (Re)Habilitação Cognitiva: aspectos práti-


cos. In: FRANCISQUETTI, Ana Alice (org.). Arte-reabilitação: um caminho inova-
dor na área da Arteterapia. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2016. p. 77-94.

GIORDANO, Alessandra. Contar histórias: um recurso arteterapêutico de transfor-


mação e cura. São Paulo: Artes Médicas, 2007.

HUTZ, Claudio Simon; ZANON, Cristian. (2011). Revisão da adaptação, validação e


normatização da escala de autoestima de Rosenberg. Avaliação psicológica, 10(1), p.41-49.

80
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Pe-
trópolis, RJ: Vozes, 2017.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Como se chega a ser o que se é. Tradução Pau-
lo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

NOBRE, Isadora Di Natale. Além de um corpo (d)eficiente: problematizando saúde


e reabilitação a partir de um grupo de mulheres amputadas em processo de envelheci-
mento. 2019. 202 f. Dissertação (Mestrado em Gerontologia Social) – Pontifícia Univer-
sidade Católica, São Paulo/SP, 2019.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE/ORGANIZAÇÃO PANAMERI-


CANA DA SAÚDE. CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapaci-
dade e Saúde / Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para a Família
de Classificações Internacionais em português. Coordenação da tradução Cassia Maria
Buchalla. 1 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

RIZZO, Luisa. O Acontecimento Patchwork: um modo de apreender a vida. Disser-


tação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 87 f, 2008.

SHAH, Idries. Histórias da Tradição Sufi. São Paulo: Nova Fronteira, 1976.

VEIGA, Ana Lygia Vieira Schil da. Fiar a escrita: Políticas de narratividade. Exercí-
cios e experimentações entre arte manual e escrita acadêmica. Um modo de existir em
educações inspirado numa antroposofia da imanência. 2015. 540 f. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora/MG, 2015.

81
Entrelinhas,
sinais e sentidos:
Vivências com alunos surdos nas
aulas de artes do ensino médio
em uma escola pública
por Elizabeth Renata Gladcheff Fonseca

RESUMO
O livro “Entrelinhas, Sinais e Sentidos” aborda a presença das artes-manuais durante
alguns momentos da vida dos atores envolvidos: nas memórias de infância, no cotidia-
no, na vida escolar e na educação de surdos. Traz a narrativa de algumas vivências junto
à cultura surda, na própria casa, e em algumas aulas de Artes do Ensino Médio numa
escola pública.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-manuais. Mãos. Surdo. Educação. Libras.

82
O encontro com as artes-manuais na infância e na adolescência ocorrera por questões es-
colares e familiares, visto que o crochê fora responsável pela sobrevivência de sua bisavó,
que enviuvou gestando sua avó. Era, portanto, quase uma imposição que todas as mulhe-
res da família fizessem crochê, o que logicamente, com toda a sua rebeldia, ela abominava
como “coisa de mulherzinha” – que crescia e se preparava para ser esposa – mãe, dona de
casa prendada e recatada, submissa e sem assunto, sem perspectivas de sair da cidadezi-
nha do interior. Isso não fazia parte dos seus planos. Ela queria alçar outros voos.

Foi crescendo vendo-as produzir e, escolhendo caminhos, optou pela enfermagem,


ocupação em que as mãos e o coração fazem a maior parte do trabalho. O foco estava
no cuidar. As mãos ali, porém, sem a possibilidade de errar e desmanchar qualquer
ação mal tecida; o fio não era de linha, era de vida.

Enquanto isso acontecia, a vida permitiu-lhe a maternidade e presenteou-lhe com um


filho especial, um bebê surdo. Era o ano de 1986. Iniciaram, então, uma jornada por um
caminho desconhecido e árduo para todos, mas principalmente para o bebê. Dos per-
calços gerais que os fragilizaram, saíram fortalecidos com algumas lições, dentre elas o
aprendizado das LIBRAS - Linguagem Brasileira de Sinais, reconhecida como meio
legal de comunicação e expressão no país em 24 de abril de 2002. Três anos depois, a
Lei foi regulamentada pelo Decreto Federal nº 5.626 (BRASIL, 2005).

Mas há trinta anos, LIBRAS não era uma língua oficial, não existiam estatutos que
garantissem certos direitos e acessos. Instrutor de LIBRAS? Não era fácil de se encon-
trar... Intérpretes? Menos ainda... Escolas e grande parte das fonoaudiólogas pregavam
a oralidade como única verdade e possibilidade. Não se falava em inclusão e as escolas
de educação especial eram poucas. As mãos que cuidavam tiveram que aprender a falar.

A pequena família tornou-se, pode se dizer, peregrina, pois o casal e o filho mudaram-se
constantemente para municípios onde havia escola de educação especial. Enquanto as
dificuldades escolares se mantinham, além dos atendimentos clínicos e terapêuticos,
procuravam formas de possibilitar ao menino meios de comunicação, expressão e har-
monização consigo e com o mundo. Uma das experiências positivas ocorreu no atelier
“Ventos e Inventos”, na Vila Prudente (SP), que fora indicado por uma professora.

83
Lá as crianças trabalhavam com madeira, pequenos motores, lâmpadas, entre outros
materiais. Muitas peças e engenhocas foram criadas neste período – porta-chaves, mó-
biles, aviões com hélices que giravam, quadros em madeira que acendiam, entre outros.
Era nítida a alegria que o menino sentia ao finalizar uma peça e trazê-la para casa, o que
também enchia seus pais de alegria. Ambos percebiam que aqueles trabalhos traziam
para ele algum bem-estar. As artes e os afazeres manuais mostravam-se de grande im-
portância pedagógica.

Nesta época, em 1997, paralelamente, o menino era aluno da Escola Carlina Caçapava
de Mello, em Santo André, São Paulo. Em 2017, a mãe retornou àquela escola, des-
sa vez na condição de pesquisadora – o desejo de utilizar as artes-manuais como ins-
trumento no desenvolvimento, na comunicação, na expressão e na harmonização de
crianças surdas foi inspirador. Na ocasião, foi possível constatar algumas diferenças
ocorridas a partir de 2002 e o sancionamento da Lei nº 10.436.

Quando o menino frequentara a escola, havia uma sala especial com alunos surdos e
portadores de outras necessidades especiais. Em 2017, a sala do Ensino Médio onde
estavam os dois alunos surdos era inclusiva, havia uma intérprete de Libras e, princi-
palmente, uma professora disponível, pois mesmo com a presença de um intérprete, a
disponibilidade do ensinar e os gestos viriam dela. A escola estava mais viva, colorida e
vários projetos em andamento.

As aulas de Artes do segundo ano do Ensino Médio aconteciam semanalmente e os


encontros para pesquisa decorreram num período de seis meses. A sala tinha vários alu-
nos e, organizados em grupos de quatro, realizavam atividades distintas. Foi possível
acompanhar a confecção de pés de lata, pipas, saquinhos cheios de arroz para o jogo
das Cinco Marias, um Saci feito com caixas de papelão. No entanto, no grupo em que
estavam os estudantes surdos, outra atividade acontecia: a professora tirava dúvidas
sobre o crochê que eles haviam começado a aprender na aula anterior. Alguns alunos
ouvintes também se mostravam interessados e ela estava feliz, pois o desejo em apren-
der crochê se espalhara por todas as suas turmas do período da manhã.

O menino surdo mostrava muita intimidade com a agulha, como se já a usasse há muito
tempo. A professora conta que sanou as suas dúvidas, posicionando-se posterior a ele e
segurando suas mãos; reproduziu os movimentos até que fossem compreendidos por ele.

84
A aluna surda tinha outros interesses durante as aulas, gostava mais de escritas. A habi-
lidade e alegria do menino nas artes-manuais iam além: conforme os encontros aconte-
ciam, ele trazia para a escola outras peças que confeccionava em casa e que a professora
o ensinava a dar acabamento.

Por conhecer um pouco de Libras, a pesquisadora podia comunicar-se com ele direta-
mente, então pôde saber de seu gosto pelos tecidos: tingir, costurar, criar suas próprias
roupas, fazer peças para uso em casa. Soube que desde pequeno fora criado pela avó,
que o ensinou a usar a máquina de costura, quebrada naquele momento. O rapaz con-
tou que desde que conhecera esta professora tinha aprendido muita coisa e que tinha o
desejo de usar todo esse aprendizado na geração de renda.

O crochê, naquela sala de aula, tinha o poder de contaminar. No período em que os


nossos encontros aconteceram, a pesquisadora fazia uma peça circular sob supervisão
e orientação atenta do aluno e da professora. Um desafio a mais, para quem, na juven-
tude, não queria sequer aprender essa arte. A professora, por sua vez, também mostrou
superação, pois estava aprendendo a fazer tricô e, no final dos encontros, uma blusa de
mangas longas estava concluída e a peça circular bem crescida, ainda que com alguns
defeitos. O aluno estava novamente feliz e produzindo, pois a professora havia encon-
trado uma outra máquina de costura para ele.

As observações das vivências na escola, da confecção da peça circular, do tecer do livro,


foram realizadas simultaneamente à leitura de O artífice, de Richard Sennett. Como
por encanto, o capítulo em que ele tratava do desenvolvimento das mãos estava todo
ali, no movimento da professora segurando a mão do aluno, mostrando ao invés de só
dizer. Estava nas relações entre mãos e olhos, na experimentação por meio do erro, no
ritmo, na concentração. Outros trechos de outros capítulos foram aparecendo cada vez
mais, feito pequenos flashes.

Sennett estabelece um vínculo entre o fazer e o pensar, entre a mão e a mente no ato de
produzir. Como a prática traz prazer ao artífice, como se ele realizasse o seu trabalho a
fim de ter como recompensa tempo para reflexão e imaginação. As habilidades manuais
são consideradas necessárias, importantes na construção do indivíduo e de uma cultura
material mais sustentável e humanizada.

85
Outro autor, Mihaly Csikentmihalyi, e a sua teoria de flow (fluxo) puderam, do mesmo
modo, ser utilizados no processo. Csikentmihalyi interessou-se em descobrir quais eram os
elementos que contribuíam para trazer uma vida que valesse a pena ser vivida, explorando
arte, filosofia e outros campos do conhecimento que poderiam ajudar nessa investigação.

O resultado da sua pesquisa foi publicado em A descoberta do fluxo. Suas perguntas


eram: por que é tão difícil ser feliz e qual é o significado da vida? Para ele, o estado de
flow é o segredo da felicidade. A fluidez é o fenômeno que acontece quando o sistema
nervoso se concentra profundamente em uma atividade, um sentimento de êxtase, de
estar fora da realidade do dia a dia, um sentimento de serenidade, de estar crescendo
além dos limites do ego, uma ideia de estar além da dimensão corporal. Cada pessoa
encontra o flow quando está fazendo aquilo de que realmente gosta – como era o caso
da professora, de seus alunos e da autora deste artigo.

Vinte anos depois, verificava-se que a conquista do direito a uma educação bilíngue para
a comunidade surda permitiu um acesso mais amplo a informações. A regulamentação
da profissão de tradutor e intérprete de Libras os colocou dentro das escolas, além de
introduzir a língua em outros espaços. Ainda reiterou que a postura e o envolvimento
de um professor podem ser decisivos, para o bem ou para o mal, na vida de um aluno.

A moça que um dia se rebelara contra as artes-manuais por entendê-las como aprisionado-
ras, agora era mãe e pesquisadora. Nessas condições, entendia tais práticas como possibi-
lidade de amplar os canais de comunicação do surdo e, se usadas como dispositivo dentro
das salas de aula, inclusivas ou não, de contribuir para o crescimento individual e coletivo.

REFERÊNCIAS
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. A Descoberta do Fluxo - A Psicologia do Envol-
vimento com a Vida. Tradução de Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Lei de Libras - Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira
de Sinais - Libras e dá outras providências.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro – São


Paulo: Editora Record, 2009.
artigo publicado conforme redação original

Artes manuais e objetos


afetivos: Oficinas de arte
e manualidade e a produção
de memórias afetivas
por Patrícia Amantino Estivallet

RESUMO
O presente texto pretende dialogar sobre as artes manuais e a produção de memórias
afetivas, através da análise do percurso das Oficinas de Arte e Manualidade realizadas,
há mais de quinze anos, com crianças e jovens, sob a perspectiva do reflexo destas ati-
vidades no cotidiano dos envolvidos. Pensar as artes manuais pelas suas inúmeras pos-
sibilidades expressivas e o quanto isso implica na produção de um ser/saber sensível
que através destas vivências e experiências criará objetos/memórias afetivas e, segundo
Fayga Ostrower (1987), tornando “ esses seres humanos mais profundos e mais trans-
parentes e sempre mais livres”.

Palavras-chave: Artes Manuais. Objeto. Afeto. Memória. Criatividade

87
INTRODUÇÃO
Outro dia, lendo sobre artes manuais, uma frase me impactou: “ o conhecimento mora na
cabeça, mas entra pelas mãos” (MOURA, 2011), segundo o autor do texto, a percepção de
que se aprende com as mãos era moeda corrente já nas corporações de ofício europeias,
1
de origem medieval. Justifico esta escrita pelo meu interesse pela manualidade fazedora,
atividade que sumiu das escolas, sendo atropelada pelo academismo, pela necessidade
de se cumprirem programas, vencerem datas e, que também não está mais presente nas
salas das nossas casas, substituídas pela virtualidade do dia a dia. É preciso reconhecer
a necessidade de uma interação feliz e fértil entre as mãos e a cabeça, e assim “ reunificar
esses aspectos fragmentados do corpo com a mente”. ( MOREIRA, 2012, p. 44).

Nesse sentido, percorro o trabalho realizado há mais de 15 (quinze) anos, com crianças
e adolescentes, trabalho esse que alia “arte e manualidade”, numa tentativa de trazer
para os participantes das oficinas um contato com a “Inteligência artesanal”, propor-
cionando uma possibilidade que vá de encontro ao “imediatismo do prazer contempo-
râneo”. (BAHIA, 2002, p.4)

DESENVOLVIMENTO
Peço licença para fazer uma viagem pessoal e autobiográfica, um olhar sobre as ações
me aproximam do assunto arte e manualidade e sobre os “objetos/memórias afetivos”-
que fazem parte deste trajeto.

De acordo com Madaleine Grumet (1990), citada por MASON (2001, p.17):

“Qualquer leitura ou escrita de nossas vidas nos apresenta um desafio que está no
centro de toda a experiência educacional: encontrar um sentido de nossas vidas no
mundo. A autobiografia torna-se um meio para o ensino e pesquisa porque cada
registro expressa uma peça em particular que a autora produziu entre a individuali-
dade de sua subjetividade e o caráter público intersubjetivo do significado. “

As experiências de minha trajetória com as artes manuais, são do universo feminino


e estão repletas de vivências. Inicio pela fala de meu filho que, aos seis anos de idade,

1 O termo “manualidade” é usado no texto como sinônimo de Arte Manual.

88
vendo as habilidades manuais – tricô, crochê, costura, bolachas e biscoitos - da bisavó,
logo a considerou “ a pessoa mais inteligente que ele conhecia”. Parto da premissa, de
que as habilidades manuais nos fazem extremamente inteligentes e sensíveis.

Volto, então, a minha infância em uma família ligada aos fazeres manuais, lembranças
que me são caras, das quais trago memórias e objetos afetivos que construíram a pes-
soa/educadora que hoje sou.

Retrocedo ao inverno, como gaúcha, as lidas do inverno me são preciosas. A faina em


torno da lã, a produção, o reaproveitamento, num constante fazer/desmachar/fazer, des-
manchando e lavando a lã, para novamente tricotá-la. Nossa obrigação de crianças era
servir de base para a feitura das meadas e, ali, acocorados em frente a mães, avós– as fa-
zendeiras da família - fios macios e coloridos eram enrolados em nossos braços e que, de-
pois de lavados, secos ao Sol, para nossos braços retornavam e dali saíam os novelos dos
novos tricôs da estação. São lembranças salpicadas de ternura e respeito. Ter uma blusa
de tricô, era mais que ir até a loja e comprar, era participar de todo esse ritual. E brincar
com os fios? E com as agulhas? Para as crianças, agulhas de madeira, as de metais, que
produziam aquele barulhinho tão delicioso, estas eram das mestras. Objetos afetivos: lãs,
agulhas e o primeiro cachecol que teci, vermelho e branco em ponto “musgo”.

E mais, as colchas de crochê, uma, duas, cem ou mais, pequenas mandalas crochetadas,
ponto a ponto, adormecidas numa cesta ao lado da cadeira, que ganhariam vida sobre
uma cama qualquer quando, todas juntas, formariam uma nova colcha. As produzidas
em lã, mais comuns, produção mais rápida, feita em pequenos quadradinhos, produto
para o dia a dia, cada criança tinha a sua, colorida e macia. As de linha fina, tinham ou-
tro “status”, eram presentes para a noiva do ano, com pontos mais elaborados, na minha
família, só as avós faziam. Objetos afetivos: duas colchas, uma de lã, retrato da minha
infância e a colcha branca do meu casamento.

As bonecas de pano, são um mundo à parte, eram muitas, rolavam pela casa, podiam ser
lavadas, cabelos de lã, impossíveis de serem penteados, roupas que eram retalhos das
nossas roupas velhas. Não eram simples brinquedos, mas um universo criativo, não eram
perfeitas, nem bem cortadas, mas refletiam as preferências e gostos, bem como a alma de
quem as fazia. Objeto afetivo: uma boneca de pano costurada toda à mão pela minha avó.

89
E a lida da cozinha com todo seu cerimonial: pano na cabeça, avental e unhas cortadas,
estamos entrando em um território sagrado, acompanhados da chefe do fogão, é dia
de fazer pão. O cheiro do fermento, da erva doce, a massa macia, a nuvem de farinha,
o pão dourando no forno. Objeto/memória afetiva: o cheiro de pão feito em casa e a
lembrança dos jacarés com olhos de feijão.

Todas estas lembranças são fragmentos de um cotidiano carregado de sensibilidade


e manualidade. Essas vivências enriqueceram o meu caminho pessoal, sendo a base
de minha atuação profissional como arte-educadora-artesã. Sebastião Salgado (SAL-
LES, 2004, p.38), diz que “fotografa com sua história e sua ideologia”, eu, produzo e
ensino com as memórias das mulheres “fazendeiras” de minha família.

De acordo com OSTROWER (1999, p. 18): “ Ao homem torna-se possível interligar o


ontem ao amanhã.” E ligando minhas memórias afetivas com o meu dia a dia, cheguei à
educação e às Oficinas de Arte e Manualidade.

OFICICINAS DE MANUALIDADES
Saindo, temporariamente, da educação formal, passei a trabalhar como artesã indepen-
dente, mas havia um vazio na oficina, algo que somente foi preenchido com a presença
de crianças, meus alunos, que aos poucos foram chegando. Percebi que a ausência da
manualidade, tanto na escola como nas famílias estava alijando as crianças dessa expe-
riência sensível tão importante.

Walter Benjamin, citado por LARROSA (2019, p.18), nos alerta: “ a pobreza de expe-
riências que caracteriza nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experi-
ência é cada vez mais rara.”

“O desdém pela experiência sensível do homem reflete o desinteresse pelo próprio ser
humano, por sua afetividade e suas potencialidades criativas. Revela a indiferença pelo
caráter sensual do viver e pela unicidade da vida. Põe em evidência o clima alienante de
nossa sociedade.” (OSTROWER, 1999, p. 87) Portanto, era hora de abrir o ateliê para
aulas de “manualidade”. Mas que manualidades seriam essas?

90
PRIMEIRA EXPERIÊNCIA – Oficina de Cerâmica
O trabalho se iniciou pela Oficina de Cerâmica, arte que já era o carro chefe do ateliê/
oficina. A intenção era preencher o “vazio” do ateliê com o encantamento das crianças,
propondo a elas a experiência do “fazer manual”.

“A experiência , a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque , requer um gesto
de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm; requer parar
para pensar, parar para escutar, pensar mais devagar; parar para sentir, sentir mais de-
vagar, demorar se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a von-
tade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção, abrir os olhos e os ouvidos,
falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (LARROSA, 2019, p.25)

Nossas crianças também estão envoltas neste burburinho do cotidiano contemporâ-


neo, nesse excesso de afazeres, nessa agenda repleta de compromissos, portanto, a
proposta da Oficina de Arte e Manualidade não deveria ser apenas mais uma atividade
no dia a dia das crianças, mas um momento/espaço em que se possibilitasse a essas
crianças ações sensíveis, no sentido da “experiência ação, escuta, abertura, disponibili-
dade, sensibilidade e exposição.” (LARROSA, 2019, p. 68).

“Entre o tempo sem tempo do museu e o tempo acelerado da técnica, o artesanato é a


palpitação do tempo humano”, segundo nos ensina Octávio Paz. (MATTAR, 2010, p.16)

A proposta deveria ir além do fazer pelo fazer, permeando nossas atividades, trazendo
para as oficinas fragmentos da cultura local e regional. O que se produz no entorno?
Porque produz? Quais as festividades? Quando acontecem? Essas perguntas iam sen-
do respondidas, com histórias, representadas na argila, quadros, personagens, utensí-
lios. Além do prazer da feitura, a contextualização dos fatos e objetos.

A escolha do barro como matéria prima, também foi enriquecedor, tendo em vista que
a “argila é a matéria prima de todas as civilizações e esse caráter histórico lhe dá um
valor especial” (CHIESA, 2004, p. 52) e mais: “O barro (argila) é terra, água, ar e fogo.

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O ciclo do barro me faz pensar no ciclo da vida, em que percebo o processo de trans-
formação presente o tempo todo.”( CHIESA, 2004, p. 53)

Proporcionar às crianças essa possibilidade criativa, transformadora que a modelagem


em argila possui. Trabalhar uma atividade que é, por essência processual, a fora a possi-
bilidade criativa, é um grande desafio: “O barro é como a gente, não gosta de agressões
e não leva desaforo ao forno.” (CAMARGO, 1994, P. 26)

Nesse sentido, desde o início da oficina de cerâmica, a intenção é que as crianças par-
ticipassem de todo o processo – modelagem, secagem, queima e pintura - para que
entendessem a atividade artesanal como um processo que nos leva a um produto. Pro-
duto esse que se reverte em objeto afetivo.

“Na nossa oficina de cerâmica, as pessoas conviveram e conheceram o outro lado da


obediência. Através do barro, elas se colocaram do outro lado do poder. E quando as
mãos começaram a obedecer, nasceu uma grande emoção: aconteceram por exemplo,
que magicamente se transformaram em cabeças de elefante, ratos, corujas. E enquanto
se modelavam cabeças, as histórias mais lindas se narravam: O elefante triste porque não
aguentava o peso da sua tromba. O rato com uma orelha só, por isso escutava pouco. (...)
(CAMARGO, 1994, P. 24)

E assim íamos avançando em um fazer artesanal secular, com suas regras técnicas ne-
cessárias, mas ao mesmo tempo, garantindo o processo criativo e espontâneo, gerador
de objetos e memórias afetivas.

“Vamos imaginar uma criança modelando um boneco: ela sai do plano – do papel - e
entra em contato direto com o tridimensional. Uma dimensão nova e inteira para ela.
Durante o nascimento de seu boneco, ela está gestando sua fantasia e seus núcleos
criativos” (CAMARGO, 2004, p. 30.)

92
Fig.01 – Oficina de Cerâmica

Com as crianças transitando pelo ateliê logo surgiu o interesse por outros materiais,
as histórias nos levavam aos bonecos, dos bonecos aos fantoches, aos livros de pano,
ao bordado, à costura, surge assim a oficina de costura criativa.

SEGUNDA EXPERIÊNCIA – Oficina de Costura Criativa


“ Seja qual for a área de atuação, a criatividade se elabora na capacidade de selecionar,
relacionar e integrar os dados do mundo externo e interno, de transformá-los com o
propósito de encaminhá-los para um sentido mais completo. Dentro de nossas possibi-
lidades procuramos alcançar a forma mais ampla e mais precisa, a mais expressiva. Ao
transformarmos as matérias, agimos, fazemos. São experiências existenciais – processos
de criação – que nos envolvem na globalidade, em nosso ser sensível, no ser permanente,
no ser atuante. Formar é mesmo fazer. É experimentar.” (OSTROWER, 1999, p. 69)

Estava aberta a possibilidade de iniciar um passeio pelas manualidades que acompanha-


ram minha infância, iniciou-se uma experimentação com fios, tecidos, lãs, histórias tintas
e todos os demais materiais que em nossas mãos iam aparecendo. Como diria Gandini:

“(...) os materiais são veículos para expressar e comunicar e fazem parte do tecido das
experiências e processos de aprendizagem das crianças, em vez de serem produtos
separados. As crianças apresentam uma receptividade inata às possibilidades que os
materiais oferecem e interagem com eles para criar significados e relações, explorar
e comunicar. (GANDINI, 2012, p. 32)

93
Retomando nossa fala inicial, puxando um fio que nos ligará ao que foi sendo realizado
na Oficina de Costura Criativa, a interação fértil entre cabeça e mãos, um olhar sobre a
produção artesanal local; vamos falar sobre o cotidiano: o tricô das roupas de inverno,
os ditados populares e o bordado dos panos de cozinha, os retalhos da colcha, a renda
de bilro, o crivo, as redes de pesca, enfim, um passeio pelas manualidades que faziam
parte cotidiano da comunidade e que atualmente, nem todas as crianças têm contato.

Trazendo minhas experiências com relação ao fazer manual e buscando nas famílias
das crianças, seguimos nossa viagem: arte manual – narrativas – memórias – objetos.
Assim, vão surgindo: bolsas pintadas, camisetas bordadas, quadros, longas “tripas de
mico”, tecidos do tear de papelão, o tricô, as mandalas de prego, as flores de feltro, os
bonecos e bonecas das mais variadas formas; peças carregadas de significação – obje-
tos/memórias afetivos.

As crianças tão acostumadas ao consumo de objetos prontos, com a cultura do virtual,


encantam-se com suas produções, com a possibilidade criadora.

“A internet, a comunicação de massa, o futurismo tecnológico, viabilizam uma vida


desmaterializada, paralela à vida materializada. O virtual interage com o material de
forma inusitada e inédita. Essa convivência proporciona menos contato com a rea-
lidade tridimensional o que pode causar a redução da capacidade de percepção da
realidade concreta em que vive. A perda da conexão com o meio ambiente pode de
certa forma, favorecer uma falta de interesse pelo planeta e pode também desestimular
a convivência os relacionamentos entre as pessoas.” (MOREIRA, 2012, p. 44)

É preciso retomar a roda, a cultura do encontro, do fazer coletivo. Octavio Paz (1991,
p. 55) nos adverte “da urgente tarefa de humanizar a sociedade”.

“ É revelador que, apesar de sua natureza marcadamente coletivista, a oficina artesanal


não tenha servido de modelo a nenhuma das utopias do Ocidente (...) Não penso claro,
que a oficina dos artesãos seja a imagem da perfeição; creio que sua própria imperfeição
nos indique como poderíamos humanizar nossa sociedade.” (MATTAR, 2010, p. 105)

Nina Veiga, em uma entrevista, nos ensina que “há uma diferença entre educar crianças
para que elas transformem o mundo e educá-las para consumir o que está pronto.”

94
Fig.03 – Oficina
de Costura Criativa

TERCEIRA EXPERIÊNCIA – OFICINA DE ARTE MANUALIDADE


Quinze anos se passaram desde a primeira oficina de cerâmica. Foram realizadas oficinas
no ateliê e fora dele - Fundação Municipal de Cultura e outros espaços ligados à Arte e a
Cultura – o formato foi se modificando e hoje, o que temos, é uma oficina única que abar-
ca todas as técnicas e materiais que vão surgindo. Estamos abertos, vamos recolhendo as
informações que as próprias crianças e adolescentes nos trazem e vamos criando.

A novidade são os adolescentes, a convite de uma escola de Ensino Médio, desenvolvemos


uma Oficina de Artesanato – como disciplina optativa. É uma experiência que já dura três
anos, que se revela riquíssima, pois o reencontro do adolescente com o poder da sua “manu-
alidade” lhe apresenta um desafio, face à desmaterialidade em que muitos estão envolvidos.

Fig. 04 - Oficina
de Artesanato

Fig.05- Oficina de Arte


e Manualidades
CONSIDERAÇOES FINAIS

“(...) o ritmo da atividade artesanal se inspira na experiência das brin-


cadeiras infantis, e quase todas as crianças sabem brincar bem.”
Sennett, 2019

A intenção ao escrever o presente relato era de iniciar um diálogo entre o fazer artesanal
e a consequente produção de memórias/objetos afetivos. Retornei ao caminho que me
constituiu “arte educadora artesã”, busquei minhas memórias/objetos afetivos. Me de-
brucei sobre os mais de quinze (quinze) anos de atividade com crianças e adolescentes,
tentando entender a importância destas atividades, é apenas um início, muita ainda há
para desvendar.

Segundo, Simon Rodrigues: “O que não se faz sentir, não se entende e o que não se
entende, não interessa.” (MOREIRA, 2012, p.52). Conforme já discorremos, vivemos
tempos de pouca experiência e muita informação, e a proposta das oficinas é o acesso à
produção manual, não o simples ensino técnico de uma determinada arte manual, mas
o ensino poético, o olhar sensível, a produção contextualizada, o respeito ao tempo e
resultado do fazer manual.

Larrosa nos convida a “explorar o par experiência/sentido como alternativa ou como


suplemento a um pensamento da educação elaborado a partir do par ciência/técnica ou
a partir do par teoria/prática” (LARROSA, 2019, p. 46)
Essa é a intenção, propiciar através das oficinas de “Arte e Manualidade” um espaço/
tempo que enriqueça seus participantes de experiências sensíveis, que lhes propicie a
criação de memórias/objetos afetivos, tornando-os sujeitos que sentem, pensam e se
relacionam com o mundo de maneira mais harmônica, respeitando o momento neces-
sário para a produção artesanal, pois, segundo Sennett: “ (...) tempo do artífice, tempo
lento que permite a reflexão.” (SENNETT, 2019, p. 280).

E as memórias/objetos afetivos? Basta um olhar para as prateleiras das casas dos parti-
cipantes das oficinas, lá estão: bonecos, vasos, bordados. Objetos sem preço, carregados
de afeto. Segundo Octavio Paz: “Entre o tempo sem tempo do museu e o tempo acelera-
do do técnica, o artesanato é a palpitação do tempo humano”( MATTAR, 2010, p. 111).

96
REFERÊNCIAS
BAHIA, Ana Beatriz. Bordaduras na arte contemporânea brasileira: Edith Der-
dyk, Lia Menna Barreto e Leonilson. Periscope Magazine, Florianópolis, n. 3, ano 2,
maio/2002. Disponível em: http://www.casthalia.com.br/periscope/anabahia/borda-
durasnaartecontemporanea.htm. Acesso em 23 dez 2019.

CAMARGO, Luís. et al. Arte-educação: da pré-escola à universidade. 2 ed. São


Paulo: Studio Nobel, 1994.

CASTRO, Claudio de Moura. A mão inteligente. O Estadão. São Paulo. 14 dez.


2011. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-mao-inteligente
-imp-,810784. Acesso em: 20 dez 2019.

CHEISA, Regina Fiorezzi. O diálogo com o barro: o encontro com o criativo.


São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

GANDINI, Lella. et al. O papel do ateliê na educucação infantil: a inspiração


de Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso, 2012.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre a experiência. 1 ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2019.

MANSON, Rachel. Por uma arte-educação multicultural. Campinas: Mercado


das Letras, 2001.

MATTAR, Sumaya. Sobre arte e educação: Entre a oficina artesanal e a sala de aula.
Campinas: Papirus, 2010

MOREIRA, Roseli. O tridimensional: dimensões para arte e educação. Blumenau:


Nova Letra, 2012.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 14 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.


PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. 2 ed.


São Paulo: Annablume, 2004.

SENNETT, Richard. O artífice. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.


artigo publicado conforme redação original

Relato do
grupo virtual:
Artes sana - artes manuais
por Beatriz Marcos Telles

RESUMO
Este relato é sobre um grupo de artes manuais criado e mantido pela dinâmica de redes
sociais. O grupo ARTE SANA – artes manuais tem o propósito de ampliar a consci-
ência das pessoas através das artes manuais e para tal se utiliza de pesquisas e compar-
tilhamento de conteúdos diferenciados no sentido de estimular, provocar e convidar à
criação manual autoral, de forma livre e independente e com isso fortalecer o indivíduo,
através da arte, para uma vida mais autônoma, feliz, engajada e criativa.

Palavras-chave: Artes Manuais. Arte Sana. Engajamento pelas Artes. Redes


Sociais.

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INTRODUÇÃO
Frente aos desafios de uma mundo complexo, acelerado e tecnologicamente avançado,
acreditamos que a arte pode contribuir com o equilíbrio total do indivíduo.

Neste paradigma, criamos, em agosto 2016. um grupo virtual no facebook sobre artes
manuais diferenciadas, com conteúdos que objetivam valorizar, incentivar, debater,
estimular às práticas, informar sobre o tema, sinalizar caminhos para quem queira se
desenvolver nas artes diversas e se manter sano, feliz, criativo, engajado. A metodologia
adotada foi o relato de experiência com pesquisa bibliográfica.

O relato acontece embasado na cultura das redes sociais e no incentivo às práticas das
artes manuais que podem trazer equilíbrio ao ser humano.

DESENVOLVIMENTO
Para facilitar a apresentação, seguiremos em quatro itens.

a) Facebook e Redes Sociais


O ARTE SANA – artes manuais foi criado no facebook em 16 agosto de 2016, no contex-
to e dinâmica das redes sociais, beneficiando-se da agilidade, dinamismo e facilidade nas
comunicações, aproximando culturas e pessoas de regiões distantes.

Fernanda Beling (2019) traz a lista das 10 maiores redes sociais elencadas em 2019 e nela
constatamos a liderança absoluta do facebook com 2,41 bilhões de usuários. Esta infor-
mação consta do portal de estudos e estatísticas Statista (novembro 2019). No facebook
os usuários podem criar seu perfil, curtir, comentar, compartilhar conteúdos, ler dos ami-
gos, etc. O facebook é um site de redes sociais multifuncional. (Hollebeek et al., 2014).

No facebook as pessoas acompanham a vida das pessoas, acompanham grupos afins,


curtem marcas e utilizam também para construir capital social. (Smith et al., 2012).

No ARTE SANA – artes manuais compartilhamos: informações sobre abertura de


exposição de artes, lançamento de livros, apresentações de obras de arte e de artistas,

99
vídeo com entrevistas de curadores, vídeos que sensibilizam sobre projetos que con-
vidam participantes a doarem suas artes a um propósito social, como por exemplo,
para combater feminicídio, lama em Mariana, Brumadinho, um link de um manual via
download grátis que ensina a bordar, vídeo sobre Arpilleras do Chile, entrevista com
professora que tem projeto 3ª idade em universidade e que integra literatura e bordado
(Guimarães Rosa, Cora Coralina), exposição sobre desaparecidos na ditadura, exposi-
ção ocorrida com participação de bordadeiras do Brasil doando sua artes, divulgação
do Flipoços 2020 em Poços de Caldas que pela primeira vez no país integrará o bor-
dado, uma arte manual, na programação oficial do evento literário internacional, que
em 2020 homenageará mulheres. O ARTE SANA está ajudando a mobilizar pessoas
para essa homenagem, doando artes bordadas sobre mulheres para a construção de um
painel coletivo para a Exposição Mulheres Bordadas.

No grupo utilizamos vários saberes e colocamos em prática, para manter o grupo atra-
ente com seus conteúdos, suas interações, imagens, dinâmica, etc.

Diariamente estou presente no grupo, incluindo conteúdos, retornando dúvidas, evitando


conflitos, interagindo, pesquisando, aprendendo, informando e trocando saberes na web.

Pela internet ocorre a extensão das relações humanas do mundo presencial, real, ao
mundo virtual. (Ros-Martin (2009)). Para este autor o desenvolvimento pessoal tem
acontecido pelo compartilhamento de novos conhecimentos assim como se pode ad-
quirir a capacidade de organizações conjuntas com outras pessoas na web.

Ao criarmos o Arte Sana – artes manuais, consideramos a facilidade do acesso a redes


sociais, a sua abrangência, a agilidade na difusão de conteúdos e facilidade nas intera-
ções. A construção do grupo ocorre com a alimentação dos conteúdos pesquisados por
todos que queiram participar. O cuidado está somente em seguir as orientações míni-
mas, de trazer para o grupo assuntos ligados à arte manual diferenciada.

Como diz Tapscott (2010), podemos ampliar nossos conhecimentos acessando meta-
foricamente os diversos cérebros espalhados, das mais diversas partes do mundo, se
estes se conectarem e interagirem, postando informações, conteúdos, experiências. As

100
mudanças que estamos vivendo são profundas e tão revolucionárias quanto as gera-
das no momento do sepultamento do feudalismo e da inauguração da era industrial.
A “inovação colaborativa” aproxima pessoas através de produção colaborativa ou até
promovendo protestos virtuais, as conhecidas práticas de ciberativismo.

b) Participantes do Arte Sana – artes manuais e seus perfis


comportamentais
Percebo a presença forte de mulheres, na faixa etária de 30 a 75 anos, que tem na arte
manual uma admiração, um hobby ou um complemento da renda familiar. A maioria
traz afetividade com as artes manuais através de valiosas memórias de mães, avós, tias.
Boa parte delas já produz algo para a família, se fixando nos utilitários do lar (cama,
mesa, banho, enxoval), e algumas atuam em grupos filantrópicos. Outras são profes-
soras de artes manuais em atelieurs ou artistas plásticas. Algumas frequentam o grupo
e interagem esporadicamente com o propósito de divulgar sua arte e comercializá-la
assim como outros serviços (cursos, palestras, exposições, lançamento de livros, vídeo
aulas, etc). O grupo permite esse tipo de divulgação se o item for considerado diferen-
ciado e agregar no desenvolvimento criativo das participantes. No ARTE SANA, esti-
mulamos a arte manual criativa, não replicável e distante dos “riscos prontos” evitando
replicar padrões. Visamos estimular a arte autoral e criativa.

Esperamos que todo trabalho de pesquisa e seleção, que fazemos no ARTE SANA
gere reflexão, amplie consciência, contribua para um melhor engajamento politico e
social, mobilize pessoas para causas sociais, etc. A comercialização pode acontecer no
privativo, entre interessado e fornecedor, sem intermédio da administração do grupo.
Todo trabalho no grupo, tem ocorrido de forma voluntária, sem apoiadores, patrocina-
dores, fornecedores e sem venda de espaços publicitários.

Alguns participantes se mantem no grupo para se informar, se atualizar e buscar inspira-


ções artísticas, ampliar sua visão e se permitir, através do universo das artes manuais, alçar
voos a territórios inusitados. Outras participam e interagem muito para combater a soli-
dão da idade, do ninho vazio, de processos depressivos. Percebo isso em mulheres na faixa
acima dos 60 anos, que gostam muito de escrever (posts longos) e gostam de compartilhar
memórias familiares que se identificam, de alguma forma, com o conteúdo compartilhado.

101
A arte parece completar a vida e ampliar as suas possibilidades (Vigotski (1998, p. 313)).
Dar vazão aos sentimentos, poder expressá-los pela arte, expressar os olhares que tem
do mundo, da sociedade, das épocas, das tristezas e melancolias, assim como das ale-
grias é uma oportunidade para se manter saudável.

Criar, desenvolver-se, envolver-se, mobilizar grupos para fazer arte, silenciar-se para
expressar, são muitas possibilidades que podem ser transformadoras no ambiente das
artes manuais oportunizados no ARTE SANA. A verdadeira natureza da arte sempre
implica algo que transforma (VIGOTSKI, 1998, p. 307).

Através da arte o indivíduo pode se ressignificar, entender melhor seus processos inter-
nos e se refazer tantas vezes quantas forem necessárias. “O ato estético dá à luz o existir
em um novo plano axiológico do mundo, nascem um novo homem e um novo contexto
axiológico” (BAKHTIN, 2003, p.177). “Nos processos de criação artística, o ser huma-
no se objetiva e subjetiva, transformando realidades, criando significados para si e para
os outros” (ZANELLA et al., 2005, p.198).

c) Conteúdos selecionados e compartilhados


Os conteúdos são encontrados via buscas aleatórias pela internet através de perfis de
artistas do facebook, de grupos, instituições de arte, repositórios de pesquisas acadêmi-
cas, youtube para pesquisar vídeos, sites, jornais eletrônicos, blogs, outros grupos de
artes manuais, etc.

Nosso interesse é amplo mas insistimos na arte diferenciada pois buscamos o que amplia
a consciência, que sai do modelo repetitivo de reprodução do que já foi criado. Buscamos
arte que nos provoquem a também criar, que nos tire de uma situação de conforto, den-
tro do mesmo para nos arrebatar a lugares novos, sem segurança e que podemos sim nos
experienciar, nos laboratoriar . Esse é o papel central do ARTE SANA. Inspirar para
fazer arte diferente, provocar para que as pessoas encontrem uma técnica de expressão
e se permitam a novos caminhos internos e externos, novas descobertas de si. Há várias
possibilidades embora as linhas e os têxteis ocupem destaque, frente à prioridade da ges-
tora do grupo que compartilha o que ela busca para seu desenvolvimento. Naturalmente,
já lidamos com polêmicas e desafios. A seguir, destacamos alguns.

102
d) Desafios enfrentados
Observamos e destacamos a este relato três situações interessantes ocorridos no grupo,
ao postarmos sobre bordado à mão livre em contextos diferentes. A primeira, refere-se
a posts que resgatam memórias afetivas e histórias de vida que por unanimidade obtive-
mos retornos positivos dos participantes e seguidores do grupo. Trazemos aqui o caso
do grupo Matizes Dumont, referência em bordado no Brasil.

A segunda, quando postamos sobre militância política não no sentido partidário mas
para mostrar que uma arte manual tem sido usada na contemporaneidade como ex-
pressão de militância, de indignação social, injustiças, denúncias etc, como exemplo o
coletivo Linhas do Horizonte.

A reação no grupo, quando isso ocorreu pela primeira vez, época de eleições foi terrí-
vel. As pessoas se desrespeitavam e pressionavam a gestora para retirar o post que era
considerado político e que isso não constava da regra do grupo. Este foi um momento
muito interessante. Apesar de ter me exigido uma presença muito mais próxima e bem
pontuada durante boas horas dos dias, após avaliação, percebi que era um ótimo mo-
mento para conscientização e para se refletir em grupo sobre o respeito às diferenças
de opiniões sem ofensas,etc exatamente o que faltava no país e mundo gerando sérios
problemas entre os povos e comunidades.

Depois desta época, voltei a postar do mesmo grupo militante do país e percebi um
amadurecimento do grupo. Percebi pelos comentários que independente do partido em
questão as pessoas já conseguiam olhar o valor da arte manual como ferramenta expres-
siva de uma causa e isso era minha intençao central, conseguir que percebessem o fato.

A terceira situação referiu-se a post erótico, no contexto em que bordado erótico se am-
pliava no país fortalecendo uniões homoafetivas e denunciando perseguições e violências
contra pessoas dos grupos LGBT´s. Como exemplo temos o Clube do Bordado, um
grupo de meninas muito organizado e profissional que ficou reconhecido pelo bordado
erótico. A primeira vez que postei no grupo, percebi pessoas muito tradicionais se ofen-
dendo com as imagens bordadas que giravam em torno de beijos homoafetivos, abraços
e olhares sensuais bem ilustrados e até lúdicos. As manifestantes que criticavam usavam
argumentos da religião, moral, etc. E novamente investi tempo aproveitando o momento

103
para gerar reflexões, realizar pesquisas sobre dados quantitativos mostrando o assunto
em vários países, etc. Novamente, em momento posterior, percebo as pessoas comentan-
do outros aspectos sem se sentirem ofendidas com a imagem ou provocação do tema. Já
conseguiam comentar, elogiar a técnica do bordado, algumas já elogiavam, etc.

Com isso, constatamos que vale muito gerir atentamente estes pontos que surgem e
ampliar a reflexão com respeito e apoiando na construção e ressignificação de valores,
se for o caso. Estes três momentos me foram de extremo aprendizado sobre grupos
femininos em redes sociais. O tempo realmente é um aliado. [...] O tempo o que é? [...]

Tento recompor este tecido gasto trabalhando com a agulha mais fina para não ferir
demais as fibras envelhecidas, Ajeito os óculos com mãos meticulosas, e me lembro de
que, quando pegava o bastidor e sentava no sofá do lado oposto de minha mãe, o risco
logo surgia nítido diante dos meus olhos, um traçado azul, mapa da viagem a ser inicia-
da. O tempo emprega os seus pequenos instrumentos de tortura, com os quais nos fere
sem grandeza. A enlouquecida teimosia que me levou a retomar esse bordado quase
impossível de ser recuperado é a mesma que me atirava na infância as empreitadas mais
absurdas, pelo gosto de desafiar a ordem das coisas, a tirania das tramas secretas que
conduziam nosso destino. (Jardim, 1984, p.3).

Assim como o ato de bordar requer paciência, coragem, audácia para novas descober-
tas, para se lançar perfurando tramas têxteis, desvendando novas composições, entre
cores e pontos, fios e matizes, as mulheres tem se lançado em busca de novas expres-
sões, em novos espaços que a fortaleçam, longe do estereótipo da feminilidade reclusa,
espaços em que suas contribuições vão além dos domésticos e sejam reconhecidas, não
como algo insignificante ou invisível, de pouco valor.

Participar de grupos de arte, na web parece que tem sido uma escolha interessante para
estas pessoas que podem viajar, sonhar, concretizar, planejar, organizar e se mobilizar
em grupo para mudar seus destinos através da arte que admiram ou que materializam,
ou que planejam materializar num encontro marcado para um chá da tarde com as ami-
gas para fazer arte, bordar histórias, compartilhar lamentos, sonhos, ou construírem
uma nova mobilização a favor de uma causa humanista, feminista, contra preconceitos
ou de denúncia política, como queiram.

104
As novas gerações ressignificando o bordado e outras artes manuais contribuíram mui-
to a esta retomada e valorização, reflexo de uma sociedade altamente tecnológica e ace-
lerada, o que é natural, o movimento compensatório, slow life, handmade.

Com o amadurecimento de todos, com muita paciência e dedicação, comprometimento


com o propósito maior do grupo, conseguimos avanços. Constata-se que a informação
democratizada é relevante ao amadurecimento humano e com isso, há opções de seguir
pelo caminho a ou z, de pelo menos ter a informação dentro de um ambiente que o partici-
pante se interessa e se mantem, é relevante insistirmos nesta postura, acreditamos nisso. É
possível, através desse grupo aprender a ressignificar valores morais, culturais e políticos.
Gerar reflexões e mudanças de olhares através das artes manuais parece-me um aspecto
interessante a ser investigado e melhor disseminado pelo ARTE SANA.

As mulheres, durante muitos anos, foram educadas para agir dentro de um modelo
favorável ao patriarcado da época e isso traz reflexões fortes até a atualidade. Alguns
assunto são tradicionalmente considerados de domínio masculino, como política, sexo,
prazer. Assim, é normal encontrarmos mulheres se estranhando nestas áreas quando
uma arte tangencia estes aspectos, talvez isso justifique as polêmicas descritas.

Pesquisas sobre a prática do bordado e o feminino trouxeram que as mulheres herda-


ram pouco ou nada de outras mulheres (avós, mães, filhas, bisavós, tias, madrinhas) que
tivesse valor à época, cuja sociedade era patriarcal. As heranças das artes, de habilidades
femininas eram pouco ou nada valorizadas deixando as mulheres na invisibilidade, eram
fazeres de “valor menor”, insignificantes.

Em Almeida (2003) encontramos que as mulheres não eram donas dos seus nomes,
dos seus destinos, dos seus sonhos e muito menos do seu patrimônio então o que elas
poderiam herdar das suas mães, avós, tias, bisavós, madrinhas? É lembrado que até o
sobrenome feminino se altera para ela ganhar o do marido, que a protegerá e a manterá,
perpetuando esse sobrenome masculino nos filhos tornando invisível o materno.

Na pesquisa de Almeida (2003), temos Bárbara Ozieblo (1998) citando Virginia Woolf
quando esta percebe que nas bibliotecas universitárias não existiam autoras. Com esta
constatação, Woolf segue concluindo que as mulheres herdam de suas mães uma histó-
ria de miséria e desvalor, invisível, sem importância, sem relação com dinheiro.

105
Almeida (2004) traz que as representações antigas do feminino começaram a se mo-
dificar a partir do momento que as mulheres passaram a ter maior domínio dos seus
corpos, controlando contraceptivamente suas capacidades reprodutivas e assim sua se-
xualidade, trazendo maior liberdade na escolha dos pais dos seus filhos. O Movimento
Feminista e a literatura de autoria feminina, ocorridas pós anos 60, contribuíram para a
construção de uma nova história às mulheres em que as suas necessidades, desejos, fan-
tasmas, sonhos, projeções, projetos, tiveram espaço para ser e existir (Almeida, 2004).

Este resgate e pesquisa de Lélia Almeida muito nos enriquece pois, pode talvez justifi-
car alguns incômodos que ainda sentimos em determinadas situações, como por exem-
plo as polêmicas citadas neste item, ocorridas no grupo virtual ARTE SANA, sobre
militância política feminina através do bordado e a arte expressando erotismo. Mais
um momento deste relato interessante a uma nova investigação.

Frente ao exposto e discutido, fortalecemos a importância das redes sociais para os pro-
pósitos do ARTE SANA. Boyd e Ellison (2007) definem redes sociais como: [...] Ser-
viços baseados na web que permitem aos indivíduos a (1) construir um perfil público ou
semi-público dentro de um sistema limitado, (2) articular uma lista de outros usuários
com quem eles compartilham uma conexão, e (3) ver e percorrer sua lista de conexões e
aquele feitos por outros dentro do sistema. A natureza e nomenclatura dessas conexões
podem variar de local para local (p.211)

Desta forma, seria impossível não aproveitar um espaço tão amplo para gerar reflexões,
revisões de posturas e oportunizar com informações selecionadas, através das artes feitas
à mão, assim como a mudança de rumo pela vida, que pode ser feita à mão, com calma,
com dedicação e paciência. Cabe exercitar, experienciar novos trajetos e territórios, bus-
car mais leveza talvez, buscar mais voz, gritos e presença. A escolha é individual mas para
tal todos precisam se permitir a novos conhecimentos para poder optar livremente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este relato sobre o grupo virtual Arte Sana – artes manuais (facebook) trouxe que as
redes sociais podem facilitar as comunicações e interações sobre artes manuais e devem
ser consideradas.

106
No relato observamos que o grupo ARTE SANA – artes manuais cumpre um papel so-
cial de disseminar conteúdos, informando, atualizando e inspirando pessoas às artes ma-
nuais porém, é possível surgirem outras possibilidades de abordagens no sentido de gerar
reflexões educativas, para um mudança de posturas, olhares ou até ampliar a consciência
cidadã e para tal a presença constante do administrador do/no grupo é fundamental. O
papel de moderação de grupo (administrador, gestor, facilitador) é muito importante para
os retornos pontuais e/ou promover as interações, debates, apaziguar conflitos, etc.

Conhecer o perfil dos participantes em redes sociais é fundamental para a busca dos
conteúdos e talvez um assertivo direcionamento na condução das reflexões lançadas,
quer sejam da área filosófica, educacional, consciência política, arteterapêutica, comer-
cial empreendedora, dentre outras. A categorização de alguns perfis comportamentais
no grupo pode ser fator de diferenciação para uma boa orientação, assim como para
experimentar novas construções que se deseje propor.

Mostramos que uma composição de saberes pode apoiar no bom desenvolvimento de


um grupo virtual de artes manuais, como sobre marketing, comportamento na web,
negociação, cultura de redes sociais, educação, comunicação e artes manuais.

Conhecer as várias possibilidades técnicas das redes sociais pode ajudar muito nas in-
terações e facilitar nos processos a serem construídos coletivamente ou não, como por
exemplo construção e disponibilização de vídeos, lives, criação de canais cuja chamada
pode acontecer no grupo e tantos outros desmembramentos que a tecnologia oferece e
para tal domínio há necessidade de novos aprendizados.

Gerir um grupo virtual de artes manuais no paradigma das redes sociais é desafiante e
requer atenção total e praticamente diária frente ao dinamismo da sociedade, dos inte-
resses momentâneos e da vida efêmera.

Naturalmente tivemos desafios, alegrias, aprendizados e desdobramentos de um traba-


lho totalmente voluntário. Do lado do administrador/criador do grupo, foi bem frutífe-
ro. Cito alguns exemplos: meu desenvolvimento na arte naif com linhas, facilitado pelos
conteúdos e pessoas pesquisadas pela web; os estudos autodidatas; as vastas pesquisas;
as participações em exposições naifs pelo país; o convite para co-curadoria do Ciclo

107
Literatura, Mulheres e Bordado, no FLIPOÇOS 2020 em Poços de Caldas-MG (um
festival internacional literário que pela primeira vez no Brasil, terá uma arte manual
incluída em sua programação oficial, o que fortalece a arte manual, no caso o bordado,
a partir da ocupação de novos espaços e territórios, dando visibilidade a mulheres ta-
lentosas que ficaram invisíveis por tantos anos. Acrescento que neste festival literário
tivemos a oportunidade de realizar uma exposição de Mulheres Bordadas com envolvi-
mento de todo país, convite feito para construção de um painel coletivo com obras bor-
dadas feitas por pessoas diversas); a oportunidade singular de participar do Congresso
de Artes Manuais para Academia e com isso relatar o grupo ARTE SANA – artes
manuais que desempenha um papel social a favor da arte, inspirando suas práticas no
sentido de trazer sanidade aos indivíduos dentre outros benefícios.

Lidamos com limitações, como por exemplo da nossa impossibilidade momentânea de


fazer pesquisa netnográfica frente ao fator tempo. A abordagem é valiosa, interessante,
útil e abre portas a futuras investigações do tema ou que possam sugerir desdobramen-
tos a pesquisadores interessados. Com este relato esperamos contribuir a futuras pes-
quisas e ao ganho de visibilidade e reconhecimento que as artes manuais são merecedo-
ras. Como contribuição a futuras pesquisas acadêmicas deixamos algumas sugestões:

1)Pesquisa netnográfica qualitativa e quantitativa , com respaldo teórico, para le-


vantar os perfis comportamentais dos participantes dos grupos de artes manuais.
Para Noveli (2010), a Netnografia surge em função da necessidade da academia abor-
dar um novo ambiente, que seria o virtual. Este novo “espaço” não está necessariamente
separado do espaço físico, isto é, o mundo online seria uma continuidade da realidade
do ambiente off-line. Nesse sentido, é interessante notar que, dentre as comunidades
ou grupos que um pesquisador viria a estudar, pode-se destacar o ambiente puramente
virtual. Logo, os etnógrafos precisam incorporar a Internet em suas pesquisas para
entender adequadamente a vida social na era contemporânea.

2) Pesquisa para identificar a influência da arte manual na vida das pessoas que par-
ticipam de grupos virtuais. Saúde mental? Física? Nível de satisfação pessoal, aceita-
ção, orgulho próprio? Tolerância às inovações da contemporaneidade?

3) Pesquisar quais tipos e formatos de conteúdos preferidos pelos participantes de


grupos virtuais. Em vídeos? Mesclar imagem e texto? Matérias jornalisticas? Lives?
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Pós Graduação Letras Mestrado Doutorado -. V.9, n.47 Universidade de Santa Cruz
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110
feminino
narrativas
cicatrizes

corpo
empatia
vida
querer

compartilhamentos

arte-manual

111
Escrever e falar sobre o feminino é também contar sobre a formação
dos povos, das diferentes culturas, da configuração da história. Em
uma narrativa contínua, os fios estão nas centenas de anos da humani-
dade, uma das principais formas de expressão das mulheres, em meio
a vozes, cantos e silenciamentos.

No crochê, na feltragem, no bordado, evoca-se a voz que perpassa as


subsequentes eras, décadas, anos. Como pontos nas mãos ágeis, as
horas compõem os dias e o legado passado entre gerações, surge em
compartilhamentos no recôndito do lar, convívios pacientes.

Em meio a dores, alegrias e conquistas, as habilidades têxteis se apre-


sentam como elos entre avós, mães e filhas, testemunhas de um legado
aptas a olharem-se mutuamente em ciclos de empatia e generosidade.
Os textos apresentados a seguir tratam disso.

Que laçadas, nós e entrelaçamentos continuem suas tramas e que os


gestos de afeição e doação se proliferem.

Joedy Luciana Barros Marins Bamonte


Além do bastidor:
Ciranda de
narrativas femininas
por Ana Maria Gomyde de Oliveira

RESUMO
O presente artigo se propõe a apresentar reflexões sobre as relações entre os mitos e
as narrativas poéticas escritas por Marina Colasanti. A análise articula-se com a busca
da mulher por sua identidade subjetiva e objetiva, o seu “ser no mundo”. Para tanto,
foi analisado, entre outros, o conto “Além do Bastidor”, observando-se o ‘ser mulher’,
a construção de suas tessituras ao longo da história, os seus quereres e os seus silencia-
mentos. Ademais, tomou-se como referência o bordado, enquanto ato que transforma o
espaço do bastidor em tela construída por meio do movimento, do fazer, sentir e pensar.
Para tanto, Silvia Federici, Clarissa Pinkola Estes, Marina Colasanti, Richard Sennett,
Tim Ingold e outros autores foram utilizados como base teórica na construção deste
trabalho. Foi possível concluir que a vazão dos sentimentos, através do ato de bordar,
leva a um não silenciamento da mulher, haja vista que ali se perpetuam suas memórias
ancestrais e vivenciais e o seu querer, traduzidos em riscos, pontos e gestos. O bordado
como um sinônimo de registro escrito das sensações femininas, valorizando a trajetória
pessoal de cada mulher e buscando enriquecimento do acervo coletivo feminino na cons-
trução de (novas) narrativas: escritas, faladas e bordadas.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher. Silenciamento. Bordado. Narrativas. Ancestral.

113
1 INTRODUÇÃO
“Não se nasce mulher, passa-se a sê-lo.”
Simone de Beauvoir

Ser mulher é um grande mistério: as mulheres nascem e aprendem determinadas regras


e comportamentos supostamente pertencentes ao universo feminino. A história traz inú-
meros dados que revelam a opressão sofrida desde sempre e, até mesmo, os contos de
fadas, os mitos e a arte nos dão pistas da construção social do “ser mulher”.

Neste artigo, discorrer-se-á, brevemente, sobre tais aspectos, focando-se, principalmen-


te, na coragem necessária que o “ser mulher” exige, tendo como pano de fundo o borda-
do enquanto código comunicativo libertador. A escolha do tema justifica-se à medida
que, ainda hoje, em pleno século XXI, a mulher sofra com a violência física, psicológica,
emocional e simbólica. E, muitas vezes, permaneça calada. Outro ponto fundamental é
o fato de que, mesmo de forma um pouco mais velada, ainda sejam as principais respon-
sáveis pelos afazeres domésticos e pela criação dos filhos, acumulando funções dentro
e fora de casa, haja vista ser alto o número de mulheres que, graças às conquistas nos
âmbitos público e profissional, ocupam um espaço no mercado de trabalho.

Além disso, no que diz respeito à educação das crianças, há um elevado índice de mães
solteiras que lutam para sustentar, praticamente sozinhas, sua prole. Isso, aos olhos da
sociedade brasileira, ainda fundamentalmente patriarcal e machista, é algo ‘natural’.
Cabe a ela o papel de alimentar, cuidar, educar, sustentar e, ainda por cima, carregar a
culpa de nem sempre dar conta de tudo. Contudo, faz-se necessário questionar se tais
papéis sociais, definidos como próprios da mulher, fazem sentido hodiernamente. Be-
auvoir (2002, p. 15) há muito tempo afirma que “a mulher não se reivindica como sujeito,
porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a
prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se com-
praz no seu papel de Outro.”

114
Nesse sentido, vê-se que a construção social do “ser mulher” passou por incontáveis fa-
ses, nas quais diversos estereótipos foram amplamente difundidos, tais como a figura da
bruxa, da transgressora, da louca. Porém, o inconsciente coletivo de parte da população
mundial almeja, há séculos, é que a mulher se caracterize apenas como a boa moça, que
se porta como estabelecido pelo patriarcado, associada à maternagem e aos cuidados,
assemelhando-se à imagem de Maria, que abraça o mundo e dá colo.

Interessante pensar no contraponto. A imagem de Maria se revela nas imagens bizanti-


nas, no início da consolidação da Igreja, por volta de 300 d.C., como uma figura impe-
rial, no trono. Até o século XIV, a imagem de Maria é mais maternal, patrocinada pelos
ideais burgueses, de família. E, com a disseminação dos valores franciscanos, Maria, em
diversas pinturas e imagens, aparece como uma mulher humilde, voluntariosa.

Por outro lado, há a temida imagem da bruxa, associada à selvageria, à transgressão


das regras, ao diabólico, ao esotérico e a tudo o que não se entende nem se explica.
Entre 1550 e 1650,
o fato de que a figura da bruxa fosse uma mulher também era enfatizado
pelos demonólogos, que se regozijavam por Deus ter livrado os homens
de tamanho flagelo. [...] Martinho Lutero e os escritores humanistas
ressaltaram as debilidades morais e mentais das mulheres como origem
dessa perversão. De todo modo, todos apontavam as mulheres como
seres diabólicos. (FEDERICI, 2017, p. 324).

Ainda, de acordo com o autor, a mulher-bruxa representava a imagem de uma velha


sombria, sugerindo uma ideia negativa, associada aos sacrifícios e à morte, a qual utiliza-
va corpos infantis para manipular poções. Ademais, a mulher era vista como um ser que
cedia às tentações, sendo necessário, assim, que os homens controlassem seus corpos.
Tal estereótipo perpetua até os dias atuais, nos contos de fadas e no imaginário popular,
devido às tentativas ferrenhas da ordem patriarcal em silenciar as mulheres e os seus
quereres. (FEDERICI, 2017)

No período pós-Idade Média ainda era muito proeminente a dualidade entre o bem
e o mal, entre Deus e o diabo; por isso, utilizava-se a narrativa religiosa para justificar
múltiplos acontecimentos, tais como a mortalidade infantil. E, não raras vezes, isso era

115
associado à figura da mulher que, simbolicamente, retratava o caos, a desordem, a im-
pureza e a fraqueza humana. Segundo Anchieta (2019), a imagem da bruxa passou por
momentos distintos na história:

Mais do que uma misoginia, um ódio em relação às mulheres, havia também na


construção dessa estereotipia das bruxas um fascínio e um temor. Ela é uma “margi-
nal atrativa”. É possível observar isso nas próprias imagens, que geralmente trazem
mulheres jovens e bonitas. A associação da bruxa à velhice e à decrepitude acontece
só mais tarde, no final do século 16 e no século 17. (ANCHIETA, 2019, p. 1).

Para a mesma autora, os elementos femininos foram demonizados:

A construção da estereotipia da bruxa é muito interessante: é feita por um conjun-


to de inversões de funções tidas como femininas. Se a mulher produz alimento, a
bruxa produz o veneno que mata os homens. Se a mulher é a que dá a vida, a bruxa
comete o infanticídio. Se a vassoura pertence à domesticidade, para a bruxa ela é
o veículo para as orgias sabáticas. A imagem da bruxa é a imagem da transgressão
das funções tidas como femininas. (ANCHIETA, 2019, p. 1).

Nas histórias de tradição oral, observa-se que a


mulher madura é má e ameaçadora; já a jovem
princesa, cuidadosa, delicada e maternal. Estés
(1994, p. 31) revela o poder das narrativas nas
construções sociais: durante décadas, “foram
arrasados e encobertos os mitos e contos de fa-
das que explicavam mistérios antiquíssimos das
mulheres. Da maioria dos contos de fadas [...]
foi expurgado tudo que fosse escatológico, se-
xual [...] ou que se relacionasse às deusas.”

As Bruxas, de
Hans Baldung,
Grien (1510).

116
Sendo assim, a análise das fábulas, dos contos de fadas e dos mitos permite sua res-
significação justamente a partir do que “falta”, dos pedaços possivelmente omitidos ou
transformados para atender as demandas de distintas épocas, como no período me-
dieval, por exemplo. Desse modo, segundo Estés (1994), nota-se que os costumes e os
princípios femininos foram sendo substituídos por valores patriarcais, “podando-se” o
poder ancestral da mulher.

2 A MULHER: RAMOS E FIOS NA OBRA DE MARINA COLASANTI

Nunca Rosamulher fora tão rosa.


E seu coração de jardineiro soube
que nunca mais teria coragem de podá-la.
Nem mesmo para mantê-la presa em seu desenho.
Marina Colasanti, excerto do conto “A mulher Ramada”.

Em “A mulher Ramada”, Marina Colasanti, com sua linguagem poética, resgata o mito
de Pigmalião, segundo o qual uma escultura é transformada em mulher. No conto, um
jardineiro solitário esculpe uma mulher com ramos para lhe fazer companhia; todavia, dia-
riamente ele a poda, para que não ultrapasse os limites da ramada. Ao adoecer, ele deixa de
podá-la e, em seguida, brotam rosas do peito da mulher e o jardineiro não a reconhece mais.

É possível, ao ler o conto, fazer a seguinte analogia: a poda diária equivale à definição
do patriarcado sobre os limites do “ser mulher”, da mulher aceitável. Assim que a poda
cessa, há a libertação e os ramos crescem demasiadamente. A narrativa sugere que a
mulher “se busca” através dos ramos apontados para direções diversas e, por não pos-
suir um final determinado, pensa-se em um continuum. Até onde irão os ramos?

Vê-se que o conto retoma o mito de Pigmalião: a mulher preconcebida deixa de se ma-
terializar, pois os ramos escapam do controle do jardineiro, havendo uma libertação da-
quilo que foi previamente projetado. O movimento do patriarcado de idealização da

117
figura da mulher pode ser visto como um modo de prender a mulher a uma fôrma, a um
desenho, ao aparar seus ramos selvagens.

Nas palavras de Estés (1994, p. 44), “todos nós começamos como um feixe de ossos perdi-
dos [...] é nossa responsabilidade recuperar suas partes, [...] a indestrutível força da vida, os
ossos.” A mulher tem que alcançar os seus fios, recuperar a força dos ramos suprimidos pelo
machismo, dos ossos perdidos, que dão sustentação ao “ser mulher” em sua completude.

Em sua obra, inúmeras vezes, Marina Colasanti alude ao fio, ao bordar, ao tecer, trazen-
do a figura da mulher como aquela que cria e se recria, em um processo de busca de vida,
de existência, de ser no mundo e de ser mulher. Em seus textos, os fios aparecem como
símbolo arquetípico ligado às vivências femininas no decorrer da história. Portanto, o
fio atua como código de comunicação, caracterizando a expressão feminina. Uma vez
que a voz da mulher foi oprimida pelo discurso patriarcal por meio do fio ela torna a se
pronunciar. É o que se pode tecer enquanto uma possibilidade de análise.

Sobre tal aspecto, Gould (2007, p. 19) explicita que “o ato de tecer é uma metáfora de
transformação, e transformação é trabalho de mulher. A mulher da casa tece linho ou lã
fazendo um fio com o qual faz roupas.”

No poema “Viagem por um fio”, apresentado na epígrafe do item seguinte, há um ten-


sionamento, um “duelo” entre masculino e feminino, presente e passado. O homem se
atém ao laptop, ao passo que a mulher borda. Essa imagem traduz, de certa forma, a
resistência da mulher ao que lhe foi tirado em determinado momento histórico e em
sua relação com o parceiro, porque o bastidor, enquanto o seu próprio espaço, permite
que o fio dê vida ao traçado das linhas; a agulha, por sua vez, metaforicamente, é a sua
ação, a sua persistência.

Já no conto “Fio após Fio”, as irmãs Nemésia e Gloxínia bordavam um manto de seda
branco, não obstante com posturas bastante diferentes: Gloxínia desejava a perfeição,
bordava e desmanchava; Nemésia exalava confiança em seu bordado. Eis que a primei-
ra, por fim, tece uma palavra mágica e, com isso, alcança a perfeição: “Gloxínia seguia

118
sem desmanchar. Encantou-se com o trabalho. Já não dormia. Colhia o fio da teia mais
próxima e logo mergulhava a agulha cantando na cadência dos pontos obedientes.”
(COLASANTI, 2015, p. 27)

O conto descreve o ato de tecer, de desmanchar e de transformar através de duas per-


sonalidades diferentes que cada uma ao seu modo cria para si. Uma é competitiva; a
outra, segura. Ainda assim, ambas ‘se prendem’ em seus destinos: uma é transformada
em aranha, sendo privada da vida em sociedade e a outra fica presa na teia da irmã, sem
poder exibir seu manto branco perfeito. Nota-se que o conto remete ao mito da mortal
Aracne e de Atena, deusa das fiandeiras: a jovem, excelente tecelã, desafia Atena e, como
castigo, a deusa a transforma em uma aranha, descrevendo a rivalidade e o poder sobre-
natural das mulheres.

Segundo Flores (2000), as mulheres teciam como forma de sublimação. Em seus redu-
tos, criavam uma ‘teia’ de acordos e segredos umas com as outras. Como em uma teia,
ficavam presas aos emaranhados de pensamentos; todavia, era assim que transcendiam
suas angústias. Logo, o bordado, os fios, as teias representavam um código de comuni-
cação libertador.

Na obra de Colasanti, os mitos são ressignificados: seus ‘Contos de Fadas’ abordam


aspectos míticos com o intuito de problematizar, poeticamente, a figura da mulher. Para
maior conceitualização das narrativas míticas recorre-se à Chauí (2003) que afirma:

o mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros,
da terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos,
do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de tra-
balho, das raças, das guerras, do poder etc. (CHAUÍ, 2003, p. 43).

A imagem parece descrever as Moiras, três irmãs – Cloto, Láquesis e Átropos – que
tecem o destino dos deuses e dos homens. Cada fio representa uma vida. Quando o fio é
cortado, surge a morte que, assim como qualquer tipo de ruptura, pode, simbolicamen-
te, significar transformação, oportunidade de outro momento.

119
Um fio de ouro
(1885), de John
Melhuish Stru-
dwich (Inglaterra,
1849-1937).

O mito das Moiras também remete o leitor ao conto “Fio após Fio”, retomando a ideia
de ‘aprisionamento’ nas teias tecidas pela aranha, em que se revela um processo de trans-
formação de um estado. As duas irmãs acabam aprisionadas em suas teias, sugerindo
morte e transformação: a maneira que conduziam suas vidas já não era mais possível.

Conforme discorre Branco (2002, p. 12), “a morte simbólica pode ser despertada pela
possibilidade de morte física. Mas isso não impede a pessoa de aproveitar essa oportu-
nidade para se reconstruir. É um fato externo que remete a um desafio interno”. A luta
da mulher por uma condição mais justa e igualitária, refletindo sobre aspectos sociais e
históricos, sempre esteve atrelada a momentos de morte e reconstrução: morte de uma
situação injusta para a construção de uma sociedade em que as mulheres tivessem seus
direitos, reconstruindo a identidade da mulher, tanto individual, como coletivamente.

Sobre isso, Monteiro (2008) explica

no Brasil o feminismo não teve a atuação latejante que na Europa e na América do


Norte houve nos séculos XVIII e XIX. Entretanto, o Movimento Social de Mulhe-
res, tanto no Brasil como em diversos países do globo, teve larga importância em
toda alteração do pensamento a respeito da mulher e de sua função que hoje conhece-

120
mos, vivenciamos, mesmo que esse pensamento não signifique ainda a maneira ideal
de como gostaríamos que os gêneros fossem tratados, diferentes, mas não desiguais.
Logo, o movimento feminista teve atuação fundamental nas conquistas de direitos e
valorização de várias gerações de mulheres. (MONTEIRO, 2008, p. 97).

O fio da luta das mulheres e sua busca por identidade e individualidade se explicitam
no pensamento de Santos (2003, p. 56) ao afirmar que: “Temos o direito à igualdade
quando a diferença nos inferioriza e o direito à diferença quando a igualdade nos desca-
racteriza.” Faz-se necessário expor esse importante tecido no presente artigo, já que as
vozes da mulher silenciada no decorrer da história utilizaram, em seus espaços privados,
por muito tempo, o ‘tecer’ como código comunicativo de não silenciamento. A morte
simbólica da voz pela vida no tecer, pela magia construída nesse ato.

As narrativas que possuem a figura da mulher com elementos de poder e poder sobre o
próprio destino contribuem para o fortalecimento de um discurso que reconstrói a iden-
tidade da mulher no mundo, assim como o ato de tecer apresenta-se como um discurso
feminino que metaforiza esse poder.

Como bem aponta Foucault (1999), assim como os discursos patriarcais disseminam
verdades e poderio, as narrativas em que as mulheres assumem seus próprios destinos
tecem suas vidas, bordam suas histórias e são construtoras de um discurso próprio, in-
vestido de força feminina. Para maior aporte teórico,

trata-se, então, de constituir-se e reconhecer-se enquanto sujeito de suas


próprias ações, não através de um sistema de signos marcando poder sobre
os outros, mas através de uma relação tanto quanto possível independente
do status e de suas forças exteriores, já que ela se realiza na soberania que
se exerce sobre si próprio. (FOUCAULT, 2007, p. 92).

Assim, o espaço da mulher (o lugar de suas narrativas) está para além do bastidor; ain-
da assim, este espaço assume uma potencialidade para que suas narrativas sejam como
asas, assumam um lugar, reconstruindo-se, em um movimento de vida e morte, o abrir e
o fechar de asas, em novas possibilidades de recriação.

121
2.1 ALÉM DO BASTIDOR: ANCESTRALIDADE, MEMÓRIA E DEVIR-MULHER 1
Viagem por um fio
Na classe executiva deste avião
aplicada como o homem com seu laptop
uma mulher borda.
Fino fio liga mão e tecido
– cordão e placenta –
enquanto a agulha vai
ponto a ponto
tecendo a nova vida de um desenho.
Olhar posto no bastidor
perfil recortado contra a janela do avião
a mulher viaja.

Marina Colasanti

A luta pela ancestralidade pujante por meio do bordado é um resgate à busca de si mes-
ma, enquanto mulher, em um emaranhado de acontecimentos que silenciaram as histó-
rias de gerações. O bordado era passado de geração em geração. No entanto, a chegada
da tecnologia e o fato da mulher ocupar gradativamente os espaços públicos profissional-
mente – conquista árdua da luta feminista – acarretaram a quebra de um conhecimento
ancestral, do espaço privado.

A partir da década de 1980, as mulheres passaram a assumir várias funções, sem deixar de
serem donas de casa. Elas começaram a ocupar postos de trabalho nas grandes cidades,
transformando a maneira de encarar seu estar no mundo. Del Priore (2103) expõe que

era a última geração de donas de casa nas grandes cidades do país e, sobretudo no
Rio de Janeiro e São Paulo. As velhas expressões “prendas do lar” e “doméstica”
começavam a cair em desuso. Elas educavam as filhas para serem mulheres prefe-
rencialmente casadas, mas independentes. (DEL PRIORE, 2013, p. 83).

1 “Este devir é um conceito filosófico que está atrelado à ideia de mudança constante, deixar-se estar nômade. [...] Este
conceito também vai ser percebido na obra Nietzschiana, em que o devir é um tornar-se em movimentos continum.”
(KRAHE; MATOS, 2010, p. 5)

122
Atualmente, vê-se uma retomada das memórias e dos conhecimentos ancestrais, advin-
dos do universo feminino. É como se a luta pelos ramos outrora podados, como no con-
to “A mulher Ramada”, estivesse crescendo em favor de toda potencialidade feminina.

Há ainda o conto “Além do Bastidor”, em que Marina Colasanti remete o leitor à mítica
história bíblica do Jardim do Éden por meio de duas irmãs: uma delas borda, cotidia-
namente, um cenário de mato verde, flores, configurando-se um belo jardim, à revelia
do seu querer.

Até que um evento acontece: “Foi no dia da árvore.” (COLASANTI, 2015, p. 16) A me-
nina acrescenta frutos em seu bordado e, sem saber como, os experimenta. Isso a leva a
muitas descobertas e, a partir daí, ela passa a ser capaz de escolher o que fazer no borda-
do, criando cenários desejados. Diferente do “Jardim do Éden”, ela não foi criada pela
costela de um homem e não é expulsa do paraíso. Pelo contrário: sua irmã mais velha a
faz viver para sempre no paraíso, bordando-a no bastidor. Nesse caso, a linha atua como
elemento que leva a menina humana a ficar presa, no cenário criado, no tecido.

No título “Além do Bastidor”, a palavra “além” refere-se ao fato de o bastidor ter se trans-
formado para além do mero objeto, tornando-se um cenário de vida, criado e vivido pela
personagem. Esse conto leva o leitor a pensar no devir-mulher, isto é, na procura de uma
identidade que está em constante transformação, cujo cenário vai sendo criado e recriado.

Um dos espaços para isso é o bordado: ali, as pessoas não são as mesmas, se transfor-
mam continuamente, pois o “tornar-se” é um movimento infinito. Para reiterar a ideia do
devir-mulher, recorremos às palavras de Krahe e Matos (2010) segundo as quais

o devir-mulher é a possibilidade de não fazer parte dos jogos essencialistas de


identidades formadas pelas políticas determinantes do multiculturalismo e das
políticas de gênero e sexualidade. Pois o devir-mulher traz a possibilidade de
fluir nos signos assignificados, isto é, produzir novas subjetividades ainda não
capturadas pela forma de existir do capitalismo consumista, da moral cristã e
do pensamento globalizador de massa. (KRAHE; MATOS, 2010, p. 6).

O devir-mulher, como recriação constante, almeja as potencialidades do “ser mulher”.


Trata-se de um esforço para que as mulheres se fortaleçam em seus devires, resgatando

123
práticas ancestrais femininas, como o bordado, de uma maneira ressignificada. É o que
se vê no “Clube do Bordado”, um movimento de mulheres bordadeiras que denunciam
a falta de espaço e de valorização das Artes-Manuais em comparação às Artes Visuais.
Renata Damia, uma das integrantes, relata em entrevista a Sousa (2019) que,

além do bordado ser muito difícil de entrar na arte, quando ele entra tem que ser
através do nome de um homem. Então, é um dos meus motes de vida. Por isso, eu
tenho tanta essa questão de ter uma obra maior, eu preciso trabalhar mais, para eu
fazer o meu papel dentro do bordado como mulher e ter um trabalho significativo
dentro dessa área. É uma grande pressão, mas acho que também faz parte do meu
papel, trabalhando nessa área: assinar os meus bordados, encontrar uma identidade
e ter uma parcela de contribuição feminina dentro dessa área. (SOUSA, 2019, p. 27).

Assim, o bordado, enquanto prática ancestral do universo prioritariamente feminino,


procura afirmar uma trajetória criando cenários “além do bastidor”. Atualmente, vários
coletivos formados por mulheres oferecem, por meio de práticas, vivências que valo-
rizem a ancestralidade da mulher, como o bordado, por exemplo, cujos riscos vão ao
encontro das lutas feministas. Ao disponibilizar aulas de bordado no YouTube, esses
grupos socializam tal saber/arte, intensificando ainda mais o movimento.

Diante disso, faz-se necessário pensar o quanto o sentir e o pensar, no ato do fazer e do
criar, caminham juntos, dando movimento à vida, aos seres, e promovem pequenas re-
voluções, em nível individual e social. Sobre isso, Sennet (2009, p. 30) afirma: “as pessoas
são capazes de sentir plenamente e pensar profundamente o que estão fazendo quando
o fazem bem.” Para o autor, a mão e a cabeça não estão separadas, apesar de a sociedade
neoliberal, notadamente, valorizar a cabeça em detrimento da mão, sinônimo de mão de
obra que só serve à produtividade e ao lucro.

Neste contramovimento da produção em série, os agrupamentos que anseiam por cui-


dado e singularidade no fazer, algo que requer tempo e dedicação, vêm se firmando em
uma corrente de sustentação e força, de conhecimento de si e do outro. Como escreve
Veiga (2012, p. 18), é preciso “dar vez aos devires, aos encontros da força, aos blocos de
sensações que explodem.” Faz-se necessário resgatar o toque, as sensações, os cheiros, a
observação, a escrita, o bordado, as narrativas, o ouvir.

124
Deve-se permitir a entrega lenta ao fazer, ao mundo de si e do outro, conhecer a história
das mulheres. Foi o que se pretendeu, mesmo que muito brevemente, neste artigo, ao
trazer um recorte das narrativas míticas e dos contos de fadas articulados poeticamente
por Marina Colasanti. Em seus textos, ela valoriza a força feminina metaforicamente
através do fio que, enquanto cria, conduz, transforma e movimenta.

Viu-se que o ato de bordar se traduz em um movimento poético de transformação femi-


nina, buscando forças na ancestralidade. Eis aí um caminhar. Ainda há um longo traje-
to a ser percorrido, sem dúvida. E pode ser que essa estrada nunca tenha fim. Mesmo
assim, espera-se que, neste momento presente, haja espaço para a re(criação) ainda que
por meio de narrativas míticas, contos, mulheres anônimas e seus fazeres singulares, nos
quais imprimem seus relatos graças à força das demais.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao escrever o artigo, lembrei-me muito de minha avó Anna. Ela costurava, tricotava,
crochetava e bordava. E cozinhava como ninguém. Talvez, se ela tivesse sido mais ou-
vida, não teria adoecido tão cedo. Lembro-me de seu diário, no qual relatava, de modo
muito simples, suas angústias. Infelizmente, acho que ele não existe mais: foi apagado
no tempo, na história. Vive apenas na minha memória. Sem embargo, como explica Es-
tés (1994), as histórias possuem lacunas, apagamentos, mas é possível reconstruí-las.

Utilizando o bordado, as mulheres podem reconstruir-se e construir-se fora de si. Verificar,


no ato do fazer, sentimentos, gestos, pensamentos e lembranças, registrando e comparti-
lhando as sensações mais íntimas ao criar novas narrativas. Utilizar outras histórias nesse
processo, tais como contos de fadas, mitos, poemas e histórias anônimas, pode instigar
a memória ancestral mais profunda. Exercitar esses registros de sensações apenas com
mulheres talvez seja limitar um espaço; mas é também ampliar uma rede, dando o devido
espaço a um grupo, pois não precisamos ser mães do mundo, dos homens, de todos.

Sendo assim, dedico, simbolicamente, esse espaço à minha avó Anna, que dedicou sua vida
a um homem e aos seus filhos. Esperava pacientemente meu avô para o almoço, com a mesa
arrumada. O diário, ela mantinha no guarda-roupa, bem escondido. Que haja um “além do
bastidor” e, assim, as mulheres façam a cena. Com mãos, gestos, voz, cabeça e coração.

125
REFERÊNCIAS
ANCHIETA, Isabelle. Das bruxas às estrelas de cinema: um estudo da imagem da
mulher: Jornal Nexo, 31 de dez. de 2019.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 12ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2002.

BRANCO, Cristina Bonilha. A morte como transformação. (Dissertação). São Pau-


lo: Pontifícia Universidade Católica, 2002.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2003.

COLASANTI, Marina. Mais de 100 histórias maravilhosas. São Paulo: Global, 2015.

DEL PRIORE, Mary. Conversa e história de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da
mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

FEDERICI. Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São


Paulo: Elefante, 2017.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 14 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,


1999.

_____. História da sexualidade: o cuidado de si. 9 ed. São Paulo: Edições Graal, 2007.

FLORES, Hilda Agnes Hübner. O helenismo e a mulher. In: FLORES, Moacyr (org).
Mundo greco-romano: arte, mitologia e sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

GOULD, Joan. Fiando palha, tecendo ouro: o que os contos de fada revelam sobre as
transformações na vida da mulher. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

126
KRAHE, Inês Bueno; MATOS, Sônia Regina da Luz. Devir-mulher como diferen-
ça. Congresso Internacional de Filosofia e Educação, Caxias do Sul, maio/2010.

MONTEIRO, Christiane Schorr. As conquistas e os paradoxos na trajetória das mu-


lheres na luta por reconhecimento. (Dissertação de Mestrado). Santo ngelo: Universi-
dade Regional do Alto Uruguai e das Missões, 2008.

SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmo-


politanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

SENNET, Richard. O Artífice. Trad. Clóvis Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record,
2009.

SOUSA, Juliana Padilha. Tramas invisíveis: bordado e a memória do feminino no pro-


cesso criativo. (Dissertação de Mestrado). Belém: Universidade Federal do Pará, 2019.

VEIGA. Lygia Vieira Schill da Nina. Bordando o corpo de Anelice: experimentações


sobre a escrita do ti. Juiz de Fora: Clube de Autores, 2012.

OBRAS CONSULTADAS

NIETZSCHE, Friedrich. Ecco Homo. Porto Alegre: L&PM, 2003.

_____. Vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

_____. Gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

127
Bordando
cicatrizes
por Olívia Marinho Silva Lima

RESUMO
Corto a trama do tecido. Ela resiste! Uma fissura se abre e, então, bordo uma cicatriz.
Bordo bordô. O presente trabalho é um relato de uma oficina/roda de bordado que
fez parte da programação do Dia Municipal de Combate à Violência Obstétrica, que
ocorreu em São João del-Rei/MG. Sou membro do Coletivo Maternagem Ativa SJDR
(CMASJDR), que participou na organização do evento. O objetivo era chamar a aten-
ção da sociedade civil, dar visibilidade e voz ao tema. A proposta foi uma roda de conver-
sa para discutir as marcas deixadas, sejam elas físicas ou psíquicas, trocar experiências
e visões sobre a violência obstétrica. E a fim de permear a conversa, escolhi pontos de
bordados que pudessem lembrar cicatrizes e, ao mesmo tempo, criar a possibilidade de
gestos e materialidade que trouxessem o tema para o concreto.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-Manuais. Bordado. Mulher. Violência Obstétrica.

128
Imagem 1 – Bordado Madalena.
Fonte: Acervo pessoal
de Madalena (2020).

“A oficina já me chamou atenção pelo nome: Bordando Cicatrizes.


Curioso pensar que é possível massagear e nos fortalecer frente a
nossa resistência de encarar as cicatrizes, com as mãos, brincando
de escolher cores... e ainda aprendendo a bordar.”
Madalena1,avó, aposentada, 61 anos.

“Atualmente acredito que seja muito pequeno o número de mulheres


que tenham conseguido parir de forma totalmente respeitosa. As
marcas que carregamos do parto podem nos influenciar para o resto
da vida. Por isso, é importante falar dessas dores. Participar da
oficina me fez refletir sobre tudo que aconteceu e por tudo que eu
e minha filha passamos. Apesar de não ter sofrido violência obsté-
trica por parte da minha obstetra, ouvi coisas que me machucaram
muito e participar me ajudou a formular esse sentimento.”
Zoé 2, 29 anos, doula e mãe.

1 Relato de uma participante da oficina. Nome fictício para preservar a identidade.


2 Relato de uma participante da oficina. Nome fictício para preservar a identidade.

129
Riscando e arriscando
Fui convidada pelo coletivo Maternagem Ativa SJDR (São João Del-Rei) a participar
do evento do Dia Municipal de Combate à Violência Obstétrica, realizado no Centro
Cultural da Universidade Federal de São João Del Rei, que buscava discutir essa temá-
tica tão cara ao município. O convite veio com a proposta de unir meu trabalho com os
fios ao tema Violência Obstétrica.

Faço parte do coletivo há 5 anos. No início, eram realizadas rodas de mulheres e mães e
seus(as) companheiros(as) que se reuniam para conversar e trocar experiências acerca do
parto, além de temas acerca da maternidade e paternidade. Foi uma busca de fortalecimen-
to frente ao cenário de quase nenhum apoio ao parto normal respeitoso 3, além da dificulda-
de de cumprimento das leis e diretrizes que amparam essas práticas de assistência humani-
zada às mulheres seja no pré-natal, parto, abortamento ou pós-parto em São João Del Rei.

Os encontros foram crescendo, mais mulheres interessadas no assunto. Algumas buscaram


a formação como doula; outras, novos espaços para ampliação e fortalecimento da rede. As-
sim, mais pessoas passaram a participar do Fórum de Mulheres das Vertentes e do Comitê
Municipal de Defesa da Vida (CMDV) e, em 2016, um grupo de trabalho foi tirado em uma
reunião do CMDV para a elaboração de um dossiê acerca da realidade de violência obsté-
trica no município, já que alguns relatos desse tipo de violência já chegavam ao comitê.

O resultado foi registrado no “Dossiê Violência Obstétrica: Recomendações para Pre-


venção e Responsabilização em São João del-Rei” e que foi apresentado no evento “Ges-
tar e Nascer: Cenário Atual e Prevenção à Violência Obstétrica”, em setembro de 2018,
na Universidade Federal de São João Del Rei. Após esse movimento, em 2019, foi apro-
vado o Dia Municipal de Combate à Violência Obstétrica.

3 O Ministério da Saúde vem publicando vários documentos acerca do assunto: Diretrizes Nacionais de Assistência
ao Parto Normal. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. Disponível em: «http://conitec.gov.br/images/Protocolos/Dire-
trizes/Diretrizes_PartoNormal_VersaoReduzida_FINAL.pdf»; Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica.
Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. 2ª. Ed. Brasília: Ministério da
Saúde, 2011b. Disponível em: «http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento_nor-
ma_tecnica_2ed.pdf», Manual técnico pré-natal e puerpério – atenção qualificada e humanizada (Série A - Normas e
Manuais Técnicos/Série Direitos Sexuais e Direitos reprodutivos. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. Disponível em:
«http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_pre_natal_puerperio_3ed.pdf».

130
Mesmo participando de forma mais atuante em alguns momentos e, em outros, mais
ausente do grupo, surgiu o convite para ministrar a oficina “Bordando Cicatrizes”. Eu
havia há pouco tempo bordado um livro de agulhas, feito na técnica do patchwork cha-
mada “crazy”, em que se pega retalhos de tecido que vão sendo encaixados sem um pro-
jeto ou planejamento anterior. Nele, havia experimentado alguns pontos de bordado
para quiltá-lo. Esses pontos são feitos seguindo a costura entre um e outro retalho. O
trabalho foi então uma inspiração para pensar os caminhos a percorrer na oficina.

O bordado não é uma técnica que domino e o trabalho com o livro de agulhas havia
sido uma forma de adentrar no mundo dos pontos de bordado. Havia certa insegurança
em propor essa oficina usando o bordado como técnica, mas embora tentasse imaginar
outras propostas, não consegui outra que trouxesse a imagem do tema de forma tão
concreta. Aqueles pontos desenhados entre bordas dos tecidos, na tentativa de mante-
rem-se unidas, eram, para mim, a materialidade de cicatrizes. Ponto a ponto marcar no
tecido um caminho de dor. O gérmen da proposta estava ali: bordar no tecido cicatrizes
enquanto conversássemos sobre violência obstétrica.

Mas, afinal, o que é violência obstétrica? Segundo Tesser et al. (2015), o termo engloba
diversos tipos de abusos, violência e danos causados à mulher durante o cuidado obsté-
trico profissional. Incluindo maus tratos físicos, psicológicos, verbais, além de procedi-
mentos desnecessários e danosos como episiotomias, manobra de Kristeller, tricotomi-
na, ocitocina (quase) de rotina, ausência de acompanhante, entre outros. A Venezuela
foi o primeiro país da América Latina a tipificar a violência obstétrica em sua legislação
e a definiu da seguinte forma:

Se entende por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos repro-


dutivo das mulheres por profissionais de saúde, que se expressa em tratamento de-
sumano, no abuso de medicalização e patologização de processos naturais, levando
à perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexua-
lidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. (2007, p. 30).

Ela é ainda caracterizada por ser uma violência de gênero e, também, institucional. Por-
tanto a fragilidade da mulher e família nessa situação é elevada tendo em vista sua situ-
ação gravídica e sua diferença de posição frente a um médico, enfermeiro ou hospital.

131
Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2010), no Brasil, uma em cada quatro
mulheres relata ter sido vítima de violência obstétrica. Esse número provavelmente é
maior, pois muitas mulheres não têm nem ciência de seus direitos e das diretrizes de
boas práticas de atendimento à gestante. Além disso, o estudo não tratou de casos que
podem ter ocorrido durante o pré-natal, puerpério ou abortamento.

Imagem 2 – Bordado Ana.


Fonte: Acervo pessoal
Ana (2020).

“Bordando cicatrizes. Fui, imediatamente, envolvida por esse títu-


lo. Carrego cicatrizes emocionais e físicas do meu parto. Não sabia
exatamente o que esperar da oficina... Como foi bom superar minhas
expectativas! Me abrir e ouvir experiências alheias nos fortalecem
e nos preparam para a vida. Tive a oportunidade de bordar o desenho
da minha própria episiotomia e me abrir sobre o assunto.

Olívia, de forma doce e receptiva, nos guiou pelas nossas


lembranças e sentimentos mais profundos. Através de suas
habilidades manuais e interpessoais, nos proporcionou
um delicioso momento de colo e troca.”
Ana4, mãe, 37 anos.

4 Relato de uma participante da oficina. Nome fictício para preservar a identidade.

132
Dispositivos - Uma roda e a amostra de pontos
Aqui, a escrever utilizando o termo “oficina”, me vem sempre um grande incômodo, pois
na realidade a “oficina” tinha menos a intenção de ensino-aprendizagem de técnicas e
pontos de bordado do que ser um espaço para a conversa.

Como já destaquei, o Coletivo Maternagem Ativa SJDR propõe encontros sob forma
de rodas de conversa, baseada na troca de informações entre gestantes, mães, seus com-
panheiros e companheiras, familiares (não raro avós e irmãs participam das rodas), estu-
dantes de medicina, doulas, médica obstetra e demais interessados.

A oficina foi então baseada no formato que já acontece não pretendendo que o propo-
sitor, no caso eu, seja o centro das falas, mas que os pontos sejam trazidos por todos ali
presentes. Andréa Cordeiro (2019), no terceiro grupo de estudos do Ativismo Delicado,
do qual fiz parte, nos presenteou com reflexões acerca das rodas que gostaria de trazer:

Pensar com responsabilidade a roda nos encontros em que queremos aprender e


ensinar me parece urgente. A roda pode ser para existir, para ser a ‘a roda em torno
de mim, da professora, do ego, do que eu sei, do que eu pronuncio’, pode ser a dis-
posição das pessoas no espaço que tem menos de circularidade e mais de arena. A
roda pode se prestar a estarmos na tentativa de controle [...] pode estar mais para
Panóptico, de Foucault, do que para Ciranda, de Lia.

Como ela nos mostra, não é o simples fato de se colocar em roda que garante a horizon-
talidade das relações e nem a abertura para uma troca de experiências. Mais adiante em
seu texto, Cordeiro (2019) traz o conceito de círculos de cultura de Paulo Freire, em
que há a valorização do conhecimento que cada pessoa traz consigo e do espaço para o
diálogo; o educador é só mais um elo na roda.

Em Larrosa (2012), me deparei com a questão do saber e seu papel na hierarquização das
relações, no sentido de que somos diferentes quanto aquilo que sabemos. No entanto, a
capacidade de falar e pensar nos coloca em estado de igualdade. E é então na possibili-
dade de dialogar, como disse Freire, ou falar e pensar, como disse Larrosa, e o escutar,
para mim, que está estritamente ligado a essas questões, que existe a possibilidade de
uma construção de relações cada vez mais horizontalizada nas rodas de conversa.

133
Em seu texto, “A Arte Manual como Recurso Terapêutico”, Tomé (2019, p. 57) afirma
que “observa o mover da vida que se dá a partir do fazer das mãos e que acontece em um
lugar profundo e íntimo, na alma, onde estão escondidas forças, potências, traumas, [...]
que buscam expressão e forma o tempo todo.” E, permeando a conversa em roda, o fazer
manual entrou como um dispositivo capaz de trazer para o concreto, para o material,
sentimentos, dores e lembranças, alinhando pensamento, corpo e emoção.

Preparando-me para a oficina, retomei então os pontos que havia feito no caderno de
5
agulhas e folheei, folheei, folheei o “Meu Caderno de Bordados” ... Eu procurava o que,
para mim, seria o ponto cicatriz. Busquei esta estética a partir de meu imaginário. Todas
as duas cicatrizes que coleciono de infância são na cabeça e não consigo vê-las. Refiro-
me aqui a cicatrizes físicas, nas quais foi necessário o procedimento de sutura do corte.
Neste momento, não recorri a imagens externas de fotos de cicatrizes.

O ponto chuleado foi o primeiro ponto escolhido a estar na minha amostra de pontos.
Na tentativa de se fazer encontrar duas bordas, duas peles, duas partes, ele apareceu
para mim como busca desesperada pelo encontro. A tentativa apressada de fazer com
que tudo fique junto novamente. O apelo ao reencontro. E é, também, talvez o mais
orgânico, mais instintivo deles. Senti assim. Escolhi assim.

O ponto russo aberto, o ponto espiga e o ponto creta aberto trazem em comum os cru-
zamentos das linhas, pontos de encontro ou de embaraços. Com eles, queria trazer
possibilidades estéticas diferentes para esse ir e vir, esse zigue zague de estar à frente e
voltar, dar tempo aos pensamentos e sensações. Coloquei ainda, na minha amostra, o
ponto atrás e o ponto haste para quem quisesse bordar palavras.

Experimentei cortar o tecido. Cortei tecido com estilete, ter a sensação de abrir pele.
E depois busquei as bordas com linha e agulha tentando novamente mantê-las unidas.
Linhas vermelha, roxa e lilás. Paleta que, para mim, sugeria sangue, luto e renascimento.
Fiz o exercício de dobrar o tecido e bordar com ele mais grosso. Cortei furo grande e por
baixo alinhavei palavras. Sentidos, gestos e cores que fui dando ao “bordar cicatrizes”.

5 SUAREZ, M. Meu caderno de bordado: o guia imprescindível de bordado tradicional. São Paulo: Gustavo Gili, 2018.

134
Imagem 3 – Mostra de pontos.
Fonte: Arquivo pessoal Olívia (2019).

A oficina teve a presença de cerca de quinze mulheres entre elas mães, gestantes, dou-
las, enfermeiras, estudantes de medicina e interessadas no assunto. Iniciei falando so-
bre meu processo de construção da mostra de pontos e sobre minha ligação com o
tema. Distribui a elas tecidos e linhas que foram escolhendo de acordo com seu gosto.
A amostra dos pontos circulou entre as participantes, deixando claro que era para ins-
pirá-las e que outros pontos e formas poderiam ser feitos. A partir daí, fui ensinando os
pontos que as participantes iam me solicitando e íamos conversando sobre as experiên-
cias, dúvidas e visões que cada uma tinha sobre o tema.

A experiência na oficina confirmou, para mim, a potencialidade da roda de trabalhos manu-


ais como dispositivo na troca de afetos, na construção de narrativas e no compartilhamento
de vivências. Nela, mulheres se sentem à vontade de falar sobre suas experiências e há es-
paço para a escuta e reflexão sobre o tema. Em mim, fez fortalecer o olhar para a riqueza e
singularidades contidas nos gestos das mãos, nas técnicas e nos materiais escolhidos.

135
Referências Bibliográficas
CORDEIRO, Andréa. Contribuições do encontro. Artes-Manuais para a revolução
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136
A trama do
continuum:
Dizeres femininos
por Joedy Luciana Barros Marins Bamonte

RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a poética no contexto da arte têxtil con-
temporânea. A partir de um recorte entre 1994 e 2017, é enfatizado o lugar da expressão
do fio enquanto fazer íntimo e familiar, traduzindo seus percursos. O ato de tecer e tra-
mar é investigado ao “transcender linguagens”, num continuum que se estende ao uso de
materiais, técnicas e suportes diversos. O aporte teórico da pesquisa tem como princi-
pais referências Cecília Salles, Gaston Bachelard e Yi-Fu Tuan.

PALAVRAS-CHAVE: Têxtil. Arte contemporânea. Poética. Processo criativo.

Abstract
The present work has as object of study the poetics of the contemporary textile art re-
searcher. From a cut between 1994 and 2017, it emphasizes the thread as a means of
intimate and familiar expression, translating its ways. The act of weaving, embroidering
is investigated by “transcendent languages” in a continuum that extends to the use of
various materials, techniques and supports. The theoretical of the research has as main
references Cecília Salles, Gaston Bachelard and Yi-Fu Tuan.

Keywords: Textile. Contemporary art. Poetic. Artistic creation.

137
Introdução
Iniciada em inserções pessoais poéticas desde 1995, a reflexão sobre a arte têxtil contem-
porânea veio a se tornar objeto de pesquisa científica em 2004, com minha tese de douto-
rado (ECA/USP). Intitulada “Legado” – Gestações da arte contemporânea: leituras de
imagens e contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica (BAMONTE,
2004), constitui um trabalho construído por textos verbais e não verbais. A partir de
“Legado” – objeto artístico criado como uma colcha de retalhos sobre a qual foram inse-
ridos pequenos objetos, como grampos e bordados, que remetem à rotina da mulher – o
interesse pela produção artesanal têxtil foi esmiuçado enquanto construção da identida-
de. Em sua leitura, a semiótica planar foi utilizada, bem como a contextualização da tra-
jetória artística pessoal e dos aspectos históricos e sociais, o que desencadeou uma maior
compreensão do processo criativo e dos elementos presentes no objeto artístico, no que
diz respeito à materialidade da obra, linguagem, transformações e ressignificações.

Após o doutorado, a poética foi aprofundada ao olhar para o orgânico, o crescimento


biológico, a configuração de raízes, troncos, galhos, rizomas, que, por sua vez, estão
presentes em linhas riscadas, construídas, bordadas. A investigação abriu-se ao questio-
namento da própria linguagem e materialidade, tendo o desenho como uma presentifi-
cação constante e híbrida.

À liberdade com a qual os registros são feitos ao permear e “atravessar” suportes e lin-
guagens, denominei “olhar como esquecimento poético”, uma transcendência às con-
figurações tradicionais nas artes plásticas que permite encontrar o desenho (e o têxtil)
na fotografia, na pintura ou no cinema. Em uma dinâmica cíclica entre a elaboração do
fazer e a compreensão do fazer do outro, destaco a importância da pesquisa com base na
percepção e na reflexão sobre aquilo que nos toca e aflige, assim como a quantidade de
imagens que nos chegam atualmente.

Dentro da universidade, as pesquisas foram intensificadas com a concepção do grAVA,


Grupo de Pesquisa em Artes Visuais e Audiovisual, do qual sou líder na Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação, da Universidade Estadual Paulista, onde leciono
no Curso de Artes Visuais. O grupo foi criado com ênfase para os estudos do processo
criativo, sob aporte teórico de Gaston Bachelard, Fayga Ostrower, Julio Plaza e Cecília
Almeida Salles, e procura perscrutar os espaços da intimidade e a construção poética.

138
Poética
A investigação plástica do têxtil enquanto meio expressivo teve início em 1994, quando o
tecido foi inserido em minha poética e o desenho passou a ser feito com retalhos, tesou-
ra, linha e agulha. A presença da costura na infância foi observada como compreensão
do fazer, processo constitutivo anterior à fase de alfabetização escolar. Nessa experiên-
cia plástica, encontra-se não somente uma determinada materialidade, o modus operandi
que se reinventa ao reconhecer na poética a identidade do criador, mas a interpretação
do que ele é, de seu estar no mundo. (SALLES, 2008)

Figura 1: “Legado” (visão geral); Joedy Marins; objeto; técnica


mista; 1,60 x 2,00 m; 2002. Fonte: MARINS (2003)

Na concepção de “Legado”, esse fazer foi pronunciado como algo natural, coletivo e an-
cestral. Em um caráter formativo, o trabalho evidenciou a força com a qual os espaços de
intimidade do lar se manifestam na criação ao abrir-se à intervenção de quatro gerações
de mulheres na elaboração dos retalhos, vínculos e procedimentos comuns na passagem
de conhecimentos via tradição oral. A partir dessa abordagem, nasceram posteriormen-
te séries como “Dote”, “Ciclos” e “Revisitando Legado”, dentre outras.

139
Figura 2: “Dote III” (em
exposição, 2014); Joedy
Marins; objeto; bordado
s/ tecido; dimensões
variáveis; 2003. Fonte:
MARINS (2003)

Figura 3: “Revisitan-
do legado”; Joedy
Marins; fotografia
digital; 2010. Fonte:
MARINS, 2010

Ao se tornar objeto de estudo da tese, a obra foi aberta à investigação da presença do fazer
têxtil na história, enquanto interpretações relacionadas à psique, à cultura, à biologia,
em conteúdos simbólicos. Mesmo quando a linha não estava presente materialmente, o
desenho continuou a dar lugar ao bordado, à costura e a assemblages. A partir dessa fase,
observa-se que a estrutura em rizomas passou a ser representada de maneira intuitiva.

Na produção entre 1994-2016, a investigação foi desenvolvida na busca de pistas, objetos


encontrados no lar e, respectivamente, seus significados. Surgem como uma pele a ser
reconhecida: troncos, raízes, bulbos, linhas, estruturas orgânicas presentes no ambiente

140
interno ou externo. A pesquisa expande-se do lar, projetando os espaços da intimidade
descritos por Bachelard: “Mas para uma simples imagem poética não há projeto, não lhe
é necessário mais que um movimento da alma. Numa imagem poética, a alma afirma a
sua presença.” (BACHELARD, 2012, p. 6)

O estudo da composição da vida é o fio condutor no fazer. Está nos vestígios, marcas,
dobras desenhadas, fotografadas, vídeos, descritos como um desenho a ser seguido, um
interesse latente a partir da abordagem da criação poética. O universo microscópico
dialoga com espaços externos, alimentando interesses comuns entre o visível e o não
visível, oposições nas quais a existência se manifesta, histórias de vida, percursos, que
deram origem a trabalhos como a série Exsistère, em 2014.

Figura 4: “Exsistère 1”; Joedy Marins;


desenho; técnica mista; 45 x 30 cm;
2014. Fonte: MARINS (2014)

Figura 5: “Exsistère 6”; Joedy Marins;


objeto; técnica mista; 40 x 40 cm;
2015. Fonte: MARINS (2015)
Figura 6: Sem título
(Série “Exsistere”);
Joedy Marins; fotografia
digital; 2016. Fonte:
MARINS (2016)

O continuum e o interesse
pelo deslocamento
Gradativamente, as tramas foram surgindo sob
novas perspectivas, simultâneas à forma como o
interesse pelo deslocamento foi sendo pronun-
ciado. Seus indícios têm origem em pesquisas
plásticas realizadas em 2015, que manifestaram
as práticas de derivas: “Um ano desenhado” e
“Bagagem: caminhada como prática poética”.
A primeira, como o próprio nome diz, foi cons-
tituída na experiência de um ano de registros
diários, em um projeto proposto pelo professor
e artista visual Fernando Augusto e, a segunda,
uma residência artística de sete dias no sertão
de Ubatumirim (litoral de São Paulo), orienta-
da pela artista plástica Edith Derdyk. Nas duas
proposições, o estudo contínuo e a observação
do fazer artístico foram enfatizados, conteúdos
extremamente relevantes para a construção po-
ética, além da compreensão autoral estendida às
Figura 7: “Sem título”; Joedy Marins;
relações artísticas como um todo, estejam elas
desenho; grafite s/ papel; 29,7 x 42
no ateliê pessoal ou na sala de aula.
cm; 2014. Fonte: MARINS (2014)

142
Nessas práticas, as derivas foram sendo pronunciadas ao enfatizar a atenção para a ex-
periência. Entretanto, foi em “Bagagem” que a caminhada se propôs como abertura dos
sentidos à psicogeografia e à percepção da paisagem. Nesse contexto, a apreensão de
lugar e sua configuração foi compreendida como estofo para a produção de registros e
para a criação, nos quais o têxtil se pronunciou em um continuum da produção poética.

Na dinâmica que despertou o interesse por outros deslocamentos e aproximação de ou-


tras culturas, a geografia humana foi estudada como uma ferramenta esclarecedora. Por
meio dos textos do geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan (2012), o conceito de Topofilia
possibilitou o entendimento das relações entre o espaço físico e a cultura de um determi-
nado povo e de como essas questões delineiam a configuração de lugar enquanto habi-
tação, espaço de intimidade.

Da experiência em Ubatumirim, cito parte de meus documentos de processo, anotações


geradas nos dias de deambulações. Constituem desenhos, fotos, vídeos e anotações à es-
pera de aprofundamentos e novas conexões. Na “Ilha Desconhecida” (SARAMAGO,
1998), encontro a expectativa do desconhecido e os horizontes que dela se abrem, algo
que é intrínseco à alma e que, igualmente, espera por conexões e configurações. Aí tem
início a série denominada “Sobre tudo o que me é constante”, em anotações presentes em
meus diários poéticos, registros dos dias de imersão no litoral de São Paulo:

A constância ainda está presente. Estou no mar. Sinto falta do que é constante. É a mes-
ma sensação que tinha ao dormir e saber que alguém ainda estava acordado... meu pai,
minha mãe. O que é constante em minha vida? (...) O som do mar não “desliga” e me re-
mete ao balanço da rede. Preciso descobrir o que é constante. (BAMONTE, 2015, p. 35).

Figura 8: “Sobre tudo o que


me é constante 2”; Joedy Ma-
rins; fotografia digital; 2015.
Fonte: MARINS (2015)
Das elocubrações inerentes a essas transcrições, seguiram-se momentos de pausa, aco-
lhimento, introspecção. A procura pela constância demonstrava indícios íntimos e in-
compartilháveis, incubados no inconsciente. O processo criativo necessita de tempo
para ser processado e, muitas vezes, parece que nada acontece. Seu ritmo é o mesmo da
alma. Há o tempo de colher, de preparar o solo novamente, esperar pelo semear e pelo
germinar. Cada um desses fatores envolve aspectos internos e externos, quem somos,
onde nascemos, crescemos, desenvolvemo-nos e as escolhas que fazemos. O processo
criativo estuda essas características.

Da pausa e do acolhimento, nasceu a série “À espera da continuidade” (2017).

Figura 11: “À espera da continuidade


1”; Joedy Marins; assemblage; 2017.
Fonte: MARINS (2017)

Figura 12: “À espera da continuidade


3”; Joedy Marins; assemblage; 2017.
Fonte: MARINS (2017)

144
Considerações finais
A identificação com os procedimentos têxteis e a percepção de resgate e valorização dos
mesmos fazem com que minha pesquisa seja potencializada e instigada. Os conteúdos
são cruzados entre o antes e o depois. Embora o foco não seja minhas experiências an-
teriores, elas são resgatadas no processo de ressignificação, dentro do próprio processo
criativo gerado na rede de conexões. Nele, a fachada de uma casa é fundida ao tapete de
barbante ou à toalha de crochê que minha avó produziu e que faz parte do meu passado.

A expectativa diante do desconhecido parece ser um tema bastante forte, que esbarra
diretamente no conceito de cartografia, mas também no imaginário a esse respeito. Nes-
sas vivências, as imersões são reivindicadas como material primordial que delineia o que
antes era impalpável. A poética é pronunciada como um continuum incessante a tramar
a experiência, materializando-a em fios e rendilhados reconhecidos no duplo exterior/
interior, íntimo/público em fases, locais e culturas diversas.

Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BAMONTE, Joedy L. B. M. Anotações da residência “Bagagem” – Ubatumirim, com


Edith Derdyk. Ubatumirim: Joedy Marins, 2015.

BAMONTE, Joedy L. B. M. Legado – gestações da arte contemporânea: leituras de ima-


gens e contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica (tese de doutorado)
– São Paulo: Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 2004, 307 p.

SARAMAGO, O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SALLES, Cecília A. Redes de criação. Vinhedo: Horizonte, 2008.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção. São Paulo: EDUEL, 2012.

145
Flores da Tina:
Narrativas tecidas
em crochê
por Marcela Araujo Melo

RESUMO
No presente trabalho, descreveremos a experiência das atividades desenvolvidas no
Projeto Flores da Tina. Por meio de oficinas de crochê, o projeto visa fortalecer mu-
lheres em situação de violência, que frequentam a Casa de Referência da Mulher Tina
Martins, em Belo Horizonte (MG). Cabe-nos destacar que entendemos esta atividade
como um ativismo que prioriza o processo do fazer, ativa a potência do criar humano e
se mostra como possibilidade de provocar revoluções internas que promovam a emanci-
pação e o fortalecimento das mulheres.

PALAVRAS-CHAVE: Crochê. Ativismo. Transformação.

146
INTRODUÇÃO
1
Em 8 de março de 2016, ativistas do Movimento de Mulheres Olga Benário e do Mo-
2
vimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) ocuparam um edifício público
abandonado no centro de Belo Horizonte (MG) para chamar a atenção sobre o tema da
violência contra as mulheres. A ideia inicial dos movimentos era realizar um ato político
e de resistência reivindicando a criação de novas vagas nas Casas Abrigo, mais creches
públicas nas periferias e delegacia 24 horas para mulheres, questões prescritas nas dire-
3
trizes da Lei Maria da Penha . A ocupação teve uma grande repercussão tornando-se a
primeira ocupação autogestionada por mulheres da América Latina.

Assim, durante 87 dias, as ativistas, amparadas pelos movimentos sociais, lideranças


políticas e estudantis, sindicatos e artistas, resistiram e depois de muitas negociações
com o governo do Estado conquistaram o direito de uso de um imóvel tombado na Rua
Paraíba, no bairro Funcionários. Atualmente, a Casa funciona como um território de
debates, palestras, oficinas, cursos, rodas de conversas, feiras e encontros, além do aco-
lhimento temporário às mulheres em risco de violência.

Um ano após o surgimento da Casa Tina Martins, o Projeto Flores da Tina foi proposto
para uma das coordenadoras. A partir de uma demanda de oficinas que pudessem contri-
buir para a geração de renda das abrigadas, a proposta do projeto consistia em ofertar au-

1 Olga Benário é um movimento feminista classista, criado em 2011, presente em 17 estados do país, possuindo uma coordenação nacional e coordenações
estaduais. O recorte “classista” provém do trabalho de base e foco das atividades junto às mulheres trabalhadoras e periféricas que enfrentam jornadas duplas
de trabalho (casa e emprego). É importante frisar que o feminismo é múltiplo, pois ele é composto pelas diferentes vozes, de diferentes mulheres, sendo ne-
cessária a compreensão da especificidade de cada recorte sem perder as pautas comuns. Dentre as pautas do Movimento, está a luta pelo acesso universal a
creches para que as mulheres possam trabalhar e garantir sua independência financeira e exercer as funções que desejarem. Nessa questão, em Minas Gerais,
o movimento administra, desde 2013, a Creche Tia Carminha, localizada na Ocupação Eliana Silva (Barreiro), organizada pelo MLB (Movimento de Luta
nos Bairros, Vilas e Favelas). Disponível em: BASTOS, C. Tina Martins: de ocupação a Casa de Referência. V!RUS, São Carlos, n. 13, 2016. Disponível
em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus13/?sec=5&item=73&lang=pt>. Acesso em: 24 jan. 2020.

2 O MLB existe desde 1994 e é uma organização nacional que tem como principal pauta a luta por moradia. Por compreender que moradia não é o
processo isolado de construção de habitações, pauta-se nele também o direito à cidade, tendo o movimento uma tese nacional de Reforma Urbana.
Em Belo Horizonte, a regional do Barreiro é onde se concentra a maior parte das famílias organizadas pelo MLB e o local em que Olga realiza seu
trabalho de base, nas ocupações Eliana Silva, desde abril de 2012, e Paulo Freire, desde maio de 2015. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/
virus/virus13/?sec=5&item=73&lang=pt>. Acesso em: 24 jan. 2020.

3 A lei representa um símbolo nacional da luta das mulheres contra a opressão e a violência, criando mecanismos para coibir e prevenir a agressão doméstica e
familiar, assim como punir mais efetivamente os agressores. Ela define as diferentes formas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) e trata
das medidas integradas de prevenção. O artigo 8° estabelece, em seus incisos, diretrizes para políticas públicas que deveriam ser realizadas por meio de um
conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, somados a ações não-governamentais. Disponível em: <http://
www.nomads.usp.br/virus/virus13/?sec=5&item=73&lang=pt>. Acesso em: 24 jan. 2020.

147
las semanais de crochê para a confecção de flores simples que pudessem ser vendidas em
eventos promovidos pela Casa. Para a nossa surpresa, poucas flores foram confeccionadas,
pois as mulheres abrigadas queriam mesmo confeccionar artigos para que elas pudessem
usar ou simplesmente tecer por tecer. E nesse processo de tecer algo que pudessem usar
ou de simplesmente sentir o movimento dos fios entre os dedos e agulhas, percebemos a
potência do fazer manual como ferramenta de reflexão, elaboração e ressignificação.

O objetivo deste trabalho, portanto, é contar algumas experiências vividas no Projeto


Flores da Tina e assim contribuir para abordagens ativistas delicadas que possibilitem
um reconhecimento por parte das mulheres, vítimas de violência, de sua potência em
tecer novas histórias.

2 AÇÃO DELICADA PARA CORPOS SENSÍVEIS


“A luta que a gente desenvolve é diária. É valorizar, empo-
derar, fazer com que a mulher reconheça a própria força e
enxergue que ela tem poder para mudar a própria vida.”
Indira Xavier

Indira Xavier é uma das coordenadoras da Casa de Referência da Mulher Tina Martins,
integrante do Movimento Nacional Olga Benário e militante dos direitos das mulheres.
Junto com mais outras integrantes do movimento e voluntárias ativistas conduz as ati-
vidades diárias da Casa. O trabalho acontece a partir de quatro abordagens: a jurídica,
por meio de orientação e assessoria de seus direitos; a psicológica, que busca ouvir estas
mulheres e resgatar a autoestima; a assistencial, por meio de conversas com assistentes
sociais que identificam o tipo de agressão sofrida por essas mulheres e, por fim, o abrigo
e o encaminhamento de mulheres que estejam em situações de risco.

O objetivo principal da Casa é oferecer instrumentos para que as mulheres saiam do ci-
clo de violência, se empoderem e se emancipem ao ponto de não mais retornarem para as
situações de violência. Assim, além de ser um espaço que permite uma formação cultural
por meio de palestras, seminários, rodas de conversa, entre outras atividades, a equipe

148
de voluntárias ativistas promove cursos e oficinas formativas, além de dar orientação e
apoio para que elas retornem aos estudos e ao mercado de trabalho a fim de garantir
independência financeira.

A gestão e a manutenção do espaço são de responsabilidade do Movimento de Mulhe-


res Olga Benário, um movimento feminista criado em 2011 e presente em 17 estados bra-
sileiros. Sem fins lucrativos, a Casa se mantém através de uma rede de apoio de doações
financeiras, de alimentos, de produtos de higiene e limpeza, que é ativada por campa-
nhas difundidas pelas redes sociais. Além disso, as atividades ofertadas acontecem por
meio de parcerias com voluntárias dispostas a realizar aulas, oficinas, rodas de conversas
e palestras que, desse modo, contribuem também para o fortalecimento da Casa.

E, após um ano do estabelecimento da Casa Tina Martins que, movidas pelo desejo de
contribuir, apresentamos o Projeto Flores da Tina. Com o intuito de promover o forta-
lecimento e a emancipação das mulheres acolhidas, ofertamos aulas semanais de crochê
para a confecção de flores simples que pudessem ser vendidas em eventos promovidos
pela Casa. Assim, munidas de agulhas e linhas doadas a partir de campanhas feitas nas
redes sociais, às 15h, nas sextas- feiras, passávamos pelos cômodos da casa convidando as
mulheres para se sentarem conosco em roda para aprender a técnica.

2.1 NARRATIVAS
“Um ativismo delicado, seja lá o que ele fizer, tenciona
a abertura e receptividade, tanto quanto seu desejo por
mudança. Ele busca mudar o mundo estando aberto à
possibilidade de ser mudado pelo mundo.”
Allan Kaplan e Sue Davidoff

Não sabemos ao certo quantas mulheres participaram das rodas. Na verdade, não con-
seguimos formar um grupo por muito tempo pela própria característica da Casa: por ser
um lugar de acolhimento e não um abrigo, não mantém as mulheres ali por muito tempo.
Assim que as mulheres recebem as orientações e se fortalecem, logo são encaminhadas
para outros lugares. Esse foi o nosso primeiro desafio: entender que cada encontro poderia

149
ser o único e que nossa tarefa seria atuar naquilo que estava ao nosso alcance. E ao consi-
derar o primeiro encontro como único a nossa preocupação foi sempre nos disponibilizar
ao acolhimento e escuta atenta tendo como ferramenta de ação a técnica do crochê, pois
acreditamos na potência do fazer manual como caminho para revoluções internas.

2.1.1 A MENINA DE TRANÇAS COLORIDAS


Em um desses encontros, uma menina jovem nos chamou atenção. Cheia de vida, com
tranças coloridas e um sorriso contagiante, ela apenas observava a oficina, pois dizia
que não tinha paciência para tal técnica, que não levava jeito e que era muito agitada
para se concentrar por tanto tempo em um só fazer. Insistimos um pouco, falamos dos
benefícios e da possibilidade de geração de renda, mas nada a convenceu. Até que ela
manifestou o desejo de ter um cropped de crochê.

Em certo momento, pediu-nos que fizéssemos a peça para ela, mas imediatamente res-
pondemos que ela mesma poderia fazê-la e até vendê-la se quisesse. Foi aí que a menina
de olhos brilhantes e cabelos coloridos foi enlaçada e se rendeu à oficina. Como levava
jeito, em sua primeira aula, confeccionou um retalho quadrado com uma linha preta e
com um pouco de criatividade e algumas correntinhas fizemos juntas o tão sonhado
cropped. E quanta alegria vimos naquele rosto quando ela percebeu que era capaz de
confeccionar uma peça que pudesse vestir. E a menina saiu pela Casa dizendo a todos:
“Fui eu quem fiz!”

Essa moça ficou um bom tempo na Casa, diferente das outras que conhecemos, e pu-
demos estabelecer um vínculo mais forte. Toda sexta-feira, estava ela com suas agulhas
e ideias mirabolantes de peças que pretendia confeccionar para usar em apresentações
que faria na Casa. A menina tinha uma linda voz e, com algumas aulas de canto oferta-
das ali mesmo, começava a sonhar novas tramas para a sua vida. Assim, nos eventos e
feiras que aconteciam na Casa, a menina cantava e vendia as suas produções.

Um dia, ela nos disse que não aguentava mais repetir a história que a levou até ali e que
queria ser conhecida por sua voz e suas criações. E nos contou que possuía um canal
no YouTube em que fazia suas apresentações. O seu sonho era gravar um clipe com um
rapper que conhecera há pouco tempo.

150
O crochê ficou um pouco de lado, pois ficou sem tempo de pegar nas agulhas por conta
dos ensaios e trabalho como professora de canto para crianças em uma escola perto da
casa onde hoje mora. Essa menina nos apresentou o nosso segundo desafio: entender
que as oficinas de crochê não deveriam ter a intenção de produzir um produto determi-
nado, mas seguir orientadas a partir da demanda de cada acolhida.

Allan Kaplan e Sue Davidoff nos lembram que ativistas determinados a atingir suas
metas não percebem que as coisas mudam o tempo todo, às vezes até mesmo em função
do sucesso da ação, e “na medida em que muda, novas leituras devem ser feitas, novos
sentidos atribuídos.” (KAPLAN; DAVIDOFF, 2014, p. 5)

Para os autores,

temos que ser verdadeiros com o que está lá fora, e o que está lá fora vai sendo
informado, iluminado e se transforma através daquilo que nós lhe trazemos
através do modo como o vemos ou como vamos ao seu encontro. Nem uma
coisa, nem outra, mas ambas, dançando juntas na mais refinada das relações.
(KAPLAN; DAVIDOFF, 2014, p.12).

Assim, no Flores da Tina, as flores aos poucos foram sendo deixadas de lado. Vez ou
outra ainda as ensinamos como uma forma rápida de confeccionar alguma coisa e apren-
der os pontos básicos do crochê, mas logo que as mulheres aprendem a técnica, surge a
demanda por outras peças.

2.1.2 MOÇA DE OLHOS AZUIS


Olhos azuis brilhantes tinha a moça de cabelos loiros. Era calma, paciente e quase não
falava. Já tinha noções da técnica, mas não conseguia manter uma regularidade nos pon-
tos. Começamos então com florzinhas bem básicas, de uma cor só, com barbante colori-
do, feitas em pontos altos, uma carreirinha apenas que depois seria enrolada e amarrada
em um suporte. A ideia era fazer um buquê de flores coloridas. Mas uma linha mais
felpuda e de um vermelho brilhante encantou a moça e a flor que iria para o buquê virou
broche. E, a partir do broche, ela quis uma flor para o cabelo. E mais outros adereços...
Ganhou confiança e começou a sair da Casa.

151
A moça sabia de tudo que acontecia na cidade, onde havia os melhores bazares, os me-
lhores lanches gratuitos, as melhores oficinas ofertadas por outras instituições; ela par-
ticipava de todas as oportunidades que encontrava. Ficou pouco tempo na Tina, pois
conseguiu vaga em um abrigo para mulheres. No entanto, mesmo morando em outro
lugar, ela continuou a participar das oficinas de crochê. Como andava muito e tinha um
interesse enorme pelas coisas que via, não faltava ideia para tecer.

A cada semana, ela vinha com seus olhos brilhantes e fala quase atropelada, cheia de de-
sejo de tecer novas peças. Confeccionamos blusas, gorros, florzinhas para brincos e tia-
ras infantis. Foi quando um dia ela chegou toda afoita querendo uma bolsa tipo carteiro
para colocar os seus cadernos de estudos. A moça de olhos azuis que quase não falava
voltou a estudar e entrou para o EJA – Educação para Jovens e Adultos.

As aulas de crochê, a partir daí, passaram a ser intercaladas por orientações dadas às
atividades escolares. Ficamos assim por um bom tempo: crochê aliado às tarefas de
Matemática e Português. A moça nos apresentou um terceiro desafio: perceber que a
potência do Flores da Tina não estava apenas no tecer peças em crochê. Sem dúvida
nenhuma, esta era uma ferramenta de ação, porém o mais importante ali era a abertura,
a escuta atenta, a possibilidade de fazer surgir condições necessárias para o reconheci-
mento de potências capazes de construir novas narrativas.

Em ativismo delicado, Kaplan e Davidoff apontam a magia do processo de mudança:


“[...] ele não pertence a lugar algum, mas está em todo lugar; ele não pertence a um pro-
tagonista, mas a todos; quando algo muda, tudo muda [...]. Para os autores,
[...] é através do envolvimento, não é tentando mudar o mundo ou uma parte
dele, mas sim prestando atenção a como o mundo é, notando como ele se ex-
pressa e então tentando envolver o mundo em um diálogo consigo mesmo (e
conosco) para que ele se revele para si mesmo e assim mude por se enxergar de
uma maneira diferente. (KAPLAN; DAVIDOFF, 2014, p.23).

2.1.3 MULHER QUE QUERIA PARAR DE PENSAR


A mulher não saía do sofá, sempre prostrada, sem energia e quando se levantava, arras-
tava, não tinha força. Era comovente entrar na Casa, começar a oficina e vê-la lá, assim,

152
sem vida. Ela não queria participar da roda. Sempre se negava sem dizer uma palavra
- apenas balançava a cabeça recusando o nosso convite.

Um dia, a mulher se aproximou e nos perguntou: “Esse negócio de crochê faz parar de
pensar?”. Respondemos que sim e foi assim que ela entrou na roda, ainda se arrastando
e sem dizer uma palavra. Aprendeu rápido a manipular a agulha e a linha, mas não sabia
o que queria fazer, na verdade, ainda não tinha vontade. A cada encontro, ela recebia
um novelo que tecia até acabar e, quando acabava, desmanchava tudo o que tinha feito.

Seguimos assim por algumas semanas, tecendo e desmanchando e à medida que o tem-
po ia passando, a mulher ia se transformando. O corpo aprumou, os passos firmaram e
ela começou a falar. No início, uma fala calma, lenta, admirada com a possibilidade de
poder tecer. Lembrou-se que tecia tricô quando mais nova e pediu agulhas para que
pudesse tentar outra técnica. Tecemos em tricô, tecemos em crochê, tecemos panos que
não eram mais desmanchados, mas que não tinham uma função definida.

Não sabemos o que ela fez com os tecidos, mas percebíamos que, aos poucos, a mulher
ganhava confiança, energia e vontade. Essa vontade ficava evidente quando falava, ago-
ra de forma mais firme, ritmada, cheia de sentimento e de emoção. Em alguns momen-
tos, a fala era raivosa e indignada pelos acontecimentos que a levaram até a Casa; em
outros, a fala era divertida e alegre pelas aventuras que viveu. Mais confiante, conseguiu
um trabalho como cuidadora de uma senhora que estava doente e parou de participar
das aulas, mas as coordenadoras nos davam notícias sobre ela.

Passado algum tempo, ela saiu da Casa e foi morar em uma das ocupações urbanas que
existem em Belo Horizonte. Em um dia de carnaval, encontramos com ela feliz participan-
do da festa. A mulher se aproximou e nos agradeceu dizendo que o crochê havia transfor-
mado a vida dela e que agora sabia o que ela não queria mais. Recentemente, soubemos que
está cursando o ensino médio no EJA e que foi a melhor aluna do Ensino Fundamental.

Essa mulher nos trouxe o terceiro desafio: entender que, no final das contas, o que
importa não é o resultado ou o produto da oficina, mas o processo. Entre malhas te-
cidas e desmanchadas, a mulher foi reconstruindo o seu corpo e ressignificando a sua
própria existência. Por meio de uma ação receptiva, observação e escuta atenta, uma

153
nova possibilidade de mudança ficou evidente para a mulher que tecia e desmanchava.
Talvez tenha sido essa abertura de observação do processo que possibilitou a trans-
formação, o ingrediente ativo da ‘mágica ordinária’ do ‘ativismo delicado’ sobre o qual
nos fala Kaplan e Davidoff : a força da prática ativista não vem daquilo que se faz para
uma situação, mas através de como o ativista observa essa situação (e a si mesmo nessa
situação). Desse modo,

existe, sim, uma intervenção, existe atividade (observar também é um “fa-


zer”); mas a atividade é uma receptividade ativa, o exato reverso do que nor-
malmente imaginamos ser central em uma intervenção efetiva. Logicamente
há uma participação em muitas atividades, mas no cerne de todas elas está
essa receptividade ativa, essa qualidade observacional, essa abordagem re-
versa; essa abertura para ser mudado, por parte do ativista, mais do que a
martelada insistência para se efetivar mudanças no outro ou na situação.
(KAPLAN; DAVIDOFF, 2014, p. 25).

3. TRAMAS ABERTAS
Essas três mulheres, por algumas vezes, se encontraram nas oficinas, teceram juntas,
conversaram, trocaram experiências, riram e se divertiram bastante. Nesses encontros,
afetavam e eram afetadas umas pelas outras. Conduzindo as rodas, afetamos e fomos
afetadas. Percebemos que essas três mulheres nos habitam e habitamos essas mulheres
independente de nossas histórias. Assim,

entramos no objeto – o que é percebido, o outro, o mundo – tão intensamen-


te que nos descobrimos idênticos a ele e a distinção entre sujeito e objeto
(entre subjetivo e objetivo) que nos é tão comum, cai por terra. Somos um só
com o mundo. (KAPLAN; DAVIDOFF, 2014, p. 30).

E como tudo muda o tempo todo no mundo e sendo a vida um fluxo constante de acon-
tecimentos, a configuração das atividades da Casa, em especial o Projeto Flores da Tina,
foi tomando outros rumos. As mulheres abrigadas, no início do Projeto, seguiram suas
vidas; novas mulheres surgiram e, junto com elas, seus filhos.

A experiência das atividades iniciais serviu de guia para um novo direcionamento do projeto
que passou a intercalar atividades infantis com as oficinas de crochê. Durante um ano, três

154
acolhidas e quatro crianças participaram das oficinas. Essas três mulheres também segui-
ram suas vidas e hoje moram em uma das ocupações urbanas do centro de Belo Horizonte.

Mesmo sem saber ao certo o futuro do Flores da Tina, nos colocamos abertas à conti-
nuidade do projeto por acreditar que essa ação ativa o criar humano e a possibilidade
de revoluções internas que promovem a emancipação e o fortalecimento das mulheres.
O desejo e a certeza da potência das atividades realizadas durante esses três anos servem
de motivação para tecer novas tramas.

REFERÊNCIAS
BASTOS, C.Tina Martins: de ocupação a Casa de Referência. V!RUS, São Carlos, n. 13,
2016. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus13/?sec=5&item=73&lang=pt>.
Acesso em: 24 jan. 2010.

BERTHO, H. Mineiras ocupam um imóvel abandonado e o transformam em casa para


vítimas de violência doméstica. 2016. Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/
mineiras-ocupam-imovel-abandonado-e-o-transformam-em-casa-para-vitimas-de-violencia-do-
mestica>. Acesso em: 24 jan. 2020.

FANTINI, P. A busca de um novo local para chamar de lar. 2018. Disponível em <https://
www.obeltrano.com.br/portfolio/a-busca-de-um-novo-local-para-chamar-lar>. Acesso em: 24
jan. 2020.

KAPLAN, A.; DAVIDOFF, S. O Ativismo delicado: uma abordagem para mudanças. Pro-
teus Initiative, Cidade do Capo. África do Sul. 2014. Disponível em: <http://www.institutofon-
te.org.br/sites/default/files/O%20Ativismo%20Delicado%20-%20Final%20PDF%20version%20
2014.pdf>. Acesso em: 24 jan. 2020.

PIMENTA, A. Casa de Referência da Mulher Tina Martins. O campo de batalha das mulhe-
res é aqui – e lá. 2017. Disponível em: <https://memorialdasredeseruas.wordpress.com/2017-2/
mulheres/>. Acesso em: 24 jan. 2020.

SOARES, A. Entrevista Indira Xavier. 2018. Disponível em: <http://www.esp.mg.gov.br/ci-


dadao/reservas/story/1947-ascom-entrevista-indira-xavier>. Acesso em: 24 jan. 2020.

155
Nós
entrelaçadas:
Projeto de intervenção urbana têxtil
por Rossana Carmen Cilento e Telma Terezinha Souza Ribeiro

RESUMO
Este artigo descreve o início da formação de um grupo de mulheres, Nós Entrelaçadas,
residentes em Tupã, interior de São Paulo, que foi criado com o objetivo de levar arte,
cultura e lazer à população da cidade, que se encontrava carente de Artes. A partir da
proposta de se encontrarem semanalmente para juntas partilharem seus conhecimen-
tos, surgiu um projeto de intervenção urbana para a criação de uma tenda artesanal a
partir do reuso de materiais e com característica de arte popular. Cada participante do
grupo se prontificou a desenvolver de maneira totalmente livre um metro quadrado da
imensa colcha de retalhos da tenda. A maioria não sabia nenhuma manualidade, porém
o coletivo se dispôs a aprender. A tenda pronta, de 90 metros quadrados, alcançou seu
intento gerando parcerias, alegria e aumento na autoestima de todo o grupo.

PALAVRAS-CHAVE: Convívio social. Inclusão. Intervenção Urbana. Coletivo


feminino. Habilidades têxteis.

ABSTRACT: This article describes the beginning of a group of women, Nós Entrela-
çadas, from Tupã city, São Paulo state which due to a lack of culture and leisure aimed
to supply the local people with Arts. From monthly manual loom workshops, that sha-
red knowledge of Arts, emerged a handmade tent project with recycled material with
popular Arts characteristics. Everyone would develop freely one square meter of the
huge tent patchwork even though most of them did not know any craft technique, they
were willing to reach the goal. Reaching the target the 90m saquare tent generated
hapiness increased self-steem, joy and partnerships.

KEY-WORDS: Social interaction. Inclusion. Urban intervention. Female collective.


Textile skills.
INTRODUÇÃO
Este artigo surgiu a partir de um convite para a participação no I Congresso de Artes
-Manuais na Academia, na cidade de São Paulo, de 25 a 26 de janeiro de 2020, feito pela
organizadora e promotora do evento Nina Veiga - Atelier de Educação. O Grupo Nós
Entrelaçadas foi apresentado em uma mesa-redonda com o tema: “As redes digitais, a
imprensa e os fios das artes-manuais” e em uma oficina de nome “Tramas Circulares”,
realizada pela artista plástica Rossana Cilento e a arquiteta Telma Ribeiro. Nesse ar-
tigo está explicitado como foi possível se chegar a um coletivo de mulheres em uma
cidade do interior paulista que mantém um viés um tanto machista.

Em pleno século XXI, vivemos a era do consumo, do descartável, do excesso, do amor


líquido, da vida líquida e da modernidade líquida (BAUMAN, 2007). Segundo a psi-
cóloga Maristela Colombo (2012):

Essa mudança desconectou o homem de si mesmo para conectá-lo às máquinas.


O homem deixou de dar valor ao que é executado por suas mãos para super-
valorizar o produzido em fábricas. Vive-se a era dos excessos, das celebridades
instantâneas e momentâneas, dos ‘quinze minutos de fama’ e de uma urgência
implacável, causadora de grandes sofrimentos psíquicos.

A partir da Revolução Industrial, o exercício das artes-manuais que era vital ao mundo
feminino passou a ser rejeitado pela própria mulher, pois o artesanal trazia consigo
um sentimento de inferioridade e resquício da escravidão. Dessa forma, a mulher foi
eliminando de sua vida esse contato com seu silêncio interior e com o processo, que
demanda tempo, para a feitura de um trabalho manual. Sem imediatismo ou ansiedade,
o fazer pela saúde de fazer.

A mulher de hoje conhece o mundo, o trabalho, o mercado, mas não sabe de si, não
compreende e nem tampouco respeita seus ciclos naturais, seus processos, sua sabedo-
ria, sua ancestralidade e sua intuição. Perdeu o contato com seu relógio natural na sim-
plicidade de engravidar, gestar, amamentar, parir naturalmente, cuidar de seus filhos,
cuidar de si, cuidar da vida ao seu redor. Houve uma desconexão, um fio se rompeu.
Seria possível restabelecer essa conexão? Reconexão? Seria possível reunir mulheres a
fim de que se olhasse para o que é interno, pessoal e intransferível?

157
Seria possível resgatar, a partir do trabalho manual que era desenvolvido nos espaços
domésticos pelas mães, tias, avós, vizinhas, a importância do momento de interioriza-
ção, paz e concentração que as manualidades proporcionam a quem faz, ao produzir
alegria e descanso, tendo o corpo como um templo que produz potência de vida?

A partir destas questões, surgiu o desafio de vencer as desconfianças diante de um pro-


jeto que veio quebrar paradigmas estabelecidos pela formação de cada mulher. A pos-
sibilidade de vencer em união o medo do fracasso e da ousadia de fazer algo totalmente
diferente do comum foi o impulso inicial. Vencer o medo do projeto não ser bem-suce-
dido e, principalmente, o de disponibilizar 3 horas por mês para sair da rotina feminina
e se permitir entrar em contato com a simples alegria de viver.

HISTÓRIA DO ARTESANATO
A história do artesanato tem início com a própria história do homem, pois a necessidade
de se produzir bens de utilidade e uso rotineiro, até mesmo adornos, expressou a capaci-
dade criativa e produtiva como forma de trabalho. A partir do século XIX, o artesanato
ficou concentrado em espaços conhecidos como oficinas, em que um pequeno grupo de
aprendizes vivia com o mestre artesão, detentor de todo o conhecimento técnico.

O artesanato faz parte do folclore de cada lugar revelando seus usos, costumes, tradi-
ções e características. Uma de suas funções mais importantes é a cultural, pois se tor-
nou a forma de expressão e dos costumes de um povo. Por isso, é possível se valer das
mais distintas técnicas para a criação das artes-manuais.

Dedicar-se a trabalhar algum material com as mãos permite relaxar e refletir sobre os
problemas de maneira a encontrar boas soluções para os mesmos. Além desse viés tera-
pêutico, o artesanato tem grande valor para aqueles que estão em busca de melhorar as
suas condições de vida. As peças artesanais podem se tornar uma fonte de renda extra
ou a principal fonte de sustento.

Para a realização do Projeto Têxtil Urbano, o coletivo de mulheres Nós Entrelaçadas


privilegiou a arte têxtil. Essa escolha se deu pelo fato de transmitir uma concepção esté-
tica e um pensamento por meio do ornamentar abstrato ou do figurativo. Na arte têxtil,

158
é possível estar em movimento constante e atento às necessidades da alma, tecendo,
transformando, costurando, reciclando, juntando para redescobrir novas formas.

O fazer manual, criativo, espontâneo gera prazer, tanto pelo contato com os materiais,
quanto pela possibilidade de materializar o conteúdo interno e, atualmente, está relaciona-
do à Arteterapia que se define como o uso da arte como meio à expressão da subjetividade
uma vez que “a linguagem artística reflete nossas experiências interiores, proporcionando
uma ampliação da consciência acerca dos fenômenos subjetivos.” (CIORNAI, 1995, p. 18)

Abrir um espaço lúdico e entrelaçado com as artes-manuais quebrou o esquema roti-


neiro de ocupações e preocupações de muitas mulheres do Coletivo, trazendo-lhes a
possibilidade de criar de forma divertida por meio do retorno de uma prática antiga
de tecelãs, crocheteiras, costureiras, tricoteiras. Estas se juntavam à tarde, em frente às
suas casas, para fazer trabalhos manuais, e dar trégua a um trabalho doméstico estafan-
te. Talvez esse fosse o único momento de contato com os próprios sentimentos e uma
forma de se prevenir do adoecimento.

O movimento de compartilhar artes-manuais no coletivo de mulheres Nós Entrelaça-


das possibilitou o entrelaçamento de relacionamentos significativos, de confiança, de
apoio e respeito mútuos.

Ao se promover um ambiente sem julgamentos ou críticas, e sim de acolhimento, cria-se a


base necessária para o desenvolvimento da proposta arte terapêutica. (COUTINHO, 2009)

DESENVOLVIMENTO DO PROJETO DE INTERVENÇÃO URBANA


A ideia de um projeto de intervenção urbana têxtil na cidade de Tupã nasceu em 2018,
durante as Oficinas de Tear Manual de Rossana Cilento, artista plástica e têxtil, formada
em Comunicação e Artes pela Universidade Mackenzie. Dedicou-se ao mundo da moda e
decoração como Designer Têxtil e trabalhou por mais de 30 anos na produção de tapeça-
rias artísticas, acessórios, xales, mantas, almofadas, cachecóis, entre outros, em São Paulo.

Em suas oficinas, parte do princípio da desconstrução e reconstrução de peças de des-


carte com fios novos que possibilitam a revitalização de algo que seria descartado, pro-

159
pondo assim uma renovação: uma camiseta velha pode ser cortada em tiras que, por
sua vez, se juntam a tecidos coloridos, fios de lã, papelão e toda sorte de materiais.
Utiliza a arte como papel principal para privilegiar a conexão entre as participantes, em
um ambiente saudável, sem disputas de egos e competição.

Nas oficinas de tear manual, surgiu a ideia de se construir algo maior, como um acon-
tecimento, uma festa na cidade, que pudesse dar a cada uma das participantes a alegria
que um artista sente quando expõe seu trabalho ao público e quando fala dele: a satis-
fação que resulta do ato de compartilhar sua criação. Aquele instante em que criador
e obra se fundem, e a percepção do observador gera um sentimento de cumplicidade,
reconhecimento e uma alegria sem fim.

A ideia transformou-se em um projeto de ação que se baseou na imagem de um oásis,


uma ilha da fantasia, como uma fuga do cotidiano para que o convívio fosse vivenciado
dentro de uma atmosfera oposta a tudo que internamente pressuriza e cobra do ser
feminino sua disponibilidade 24 horas por dia.

Montar uma Big Tenda na Praça, como uma enorme colcha de retalhos, com cada
mulher tecendo um metro quadrado, com a técnica que escolhesse ou sem técnica al-
guma, era o desafio. Além de que cada retalho representasse a essência daquela mulher
e a colcha de retalhos a união de todas, com suas cores vivas que acolhessem as pessoas
que passassem pela rua como uma casa acolhe a quem chega.

O local escolhido para a intervenção urbana têxtil foi a praça principal de Tupã, cidade
que tem, aproximadamente, 65 (sessenta e cinco) mil habitantes. Como a maioria das
localidades com esse perfil, é carente de arte e cultura, sendo assim o cenário ideal para
o grupo pioneiro, inovador, desenvolver a atividade.

Tudo se mostrou um grande desafio. As regras para que o projeto pudesse acontecer
foram as seguintes: não se fala sobre política, religião e doença, nem própria, nem de
outrem; as 03 (três) horas da reunião serão férias, pois todos os problemas continua-
riam em casa esperando; o que vale aqui é o lúdico, brincar como crianças. Pensar é
agir! Quando se aceita ser feliz junto, ao se juntarem mais pessoas, felizes já se sentem.

160
Na ocasião da formação do grupo Nós Entrelaçadas, com a participação de 10 (dez)
mulheres, estruturou-se uma equipe de 04 (quatro) coordenadoras e uma assessora de
imprensa. Houve uma grande aceitação e 60 mulheres aderiram ao projeto, sendo 30
ativas. Para explicar didaticamente a todas como fazer essa tenda, foi construída uma
maquete, com palitos de churrasco e uma minicolcha de retalhos.

Foram necessárias várias reuniões da coordenação com as participantes para estabele-


cer a aproximação, os laços de amizade e o estreitamento das relações. As comunicações
aconteciam também em um grupo do WhatsApp. Para que se alcançasse o resultado
final, foi traçado um cronograma estabelecendo as tarefas e os objetivos, determinando
a apresentação da tenda coletiva no dia 12 de outubro, aniversário de 90 anos da cidade,
com 90 metros quadrados.

A divulgação nas redes sociais foi de vital importância para a captação do material têx-
til necessário. Nos encontros, discutia-se sobre as possibilidades da criação de cada
metro quadrado, de acordo com as necessidades de cada participante. Esses encontros
tornaram-se momentos de alegria e descontração, além de contato com a natureza em
espaços comuns urbanos, nas praças da cidade e nas áreas rurais.

Durante o primeiro semestre de 2019, foram efetuadas atividades de aquecimento e vín-


culo como vestir árvores na mata, inspiradas em imagens da internet; tecer um tear coleti-
vo ou humano inspirado no trabalho do artista-docente Alexandre Heberte; instruir e tra-
zer a importância da sustentabilidade com palestra de Maryanna Kanejji, artista têxtil e
embaixadora Lixo Zero e desenvolver origamis de tecido com a arquiteta Telma Ribeiro.

Imagem 1: Arquivo
pessoal da autora.
Imagem 2: Arquivo
pessoal da autora.

Imagem 3: Arquivo
pessoal da autora.

Para se levantar fundos, realizou-se


uma feira artesanal com produtos
doados pelas integrantes.

Respeitando e seguindo rigidamente o cronograma, em Julho, o objetivo de conse-


guir patrocinadores foi atingido com sucesso. A Secretaria da Cultura disponibilizou
o espaço na Praça da Bandeira e incluiu a atividade do grupo no calendário oficial das
festividades dos 90 anos da cidade.

A partir das reuniões que transcorreram durante o desenvolvimento do projeto, eram


notadas algumas mudanças nos comportamentos pessoais, como a diminuição do espí-
rito competitivo que deu lugar a um ambiente saudável de convívio, levando em conta
a alegria como aspecto importante para encarar a própria vida.

A construção da tenda foi agregadora e fator do aprendizado de viver sem barreiras,


sem preconceito, com alegria e doação de si para o outro e para si mesma, para além das
diferenças pessoais de cada integrante.

162
CONSIDERAÇÕES
Para transformar uma ideia em realidade há que se fazer muito barulho.

Havia o sonho de uma pessoa, que se uniu a outra e mais outra e formaram um grupo.
Esse sonho, após compartilhado, transformou-se em realidade.

Criar um acontecimento inusitado e transformá-lo em algo único e inesquecível para


as pessoas de uma comunidade foi enriquecedor, agregador e sedimentou a obra das
tecelãs de Tupã.

Criar um projeto, com o intuito de proporcionar um espaço de criatividade e esponta-


neidade além de estimular a descoberta do seu eu interior, é desafiador.

Trabalhar artes-manuais como meio de encantamento e relaxamento, através da de-


licadeza e da inclusão de todas as mulheres que se sentiram atraídas pelo projeto, foi
fascinante e inspirador.

Realizar a tenda sem envolver interesses financeiros, foi possível através de doações
pessoais e sobras de tecidos e fios da indústria de roupas. A doação das peças que foram
comercializadas gerou renda para outras despesas.

Gerar valor individual, a partir do convívio das várias classes sociais presentes no gru-
po, sem levar em conta o nível socioeconômico e cultural, estabelecendo um convívio
de respeito e afeto, foi um grande aprendizado para todas.

O desafio principal desse projeto foi vencer as desconfianças da capacidade de si mes-


ma, além de vencer o medo do fracasso numa comunidade pequena e machista. A união
do grupo fez com que o medo fosse amenizado e a autoconfiança determinasse a cora-
gem de se expor perante as outras integrantes do grupo e perante a sociedade.

A intervenção urbana têxtil foi composta não apenas por artesãs, nem tampouco um gru-
po de alunas de artesanato e sim por um coletivo de mulheres de todas as classes sociais
que se propuseram a um novo desafio e, assim, paulatinamente, foram rompendo as bar-
reiras em relação à sua própria realidade e descobrindo novas possibilidades de vida.

163
CONCLUSÃO
A Intervenção Urbana Têxtil pretendeu trabalhar artes-manuais como meio de encan-
tamento e relaxamento através da delicadeza e da inclusão de todas as mulheres que se
sentiram atraídas pelo projeto. Essa ação foi embasada na criatividade com liberdade,
na prática do convívio e na ação colaborativa, surgindo assim o desafio da confecção de
uma ação transformadora.

A inauguração da tenda na praça da matriz no aniversário da cidade teve direito à festa


de abertura e foi, oficialmente, o marco de lançamento do Coletivo Nós Entrelaçadas
para o público.

Nós Entrelaçadas contou com apoio fundamental para a execução do projeto, tais
como a Secretaria de Cultura, as mídias locais, rádios, jornais, TV, filmagem por drone
e a própria população. Esse projeto tomou vulto e conquistou parcerias para o desen-
volvimento de um trabalho social, inicialmente voltado às crianças e jovens da cidade,
ensinando a arte e o ofício da tecelagem manual.

O resultado alcançado com sucesso e, consequen-


temente, o aplauso pela obra, foi importantíssimo
como reconhecimento interior e exterior da cria-
tividade feminina e arte coletiva. Toda individua-
lidade foi aceita, respeitada e as particularidades
individuais reunidas determinaram um caráter
único, como uma colcha de retalhos. Uma alegria
imensa, pelo reconhecimento individual de seu pa-
pel na obra realizada e pelo reconhecimento das
pessoas da cidade, familiares e amigos.

A essência dessa experiência inclusiva não teve como


objetivo o padrão estético formal ou comumente
valorizado. Foi construída uma obra inspirada na
arte popular, em que o fio condutor criativo esteve
o tempo todo conectado com a ética humana e a in-
clusão que gera dignidade e pertencimento social.
Imagem 4 : A tenda na praça da Matriz.
164 Arquivo pessoal da autora.
A confecção da tenda costurou na alma de cada participante pedacinhos coloridos da
história individual, nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas que acrescentam e
que fazem cada uma ser quem é. (PIZZIMENT, s/d)

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

CIORNAI, S. (1995). Arte-terapia: o resgate da criatividade na vida. In M. M. M.


J Carvalho (Org.), A arte cura? Recursos artísticos em psicoterapia. Campinas, SP:
Editorial Psy II, p. 59-63.

COLOMBO, Maristela. Modernidade: a construção do sujeito contemporâneo


e a sociedade de consumo. Rev. bras. psicodrama [online]. 2012, vol. 20, n.1, p. 25-
39. Disponível em: «http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-53932012000100004». Acesso em: 23 de abr. 2019.

COUTINHO, V. Arteterapia com Crianças. 3ed. Rio de Janeiro: Wak, 2009.

PIZZIMENT, Cris- Poema “Sou feita de retalhos”. Disponível em: «https://


www.50emais.com.br/poema-sou-feita-de-retalhos-nao-e-de-autoria-de-cora-corali-
na/». Acesso em: 23 abr. 2019.

O que são artes-manuais. Disponível em: «https://artesanato.culturamix.com/curiosi-


dades/o-que-sao-artes-manuais-para-que-servem». Acesso em: 22 abr. 2019.

História das artes. Disponível em: «https://www.historiadasartes.com/sala-dos-pro-


fessores/tecnicas-artisticas-a-arte-textil/». Acesso em: 22 abr. 2020.

Filme “Colcha de Retalhos” - Direção: Jocelyn Moorhouse, Elenco: Winona Ryder,


Anne Bancroft, Ellen Burstyn, Nacionalidade EUA. Disponível em: «http://www.
adorocinema.com/filmes/filme-44876/».

Parceiros: Adriana Spinardi; Márcia Zômpero; Milena Sanches; Secretaria da Cultura


de Tupã; Wagner Luques; André Lima Arquitetos; Roberto Lumix; DM Presentes; Rádio
Tupã; TV Câmara; Mais Tupã Jornal; Jornal O Diário; Dama da Noite Confecções; Ma-
ristela Colombo; Ana Saulle; Orlando Fogaça Filho; Marô Viana.

165
artigo publicado conforme redação original

Quando
as saias rodam
por Abadia Maria Oliveira, Marta Rosa, Eduardo Brito da Cunha

RESUMO
Priorizando a criatividade, este trabalho retrata as ações desenvolvidas por dezoito dias
no município de Iaciara, Goiás, nas Comunidades Quilombolas de Extrema e Levantado,
em janeiro de 2018, como parte do projeto de conclusão de curso da Especialização de
Processos e Produtos Criativos da Faculdade de Artes Visuais - UFG. Foi construído em
tecido, de maneira artesanal, tridimensional e sensorial; respeitando as regras da ABNT.

Contem sete saias rodadas em resíduos têxteis, representando as principais atividades


do projeto. Cada saia traz na sua parte interna duas imagens reais, que foram bordadas
à máquina, e aquareladas à mão.

O projeto em questão foi desenvolvido por diversas ações criativas, desde a escolha dos
retalhos dos tecidos, pela cor, pela textura. Até a produção de saias de roda, identitárias,
usadas na dança de sussa. Dada a quantidade mínima de máquinas de costura, inúmeras
saias tiveram os retalhos unidos com pontos de bordado à mão; outras com pontos de
crochê. Todas as saias foram feitas sob medida. Mas como a grande maioria do grupo
não tinha formação escolar, as medidas foram tomadas através de barbantes.

Havia uma cor de barbante para a medida da cintura, uma segunda cor de barbante para
a medida do quadril e uma terceira para o comprimento. Os quais eram estendidos no
chão num papel Kraft para traçar o molde de um quarto da saia godê de cada uma. O corte
final, e os acabamentos de cós e barra, foram de acordo com a metodologia participativa.

PALAVRAS-CHAVE: Criatividade. Identidade. Interação.


Motivação. Auto reconhecimento

166
INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da vivência artística teórico-prática, experienciada em duas
comunidades quilombolas no município de Iaciara - Goiás, quase mil quilômetros de
Goiânia. Na viagem, uma bagagem de mais de trezentos quilos de resíduos têxteis,
uma infinidade de materiais para costura e modelagem de peças que seriam construí-
das artesanalmente por integrantes das comunidades, orientados pelo grupo do pro-
jeto: um design de moda, uma artesã têxtil e uma modelista e professora de costura.

A façanha de encontrar apoio nessas duas comunidades quilombolas, só se tornou pos-


sível através das trocentas negociações, com os lideres das duas comunidades para que
tivéssemos hospedagem e as primeiras alimentações ao chegarmos, (o grupo decidiu
que custearia as despesas com alimentações durante todo o projeto). Chegar nas co-
munidades e perceber os inúmeros pares de olhos curiosos a nos observar é de deleitar
a alma de qualquer extensionista, diante do novo, do inesperado, dos tons e cores de
peles variadas e, dos sotaques diferentes dos nossos, deliciosos de se ouvir, isto ainda
sem levar em consideração os cheiros das flores que se sente nos quintais ao passar
pelas ruas estreitas e sem asfalto.

Neste lugar, experimentamos a riqueza da simplicidade por intensos dezoito dias.


Numa troca de saberes inimagináveis, em que pensávamos que nós iríamos ensinar.
Ensinamos, mas aprendemos talvez, muito mais. Nesse período as duas comunidades,
produziram trinta e oito saias de roda, para dançar a Sussa, uma dança da cultura ne-
gra, repassada pela tradição por gerações retratando traços de suas ancestralidades.

O texto a seguir foi feito em forma lúdica e quase poética para que compreendam que
a artes, a criatividade e a extensão é o povo, com seus ritos, saberes, sabores e afetivi-
dade, muita afetividade, pois na extensão é que o conhecimento adquirido poderá ser
colocado em prática e, dessa prática é que advém novas formas de atuação.

O banner foi confeccionado após o retorno, para ser apresentado como parte das obri-
gatoriedades para a obtenção do titulo de especialista do curso de Processos e Produtos
Criativos da UFG. Essa construção se deu de forma artesanal, sensorial, intuitiva. O re-
sultado é esse banner apresentado nesse evento: um produto tridimensional, sensorial,
bordado e aquarelado, firmando com ponto e linha, pincel e tinta algumas das inúmeras

167
cenas vivenciadas nas comunidades e, que se encontram descritas no texto abaixo, para
que a arte e a educação permeiem por um só caminho que é a cooperação dos aprendiza-
dos de quem ensina-quem. O banner é um mero resultado de tudo o que foi vivenciado
e tem poucas partes descritas abaixo, uma interação entre culturas diferentes, mas onde
a arte e a criatividade priorizaram o ser humano em seus saberes e fazeres.

PRA SAIA RODAR MUITO...


Tudo isto se torna impagável, quando na abertura do evento, duas lideres locais suge-
riram que buscassem Dona Catarina (82 anos), a mais idosa daquela comunidade, para
que ela presenciasse a explicação do que seria feito nas comunidades e, pudesse participar
da apresentação do grupo musical de Sussa que viria da outra comunidade. Por ter difi-
culdade de locomoção, a rua não ser asfaltada e haver chovido bastante durante o dia, era
necessário um carro para que ela cruzasse a rua, e pedimos à primeira dama que cedesse
o único carro que estava disponível no local, o da prefeitura, para poder busca-la.

Além da dificuldade de locomoção,


muitos acreditam que ela esteja cega,
mas isto é mais uma lenda urbana en-
tre tantas outras que vivenciamos nos
dias que ficamos por lá, na realidade, o
que nos deparamos foi com uma mulher
vívida, ainda muito resistente e, com
uma sensibilidade muito aflorada, que
concordou em ir na abertura sorrindo e,
que ao tocar as saias expostas no evento
de abertura do projeto, suspira e diz: “no
tempo que eu dançava Sussa, as minhas
saias tinham esse tipo de tecido (chita) e,
eram muito rodadas e floridas, eu fazia
a saia rodar e rodava muito” e, ainda sus-
pirando e rindo ao mesmo tempo mur-
murou: “e olha que eu dançava Sussa
com uma perna só e eu era bem bonita”.
(Foto 1 - Dona Catarina).

168
O que falar de beleza para uma senhora com mais de oitenta anos que possui os cabelos
bem grisalhos arrumados em quadrículos em pequenas pitucas coloridas por toda ca-
beça e, que ficou vendo em seguida a apresentação sobre o projeto e, depois a entrada
do grupo de homens tocando tambor, pandeiros, caixa e flauta, apresentando a musica
de Sussa. Isto sim faz com que qualquer coração se renove e, acredite que sonhar e
sorrir ainda é possível e, que as dificuldades podem ser resolvidas com colaboração,
que foi o que fez a gestora do município nos ajudando a busca-la. A emotividade dessa
líder local resplandeceu na participação dela e de outras pessoas de idades avançadas
em diversas atividades durante o projeto.

O AMANHECER, O LUGAR,
O LUAR E O CÉU DE ESTRELAS INFINITAS...
Quantos eram os pios e cantos variados de pássaros que se tornaram os despertadores no
inicio da manha? E as infindáveis corujas de cores e portes diferentes que se aglomeravam
nos pés de mamão a fazerem ruídos todas as noites, por infindáveis momentos, Pássaros?
Sabe-se lá quantos, porém eram muitos, muitos mesmos, de cores, tamanhos e formas
variadas, até mesmo uma saracura se postava em frente a janela a plenos pulmões para
anunciar que o dia havia clareado. Isso é extensão acadêmica no cotidiano e na pratica.

Os pássaros vinham para os pés de manga e, ficavam horas na labuta de ruídos e comilan-
ças, disputavam a pancadas de asas as enormes goiabas maduras do quintal, e as do quin-
tal da vizinha que se assomava acima do muro. Um morador assíduo e cotidiano, com
várias aparições durante o dia: o calango marrom com verde (que mais parecia um jacaré
em miniatura). O gato, arisco, mas que vigiava o que sobrava de comida na pia todo dia
à noite e, que aprendeu que deixávamos comida num canto embaixo na pia pra ele, che-
gava sorrateiro, olhando pros lados, mas com a tranquilidade de que o banquete era só
dele. O cachorro preto que sempre vinha acompanhando uma das senhoras que cuidava
do quintal. Entrava pela porta da sala, andava a casa toda e depois deitava debaixo da
mesa da área, como se fosse um inspetor do lugar. E isto sem contar os inúmeros cachor-
ros soltos nas duas comunidades, mais de quinze, correndo atrás de uns bezerros e vacas
que pastavam mansamente o capim todo e qualquer capim alcançável por suas enormes
línguas e ficavam ali, espreitando tudo e todos que passavam, com seu jeito manso de ser.

169
Na academia se pode estranhar esse tipo de relato,
não tecnicista, fundamento e corroborado por auto-
res diversos, porém é para ilustrar o quão humano,
único e diferente é o lugar onde a educação e arte
se misturam e se convergem num produzir criativo e
muitas vezes inesperado numa ação de extensão uni-
versitária. Foi nesse clima de empatia, companhei-
rismo e festa da natureza que o projeto foi explicado,
os retalhos foram distribuídos, espalhando os dez
sacos pelo chão para que as pessoas escolhessem o
que achassem melhor para as suas saias, isto foi igual
periquito em lavoura de arroz, só barulheira, farra e
festa, pois os retalhos ao serem separados foram colo-
cados em trouxinhas e escreveram os nomes em cada
uma delas para não se misturarem. Inúmeras outras
trouxinhas foram feitas depois para alcançarem a
quantidade necessária para o feitio da saia. Para que
compreendessem a proporção e tamanho dos corpos,
foram feitos protótipo de manequins em EVA, e cada
boneco virou um amuleto, um premio compartido en- Foto 2: O protótipo

tre todos que faziam pra si e para presentear alguém.

Fotos 3, 4, 5: As trouxinhas.

170
Era impressionante a ansiedade e a expectativa que se percebia ao começarem a apren-
der os pontos de costura à mão que possibilitaria unir os retalhos, tendo em vista que
os desacertos políticos na localidade acarretaram que não tivéssemos as maquinas de
costura que haviam sido prometidas. Olhos ávidos, que se esbugalharam de felicidade
quando a primeira saia ficou pronta e, a saia ao rodar ficou 100% elevada, plana, na
altura da cintura, colorida em pedaços de retalhos e, os sorrisos brotando em quem
estava vestida e em quem estava vendo. Essa cena dos sorrisos e olhos esbugalhados se
repetiu em todas as outras quase quarenta saias que foram feitas.

Fotos 6 e 7: Costura à mão.

Nem tudo são flores e belezas, porém


não é intenção desse artigo falar das
mazelas e desacertos e, sim enumerar o
quão prazeroso é desenvolver um pro-
jeto na prática, onde viabiliza que as
pessoas tenham interação entre elas e
que se ajudem, numa cooperação lim-
pa, direta, tranquila, num sentimento
de crescimento e aprendizado mútuo.

Foto 8: A saia de roda.


171
O SABOR QUE RODA AO REDOR DO NARIZ...
Os quintais em geral são grandes, uma mistura de tentação e pecado em um só lugar,
pois em cada um deles parece mais uma mata de sabores e cores e cheiros, onde se pode
encontrar desde plantas medicinais comuns até as mais excêntricas (soninho, ou dorme
dorme), pequenas e delicadas frutas como amoras, figos e acerolas e, enormes cocos,
mangas, jacas, graviolas e mamões e, exóticas (laranja grande ou toranja e groselhas da
Bahia). A atividade de mapeamento trouxe através do desenho a localização de tudo que
se tem nas duas comunidades, onde estão as casas, os pastos coletivos, os chiqueiros,
os animais e também as enormes quantidades e variedades de frutas e verduras. Foram
enumeradas cinquenta e quatro espécies de frutas e, se somadas às variedades de cada
uma, são mais de cem juntando nos quintais das duas comunidades (ex: seis variedades
de limão, oito variedades de manga, etc). Alguns quintais possuem pequenos animais
como galinhas, patos e porcos e muitas orquídeas de tipos de flores e modelos exóticos.

Fotos 9 e 10: O Mapeamento.

A RODA GIROU E OS SABERES SE MISTURARAM


A escola de uma das comunidades foi cedida para a realização das oficinas e também
para a abertura do projeto, porem por ser fim de janeiro, as aulas recomeçaria e, teria
que ser encontrado outro lugar e surgiu a ideia de serem as aulas num quintal de alguma
casa, cruzamos a rua e chamamos pela dona da casa, que era assídua frequentadora das
oficinas e, perguntamos se ela e o marido se importariam em ceder o espaço de quintal
para que as oficinas ocorressem ali, debaixo das arvores, pois teríamos que mudar de

172
lugar, a resposta que tivemos foi: “para nós é um prazer que alguém venha ensinar algo
para nossas comunidades, principalmente para as mulheres, nossa casa e nosso quintal se
sentem felizes por vocês nos escolherem e, as pessoas são muito bem vindas à nossa casa”.

Fotos 11 e 12: O Quintal da Dona Joana

E assim as oficinas começaram a acontecer debaixo de enormes pés de mangas, com


direito a maracanãs (maritacas) jogando restos de mangas em todos que estavam por
lá. As mesas e bancos foram levados para o quintal e tudo transcorreu como numa
grande família: se ajudavam, ensinavam uma às outras os pontos de costura ou a forma
mais pratica de unir os retalhos, ajudavam a escolher a cor que mais se acertava com
o resultado que elas esperavam, riam, criticavam, cuidavam dos filhos uns dos outros,
amamentavam bebês e, tinham crianças correndo para todos os lados e comendo as
frutas maduras dos quintais.

Na outra comunidade as oficinas começaram dentro do prédio da igreja da comunida-


de, mas por ser escura, com pouca ventilação foi decidido que as oficinas aconteceriam
ao ar livre, e bancos foram colocados debaixo de uma arvore, em frente à igreja e utili-
zamos a parede da igreja como suporte para as apresentações. Após constatarmos que
havia uma grande quantidade de idosas que não estavam frequentando as oficinas por
questão de acessibilidade (o degrau do ônibus era muito alto para elas subirem).

173
Foi decidido que parte das oficinas dessa segunda semana seria dividida entre as duas
localidades das comunidades, possibilitando que elas presenciassem as oficinas. Nestas
localidades (quintal e escola) aconteciam os lanches coletivos, feitos e compartilhados
por diversas pessoas das comunidades, em todos os lanches havia sucos frescos, feitos
das frutas dos quintais e, ou leite que alguém da comunidade doava (o leite com açúcar
queimado e canela era o mais disputado por todos).

Essa interação num ambiente familiar, entre as pessoas


das duas comunidades rendeu bons frutos: as mulhe-
res ficaram mais livres, menos reservadas, contavam
piadas, pilheravam as dietas umas das outras, troca-
vam receitas e conselhos e, azucrinavam os maridos
que por la apareciam, alguns adolescentes se aventu-
raram a manusear a maquina de costura e a aprender
a fazer pontos de bordado e de crochê de maneira
tranquila, leve, com muita curiosidade e respeito pelos
aprendizados que estavam sendo compartilhados. Em
todas as oficinas, sempre havia a presença de meninos,
manuseando, perguntando, participando, costurando,
ajudando, ensinando em harmonia com as meninas e
mulheres, e isto era incentivado pelas mães, tias e avós.
As crianças continuamente manuseavam os retalhos, Foto 13: Dona Eduarda
mesmo sem conseguirem produzir peças grandes.

Foto 14 e 15: O Crochê

174
Fotos 16:
As crianças

RODAMOINHO, RODA GIRANDO...


No inicio da segunda semana de oficinas, apareceu a primeira máquina domestica de
costura, era herança de família, guardada com muito zelo e cuidado, mas sem saber como
manusear. A cena dessa pessoa sentada por primeira vez, movendo a maquina elétrica ti-
rou enormes sorrisos e algumas lágrimas de contentamento, de quem aprendeu, de quem
ensinou e dos que estavam presentes na hora do acontecido. Essa foi inclusive a primeira
saia a ficar pronta dois dias depois, toda costurada a maquina, com ideia de colocar renda
na barra, isto impulsionou outras mulheres a se juntarem para fazerem as delas.

As máquinas domésticas de costura fo-


ram aparecendo aos poucos, muito tími-
das, em geral eram herança de família,
ou emprestadas por algum parente, al-
gumas com gabinete, muito bem con-
servadas e em funcionamento, e houve
duas senhoras da comunidade que iam
à casa do grupo do projeto e pergunta-
vam: já terminei as tarefas, querem que
ajudem em algo, e levavam para suas ca-
sas os trabalhos para serem feitos, outras
Foto 17: Dona M. de Fátima
só apareceram e sumiram de novo.

175
Uma mulher da comunidade emprestou uma destas preciosidades com gabinete para
o grupo do projeto, que foi utilizada ate o ultimo momento do projeto. Isto alavancou o
processo de costura das comunidades e, auxiliou muito na conclusão de todas as saias.
Apareceram inclusive duas máquinas industriais em uma família na área rural, que tam-
bém foi bastante utilizada para a construção das saias. No ultimo dia haviam brotado
cinco máquinas sendo utilizadas na casa do projeto e mais as outras duas com gabinete
nas casas e as duas da área rural.

As máquinas domésticas, portáteis começaram a fazer parte do kit de primeiros socor-


ros de todas as oficinas, pois eram transportadas de um lado para outro e isto desper-
tou o interesse de crianças e adolescentes em saber como isto funcionava e o resultado
que era obtido.

A SAIA, A RODA, A ENGRENAGEM QUE RODA...


Para as oficinas teóricas e praticas a metodologia escolhida pelo grupo foi a participa-
tiva, onde tudo é votado, e decidido por todos, as falhas são analisadas a cada fim do
trabalho e estratégias pensadas para resolver os problemas e situações adversas que
ocorrerem no desenrolar das oficinas, independentemente de serem assuntos internos
ou externos, desde que afetem diretamente o bom desenrolar e o andamento do traba-
lho, deve ser discutido e votado entre todos os integrantes.

Nesta mesma linha de percepção foi feita uma conversa sobre o belo e a estética, sobre as
diversas nuances de cor da pele negra, o respeito ao biotipo de cada ser, a importância de
se valorizar o físico e emocional, não levando em consideração as observações fóbicas que
são enfrentadas cotidianamente, que os valores estéticos mudam de tempos em tempos
de acordo com a moda do momento e das condições ambientais que os circundam. O
resultado disto foram atitudes de valorização e de aceitação de si e do outro, gerando ate
mesmo galhofas sobre isto ou aquilo que antes era considerado um defeito e, que a partir
daquele momento era visto como qualidade e motivo de diferenciação e empoderamento.

Os moldes e medidas foram tomadas de maneira prática, para que as pessoas sem for-
mação escolar pudessem compreender as medidas de altura do corpo, largura do quadril
e da cintura, para isto foi utilizado pedaços de barbantes coloridos, uma cor para cada

176
tipo de medida e, estas medidas eram cortadas em separado para cada uma das pessoas,
para a posterior construção do molde, que devido à falta de material foi feito somente um
quarto do tamanho total, para cada uma das mais de sessenta pessoas que participaram
das oficinas. Após as medidas, esses barbantes eram estendidos em cima de papel kraft
e delimitado o tamanho da saia de cada uma das pessoas, no qual ficava escrito o nome
para não se misturarem entre si. Essa metodologia facilitou na hora de unir as partes que
foram construídas em separado com os retalhos, pois eram colocados os moldes em cima
do tecido já costurado e recortava quatro partes iguais para a formação da saia em godê
duplo ou saia guarda chuva, que dava em média 8 metros de roda cada saia pronta.

Uma atitude de identidade e cooperação


coletiva foi quando no ultimo dia, ao leva-
rem os panos emendados para serem recor-
tados nos moldes, muitas mulheres quando
acertaram as partes costuradas no molde,
doaram as partes restantes para que outras
mulheres pudessem concluir suas saias e,
em sua grande maioria eram retalhos emen-
dados à mão. Outras que já haviam termi-
nado suas saias desde a metade da semana
e continuaram indo para as oficinas, emen-
Foto 18: ¼ da Saia Godê.
dando retalhos à mão para concluírem as
saias das demais do grupo.

Um fato interessante ocorrido nesta etapa


foi a troca de pessoa para o corte dos pa-
nos nos moldes, um homem de uma das
comunidades, após fazer a lida do campo
foi para a oficina e auxiliado por uma in-
tegrante do projeto aprendeu a cortar os
tecidos de acordo com o molde, agilizan-
do o trabalho que estava sendo feito, pela
força das mãos e pela docilidade com que
se empenhou em fazer. Foto 20: O Irene

177
A SAIA, O QUE SAI DA RODA
Desde o inicio do projeto as mãos sempre foram unidas em torno da oração, feitas no
inicio das oficinas e na hora do lanche, onde a mão esquerda do lado do coração, posta-
da para cima, recebe e a direita virada para baixo. As pessoas mais jovens pedem ben-
ção aos mais idosos, inclusive alguns fazem o beija-mão, com um leve inclinar do corpo
para baixo. Nas filas as crianças vão se achegando por ordem de tamanho, do menor
pro maior, e das mulheres mais novas para as mais idosas, sendo que o homem mais
idoso da comunidade é o ultimo a se servir. Se entre os presentes está algum líder de
maior idade é ele quem começa as orações e agradecimentos. É interessante observar
que muitas crianças e adolescentes sabem a oração do Espirito Santo toda e a repetem
em tom uníssono, inclusive com o trecho que somente alguns adultos sabem repetir.

Fotos 21 e 22: Divino Espírito Santo.

RODA A SAIA QUE A SAIA SAI


As comunidades ganharam doze metros de chita para fazerem saias, mas como a proposta
do projeto era retalho, ainda não sabíamos o que fazer desse tecido. Na festa de São Se-
bastião realizada numa das comunidades uma pessoa sugeriu que uma camisa para o líder
mais idoso ficaria bom e que ele usaria, perguntamos a ele, que concordou prontamente e
disse que ficaria muito feliz em estar enfeitado para o dia da finalização do projeto.

Na semana seguinte, uma criança bem pequena, chega perto do grupo do projeto e diz:
“Tia, você faz uma sussa preu dançar de saia?? Ô quero uma sussa preu dançá de saia”,

178
decidimos que as chitas que haviam sido dadas como presente para uma integrante do
grupo do projeto, poderiam ser utilizadas para fazer saias para as crianças, tendo em
vista que as adultas estavam construindo suas próprias saias e as crianças pequenas
não. Contando com a ajuda de uma adolescente da comunidade foram tomadas as
medidas de todas as quatorze meninas, e feitas as saias de todas elas.

Nesta proposta do repasse cultural, resolvemos oferecer ao poder publico a construção


das saias de quem esteve na abertura, desde que doassem algum tecido extra, para que
nos ajudassem a completar as saias que faltavam. Os tecidos chegaram em quantidade
suficiente pra fazer algumas saias pras crianças, possibilitando a confecção da camisa
do líder local e mais duas saias de chita para senhoras idosas da comunidade.

Foto 23: Encerramento.

A SAIA RODOU, O SORRISO BROTOU E O PROJETO FINDOU.


No sábado o trabalho coletivo foi uma estratégia de guerra com duas frentes de ba-
talhas, montadas em lugares diferentes: no quintal havia gente costurando e cortando
os panos já emendados e na casa da hospedagem dos integrantes do projeto as cinco
maquinas de costura que brotaram do nada revezavam pessoas no trabalho.

Foi um dia intenso, alvoroçado, amontoado de atividades, num processo tão acirrado
que algumas mulheres das duas comunidades que nunca haviam costurado, foram ensi-
nadas no manuseio e passaram o dia todo auxiliando a concluir as emendas dos panos que
chegavam cortados da casa do outro lado da rua. Era uma festa de cores, sons, sorrisos e
galhofadas por tentarem se ajudar entre elas para lograrem que todas tivessem suas saias.

179
E, assim foi cumprido, no sábado a ultima saia foi terminada era mais de oito da noite,
colocadas todas em uma enorme bacia, para serem entregues a cada uma no encerramen-
to. A localidade estava toda iluminada, com cadeiras dispostas em circulo, e muita gen-
te feliz, sorridente, alegre na expectativa de todas terem conseguido concretizar as saias
para dançarem como uma família unida, do mesmo jeito que havia sido feita a construção.

A camisa do líder local e saias das senhoras da comunidade haviam sito entregues mais
cedo, pois uma das saias era para a líder mais idosa da outra comunidade que havia
ido à casa do projeto para ver de perto todas as saias prontas. Ficou encantada com
o que viu e fez a oração do divino espirito santo dentro da casa do projeto, já com sua
saia no corpo. Todas as saias foram entregues de uma a uma, numa euforia coletiva, de
sorrisos, pequenos gritos e louvação a quem havia concluído a saia, começando pelas
crianças, e terminando pela mulher mais idosa.

Em seguida o líder local veio cami-


nhando desde a casa dele com o grupo
com os instrumentos tocando Sussa,
e do nada brotaram os tecidos para os
enfeites das cabeças e as mulheres re-
ceberam e já vestiram suas saias, come-
çaram a rodopiar e dar voltas na sussa,
gerando um enorme círculo ao redor
do grupo que tocava. Foram instan-
tes mágicos, onde a alegria a bela e a
capacidade de realização estavam ex-
Foto 24: Sr. Anastácio e Dna. Paula
postos, mostrando que a cooperação,
(dançando, de costas com a bengala)
a harmonia e o companheirismo são
capazes de fomentar grandes aconte-
cimentos; e, que a extensão universi-
tária pode gerar grandes mudanças
nas localidades onde atuarem.

180
artigo publicado conforme redação original

O despertar para
a lã de ovelha:
Investigação e experimentação
no pensar, sentir e querer
por Nathalie Capistrano Guimarães d’Arêde

RESUMO
O artigo visa investigar e experimentar espaços e fazeres manuais com a lã de ovelha.
Com o olhar para o corpo presente e o corpo físico. O corpo presente: o pensar, o sentir
e o querer no corpo universo feminino de mães e mulheres em busca do espaço-tempo
para experimentar a arte-manual, em meio ao cotidiano, novas formas e novas possibili-
dades da feltragem. Como a lã, o tempo, limitado, muitas vezes desdobra-se em espaço
multifunções, entre os afazeres domésticos e/ou maternos e os afazeres profissionais. O
cuidado do trabalho sustentável e independente como forma alternativa de renda. Para
o corpo físico, o olhar volta-se, em especial, às mãos como ferramenta primordial de evo-
lução humana e dos afazeres manuais; das técnicas artísticas até o processo de conclusão
de um objeto artesanal/artístico. A partir de vivências, dentro e fora do Ateliê Mãos da
Montanha, o presente explora as possibilidades de trabalhos manuais com a lã de ove-
lha utilizando a técnica da feltragem seca, com agulhas, e a molhada, com água e sabão;
as ferramentas para cada uma, a história da lã e seus benefícios para o corpo, moldando
e transformando em diversas formas para utilizar, observar, perceber, potencializando o
pensar, sentir, querer, agir, resistir e existir na produção, atuando de forma investigativa
no mundo das artes-manuais, pelo olhar e o toque suave das mãos de uma mãe.

PALAVRAS-CHAVE: Lã de ovelha. Experimentação. Feltragem seca. Feltragem


molhada. Feminino.
INTRODUÇÃO
Inspirado nos contos de fadas, onde tudo parece perfeito, aqui busco trazer uma outra
parte da história a vida real – contestando esses lugares das mulheres, das mães e do
feminino, em que quase nunca está perfeita, trazendo na narrativa modos de existir de
uma mãe em meio ao cotidiano da vida do século XXI. Trago como referência o conto
“Pele de foca” e “Vasalisa”, de Clarissa Pinkola, onde aparecem arquétipos da mulher
e conceitos do resgate da intuição, a volta para casa, para ela mesma, entre a mãe boa
– demais e a mulher selvagem. Numa experimentação entre um conto e a realidade,
entre a luz e a escuridão, entre o perfeito e o imperfeito, entre a casa e o ateliê/traba-
lho, potencializa-se o modo de existir com o trabalho manual nesses “entres”. Escolhi
utilizar a lã de ovelha como matéria-prima natural, animal e milenar de investigação e
experimentação entre pensar, sentir e querer nesses processos de Vida Viva.

“És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho...


Tempo, tempo, tempo...
Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos,
És um dos deuses mais lindos...
Tempo, tempo, tempo...”
(“Oração ao Tempo”, Caetano Veloso)

O tempo é fluxo que anda, corre e nunca para, coloca a perceber a vida no processo de
movimento constante, num olhar atento de um simples feijão ao nascer, no observar
uma nuvem a passar no céu, na natureza simples das coisas, no cuidado do cotidiano,
na intuição da mulher.

Era uma vez e não era uma vez. Em uma linda noite de luar nasceu a menina Estre-
la. Numa cidade de praia, pisciana, princesa das águas e do céu, cresceu observando
tudo ao seu redor: a natureza, a floresta, as plantas, os animais, os seres humanos,
o fogo, a terra, a água e o ar. Ela vivia com a cabeça lá no céu ou no fundo do mar,
gostava de olhar para ele e o mundo lá fora; o mundo da lua, da imaginação. Depois
que ficou mocinha, descobriu o poder da lua e suas fases em seu corpo, suas peles,
camadas mais profundas que se desprendem e se vão numa limpeza astral e física.

182
Com carinho e amor em seu coração, percebeu que cada coisa, cada ser tem seu
lugar, sua ordem, sua origem, seu tempo de existir, de plantar e colher no mundo.
A menina cresceu e se apaixonou por um rapaz e, assim, com a força da lua cheia,
tornou-se mãe pela primeira vez; era uma linda menina, a qual deu o nome de Pé-
rola, uma joia guardada no fundo do mar, uma joia rara que lhe veio de presente,
uma bebê como um dia de verão num céu e mar azul anil sem nuvens; sem dúvidas,
ela chegou! Nesse momento, a Menina Estrela virava a Mãe, ainda não sabia o que
era ser mãe nem o que viria pela frente. Engravidou aos 16 anos. O que fazer agora?
Como cuidar de um bebê? Sua cabeça já havia imaginado mil cenários e hipóteses.
Algo dentro dela já se fazia, já se mostrava presente; o cuidado, o carinho, o afeto, o
toque de acalento no colo aconchegante; a maternidade chegava junto com o cuidado
da nova casa: lavar a roupa, varrer a casa, fazer a comida... e o despertar e o resgate
para os trabalhos manuais. Nascia ali a mãe-boa-demais; ou tentava ser? Enquanto
Pérola dormia, seus sonhos de nuvens de algodão e carneirinhos, e bebês dormem
muito, muito mesmo! Foi então que suas mãos começaram a coçar de ficar ali no
trabalho de casa, presas naquele novo mundo de apartamento, sem poder tocar o
mundo lá fora, foi cada vez mais olhando para dentro, dentro de si no seu céu inte-
rior, seu mar, seu mundo de dentro.

Foi assim que tudo começou: Estrela passava horas a observar e a imaginar a vida,
mas suas mãos queriam estar nesses sonhos também e pediam: “Por favor, menina,
queremos sonhar também, sonhar com as mãos, ajudar a dar vida para esses sonhos”.
Começavam a coçar e a mexer em tudo, procurando algo para fazer, não aguentavam
ficar paradas naquele quadrado. Até que, um dia, Estrela parou diante de uma loja
que vendia azulejos antigos, um cemitério de azulejos ancestrais, onde comprou vários
deles, mesmo sem saber o que fazer com aquilo. Descobriu primeiro, a arte milenar dos
mosaicos, do quebrar e juntar as pequenas pecinhas em grandes quebra-cabeças. As
pequenas peças da vida, ali, uma a uma, na produção de silêncio, sem fazer barulho
para não acordá-la do soninho, ia decorando a casa, os espaços e os corações.

Suas mãos gostavam do movimento do fazer, elas estavam a cada dia mais felizes em
tornar algo concreto, enquanto a cabeça podia ficar lá no mundo da lua, as mãos iam
produzindo enquanto nada parecia acontecer naquelas tardes de verão de fevereiro.

183
Passados alguns anos, sentia-se plena. Era preciso deixar a mãe-boa-demais, aquela
da comida, do banho, da escovação os dentes da criança, faz almoço e varre a casa, ir
e deixar entranhar-se na floresta selvagem novamente. Mas, peraí, onde está o pai da
criança? Por que havia de fazer tudo sozinha? Infelizmente, nesse mundo, patriarcal
e capitalista, o pai estava quase sempre trabalhando fora, em busca do tal dinheiro.
Ajudava quando podia, porém não existia ali outra pessoa senão ela mesma para fa-
zer a casa girar e acontecer. Passar a se conhecer melhor, encarar a mulher-selvagem
que habita dentro de cada uma de nós, a mulher Estrela. Assim, com dificuldades,
conseguiu e se formou na faculdade.

Com novos desafios e rumos guiados pela intuição, foi trabalhar com cenografia,
criando e montando espaços/casas dentro e fora, espaços da vida real. Passaram-se
alguns anos e decidiram ter mais um filho, ou melhor, filha. Foi quando Jade veio
ao mundo, cheia de fofurice e acalento, e ali, naquele pequeno apartamento numa
grande cidade, não cabiam mais. Os espaços e as peles começaram a ficar apertados
como uma roupa que não cabe mais. Era preciso trocar de pele, ampliar o corpo,
esticar a alma. Cresceram, cresceram muito. Chegaram também dois gatos e um
cachorro... E agora? Como manter isso tudo financeira e harmonicamente? Haja
dinheiro e paciência para tudo dentro do quadrinho? Então, era hora de mudar. E
lá foi mudança pela estrada rumo à Serra. Diziam que na serra o custo de vida era
mais barato, existia lá a tal qualidade de vida? Deixaram para trás pedacinhos,
pedrinhas, conchinhas, areia, camadas de corpo e alma, mas achando outros tantos
pelo caminho, como uma grande mandala de mosaico... E foi assim que acharam
uma casinha de madeira aconchegante e uma escola bem diferente, uma escola Wal-
dorf. O que seria isso? Qual a diferença entre uma escola tradicional e essa? Quem
deu esse nome? De onde nasceu? Qual sua origem? Por que ela é tão diferente? O
que a torna tão mística? Por que quase ninguém conhece? Por que não é estudada
dentro da faculdade de Pedagogia? Então o que a torna tão especial assim ou não?

Aos poucos foram conhecendo e se identificando com a pedagogia que ensina através
da Arte e do trabalho Manual, da natureza, da observação do ser humano completo
como ele é, e cada ser humano diferente no modo de aprender e valorizando isso
como algo único e belo. Estrela lembrou dos tempos de quando era criança que gos-
tava também de observar a natureza, e achou que ali seria um bom lugar para ficar.

184
Um dia, a escola ofereceu uma oficina de confecção de fadas com lã de ovelha. Mais
um pedacinho do mosaico surgia. Estrela logo se interessou e perguntou o que seria
isso? Lã de ovelha? Ou de carneiro? Por quê? Como? O que é feltragem? Poderia ela
fazer entre o almoço e levar as filhas para escola? Pode ser feito em casa? A curiosi-
dade era tanta que logo ela se inscreveu.

O dia da oficina foi maravilhoso. Passaram uma tarde deliciosa entre mães e mãos
no fazer manual e ali descobriu um pouco sobre a técnica de feltragem seca com
agulhas. Saiu dali com uma boneca-fada e como se seu destino tivesse a encontrado,
passava diante de seus olhos e com olhos bem atentos para as pequenas coisas da
vida a intuição falou bem forte. E a partir desse dia começou a pesquisar a lã. No
Brasil, onde vende? Como comprar? O que pode uma lã? O que pode ser feito? Aqui
e ali em outros países? Foi à Argentina aprender a técnica da feltragem molhada
para fazer um chapéu, pantufas e outras formas de usar a lã com água quente e
sabão. Quanto mais procurava, mais investigava, mais se encantava e cantava sozi-
nha com o material, as técnicas, as possibilidades, as experimentações possíveis, a
lã e as ovelhas. E, assim, veio a vontade de criar um ateliê focando nesse material
mágico e delicado, aliado à necessidade de sobrevivência de um trabalho profissio-
nal, resgatando algo deixado para trás, o seu eu. Assim, nasceu o Ateliê Mãos da
Montanha, que ficava dentro de seu quarto, o que pode um quadrado de quarto?
Nossa! Muitas possibilidades de ser e viver, a Vida Viva vivia ali!

Desenvolvimento – Seguindo a intuição

“Para que uma ideia se torne ação é preciso vontade.” (Rudolf Steiner)

Com a ideia do Ateliê em mente, seria necessário muito trabalho de investigação


no processo de busca. As perguntas vinham, eram tantas que só cabia ir atrás das
respostas, investigando e registrando os processos, o fazer manual e a busca por in-
formações. Desde a ovelha, a tosa, o cardar, o fiar, o tingimento, até chegar à feltra-
gem seca e molhada, o processo de manusear a lã e de torná-la visível em objetos.

185
Em meio a isso, percebeu a necessidade de sistematizar essa busca para passar esse
conhecimento. Isso porque Estrela começou a receber pedidos de cursos e oficinas
em seus círculos mais próximos.

A busca passou a incluir o desenvolvimento de oficinas e práticas livres, em meio ao


fazer artífice do dia-a-dia, um ativismo delicado do fazer manual com um material
tão delicado, porém firme. A mulher Estrela voltou a trabalhar e se viu nesse espaço
que ocupam as mulheres entre casa e trabalho. E agora? “As mulheres conquistarem
espaço no mercado de trabalho, configura-se como um dos fenômenos mais mar-
1
cantes ao longo das últimas décadas” , mas “com a chegada dos filhos, o número
de mulheres que deixam o mercado de trabalho, seus empregos e conquistas profis-
sionais e se voltam para o resgate e cuidado com a casa é cinco vezes maior que o
2
de homens que se propõem a fazer o mesmo” . Em casa, como conseguir conciliar
os afazeres domésticos, as artes-manuais e o trabalho? Como deixar fluir e ouvir a
intuição e fazer o que tem de ser feito? Dar atenção à casa, ao trabalho ou à crian-
ça? Ou tudo ao mesmo tempo? Seria possível isso? Tempo de reviver as memórias
afetivas da infância, perdidas no tempo, e buscar dentro delas mesmas a resposta
para a vida. Para conciliar a mãe-boa-demais com a mulher selvagem é preciso
trilhar um caminho firme, achar o fio da meada; quando o fio é grande demais,
acaba se enrolando na costura da vida. É preciso voltar e renascer, na vida-morte-
vida de todos os dias, que é o caso de tantas mulheres. Quem sabe apenas ser a mãe
suficientemente boa? Com erros e acertos? Não existe respostas, apenas caminhos.

Mulheres fazem um pouco de tudo. Mãos firmes, seguras e delicadas, mulheres in-
seguras de mãos grossas, mulheres negras, brancas, ruivas, mestiças, altas e baixas.
Todas são capazes, acredito que mulheres todas façam, querendo ou não. Cozi-
nham, limpam, trocam fraldas, enquanto buscam, para elas, um tempo deixa-
do para trás. A pergunta que fica é “como”? Nesses pequenos espaços de tempo,
crochetam uma manta, bordam um lençol, tricotam umas com as outras, trocam

1FRANZIN, A.; FERREIRA, P. (2017) Artigo sobre como a dupla jornada afeta a vida das mães apesar da parti-
cipação feminina no mercado de trabalho ter aumentado.
2PINHEIRO & MEDEIROS (2019) Referente ao mercado de trabalho entre homens e mulheres após o nasci-
mento dos filhos.

186
experiências de vida e de fios, fazem o cotidiano parecer simples. Estrela começava
a trilhar seu caminho, achou um fio solto e saiu seguindo estrada afora, esse fio
era de lã, lã de ovelha! Com o manusear da lã, surgiam algumas dessas respostas.
Entrava cada vez mais e mais fundo na floresta selvagem em busca das respostas.
Desenvolvendo a pesquisa e a experimentação do que se pode fazer, vir a ser, mu-
dar, transformar e criar a lã de ovelha.

O Ateliê
Para começar, tudo tem um ponto de partida, os devaneios da imaginação e do
material moldaram um início, de onde Estrela observava e reconhecia o seu redor.
Via memórias afetivas, família, amigos, materiais, texturas, dentro do Ateliê que já
completava três anos e crescia, assim como Pérola e Jade, nos fundos da nova casa
– mudou novamente por conta dos espaços apertados e mais uma camada de pele
ficava para trás. Estrela transformou um novo quarto bem aconchegante em um
lugar de imagina-ação, criatividade e intuição. Ali, a mulher Estrela podia soltar
seus sonhos mais profundos na criação de novas peças. Respiração profunda para o
momento, sendo uma hora, três horas ou apenas 30 minutos entre a panela do fogo
e a artesã que vive dentro dos afazeres manuais.

Lá, havia linhas coloridas, agulhas de costura, tricô e crochê, linhas de diferentes
tipos e cores, malhas, agulhas de feltragem de diferentes espessuras, espumas para
feltragem, sabão e bacias para feltragem molhada, tecidos diversos finos e grossos,
cestos de palha, pedrinhas, conchinhas, cola quente, embalagens para presentes,
caixas, tintas, pincéis, novelos de lã, miçangas, bolinhas, espelhinhos, coisinhas mi-
údas, aparelhos grandes de corte para mosaicos, azulejos coloridos, torniquetes,
alicates e uma máquina de costura que ganhou de sua bisavó, que herdou de sua vó.

A bisavó que Estrela não chegou a conhecer contou a sua avó que, nessa máquina,
foram feitas todas as roupas de seus quatro filhos, pois comprar roupa era muito caro
naqueles tempos antigos. Estrela sabia que havia herdado esse dom da bisavó, Marus-
ca, que parecia nome de bruxa. Devia ser, pois antigamente bruxa era uma designação
dada às benzedeiras, jovens ou velhas, pessoas sábias, em “referência à palavra witch,

187
bruxa em inglês, derivada de wit, que significa sábia, aquela que sabe” (PINKOLA,
2014). A “bisa” devia ser uma bruxa das artes-manuais do corte e da costura.

Dentro do Ateliê, tem muita, mas muita, lã de ovelha, colorida, cardada e crua;
Merino e Corriedale, de tons naturais ou tingidos, cores fracas, tons pastéis mais
delicados e outras fortes e vibrantes, que chegam a ofuscar a vista. Produzidas no
Brasil e na Argentina, por onde passava, Estrela comprava um bocadinho. Era algo
muito, muito importante para ela. Era o que mais gostava no ateliê, a lã de ovelha.
Esse material natural, uma fibra, um pelo de animal, no caso, a ovelha, tão macia
e fofinha, como as nuvens do céu que gostava de observar, agora podia tocá-las. E
como podem se transformar em tantas outras possibilidades? O que pode um peda-
ço de lã? O que ela nos ensina como material, como nos afeta e afeta o outro? Que
mágico e poderoso é esse animal! Essas e outras perguntas deixam Estrela inquieta
e com a intuição e respeito por seus antepassados, seus ancestrais, que já cultiva-
vam esse trabalho manual milenar há muito tempo, já estavam no mundo antes de
ela nascer para honrar essa sabedoria do universo.

A História da Lã

“O que importa na vida não é o ponto de partida,


mas a caminhada.” (Geraldo Lapenda)

Os “ovinos foram os primeiros animais a serem domesticados pelo homem”. O aprovei-


tamento da lã não é menos antigo, já que foi encontrada no Irã uma estatueta datada
de 8.000 a. C. de um carneiro com lã, sugere que a seleção de ovinos para a produção
de lã já era aplicada naquela época (COSTA, 2011). A lã faz parte da história da huma-
nidade. A domesticação dos ovinos ocorreu há aproximadamente 10 mil anos, princi-
palmente na Ásia e Oriente Médio (OLIVEIRA et al. 2011; COSTA, 2011). A chegada
da ovinocultura para lã na Europa dá-se pelo intercâmbio comercial com os nômades
3
asiáticos, árabes e mongóis, junto com todas as especiarias que vinham da China .

3 Informação verbal de Lucia Higuchi.

188
Foi em 1556 que chegaram os primeiros ovinos no Brasil, trazidos pelos colonizado-
res portugueses (PELOZZO apud DIAS, ANICET & STEFFEN, 2015). Os dados
divulgados no último censo agropecuário mostram que o Sul é a região que concentra
90% da produção de lã no Brasil, apesar de ter apenas 23% do rebanho. A maior parte
do rebanho está no Nordeste (63%) e destina-se à produção de carne. A produção de
lã no Brasil apresentou uma redução de aproximadamente 30%, entre 2006 e 2017, no
mesmo período, o rebanho ovino diminuiu 2,8%. A quantidade média de lã produzida
por animal passou de 3,3 kg/ano para 3,2 kg/ano. Ainda assim, o valor médio da comer-
cialização da lã apresentou um ganho de 191% no período, equivalente a 17,4% ao ano,
passando de R$ 3,31 para R$ 9,65/kg de lã. (EMBRAPA, 2017).

Propriedades da Lã

“Sou Lã, Ponto, Linha


Sou Fogo, Água, Terra e Ar
Sou mãe, mulher e filha
Sou Vento, Brisa e Furacão
Sou Estrela e sou Areia.”
Nathalie Capistrano
A lã é uma fibra natural de origem animal, macia e ondulada obtida de animais como o
camelo, a alpaca, as cabras de Angorá e de Kashmir, a lhama, o iaque, a vicunha e prin-
cipalmente as ovelhas. A criação de ovelhas e carneiros, ovinocultura, é a maior fonte
de lã no mundo (BRAUNER, 2010). A lã é revestida de proteína queratina e lanolina,
que confere brilho à fibra.

Numa completa revisão bibliográfica sobre a lã, Amarilho-Silveira, Brondani & Le-
mes (2015) descrevem muitas características da lã. Grande capacidade higroscópica, ou
seja, absorve grande quantidade de água sem parecer estar molhada, chegando a absor-
ver entre 30 e 50% da umidade do ar. Com isso, a lã libera ou absorve calor “como em
nenhuma outra fibra”. A lã impede a eletricidade estática e atua como isolante térmico;
é repelente à água e é não inflamável. Esta resistência ao fogo é um dos principais moti-
vos da sua utilização para forrar os assentos de carros e aviões. A lã absorve até 40% de

189
sons com frequência baixa e 98% de frequência alta; ajuda a proteger a pele contra raios
ultravioletas, quando comparada a outras fibras usadas para o vestuário. Ao diminuir a
eletricidade estática, a lã repele o pó, o ar e a terra do ambiente. Naturalmente elástica,
pode ser retorcida e estirada e vai retornar a sua forma normal “mais do que qualquer
outra fibra”. Esta propriedade permite liberdade de movimentos nas roupas fabricadas
de lã. A fibra de lã pode estirar-se até mais de 50% de seu comprimento original, muito
importante para evitar rompimento da fibra em processos como cardado, penteado e
fiado, pois as fibras sofrem importantes tensões.

Jakowatz (2018) define as propriedades da lã em durabilidade, tensão, compressão,


resistência física e química, isolante térmico e acústicas, e propriedades filtrantes. Uma
de suas qualidades é a sustentabilidade ambiental, por ser natural, biodegradável e
renovável, já que não precisam abater os animais para produção de lã.
Com tantas propriedades, a lã vai além do que vemos. O que não vemos quando ve-

mos? O que está além? Não se trata ape-


nas do material, mas do cuidado com o
animal da interação e a relação entre
o meio ambiente e nós, entre o cuidar
e o utilizar com respeito, admiração e
amor. É disso que o mundo é feito, feito
de vários mundos e de encontros, reen-
contros e desencontros.
PROCESSOS
O primeiro processo pelo qual a lã pas-

sa é a tosa, depois, ela é lavada para tirar, além da sujeira, carrapichos e o excesso
de gordura, a lanolina; é deixada no sol para secar, seguindo de esguedelhar, cardar,
pentear, podendo fiar ou não, e, por último, tingir de forma natural ou artificial com
corantes químicos.
Aqui no Brasil, as mais comuns são as raças Corriedale, a Merino Australiano, a Santa

190
Inês e a Crioula. A lã Merino é extremamente macia e brilhante, com uma micragem
(diâmetro da fibra) podendo variar de 16 a 26 micras – por exemplo, quanto mais baixa a
micragem, mais fino e macio é o pelo, tornando-se um excelente material para trabalhos
em contato com o corpo dos seres humanos. A raça, uma das mais antigas e resistentes
do planeta, podem ser criadas em praticamente todas as regiões, exceto em lugares
úmidos e muito quentes. Já a lã Corriedale é uma fibra mais grossa e seca, apresenta
um equilíbrio de 50 % carne e 50 % lã, o diâmetro médio das fibras varia de 26,5 a 30
micras (https://www.portalagropecuario.com.br/ 2019 ).

Em entrevista com Higuchi (2018): “Do corpo de um animal, podem ser retiradas dife-
rentes espessuras de lã – uma parte mais grossa, outras mais finas na altura do pescoço
e barriga, e também pode haver variações de tons de cor de pelagem diferentes”.
Estrela gostava de dizer lã de ovelha, pois tem apreço às fêmeas.Sendo uma mulher, é uma

forma de honrar a parte procriadora ser-ani-


mal mãe, assim como ela, aquela que dá à
luz, que gera a vida, a continuidade da espé-
cie. Sentia a leveza da vida ao tocá-la, como
se o tempo parasse por uns instantes; com as
pontas dos dedos e depois com a mão toda
apertando e soltando várias vezes num ritmo
constante. Um cheiro tão bom, quase vician-
te, desce até chegar aos pulmões, se lembra
da fazenda com as ovelhas no campo, num
lindo dia de sol ao amanhecer ou entarde-
cer! Memórias que nunca teve, que estranho!
Como pode ver tão nítido sem nunca estar

lá, será em outra vida? Pensava ela! Passado ou futuro, não sabia, segue a esticar, agulhar,
molhar, rolar, amassar, cheirar, cobrir, criar, esguedelhar, cardar, tingir, fiar, lavar, secar ao
sol, mexer, olhar, mover, transformar, experimentar e deixar que ela siga para onde quiser,
muitas vezes inicia um trabalho, uma ideia, e, quando terminava, lá está ela modificada
em outra. Algo novo que nem havia pensando antes, tudo muda, tudo se transforma no
universo e estamos em movimento juntos.
A Feltragem
“Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade”
(Edson Marques)

Jakowatz (2018) afirma que “A feltragem é um processo de criação de feltro. É uma trans-
formação maravilhosa de pedaços de fibras de lã pura, num tecido não tecido. É a mais
antiga técnica conhecida para criar um têxtil, tendo surgido antes da tecelagem ou fiação”.

Pode ser utilizada a lã de alguns animais, como cabras, alpacas, lhamas e ovelhas. Exis-
tem dois tipos de feltragem: Molhada (wet felting), com água e sabão, e Seca (needle
felting), com agulhas, podendo-se utilizar as duas técnicas num mesmo trabalho. A fel-
tragem seca e a molhada são técnicas que muito encantam por tamanha diversidade
e possibilidade de expansão e liberdade de criação com um simples material natural.
Feltragem molhada

A feltragem molhada é milenar e se faz através


da agitação mecânica das mãos, do friccionar
da lã com ela mesma, com a ajuda de um con-
dutor, a água quente e fria e o sabão, que pode
ser de oliva, de coco, neutro ou detergente. Co-
locando em camadas, primeiro na horizontal
e depois na vertical, ou vice-versa e assim por
diante, esses andares de lã, quando molhados,
entrelaçam-se às fibras, formando um único te-
cido plano. Esse processo é irreversível. Exis-
te também a técnica do Nuno Felt, em que a lã
é trançada, mas acrescenta-se pedaços de seda. A feltragem molhada costuma-se fazer
em pé, diante de uma mesa, com o corpo alerta e presente, com braços firmes, ombros,
cotovelos e pernas em certa disposição, pois, em um determinado momento, é preciso
usar mais força, como se todo o corpo depositasse sua energia para fora, em direção ao
material; deslizando para frente e para trás e, assim, feltrar a lã. Dependendo da técnica,

192
usam-se muito os braços, os ombros, barriga, forças internas e externas, a mente, o cora-
ção e as mãos sempre presentes, materializando sonhos com o pensar, o sentir e o querer
em harmonia.

A mulher Estrela gostava de dias com Sol, pois eram dias que dava vontade de
alma, de pegar tudo, ir para a mesa lá do lado de fora do ateliê e preparar a
feltragem molhada, colocava todas as lãs para fora. Em cima da mesa, primeiro
as lãs branquinhas, Merino é mais fina, para trabalhos feitos em contato com a
pele, ou Corriedale, essa é mais grossa e mais fácil de achar para comprar. Colo-
cava a água para ferver, enquanto ia ralar o sabão de coco, era mágico quando
sentia a espuma passando entre os dedos e o toque da lã macia por baixo, mas-
sageando, massageando, era bom demais! Sentia até arrepio nas costas! Achava
graça e agonia com o simples fato de colocar as cores por cima da água morna,
sem deixar ela se enroscar e, no friccionar, lá ia surgindo um novo mundo de
estrelas, um céu, um mar de ondas, um infinito particular!

A feltragem seca
O primeiro tecido industrializado por agu-
lhas foi da empresa Inglesa BiWalter Com-
pany of Leeds, em 1866. No final dos anos,
1950 o número de empresas de feltro expan-
diu. O feltro industrial é produzido por uma
prensa com milhares de agulhas específicas
que batem determinado número de vezes so-
bre a manta de fibras que corre por uma estei-
ra rolante. No início dos anos 80, os artesãos
David e Eleanor Stanwood utilizaram a ferra-
menta da prensa industrial para executar em
pequena escala objetos menores e delicados.

Para fazer essa técnica, é preciso ter agulhas de tamanhos variados, finas e grossas,
com ranhuras na parte inferior, que entrelaçam as fibras nos movimentos de vai e volta.

193
As mais usadas são as de número 36 e 38, agulhas médias. É preciso ter lãs de cores
variadas e uma espuma para ficar por baixo da lã para amortecer as agulhadas feitas
milhares de vezes sobre a lã.

Nos dias de chuva, Estrela ficava em seu universo, dentro do Ateliê, coloca-
va música para tocar. Olhava para o corpo e suas camadas mais íntimas,
a chuva traz essa interiorização de si e tudo fica cinza e escuro. Pegava os
pequenos retalhos no saco grande, em cima da mesa. As lãs dispostas em
volta da espuma colocada no meio da mesa, já gasta de tantos outros tra-
balhos, e, ali, ia colocando camadas de lã, como se cada camada fosse sua
própria, num híbrido de humana-ovelha, porém, tudo ainda flutuava no ar.
Pegou a agulha e começou a dar os pontos, diversos pontos numa costura
invisível, sem linha, as fibras iam se trançando numa dança e quanto mais
rápido sua mão direita repetia os movimentos de vai e volta, mais rápido
ia surgindo um lindo quadrinho ou uma fada, tudo que estava lá no céu
começava a descer através do corpo até chegar às mãos.

Segundo Ana Lygia Vieira Shill da Veiga (2015), “É preciso corpo para lidar com o ma-
terial”. Sendo duro ou mole, firme ou leve, todas as partes se completam e se comple-
mentam, numa dança contínua de movimentos, cada técnica tem suas características
corporais. Costuma-se fazer sentada a feltragem seca, em frente a uma mesa, pode estar
encostada para dar conforto à coluna que nos sustenta, as pernas ficam mais relaxadas e
as mãos, braços e ombros, sempre alertas nas agulhas. Às vezes, uma agulha escapava e
lá ia uma gota de sangue no trabalho, achava que era para ter mais emoção de vivência
de corpo e sangue mesmo – aquele trabalho, deu trabalho! Merecia até mais atenção
que outros, isso faz parte quando se trabalha com agulhas afiadas; é preciso estar aten-
ta e forte: se você não está, isso reflete logo na peça e na construção do fazer manual.

Um objeto artesanal é empregado pela singularidade de quem o deu a vida. As mãos, com
seu toque preciso e único, a inspiração ao escolher as cores e feições, o canto que tantas ve-
zes acompanha e dá o ritmo ao fazer, tudo isso compõe o universo da produção artesanal.

Assim, o artesanato não acaba no objeto, mas começa nele, que revela sempre algo diferente
e mais complexo que o tornou possível. Segundo Sennet, “Não existe Arte sem Artesanato”.

194
Peças feitas no Ateliê Mãos da Montanha com a técnica da feltragem seca:

Peças feitas no Ateliê Mãos da Montanha com a técnica da feltragem molhada:

Mãos de Mães
“Mãos que abençoam e fazem o bem
Mãos que trabalham e não se detém
Mãos que amorosas os fracos amparam
Mãos que rezam e sempre rezaram
Mãos que se elevam num gesto profundo
São dessas Mãos que precisam hoje o mundo”
(Autoria desconhecida)

195
A mão é a janela que dá para mente, segundo Kant. Hoje é uma quinta-feira normal,
dia em que se reúne o grupo de trabalhos manuais da escola, de mães que ajudam a
produzir adornos, enfeites e produtos para a venda e decoração da escola em dias de
festas. Tudo é feito de doação e coração pelos pais e mães. Estrela vai ao grupo de tra-
balhos manuais da escola de suas filhas, onde agora ensina feltragem seca. Inicia com
o verso que fala sobre as mãos e, em seguida, convida todas a olharem para as mãos,
massageando e passando um óleo, em geral de lavanda ou gerânio, que ativam o femi-
nino e acalmam. Sempre leva o Tarô das Deusas e, nesse momento, cada uma pode
tirar uma carta, se quiser. Também leva algumas pedras ametistas, feminino; quartzo
azul, masculino; e o cristal para harmonizar. Após esse ritual, começa o dia ensinando
as outras mães a fazerem borboletas para o período da quaresma, a Páscoa, onde habi-
ta a época da transformação de lagarta a borboleta.

Passam uma deliciosa manhã, como sempre, feltrando primeiro sem agulhas, de modo
que elas possam sentir a lã pela primeira vez, o contato com a ovelha e suas proprie-
dades dessa fibra tão delicada. Conta-lhes a história da lã, de onde surgiu e seus cui-
dados em manusear, observa que muitas não a conhecem, pegam nesse material pela
primeira vez, sente que algumas gostam logo de cara, outras têm mais dificuldades em
manusear, outras acham um máximo. Gosta de observar as sensações que a lã nos traz
e escutar o que provoca no outro, o que afeta? Ficam muito felizes ao verem nascer a
primeira borboleta colorida e agradecem muito, o coração está feliz! Assim, segue fa-
zendo um céu cheio de borboletas grandes e pequeninas, lindos móbiles para enfeitar
a escola e as salas, algumas serão vendidas no bazar para ajudar a arrecadar dinheiro
para a escola. Após o lanche, é a vez de outra mãe passar seus ensinamentos, a mulher-
crochê, e, assim, vão se trocando experiências e saberes, experimentações, se deu certo
ou errado, risadas, histórias de filhos e fios! Segundo a autora Sofia Amorim, “Pode
parecer mesmo inacreditável o quanto muitas vezes falamos do mistério da existência,
da infinitude do que é bonito, das dores do mundo. Seria tudo muito raso por que tem
receita de bolo no meio? Aquele ponto meia que a outra pessoa não conhece? Por que
tem banho de criança entre conversas?”

Inquietações profundas de conversas de fios de mãos de mães e mulheres. Ao meio-dia,


era hora de buscar as filhas.

196
Em casa, com suas duas filhas Pérola e Jade, em um dia que não sobrava muito tempo
para si, e o ateliê parecia tão longe, quase na Sibéria, perto de todos os afazeres que
apareciam na sua frente. Pensava: “Por onde começar mesmo? Onde parei da última
vez? Será que devo estar aqui hoje produzindo, sendo mãe-empreendedora autônoma
ou devo ir apenas ficar com as filhas?” Não sabia a resposta para essas inquietações, po-
rém, o corpo e as mãos sabiam que queriam estar ali em meio à lã, produzindo. Como
pode, então, o corpo querer algo e a mente outra, sendo ele um corpo só? Pegou a vas-
soura e começou liberando a mente, limpando e varrendo a casa e o Ateliê, organizan-
do as ideias e as escrevendo, cartografando o processo vivido, vida cotidiana, deposi-
tou tempo na escola de manhã e quase não sobra tempo – silêncio para ela. Logo, Jade
chamará que está com fome, o pai hoje não está em casa! Na cabeça, ainda guardava
tantos projetos para fazer tantas coisas, mas às quintas-feiras não restava esse tempo,
então, segura a lã, sente o seu cheiro e acalma no acalento do coração, ficaria para outro
dia, não precisava ter pressa, pois tudo tem seu tempo de criar e fazer, fazer e refazer,
de ficar e sair, de expansão e contração.

Segundo Sennet (2009), “de todo os membros do corpo humano, a mão é dotada da
maior variedade de movimentos que podem ser controlados como bem queremos”.

Sendo assim, Estrela fica no ateliê a olhar e


a cuidar de sua mão, trazendo a consciên-
cia para esse membro tão especial do fazer
manual. A pequena Jade chega e começa a
imitar o gesto de massagear as mãos, de-
pois pede para bordar com linha e agulha,
ela tem 5 anos, assim como havia visto a
mãe fazer outro dia, passando um conhe-
cimento manual simples e tão ingênuo, sem
ter a obrigação de ficar perfeito e terminar,
o fazer assim desconstruído já bastava por
si, pois o importante era o laço de mãe e
filha e a curiosidade para o fazer manual já
se fazia presente, numa linda quinta-feira
de céu escuro e chuvoso, porém, brilhavam
e multiplicavam ali as estrelas de saberes.
Oficinas de Experimentações de Saberes

“Chovem duas chuvas: de água e de jasmins


por esses jardins de flores e nuvens.”
(Cecília Meireles)

Das oficinas que atua, ensinava a fazer Fadas ou Bruxas, chapéus ou pantufas, tapetes
ou cadernos. Escolheu a das flores para iniciar, pois elas representam a fecundação en-
tre o masculino e o feminino. De uma forma mais lúdica, do desabrochar do feminino,
do cheiro, as cores, a leveza e delicadeza no toque, o perfume das flores. Experimen-
tando abrir os ouvidos, olhos, nariz para dentro de si e para fora, para o mundo, para o
Sol, pois as plantas também precisam de calor!

Para fazer uma flor de lã de ovelha, primeiro, tiram-se os sapatos e caminham por um
jardim, pode ser de casa ou próximo num parque ou praça, pisar na grama e se reconec-
tar com a mãe natureza, com o olhar atento ao seu redor. Observar como são as flores
da estação, quais as cores, tudo que a natureza mostrar nesse momento: borboletas,
passarinhos e joaninhas também são bem-vindas!

Feito isso, é hora de preparar o espaço: uma mesa que possa receber água e sabão. A
água, elemento fluido, primordial para a vida, que permite total interação com nosso
corpo que também está cheio de água, cerca de 70%, trocando energia com ele, a lã
através da técnica da feltragem molhada, e o sabão, um elemento que ajuda a dar liga
nos materiais, formando um entrelaço de fibras, um tecido único plano uma superfí-
cie plana crua ou colorida. Gostava de estudar as cores e suas combinações, segundo
Goethe, “Entre a luz e as trevas surgiu a cor”, do colorido do azul tranquilo, do ama-
relo vivo, do roxo mimoso, escolha a sua cor preferida. Coloca-se embaixo de uma
superfície emborrachada a lã, primeiro crua, dispondo a formar um círculo em duas ou
três camadas. Acrescente água morna com sabão ralado de coco, espalhe com a mão
suavemente e seque a mão. Acrescente a lã colorida (Corriedale ou Merino) sempre
na mesma direção, siga massageando até elas se feltrarem, deixe-as descansar por um
tempo, enquanto fazemos o caule.

198
Para o caule, separe um palmo de lã na cor verde. Molhe separando a ponta seca e
faça movimentos circulares tipo uma minhoca até eles ficarem firmes, duros. Essa parte
coloque vontade nos braços e mãos de forma a fazer força para a feltragem ficar firme,
apertar e apertar, rolar e rolar! Depois que estiver firme, coloque o caule em pé sob a
flor que estava reservada e fazendo massagem e pressão nessa parte final para que não
solte e eles se unam de forma homogênea e as fibras se entrelacem! Para finalizar, aperte
e tire o excesso de água. Enrole a flor numa toalha para secar, fazendo movimentos
circulares, para frente e para trás novamente, com tudo junto. Assim nasceu um broto,
agora é só abrir seu botão de flor e suas lindas pétalas, você renasceu mais um dia!

Durante esse processo, perceber o


quanto é bela a natureza, como demora
a nascer uma flor; não é algo tão sim-
ples. Como na vida, temos momentos
delicados, suaves de criatividade e ou-
tros mais fortes, mais intensos do fazer
e apertar colocar força, intenção, ação
contração e relaxamento. Assim, aten-
to como no jardim das flores vida-mor-
te-vida, que se renova, se transforma,
divino e maravilhoso. No final do pro-
cesso, as flores também saem cheirosas
por conta do sabão. Uma abelha veio
visitar a flor de cheiro peculiar, que ale-
gria é estar viva!

Experimentação Livre

“...Uma luz que surgiu no meu pensamento e no ar ao redor vive livremente”

Um dia veio a ideia: uma nova experimentação! E se fizer feltragem com os elementos
mais simples possíveis? Como seria isso? E se todas a pessoas tivessem acesso à feltra-
gem molhada de forma simples e fácil? Primeiro, olhou para a água. Essa fonte divina

199
de energia vital e fluida. Escolheu a água da chuva, pura e bela, mais natural possível!
Depois, escolheu a lã crua ou de enchimento, pois ainda não foi cardada, apenas lavada
da sujeira, no seu estado mais básico e natural, seguindo pela escolha do detergente de
cozinha, elemento peculiar, mas quem não lava louça em casa? Sempre tem uma louça
suja na cozinha à espera de um milagre! Montar o projeto foi simples, soltar a criativi-
dade nas cores e texturas, ela é como se fosse uma emoção, um estado de espírito, uma
cor. Difícil foi esperar a mãe natureza concordar com a experimentação, esperou por
dias a chuva vir, à espera do grande dia! Quando finalmente choveu no fim da semana,
que alegria!, a lã já estava lá à espera, embaixo do tapete emborrachado. Colocou sua
capa de chuva amarela e foi toda feliz para a chuva, era verão, uma digna chuva de
verão, forte e potente ela chegou! Com as mãos e a lã molhadas, feltramos juntas de
baixo da chuva, limpando e energizando a alma, foi incrível a sensação de materializar
uma ideia e ver tornar possível. Quando pensa na experimentação, não existe certo ou
errado, existe o fazer, o caminhar, o experimentar, pois, se der errado, que maravilha!,
aprendeu algo novo, diferente, e irá fazer melhor o próximo, e se der certo, então, você
ultrapassou o normal e criou algo incrivelmente novo! Ao final, colocou a peça para
secar por três dias, até estar totalmente seca. Ficou com buracos, grupos fechados, não
ficou como imaginou, mas observou que a lã crua faz isso. Por estar mais compactada,
ela faz esses grumos quando molhada. Para as próximas vezes, quem sabe seja melhor
usar a lã cardada e acumular a água da chuva num recipiente? Assim, poderia usar
quando quiser, em vez de esperar dias. Tudo se aprende no fazer manual, na estrada,
não no início nem no fim, mas na caminhada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo ajuda na compreensão e compartilhamento de saberes na arte-manual para
educação no sentido de passar o conhecimento, divulgar e promover a prática da feltra-
gem molhada e feltragem seca, mas também no modo de existir da vida contemporânea
para que outras mulheres ou/e mães possam se interessem por essa arte-manual, mile-
nar e incrível, para assim ser mais conhecida no Brasil e respeitada. Para que homens,
crianças e idosos também tenham acesso e, assim, respeitem os antepassados que a
cultivavam e pelas pessoas que virão a conhecer, através de oficinas, cursos e rodas de
conversas sobre a lã e seus benefícios, práticas de fazeres em grupos ou sozinha, de ho-
ras de silêncio, o que acontece quando nada parece acontecer? Sempre surgiram novas

200
perguntas, afinal, estamos em movimento constante. Quais os processos do tingimento
artificial? Cores fortes e claras? Quais corantes? Como se dá o processo com cores natu-
rais? Com a velocidade do mundo globalizado, como mulheres conseguem ser apenas
o que se é, o que querem ser? Será que conseguimos realmente observar a nós mesmas
no final do dia, da semana, do mês ou do ano? Afinal, a alma precisa de tempo, os corpos
precisam de tempo, cada qual a seu ritmo, ritmo de vida de expansão e contração.

Percebo que, ao final de tanta busca, pesquisa e experimentação, a lã, assim como nós,
seres humanos, tem essa característica de ser versátil, de potência, ser moldada e ser
transformada, na água ou no seco, no sol ou na chuva, vinda também da natureza e se
desdobrando em multi-objetos, multifunções, multi-afazeres, multimanuais, em mul-
tiplicidades, mas continuando sendo única em cada forma, em cada pedaço. Nunca
haverá um objeto igual a outro, pois cada um tem sua particularidade expressa naquele
momento que foram criados. Muitas vezes, acertamos e outras erramos e temos que re-
fazer, quantas vezes na vida também é assim, o trabalho manual nos revela algo de nós
mesmos, porém, nunca voltamos no mesmo lugar, sempre aprendemos um pouco mais
e mais com cada ponto e experimento. Experimentando a vida de forma viva e real.

REFERÊNCIAS
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das letras, 2015.

AMORIM, Sofia. Corpo-narradora: contos, mulheres, artes-manuais. São Paulo:


Círculo das Artes, 2018.

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imagina-


ção das forças. São Paulo, 2013.
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COSTA, L. Ovinos: origem, história e mitologia. In: ______. Stravaganza. 21 fev.


2011. Disponível em: <https://stravaganzastravaganza.blogspot.com/2011/02/os-ovi-
nos-origem historia-e-racas.html?view=timeslide>. Acesso em: 23 mai. 2019.

201
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DIAS, E. A.; ANICET, A.; STEFFEN, C. A lã como matéria-prima: seus processos


de simbolização e comunicação através da ótica pierciana. In: XI Semana de Extensão,
Pesquisa e Pós-Graduação – Centro Universitário Ritter dos Reis. Out. 2015. Disponí-
vel em: <https://www.uniritter.edu.br/files/sepesq/arquivos_trabalhos/3612/861/995.
pdf>. Acesso em: 20 mai. 2019.

FRANZIN, A.; FERREIRA, P. De casa para o trabalho: como a dupla jornada afeta
a vida das mães. Agência Brasil, Brasília, mai. 2017. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-05/de-casa-para-o-trabalho-como-
dupla jornada-afeta-vida-das-maes>. Acesso em: 26 mai. 2019.

JAKOWATZ, Vanessa Fonseca. Feltragem molhada como arte- manual na educação


infantil: A narrativa da experiência em sala de aula. São Paulo: Círculo das Artes, 2018.

OLIVEIRA, A. F. M. et al. O processo de domesticação no comportamento dos


animais de produção. PUBVET, Londrina, V. 5, N. 31, Ed. 178, Art. 1204, 2011.

PINHEIRO, L.; MEDEIROS, M. Desigualdades de gênero em trabalho pago e


não pago no brasil: uma análise das distribuições de tempo de homens e mulheres en-
tre 2001 e 2015. Mercado de Trabalho conjuntura e análise – IPEA. Ano 25. abr. 2019.
Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetra-
balho/190520_bmt_66_NT _desigualdade_de_genero.pdf>. Acesso em: 24 mai. 2019.

PINKOLA, C. E. Farejando os fatos: o resgate da intuição como iniciação. In:


______. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher
selvagem. 10. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

VEIGA, A. L. V. S. Fiar a escrita: Política de narratividade- exercício e experimenta-


ções entre arte- manual e escrita acadêmica. Um modo de existir em educação inspira-
do numa antroposofia da imanência. – Faculdade de Educação, Universidade Federal
de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG 2015

202
Vídeos
Lã em tempo real
https://vimeo.com/laemtemporeal

O caminho da lã
https://www.youtube.com/watch?v=DLuiILAdtRo

Sites
Lucia Higuchi
http://luciahiguchi.blogspot.com/2010/10/historia-da-feltragem-seca-e-molhada.html

Ativismo delicado
http://www.ativismodelicado.art.br/

Grupo Artesol lã pura


http://www.artesol.org.br/rede/membro/grupo_la_pura

Fiolã
http://www.fiola.com.br/sitenovo/index.html

Feltran
https://feltran.com.br/

Portal Agropecuario
https://www.portalagropecuario.com.br/

Mais informações:
Para conferir na íntegra a Entrevista concedida à Nathalie d’Arêde por Lucia Higu-
chi, artesã de peças têxteis, que trabalha com a feltragem molhada desde 1986, acesse:
https://drive.google.com/file/d/1GTIPxS8YU-CWk8OWm4DbYCwEm4eOX58z/
view?usp=sharing

203
memória
história patrimônio
imaterial

saberes
e fazeres
resistência

resiliência

coletivo
arte-manual

corpo

tradição

204
Como prática ancestral, a remeter até mesmo às deusas e aos deu-
ses, as artes-manuais estão intrinsecamente relacionadas à memó-
ria enquanto saber, prática, materialidade e simbologia. Na cul-
tura inca, para usar um exemplo próximo, as artes do fio foram
ensinadas aos humanos por Mama Ocllo, a filha do Sol, e a tecela-
gem de cintura, por sua vez, foi um legado de Shwankalo, a aranha
tecelã. Aprendidas, as técnicas e o conhecimento dos materiais fo-
ram transmitidos de geração para geração, a formar uma espécie
de fio contínuo, que ora se apresentava mais espesso e firme, ora
frágil e frouxo, chegando em alguns momentos a romper-se para
nunca mais ser refeito.

O I Congresso de Artes-Manuais na Academia, além de alçar o


tema à categoria de saber científico, tem como um de seus prin-
cipais objetivos, o mapeamento e o consequente estudo dos fios
ancestrais a fim de salvaguardá-los do rompimento. Para isso con-
tribuíram as autoras dos artigos que compõem a presente sessão.
Em sua maioria pesquisadoras especialistas, elas dispuseram-se a
pensar “de dentro”, ou seja, sua abordagem é a de alguém imersa
na prática, de alguém com o corpo comprometido com o corpus
da pesquisa e não apartado da vivência. O pensar esteve colado ao
fazer e foi por ele transformado em produção escrita agora dispo-
nível ao compartilhamento e a novos pensares.
São relatos acerca da transmissão do conhecimento, da evolução dos
materiais e técnicas, das heranças familiares, bem como da instaura-
ção da casa como lugar que acolhe não só pelo abrigo e pelo alimen-
to, mas pela composição estética – ocupação do feminino que pensa,
cria e dispõe as criações com função decorativa ou trata esteticamen-
te as produções utilitárias. São registros de práticas e processos para
que não se percam, mas também para que sejam fonte e referência
ao aprofundamento da pesquisa, à continuidade do fazer e à reflexão
acerca de tudo que as compõem em termos históricos, sociológicos,
psicológicos e relacionais, de promoção de auto conhecimento e de
auto estima, de manifestação cultural e de constituição de renda.

Desse modo, propõe-se que a pesquisa da memória nas Artes-Ma-


nuais como proposta nesses artigos, possa contribuir para o desen-
volvimento de novos modos de se relacionar com as materialidades
e as pessoas envolvidas no fazer, a fim de que se olhe para elas como
algo dinâmico, em processo de constante fricção com a realidade
subjetiva e coletiva. Em outras palavras, que se possa abordar a an-
cestralidade com vistas ao futuro.

Adélia Nicolete
A palavra bordada:
Desdobramentos
da pesquisa
por Renata Matteoni Macera

RESUMO
A pesquisa investiga a relação entre as produções têxtil e textual, no contexto da memó-
ria e do feminino, apontando novos sentidos e aprofundando para questões relacionadas
a modos de existir e linguagem. No tocante à expressão têxtil, desdobra-se em: bordado
sobre retalhos e camisas de pagão; confecção de xales e patuás, entre outras peças, utili-
zando-se de técnicas como bordado, tricô, crochê, tingimento e impressão botânica, que
transitam entre signos como coração, raízes, galhos, asas, teias e ninhos.

PALAVRAS-CHAVE: Feminino. Memória. Poesia. Bordado. Linguagem.

207
“Uma escrita que quer im-
primir no dito, nas palavras
grafadas no papel, o aconte-
cimento, o instante impro-
nunciável da experiência
e, quem sabe, tornar-se ela
mesma experiência.”

Nina Veiga

Fotografia 1: Caixa de costura


e cadernos / Fonte: Renata
Matteoni Macera (2019).

PESQUISADORA

“Então a sede estranha e profunda me apareceu. Eu precisava – precisava com


urgência – de um ato de liberdade: o ato que é por si só. Um ato que manifes-
tasse fora de mim o que eu não precisava pagar. Não digo pagar com dinheiro
mas sim, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver.”

Clarice Lispector

Pesquisar, no âmbito das artes-manuais, tem sido como seguir um brilho – ora tão forte, que
ofuscante, ora fugidio, como água que escorre por entre as mãos. Em qualquer dos casos,
não pode ser contido, nem compreendido, apenas percebido e tomado como força motriz.

208
Ao meu redor mundos nascem, mundos morrem. Sinto que os que não se entregam
ao fluxo estão em grande sofrimento. Viver requer entrega. Permanecer apegada a um
mundo inóspito é negar a vida. Há que deixar morrer. É inútil – e sofrido, muito sofrido
– resistir. Acreditar que algo há ainda nesses mundos moribundos é ilusão pura.

Num cenário de tantas intensidades, sinto minha pesquisa como a mão que se estende
em minha direção e me encoraja a seguir o desejo – ou, ao menos, estar à espreita. É a
maré que me puxa para a arrebentação e, ao mesmo tempo, a força que me permite na-
dar até um lugar seguro. O que de repente tira o chão de baixo dos meus pés, logo em
seguida, se transforma nos braços que me amparam na queda. É, creio, o que me man-
1
tém desperta, “atenta e forte”, sem “temer a morte” e, quase sempre, sem temer a vida.

Como a pesquisa tem se materializado? Pelo bordado de palavras e alguns signos que
persistem em aparecer sobre meus panos, pelo tecer de xales e pelo uso de tingimento
2
de fibras naturais com corantes da terra. E pelos “cadernos de artífice” , em que escrevo
3
como quem comete um “ato gratuito” , dia após dia.

O ato de pesquisar para mim parece consistir, nesse momento, em afirmação de vida
e de experimentação de modos de existir: escritora, bordadeira, oficineira, tintureira,
caminhante, colecionadora.

ESCRITORA
Escrever, como tricotar, é puxar o fio e ordenar: criação, ponto a ponto, de uma trama que
contenha alguma ordem, qualquer que seja ela. Que faça ou não sentido, mas que sempre

1 Caetano Veloso. Divino Maravilhoso. Rio de Janeiro: Phonogram/Philips, 1968. Disponível em: «https://www.
letras.mus.br/caetano-veloso/44718/». Acesso em: 14 jan. 2020.

2 Expressão usada por Nina Veiga, sendo inclusive título de publicação da qual ela é organizadora: “Caderno de Artí-
fices.” (VEIGA, Ana Lygia Vieira Schil da. Caderno de Artífices. São Paulo: Círculo das Artes, 2017)

3 Referência à crônica “O ato gratuito”, de Clarice Lispector: “Muitas vezes o que me salvou foi improvisar um ato
gratuito. Ato gratuito, se tem causas, são desconhecidas. E se tem consequências, são imprevisíveis. O ato gratuito
é o oposto da luta pela vida e na vida. Ele é o oposto da nossa corrida pelo dinheiro, pelo trabalho, pelo amor, pelos
prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim – que esta é toda paga, isto é, tem o seu preço.” (LISPEC-
TOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2004)

209
tenha afeto. Os fios antes emaranhados do meu corpo – mente complicada, coração aflito
– se assentam organizados, ação que traz alívio para quando angústia e prazer, diante da
incerteza entre múltiplos possíveis, se confundem para além do que consigo suportar.

Escrevo
Não para expressar
O que penso, sinto, quero.
Escrevo como um ato do corpo,
Necessário, urgente.
Escrevo sem fim, sem uso.

Escrevo
Por amor às palavras,
Pela urgência de fazê-las
Fluir e compor.
Escrevo, sim, para compor,
Não que cada palavra
Por si não tenha valor.

Escrevo
Como mão que escreve,
Como o que é escrito,
Como o que ainda está para ser.

Escrevo
Como o novelo de ideias
A desenrolar-se em fio,
E então tecer corpo.
Materializar.

210
Escrevo
Como o horizonte,
Com a luz que emerge,
A se desvelar,
Na aurora de cada dia.
Revelar.

Escrevo como.

Escrevo talvez não


Eu
Escrevo talvez
Mundo
Talvez eu e mundo
Mundo e eu.
Apenas escrevo.

BORDADEIRA

“Dir-se-ia que todas as coisas, ao cessarem repentinamente de se inclinarem umas


para as outras no sentido do seu uso e da sua usura, tinham, cada uma por si, tomba-
do de sua essência, exibiam todos os seus atributos, existiam por si mesmas, inocente-
mente, sem procurar justificação que não fosse a da própria perfeição.”

Tournier

Bordo em ponto cruz. O bordar fluido e que se repete e se repete exerce efeito semelhan-
te ao do tricô: apazigua o coração aflito. O fluxo, a repetição, a respiração, o pulsar pelo
corpo, seguindo o ritmo imposto pelo bater do coração: tum tum tum...tum...tum... tum.

Da conexão mão-coração, penso, se produz harmonia no corpo. Que potência esse pano,
essa linha e essa agulha. Criam-se mundos: pensares, sentires, afetos. Sentido, dúvidas,

211
talvez perguntas onde, antes, havia certezas. Silêncios. Linha de fuga, contorno, acaba-
mento, forma que sustenta, fio que dá vida à trama acolhedora que se oferece a infinitas
possibilidades enquanto pano em branco.

Conexão mão-coração, que promove cura, se nos permitimos. Entregues, como o pano,
ao fluxo entra-e-sai de agulha e fio que cria o novo e, ao mesmo tempo, refaz, ressignifica,
resgata. Apenas mãos, pano, agulha e fio. Vontade. Nada mais – para que mais?
– a não ser esse “apenas” que tanto produz e tanto pode.

***
Bordo camisas de pagão. Veios – rios, raízes, galhos, veias, lugar do que corre e flui.
Bordo sobre camisas de pagão, com antenas de imaginação, intuição e inspiração.

A vida segue junto – ou outros aspectos da vida, se é possível segmentá-la – e estudos,


vivências das relações ou acontecidos se conectam sinapticamente com o meu fazer.
Em um flash, algo grandioso parece se encaixar, mas é efêmero. Assim como surge, se
esvai. Não me frustro porque, com isso, algo impossível de explicar – com a linguagem
da realidade – se deu em mim e isso basta. Está dado. Expresso também está no fazer
-bordar surgido do brilho.

Não tem causa nem consequência. Encadeamento linear. As conexões e o fazer inspira-
do acontecem fora do tempo cronológico, não tem antes nem depois. O ciclo fecha, mas
não finda. Como lemniskata, flui sem cessar. Como rio, seiva, sangue que, em seus leitos,
fluem fluxo contínuo.

Fotografia 2: Camisa
de pagão / Fonte:
Renata Matteoni
Macera (2019).

212
***
Bordo desejo em camadas de diferentes tecidos, em cor suave. Bordo papeis que iriam
para o lixo, em fio preto. Mistura de materiais, que importa? Desejar é verbo intransitivo.

***
Bordo angústia, em tempos brutos. Bordo, bordo, bordo sem parar. Em vermelho, letra
cursiva, angústia em diferentes dimensões se perpassam, se cruzam, se sobrepõem. Em
ponto corrente, meu ponto de inscrição. Mergulho na angústia, para poder sair dela.
Beber dessa fonte amarga, porém necessária... A partir daí, produzir.

Como compor quando desejo submergir deixando à tona apenas o necessário à manu-
tenção das funções vitais? Como viver a vida em tempos como esses? Como não embru-
tecer nem sucumbir? O desejo hiberna.

Bordo, escrevo minhas angústias, minhas muitas angústias. Sangro e tinjo e, apesar de
tudo sou capaz, hoje, de bordar a vida: trama esgarçada, rota, porém bela, preciosa.
Única. Um dia, quem sabe, bordarei alegria.

Fotografia 3: Bordando /
Fonte: Renata Matteoni
Macera (2019).

213
OFICINEIRA
Preparando uma oficina, pesquiso, penso e sinto o fio, fio-matéria e fio-linguagem, fio
como algo absolutamente inerente ao humano.

Manejo papéis – rústicos, reciclados, brancos, em branco, repletos de possibilidades,


lugar onde tudo é permitido. Papéis com cores que me alimentam, que me trazem ale-
gria em meio ao caos vigente.

Investigo a tecelagem, o tramar, o entrelaçar, a composição. Em sua essência, o desejo


de proteção – pele, abrigo.

E a escrita... Esse exercício de expressão do que vemos quando nos permitimos olhar
para dentro, reaprender a farejar e afinar a escuta. Tecelagem e escrita à mão, ambas
gestos ancestrais.

Costurar um bloco de papéis em livro e escrever à mão, tecer sua capa-pele, entrelaçan-
do pensar e sentir. Em companhia de outras mulheres e de seus processos, essas outras
mulheres que, no fim, sou eu, na teia que desejamos formar.

Fotografia 4: Caderno
e ervas/ Fonte: Renata
Matteoni Macera (2019).
TINTUREIRA
Como no tingimento, em impressão botânica se obtém das plantas cores que, pela ação
da água e do calor, são transferidas para os tecidos. A diferença entre a impressão botâ-
nica e o tingimento vai além da técnica em si: na primeira, a planta é pressionada contra
o tecido durante o processo, de modo que não apenas a cor seja para ele transferida. A
forma daquele corpo-planta também é impressa. A cor fica, na medida do possível, con-
tida dentro dos limites da forma da planta, num plano bidimensional. Pode-se dizer que
a planta é decalcada no pano.

Com o tingimento, podem ser criadas estampas, usando de dobraduras, nós, amarra-
ções, mas como um desenvolvimento do tingimento. A impressão botânica é, por essên-
cia, estamparia.

Tenho produzido panos e mais panos em impressão botânica. Desde que aprendi a téc-
nica, trabalho compulsivamente. Talvez devesse falar que brinco. Tem mais de brincar
do que de trabalhar, esse fazer que não posso controlar.

Além das plantas frescas, percebi que estava usando muitas ervas e até especiarias. O
que dizem a mim? De mim? Se tingir com plantas, uma vez divaguei, pode ter a ver com
um estar à vontade no mundo, o que pensar do uso das ervas em estamparia botânica?

Cravo. Tenho usado em muitas impressões. Seu aroma escapando do panelão, inebriante,
bálsamo necessário. Chá de rosas. Um respirar de alento. Não se trata apenas dos belos tons
terrosos que seus salpicados agregam a meu pano. Precisa composição. Preciosa composição.

Seda, algodão, crus, puros, que encontram estampa, história, narrativa. Mas há algo
além. Cura? Se cura, em que âmbito?

4
Hoje me lembrei de uma conhecida raizeira . Devo eu procurá-la, para aprender mais
sobre as ervas? Formulo perguntas com espírito investigador. São perguntas reflexivas;
não posso respondê-las.

4 Raizeira, mulher que aplica tratamentos com base em seu conhecimento de ervas e plantas, geralmente, passado
de geração em geração.

215
Sinto que por ora o que me cabe é tingir, imprimir plantas em panos. Alquimia com fibras,
plantas e ervas. Apreciar o ciclo dos elementos, água, ervas, fogo. Ervas que brotam da
terra, se banham de luz, bebem água do céu e da terra e secam ao sol. Transformam-se
pelo calor em panelões com água borbulhante. Retornam à terra, por fim. Água, aromas,
calor, fogo, borbulhas, surpresa, tudo no caldeirão, para em seguida se eternizar no pano.

Fotografia 6: Impressão botânica /


Fonte: Renata Matteoni Macera (2019).

Fotografia 5: Plantas e
pano / Fonte: Renata
Matteoni Macera
(2019).

Fotografia 7: Impressão
botânica/ Fonte: Renata
Matteoni Macera(2019).

216
CAMINHANTE
Na floresta, a atenção plena começa pelo corpo. Primeiro entrar na floresta. Então, res-
pirar. Inalar, exalar, receber, doar. Estar presente no corpo respirante. Atenção ao movi-
mento, às sensações. Então corpo desperto, pulsante.

Agora sim, caminhar. Passos conscientes, ritmo. Sentir os pés. Pegadas, terra.
E o olhar para frente e para o chão, às vezes para o alto. Céu, sol, luz.

Respirar. Árvores e árvores e toda uma vida abundante, incessante. A degradação não é
morte, é transformação. Respirar. O ar é puro, pura cura. O sentido apura.

O caminho é de pedra, tronco, fo-


lhas. Acima das copas das árvores
o sol, atravessando as frestas, quase
sempre presente. Às vezes nuvem
nubla. Logo passa.

Pelo caminho, também, às vezes


a água. Em movimento, encontra
pedra e vira som. Encontra luz, vira
brilho. Encontros alegres, pois sim.

Fotografia 8: Na floresta/
Fonte: Renata Matteoni Macera (2019).

COLECIONADORA
“Eu preciso das minhas memórias. Elas são meus documentos.”

Bourgeois

Pensando nas mulheres cuja história pode ser contada por uma caixa de contas e avia-
mentos. Por um saco de retalhos, uma caixa de costura. Um caderno de receitas. O
bilhete de um filho, dentro de um livro na estante.

217
Recebo uma caixa repleta de amostras de tricô e crochê, de uma senhora de 90 anos,
que há pouco morreu. Tesouros. Sim, tesouros são esses fragmentos de vida, agora
habitando meu ateliê.

Não é preciso a intensidade de uma Frida Kahlo


para que me afete profundamente. Me afeta a
história da senhora que nunca sequer deixou a ci-
dade do interior em que nasceu, viveu e morreu.
A memória materializada em amostras de tricô.
Ou mesmo em aparas de fios. Penso nas mãos
dessa mulher, quase sinto sua energia. Por um
breve instante, o espaço tempo que nos separa se
apaga e me sinto em total comunhão com ela e
com outras mulheres de outro tempo, suas dores
e alegrias, seus caminhos e descaminhos.

Derivo para minhas memórias póstumas. O que


deixarei? Que registros estou produzindo? Mi-
nha arte será apreciada? O que sobreviverá ao
meu corpo físico? Nada disso importa hoje.

De volta, sinto de produzir. De seguir buscando Fotografia 9: Caixa de contas/


Fonte: Renata Matteoni Macera (2019).
e colecionando esses fragmentos de memória. O
impulso me parece ser antes de composição que
de conservação. Uma tessitura dos fios do femi-
nino, com os fios das que passaram com os meus
e com os das que ainda virão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Às vezes é preciso arrancar a pele humana, farejar a vida feito felino quando atravessa
paredes, mergulhar no rio sinuoso que mistura passado e futuro, para que o corpo seja a
placa de argila, o pergaminho, o livro que a cada segundo vai sendo escrito.”
Roseana Murray

218
De que são feitas as asas das borboletas? Há dias em que as composições parecem tão
palpáveis e abundantes... Mas é a respeito da matéria mesma que me indago. Penso
em termos de fibras... seda! É de seda que são compostas! Não, na realidade não são,
e assim sigo dividida entre o científico e o poético. Mas pode haver, e há sim, poesia na
ciência, assim como há ciência na poesia. O lógico lúdico, e o lúdico pleno se sentido
– sentido sentido, não sentido pensado.

Desejo abraçar tudo ao mesmo tempo. Desejo o todo, não fragmentos. Entre luz e som-
bra, desejo cor, fio, diversidade de matéria, densidade, leveza, múltiplos possíveis. Vida.
Produção. Produção de vida. Uma vida em produção.

Aparas de fios,
Vestígios dos dias
Que correm.
Por um fio,
É produção de vida
Que salva.
E requer matéria,
Até petróleo, alumínio.
Ideia que alumia,
Espírito,
Pra encarnar precisa
Da matéria.
Pode ser lã, seda,
Algodão, madeira.
E as cores?
São matéria
Fotografia 10: Pé de abacate/
E também não são,
Fonte: Renata Matteoni Macera (2019).
Assim como
Nós.

Para materializar, uma cognição outra se faz necessária e, com ela, uma linguagem. Cog-
nição e linguagem outras que, na verdade, são muitas. Eu não conseguia mesmo explicar
o que entendia – ou achava que entendia – com minha sensorialidade e intelectualidade

219
ordinárias. O fato é que hoje me sinto
capaz de traduzir em palavras o que
penso compreender com essa cognição
outra, que nem sequer posso nomear.

Eis a pesquisa. Não entendida como a


criação de hipóteses, de uma tese, nem
a busca por uma conclusão. Pesquisa Fotografia 11: Bordado e aviamentos.
5 6
no âmbito do real , do “limbo” . Pes- Fonte: Renata Matteoni Macera (2019).

quisa enquanto bordo meus retalhos,


manuseio fibras e fios, me relaciono Os encontros com a outra em mim,
de forma – julgo eu – intrínseca com antes raramente possíveis, me pare-
a matéria e com a natureza. Há quem cem ser o que autoriza essa escrita e a
tenha olhos de ver, ouvidos de escutar, expressão mesma – escrita ou borda-
coração e pele de sentir. Há! Será essa da, vivida, enfim. No frigir dos ovos,
sensação, que experimento agora, num trata-se de mesmo de existir.
lampejo, o que chamam de plenitude?
Penso que a pergunta “como, essa
A metáfora das artes-manuais, então, escrita?” não se distancia nada de
me parece estar além do fazer com as “como existir?”.
mãos que cartografo. A escrita que Poderia dizer que a resposta é a mes-
percebi tenta efetuar de mãos dadas ma, se a tivesse. Me permito, então, a
com a criação de novos modos de exis- dizer: se não a resposta, o movimen-
tir – sabê-los possíveis já é por si só um to é o mesmo: abrir portas e janelas
sopro de vida. para o desejo entrar.

5 Conceito de Spinoza de definição não estrutural, mas operacional das coisas: o que elas podem. (DELEUZE,
Gilles. Espinoza: filosofia prática. 1.ed. São Paulo: Ed. Escuta, 2002)

6 Jorge Larrosa fala a partir do limbo e usa a expressão “momento límbico” em oposição à “nostalgia do que imagi-
namos ter perdido” e “esperança do que desejamos recuperar”. Segundo ele, “a nostalgia e a esperança são paixões da
imaginação.” (LARROSA, Jorge. Palavras desde o limbo – notas para outra pesquisa na educação ou, talvez, para
outra coisa que não a pesquisa na educação. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 13, n.27, p. 287-298, Jan./Abr. 2012)

220
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. 1. ed. São Paulo: Ed. Escuta, 2002.

MURRAY, Roseana. Poemas para metrônomo e vento. Guaratinguetá: Penalux,


2018.

LARROSA, Jorge. Palavras desde o limbo – notas para outra pesquisa na educação
ou, talvez, para outra coisa que não a pesquisa na educação. Revista Teias, Rio de
Janeiro, v.13, n. 27, p. 287-298, Jan/abr. 2012.

LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2004.

LOUISE BOURGEOIS: An Unfolding Portrait. Exhibited: September 24, 2017 –


January 28, 2018, New York. Louise Bourgeois: An Unfolding Portrait. New York: The
Museum of Modern Art. 248 p.

TOURNIER, Michel, Sexta-feira ou os limbos do pacífico. 1.ed. Rio de Janeiro: Bes-


tBolso, 2014.

VEIGA, Ana Lygia Vieira Schil da. Caderno de Artífices. São Paulo: Círculo das Ar-
tes, 2017.

VEIGA, Ana Lygia Vieira Schil da. Tecelar: o devir-mulher da escrita como um modo
de dizer (da) experiência. In: A potencialidade do conceito de experiência para a edu-
cação – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013.

221
Abrindo o baú:
As questões do enxoval
nas artes-manuais
por Profª Drª Adélia Nicolete 1

RESUMO
Pretendemos realizar, com este artigo, o levantamento de alguns aspectos relativos ao
enxoval da noiva que fujam ao lugar comum da romantização do casamento e alcancem
a geopolítica, a economia, a pedagogia, a sociologia, a tecnologia, bem como os estudos
de gênero, a história, a tradição e a memória. Para tanto, realizamos pesquisas bibliográ-
ficas e entrevistas cujos conteúdos foram trabalhados em forma de tópicos, à semelhança
de peças do enxoval. Longe de esgotar o assunto, nosso objetivo é estimular a ampliação
e o aprofundamento da pesquisa e da reflexão.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-Manuais. Enxoval. Memória. Tradição. Gênero.

1 Adélia Nicolete é mestre e doutora em Artes pela ECA/USP


com pesquisas sobre Dramaturgia em processo colaborativo e
Pedagogia da Dramaturgia. Escritora e consultora de dramatur-
gia, conduz Ateliês de escrita criativa, dramaturgia e memórias.
Professora dos cursos de Pós-Graduação em Artes-Manuais para
a Educação e de Artes-Manuais para Terapias – FACOM.

222
“Lá vem a noiva / De véu e grinalda
Vestida de branco / Para o santo altar

Lá vem a noiva / Com os passos solentes


Olhando pra frente / Que linda está

O noivo sorrindo / Já vai encontrá-la


Pois o casamento / Já vai começar”

Vaninha

É bem provável que a Noiva da epígrafe, como tantas outras que, de véu e grinalda,
percorrem a igreja ao encontro do Noivo, tenha preparado seu enxoval de Casamento.
A depender da época, as peças foram compradas prontas ou bordadas por ela mesma e
pelas familiares. Mais longe no tempo, o tecido foi devidamente fiado em casa antes mes-
mo de haver um pretendente em vista. De qualquer modo, todo um arsenal foi montado
e, conforme a tradição, aguarda, virgem como a noiva, para ser usado somente depois de
consagrada a União.

Tal como no poema de Carlos Drummond de Andrade, todo esse evento é “um retrato
na parede”, ou seja, algo fixado no imaginário que segue através dos tempos: heteronor-
matividade; a mulher que passa das mãos do pai às mãos do marido; união consagrada
pelas leis da igreja e da sociedade, bem como a casa como domínio da mulher são apenas
alguns exemplos. No entanto, ao observarmos de perto, vemos que o padrão se altera
e cada caso tem suas especificidades: muitas pessoas, de etnias e orientações sexuais
as mais diversas, continuam a se unir e a coabitar (não necessariamente aos pares) dos
mais diferentes jeitos e condições dividindo, cada uma a seu modo, as responsabilidades.
Uma coisa, talvez, não mude: a maioria das casas precisa de um enxoval.

A bibliografia relativa ao assunto é pequena e em língua portuguesa ainda menor, fato


compreensível por tratar das esferas feminina e doméstica – a elas (a nós) foi destinado
o silêncio da História Oficial2. O que elaboramos no presente texto é fruto do recolhi-

2 Sobre o assunto, sugerimos a leitura do artigo Práticas da memória feminina, da historiadora francesa Michelle
Perrot, indicado na Bibliografia.

223
mento de materiais publicados ou encontrados na internet, acrescidos de entrevistas e
3
de conteúdos puxados à memória . Reflexões gerais e paralelas são fruto de discussões
em grupo. Tal qual um baú que, aberto, revela grande número de artigos, assim gostarí-
amos de abordar alguns aspectos relativos ao tema – itens correlacionados ou aparente-
mente independentes que, reunidos, dizem respeito ao enxoval da noiva. Vamos a eles.

Enxoval
Segundo o Dicionário Houaiss, a etimologia da palavra “enxoval” remonta ao árabe –
ax-xaw r – “dote de casamento” – levemente alterado para a pronúncia ocidental. Aos
poucos, o termo passou a designar “qualquer conjunto de roupas e acessórios necessá-
rios para um recém-nascido, para um estudante que vai ao internato, para o serviço, uma
viagem etc.” Interessa-nos aqui o conjunto de roupas e acessórios destinado à casa e,
mais especificamente, as peças trabalhadas em artes-manuais. Além de uma função uti-
litária, tais peças representam um exercício estético e de convivialidade, uma sabedoria
transmitida entre gerações, além de carregar em sua criação ou obtenção, uma série de
referências socioeconômicas e culturais bastante significativas.

Parece evidente que a tradição do enxoval da noiva instalou-se no território brasileiro


por força da colonização e da imigração europeia em geral. Famílias oriundas de Portu-
gal, Alemanha e Itália trouxeram, ao longo dos séculos, a prática do dote e, por exten-
são, dos acessórios a que a mulher via-se obrigada pelo casamento. Num relato italiano
sobre a história do enxoval da noiva, por exemplo, afirma-se que

a preparação do acervo era longa e doméstica, com exceção de alguns itens


muito finos, com bordados e rendas singulares, feitos em geral em lugares “es-
pecializados”, como conventos. Em alguns países, as pessoas começavam a se
preocupar com o enxoval desde o primeiro ano de vida da menina, a fim de se
ter tempo suficiente para os detalhes e de se amortizar os custos da execução
ao longo dos anos. Eram as mães, as avós e as tias que começavam os prepa-
4
ros, dado o volume de itens com que se preocupar.

3 Com relação às entrevistas, decidimos por referenciá-las como o fizeram as autoras de Enxoval de Noiva e a Moda
– Da Dádiva ao Homewear a fim de sugerir uma padronização: logo após a citação e, entre parênteses, anotamos a
profissão, a idade e o ano de casamento da pessoa, caso tenha ocorrido.

4 Storia del corredo della sposa – livre tradução de Adélia Nicolete.

224
Notamos, portanto, que montar um enxoval como exigiam os costumes demandava
muito dinheiro para comprar as peças ou o tecido para confeccioná-las, além de um tem-
po estendido, muitas vezes roubado ao descanso. A professora Cleci Eulalia Favaro, ao
pesquisar a cultura de famílias alemãs e italianas que formaram colônias no Rio Grande
do Sul desde o século XIX, observou que à futura esposa cabia confeccionar o enxo-
val com boa antecipação, o que se dava “nos intervalos entre os trabalhos domésticos e
aqueles realizados na ‘roça’, ou à noite, no decorrer das reuniões familiares ou vicinais (o
‘filó’).” (FAVARO, 2010, p. 794)

Quanto aos aspectos econômicos do dote de casamento, Favaro anota:


do ponto de vista prático, consistia em um simples cálculo contábil: enquan-
to aos filhos homens cabiam, por tradição, a posse e uso do lote colonial (...),
a contrapartida feminina era la dota, o enxoval. Em termos de valor agre-
gado, no entanto, aquele representado pelo enxoval era muito menor. Em
outras palavras, o casamento ampliava o potencial da força de trabalho da
família do noivo na mesma proporção em que diminuía o da família de ori-
gem da noiva. A perda do suporte econômico era compensada, então, pela
redução dos meios materiais para a confecção do enxoval, que resultava, na
maior parte das vezes, extremamente simples e exíguo. (Idem)

As dificuldades financeiras com relação à montagem do enxoval acompanharam muitas


famílias através dos séculos. Em algumas regiões da França, na ausência de condições,
era feita uma cotização entre vizinhos a fim de suprir a jovem de material suficiente para
coser e bordar os itens obrigatórios, visto que, até meados do século XIX, o enxoval fazia
parte do contrato de casamento (FINE,1984).

Entre nós, tais dificuldades eram muitas vezes atenuadas com a participação de familia-
res e amigas, como relata uma entrevistada paulista:

“Todo mundo ajudava a fazer o enxoval. Assim que comecei a namorar, co-
mecei a ganhar muita coisa das minhas tias no aniversário: panos de prato,
toalhas. Tinha coisa bordada e tinha coisa comprada. Todo mundo ajuda-
va, pois éramos uma escadinha de quatro irmãs. Minha avó dava uma col-
cha de piquê para cada neta que casava, mas como a minha mãe podia fazer
o enxoval das quatro?” (Professora aposentada, 70 anos, casada em 1971, São
José dos Campos)

225
A entrevistada comenta que, por sua vez, comprou muitos itens para o enxoval da fi-
lha. No entanto, o volume foi bem menor, pois agora vive-se em apartamentos muito
pequenos: “Então ter muita coisa pra quê? O que até é bom, porque a gente pode ter
sempre coisa nova.” (Idem)

Baú
Dentre as imagens que nos chamaram a atenção durante a pesquisa, a da arca ou baú talvez
seja a principal pela estreita relação com o feminino. Uma das simbologias da arca, de acor-
do com o Dicionário dos símbolos, é a do “cofre do tesouro, tesouro de conhecimento e de
vida. É princípio de conservação e de nascimento dos seres.” (CHEVALIER, 1988, p. 74).
Mais adiante, ao tratar do cofre, os autores afirmam que seu simbolismo tem por base dois
elementos: “o fato de nele se depositar um Tesouro material ou espiritual; e o fato de que a
abertura do cofre seja o equivalente de uma revelação.” (grifos dos autores) (Idem, p. 262)

A mulher é o próprio cofre, vaso alquímico em que se operam as forças geradoras da


vida que, a seu tempo, são reveladas à luz. De modo semelhante, uma caixa de madeira
– a arca ou o baú – ao acolher pouco a pouco um enxoval, conservava e transportava
dentro de si uma vida nova a ser desfrutada a seu tempo. Tal ideia pode ser vislumbrada
no poema “Bagagem”, de Dalila Teles Veras:

“haveria de ser grande e bonito


o baú encomendado ao tio
madeira coberta por folhas de flandres
tachas reluzentes e batique florido
(abrigar os pertences
resistir às intempéries atlânticas
e, por fim, servir de móvel
no destino novo)

ali, na austeridade da arca


a casa
reduzida ao essencial.”
No livro Solidões da Memória, Veras narra seu processo de imigração da Ilha da Madei-
ra para o Brasil em meados dos anos 1950. Assim como sua família, muitas outras tive-
ram o baú confeccionado por pais, irmãos, tios. Não raras vezes, a madeira originava-se
de árvores da propriedade, devidamente derrubadas e tratadas a fim de o objeto resistir
ao peso, à água, à umidade ou “às intempéries atlânticas”, afinal abrigaria um tesouro.

5
A esse respeito, em uma postagem intitulada “La valise italienne” (A mala italiana) , a
pesquisadora canadense Stéphanie Mondor observa:

Muitas vezes, a fim de reunir todas as peças do enxoval num só lugar e mantê-lo
em perfeitas condições até o casamento, ele era colocado em um baú, comprado
ou feito pelo homem da casa. Era costume nomear este baú de “baú da esperan-
ça”, uma vez que ia ficar lá, intocado, até que um bom marido fosse encontrado.
Daí que algumas “solteironas”, mulheres que não conseguiam casar-se, mantive-
6
ram seu baú da esperança por toda a vida...

Na Itália de séculos atrás, “providenciava-se uma caixa de madeira, geralmente trabalha-


da, substituída em algumas regiões por uma arca ou um baú, cuja finalidade era conser-
7
var e proteger o enxoval de casa e os artigos pessoais.” Na maioria dos casos, tal espécie
de móvel era montada na mais tenra idade da menina, pois o enxoval seria elaborado ao
longo dos anos e, naqueles tempos, casava-se ainda na adolescência.

Ao ser efetivada a união, o baú acompanhava a noiva como dote ou patrimônio. Caso
os itens fossem utilizados no dia a dia da casa, a arca, agora vazia, poderia guardar ou-
tro tipo de material.

Bordado e trabalhos de agulha


À mulher, desde tempos remotos, está associado o trabalho com a fiação, a costura, o
bordado e demais artes da agulha. Embora homens desempenhem tarefas e até profis-

5 Tradução livre de Adélia Nicolete. A referência encontra-se anotada na Bibliografia do artigo.

6 Ana Paula Secco, Luiz André Alvim e Verônica Reis, da Cia Atores de Laura, do Rio de Janeiro, criaram a peça
teatral “O enxoval” a partir do ocorrido com uma senhora interiorana que conheceram. Tendo sido abandonada pelo
noivo na juventude, manteve-se solteira por toda a vida, conservando guardado o enxoval.

7 Tradução livre de Adélia Nicolete.

227
sões relacionadas a essas áreas, convencionou-se que seriam da competência feminina.
Para confirmar tal convenção, podemos recorrer a O lar doméstico, livro publicado em
1902 com a finalidade de orientar a conduta da mulher e a administração da casa nos
alvores do século XX. Logo no início do capítulo “Trabalhos de agulha”, a autora afirma:
“A primeira recomendação que dirigirei a toda mulher, seja qual for a sua fortuna e posi-
ção social, é a de aprender a cortar e costurar todos os objetos de seu uso, desde a roupa
branca até os seus vestidos de preço.” (CLESER, 1902, p. 95)

Em nossas entrevistas acerca do enxoval, pudemos confirmar essa recomendação, espe-


cialmente entre as mulheres mais velhas. A costura era ensinada em casa pela mãe ou por
alguma tia, mas também certas escolas, em especial os internatos, capacitavam as jovens:

“Este quadro de Cristo foi mãe que fez no colégio [em Diamantina – MG],
fez tudinho: costurou a roupa, fez os bordados todos. Cada moça saiu de lá
com um quadro desses, seguindo o modelo. (...) Elas aprendiam a costurar
e faziam peças de enxoval, mas não era pra elas, era pra vender. As freiras
vendiam pras moças ricas a fim de custear as moças pobres que não podiam
pagar a escola. Minha mãe fez muito bordado pra vender.” (Aposentada, 86
anos, solteira, Belo Horizonte)

O ato de promover, estimular e acompanhar a confecção do enxoval das filhas era, por-
tanto, ocasião de prepará-las também nos aspectos econômicos da casa, independente
da classe social.

A costura e o bordado de peças da futura esposa, além de sua finalidade prática de abas-
tecer a casa, tinham a função de manter as jovens ocupadas, concentradas, isto é, à vista
e sob controle, como anotou Vera Cleser no capítulo “A roupa branca”:

As noivas devem pessoalmente coser, marcar e bordar a sua roupa branca. O


cuidado que dispensardes ao vosso enxoval, minhas jovens amigas, propor-
cionar-vos-á prazer, crede-o, e o longo esforço que elle exige ensinar-vos-á a
estimal-o. Fazei esta costura com bôa vontade, não pronuncieis uma só pala-
vra de tédio, não há coisa alguma que mais favoreça os sonhos de felicidade
que uma occupação monotona! (sic) (CLESER, 1902, p. 84).

228
Se por um lado, do nosso ponto de vista contemporâneo, tais padrões aparentam cer-
ceamentos ou limitações do comportamento e dos desejos femininos, por outro “mere-
cem ser tomados como um lugar de liberdade, pois nele as mulheres de comportamen-
tos burgueses, normalmente tão subservientes às vontades e aos mandos dos maridos,
tinham nas rodas de costura ou mesmo no trabalho solitário a sensação de controle e
de poder de criação.” O exercício estético efetivado no ato de bordar era uma espécie de
distinção, além de permitirem a expansão da interioridade, “de domínio de um código
particular, de criação de uma linguagem artística especial, que só as mulheres domina-
riam.” (MALTA, 2015, p. 8-9)

É preciso levar igualmente em conta os aspectos econômicos envolvidos na confecção


do enxoval. Em épocas de pouquíssima oferta de produtos de vestuário e ainda menos
para a casa, cabia à mulher prover a si e à família com roupas e itens de uso comum. A
quem podia pagar, encomendavam-se os serviços de outras mulheres. A quem faltassem
recursos, as artes-manuais seriam de grande valor. Assim, um lençol de casal já usado e
tendo sido retirado o monograma seria reformado e viria a forrar uma cama de solteiro.
De uma camisa já sem condições de uso, salvar-se-iam os botões, que, por sua vez, servi-
riam a outra peça. Uma boa dona de casa saberia não só bordar, mas remendar e cerzir
com capricho a fim de garantir mais tempo de uso as vestimentas e as roupas da casa.

Em seus primórdios, as famosas colchas de retalho mineiras, bem como suas versões
estadunidenses – patchwork e quilt – eram composições elaboradas a partir de reaprovei-
tamento de tecidos. Lençóis e roupas já fora de uso eram recortados e cosidos a fim de
ganhar nova utilidade (CORNELL, 2006). A ausência de padrões a serem necessaria-
mente seguidos na costura dos retalhos dava oportunidade a exercícios estéticos.

Além de conferir graça e beleza aos itens da casa, os chamados trabalhos de agulha em
fins do século XIX no Brasil eram empregados “na personalização das roupas de cama
e de banho, com aplicação de bicos, franjas, bordados e monogramas aos finos tecidos
de linho, aproximando-se da pessoalidade das roupas de vestir e chamando atenção
para o fato de que tinham dono.” (MALTA, 2015, p. 5). Estamos falando de produção
de subjetividade.

229
Coisa de mulher
O enxoval, no decorrer da história, é visto como atribuição da mulher. Isso se deve a
muitos fatores já que se trata de um assunto da esfera doméstica e a ela está indissoluvel-
mente ligado o feminino. O convívio mais estreito da menina com a mãe no espaço da
casa permite que a veja nas lidas com a roupa, com os objetos, na limpeza e na arrumação
em geral e, com isso, relacione tais objetos e afazeres à sua área de atuação, diferente do
menino, estimulado a desligar-se da mãe o mais cedo possível 8. A isso podemos somar
as informações recebidas, desde a mais tenra idade, pelo discurso verbal, por aprova-
ções ou desaprovações de comportamento, pelos presentes, pelas brincadeiras conforme
observa a psicóloga Malvina E. Muszkat:
Nutrir um bebê não significa apenas alimentá-lo, mas dar-lhe carinho e trans-
mitir-lhe significados, provendo padrões de conduta indispensáveis para seu
futuro reconhecimento social. (...) Meninos e meninas, junto com o leite e o
amor da mamãe, recebem instruções sobre quem são e como devem se comu-
nicar com o grupo onde nasceram, de modo que nele garantam sua inserção.
Não apenas devem aprender a língua de seu povo, mas também o complexo
sistema de símbolos de sua cultura. (MUSZKAT, 2018, p. 25).

Ao homem, de um modo geral, é dado viver “na rua” e nos domínios do que é externo
à casa, delegando esse território ao sexo oposto, principalmente se foi esse o exemplo
trazido de casa.

Em 1902, foi publicado no Brasil o livro O lar doméstico, escrito por Vera Cleser. Logo
na primeira linha do Prefácio, a autora afirma “não haver ciência mais útil à mulher do
que a de bem dirigir a sua casa.” (CLESER; 1902, p. V). Mais à frente, defende que “a
mais sólida base para a felicidade que uma boa mãe possa dar à sua filha consiste em
familiarizar esta, desde a infância, com o serviço doméstico, ocupando-a conforme a sua
idade e forças.” (CLESER, 1902, p. 2)

Algo tão sedimentado em nossa cultura promove o que chamamos de naturalização de


certos comportamentos. Assim, embora haja milhões de mulheres que exerçam profis-

8 “A garantia de eficiência do método está em transformar meninos ternos em guerreiros frios, destemidos e obriga-
toriamente isolados do mundo das mulheres. Uma das consequências é o famoso estranhamento declarado pelos
homens quando confessam não entender o mundo feminino. Trata-se de uma cegueira afetiva, sequela do distancia-
mento prescrito.” (MUSZKAT, 2018, p. 33)

230
sões as mais variadas, que não tenham tempo ou não gostem dos afazeres domésticos,
que tenham companheiros que assumam os cuidados práticos do dia a dia, o espaço
da casa está vinculado à figura da mulher. O enxoval, portanto, foi por muito tempo
responsabilidade exclusiva sua, como relata Cleci Favaro em sua pesquisa sobre a imi-
gração italiana no sul do país:

Mesmo singelo e despretensioso, o conjunto das peças que compunha o dote ma-
trimonial comportava outros sentidos e significados, uma vez que cabia à própria
noiva a sua confecção: a demonstração efetiva de domínio de habilidades manuais,
de capricho e senso de economia revelavam, não apenas as qualidades da candida-
ta, mas, principalmente, a estrutura moral, os valores e a situação econômica da fa-
mília de origem. Visto de outro ângulo, um verdadeiro discurso mudo – mas pleno
de significado – expunha para o grupo social local tanto o papel exercido pelo chefe
da família (aquele que controla os gastos e administra os bens), como o da mãe,
enquanto reprodutora e transmissora dos valores do grupo familiar e, por extensão,
da comunidade. (FAVARO, 2000, p. 4).

No entanto, o quadro se altera pouco a pouco. Desde meados do século XX, com o movi-
mento da contracultura, a própria instituição do casamento passou a ser questionada, bem
como tudo que se relacionasse ao assunto. Novos tempos, novos costumes. Atualmente, os
casais podem decidir juntos o que será adquirido para decorar ou equipar a casa – que mui-
tas vezes já está montada previamente – ou contar com a participação de pessoas próximas:

A prática da noiva preparar o enxoval permanece, mas com transformações. Atual-


mente, não apenas as noivas e familiares, mas também as amigas se mobilizam para
prepará-lo, organizam listas de presentes, distribuem convites e realizam um encon-
tro com comidas, bebidas e brincadeiras para fazer o presenteio. Tudo com muita
alegria, ludicidade, diversão. A tradição continua renovada, ressignificada seja pelo
conteúdo da lista de objetos, seu feitio, o lugar de materialização, seja pela própria
relação entre as/os envolvidas/os no ritual de sua realização. (PINTO, 2010, p.11).

Uma das entrevistadas afirmou ter comprado o enxoval com o noivo, que deu muito
mais sugestões do que ela própria: “A gente dividiu a conta, porque não achei justo eu
arcar com todas as despesas sendo que ele ia usar também.” (Dona de casa, 37 anos, ca-
sada em 2010, São José dos Campos)

231
Para muitos outros casais, a composição do enxoval é quase totalmente compartilhada
com outras pessoas e motivo para reuniões e festas, como encontramos no artigo Enxo-
val de Noiva e a Moda – Da Dádiva ao Homewear:

A participação dos amigos, seja na forma de companhia durante o processo de compra


de peças ou de organização da festa, seja no compartilhamento de idéias e na troca de
experiências e objetos, representa uma importante interação social que se estende para
além da família e, algumas vezes, além das mulheres. Essas festas, conhecidas como “chá”,
materializam-se em momentos de montagem do enxoval, e são quase sempre reuniões fes-
tivas para entrega de presentes que podem ser divididas de acordo com os tipos de objetos
domésticos a serem adquiridos:

A) Chá de Casa Nova: Inclui artigos variados que vão desde utensílios de cozinha, eletro-
domésticos de pequeno porte, objetos de decoração à peças de cama e mesa, como jogos
de lençol, edredons e toalhas.
B) Chá de panela ou de Cozinha: Os presentes são restritos aos utensílios de cozinha como
conjuntos de panelas, pratos, talheres, peneiras, escorredores etc.
C) Chá-Bar: Geralmente realizado pelos amigos do noivo que o presenteiam com bebidas,
copos, taças, baldes e pinças de gelo e outros objetos que possam ser utilizados para rece-
ber em casa os amigos.
D) Chá de Lingerie: Organizado pelas madrinhas e amigas da noiva para presenteá-la com
lingeries e peças íntimas. É uma reunião exclusiva para as mulheres. (PINTO, 2010, p.15).

Depreende-se daí que, ao longo do tempo e por motivações de ordem econômica, social e
cultural, a incumbência de compor o enxoval deixou de ser de inteira responsabilidade da
noiva e de sua família e estendeu-se à comunidade afetiva – ao menos em nossa sociedade.

Decoração
Boa parte dos enxovais brasileiros da segunda metade do século XIX a princípios do
XX não se limitava somente às questões práticas do dia a dia – cobrir, enxugar, vestir,
limpar – mas também à decoração. Segundo a pesquisadora e museóloga Marize Malta,
não existia casa “que não estivesse povoada de paninhos espalhados sobre poltronas,
mesas e mesinhas, penteadeiras e lavatórios, vitrines e oratórios, criados-mudos e guar-
da-louças.” (MALTA, 2015, p. 6)

232
Poderíamos acrescentar, décadas depois, os “vestidos” em tecido ou crochê para liquidi-
ficadores, filtros de barro e botijões de gás:

“Quando eu tinha 12 anos, bordei meu primeiro pano de fogão – a gente chama-
va assim, mas era pra colocar na parede e apoiar as tampas das panelas – acabei
nem usando porque logo que casei mudei para São Paulo e já era fogão a gás.
Tinha entrado na moda um pano de prato para cada dia da semana e eu fiz pro
enxoval. Fiz uma capa vermelha pro liquidificador e uma branca para o filtro.
Bordei uns dois sacos de pão, que a gente punha atrás da porta da cozinha.”
(Comerciante aposentada, 78 anos, casada em 1967, Campinas)

Os sacos de pão atrás da porta fazem parte do imaginário de um sem-número de famí-


lias, bem como os incontáveis paninhos decorativos espalhados sobre os móveis:

“A gente bordava a toalha de centro da mesa e as toalhinhas do bufê. No quar-


to, havia toalhinhas para os criados-mudos e para a penteadeira também, então
eu punha o perfume em cima de uma, o porta-joias em cima de outra. Quando
compramos o telefone, eu bordei um tapetinho para ele não escorregar, mas aí
eu já era casada.” (Dona de casa, 86 anos, casada em 1953, Campinas)

Em contraste com a moda clean e minimalista dos tempos atuais, o gosto pelos paninhos,
segundo Marize Malta, supria uma demanda por aconchego e beleza, pois a ausência
deles poderia dar impressão de “casa pelada”: “Ornando uma superfície ou apoiando al-
gum objeto, eles ofereciam um contraste delicado às superfícies escuras da madeira (...) e
destacavam as peças que neles pousavam, demarcando sua individualidade.” (MALTA,
2015, p. 6). Como relatado no trecho anterior, “em alguns casos, para cada objeto expos-
to havia um artefato têxtil embaixo dele.”

Dote e patrimônio
A história do casamento enquanto união legal é bastante complexa e envolve, acima
de tudo, aspectos econômicos. A atual certidão feita em cartório não deixa de ser uma
espécie de contrato entre as partes em que se declara o modo como os bens de cada
participante serão dispostos a partir do vínculo. A lei, no entanto, assegura que, mesmo
sem a união oficial, ambos estão assegurados judicial e economicamente em caso de se-

233
paração. Ou seja, comprovada a chamada união estável, possíveis questões econômicas
serão devidamente resolvidas pelo suposto rigor da Justiça.

Em tempos passados, a depender do país e da posição social dos envolvidos, era feito
9
um contrato mais detalhado e específico que as atuais certidões . Em muitos daqueles
documentos, constava a obrigatoriedade do enxoval da noiva e até a discriminação dos
artigos. Era o chamado dote, conforme descreve a historiadora Mary Del Priore:

Dote: conjunto de bens doados pelo pai à filha por ocasião do casamento, doação
destinada a compensar a herança dos irmãos. Ele podia compreender mobiliário,
louça, roupa de cama e mesa, e jóias. No Brasil, entravam no dote escravos, terras
e animais de criação. Entre noivas pobres, até mesmo sacos de mantimentos e ga-
linhas o poderiam compor. Teoricamente, as mulheres podiam manipulá-lo, mas
cabiam ao marido a gestão e o dever de restituí-lo à família em caso de divórcio.
Não foram poucas as esposas que entraram na justiça contra o mau uso que os
consortes faziam de sua fortuna. (DEL PRIORE, 2013, p. 57).

Em outras palavras, o dote pode ser interpretado como patrimônio da mulher, algo que
ela trouxe da casa paterna e, portanto, é um bem adquirido antes do casamento. Para se ter
uma ideia, segue a descrição do enxoval de Anna Maria da Horta, recebido de sua mãe em
1758, em São Paulo: “uma colcha adamascada escarlate, outra colcha, um dossel de cama
com cortinas de bom algodão com fitas, uma cama com colchão de lã, três pares de lençóis
com fronhas, duas toalhas de mesa com 12 guardanapos, seis toalhas, seis colheres de prata
com seis garfos de prata, duas cômodas de jacarandá, uma grande e uma pequena.” (NA-
ZZARI,1988-89, p. 91 apud MALTA, 2015, p. 12). Uma pequena fortuna, enfim.

Na Itália do século XIX, o enxoval seria a contribuição pessoal da noiva ao patrimônio


da família, “por isso tinha que ser da mais alta qualidade possível, o mais bonito, o mais
fino, o mais completo. Não poucas vezes ele era exposto à admiração dos visitantes
da casa e, por ocasião das núpcias, exibido junto aos presentes recebidos pelos noivos.”
(MONDOR, 2016, p. 18)

9 Ainda hoje, os casamentos que envolvem grandes fortuna são devidamente contratados juridicamente.

234
Sob certo ponto de vista, o enxoval como dote fazia parte de um negócio em que as
duas famílias deveriam sentir-se em pé de igualdade e, além do mais, mostrar que o
casal tinha condições suficientes para formar uma nova família. Em outro artigo acerca
do enxoval na Itália,comenta-se:

Além de ser uma obrigação da noiva, o enxoval era um elemento-chave para se


apresentar bem aos futuros sogros e a toda a comunidade. Na realidade, fazia
parte do “dote” e antigamente, quando do casamento de uma jovem de família
abastada, faziam-se necessárias diversas carruagens para carregar todo o enxo-
val, além de uma grande casa para armazená-lo – ele representava a riqueza da
noiva. A existência de um bom enxoval não era apenas uma questão individual
e, claro, de prestígio para a família (as peças eram exibidas publicamente antes
do casamento), mas era visto pela comunidade como uma prova de que a jovem
estava habilitada para o casamento e, portanto, garantida estava a perpetuação
10
da ordem social e daestabilidade.

Um resquício dessa tradição podia ser encontrado até pouco tempo atrás no Brasil.
Dentre as fotografias de casamento, constava aquela em que a noiva (ou o casal) sentava-
se na cama junto a todos os presentes recebidos. A residência era aberta a convidadas e
convidados que, às vésperas do casamento, podiam conferir o montante de objetos com
que familiares e amigos haviam dotado o jovem casal.

Memória afetiva
Um outro aspecto relevante no estudo dos enxovais é a memória afetiva que os envolve.
No lugar de baús, muitas gavetas e armários ainda conservam uma ou outra peça guarda-
da, o que constitui, no dizer de Marize Malta (2015, p. 1), “um museu privado sentimental”.

Como observam as pesquisadoras Angela May e Rita Vidal, são trabalhos que carregam
em si, além da história de quem os possuiu, a história de quem os fez. “O trabalho manu-
al empregado nos enxovais, tempos atrás, era feito por alguém próximo a essas famílias,
que transmitia seu afeto através destes trabalhos. O tempo empregado na manufatura
era, então, parte da vida de quem o fazia.” (MAY; VIDAL, 2013, p. 170)

10 Storia del Corredo della Sposa. Tradução livre de Adélia Nicolete.

235
Isso nos leva a compreender o porquê de muitas mulheres manterem guardados e fora
de uso alguns itens, por exemplo, como no relato a seguir:

“Lembro de minha mãe bordando na sala. Todo dia depois de fazer o serviço da casa e
almoçar, ela sentava na poltrona e bordava meu enxoval. Eu chegava da escola e ela me
mostrava o que tinha feito: um caminho de mesa, uma toalha, um pano de prato. Ela
costurava e bordava. Então não tenho coragem de usar tudo. Muita coisa está guar-
dada que é pra não acabar. É um jeito de eu me lembrar da minha mãe, ter ela junto
de mim.” (Professora aposentada, 53 anos, casada em 1998, São Bernardo do Campo)

Conduta semelhante foi expressa de maneira quase idêntica por duas outras entrevistadas:

(..) “Eu vou te confessar que eu abraço esse pano de prato quando tenho saudade
da minha mãe. Eu não coloco em uso porque tenho dó de estragar.” (Professora, 40
anos, casada em 2012, Santo André)

(...) “Às vezes, eu pego a toalha [centro de mesa] da gaveta e fico olhando. Gosto de
passar a mão nela, admirar o bordado. Faz bem pros olhos e eu lembro da minha
mãe que bordou. É como se ela estivesse comigo.” (Professora aposentada, 70 anos,
casada em 1971, São José dos Campos)

O relato imediatamente anterior atesta uma reflexão registrada por Marize Malta por
ocasião do XXVIII Simpósio Nacional de História, ocorrido em Florianópolis em 2015:

Basta que alguém os resgate [aos paninhos] para que as lembranças venham à tona,
as mãos se reconfortem com suas superfícies macias, os olhos se percam pelos dese-
nhos minuciosos e delicados, ou mesmo extravagantes e imaginativos, promovendo
uma experiência estética própria aos ambientes domésticos. (MALTA, 2015, p. 1).

Mais um relato confirma a importância da fruição estética e afetiva do enxoval:

“Eu fui a primeira filha e a primeira neta, então toda a família fez o enxoval para mim
desde que eu era pequena. Tinha um baú no meu quarto. Tudo coisa boa, até uma
colcha toda bordada trazida da Europa – naquela época muita gente comprava coi-
sa fora e revendia aqui, meu avô comproue pagou caríssimo. Nunca usei a colcha,
não tive coragem. Às vezes coloco ela na cama e fico só olhando, admirando. É mui-
to bonita.” (Aposentada, 64 anos, solteira, Pirassununga)

236
No caso de peças compradas ou recebidas de presente, o esforço, o amor ou a delicade-
za de quem as ofereceu também são capazes de impregná-las de afeto, como podemos
notar no relato a seguir:

“Não fiz enxoval, mas ganhamos um jogo de toalhas de banho bordadas, feito
para três pessoas: eu, Edu e Bia [enteada]. Achei muito sensível da parte dos
amigos que nos presentearam. Os amigos se hospedaram na nossa casa, então
abrimos a caixa antes mesmo do casamento e eles fizeram questão de entre-
gar o presente para a nova família em um momento em que ela [Bia] estava
conosco. Foi mesmo emocionante! Não sei se a Bia se lembra, mas eu penso
nisso cada vez que uso alguma toalha do jogo.” (Professora, 50 anos, casada
em 2002, São Bernardo do Campo)

A memória afetiva talvez seja um dos principais fatores de preservação de peças de enxo-
val, se não em museus, nas próprias famílias, passadas de geração em geração pela linha-
gem feminina. Constituem rico material para exposições e museus se o espaço domés-
tico e ao que ele se refere fossem devidamente valorizados como documento histórico.

Pedagogia e convivialidade
Quando se trata da confecção do enxoval da noiva, são muitas as referências aos aspec-
tos afetivos e pedagógicos envolvidos, independente do tempo e do lugar. O trabalho
criativo era por vezes solitário, mas, em grande parte, realizado coletivamente e seus sa-
beres eram transmitidos entre gerações. Michele Perrot, em seu estudo sobre o silêncio
das mulheres na História, aborda o tema:

[na França do século XIX] a roupa de cama, mesa e banho, o vestuário cons-
tituem uma outra forma de acumulação. O enxoval, cuidadosamente prepa-
rado nos meios populares, sobretudo rurais, é “uma longa história entre mãe
e filha”. A confecção do enxoval é um legado de saberes e de segredos, do
corpo e do coração, longamente destilados. O armário de roupa é ao mesmo
tempo o cofre e o relicário. A espessura dos lençóis, a delicadeza das toalhas
de mesa, os monogramas nos guardanapos, a qualidade dos panos de limpe-
za ganham sentido numa cadeia de gestos repetidos e engrinaldados. (grifo
nosso) (PERROT, 1989, p. 14).

237
Sabemos que muitas moças aprendiam costura, bordado e outras prendas domésticas
durante os anos escolares. Por outro lado, era em casa que os ensinamentos se davam
com maior tempo e intensidade. Como afirma Cleci Favaro, acerca das famílias imi-
grantes instaladas no sul do Brasil,

a educação das gerações se fazia “dentro de casa” e a tarefa cabia à mãe, o que
não deixa de se constituir um poder. O próprio ato de bordar já era em si mes-
mo um ato educativo, um exercício e um exemplo de disciplina, de persistên-
cia, de determinação, de cuidado, de capricho. De economia? Sem dúvida.
(FAVARO, 2000, p. 8).

Ainda no ambiente da casa, a reunião de jovens em torno do bordado de enxoval criava


uma egrégora de sonhos futuros. Um texto italiano sobre o tema dá-nos uma bonita
imagem daqueles encontros:

No tempo de nossas bisavós, as mulheres do campo reuniam-se à tarde, após


completarem o trabalho na lavoura e os afazeres domésticos. As mais velhas
e experientes ensinavam as meninas e as jovens a bordar, no que passavam
horas sentadas, conversando sobre suas coisas, enquanto a agulha e linha
traçavam seu caminho pelo tecido. A preparação do enxoval era lenta – o
bordado era todo feito à mão, ponto por ponto – e os momentos em grupo,
uma excelente oportunidade para socialização.11

Nos relatos abaixo, a confirmação da imagem, séculos depois, além-mar:

“A gente fazia todo o serviço da casa e de noite se reunia para bordar. Na fa-
zenda, tinha muito saco de açúcar e de farinha, daquele algodão mais grosso
e eu fiz colcha e toalha de mesa bordada, do jeito que dava. Fazia toalha de
banho, mas não bordava, só desfiava e trançava a barra. Ou então a gente
trocava: quem trançava bem trocava uma toalha com quem preferia bordar.
Quando tinha um dinheiro, a gente comprava tecido mais fino de algodão
pra fazer lençol – costurava e bordava – ou então encomendava do mascate e
pagava aos pouquinhos.” (Dona de casa, 86 anos, casada em 1953, Campinas)

“Eu trabalhava na Tognato [tecelagem de São Bernardo do Campo, São


Paulo]. Tirava muita coisa de lá mais barato e eles descontavam no pagamen-

11 Storia del Corredo della Sposa . Tradução livre de Adélia Nicolete.

238
to. Mas a gente bordava também. Se reunia no porão de casa com as amigas,
ligava o rádio e ficava bordando e conversando até tarde. A gente falava de
um tudo! E ria muito também. Às vezes, alguém aparecia com uma revista e
a gente tirava um risco novo, senão emprestava risco uma da outra.” (Cabelei-
reira aposentada, 85 anos, casada em 1970, Campo Grande)

No caso das moças que não gostavam dos trabalhos de agulha, a experiência poderia
ser incômoda. Clarice Lispector, no romance O lustre, narra uma situação vivida pela
protagonista Virginia que bem pode representar muitas moças:

Uma manhã — o dia iniciara chuvoso e as gotas dágua escorriam atrás da


vidraça — ela desceu tarde para o café, pálida e inexpressiva, com aquele ar
resignado e altivo que os dias com as primas lhe haviam emprestado.
Arlete olhou-a um instante. E subitamente sem propósito como se a custo
tivesse se contido até então, disse-lhe baixo, bruta:

— E por que não cose conosco?

Henriqueta interrompeu-se assustada, a cafeteira na mão:

— Arlete, Arlete...

Virgínia olhava-as muda... Então... então... elas... dizia-se tonta de ira, então
elas queriam arrastá-la, subjugá-la... queriam...

— Não sei coser! jogou-lhes em violência abafada.

Arlete e Henriqueta entreolharam-se numa surpresa exagerada e logo com


um ar de quem não podia disfarçar o cômico.

— Mas ensina-se! gritou Arlete alçando o peito aleijado.

Virgínia empalideceu, entrefechou os olhos escurecidos. Deus meu, de onde


lhe vinha aquela força, ela sempre fora sossegada... Nesse instante odiava com
tanto prazer as duas velhas que mergulhada numa escura sensação extraordi-
nária de profundeza e pecado respondeu-lhe qualquer coisa, sim, sim...

239
E então foi obrigada a sentar-se e a bordar junto delas. Suas mãos inábeis
atacavam os pontos grosseiramente, os olhos em direção à janela. Henriqueta
delicada desmanchava seus nós e dava-lhe o pano de novo. Arlete observava-a
com os olhos apertados, o rosto doente avivado de alegria. Mesmo que a fome
empalidecesse Virgínia o almoço e o jantar não teriam suas horas transferidas.
Quando o relógio batia uma da tarde, Henriqueta erguia-se, depunha a costu-
ra sobre a cadeira e lentamente encaminhava-se ao guarda-comida alto que se
perdia em trevas. (LISPECTOR, 1999, p. 123).

Os registros históricos parecem não contemplar as mulheres avessas às artes- manuais


ou consideradas inábeis. Curiosamente, coube à ficção atestar-lhes a existência.

Releituras do enxoval
As profissionais da Moda Angela May e Rita Vidal, ao pesquisarem técnicas manuais
esquecidas e enxovais abandonados, desenvolveram um projeto denominado “Decom-
posição Bordada”. Com a intenção de “refletir sobre o tempo e a decomposição dos ob-
jetos de afeto de outrora”, a iniciativa consiste em bordar peças previamente bordadas,
“pertencentes a enxovais do início do século passado, que representam possíveis decom-
posições dos tecidos e dos bordados originais.” Segundo as pesquisadoras,

o bordado feito sobre as peças representa (trompe-l’oeil) efeitos de


decomposição dessas peças - como mofo, esgarçados e puídos, man-
chas amareladas, traças e larvas - resultando em um novo bordado.
As principais reflexões trazidas por esse trabalho envolvem o esque-
cimento, o tempo e o afeto, intrinsecamente associados ao trabalho
manual de costura e bordado. (MAY; VIDAL, 2013, p. 170).

O artista pernambucano Leonilson, conhecido como um dos expoentes da chamada


Geração 80 das Artes Plásticas brasileiras, tomou igualmente peças domésticas como
suporte para suas intervenções. Toalhas de mesa, fronhas e outros artefatos previamen-
te bordados – familiares ou não – receberam novas camadas de bordadura e, expostas,
alçaram à categoria de obra de arte visual.

240
Tradição e modernidade - arremates
Ao empreendermos uma busca pelo enxoval da noiva na internet, deparamo-nos com
um grande número de endereços especializados, listas, orientações e até as chamadas
personal shoppers – profissionais que acompanham noivas e familiares nas compras de
itens fora do Brasil.

A profusão de tecidos, as grandes confecções e lojas, as máquinas de bordar, permitiram


uma variedade imensa de produtos com vistas a facilitar a composição de um enxoval
sem que fosse preciso plantar o linho e fazer o fio, costurar, riscar e bordar cada peça –
empreendimento que levava décadas em certos casos. Das bordadeiras especializadas
ou das jovens que pagavam seus estudos produzindo peças de enxoval para vender; das
cidades conhecidas pela oferta de produtos na área até a indústria têxtil e as redes co-
merciais, o enxoval da noiva transformou-se ao longo do tempo em um negócio capaz de
gerar renda e movimentar muito dinheiro:

Um casamento atualmente leva em média um ano para acontecer, se for seguir


toda a preparação que é demandada. Entre esta preparação, está o enxoval da
noiva, que hoje é comprado em lojas especializadas em cama, mesa, banho e
roupa de dormir. Diversos eventos podem fazer parte da montagem do enxoval,
realizados como festas para o encontro de familiares e amigas que presenteiam a
noiva com objetos que vão compor o seu enxoval. Essas festas são organizadas
em espaços domésticos ou em buffets, dependendo das condições econômicas
da família da noiva ou de suas amigas e supõe a articulação de empresas que in-
tegram a “indústria de casamento” e a “indústria de festa”. (PINTO, 2010, p. 2).

Como pudemos observar, embora em algumas culturas e lugares o enxoval da noiva


permaneça uma parte importante do casamento, ele é um reflexo de seu tempo. O casal
decide conjuntamente os itens a serem adquiridos e, muitas vezes, a praticidade fala
mais alto: tecidos facilmente laváveis, peças multifuncionais. e que servem em todas as
circunstâncias. “A mudança cultural traz consigo um conceito moderno de “enxoval”: ele
é transformado em diversas roupas práticas e de boa qualidade, coordenadas entre si e
com o resto do ambiente a fim de ajudar a decorá- lo.” 12 O enxoval tornou-se um nicho al-
tamente rentável, capaz de movimentar a economia e incrementar o segmento da moda:

12 Storia del Corredo della Sposa. Tradução livre de Adélia Nicolete.

241
Atualmente inúmeras empresas do segmento de cama, mesa e banho estão inves-
tindo no design como fator de diferenciação das peças, transformando o antigo
enxoval no moderno conceito de Homewear ou Moda Casa, fazendo as roupas
de cama, mesa e banho acompanharem tendências de moda no que diz respeito às
formas, cores, texturas e padrões. (PINTO, 2010, p. 15).

É possível encontrar nas prateleiras coleções de cama, mesa e banho que levam a assina-
tura de estilistas famosos. Segundo o mesmo artigo, as peças criadas por profissionais
da moda “procuram levar a noção de estilo para além do que se veste, expandindo o con-
ceito que agrega moda e personalidade para os múltiplos espaços do viver, dentre eles a
casa, lugar ao mesmo tempo íntimo e social.” (Idem)

Parece-nos que essa última colocação a respeito da casa abre um outro campo para a
investigação: a tênue fronteira entre residência e local de trabalho, entre intimidade e
sociabilidade, fatores que, sem dúvida, determinam significativamente o modo de enca-
rar o enxoval, tanto do ponto de vista de sua composição quanto de sua função. Esses
e muitos outros aspectos estão à espera de quem se sinta estimulado a desenvolvê-los.

Nosso objetivo, conforme esboçado anteriormente, foi ampliar a leitura do enxoval da


noiva para além do território limitado do compromisso matrimonial como sonho femi-
nino. Se em algum momento tal enfoque romântico foi proposto, é preciso vasculhar
suas origens sociais e econômicas. Do mesmo modo, é preciso pensar o que nos leva a
realocar o enxoval para o lugar de consumo em que se encontra atualmente, bem como
reconhecer as iniciativas de recuperação e valorização das práticas e artes-manuais an-
cestrais. Tal estudo é fundamental para uma história do feminino e dos espaços domés-
ticos, relegados ao esquecimento histórico. Que o presente artigo bem como a bibliogra-
fia sugerida possam estimular novas pesquisas.

Referências Bibliográficas
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DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.
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MALTA, Marize. Paninhos, agulhas e pespontos: a arte de bordar o esquecimento na história.
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PINTO, D.; BARBOSA, R. C. A; MOTA, M. D. de B. Enxoval de Noiva e a Moda – Da Dá-
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euntoccodiclasse.blogspot.com.br/2012/03/storia-del-corredo-della-sposa.html
VERAS, Dalila Teles. Solidões da memória. São Paulo: Dobra Editorial e Alpharrabio Edi-
ções, 2015.

243
Arte têxtil em telas de
patchwork: Um catalisador
de sentidos e valores sociais
por Cristiane A. Fernandes Da Silva

RESUMO
O patchwork é uma produção têxtil alocada na fronteira entre a arte e o artesanato. Den-
tro do amplo espectro de objetos derivados dessa técnica, elegemos para esta pesquisa
as telas artísticas de patchwork. O problema principal ora apresentado busca entender as
razões que levaram a arte têxtil a ocupar um lugar menor no universo artístico, o que re-
quer a compreensão dos sentidos sociais, culturais e estéticos constitutivos do patchwork.
Suas artistas produtoras são, majoritariamente, mulheres, cujo espaço social retratado
nas peças utilitárias (conhecidas no Brasil como “retalho da vovó”), ancestrais das telas
artísticas, tem forte vínculo com o ambiente doméstico. Portanto, parece haver nessa seg-
mentação artística alguma relação com a noção de gênero e os seus sentidos na sociedade,
bem como o tipo de material utilizado (tecido), a técnica manual e o valor da arte. Propo-
mo-nos a desenvolver cada uma dessas categorias na sua trajetória histórica, com ênfase
para os EUA, onde o patchwork ocupa papel de proa, para compreendermos porque a
associação ao gênero feminino, ao espaço doméstico, às funções utilitárias e à baixa du-
rabilidade da matéria-prima definiram as possibilidades e os limites hoje ocupados pelas
telas de patchwork. Com vistas a aprofundar tais reflexões, apoiamo-nos em autores espe-
cializados no assunto, tanto em nível nacional quanto internacional. A abordagem meto-
dológica da pesquisa é de cunho qualitativo, com base na catalogação e análise de textos
e imagens, bem como em observações diretas em exposições em São Paulo, notadamente
na Brazil Patchwork Show, no período de 2015 a 2020.

PALAVRAS-CHAVE: Arte têxtil. Artesanato feminino.


Patchwork. Cultura material. Estudos de gênero.

244
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa apresenta como tema a análise dos sentidos culturais e sociais revelados
pelo patchwork, que consiste em uma produção têxtil cuja técnica está demarcada en-
tre a arte e o artesanato. Entre os diversos objetos produzidos por essa técnica, muitos
dos quais figuram aqueles de utilidade doméstica (como panos de cozinha e colchas),
elegemos, especificamente, as telas de patchwork, que não comportam em si sentidos
utilitários e sim estéticos. Conjugando técnicas artesanais e criatividade artística em sua
produção, tais telas permitem a fruição estética em sua circulação e consumo.

Na definição da portuguesa Gregório (2013) sobre patchwork, “A trapologia também


designada por costura de retalhos ‘(...) é uma arte da economia doméstica que consiste
no aproveitamento dos desperdícios dos tecidos coloridos para fazer sacas, tapetes e
mais recentemente painéis decorativos.’” (VICTOR et al., 1996, p. 197 apud GREGÓ-
RIO, 2013, p. 19). Embora produzido a partir do reaproveitamento de retalhos de teci-
dos, o patchwork detém complexidade em termos estético e técnico, incluindo saberes
práticos relativos à geometria.

O problema principal que norteia esta investigação consiste em buscar entender quais
são as razões que levaram a arte têxtil a ocupar um lugar menor no universo artístico.
Para isso, será preciso compreender os sentidos sociais, culturais e estéticos que per-
meiam o patchwork.

Com o intuito de subsidiar respostas provisórias para o problema deste estudo, levanta-
mos, preliminarmente, alguns atributos que caracterizam o objeto de análise. Majorita-
riamente, as artistas do patchwork são mulheres, cujo espaço social retratado nas peças
utilitárias (produzidas pelo trabalho artesanal mais conhecido no Brasil como “retalho
da vovó”), ancestrais das telas artísticas, tem forte vínculo com o ambiente doméstico.
Por conseguinte, parece existir nessa segmentação artística certa relação com a discus-
são de gênero e os seus significados sociais, assim como o material empregado (tecido),
a técnica de tipo manual e o valor social da arte.

A construção social definidora da esfera artística também perpassa pela diferenciação


e hierarquização entre arte e artesanato, sendo apenas aquela dotada de distinção e de

245
reconhecimento virtuoso. Do mesmo modo, é importante passar pelo crivo do sentido
social sobre estética e sua relação com as noções de função e crítica.

O universo artístico é constituído por ordenação hierárquica que revela o reconhecimen-


to social de certas áreas em detrimento de outras. A pintura de óleo sobre tela, a escultu-
ra, a arquitetura, o design gráfico ocupam o topo dessa pirâmide, enquanto a arte têxtil e
o artesanato estão em sua base. Quais são os motivos para esse arranjo?

Sabe-se que a representatividade feminina é subestimada nos espaços artísticos mais


consagrados, inclusive foi tema da retrospectiva do MASP (Museu de Arte de São Pau-
lo) com a “Guerrilla Girls – gráfica, 1985-2017”, um grupo de artistas ativistas americanas
que luta contra o sexismo e o racismo no meio artístico, chamando a atenção para a falta
de mulheres e negros em museus, galerias e premiações. O cartaz de divulgação da expo-
sição traz a denúncia da desigualdade de gênero e da objetificação do corpo feminino no
mundo artístico, com a seguinte frase: “Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição
são mulheres, mas 60% dos nus são femininos.” (SP - Arte Eventos Culturais, 2017)

Os artistas notabilizados advêm, essencialmente, das artes tradicionais plásticas ou be-


las-artes, enquanto que o artesanato artístico ainda não alcançou a sua chancela no rol
da produção artística e nem nos currículos escolares de ensino superior. Essa iniquidade
na divulgação da produção artística é revelada nos ambientes designados às exposições.
Dispomos de numerosos museus e galerias exclusivamente consagrados à exposição de
gravuras, pinturas, esculturas, mas são raros os espaços permanentes destinados à exibi-
ção de objetos da arte têxtil.

No caso da produção artística têxtil de telas em patchwork, objeto ora estudado, no Bra-
sil há apenas galerias de exposições itinerantes que ocupam espaço em feiras anuais,
nacionais e internacionais, com relevo para a “Contemporâneo – Exposição Internacio-
nal de Arte Têxtil”, integrada à Feira Patchwork Design, que ocorre no Rio de Janeiro
e em São Paulo e a exposição do Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting integrada à
Feira Brazil Patchwork Show, em São Paulo; enquanto nos EUA, por exemplo, há o The
National Quilt Museum; na Alemanha, em Dortmund, há o Patchwork Gild – Quilt und
Textilkunst, que dispõe inclusive de biblioteca com acervo de livros especializados.

246
A segregação social no universo artístico parece advir também das matérias-primas em-
pregadas. O tipo de material utilizado no objeto artístico impacta sobre o seu valor,
financeiro e simbólico. A tinta, o bronze, o mármore, a madeira são mais valorizados,
já a argila, o tecido, a fibra, menos duráveis temporalmente, são menos valorizados no
âmbito artístico. Simioni (2007) observa a pouca durabilidade do material têxtil se com-
parado a matérias-primas como a madeira, o mármore, o bronze, utilizadas nas artes
mais clássicas. Do ponto de vista histórico, a durabilidade do material empregado em
uma obra permite que seu autor se eternize ou pereça; nesse sentido, as artes têxteis
conduzem as artistas mais rapidamente ao esquecimento. Isso aconteceu com a própria
pintora e decoradora brasileira Regina Graz, estudada por Simioni. Apesar de ter sido
um ícone na arte têxtil e pioneira na tecelagem de tradição indígena, além de empregar o
estilo cubista e art déco em suas tapeçarias, seu nome foi se desmanchando à medida em
que seus tapetes e objetos decorativos foram se desgastando com o tempo.

Portanto, a contribuição deste trabalho reside em apresentar reflexões atinentes à arte


têxtil, tendo como linha de análise a sua trajetória histórica, notadamente nos EUA,
onde o patchwork ocupa lugar de relevo, para compreendermos as razões do seu vínculo
ao gênero feminino, ao âmbito doméstico, às funções utilitárias, bem como a baixa dura-
bilidade da matéria-prima, que, certamente, delineiam os sentidos sociais dessa arte em
tecido. Por se tratar de uma pesquisa em andamento, apresentaremos aqui, neste mo-
mento, apenas parcialmente a primeira parte atinente às reflexões teóricas em torno da
arte têxtil feminina e da cultura material, bem como algumas características mais gerais
das telas de patchwork catalogadas entre 2015 e 2020, sem entrar no mérito de analisar
em detalhes os seus conteúdos.

2 DESENVOLVIMENTO
No âmbito das Ciências Sociais no Brasil, em geral, a temática têxtil está circunscrita
às fábricas de tecidos e confecções têxteis e suas implicações no processo de trabalho,
sendo, praticamente, ausente nas publicações na Sociologia da Arte, cuja tônica se volta
para as artes mais consagradas, as chamadas belas-artes (artes plásticas) ou mesmo mú-
sica e cinema. As publicações que tratam do universo têxtil em seus aspectos artísticos
advêm, sobretudo, das Escolas de Artes, privilegiando os temas: moda, tapeçaria, tecela-
gem artesanal, padrão de estampa, história, mercado, meio ambiente e sustentabilidade.

247
Destarte, a proposta e a abordagem sociológica ora apresentadas detêm certa originali-
dade, especialmente por lançar seu foco sui generis nas telas de patchwork, uma categoria
têxtil localizada, paradoxalmente, entre a arte e o artesanato, que consiste em uma das
razões de esta pesquisa de pós-doutorado ser desenvolvida na Universidade de São Pau-
lo, sob a supervisão de Vânia Carneiro Carvalho, especificamente no Museu Paulista,
cujo foco se volta para a preservação da cultura material brasileira.

As telas de patchwork são expressões de aspectos constitutivos das culturas do nosso


país, materializados em imagens produzidas a partir de representações socioestéticas
de mulheres. Os estilos dessas telas se estendem do minimalista ao abstrato, abrangen-
do uma profusão em seu repertório pictórico, todavia, interessa-nos aqui tão somente
aquelas de tipo figurativo por representarem, em grande parte, objetos constitutivos
do ambiente da casa, entre os quais figuram a natureza-morta, incluindo utensílios do-
mésticos e alimentos regionais, bem como adornos, brincadeiras infantis e brinquedos
antigos, todos fortemente associados ao ser mulher na esfera privada. Nesse sentido, as
expressões materiais dessas telas facultam a vasta compreensão de aspectos atinentes à
condição feminina no universo artístico e artesanal.

Um dos interesses de formação de acervo no Museu Paulista é aquele referente à esfera


doméstica, por sua vez intrinsecamente ligada ao patchwork, cuja produção é realizada,
fundamentalmente, por mulheres, muitas das quais trabalham em suas próprias casas ou
em espaços anexos, revelando nas figuras que representam, em grande medida, aspectos
da cultura doméstica.

Em publicação sobre a cultura material e a domesticidade da cidade de São Paulo, no


final do século XIX e início do século XX, V. Carvalho (2008) retrata que, no conjunto
de atribuições culturais da mulher no ambiente doméstico, inclusive o brasileiro, esta-
vam as funções de zelar pelo conforto, tranquilidade, beleza e felicidade da casa. Fazendo
referência à revista Echo, de 1916, sobre uma professora francesa de artes aplicadas para
moças, Julia Archambeau, a autora, afirma que: “À dona de casa cabia a missão de ‘fazer
esquecer a velocidade do tempo que passa’, artifício executável pela ‘mulher artista.’” (AR-
CHAMBEAU, 1916, p. 284). Na visão de V. Carvalho (2008), o desgaste provocado
pela velocidade do tempo linear e quantitativo, supostamente impingido aos homens na

248
esfera pública e no ambiente de trabalho, seria compensado em casa pelo conforto psi-
cofísico da decoração realizada pela mulher a partir dos seus dotes nas artes decorativas.

Fazendo menção ao artigo de Plumet, L’art décoratif au salon, publicado em 1907, V.


Carvalho (2008, p. 294) identifica a clara cisão entre obra de arte, com distinção na assi-
natura do artista, e o chamado “bom gosto” associado ao talento feminino na decoração.
Nestes termos, a autora assevera: “Se a marca individual não floresce, o objeto decorati-
vo é lançado na vala comum dos trabalhos manuais femininos.”

Do ponto de vista político, vale refletir também sobre o impacto da função “reificante”
da mulher no lar. Ainda, segundo V. Carvalho, “As funções alienantes da decoração
são difundidas cotidianamente nos periódicos femininos que anseiam ensinar às mu-
lheres paulistanas, com truques e facilidades, as formas de embelezamento da casa”.
Assim, são criadas “as afinidades entre o espaço doméstico de fruição e a mulher. Ela
é mais apta para tal atividade, já que possui ‘o sentimento do bello’. Estabelece-se uma
identidade inata entre a estética doméstica e a mulher, baseada no instinto feminino.”
(CARVALHO, 2008, p. 292)

Dentro desse veio de pensamento sobre a função de “pacificação” da decoração domés-


tica, V. Carvalho expõe ainda que seu protocolo social é propiciar a “sensação artística”,
tendo como objetivo a busca da paz, não a da indagação e reflexão ativa, acarretando a
“perda da função educativa [e política] dos objetos na casa.” (CARVALHO, 2008, p.
294; p. 298 e p. 301). Isso explica, em grande medida, os motivos dos objetos decorativos
da casa guardar predileção pela representação da natureza, com destaque para folhas
e flores. Por meio do trabalho manual, tal repertório temático “insere a mulher nesse
universo simbólico que guarda raízes com um mundo telúrico, nostálgico, estável [...]
representado pela casa e serve de contrapeso à fluidez da experiência urbana.” (CARVA-
LHO, 2008, p. 78). Observamos que parece haver uma conexão muito clara entre as mo-
tivações da decoração doméstica produzida por mulheres e os patchworks cujas imagens
resgatam a vida no campo, tal como os objetos antigos de labuta da mulher e do homem.

Buchli (2010) enfatiza a esfera doméstica como um elemento fundamental para se en-
tender a condição humana, entre as quais estão: família, indivíduo, gênero, religião,
cosmologia, política, economia, público e privado, natureza e cultura; portanto, o locus

249
do poder. Para o autor, a esfera doméstica é uma invenção social, sendo dela derivada
também a violência doméstica no mundo euro-americano, onde as questões “da desi-
gualdade e da injustiça são percebidas, sustentadas e mascaradas.” (BUCHLI, 2010, p.
502). Estudos do pós-guerra identificam “a casa como lugar de opressão que impede a
emancipação das mulheres como sujeitos e cidadãs de sociedades industrializadas mo-
dernas.” (BUCHLI, 2010, p. 510)

Tomando de empréstimo um conceito de Bourdieu (1998), uma das formas de “violên-


cia simbólica” cometida no universo do patchwork artístico, a nosso ver, está presente
na recusa social em atribuir-lhe o estatuto de arte, o que se deve, em grande medida,
por ser originário de uma produção feminina e doméstica, cuja posição hierárquica na
sociedade é de subalternidade. Na perspectiva de Bourdieu (1998), “violência simbólica”
consiste na “dominação de uma classe sobre outra” por meio da imposição e mesmo da
inculcação arbitrária de “princípios de hierarquização” (Idem, p. 11-12). A arte está entre
os sistemas simbólicos que se colocam como instrumento de conhecimento e de comu-
nicação, logo detentora de “poder simbólico” sobre as práticas sociais, entre as quais
aquelas atinentes às relações de gênero.

Para contextualizar historicamente o patchwork, é importante destacar que a atual mo-


dalidade praticada no Brasil é originária dos Estados Unidos, onde constitui um patri-
mônio cultural que conta a história do país desde o seu processo de colonização inglesa,
cuja cultura conduzia as mulheres aos afazeres manuais com as agulhas como forma de
resguardá-las moralmente.

Provavelmente, o patchwork tenha sido introduzido no Brasil, em meados do século


XIX, no interior de São Paulo, na cidade de Americana, por famílias estadounidenses
produtoras de algodão e derrotadas na Guerra Civil Americana. Segundo Cavalieri
(2011, p. 25), essas “famílias fundaram a cidade de Americana e trouxeram para o Brasil
os primeiros quilts, e com elas a prática destas uniões [de tecidos].” Os imigrantes japo-
neses e alemães, segundo ele, também trouxeram a prática do quilt para o Brasil.

Embora originado do aproveitamento de tecidos com a técnica de “retalho da vovó” pela


prática de “pessoas de classes sociais menos favorecidas e da zona rural” (CAVALIERI,
2011, p. 25), que costuravam suas próprias roupas e utilizavam as sobras de tecidos na

250
produção de colchas, foi nos anos de 1990 que o patchwork tornou-se mais visível no Bra-
sil. Nesse período, mulheres da classe média, após viagens aos EUA, passaram a montar
ateliês e organizar feiras em nosso país, sendo a primeira feira de quilt e patchwork reali-
zada em 1996, no Rio Grande do Sul (CAVALIERI, 2011).

De acordo com M. Carvalho (2017, p. 89), os “trabalhos de agulha e das obras de gosto”,
no Brasil dos séculos XIX e XX, também se encontravam vinculados à representação
social sobre mulher e feminilidade, contribuindo na construção identitária de gênero e
na articulação entre condutas femininas e objetos do seu cotidiano, desaguando em uma
“síntese corpo-objeto-espaço.” (WARNIER apud CARVALHO, 2011, p. 448)

A configuração do lugar social do quilt, nos Estados Unidos, um equivalente do pat-


chwork, está bem demonstrada pela literatura. Nesse país, o trabalho de patchwork e
quilt detém “forte simbolismo (adquirido com a guerra civil)”, estando sempre “presente
em momentos emblemáticos americanos, muitas vezes utilizado em comemorações po-
líticas e sociais, como o centenário da independência americana em Filadélfia, em 1876,
reavivando o estilo colonial.” (GREGÓRIO, 2013, p. 41)

Por meio de estudos de caso com sociedades, associações e museus, Smith (2011) mostra o
alcance do artefato quilt (originariamente restrito às mantas e aos acolchoados de retalhos).
Inicialmente concebido apenas como utilitário doméstico, suas peças ganham espaço na
exibição em galerias de arte, museus de história, feiras estaduais e leilões filantrópicos.

Nos EUA, a exibição dos quilts não se resume a um passatempo ou mercadoria, mas
fomenta a cultura pública com debates sobre a sua utilidade, estética e sentidos de he-
rança cultural: “Os quilts são símbolos de afiliações religiosas, raciais, étnicas, de gênero,
regionais e estéticas.” (SMITH, 2011, p. 2)

A origem do quilt norte-americano remonta ao período da escravidão quando, nas fa-


zendas de plantações de algodão, explorava-se o trabalho das escravas para fiar, con-
feccionar roupas e produzir o quilt com as sobras dos retalhos, trabalhos preciosos em
um tempo em que tecido era algo caro e raro. Todavia, com o êxodo rural na década de
1920, as afro-americanas se mudaram para as cidades e foram trabalhar nas fábricas. Por
falta de tempo, elas abandonaram o quilt, que foi retomado décadas depois na velhice.

251
Conjectura-se que os padrões geométricos dos quilts nos Estados Unidos façam alusão
aos desenhos da cerâmica africana.

A historiadora Benberry (2000), uma das precursoras em pesquisa sobre o quilt afro-a-
mericano, mostra o importante legado dessa etnia para o patrimônio cultural dos Es-
tados Unidos, tomando as expressões reveladas no artefato quilt exposto no Old State
House Museum, em Arkansas, em uma coleção de mais de duzentas peças, datadas de
1890 até a atualidade.

Comunidades tradicionais afro-americanas, como Gee’s Bend (comunidade rural com


descendentes de escravos), no Alabama, ou de cristãos, como as menonitas (pertencentes
ao movimento anabatista da Reforma Protestante), em Goshen, Indiana, costuram suas
histórias em quilts. Seus padrões de costura, combinação de cores, textura e elementos
pictóricos simbolizam os valores e os acontecimentos vivenciados em suas comunidades
(SMITH, 2011). A autora ressalta que: “Em muitos casos, as mulheres usam quilts como
meio de participar de uma cultura pública dominada por homens. Elas criam esses obje-
tos generificados que manifestam fisicamente seus valores culturais e padrões estéticos e
preparam exibições que os promovem na arena pública.” (SMITH, 2011, p. 4)

Ao cenário público, a autora refere-se ao engajamento das mulheres em missões religio-


sas e bélicas como na Guerra Civil de Secessão e aos movimentos de reforma abolicio-
nista e o sufragista. O quilt revelou-se como “um veículo capaz de propiciar a socializa-
ção e politização das mulheres, um instrumento de luta contra a assimetria de gênero.”
(SMITH, 2011, p. 7)

Se, nas sociedades pré-industriais, o quilt teve função de incutir valores morais, promo-
ver formas de sociabilidade e o aproveitamento de material, servir de proteção contra
o frio e de fonte de renda, na sociedade industrial muitos desses sentidos se esboroam
diante de um mercado com ofertas mais diversificadas e acessíveis de prêt-à-porter e
outras oportunidades de geração de renda e de espaços coletivos para as mulheres.
Entretanto, o quilt contemporâneo foi reavivado entre as mulheres, inclusive as norte
-americanas, cujo país carrega a pecha de consumista, sobretudo de muitos produtos
prontos e industrializados. Intrigada com isso, Smith busca as razões do ressurgimen-
to desse artefato tradicional e manual.

252
A década de 1960 foi um momento importante de mudança nas formas de consumo dos
cidadãos norte-americanos. Os movimentos da contracultura associados aos assassina-
tos dos irmãos Kennedy e de Martin Luther King, à participação dos EUA na Guerra
do Vietnã, bem como à defesa dos direitos de gays, negros, mulheres e à formação das
comunidades hippies, levaram os norte-americanos a se voltarem nostalgicamente para
o passado, revalorizando habilidades presentes no artesanato, ao mesmo tempo em que
os produtos industrializados eram rejeitados (SMITH, 2011).

Atualmente, os EUA contam com um aparato complexo em torno do quilt: publicações,


corporações, mídia, exposições, conferências, diversas técnicas, tecnologia e uma variedade
colossal de insumos. A importância do segmento de produção de quilt nos EUA é represen-
tativa, ocupando 14% dos lares norte-americanos, segundo Smith (2011, p. 11). A produção
significativa, aliada ao potencial de cativação do produto junto às mulheres que o produzem
e o consomem, tem colocado esse país na dianteira do segmento. Embora a lógica capita-
lista tenha capturado esse artefato, não o esvaziou de seu sentido simbólico, que continua
ancorado na ressignificação da trajetória e da história de muitas de suas artistas-artesãs.

Nesse processo de circulação do quilt, um dos motivos de contenda entre as instituições


que o recebiam residia na natureza desse produto: arte ou artesanato, utilidade ou estéti-
ca? Foi o caso do Museu Nacional em Ciência e História Natural, cujo método de coleta
e exibição enfatizava os artefatos pela utilidade e não pelos sentidos estéticos ou artísticos.
Tal impasse pôde ser resolvido com a proposta de Fink: “Objetos originalmente estudados
como artefatos culturais nas coleções científicas poderiam ser vistos nessas exibições com
o mesmo senso de apreciação e prazer de obras de arte nas galerias de pintura.” (FINK,
2007, p. 160 apud Smith, 2011, p. 118). Isso porque as referências da modernidade, tanto em
sua abordagem teórica quanto em seus métodos expográficos e natureza artística, “corroe-
ram distinções entre definições contrastantes desses dois tipos de objetos.” (Idem)

Particularmente, penso que o caráter diádico do patchwork entre arte e artesanato lhe con-
fere mais riqueza de sentido por se colocar como artefato útil no ambiente doméstico e no
corpo das mulheres por meio de adornos, ao mesmo tempo com apelo estético de obra de
arte. Essa composição, certamente, o torna mais denso enquanto um objeto constituído
por representações polissêmicas da cultura material, facultando-nos tomá-lo como a mate-
rialização de acontecimentos, memórias e valores coletivos, aspectos que importam tanto
para um museu de artefatos (histórico ou antropológico) quanto para um museu de arte.

253
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O foco principal desta pesquisa consistiu em demonstrar que o patchwork está muito além
de uma técnica artesanal. Suas telas artísticas ultrapassam o sentido estético, atingindo
o âmago da própria sociedade ao servir de arena para se compreender sentidos consti-
tutivos das relações sociais nas quais ele é produzido. O patchwork sustenta-se como um
artefato artístico capaz de capturar e difundir valores existentes no âmbito social.

Bourdieu (1998) chama a atenção para a integração arte-artefato e o caráter eminentemente


social de ambos: “o objeto de arte é um artefacto cujo fundamento só pode ser achado num
artworld, quer dizer, num universo social que lhe confere o estatuto de candidato à apreciação
estética.” (BOURDIEU, 1998, p. 281). Nestes termos, a arte e o artefato, assim como a esfera
doméstica, são invenções sociais, logo multiculturais e com marcas de poder e de gênero.

O duplo aspecto da arte e do artesanato compondo, simultaneamente, a arte têxtil foi


explicitado na 18a edição da Patchwork Design, de 2018, pelo curador da Exposição In-
ternacional de Arte Têxtil “Contemporâneo”, Zeca Medeiros, com o seguinte texto de
abertura: “No Brasil, a Contemporâneo, em parceria com instituições brasileiras e es-
trangeiras, participa há 10 anos desse movimento, contribuindo para a dissolução da
dicotomia entre a arte e o artesanato, apostando na apresentação de obras em que o
caráter manual e a dimensão conceitual se entrelaçam.”

Além de não se restringir a uma composição exclusivamente artesanal, conjugando a


arte em seu sentido tanto estético quanto conceitual e crítico, as telas figurativas de pa-
tchwork brasileiro não se circunscrevem apenas ao ambiente doméstico, mas abrangem
os mais variados espaços sociais. Elas são poderosas expressões de diversos elementos
provenientes das culturas locais e regionais do Brasil, tais como: labor, festejos, religi-
ões, brincadeiras infantis, vida no campo, gastronomia, questão ambiental. Trata-se,
assim, de um gênero artístico têxtil travestido de sentidos socioantropológicos por ser
tributário de aspectos integrantes da sociedade brasileira.

As telas de patchwork constituem-se um meio icônico expressivo que comunica os va-


lores culturais cultivados no meio social no qual as artistas-artesãs estão inseridas e
propiciam, sem dúvida, a leitura da relação arte-sociedade e de críticas sociais emitidas
pela linguagem pictórica.

254
Na ótica de Adorno: “Toda obra de arte aspira por si mesma à identidade consigo [...]
As obras de arte são cópias do vivente empírico”, logo a “arte é, de [...] natureza social”.
(ADORNO, 1970, p. 15; p. 383-384). É corroborando com esse pensamento que esta
investigação se sustenta para abordar os sentidos socioculturais da arte têxtil represen-
tados em telas de patchwork, um produto social catalisador de significados construídos
a partir de normas e valores advindos das relações sociais, cuja composição provém do
universo artístico-artesanal e das artistas-artesãs.

Assim, o estudo em torno da produção artística têxtil em patchwork é pertinente e convi-


dativo por se tratar de um tema revelador de aspectos constitutivos da própria sociedade
e nem sempre manifesto de modo tangível nas relações sociais, a exemplo da segregação
artística de gênero perceptível na concessão de muito mais espaço de prestígio à produ-
ção e exposição artística masculina. Este é apenas um dos valores sociais cognoscíveis
via arte têxtil em patchwork, já que há diversos outros que fazem jus a estudos acadêmi-
cos, tais como: credos religiosos, festividades, ruralidade, meio ambiente, práticas ali-
mentares, terapia, equilíbrio, caos etc.

Muito embora vários desses temas já tenham sido trabalhados em nossa trajetória de
pesquisa acadêmica, ainda há muito a ser investigado, uma vez que, a cada exposição,
novas temáticas se desenham granjeando desafios para a análise de seus significados.

REFERÊNCIAS
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BENBERRY, Cuesta. A piece of my soul: quilt black Arkansas.EUA: Editora da


Universidade do Arizona, 2000.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BUCHLI, Victor. “Households and ‘Home Cultures’” In: HICKS, Dan; BEAU-
DRY, Mary C. Material culture studies. Nova York: Editora da Universidade de Ox-
ford, 2010, p. 502-517.

255
CARVALHO, Vânia C. Cultura material, espaço doméstico e musealização. Varia
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Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
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CAVALIERI, Marcia Maria. Patchwork: retalhos de técnica, memória, arte e artesa-


nato. 111 f. Dissertação (de Mestrado) – Programa de Patrimônio Cultural e Sociedade,
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GREGÓRIO, Paula Maria Fernandes. A exploração da técnica do patchwork no ves-


tuário feminino contemporâneo. 133 f. Mestrado (Design de Vestuário e Têxtil) – Uni-
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SP - Arte Eventos Culturais Ltda. As Guerrilla Girls chegam! Exposição no MASP


faz retrospectiva do coletivo feminista.2017. Disponível em: <https://www.sp-arte.com/
noticias/as-guerrilla-girls-chegaram-exposicao-no-masp-faz-retrospectiva-do-coletivo-fe-
minista/>. Acesso em: 10 jan. 2020.

256
Construindo memórias:
Revalorizando as artes-manuais
como aprendizado de afeto
nas relações intergeracionais
por Elaine Cristina Russo

RESUMO
O presente artigo parte de uma pesquisa interior das próprias memórias de infância, nas
quais as artes- manuais se faziam presentes nas relações e no ambiente familiar e afetivo,
com o objetivo de resgatar o processo de aprendizagem de diferentes fazeres e a impor-
tância deles no desenvolvimento pessoal até a atuação profissional como educadora infan-
til. Dada a riqueza dessas memórias, fez-se uma leitura da importância de não só transmi-
tir às crianças a arte do fazer em artes-manuais, mas também de revalorizar esse fazer com
os pais. Com base no relato de vivências experienciadas com pais de alunos em oficinas
nas quais aprendem e produzem artes-manuais diversas, paralelamente ao processo de
educação dos filhos e da rotina familiar, busca-se refletir se essa experiência afeta os filhos
na relação com os objetos produzidos e o brincar e, ao mesmo tempo, age positivamente
na construção de memórias das crianças.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias. Artes-Manuais. Construção de afetos. Oficina para


pais. Educação Infantil.

257
INTRODUÇÃO
Estou agora sentada em uma rede. A paisagem é serena e verde. Garoa. Do alto de uma
montanha, olho um vale e o som é das águas das cachoeiras que correm, do vento que
sopra, dos grilos, pássaros e cães ao longe... bem distante. O momento é de paz e o tempo
parece dormir. Mas em meus pensamentos esse tempo correu rápido demais para chegar
neste instante. Busco as memórias construídas nesse percurso.

Para de gotejar e o sol se abre. É tarde. Uma tarde que também se constrói. Recordo
meu primeiro tempo. Tempo de descobrir, do sonho, do encantamento, da pureza e do
atrevimento.

1 A CASA DA MINHA AVÓ


Minha avó foi uma mulher de fibra, do trabalho, da família. Mãe de oito filhos, fui a pri-
meira neta e morava numa casa construída no fundo daquele grande quintal, mas não saía
da dela, onde ela pariu todos os meus tios e as minhas tias.

À tarde, em momentos de descanso, após longa jornada de trabalho cuidando de todos,


ela se sentava em uma cadeira na sala e me ensinava a crochetar. Movendo aquela agulha
mágica, suas mãos faziam surgir lindos círculos e quadrados que ora se transformavam
em toalhinhas, ora em almofadinhas de bonecas ou em pequenas bolsinhas. Tudo bem
simples, mas, para mim, um encantamento.

Curiosa, aprendia a mágica das mãos e vibrava a cada ponto que conseguia fazer. Logo
estava criando roupinhas e adereços para minhas bonecas. Alcançado esse movimento,
sempre buscava outros desafios com agulhas de tricô ou costura. Não esqueço da calma
e da paciência da minha avó, que dedicava seu pouco tempo de descanso no fazer despro-
vido de interesse. Um fazer com prazer em ensinar, em partilhar o momento. Talvez fosse
sua maneira de deixar as preocupações e a correria do dia, mas, para mim, era o momento
da atenção e do trabalho e desejava transformar aqueles pontos em algo especial.

Uma vez minha avó dobrou um pano e amarrou aqui e ali, encheu, mexeu e eis que sur-
giu uma boneca feita de nós. Boneca estrela, na Pedagogia Waldorf, mas minha avó era
sábia em sua própria natureza e fez uma boneca de nós. Deu vida àquele pedaço de pano.

258
Minha relação com as bonecas de pano que encontrei durante toda a minha vida sempre
teve uma pitadinha da sabedoria dela.

Recordar esses fazeres me remete ao passado, e me lembro de detalhes saudosos: o cheiro


de café que minha avó havia preparado pouco antes; o vento que balançava a cortina; o
entardecer pela janela; o seu vestido até os joelhos; o gatinho que ficava na porta; o pro-
grama que passava na televisão; os tios chegando do trabalho; minha mãe me chamando
para o banho. Tudo acontecia ao redor das mãos da minha avó.

Me sinto acarinhada! Uma saudade que fortalece.

Mulher!
Exemplo de mulher.
Trabalho e delicadeza...
Mãos fortes que se movimentam o tempo todo.
Lavam, passam, cozinham, seguram, entregam, acariciam.
Mãos... Extensão de todo o corpo em movimento.
Esposa!
Que ama, espera, constrói, olha, sorri e chora.
Mãe!
Que recebe, alimenta, veste, embala, cria, ensina, ama, sorri e chora.
Avó!
Que cuida, ensina, brinca, ama, sorri e acaricia.
Mãos que acariciam.
Mulher guerreira que suporta a dor.
Perde o movimento, a visão
Mas mantém a delicadeza, o toque das mãos.
“Eu sei quem é”
Diz ao tocar.
“Estas são as suas mãos. É a minha neta.”

Vi uma nuvem se espalhando no céu.


Lá estava minha avó.
Grande e linda,
Com um sorriso sereno.
Minha avó! Mulher! Esposa! Mãe! Anjo!
2 A MÁQUINA DE COSTURA DA MINHA MÃE
Minha mãe trabalhava na máquina de costura. Fazia as suas roupas, as dos filhos... Outro
encantamento! Ficava eu a olhar tecidos criando formas. Asas de anjo! Em batas de cetim,
minha mãe fazia trajes de anjo que eu usava a cada ano de toda a primeira infância, percor-
rendo as ruas nas procissões. Lembro a correria com as tarefas de casa e depois, finalmen-
te, sentar-se junto à máquina de costura. O tic tic tic tic... O cheiro de tecido novo e o toque
de cetim na prova da roupa. As penas das asas voando enquanto eram presas na bata.

Queria descobrir como aquela máquina era conduzida por suas mãos e pelo pé movi-
mentando o pedal, mas ainda não era tempo... Minha mãe não deixava. Então, só me
restava pegar os retalhos de tecido que caíam no chão. Eu cortava, juntava, prendia,
amarrava... Cortava com as mãos, com tesoura e até com faca, o que me deixou uma
bela cicatriz no dedo indicador. Fui inventando... Amarrava aqui, costurava ali... Dava
meu jeito e aprendia vendo minha mãe.

No Natal, gostávamos de trocar presentes. A família era grande e eu queria dar presentes
para todo mundo, então inventava com os pedacinhos de pano e os restos de lã: uma bol-
sinha, uma bonequinha, um colar, uma toalhinha... E embrulhava cada feito com alegria.

Uma vez ganhei de presente de uma tia um corte de tecido. Queria um patinete, mas foi
um corte de tecido. Então, mergulhei naquele pano vendo minha mãe transformá-lo num
lindo macacão. Era o macacão da moda. Fiquei orgulhosa e feliz.

Minha mãe fazia parte do clube de mães na escola. Elas se reuniam e faziam trabalhos
1
manuais (bordados, panos de prato, casaquinhos de crochê, tricô etc.) que eram ven-
didos para arrecadar fundos. Me sentia importante e acreditava que aquelas mães eram
as melhores da escola.

Cresci e me atrevi a invadir a máquina de costura. Foram vários avanços. Fui apertan-
do... transformando... inventando... tanto que minha mãe não se importava mais que eu
a usasse e até me ajudava quando era preciso.

1 Trabalhos manuais: expressão frequentemente utilizada nas escolas para trabalhos realizados com linhas, agulhas
e tecidos.

260
Os fios costuravam os tecidos e os momentos da vida... Uma calça larga demais, um
vestido para uma festa, um presente para uma amiga, uma roupa para um casamento,
uma manta para o filho!

Tic tic tic tic... o pé no pedal...


O trilho.
A linha sobe e desce...
O trem.
As mãos conduzindo...
O maquinista.
Minha mãe escolhia os caminhos,
Eu escolhia os caminhos.
E o tic tic tic tic no trilho passando pelo tempo
Correu, correu...
A linha percorreu tantos tecidos,
Tantas histórias...
Que vestiram e acariciaram os caminhos.
Tecidos moldados,
Memórias construídas.

3 GUARDADOS QUE VIRAM TESOUROS


Sempre guardo em cestas, caixas e sacolas o que acho precioso: sobras de tecido, lã, fios,
pedacinhos de madeira, contas coloridas, fitas, caixinhas, enfim, tudo sobre o qual penso
“Um dia posso transformar em algo”.

Talvez essa mania eu tenha aprendido com duas tias (irmãs de minha mãe). Seus armá-
rios eram repletos de coisas: objetos, trabalhos a concluir, roupas coloridas, lenços, livros,
colares... Para mim, parecia mais um castelo com tesouros. Eu ajudava a arrumar cada
coisa em seu lugar e, muitas vezes, no fim, ganhava algo precioso que eu guardava.

Também preciosos eram os trabalhos manuais que elas faziam. Cada uma com sua habi-
lidade especial. Sempre havia uma invenção com fitas, rendas, retalhos, bordados... Eu
adorava aprender e ajudar.

261
Eu também me divertia na marcenaria de um tio que ficava no grande quintal da casa da
minha avó. Lá eu recolhia os pedaços de madeira e lixava, martelava, transformando os to-
cos em brinquedos. Com esses restos de madeira, construí o primeiro tear! E era lá, junto
à marcenaria, que eu fazia minhas pulseiras com linhas coloridas. E, depois, já num tear
maior, diferentes tecidos (foi assim que fiz um xale para minha avó). Lembro do cheiro da
madeira e de meus irmãos e tios passando de um lado para o outro enquanto eu tecia. De
tudo, guardava as sobras... talvez com a intenção de fazer algo um dia ou com o pensa-
mento inconsciente de guardar aquelas memórias.

Mais tarde, na juventude, em um curso de teatro infantil, no Teatro Vento Forte, desco-
bri a arte de transformar o fazer em poesia e encantamento. Lá vivenciava o meu corpo
e movimentos; construía vestes e adereços dando vida a personagens e bonecos. Tudo
era encantamento – e um simples pano florido podia ser qualquer coisa que eu quisesse.
Aprendi a dar forma e vida ao que era construído com as mãos. Tudo isso no mundo e
na fantasia da criança. O Teatro Vento Forte também era um grande castelo de tesouros
guardados e redescobertos a cada criação.

No meu caminho e em meus guardados, sempre tive um olhar especial de admiração e o


2
desejo de aprender e fazer tudo o que via em artes-manuais . A memória dos primeiros
fazeres e o afeto ali envolvido foram as sementes preciosas que recebi na primeira infância.
Foram o impulso que abriu minha sensibilidade para esse olhar. A realização de cada fei-
to, hoje, é o encontro com aquele primeiro tempo: tempo de descobrir, tempo do sonho,
do encantamento, da pureza e do atrevimento.

Memórias guardadas...

Mas as memórias não são apenas guardadas, elas vivem em nós dando inspiração para
construir as próximas memórias que virão. São afetos que tecem nossa história.

Se pudesse construir um castelo,


Seria ele todo enfeitado de risos.
No piso firme, bordaria lindas contas coloridas.

2 Artes-Manuais: com hífen porque nossa atuação reside nesse espaço entre arte e trabalho com o uso das mãos.

262
As janelas cobertas de rendas e as paredes de cetim,
Cada aposento guardaria um tesouro
Costurado com fios dourados para eu não perder.
Na grande mesa do salão haveria uma toalha de retalhos,
Cada parte de uma história que não tem mais fim.
As portas se abririam no voar das cortinas,
Todas floridas como um grande jardim.
O castelo teria vida e dentro dele o tempo
Misturaria o ontem, o hoje e o porvir.
Se pudesse construir um castelo,
Ele guardaria todo momento vivido
De cada afeto construído.
Ele teria a magia de abrir cada aposento, quando preciso,
E fazer reviver o tesouro escondido.

4 MÃOS QUE EDUCAM E AMAM


Meu caminho como educadora infantil passou por muitas vivências, encontros, desco-
bertas, reencontros. Buscava o que interiormente já tinha vivido quando criança. Que-
ria oferecer o que experimentara desde pequena: um ambiente para criar, fantasiar,
descobrir. Nesse caminho, estive em alguns momentos com a Pedagogia Waldorf, mas
não tinha uma relação teórica com ela, só me identificava com algo familiar – a boneca
de nós; as brincadeiras na terra e na água; os tecidos; as madeiras; os fios; as histórias...
E sabia o valor e a importância que tudo isso teve na minha vida. Talvez, como a minha
avó, eu tivesse uma sabedoria natural.

Enfim... após uma experiência maravilhosa no Teatro Vento Forte, onde estudei e trabalhei
como contadora de histórias e fazedora de bonecos, busquei com mais força uma forma de
atuar com as crianças de modo que elas pudessem criar e imaginar livremente. Foi assim,
nessa procura, que reencontrei a Pedagogia Waldorf. Agora, com um olhar mais maduro,
reconheci o caminho que desejava percorrer na educação com meus filhos e alunos.

Aprofundei-me no entendimento da grandeza da intenção ao oferecer à criança pequena


um ambiente propício para o brincar e o vivenciar, promovendo o livre desenvolvimento
da individualidade: “A Pedagogia Waldorf não é um sistema educacional, mas uma arte

263
com a qual se desperta o que há no Ser Humano. Não pretendo educar com a Pedago-
gia Waldorf, mas despertar. Em primeiro lugar, os professores devem ser despertados,
3
em seguida, os professores devem despertar as crianças e os jovens novamente.” (STEI-
NER, GA 217, parágrafo 36)

Estava encantada com a consciência de como poderia e deveria “despertar” nas crianças
o que eu mesma sentia como valores primordiais. Um “despertar” no sentido de buscar e
fazer acordar as forças adormecidas da própria individualidade. Exercendo essa função
como educadora infantil na Pedagogia Waldorf, eu me reencontrei com diferentes ati-
vidades artísticas e trabalhos práticos, possibilitando que as crianças aprendessem por
meio da imitação, das experiências de diversas impressões sensoriais e do movimento.
Promovendo, assim, o desenvolvimento saudável da imaginação e da criatividade.

Entre essas atividades artísticas, sempre senti com mais intensidade as artes-manuais: o
prazer em crochetar, tecer, tricotar, costurar ou bordar um brinquedo ou objeto ofereci-
do a alguém. Na prática, fui percebendo o quanto conseguia transmitir vida no trabalho
com as mãos. Era tão intensa minha relação com as artes-manuais ao confeccionar uma
boneca, um bichinho de crochê ou outro trabalho para as crianças que eu conseguia lhes
transmitir afeto e dedicação. Via e vejo como as crianças se relacionam de forma mais ínti-
ma e amorosa no brincar com tais objetos e como se encantam quando observam o fazer
ou quando, de alguma maneira, podem contribuir para esse fazer.

A semente plantada em mim na infância foi germinada com uma mensagem que não
se distancia mais das artes-manuais. O fazer embutido de sentimento envolve a matéria
transmitindo-lhe um valor especial: o objeto criado se torna uma fonte de memória, a
memória da sensação, do gesto amoroso e de todo o ambiente do entorno.

Quem disse que as mãos não falam?


Sorriem ou se calam...
Quem disse que as mãos não podem ensinar?
Os movimentos da terra, da água, do fogo e do ar.

3 STEINER, Rudolf. Forças espirituais de atuação na convivência entre a antiga e a nova geração. Curso pedagó-
gico para os jovens. Suttgart, 3-15 out. 1922. GA 217. [Causas espirituais do conflito entre as gerações. Trad. Rudolf
Lanz. São Paulo: Editora Antroposófica, 1985.]. Parágrafo 36.

264
As mãos no fazer ganham vida,
Formam vida,
Constroem arte.
Mãos que tecem,
Mãos que unem,
Mãos que criam.
Vejo mãos a trabalhar... com fios, panos, tiras, sonhos.
O gesto do fazer traz segurança,
Mostra firmeza,
Abre possibilidades...
Mãos que falam, sorriem e calam.
Os olhos entendem os gestos,
Observam os movimentos e as formas que as mãos criam.
“Quero fazer também!”
Diz a criança que percebe o sonho.
As mãos ensinam...
Ensinam que podem criar.
As mãos amam...
Amam o ato de ensinar.

5 A CRIANÇA DE CASA PARA A ESCOLA


Chego cedo na escola, preparo a sala e aguardo. Para ir até a sala do jardim de infância,
as crianças precisam subir uma escada. Escuto as vozinhas acompanhando os passos
nos degraus.

“Bom dia!”
Às vezes não recebo resposta.
Procuro nos olhos de cada criança o nosso encontro e a despedida de seus pais.
Elas entram e já iniciam o brincar.

Observando cada uma delas, imagino como passaram seu tempo antes de chegarem.
Algumas ainda parecem adormecidas nos sonhos e vão despertando aos poucos. Ou-
tras parecem que nem dormiram e estão agitadas. Em algumas, a fala descansa; em
outras, a fala não cansa.

265
Os brinquedos, muitos deles construídos manualmente, são os mesmos para todos e es-
tão cada qual em seu lugar. Cada criança, porém, tem um gesto diferente ao tocá-los para
brincar. Uma criança, ao passar próxima à casinha de bonecas, vê um pano rendado no
chão: pega-o delicadamente, coloca-o sobre a mesa e o estica como se estivesse arruman-
do uma linda toalha que recebe um vaso de flores.

Ponho uma cesta com novelos de lã sobre a grande mesa e logo surgem olhares curiosos:
“O que vai fazer?” “Posso ajudar?”. Assim, os pequenos me ajudam a enrolar novelos en-
quanto os maiores já tecem em seus teares.

Nos bercinhos, as bonecas, feitas de pano, estão dormindo e tem quem cuide delas com
carinho, cobrindo-as com uma manta de tricô. A cada criança que chega, o cenário se mo-
difica. Os brinquedos ganham diferentes lugares e olhares. Algumas crianças não pegam
o pano do chão, elas passam por cima, esbarram nas bonecas e correm imitando algo que
nem elas sabem direito o que é.

A relação que a criança tem com os brinquedos e objetos construídos manualmente apre-
senta-se de modo diferente de uma para outra. Pergunto: “O que aproxima a criança de
algo feito com as mãos?”

Escuto as conversas... Falam do desenho visto na televisão, do passeio com os pais, do


presente da avó, da casa de qual amigo irão passear... São assuntos diversos, com vários
acontecimentos. E, de repente, uma criança diz: “Minha mãe está fazendo uma boneca
pra mim, ela já costurou sua roupinha!”. Seus olhos brilham com satisfação e orgulho.
As vivências e rotinas em casa se diferenciam bastante entre as crianças. Enquanto uma
tem a mãe que faz para ela um brinquedo com agulha e tecido, outra vê os pais somente
à noite ou pela manhã, e quando chega o fim de semana são tantos os compromissos a
cumprir que não existe o tempo de parar.

A rotina que vários dos meus alunos têm, muitas vezes, lhes roubam a possibilidade
de vivenciar os gestos do fazer algo de forma calma e concentrada. Na correria do dia
a dia, a dinâmica familiar procura os fazeres mais práticos para que a vida profissional
dos adultos possa ser conciliada com a rotina de um ou mais filhos. E, quase sempre,
além da escola, esses pais contam com ajudantes, familiares ou amigos. As atividades,

266
os brinquedos e as brincadeiras depois da escola são diversas: aulas de esportes, casa
dos amigos, televisão... Para muitas famílias, o momento de pausa também é a hora do
descanso, quando todos já querem e precisam repousar.

Muitas destas crianças chegam na escola e se abrem para novas possibilidades. Elas ob-
servam e vivenciam novos gestos e fazeres que as professoras lhes oferecem, como as ar-
tes- manuais, conforme me proponho a deixar evidente neste artigo. Percebo que quando
se faz na escola um trabalho manual com ou para as crianças e, em casa, ele também é
vivenciado com a mãe ou outro familiar, a relação da criança com esse fazer ou brincar é
mais intensa e a envolve toda – como que reconhecendo e refazendo um afeto.

Penso no que a criança diz com satisfação e orgulho: “Minha mãe está fazendo uma
boneca pra mim!”. Recordo os sentimentos que tive na infância e a riqueza do afeto
construído naquele momento de pausa, quando só existe o gesto do fazer, a concentra-
ção nos movimentos, a delicadeza e a superação para alcançar o desejado... Tudo isso
realizado com carinho e dedicação.

A cada momento que a criança vive nesta primeira infância, abrem-se portas para o
pleno desenvolvimento de sua individualidade. Penso, então, como se faz importante
que as vivências tenham harmonia: que a escola seja uma extensão de casa e a casa uma
extensão da escola.

Resgatar o fazer vivo no cotidiano da casa, de forma que o trabalho com as mãos ganhe
um tempo e as artes-manuais se tornem presentes, amplia os momentos de afetos que,
certamente, acompanharão cada criança em seu desenvolvimento.

6 ARTE-MANUAL – SABEDORIA HERDADA E PERDIDA


Eu cresci ainda em um tempo em que a arte-manual era realizada no dia a dia, de forma na-
tural, principalmente pelas mulheres. Mesmo aquelas que “trabalhavam fora” encontravam
um momento em que a costura, o crochê, o tricô, o bordado, a tecelagem pudessem ser reali-
zadas. Ainda aprendiam com as mães, avós, tias. A arte-manual era uma sabedoria herdada,
ensinada de geração para geração. Muitas roupas, brinquedos, adereços e acessórios para
casa eram feitos manualmente. As crianças, então, tinham a bênção de admirar esses fazeres.

267
Mas, com o crescimento da industrialização e do comércio no mundo contemporâneo,
muitas transformações foram acontecendo na relação com o trabalho, assim como com o
próprio tempo e os valores na dinâmica familiar. As gerações mais recentes de mães e pais
procuram, cada vez mais, uma vida prática que lhes permita dividir o tempo preenchido
por tantas tarefas e responsabilidades. Assim, o consumo e o descarte ocorrem de forma
prática, rápida. Por que pensar em fazer roupas, acessórios pessoais, objetos de decora-
ção para casa ou brinquedos para os filhos, se há tanta oferta no mercado? Comprar é
muito mais eficiente no mundo moderno.

Dessa forma, a sabedoria em artes-manuais, que era aprendida naturalmente, foi per-
dendo espaço nas famílias atuais. Mesmo entre as poucas filhas e netas que ainda têm o
privilégio de ter avós ou bisas sábias em artes-manuais, raras são as que têm tempo ou
interesse em dar uma pausa no agito do dia para aprender o que aqueles muitos anos
vividos podem ainda oferecer.

A criança pequena entende o mundo imitando o que está ao seu redor. “Podemos afir-
4
mar: a criança é, até a segunda dentição, essencialmente guiada pela imitação [...]” . Cada
gesto que ela pode observar e vivenciar a envolve e atua em sua formação. Os gestos em
artes-manuais são definidos, plenos, condutores. Independentemente de qual técnica está
sendo adotada para chegar à meta de finalizar o trabalho, é necessário haver dedicação
– com envolvimento, paciência, direcionamento, firmeza, além de várias qualidades que
serão expressas de forma diferente em cada pessoa, mas que conduzem para o caminho
de uma construção. E quando o trabalho está sendo oferecido para alguém ou com um
objetivo especial, o gesto ainda tem o segredo mais precioso da receita: amor.

Não vivenciar esses gestos em casa, como acontecia em tempos passados, é uma grande
perda para as crianças, que estão aprendendo com a imitação tanto do movimento como
do gesto interno, que atua na formação de valores. Por isso, é preciso recuperar essa sa-
bedoria perdida, criar no tempo de cada família um espaço que permita resgatar esses
valorosos gestos trazidos pelas artes-manuais. Reaprender, que seja, com as avós, mas

4 STEINER, Rudolf. Os primeiros anos da infância – Material de estudo dos jardins de infância Waldorf. 1.ed. São
Paulo: Antroposófica, 2006, p. 24.

268
quem sabe com os pais, amigos, mestres... Tornar vivo novamente esse fazer para que as
crianças de hoje tenham chance de, como nos tempos passados, herdar essa sabedoria.

7 OFICINAS COM OS PAIS – DIFICULDADES E SUPERAÇÕES


Quando eu era pequena, o clube de mães da minha escola foi a primeira experiência de
percepção de como tais reuniões eram importantes. Eu me sentia muito feliz em ver mi-
nha mãe fazendo tantas coisas lindas junto com outras mães. Ficava orgulhosa quando
eu a via concluindo algo que ainda não havia terminado naqueles encontros: era como
se ela fizesse parte da escola e a escola estivesse também inserida em casa. Meu interesse
e minha admiração cresciam em cada arte realizada. E quando aconteciam os bazares e
alguém elogiava ou comprava os seus trabalhos, a satisfação era plena.

Quando os meus filhos entraram no jardim de infância de uma Escola Waldorf, era a
minha vez de participar dos encontros com outras mães: nós criávamos brinquedos
para as crianças usarem na sala e também para serem vendidos no bazar. Nos reuní-
amos na escola ou na casa de alguma família para juntas aprender e ensinar diferen-
tes técnicas em artes-manuais. Fazíamos tiaras e véus de fadas, coroas de príncipes e
princesas, capas, bonecas... Percebi, também nessa época, como era importante para
os meus filhos vivenciarem esses fazeres. Eles brincavam na escola e em casa com os
mesmos brinquedos – e eles tinham um valor em relação a esses brinquedos muito dife-
rente do valor dos comprados nas lojas. Eram brinquedos e peças que mostravam um
processo de construção e tinham uma energia amorosa insubstituível.

Hoje, com meus filhos já jovens, às vezes levo para a escola alguns desses brinquedos e
fantasias, e meus alunos cuidam de tudo de forma preciosa quando eu falo: “Esta capa
eu fiz para minha filha quando ela era pequena como vocês. Ela brincava na escola com
isso!”. E minha filha me diz com um olhar de saudade e ciúmes: “Não vá esquecer que
estes brinquedos ainda são meus!”

Trazendo nas memórias a importância desses encontros e dessas aprendizagens, tanto


para os pais como para as crianças, não tive dúvida de como era necessário, como pro-
fessora, proporcionar essas vivências às famílias de meus alunos. Assim, há quinze anos
trabalhando em Escolas Waldorf, venho desenvolvendo com as famílias alguns encon-

269
tros nos quais fazemos diferentes trabalhos em artes-manuais. A cada ano, o grupo de
famílias forma uma constelação com qualidades e conhecimentos únicos. Sempre há
pessoas que nunca pegaram em uma agulha de costura ou que não sabem como se faz
crochê e tricô. Mas também existe ainda quem saiba fazer muita arte.

Nesses encontros, a intenção é que um aprenda com o outro e que, ao mesmo tempo,
nessa troca, descubra suas facilidades e possibilidades. O fazer sempre está voltado para
a criança, pensando no material e no brinquedo adequado.

Todo ano, quando é lançada a proposta, escuto frases das mais diversas: “Ah... lá vem
trabalho!”; “Crochê? Eu não sei.”; “Depende do horário...” ; “Meu tempo é curto.”; “Será
que eu consigo?”; “Oba! Eu quero aprender.”; “Podemos fazer os encontros lá em casa...”.

Aos poucos, vamos construindo a ideia de que é possível aprender e fazer algo juntos.
O primeiro encontro também é diferente em cada grupo e, muitas vezes, a presença dos
pais depende de uma propaganda inicial.

Uma vez, fiz esse primeiro encontro da turma na casa de uma das crianças da escola, no fim de
semana, num almoço com as famílias. Assim, mães e pais estiveram presentes. Juntos, lavamos
a lã tosquiada de carneiro e a colocamos ao sol para secar (Na casa havia alguns cachorros
e eles ficaram maluquinhos com o cheiro da lã, foi até preciso prendê-los no canil). Depois,
com outra parte de lã já lavada, fizemos o esguedelhamento e deixamos a lã pronta para ser
usada como enchimento de cabecinhas de bonecas. Feitas as cabeças, agora faltava terminar
as bonecas em outros encontros. Não era possível abandonar aquelas cabecinhas. Então veio
o desafio da costura para formar corpinhos, cabelos, vestes. Essa parte fica quase sempre para
as mães. Poucos pais se permitem a essas tarefas, embora eu já tenha visto pai que costura
muito bem. Um deles era médico-cirurgião e seus pontos na boneca eram perfeitos!

Fazer uma boneca envolve diversos sentimentos. Muitos processos acontecem no interior de
cada pessoa, é uma gestação. As mães se apegam aos bebês nascidos e há muito afeto envolvi-
5
do nesse fazer: “Quando a boneca está montada, podemos ver qual ‘criança’ quer nascer ali.”

5 SCHEVEN, Karin Evelyn. Minha querida boneca: uma orientação para pais, professores e educadores. São Paulo:
Editora Antroposófica, 1991, p. 57.

270
Já ensinei e aprendi bastante nessas oficinas. Fizemos bonecas, marionetes para usar
em contos de fadas, bonecos de mesa, jogos em tecidos, bichinhos de feltro ou crochê,
presépios, cavalinhos de pano, anõezinhos, dedoches... Tantos brinquedos... Muitos
estão na sala até hoje.

Em 2018, fiz com as famílias de uma turma alguns bichinhos de crochê para uma fazen-
dinha. Foi um desafio para as mães que precisaram aprender a fazer crochê e depois
ainda formar e costurá-los. Para preparar o início desse trabalho, na época da come-
moração do Dia das Mães, fiz com as crianças pequenas bolsinhas em tecido bordado.
E assim cada mãe ganhou uma agulha de crochê e uma pequena tesoura. As crianças
sabiam que suas mães usariam depois aquelas agulhas. Assim, elas dificilmente se ne-
gariam a participar das oficinas.

Eram muitas as dificuldades pessoais e nem todas conseguiam comparecer nos encon-
tros, mas a energia envolvida nessa tarefa era tão forte que todas participaram de alguma
maneira. Quem não conseguia ir aos encontros aprendia em outros dias com outras mães.
Quem não conseguia aprender a fazer crochê, costurava os corpos e quem tinha facili-
dade com o crochê produzia os moldes. Um pai que queria ajudar, mas não conseguia
costurar, fez todas as cabecinhas dos fazendeiros.

Todo o processo foi um aprendizado de cooperação e de olhar para o outro, de insistên-


cia e, principalmente, de resgate das famílias – pois várias mães, assim como eu, pediram
ajuda às suas mães, tias, amigas, avós... as quais também se envolveram fazendo o que
sabiam. Muitos talentos foram assim (re)descobertos.

Enquanto isso, quando estava entre as crianças, eu também crochetava para ajudar na
produção coletiva. E elas sempre queriam ver e perguntavam qual bichinho eu estava
fazendo para depois contar os que as mães estavam fazendo em casa. Com as fazendi-
nhas já prontas, uma criança brincando na sala contava para a outra como sua avó havia
feito a roupa da fazendeira.

Algumas mães relataram como foi importante esse processo e a relação que tiveram com
suas famílias nesse fazer. Contaram que depois de um dia cansativo era muito bom sentar

271
e fazer os bichinhos, e que seus filhos se encantavam em vê-las envolvidas nessa produ-
ção. Mesmo com dificuldade para encontrar um tempo em que pudessem parar todas
as outras tarefas do dia e, apesar de dificuldades também com a técnica proposta, elas
narraram como valeu a pena permitir essa construção.

Em cada técnica adotada, existe um longo processo de percepção, revalorização, desco-


berta, superação. Desde olhar para o material que será utilizado e experimentar como a
matéria pode ser transformada até perceber como acontece a relação com esses objetos e
essa matéria (agulhas, tecidos, fios etc.). É um desafio inserir na matéria um gesto próprio
e particular. Cada pessoa encontra sua maneira de manusear a agulha, de segurar o tecido,
de fazer o movimento e, assim, vencendo as dificuldades, fazer surgir algo nesse processo.

Nas oficinas, percebo que o estímulo mais forte que impulsiona a participação dos pais
é o amor pelos filhos. Saber que será construído algo que as crianças vivem tanto du-
rante o processo de criação como depois no brincar. Esse motivo gera forças, encontra
tempo, forma espaço e acontece.

É tamanha a riqueza de gesto interno que não é possível olhar para a matéria pronta e
não ver nela afeto e dedicação.

A relação que acontece entre as mães e os pais gera uma intimidade na qual se revelam,
de forma transparente, as fragilidades e as dificuldades, as frustrações, a ansiedade e a
impaciência, porém com uma grande vontade de superação.

São muitos afetos que surgem nesses processos de oficinas com os pais: de cada um con-
sigo mesmo, de cada um com o outro no grupo e, principalmente, de cada um com seus
filhos. De certa forma, são eles os responsáveis por esses adultos vivenciarem tais fazeres.

O fazer da arte-manual está totalmente abraçado por afetos. E são essas memórias de
afetos, tanto para os pais como para os filhos, o melhor resultado da produção. São as
memórias de afetos que ficam na alma de cada criança, que levará para a vida um tesouro
que poderá ser herdado também pelos seus futuros filhos.

272
Considerações Finais
Agora, volto à pergunta: “O que aproxima a criança de algo feito com as mãos?”

Pensando nas artes-manuais, lembro-me dos gestos observados ao admirar um fazer.


O trabalho com fios é muito mais intenso do que simplesmente um trabalho manual. O
fio nos une ao que somos, nos torna transparentes, pois o fio que conduzimos constrói
algo, além de construir um caminho interno. Ele nos mostra nossas fragilidades, onde
somos mais rígidos conosco e onde conseguimos respirar, como resolvemos os proble-
mas que surgem, se abandonamos o trabalho por impaciência de não saber lidar com
as dificuldades ou se insistimos e vencemos os obstáculos – ora pedindo humildemente
ajuda, ora aprendendo com o outro, ora vibrando de alegria ao conseguir concluir. O
fio é um caminho que nos une às nossas próprias emoções. A arte-manual é arte não
somente do fazer, mas a arte de nos fazermos.

Todas essas emoções que vivemos a criança percebe. Ela ainda não compreende concei-
tos e a complexidade de sentimentos dos adultos, mas percebe os gestos verdadeiros e
os movimentos que constroem tanto algo material como algo interno. A criança percebe
o gesto da vontade e os sentimentos que permeiam o fazer. Ela percebe, no brinquedo
construído, o valor além da matéria.

A vida evolui, ganha novas formas, transforma hábitos e muitas coisas boas acontecem no
caminho, mas, nessa evolução, não podemos deixar que se percam gestos que construam
afetos. A arte-manual, sem dúvida, é insubstituível no trabalho e no convívio com a criança.

Assim, é importante reconstruir esse caminho – resgatando e revalorizando as artes- ma-


nuais no ambiente familiar e abrindo novamente os olhares para esses gestos.

REFERÊNCIAS
SCHEVEN, Karin Evelyn. Minha querida boneca: uma orientação para pais, profes-
sores e educadores. São Paulo: Editora Antroposófica, 1991.

273
STEINER, Rudolf. Forças espirituais de atuação na convivência entre a antiga e a
nova geração: curso pedagógico para os jovens. Suttgart, 3-15 out. 1922. GA 217. [Causas
espirituais do conflito entre as gerações]. Trad. Rudolf Lanz. São Paulo: Editora Antro-
posófica, 1985.

STEINER, Rudolf. Os primeiros anos da infância – Material de estudo dos jardins de


infância Waldorf. 1.ed. São Paulo: Antroposófica, 2006.

BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

IGNÁCIO, Renate Keller. Criança querida: O dia a dia das creches e jardim de infân-
cia. São Paulo: Editora Antroposófica, 1995.

KORCZAK, Janusz. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Círculo do Livro,
1990. SENNETT, Richard. O artífice. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

SCHEVEN, Karin Evelyn. Minha querida boneca: uma orientação para pais, profes-
sores e educadores. São Paulo: Editora Antroposófica, 1991.

STEINER, Rudolf. Forças espirituais de atuação na convivência entre a antiga e a


nova geração: curso pedagógico para os jovens. Suttgart, 3-15 out. 1922. GA 217. [Cau-
sas espirituais do conflito entre as gerações]. Trad. Rudolf Lanz. São Paulo: Editora
Antroposófica, 1985.

STEINER, Rudolf. Os primeiros anos da infância – Material de estudo dos jardins de


infância Waldorf. 1.ed. São Paulo: Editora Antroposófica, 2006.

STEINER, Rudolf. A arte da educação – I. O estudo geral do homem: uma base para
a pedagogia. 2.ed. São Paulo: Editora Antroposófica, 1995.

274
Notas sobre a renda sol na
América e apontamentos
para a sua história no Brasil
por Elizabeth Horta Correa

RESUMO
Nhanduti ou Renda Tenerife é uma renda artesanal de agulha da família dos Soles ou
Renda Sol, cuja principal característica é ser tecida sobre um urdimento radial. Da Es-
panha, ela se espalhou pelo mundo, tendo tido ocorrência mais significativa na Améri-
ca, onde atingiu os três continentes, adquirindo características próprias em cada região
em que se aculturou. Embora tenha conformado tecelagens diferentes entre si, não foi
estudada nem descrita com profundidade, sendo seus diversos formatos tratados, cons-
tantemente, como uma única técnica de renda. Os termos que a denominam são usados
com grande desenvoltura, indistintamente, dando azo a equívocos, dificultando con-
sultas a estudos e acessos a arquivos e acervos, o que acaba por relegar a técnica a uma
espécie de limbo. O texto pretende começar a fazer essa diferenciação, baseado em uma
pesquisa informal da autora, que teve início em 2004/2005. Aponta os nomes utilizados
nas várias localidades das Américas em que são encontradas, assim como os modos de
tecer ali praticados. Faz uma breve descrição das suas características, apontando as di-
ferenças entre elas. Quase totalmente esquecida no início dos anos 2000, a técnica vive
um suave reflorescimento por iniciativa de aficionados pela arte que apresentam hoje
uma produção diferenciada.

PALAVRAS-CHAVE: Renda artesanal. Rendas de


Trama Radial. Soles Nhanduti. Renda Tenerife.

275
1 INTRODUÇÃO 1
A Renda Sol ou Soles , denominação da família das rendas de agulha que são tecidas
sobre um urdimento radial, é encontrada em diversas partes do mundo, mas sua maior
incidência ocorreu nos três continentes da América, para onde foi levada pelos coloniza-
dores, adquirindo características próprias em cada uma das regiões em que se aculturou.
Tornou-se um elemento de ligação entre sociedades e culturas diversas do Novo Mundo,
havendo, inclusive, estudiosos que entendem ser ela a renda americana por excelência.

Pode-se apontar hoje a incidência dos Soles no sul dos Estados Unidos, na Louisiana; na
região caribenha, em Cuba, nas cidades de Trinidad e Sancti Spíritus; e, em Porto Rico,
especificamente em Naranjito e Moca. Na América Latina, na Venezuela, onde a cidade de
Maracaibo abriga os Soles de Maracaibo; no Paraguai, Itauguá é o berço da tecelagem e,
na Argentina, na Mesopotâmia Argentina. No Brasil, a técnica está pulverizada por todo
o país, mas, como atividade longeva e diferenciada, concentra-se nas regiões mais ao Sul.

Há informações da existência, no passado, da Renda Soles no Texas e Novo México,


nos Estados Unidos, assim como no México, na Bolívia, no Peru e no Uruguai, mas
não se pôde encontrar comprovação da atividade nesses lugares nos dias de hoje. A
técnica encontra-se em vias de esquecimento e, nos locais em que subsiste, isso se deve
ou a um programa de política pública ou a uma iniciativa de aficionados pela arte. A
exceção é o Paraguai, onde a renda lá chamada Ñanduti é um símbolo nacional, um
produto turístico e uma atividade que tem relevância econômica.

Os Soles aparecem na literatura sobre a história da renda, assim como em enciclopédias


e manuais de trabalhos femininos, desde meados do século XIX, sendo que no início
dos anos 1900 estiveram na moda e no circuito comercial da Europa e dos Estados
Unidos. Fala-se de Renda Sol, de Teia de Aranha, de Renda Tenerife, Renda do Para-
guai e Nansouty, Ñanduti e Nhanduti. E, ainda, de Polka Spider Web, Brazilian Point Lace,
Bolivian Lace, Taoro Lace e Wheels.

1 A autora optou pela utilização do nome em espanhol para algumas técnicas, tais como Soles e Ñanduti, face ao uso
corrente dos termos. Ao padronizar, acredita-se que facilite a inteligibilidade.

276
Os diversos nomes são utilizados com desenvoltura e, muitas vezes, suscitando equívocos.
2
Sanjurjo (2008) relata essa falta de regra na denominação também em exposições e cole-
ções de museus. Note-se que no Centro Têxtil Antonio Ratti, do MET (Metropolitan Mu-
seum of Art), de Nova York, muitos dos Soles, inclusive peças históricas dos séculos XVI e
3
XVII da Espanha, estão catalogados sob a pouco representativa rubrica net embroidery .

O nome de origem guarani Ñanduti tem grande pregnância e é muito disseminado,


até porque seu sentido (“branco da aranha”) se adequa perfeitamente à técnica cujo
urdimento radial é semelhante a uma teia de aranha. As outras denominações mais
recorrentes são Renda Tenerife, que indica a suposta origem da tecelagem, e o termo
Soles, usado tanto no sentido genérico como para se referir a Soles determinados. Muito
comum é não ser feita qualquer distinção entre as rendas de urdimento radial, embora
tenham características distintas entre si.

O fato é que a Renda Sol ou Soles é uma categoria cujo estudo não foi aprofundado,
nem suas variações, descritas. Por não estarem individualizadas, são tratadas como se
fossem uma única renda. Este texto pretende começar a fazer essa descrição, funda-
mentando-se em uma pesquisa informal iniciada no Brasil nos anos 2004/2005, que,
oportunamente, se estendeu ao Paraguai, à Venezuela, à Colômbia, à Espanha e retor-
nou ao país para recolher a produção brasileira do século XX.

2 DENOMINAÇÕES
O procedimento para tecer as Rosetas ou Rosas Canárias, nome da renda de urdimento
radial das Ilhas Canárias, é o mais difundido nas Américas. O arquipélago espanhol é
tido, pela maior parte da investigação feita até aqui, como local de origem da renda no
4
Novo Continente , e o termo Tenerife, que identificaria essa procedência, é uma das de-
nominações mais utilizadas nos outros países. Note-se que nas Ilhas Canárias não existe
“Renda Tenerife”. Nos países de língua inglesa, usa-se a versão traduzida da expressão,
ou seja, Teneriffe Lace, com “f ” duplo, que convive com o termo Sol Lace ou Sun Lace.

2 SANJURJO, Annick. Ñanduti, encaje paraguayo. 2. ed. Asunción: Arandurã Editorial, 2008.
3 Observação da autora durante visita realizada em 2018.
4 Investigadores do Museo y Centro Didáctico del Encaje de Castilla y León, instituição que estuda os Soles dos
séculos XVI e XVII, técnicas ancestrais dessas rendas, destoam da afirmação.

277
Nos países de língua espanhola, a versão Encaje (de) Tenerife convive com o termo Sol ou
Soles, que, além de denominar essa família de rendas de urdimento radial, quando acompa-
nhado do nome de uma localidade, denota tecelagens específicas. Isso se dá com os Soles
de Maracaibo, a renda tradicional da cidade venezuelana, ou com os Soles de Naranjito,
técnica do municipio de mesmo nome em Porto Rico. Detectou-se, também, que o termo
Soles de Maracaibo é utilizado no norte da América Latina e no Caribe para nomear essa
família de rendas de urdimento radial – isso ocorre na Colômbia e em Porto Rico.

Apenas no Paraguai foi criado um termo próprio para a técnica. Segundo Gustavo Gon-
zález 5 (2008), o nome Ñanduti aparece pela primeira vez na literatura no início do século
XIX (GONZÁLEZ, 2008, p. 34). Sanjurjo (2008) levanta a hipótese de que teria sido
nesse momento, quando é apropriada pela população criolla6 como atividade produtiva,
que a tecelagem troca a alta elaboração técnica pelos símbolos da fauna e da flora desse
mundo novo, e que os soles teriam, a partir de então, se transformado em teias de aranha.
Não se falaria mais, resume a investigadora, em soles ou ruedas, e sim em ñanduti.

No Brasil, o termo mais utilizado é Nhanduti, grafia na língua portuguesa da palavra


guarani Ñanduti, que convive com a denominação Renda Tenerife. O nome Renda Sol,
versão em português de Soles, nomearia a família de rendas radiais. Quanto mais nos
aproximamos da fronteira com o Paraguai, maior é o uso exclusivo da denominação
Nhanduti, inclusive sem ser precedida pela palavra “renda”. O Nhanduti não é tradicio-
nalmente identificado como renda no Brasil.

3 UMA RENDA MODULAR


O suporte adotado para montar o urdimento radial – assim como os motivos e outros
detalhes do procedimento – pode variar de local para local, mas os pontos básicos dos
vários formatos da técnica são sempre aqueles dos antigos Soles da Espanha continen-
tal, o ponto-cerzido e o ponto-nó.

A variação de tamanho e de formato dos módulos é pensada para que eles se ajustem
entre si, encaixando-se para serem unidos e compor as peças, como vemos nas figuras

5 GONZÁLEZ, Gustavo. Ñanduti. 3. ed. Asunción: Adriana Almada, 2008. 151 p.


6 Originária da mestiçagem de europeu com indígena.

278
abaixo dos Soles de Maracaibo (Figura 8), dos Soles de Naranjito (Figura 11) e da Ren-
da Tenerife do Brasil (Figuras 14 e 17). Outra solução é a união dos módulos com um
trabalho de renda de agulha, fazendo uma pequena teia de aranha nos espaços irregu-
lares (Figura 2). É o que se encontra na Renda Tenerife vendida por catálogo (Figura
1) do início do século 7, assim como peças da primeira metade do século XX como
supomos ser a da Figura 2.

Figuras 1 e 2 – União dos módulos


feita com renda de agulha.
Fonte: Indian & Mexican Handicraft 8
e Acervo Nhanduti de Atibaia (2012).

4 ÑANDUTÍ
No Paraguai, onde a integração da tecelagem com a população criolla revelou-se excep-
cional, além do nome na língua local e de a padronagem haver incorporado o entorno do
Novo Mundo, desenvolveu-se uma solução autóctone na técnica de tecer o Ñanduti.

7 Mais informações sobre a comercialização de renda por catálogo estão no item 8 deste artigo (p. 10).
8 Disponível em: «https://archive.org/details/indianmexicanhan00franrich». Acesso em: 17 abr. 2019.

279
A rendeira paraguaia (tejedora) desenha a peça em um tecido esticado num bastidor.
Ancora nos contornos do desenho circulares os urdimentos radiais (urdimbre ou arma-
je), de tal forma que um urdimento fique enganchado no dos módulos vizinhos (Figuras
3 e 4). Esses urdimentos são, então, bordados um a um com uma agulha, utilizando-se
o ponto-cerzido e o ponto-nó (entretejido e filete), os mesmos pontos dos Soles espanhóis
praticados nos séculos XVI e XVII. Na técnica do Paraguai, os desenhos dos motivos
(dechados) são distribuídos por todo o módulo, em espaços concêntricos neles inscri-
tos, com “um sentido espacial muito diferente”, aponta Sanjurjo (2008, p. 60), em uma
repetição que cria um movimento circular, chegando a ter efeito quase hipnótico.

Figuras 3 e 4 – Ilustração do site Ñanduti Lace, de Annick Sanjurjo, e Tejedora de Ñanduti no


Paraguai. Fonte: Site Ñanduti Lace 9 e E. Correa (Acervo Nhanduti de Atibaia, 2009).

Na composição da peça, os espaços irregulares entre os módulos são, ainda, preenchi-


dos com um urdimento reticulado, que é também trabalhado com a agulha. Assim, o
Ñanduti, quando retirado do suporte, está inteiramente pronto (Figuras 3 e 4). Peças
grandes são feitas aos pedaços, unidos depois. O Ñanduti resulta, assim, de “uma com-
binação harmônica entre o urdimento radial e o reticulado” (SANJURJO, 2008, p. 72),
em que o segundo colabora para acentuar a luz e o movimento circular dos módulos
radiais (Figuras 5 e 6).

9 Disponível em: «http://nandutilace.com/process.html». Acesso em: 17 abr. 2019.

280
Figuras 5 e 6 – Rendas de artesão desconhecido e do
acervo do Museo Comunitario del Ñanduti. Fonte: Co-
leção de Karen Bovard (EUA, 2015) e Museo Comunita-
10
rio del Ñandutí (Paraguai)

Embora a prática do Ñanduti esteja centrada na área dos três países fronteiriços (Pa-
raguai, Brasil e Argentina), estendendo-se até regiões vizinhas da Bolívia e do Peru, o
modo de tecer mais difundido no continente americano é o procedimento de tradição
canária. Nele, os módulos são tecidos um a um, no suporte em que o urdimento radial
é montado, sendo a peça final composta pela união desses módulos.

5 SOLES DE MARACAIBO
Esses dois processos de tecelagem, o do Ñanduti e o de tradição canária, convivem na
América, ainda, com um outro, o dos Soles de Maracaibo. Na Venezuela, o urdimento
no qual são bordados os módulos é montado em uma moldura de madeira singela, sem
ajuda de tecido ou de pregos e ranhuras, apenas com os fios. Lembra realmente um
trabalho de aranha.

Os primeiros fios dessa teia são armados, formando linhas paralelas, horizontais e verti-
cais à moldura, o que dá origem a uma malha de quadrados. Em cada um deles, é tecida
uma série de pontos (filetes) em cadeia, criando uma pequena moldura (Figura 7), na
qual são ancorados os fios para compor o urdimento radial (Figura 8). Cada módulo é

10 Disponível em: «https://www.facebook.com/369132883165078/photos/a.554573824620982/1992055214206162/?-


type=3&theater». Acesso em: 17 abr.. 2019.

281
trabalhado depois, individualmente. A peça de renda sai do bastidor completa. Caso
seja grande, é tecida em partes separadas, que depois são unidas.

Figuras 7 e 8 – Trabalho
da rendeira E. Correa.
Fonte: Acervo Nhanduti
de Atibaia (2014).

Outra característica dos Soles de Maracaibo consiste em cada módulo ter um único
motivo decorativo, partindo do centro, com fios bem fechados, formando um tecido
compacto que cria um efeito de luz e sombra muito atrativo (Figura 9). Atualmente,
encontram-se suportes redondos de diversos materiais, caso se pretenda confeccionar
apenas um módulo (Figura 10).

Figuras 9 e 10 – Trabalhos
da rendeira Iria Rojas, de
Maracaibo (Venezuela).
Fonte: Mis Soles y Tecidos
(Facebook) 11 e Acervo Nhan-
duti de Atibaia (2014).

6 SOLES DE NARANJITO
Em Porto Rico, a tecelagem dos Soles de Naranjito tem forte influência canária, haven-
do, inclusive, a presença do cojin ou pique como suporte, instrumento usual no arqui-
pélago para a montagem do urdimento. O cojin é uma almofada compacta, na qual são

11 Disponível em: «https://www.facebook.com/MisSolesYTejidos/photos/a.376024845770568/376025115770541/?-


type=3&theater». Acesso em: 16 abr. 2019.

282
colocados os alfinetes em que as linhas do urdimento radial serão ancoradas (Figura
11). A disposição dos alfinetes no cojin deve ser feita no formato em que são desejados
os módulos, que podem ser quadrados, triangulares, em forma de gota, dentre outros.

Os Soles de Naranjito apresentam, também, peculiaridades. Elas aparecem na mon-


tagem da teia, quando o fio do urdimento radial é ancorado ao redor de dois alfinetes
ao invés de um. E também na tecelagem do módulo, quando se recomenda, em sua
finalização, que sejam tecidas duas carreiras de ponto-nó, e não apenas uma. Tal modo
de fazer, que coexiste em Porto Rico com a maneira usual de tecer renda desde o início
dos anos 1900, beneficia a composição das peças, trazendo mais estabilidade à união
dos módulos (Figura 12). Essa técnica foi reconhecida pelo Instituto de Cultura de Por-
to Rico. Cada módulo, a partir do centro, recebe um único motivo decorativo.

Figuras 11 e 12 – Cojins de Sandra Rodriguez e de J.


Lab e A. Rodríguez, de Porto Rico.
Fonte: Puerto Rico Lace (Instagram)12 e Jasmine
Lab (Facebook) 13

12 Disponível em: «https://www.instagram.com/p/BckiP3Zg-P_/ ». Acesso em:12 abr.. 2020.


13 Disponível em: «https://www.facebook.com/photo.php?fbid=233208680828300&set=pb.100024175095592.-
2207520000..&type=3&theater». Acesso em: 12 abr. 2020.

283
7 NO BRASIL: NHANDUTI OU RENDA TENERIFE
No Brasil, coexistem os dois procedimentos, o de tradição canária e o do Ñanduti pa-
raguaio. O mais difundido pelo país é o de confecção de módulos um a um para serem
unidos posteriormente e compor peças. Para essa tecelagem individual, encontra-se
enorme variedade de tipos de suporte, que vão de bastidores almofadados até os de ma-
deira, com alfinetes e/ou pregos ou bordas denteadas para ancorar as linhas. O formato
do suporte vai definir como serão os módulos, sendo os mais tradicionais os de forma
redonda, quadrada e hexagonal (Figuras 13, 14 e 15).

Figuras 13, 14 e 15 – Tecendo e unindo módulos. Fonte: Regina Stela, Renato Soares e
E. Correa (Acervo Nhanduti de Atibaia, 2008, 2010 e 2017).

Quanto mais nos aproximamos das regiões de fronteira com o Paraguai, mais sentimos
14
a forte influência do Ñandutí . No Centro-Oeste e nas regiões fronteiriças, a rendeira
monta e borda os módulos armados sobre um tecido esticado num bastidor de ma-
deira, como é visto no Paraguai, com a diferença de que o bastidor usado aqui é o de
bordado, redondo, que se adquire no mercado (Figura 16).

Em todo o mais, na montagem de urdimentos, nos pontos e na padronagem, segue- se o


procedimento paraguaio, devendo, porém, ser observado que os motivos aqui, região dis-
tante de Itauguá e do circuito turístico do Ñanduti paraguaio, são trabalhados com muita
liberdade, resultando em peças cujo desenho final é diferenciado e criativo (Figura 17).

14 O Nhanduti brasileiro feito nas regiões de fronteira segue a forma de tecer do Ñanduti do Paraguai, até por
força da cultura guarani bastante presente devido ao alto trânsito de pessoas entre os dois países, que deu origem
ao termo “brasiguaios”. No resto do país, o Nhanduti segue a técnica construtiva das Canárias. Independentemen-
te do procedimento adotado, é sempre usado como nome o termo com grafia na língua portuguesa, Nhanduti.

284
Figuras 16 e 17 – Criações da
rendeira dona Nini, de Bela
Vista (MS). Fontes: Acervo
Nhanduti de Atibaia (2017).

8 UM POUCO DE HISTÓRIA
No início dos anos 2000, a Renda Tenerife encontrava-se quase totalmente esqueci-
da no Brasil e, quando encontrada, eram peças compostas por módulos grandes, com
15
cerca de 15 cm de diâmetro, tecidos com linha grossa , utilizando um único padrão
decorativo, o chamado “medalhão”. Tomava-se o motivo-medalhão como se fosse ele a
própria Renda Tenerife ou Nhanduti (Figura 18). Usualmente, o artesão desconhecia
a existência de outros motivos.

Figuras 18 e 19 – Trabalho feito pela


artesã Aurora Silva, entre os anos
1970 e 1980, em Santa Gertrudes
(SP), e por José Eduardo, de Flo-
rianópolis, em 2019 (SC). Fonte:
Nhanduti Museu Virtual 16 e Acervo
Nhanduti de Atibaia (2019).

Aliás, essa maneira de “fazer Nhanduti” utilizando-se apenas o motivo-medalhão con-


tinua sendo muito difundida no país até hoje (Figura 19). Embora a divulgação e a
prática da técnica tenham crescido nas últimas décadas, persiste, na maior parte das

15 Linhas Clea ou Anne ou similar com TEX 151 ou mais (TEX é a medida que indica a espessura do fio; quanto
maior seu número, mais grosso o fio).
16 Disponível em: «https://nhandutimuseuvirtual.blogspot.com/2013/11/do-bau-da-ellen.html». Acesso em: 16 abr. 2019.

285
ocorrências, a confecção com linha grossa, módulos grandes e padronagem restrita ao
motivo-medalhão. Além de bonito e versátil, é um motivo fácil de fazer e aprender, além
de ser, principalmente, de rápida confecção.

Duas iniciativas se distinguem no panorama brasileiro, ao apresentar produção apura-


da, atraindo atenção pela tecelagem fina e delicada ou pela diversidade e uso de cores.
Ambas as iniciativas têm sua fonte na pesquisa que fazem, direta e informal, sobre a
história da Renda Tenerife, cada qual de uma maneira. São os grupos Nhanduti de
Atibaia e das artesãs da cidade de Socorro.

Vale, aqui, historiar brevemente. No início dos anos 1900, a Renda Tenerife foi muito
popular. A busca pela renda industrial havia se iniciado, provocando “o desenvolvimen-
17
to de rendas artesanais mais simples.” (CORREA, 2015a) . É uma época de intensa
atividade cosmopolita e proliferam revistas femininas que promovem as artes-manuais.
Fazer renda se tornou um passatempo doméstico regular, incentivado pela moda.

Nessa época, ocorreu na América a comercialização da Renda Tenerife por empresas


norte-americanas de venda por catálogo. Também chamada Brazilian Point Lace, Boli-
vian Lace e Wheels, os catálogos falam de uma renda feita com módulos que tinham entre
2,5 e 12 cm de diâmetro, tecidos com linha fina, um a um e, depois unidos, com um tra-
balho de renda de agulha, geralmente uma pequena teia de aranha (Figura 19). Era con-
feccionada no México ou nos estados do oeste americano, como Texas e Novo México.

Não localizamos estudo sobre esse comércio, mas presume-se que tenha sido um mo-
vimento importante, pois quando se compara as fotos dos produtos dos catálogos (Fi-
gura 20) com peças de Renda Tenerife da época, hoje encontradas em acervos privados
ou em museus (Figura 21), percebe-se a similaridade entre elas e a possível influência
exercida por essa atividade comercial sobre as rendas que então estavam sendo tecidas.

17 CORREA, E. H. A renda no século XIX. 2015. Museu Virtual da Renda Tenerife. Disponível em:
<https://nhandutimuseuvirtual.blogspot.com/search?q=renda+sec+XIX>. Acesso em: 16 abr. 2019.

286
Figuras 20 e 21 – Indian and Mexican Handcraft, e Teneriffe Lace anterior a 1940, da coleção do The
Lace Museum (CA, EUA). Fonte: Indian & Mexican Handicraft 18 e Nhanduti Museu Virtual 19

No Brasil, houve também um movimento de comercialização da Renda Tenerife, mas


aconteceu em escala regional e, mais tarde, nos anos 1940/1950, período em que o país
se encontrava em uma fase de desenvolvimento.

Na região Sudeste, mais especificamente no estado de São Paulo, capital e interior pró-
ximo, a Renda Tenerife, então conhecida simplesmente como Nhanduti, contribuiu
com a economia de muitas famílias. A região, e, em especial, a cidade de Socorro, viveu
uma intensa movimentação em torno da tecelagem, mas tão logo a demanda cessou,
por volta da década de 1970 – quando a renda proveniente da produção mecânica entra
maciçamente no mercado –, o Nhanduti deixou de ser feito, caindo no esquecimento.

18 Disponível em: «https://archive.org/details/indianmexicanhan00franrich». Acesso em: 22 de abril 2019.


19 Disponível em: «https://nhandutimuseuvirtual.blogspot.com/2019/03/do-acervo-do-lace-museum-de-sunnyvale.
html». Acesso em: 16 abr. 2019.

287
9 NHANDUTI DE ATIBAIA
A primeira ocorrência de resgate da Renda Tenerife que se distingue no panorama
brasileiro pela produção diferenciada, longevidade e pelo trabalho de salvaguarda que
desenvolve é a do grupo Nhanduti de Atibaia. Trata-se de uma iniciativa da sociedade
civil dirigida pela autora deste texto que, desde 2004/2005, se dedica a despertar o inte-
resse pela técnica, a estudar sua história e a resgatar sua prática.

O principal instrumento do grupo sempre foi o mundo virtual. Mantém, assim, desde
2006/2007 sítios, blogs e mídias sociais, que foram e continuam sendo regularmente
alimentados com o resultado dos estudos, das viagens de pesquisa e dos resgates da
tecelagem, trazendo à baila a técnica que se encontrava quase desaparecida e colabo-
rando para seu revival na web e através da web.

Apoiado em manuais antigos, Nhanduti de Atibaia resgatou a tecelagem da Renda


Tenerife em padrões similares aos de como ela se apresentava no início do século XX,
20
uma renda artesanal fina e muito atrativa (Figuras 22 e 23), da qual a peça da Figura 2
é um exemplar. A produção do grupo é pequena, pois tem por objetivo dar visibilidade
à tecelagem, sendo destinada a ilustrar a ocorrência da técnica, como patrimônio ima-
terial que é, em eventos, exposições, congressos e acervos especializados.

Os vários sites e mídias sociais Nhanduti de Atibaia (acessíveis em: www.nhanduti.ong.br)


tornaram-se referência, fornecendo conteúdo tanto a artesãos interessados em fazer a Renda
Tenerife como a pesquisadores interessados nos caminhos das Rendas de Trama Radial.

Figuras 22 e 23 – Obras Borboletas


e Losango, do grupo Nhanduti de
Atibaia. Fonte: Museo del Encaje
de Tordesilhas (2017) e Museo de
Artesanía Iberoamericana de Te-
nerife (2015), ambos na Espanha.

20 Linha Mercer Crochet nº 40 ou nº 60 ou similar com TEX 86 ou 70 ou menos.

288
10 ARTESÃS DE SOCORRO
A segunda iniciativa de resgate da técnica ocorre na cidade de Socorro, a 130 km da capital
do Estado de São Paulo, onde, desde 2014, um grupo de artesãs vem tecendo e produzindo
peças de Nhanduti que chamam a atenção pela variedade de motivos e pelo uso das cores.

Essa opção pela utilização de cores fortes e uso de combinações alegres com liberda-
de é influência da própria história da tecelagem na cidade de Socorro que, nos anos
1950/1960, protagonizou uma grande movimentação econômica em torno da Renda
Tenerife, na época conhecida simplesmente como Nhanduti.

A tecelagem, que foi introduzida nos anos 1940 na área rural do município como al-
ternativa para minimizar a sazonalidade da cultura do café, estendeu-se para a zona
urbana, quando adultos e crianças, mulheres e homens passaram, todos, a integrar uma
rede de confecção de Nhanduti.

Depoimentos dão conta de que algumas pessoas forneciam linha aos interessados em te-
cer, remunerando a produção dos módulos por quantidade. Esses módulos eram depois
unidos para montar peças, muitas vezes por esses mesmos fornecedores, que, então, as co-
mercializavam em outros municípios, como na capital do estado ou em cidades turísticas.

As peças tecidas em função desse comércio não tinham grande elaboração, mas cha-
mavam a atenção pela alegria do colorido e pela criatividade (Figura 24). A produção
também podia ser mais elaborada, com peças que combinavam linhas de rayon com
linhas de algodão, além de cores suaves e cores fortes, em que um complexo jogo de
texturas e nuances substituíam a complexidade da confecção da renda artesanal tra-
dicional (Figura 25). A autora localizou rendeiras que trabalhavam a técnica nestes
moldes também na cidade em São Paulo, capital do Estado.

Figuras 24 e 25 – Rendas produzi-


das entre os anos 1950 e 1960, res-
pectivamente, por Marta Mori, de
Socorro, e Elvira Manetti, da Ca-
pital de São Paulo. Fonte: Acervo
Nhanduti de Atibaia (2018 e 2019,
respectivamente).
Protagonizada por uma artesã que, em criança, vivera a movimentação local dos anos
1940/1960 e dela participara, dona Geni Ferreira Machado, a retomada da tecelagem
pelo grupo de Socorro hoje apresenta a mesma liberdade daquela época no uso de co-
res e na busca de formatos, resultando numa produção exuberante e atraente (Figura
26). A iniciativa conta com um discreto apoio da municipalidade.

Figuras 26 e 27 – Trabalhos da Casa do Artesão, de Socorro (SP).


Fonte: Acervo Nhanduti de Atibaia (2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos quase 18 anos de dedicação às Rendas de Trama Radial, em especial ao
Nhanduti ou Renda Tenerife, formato brasileiro da técnica, a autora, ao mesmo tempo
em que ia descobrindo material, levava-os aos sites do grupo Nhanduti de Atibaia,
publicizando imediatamente sua pesquisa informal por meio da web. Essa estratégia
de salvaguarda resultou produtiva, colaborando efetivamente para o crescimento do
interesse pela técnica, tanto no Brasil como no exterior.

Mas as Rendas de Trama Radial continuam sendo pouco estudadas e os seus diversos
formatos são, na maior parte das vezes, tratados como se fossem uma única técnica. Os
termos utilizados para denominar tais rendas persistem sendo usados indistintamente,
dando azo a equívocos, dificultando consultas a estudos e acessos a arquivos e acervos.
Esse estado de coisas acabou relegando a técnica a uma espécie de limbo.

290
Este texto pretende começar a fazer essa diferenciação, fundamentando-se em uma pes-
quisa direta e informal iniciada no Brasil no começo dos anos 2000, quando a autora
demorou meses para conseguir ver uma peça de Nhanduti, e a única literatura mais
aprofundada a que teve acesso então era sobre o Ñanduti do Paraguai.

Nesses anos de busca, percorreu alguns países atrás dos Soles, visitou outros em busca
de produção teórica sobre o assunto. Mas o panorama hoje continua sendo bastante
similar ao inicial.

Assim, ao compartilhar o material recolhido diretamente pela autora, este texto pre-
tende contribuir para iniciar uma abordagem correta dessas Rendas de Trama Radial,
cuja integração com o Novo Continente demonstrou ser muito maior. Uma integra-
ção, sem dúvida, significativa e cheia de vitalidade.

REFERÊNCIAS
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Disponível em: <https://nhandutimuseuvirtual.blogspot.com/search?q=renda+se-
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com.br/2015/09/motivos-tradicionais- medalhao.html>. Acesso em: 04 out. 2017.

CORREA, E. H. Nhanduti no Brasil. 2008. Site Nhanduti de Atibaia. Disponível


em: <http://nhanduti.blogspot.com.br/2009/04/nhanduti-no-brasil.html>. Acesso
em: 08 out. 2017.

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291
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(versão digitalizada da família).

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Ñanduti, trama sutil cautivante... Asunción: To Print Ediciones, 2017.

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Artes Visuales/Museo del Barro, 1990. Catálogo de exposição.

Proctor Teneriffe lace. EUA: The Proctor Teneriffe Lace Wheel Co., 1903. Disponível
em: <https://www2.cs.arizona.edu/patterns/weaving/monographs/proc_tener.pdf>.
Acesso em: 08 out. 2017.

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rial, 2008.

SANJURJO, Annick. El legado de Tenerife a las Americas. Revista de La Sociedad


Científica del Paraguay, Asunción, 2010, v. 19, n. 2, p. 207-221.

292
Bordado Richelieu
em Cachoeira (BA)
por Maria de Fátima Ferreira

Resumo
Material ou imaterial, a riqueza da cidade de Cachoeira, na região do Recôncavo da
Bahia, é incalculável. Do alto dos morros, que abraçam a cidade, surgem lições de vida
e práticas culturais que têm se tornado cada vez mais raras no mundo contemporâneo.
Em meio ao rico conjunto arquitetônico no estilo barroco e os mais de cinquenta ter-
reiros de candomblé, encontramos a beleza e a suntuosidade do bordado richelieu, uma
técnica tradicional executada sobre tecido que, por sua vez, é recortado nos espaços
deixados entre os motivos e culmina em um bordado-renda. Ele pode ser usado de di-
versas formas. Na Bahia, em vestimentas encontradas tanto no cotidiano das cidades,
quanto nas festas e na religiosidade de seu povo. No entanto, é uma arte pouco ensina-
da e produzida. Desde 2011, existe uma oficina de bordado à máquina em Cachoeira
que ensina técnicas de bordado, dentre elas o richelieu, sobretudo para mulheres com
mais de cinquenta anos. Nosso objetivo é, a partir da oralidade, compreender/inves-
tigar como se dá o ensino e aprendizado do bordado nessa cidade. Para isso, foram
realizadas entrevistas temáticas com o professor de bordado à máquina e suas alunas.
Além disso, procuramos resgatar a história de um tipo de bordado com características
tradicionais que remontam à Idade Média, que permanece, teimosamente, ainda nos
dias de hoje, nas mãos das mulheres, sobretudo da população negra, que fez (e faz!) do
bordado uma forma de se vestir e de resistência.

PALAVRAS-CHAVE: Bordado. Bordado


Richelieu. Arte Têxtil. Mulheres. Memória.

293
Introdução
O Brasil é o país das bordadeiras. De acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, o bordado foi a principal atividade artesanal
1
em 75,4% dos municípios brasileiros, com um leve aumento, em 2014, para 76% . Ainda
são feitos no país diversos bordados tradicionais, dentre eles, o bordado rendendê, pro-
duzido em várias cidades do nordeste, sobretudo em Sergipe e Alagoas; o bordado boa
noite, patrimônio da Ilha do Ferro, em Alagoas; o bordado Passira, em Pernambuco; o
bordado labirinto, em Alagoa Nova e Chã dos Pereira em Ingá (PA); o bordado ponto
cruz; o bordado de Ibitinga (SP); e o bordado richelieu, produzido na Bahia, Sergipe,
Ceará e Rio Grande do Norte. Através de cada tipo de bordado, denotam-se traços
característicos regionais de seus habitantes, aspectos inerentes à cultura e à história.

Richelieu é uma técnica de bordado executada sobre um tecido, que, por sua vez, é
recortado nos espaços deixados entre os motivos, resultando em um tecido de maior
relevo e mais leveza – um bordado-renda. Para além da técnica, o richelieu compõe um
2
tipo de roupa: as vestimentas da Irmandade da Boa Morte ; dos terreiros de candom-
blé; das baianas de acarajés e das pessoas que se vestem de branco às sextas-feiras alme-
jando a paz. O traje de baiana/o está integrado ao universo cultural e socioeconômico
do brasileiro e é marca da forte descendência africana da população da Bahia.

No entanto, no país das bordadeiras, o bordado richelieu, bastante apreciado, está


quase em vias de extinção no estado da Bahia, segundo afirmação do babalorixá Ro-
berto de Iansã, que preside a Associação Filhos de Bárbara. Ele afirma que atualmente
é preciso comprar roupas de candomblé feitas nos estados de Sergipe e Ceará. Fato

1 A pesquisa de informações Básicas Municipais (MUNIC) de 2005 investigou, pela primeira vez, as atividades
artísticas e artesanais no Brasil. O bordado foi a principal atividade artesanal em 75,4% dos municípios brasileiros;
detectou-se que, dos 4.198 municípios que indicaram atividades em bordado, 32% são do Nordeste, 31,7% do Sudeste
e 22,2% da região Sul. No que se refere às UF, 709 municípios de MG realizam essa atividade, seguido por SP (493),
RS (373), PR (311) e BA (305). O IBGE também mostrou que, em 2014, toda a receita gerada pelo artesanato, em sua
grande quantidade de itens, no Brasil, alcançou R$ 50 bilhões por ano, considerando-se o trabalho de 8,5 milhões de
pessoas. IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Suplemento de cultura da pesquisa de
informações básicas municipais – Munic 2006. Rio de Janeiro, 2006 e 2014.

2 Para saber mais consultar: Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Festa da Boa Morte. Salva-
dor: Fundação Pedro Calmon: IPAC, 2010.

294
comprovado em Cachoeira pelos atendentes da loja que vende roupas de candomblé
oriundas de Sergipe e Ceará, cuja proprietária talvez seja a única pessoa viva que ainda
saiba bordar richelieu à mão.

Em 2011, inicia-se uma oficina de bordado à máquina em Cachoeira com o objetivo de


ensinar as diversas técnicas de bordado à máquina e, dentre elas, o bordado richelieu.
A partir daí, me indaguei: “Qual é o estado da arte do bordado richelieu no Brasil e na
Bahia? Como ele é feito? Ainda é feito à mão? À máquina de costura simples? Em máqui-
na de bordado industrial? Como é ensinado? Qual a relação dele com a roupa de baiana?”

Motivada pelos estudos que venho fazendo sobre Arte Têxtil no Brasil, iniciei uma pes-
quisa sobre bordado com o objetivo de fazer um breve resgate da história do richelieu,
que remonta à Idade Média e sobrevive na atualidade. Primeiramente, pesquisei na in-
ternet reportagens jornalísticas, estudos acadêmicos, artigos científicos, vídeos etc. Em
seguida, a partir de depoimentos e entrevistas orais com professor e alunas, investiguei
como se dá o ensino e aprendizado do bordado richelieu em Cachoeira.

Cachoeira é uma bela cidade histórica, vestida de bordado-renda, situada às margens


do rio Paraguaçu, localizada no Recôncavo da Bahia, a 120 km de Salvador, e é uma das
principais referências da cultura da baianidade. Com uma população de 333.470 habi-
tantes, de maioria afrodescendente, o município também é notabilizado pela cultura dos
séculos 18 e 19 e pela sua religiosidade, em que os rituais católicos se misturam com os pre-
ceitos do candomblé. Cachoeira reúne o segundo maior conjunto arquitetônico do estilo
barroco na Bahia e foi tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1971.

A seguir, faremos um passeio pelas técnicas do bordado richelieu, sua origem, as for-
mas de executá-lo (à mão e/ou à máquina), os lugares onde ele é feito ainda no Brasil,
o seu uso nas vestimentas de baianas e, sobretudo, como ele é ensinado em Cachoeira.

Bordado richelieu: uma técnica de bordar


O bordado richelieu é uma técnica de bordar que apresenta algumas características: é
aberto/vazado, ou seja, algumas partes do bordado são recortadas com tesoura para ga-
nhar o aspecto de vazado. Os espaços recortados, que contornam o desenho no tecido,

295
são chamados de “brides” e formam uma espécie de elo entre os desenhos. Tradicional-
mente é feito com o ponto recorte para a elaboração das “brides”, o ponto picô e o ponto
cheio, como também o emprego de outros pontos para a composição dos desenhos.
Sua origem é datada

na Europa antes da chegada das rendas do oriente. Eram bordados executados


sobre um tecido, que, por sua vez, era recortado nos espaços deixados entre os
motivos, resultando em um tecido de maior relevo e mais leveza. Inicialmente, essa
técnica era denominada Veneza, mas acabou sendo conhecida como Richelieu,
denominação atribuída ao Cardeal e Duque de Richelieu Armand-Jean du Plessis
(1585-1642), que ocupou o cargo de primeiro ministro na corte de Luis XIII. O
Cardeal de Richelieu foi retratado, mais de uma vez, por Philippe Champaigne
(1602-1640), que destacou as alvas rendas e bordados elaborados de suas vestimen-
tas. Esse tipo de acabamento era marcador da nobreza e do clero, sendo utilizado
tanto nas vestes sacerdotais quanto em punhos, barrados, golas, invariavelmente
produzidos em tecido branco. (MENDES, 2012, p. 84).

O bordado richelieu pode ser feito à mão e à máquina e, de acordo com o tipo escolhi-
do de maneiras diferentes. É um trabalho que necessita de bastante perícia. É muito
apreciado e pode ser aplicado em peças de tecido de artigos de cama e mesa, compondo
fronhas, lençóis, almofadas, toalhas de mesa, panos de prato, como também em deta-
lhes de peças de vestuário, como, por exemplo, vestidos de noivas. Tradicionalmente,
é usado para a confecção das vestimentas de baianas. E, na atualidade, por alguns esti-
listas, dentre eles, a estilista Liana Thomaz, Mônica Anjos, Almerinda Maria, Camila
Arraes, em peças de vestuário e bijuterias.

Bordado richelieu feito à mão


O bordado richelieu feito à mão é uma raridade. Em nossa pesquisa, na internet, não
encontramos nada que tratasse do assunto, apenas alguns poucos vídeos no Youtu-
be que ensinam a técnica, dentre eles: Ateliê de Célia; The laceMaker Diary; Rosária
Neto; Malina GM Embroidery; Bordado a la Carta; Debby Ricami e Carla Lore. Na
pesquisa em Cachoeira, não encontramos nenhuma bordadeira atuante; as que borda-
vam já faleceram. A única que sabe bordar, não borda mais e prefere revender produtos
de richelieu, em sua loja, feitos em Tobias Barreto (SE).

296
Bordado richelieu feito à máquina
As cidades do nordeste que mais se destacam na produção de bordado Richelieu à
máquina são Salvador e Cachoeira (BA); Maranguape (CE) e Tobias Barreto (SE).

Alguns estudos (FRANCO et al, 2017; SILVA, 2009) mostram que a produção de
bordado é uma tradição no município de Maranguape, destacando as localidades de
Sapupara, Tabatinga, Cajazeiras, Jardim Vassouras, sobretudo a variedade e a riqueza
do richelieu produzido à máquina pelas mulheres. Conforme destacado:

Em tupi-guarani, Maranguape significa “Vale da Batalha” deriva de Maranguab, o Sa-


bedor da Guerra, cacique dos índios potiguaras. Em bom português, quer dizer uma
região circundada de sítios e chácaras e que guarda ainda muitas lembranças de um
passado de riqueza e ostentação e seus casarões de azulejos portugueses. A influência
portuguesa trouxe, dentre outras coisas, o bordado. Tecido nas mãos, linhas sobre o
colo, a cidade vai bordando o seu dia a dia. Reproduzindo no pano verde da Serra de
Maranguape a linha da vida de seus moradores. Suas bordadeiras aprimoram velhos
desenhos, inventam novas técnicas e fazem um trabalho reconhecido nacional e inter-
nacionalmente. Rico, sofisticado e, sobretudo versátil, o bordado de Maranguape en-
feita toalhas, caminhos de mesa, colchas e cortinas, conferindo a cada peça a nobreza
e a majestade originais. O município cresceu vendo suas mulheres bordarem a vida
enquanto os homens tingiam os bordados. Maranguape é, hoje, a terra do bordado. O
seu destino já estava traçado. (SEBRAE, 2003, p. 4 apud SILVA, 2009, p. 50).

Em outubro de 2019, Tobias Barreto recebeu o título de Capital Nacional de Borda-


do, no estado de Sergipe. Seu polo de confecção e de bordado é bastante tradicional.
Alguns estabelecimentos, ainda hoje em operação, remontam à década de 40 do século
XX. Na década de 70, o município de Tobias Barreto começou a se destacar no co-
mércio de confecção em geral, inclusive, com os bordados richelieu, crivo, ponto cheio.
Naquela época, as maiores artesãs passaram a confeccionar os bordados que eram co-
mercializados nos povoados e cidades vizinhas. Pela beleza e qualidade, as cidades cir-
cunvizinhas, inclusive da Bahia, começaram a frequentar o município para comprá-los.
O principal destino da produção é para o próprio estado, incluindo as feiras locais do
município, mas também são comercializados em outros estados do nordeste e do su-
deste, sobretudo para os da Bahia e São Paulo. O município passou a receber um fluxo

297
maior de turistas de comércio, surgindo a famosa “Feira da Coruja”, que acontece no
domingo e se estende durante a noite até a segunda-feira, recebendo pessoas interessa-
das nos produtos fabricados no município. (SOUSA, 2014)

Bordado richelieu: uma vestimenta de baiana


O bordado richelieu faz parte da paisagem Cachoeirana, no Recôncavo da Bahia. Mais
que uma técnica de bordado, compõe um tipo de vestimenta da Irmandade da Boa
3
Morte , dos terreiros de candomblé, das baianas de acarajés e de algumas pessoas que
se vestem de branco às sextas-feiras. O traje de baiana/o está integrado no universo
cultural e socioeconômico do brasileiro e é marca da forte descendência africana da
população da Bahia.

Com influências africana, árabe e europeia, o traje de baiana/o tem na região do Recôn-
cavo da Bahia, assim como em todo o estado da Bahia, sua mais forte representação. É
nos candomblés que o traje ganha sentido cerimonial, e sua elaboração costuma manter
aspectos tradicionais, de acordo com a origem (nação) dos terreiros. É também usado
por cerca de quatro mil “baianas de tabuleiro” que vendem pratos típicos, como o acarajé:

A vestimenta “baiana” é similar a um dos trajes de beca da Irmandade de Nossa Senho-


ra da Boa Morte, em Cachoeira, o traje branco utilizado no cortejo de Nossa Senhora
na sexta-feira santa. Esse traje difere do “outro” traje de beca, mais conhecido por “traje
de gala”, que é basicamente composto por uma saia preta, plissada, sem anáguas de ar-
mação, camisu branco em richelieu, pano da costa de tecido encorpado preto, forrado
de vermelho, lenço branco de richelieu pendurado na cintura, um torso de richelieu
branco, além dos fios de conta dos respectivos orixás patronos. As jóias, como as bolas
encadeadas, os correntões, anéis e brincos em ouro, pouco a pouco vão desaparecendo
da composição do traje de beca. (LODY, 2001, p. 137-139).

Segundo Mendes (2012, p. 295), Giséle Cossard (1970) descreveu detalhadamente as


vestimentas das filhas de santo do candomblé da Gomeia em Caxias, Rio de Janeiro,
até mesmo em relação às técnicas de confecção de algumas peças que compunham seus
trajes cerimoniais:

3 Para saber mais consultar: Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Festa da Boa Morte. Salvador:
Fundação Pedro Calmon: IPAC, 2010.

298
No candomblé, o richelieu surgiu como um elemento que conferia luxo às vestimentas,
em função da sofisticação da técnica empregada, agregando em si mesmo um valor ma-
terial e principalmente simbólico. Junta-se à joalheria ritual, assumindo um significado
de “pano-jóia”, e usado apenas em situações especiais, de festa, em contraposição ao des-
pojamento das roupas de uso cotidiano, as chamadas roupas de ração. Na Gomeia, em-
bora a roupa de ração fosse mais simples e adaptada à lida cotidiana dos terreiros, ainda
assim as filhas de santo usavam uma anágua sob a saia, que tinha na barra uma renda de
algodão costurada de maneira plana, e não pregueada, como nas roupas de festa. A bata
que compõe a roupa de ração é também feita em algodão, ao contrário daquelas ditas “de
gala”, normalmente confeccionadas em tecidos finos e transparentes, como a renda ou
mesmo o richelieu, para que se possa vislumbrar o camisu. No caso da roupa de ração, a
bata pode ser usada sozinha, sem o camisu por baixo, mas somente pelas filhas que atin-
giram a maioridade no culto. (COSSARD, 1970, p. 303 apud MENDES, 2012, p. 87).

(…) as roupas de festa e, principalmente, as roupas dos inquices (denominadas “roupas


de gala”) eram confeccionadas com tecidos luxuosos: bordados richelieu, bordado inglês,
além de brocados, lamês, sedas e rendas; essas últimas aparecem com grande freqüência
no acabamento das peças, ou mesmo constituindo o tecido principal na confecção da
vestimenta. (LODY, 2001, p. 137-139).

O bordado richelieu, assim, tem grande importância nas vestimentas baianas, na confec-
ção de toalhas de equede, ojás, camisus, bata de ogã, pano da costa, além de indumentá-
rias completas de orixás. No entanto, é uma técnica pouco ensinada/transmitida e deixou
de ser produzida na Bahia. De acordo com o babalorixá Roberto de Iansã, que preside
a Associação Filhos de Bárbara e coordena a iniciativa, a técnica está em extinção na
4
Bahia. “Atualmente, temos que comprar roupas feitas nos estados de Sergipe e Ceará.”

Como uma forma de solucionar essa situação, foi criado o projeto “Richelieu e bor-
dados ancestrais” e, no final, as peças elaboradas pelas participantes do projeto foram
expostas no Instituto Goethe (Icba), no Corredor da Vitória, em Salvador (BA). Se-
5
gundo a matéria do portal Bahia Notícias :

4 Projeto resgata técnica de bordado richelieu na Bahia; peças serão expostas no Icba. Disponível em: «https://www.
bahianoticias.com.br/cultura/noticia/21652-projeto-resgata-tecnica-de-bordado-richelieu-na-bahia-pecas-serao
-expostas-no-icba.html».

5 OLIVEIRA, Meire. Desfile apresenta moda de terreiros em bordado richelieu (2015). Disponível em: «https://atar-
de.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1704342-desfile-apresenta-moda-de-terreiros-em-bordado-richelieu».

299
O projeto visa retomar a tradição que garantiu a sobrevivência de ex-escravas, que pas-
saram a ganhar a vida como bordadeiras, após a abolição. Através da técnica francesa, as
ex-escravas atendiam às famílias abastadas de Salvador. O bordado, com técnica seme-
lhante a uma renda, está presente nos trajes cerimoniais das religiões de matriz africana
e nas vestimentas típicas das baianas. Com o tempo, deixou de ser produzido na cidade.
O projeto, apoiado pela Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado
(Setre), foi implementado em uma rede de seis terreiros de candomblé, capitaneados pelo
Ilê Axé Ya Onira. No total, são beneficiadas 30 mulheres, a maioria integrante dos terrei-
ros que integram o projeto. Elas aprenderam os diferentes tipos de bordados e, a partir
de agora, funcionarão como multiplicadores para outros membros de suas comunidades.

Bordado richelieu à máquina em Cachoeira


Subindo a ladeira ao lado da casa da Irmandade da Boa Morte, em direção à igreja
d’Ajuda, do lado esquerdo, encontramos uma pequena sala onde funciona a oficina de
bordado à máquina, cujo professor é Marcus Couto Leite. A Irmandade da Boa Morte
cedeu o espaço e as máquinas de costura para Marcus administrar o curso. O dinheiro
que ganha é com a cobrança de mensalidade e das encomendas que aparecem. No
início do espaço de aprendizado, “só quem podia tomar curso eram as irmãs ou os afi-
lhados delas; depois, abriram para particular e qualquer pessoa hoje pode aprender”.

Marcus chegou a Cachoeira em 2011, certificado pelo Instituto de Artesanato Visconde


6
de Mauá , como artesão e técnico em bordado após dois anos de aprendizado. Atual-
mente, contabiliza vinte anos de experiência com bordado à máquina, desses, oito anos
ensinando na cidade.

Aprendi a bordar à máquina no Instituto Mauá:


“Eu aprendi a bordar com Margarida Cerqueira, lá no extinto Instituto Mauá, em Salvador.
Na realidade, eu fui para tomar um curso de tecelagem, não tinha vaga, fiquei no bordado.
Terminei me apaixonando... O curso era de terça a sexta; na época, o curso tinha que ter
quatro semestres para poder se dizer que era artesão e técnico em bordado. Aí então acabou
o curso e eu fui pegando encomenda no Instituto Mauá... Com o tempo, me chamaram

6 O Instituto de Artesanato Visconde de Mauá foi o principal responsável por promover o desenvolvimento do setor de
artesanato no estado da Bahia. (FERREIRA, M.F. Relatório de Pesquisa Mulheres Tecendo a Vida, 2008).

300
para fazer o contrato simples (8 meses), depois me deram contrato REDA (quatro anos), aí
foi o período que trabalhei na produção de bandeira, na produção de bordado, em que o se-
tor fornecia o bordado para loja, para bordadeira de fora bordar em casa e depois entregar,
tanto bordado à mão como bordado à máquina, e qualquer outro tipo de artesanato que
incluísse o bordado. (...) No Mauá, não tinha curso de richelieu, tinha curso de bordado à
máquina. Ali você aprendia batido, granito, matiz, inglês, olho de pombo, richelieu simples,
richelieu, richelieu com ponto cheio, ponto artístico, ponto veludo, bainha aberta, asa de
mosca, tudo isso na máquina e outras técnicas que a gente misturava com richelieu, mas o
nome certo é bordado à máquina. Claro que todo mundo vai para poder aprender o riche-
lieu, que é o carro-chefe, não adianta dizer que não é, que é, mas o nome do curso é bordado
à máquina, só que a máquina fica parada e a pessoa no manejo. (...) Se a máquina tivesse
motor não seria artesanal, é uma máquina que só faz um tipo de costura. É uma máqui-
na de pedal, além de tudo tira a parte do dente dela, tira o calcador e transforma numa
máquina... Assim, não fica uma máquina para costurar, fica um utensílio que auxilia no
bordado; você concilia o pedal com a mão e pedala com a correia trabalhando com tecido
de fibra cem por cento algodão; com linha de fibra cem por cento algodão, pode considerar
artesanato tranquilamente. Tem uma história por trás, identidade de um povo, identidade
de uma cultura. Desse modo, quando se passa a usar a máquina industrial, máquina com-
putadorizada, é o que o Mauá chamava de industrianato, que não é o artesanato.”

Esse é o processo de aprendizagem


“Eu ensino primeiro a pessoa a conhecer a máquina, manusear os pontos, mostrar onde
é que deixa, onde que não deixa. Só depois pego o bastidor, boto na máquina, ensino a
pedalar, manusear na mão, para pegar aquela prática de pé e mão, para ter essa coordena-
ção. Depois eu ensino a riscar o pano pelas três técnicas, decalcar, com carbono ou à mão
livre. Depois eu ensino a marcar o pano, ensino a centralizar o bordado, riscar o bordado,
colocar no bastidor, puxar, esticar, colocar na máquina. Com a linha colorida, a gente faz
os três primeiros pontos principais, que é o batido, o granito e o matiz; depois passa para
o inglês, richelieu simples, inglês, que também é considerado como richelieu, e daí passa a
desenvolver a peça... Esse é o processo de aprendizagem. A maior dificuldade das alunas
é a coordenação de pé, mão, mente, até ela pegar aquele traquejo de pular lá e cá, lá e cá

301
fica complicado, mas uma vez que acerta, ela diz: ‘Ah, meu Deus do céu, levei tanto tem-
po para aprender isso.’ Termina achando uma coisa tão fácil, pois depois a mão vai indo
tranquilamente, sem planejamento.

Para aprender, é necessário... Eu acredito que oito meses tendo máquina em casa, sendo
esforçado, consegue. Eu já tive aluna que chegou aqui com muita vontade, aquela paci-
ência e terminou que aprendeu em menos de um ano. Não aprendeu tudo, mas já faz o
richelieu direitinho.”

Prof. Marcus e Irmã Edith - Fotos: Maria de Fátima Ferreira

Materiais usados para bordar


“Os desenhos são daqui do curso ou da irmandade, porque o Mauá entregou os riscos
para que as irmãs tivessem um arquivo, mas aí, com o tempo, a gente vai criando tal mo-
tivo, tal motivo com tal flor, criando e fazendo essa montagem que fica bacana... Tenho
novos desenhos, porque a gente vai sempre criando para não estar repetindo, repetindo.
Geralmente a gente usa o percal, popeline, tricoline, pouco a gente usa o linho pelo valor
mesmo... Aqui, a gente trabalha basicamente com esses.”

302
Máquina de costura transformada em máquina de bordar
“A gente pega a máquina, se tiver motor a gente tira, coloca ela na correia, máquina de
pedal, tira o calcador, baixa o dente da máquina, pega a caixa de bobina, aperta o parafu-
so para a linha ficar mais dura na puxada. E a gente faz o teste, coloca na máquina, pega
o regulador de distância de ponto, coloca número 20, daí a máquina já vai estar pronta
para bordar... A máquina deve ser das antigas, de costura reta, por causa da quantidade
de pedaladas que a gente dá, por que essas novas não aguentam a pressão.”

Quem são as alunas?


“A escola tem aproximadamente 40 alunas, com idade entre cinquenta e setenta anos.”

...mais pelo preconceito mesmo, bordado é pra mulher

“Em Salvador, quando eu fui tomar curso de bordado, quem me indicou foi um homem.
Lá eu tinha conhecimento que mais dois homens tinham tomado curso, quer dizer antes
do período que eu tava. Na época que tomei o curso só era eu, não tinha homem, apesar
que em Salvador tem alguns homens que bordam. A explicação, eu acredito, se deva mais
ao preconceito mesmo: bordado é pra mulher, mesmo que a pessoa seja homossexual,
ainda tem aquela coisa que bordado é pra mulher. Bordado quem borda é mulher, eu
acredito muito que seja isso que aconteça. E aqui em Cachoeira não foi diferente. Teve
um rapaz que veio aprender comigo mas ele deixou nem tanto por essa parte, ele deixou
porque viajou para Salvador, passou uma temporada lá, quando retornou não teve mais
interesse. Até agora nenhum homem se interessou em aprender... E lá mesmo no Mauá, na
produção do bordados, entre todas as mulheres, só três homens que bordavam richelieu
para a instituição. Então, acho que mais pela coisa do preconceito de achar que bordado
é pra mulher... porque, com paciência, todo mundo pode aprender, e muita gente quando
chega aqui, que sabe que sou professor de bordado, fica espantada, fica achando aquilo...
não fora do normal, mas que não é comum.

[As mulheres mais velhas] já conhecem a beleza, o valor do bordado, dão mais valor e por
sua parte vêm atrás de uma segunda ocupação, tanto a parte de ocupação financeira, como a

303
parte de ocupação da mente. Também é uma maneira delas mudarem sua rotina e fazer da-
quilo um lazer, um local de tirar o estresse, para tirar aquela agitação do dia a dia. Também
atrás de fazer para si e vender, passa a ser uma segunda renda. Não uma renda igual à pri-
meira... Mas dá para ganhar um dinheirinho, dá para aumentar a primeira renda, entendeu?

Relação com as alunas: é mais uma coisa de amigo, amizade,


amor, carinho. É algo que vai até além de professor e aluno.
“Olhe... a minha relação com elas... eu me preocupo com elas no sentido de aprendizagem.
Me preocupo com elas no dia a dia como estão, como não estão, se estão bem, se estão ten-
do alguma coisa. É uma relação até mais do que professor e aluna, porque a gente termina
pegando amizade, um carinho, um amor ao ponto que eu sinto falta delas e elas também
sentem falta de mim... Então é mais uma coisa de amigo, amizade, amor, carinho, é algo que
vai além de professor e aluno. (...) Agora assim, na hora que tenho que reclamar, reclamo,
isso aí tá errado, não faça assim, vão bora corrigir, bora ver, bora por esse caminho porque
apesar de eu gostar e ter todo carinho isso não me tira o direito de chamar a atenção. Isso
aqui está errado, não faça assim, se tiver um bordado errado. (...) Agora é bom que facilita
porque elas se sentem à vontade, se sentem em casa, sentem que aqui é um pedaço da casa
delas. Estão confortáveis e isso facilita demais.”

O curso deu sentido para a vida dela


“Quando a primeira aluna relatou isso também foi uma surpresa grande, boa de saber que
tanto o curso como eu conseguimos fazê-la parar de tomar remédio para depressão. Deu
sentido para a vida dela, tirou aquele mal-estar e a faz levantar da cama... Quando eu vi
acontecendo isso, eu achei fantástico saber que o curso melhoraria a pessoa. Resultado: com
um mês e meio, o médico suspendeu a medicação e procurou saber o que eu estava fazendo.
Isso é fantástico. Já tinha tido outra aluna que mudou a mente, o curso fez tão bem para ela,
que agora é outra pessoa. Então, é super gratificante.”

304
Bordado richelieu
“O richelieu tem que ser primeiro vazado, depois tem que ter as grades, aquela casa de abe-
lha ou então a própria grade, aquela tirinha sem aquela coisa da casa de abelha. Tem que ter
um acabamento. No caso do bordado à máquina, tem que ser usado aquele cordão, aquele
barbante, que é chamado linha urso, que é o cordoné, que o pessoal fala cordoné, é o que dá
a característica nele de um... dá aquela altura no bordado, dá o relevo. Richelieu é isso.

É assim... Você fez o richelieu e pronto (...) mas pode acrescentar o que nele? Ponto cheio
na borda da flor, na borda da folha. Primeiro, faz o matiz tanto de cor como branco na fo-
lha e flor, para depois abrir o richelieu. Pode usar bordado granito nele para depois abrir o
richelieu. Pode até fazer uma coisa mais trabalhosa que fica fantástico. Faz a aplicação no
tecido colorido, depois vem com o cordão fazendo acabamento da aplicação e depois abre
o richelieu. Aí a pessoa vê a roupa branca com aplicação de tecido de cor e, com richelieu
ao redor, de longe, quem vê pensa que é pintura, mas não é, é aplicação com richelieu.
Pode-se usar linha prata, dourada para se fazer os detalhes, pra dar certo charme.

A gente escolhe o motivo antes, pega o tecido e risca, debucha. Se quiser um desenho cen-
tralizado, pega o pano e dobra, bate o ferro que vai ficar vincado, ficam aqueles quadra-
dos. Se quiser mais, dobra, dobra ele todo e passa, quando abre ficam mais quadrados...
É o centro de cada lugar e a gente vai riscar ali. Depois que riscou, coloca no bastidor;
o bastidor bota na máquina... Aí aquele processo: alinhavar; bater um ziguezague para
reforçar a costura; recorta ele; fazer a trama, depois da trama vem fazendo acabamento
com o cordão, que é o cordonê; tirar do bastidor; lavar; engomar; passar; recortar o bico se
tiver, e aí está pronto o tecido e vai para a mão da cliente.

A tradição é ser branco. (...) Porque quando fala richelieu, quem conhece remete ao bran-
co, não remete à cor, não vê assim richelieu tal cor. É que nem vestido de noiva, numa
loja... Alguém foi comprar um vestido de noiva, pode dizer que foi comprar um vestido
branco, se bem que não tem só branco, mas é aquela coisa mais tradicional, mais clássica.

A peça deve ser lavada para tirar o risco remanescente que possa aparecer depois do bor-
dado. Lava também porque na máquina a gente termina sujando, suor das mãos, poeira.
Logo depois a gente bota goma, aquela goma cozida de aipim, faz o mingau, cozinha.

305
Depois, acaba de enxaguar, espreme e bota na goma. Aí tira e seca. Depois, se for bordado de
bico, passa a ferro e recorta aquele bico... Fica melhor porque fica durinho, além de ser me-
lhor para recortar e para o acabamento. E depois dá uma retocada no ferro, para apresentar
e ver a beleza do bordado que está lavado e engomado, que já é outra realidade. A linha de
algodão, quando bordada, dá uma repuxada, quer dizer até um pontozinho que saiu pro
lado de cá ele dá aquela encolhida, aquela repuxada que quase não aparece e aí com a goma
fica tudo fantástico. O tecido tem um encolhimento natural por causa da goma da loja e com
o cordão, com o richelieu, e bordado no bastidor, ele tende a encolher. Tanto que a gente fala
que, conforme o richelieu, pode encolher dois centímetros, no linho principalmente, porque
se não lava o linho para bordar, depois que a gente borda, dá uma repuxada tamanha.”

Aqui se faz todo tipo de peça


“De modo geral, [fazemos] tudo: camisu, pano da costa, toalha, toalha de igreja, cortina.
Aqui não tem um perfil de produção. Quando a gente tá produzindo roupa de candomblé,
aparece roupa que não tem nada a ver com candomblé. A gente termina fazendo naquela
semana peças de cama, mesa, banho. Como tem a feira, não tem um perfil certo de pro-
dução. Os compradores são, de um modo geral, o pessoal de candomblé, que encomendam
ojá, camisu, bata, saia, calçolão, bombacho, alacá.

Geralmente a gente calcula o preço


pela dificuldade do bordado
“Muita gente pergunta porque eu não tenho uma tabela... Às vezes, a cliente quer um borda-
do do mesmo tamanho do outro, porém o que ele quer é um bordado mais rápido de fazer...
Vamos supor, uma toalha de banquete é X valor, mas ela não quer muito bordado, então não
é justo ela pagar por uma peça mais carregada. Por isso, a gente calcula pela dificuldade do
bordado, pela quantidade de bordado. Pela hora trabalhada vai ficar muito caro, encarece
demais. Eu já fiz esse cálculo: não é viável de fazer isso, não vai vender.”

306
Bordado à máquina eu tenho
a certeza que acabar não acaba não
“Eu acredito que não vai acabar não, porque é um bordado que não usa maquinários caros.
E é um bordado que, por mais que tenha a máquina industrial computadorizada, tem aque-
la delicadeza, aquela marca, aquela identidade, aquela coisa que você pega... Você sabe que
aquilo foi bordado por uma pessoa, teve toda uma técnica...”

considerações finais
Tentativa de amarrar todas as pontas do desfiado
Como os números mostram, somos um país das bordadeiras, mais fortemente em
alguns estados, como o nordeste, com uma pequena participação de homens jovens.
Dentre os diversos bordados tradicionais existentes no país, nesse texto privilegiei o
bordado richelieu, por causa de sua associação à vestimenta de baiana e de seu ensino
na cidade de Cachoeira (BA).

Já não foi mais possível encontrar no Recôncavo da Bahia alguém que fizesse o borda-
do richelieu à mão. Quanto ao bordado richelieu feito de maneira artesanal, com a má-
quina de costura transformada em máquina de bordado, ou seja, a máquina de costura/
bordado transformada em uma agulha potente ganhando agilidade com o manejo do
pedal, está presente em Cachoeira e é, como relatado, ensinado por um jovem professor
para mais de quarenta mulheres, de 50 a 70 anos.

Com o bordado richelieu, é possível criar um tecido de muita beleza. Segundo Gisèle
Cossard-Binon, um “pano-jóia”. Mas é preciso estar atento para não deixar morrer a
tradição e o conhecimento, que chegou por aqui junto com os colonizadores e perma-
neceu teimosamente nas mãos das mulheres, sobretudo da população negra, que fez do
bordado uma forma de se vestir e de resistência.

Esta é apenas uma pesquisa experimental, com muito insight para refletir e que mostra
muitas possibilidades de estudos sobre os bordados em nosso território brasileiro.

307
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A cidade e
as artes-manuais:
Memória e apagamento
por Vanessa Garcia Sanches

RESUMO
O presente trabalho objetivou refletir sobre a memória e o apagamento das artes-ma-
1
nuais , tendo como referência uma cidade do interior paulista, São José do Rio Preto.
Toalhas de crochê, roupas de tricô, bordados como o ponto cruz e a bainha aberta
sempre estiveram presentes na vida dos habitantes dessa região. No entanto, a manu-
tenção das técnicas é escassa e a valorização das bordadeiras e crocheteiras, quase nula.
Foram realizadas pesquisas bibliográficas para compreender a relação entre tempo e
espaço, bem como foram ouvidas e registradas histórias de pessoas que realizam essas
artes. Para tentar compreender o distanciamento das pessoas do trabalho manual na
atualidade, foram analisadas algumas características da vida moderna e a relação entre
trabalho manual e trabalho feminino.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-manuais. Memória. Mulheres.

1 Artes-Manuais com hífen, pois manifesta o tensionamento


que o texto abordará em relação aos dois termos a fim de com-
preender as artes-manuais como forma de artistar a vida.

310
INTRODUÇÃO
Sobre a memória das coisas
ou o que te diz o vento que passa?

Olá, guardador de rebanhos,


Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?

Que é vento, e que passa,


E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que diz?

Muita cousa mais do que isso.


Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.

Nunca ouviste passar o vento.


O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.

Alberto Caeiro

Todos os dias, olho para a mesma paisagem, tateio espaço e tempo, na casa e na cidade,
percorrendo caminhos tão corriqueiros e, ao mesmo tempo, desconhecidos, em uma
rotina inebriante, que me rouba os sentidos do mundo. O olhar viciado afasta o corpo
das vivências, instituindo uma forma de ser e agir que separa corpo e cabeça. Também
nos afasta da importância de se perguntar sobre o vento ou as nuvens – coisas banais
que, no entanto, podem nos dizer muito mais coisas...

Para o poeta, falar sobre o vento seria uma forma de invocar memórias e saudades de
coisas que existiram, algo que busco com este artigo, ao discutir os trabalhos manuais,

311
as lembranças e não-lembranças que permeiam o local em que fui criada, minha cidade
natal. Imergir nesse universo de memória da cidade e, no caso, também esquecimento,
é uma forma de lançar-me às profundezas de mim mesma, de entender o que povoa o
imaginário das pessoas que estiveram ao meu redor, com suas histórias e imagens de
cidade interiorana.

As singularidades do local permitem uma forma única de lidar com o fazer nos traba-
lhos manuais, já que o tempo é marcado pelas contradições e características do espaço
em que os indivíduos estão inseridos. Nesse sentido, minha busca visa descobrir quais
trabalhos manuais essa cidade esconde.

Cresci rodeada por mulheres que teciam seus crochês com grande habilidade e espa-
lhavam pelas casas lindas peças que acolhiam e imprimiam características únicas a cada
cantinho. Minha mãe contava histórias de como montou seu enxoval e sempre guarda-
va algumas peças para ocasiões especiais. Eu passava horas imaginando essa reunião
com outras mulheres da família para trocar amostras de pontos que um dia iriam tecer.

O tempo acabou levando boa parte dessas histórias... As facilidades e a agilidade da


vida moderna roubaram o espaço dos trabalhos manuais, vistos como algo doméstico,
de menor valor. Quando questiono minha mãe ou avó sobre o motivo de não realizarem
mais sua arte, elas alegam falta de tempo, ser muito trabalhoso e sem valor. O esqueci-
mento dessa atividade seria uma forma de situar-se no tempo atual, moderno.

A sociedade moderna vê o progresso como tábua de salvação da humanidade; no en-


tanto, para Zygmunt Bauman (2007), a vida moderna evoca uma insônia repleta de
pesadelos: medo de ser deixado para trás, de perder o trem do progresso. Com isso,
livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las. Para o autor, a vida na sociedade
atual é considerada líquido-moderna, pois não mantém uma forma ou permanece em
um mesmo curso durante muito tempo; ao contrário, modificam-se em um período
“mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das
formas de agir.” (BAUMAN, 2007, p. 7)

Dessa forma, as referências no modo de ser e agir dos indivíduos envelhecem, tornam-
se obsoletas. Quanto mais livre e desprendido das ideias do passado, mais o cidadão se

312
encaixa na proposta de vida atual, na qual a velocidade com que se produz e se conso-
me estão distantes do modo de fazer artesanal. Ao mesmo tempo, as individualidades
tornam-se universais, os interesses e as formas de existir são ditados pelo mercado de
consumo e disseminados pelas mídias e, “no fundo, o problema é apegar-se firmemente
à única identidade disponível e manter juntos seus pedaços e partes enquanto se enfren-
tam as forças erosivas e as pressões dilaceradoras.” (BAUMAN, 2007, p. 13)

Agora, cidadãos do mundo, quanto mais os indivíduos estão livres de suas característi-
cas locais, mais voláteis e pertencentes à modernidade constituem-se. Se, na Grécia, o
ostracismo – pena que bania os infratores do convívio na polis – era considerado uma
das penas máximas, nos dias atuais, essa capacidade de estar longe e em vários lugares
simultaneamente é vista como ideal.

O mesmo acontece com a memória local: quando ela não desperta interesse do merca-
do de consumo, é entendida como um impedimento à vida líquida, pois tem uma forma
do passado; logo, algo que deva ser esquecido. Assim, o trabalho manual de determina-
da região, quando não é veiculado pelas grandes corporações, perde o valor comercial
e pode cair no desuso.

Há que se considerar, ainda, que, historicamente, as artes-manuais como o bordado, o


crochê, o tricô e a tapeçaria têm sido consideradas artes menores. De acordo com Si-
mioni (2018), a gênese desse pensamento deu-se no Renascimento, em alguns estudos
como de Vasari, autor das categorias fundadoras da moderna história da arte, que pre-
tendia elevar atividades artísticas – como pintura, escultura e arquitetura – à categoria
de trabalho intelectual, realizado por alguém superior.

Seu objetivo era que elas atingissem grande grau técnico e características individuais,
concebidas pelo cérebro e executadas pelas mãos, mas essencialmente atividades mentais.
Essa tentativa de valorização da razão e de um tipo de arte em detrimento de outra fez
com que as atividades como o artesanato fossem consideradas inferiores, pois as pessoas
que a executavam estavam muito distantes da imagem daquele artista intelectualizado e
detentor de muitas técnicas, valorizadas e difundidas pelas Academias de Artes da época.

Sobre esse fato, é possível observar uma tendência em separar cabeça e corpo, própria
desse período, mas que persiste no pensamento ocidental, em diversas ciências. No ima-

313
gético popular, constrói-se a figura de um artesão destituído de conhecimento e que ape-
nas reproduz algo utilizando, como principal instrumento, seu corpo e suas mãos.

Outro estigma que permeia a história das Artes-Manuais é ser caracterizada como uma
arte feminina: uma vez que as mulheres não podiam frequentar as Academias de Artes,
a elas estavam destinadas as atividades julgadas inferiores como bordado, tapeçaria,
miniaturas e demais artes decorativas.

Pouco a pouco, houve a feminilização dessas modalidades. Em outras palavras, as


obras tidas como inferiores na hierarquia dos gêneros artísticos foram sendo associadas
às práticas artísticas de mulheres. Viu-se, no século XIX, surgir um círculo vicioso: as
mulheres se dedicavam às artes menores porque eram consideradas intelectualmente
inferiores e tais artes eram consideradas inferiores, pois eram realizadas apenas pela
população feminina. A tapeçaria e o bordado, antes valorizados e com papel de desta-
que na Idade Média, “passaram, ao longo da Idade Moderna, a comportar duas cargas
simbólicas negativas: a do trabalho ‘feminino’, logo inferior, e a do trabalho manual, a
cada dia mais desqualificado.” (SIMIONI, 2018, p. 5)

Esses aspectos tornam-se evidentes quando saímos à procura do registro histórico e artísti-
co das artes-manuais, negligenciados nas categorias da Arte Moderna e tido apenas como
um passatempo pelas mulheres da elite. Os relatos, a técnica e as raízes históricas tendem
a ser desconsiderados, apesar de fazerem parte do presente e passado de nossa gente.

Os paninhos bordados, as toalhas de crochê, os tapetes e as peças que evocam memória


e afetividade estão longe de serem preservados em museus, pois ainda se denominam
artes menores. De acordo com Malta (2018):

Tão onipresentes nas casas oitocentistas no Brasil, as artes do bordado, os traba-


lhos com agulha, os artefatos manuais com tecidos e linhas praticamente inexis-
tem preservados em acervos, dificultando encará-los como patrimônio, dignos de
serem pesquisados e capazes de gerar conhecimento. (MALTA, 2018, p. 2).

Nesse trabalho, utilizarei, como referência a essa arte, o termo artes-manuais. Não por
considerar como algo destituído de razão, mas como uma arte historicamente reconhe-
cida como as artes das mãos, que aliam corpo e conhecimento.

314
Isso posto, surgem muitos questionamentos ao se trilhar o processo de busca e registro
da memória das artes-manuais: Como é possível registrar essa história/memória que
lida com o apagamento? Onde encontrar os registros dessas práticas? Quais instru-
mentos utilizar para entrelaçar memória local e a história dos trabalhos manuais? São
caminhos-perguntas que pretendo traçar para desbravar esse universo de pesquisa.

Outro apontamento é resgatar a memória, envolta de afetividade e que se recusa a uma


história que mutila os seres, interessando-se por seu corpo, sua sensibilidade, sua men-
talidade, e não apenas pelas suas atitudes e ideias (BLOCH, 2002).

Encarar esses registros seria uma forma de olhar para fora, buscando sentimentos interio-
res e, ao mesmo tempo, revisitar o que está dentro e que pode ser encontrado pelo mundo.
As inquietações sobre o trabalho manual e a relação que estabeleci com minha terra natal
me trouxeram para o lugar dessa pesquisa. Várias perguntas ecoam em mim e há certo
medo do apagamento de uma memória imbuída de sentimentos, vivências e crenças.

MEMÓRIA E APAGAMENTO NA CIDADE DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

Aquela colcha de retalhos que tu fizeste


Juntando pedaço em pedaço foi costurada
Serviu para o nosso abrigo em nossa pobreza
Aquela colcha de retalhos está bem guardada

Agora na vida rica que estás vivendo


Terás como agasalho colcha de cetim
Mas quando chegar o frio no seu corpo enfermo
Tu hás de lembrar da colcha e também de mim

Eu sei que hoje não te lembra dos dias amargos


Que junto de mim fizeste um lindo trabalho
E nessa sua vida alegre tens o que queres
Eu sei que esqueceste agora a colcha de retalhos

Cascatinha e Inhana

315
A moda de viola entoada por Cascatinha e Inhana 2 retrata um homem apaixonado por
uma mulher que o trocou por outro com muitas posses. Para fazer alusão ao amor e à
desilusão vivida, a dupla utiliza como metáfora a colcha de retalhos e a de cetim. Na
letra da música, é possível observar como a colcha de retalhos reflete o amor do pobre,
feita com restos de tecidos e confeccionada pelo casal; ela carrega o estigma do trabalho
manual, pois não foi comprada ou cosida por alguma costureira da cidade.

O trabalho manual, considerado arte menor, de menos valia, relacionado com o an-
tigo, faz parte do cotidiano das pessoas que viveram no interior. Por terem uma vida
mais tranquila do que nos grandes centros, havia mais espaço para que as pessoas se
dedicassem a essas artes. No entanto, a cidade de São José do Rio Preto, foco desse
trabalho, passou por um processo de modernização a partir do início do século XX, o
que contribuiu para o afastamento das pessoas de certas tradições. Para entender esse
movimento, é preciso olhar para a história da cidade e as relações que ela estabeleceu
com a cultura e o modo de viver genuíno da região.

A cidade está localizada na região noroeste do estado de São Paulo, há quase 600 km
da capital, o que impactou no modo de viver dos habitantes e de desenvolvimento da
região. Fundada em 19 de março de 1852, sua ocupação inicial se deu entre os córregos
Borá e Canela, desaguando no rio Preto, curso de água que deu nome à cidade. O
local escolhido era semelhante a quase todas as cidades que se formavam na época: a
posse de água era um elemento imprescindível para qualquer propriedade, pois os rios
demarcavam a extensão territorial. (CAVENAGHI, 2004)

Entre o final do século XIX e o início do século XX, a tranquilidade com a qual as
notícias e o progresso chegavam ditavam a forma das relações na cidade. Predomi-
nantemente rural, o pequeno povoado carregava traços da cultura do campo, sendo
conhecido como “Boca do Sertão”, um lugar em que a natureza dominava a paisagem.

A Estrada de Ferro Araraquarense chegou ao município em 1912, permanecendo paralisada


por duas décadas; após esse período, a cidade começou a delinear uma perspectiva diferen-

2 Dupla sertaneja de grande destaque, principalmente a partir da década de 1940. Os dois viveram grande parte da vida
em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, e seu repertório retrata a vida simples dos moradores da região.

316
te, pois o movimento econômico da região tinha relação direta com o local: toda produção
agrícola e agropecuária, com muita força nos arredores, escoava por meio dessa ferrovia.

Naquela época, o lugar passou a abrigar estrangeiros que vinham trabalhar nas lavouras
de café e no comércio local. O crescimento social e comercial proporcionou um acelera-
do desenvolvimento econômico e, em “1940, quando as taxas de expansão da população
rio-pretense eram superiores às do Estado de São Paulo, a cidade já era o centro de con-
vergência de uma rede urbana bem estruturada.” (AZEVEDO, 2004, p. 34)

Esse crescimento veio acompanhado da tentativa de modernização a todo custo, prin-


cipalmente após a década de 1960, com a construção da rodovia Washington Luís (SP
-310) que ligava a cidade à capital; tal processo rejeitava as características do modo de
vida e da cultura local e, com isso, a cultura caipira foi paulatinamente esquecida. Mui-
tas práticas trazidas “do campo para a cidade foram aos poucos se perdendo com o
processo de urbanização e, no momento de modernização, foram praticamente aniqui-
ladas.” (FRANCISCO, 2007, p. 82)

A cidade almejava o progresso; queria se parecer com as metrópoles. O modelo de ur-


banização adotado por grandes cidades, como São Paulo, por exemplo, começou a ser
seguido pela administração local. Nesse período, os córregos Bora e Canela, que re-
cebiam parte do esgoto da cidade, foram canalizados e aterrados, dando lugar às duas
avenidas principais: Bady Bassit e Alberto Andaló (ARANTES; SOLER, 2009).

O apagamento dos córregos pode ser considerado uma metáfora da modernidade, pois
as águas que simbolizavam nossa origem e demarcavam nosso território foram pavi-
mentadas para que déssemos lugar aos veículos.

Ao trafegar por essas avenidas, a não ser que você seja um observador muito atento,
é impossível identificar o curso dos rios. No entanto, no verão, com as fortes chuvas,
esses lugares são palco de muitos problemas: as águas fluviais invadem com violência as
avenidas, destruindo tudo que encontram pela frente. É como se a natureza retomasse
seu lugar, sua alma, recuperasse o que é seu.

317
O processo de apagamento deu-se também na cultura local: as ambições por uma vida
moderna sedimentaram formas mais antigas de se fazer e viver a arte do caipira, do
campo. Aliás, a pavimentação cultural foi tão forte que, atualmente, ser chamado de
caipira tornou-se um insulto para o morador da cidade. Ou seja, os moradores de São
José do Rio Preto lutaram contra esse estigma que permeava seu modo de ser e viver.

Assim, o caipira passou a viver de acordo com os padrões da vida citadina, com poucos res-
quícios da cultura local que ainda resistem ao cotidiano das cidades em desenvolvimento.
Entender como as artes-manuais ainda existem diante desses processos de apagamento é
o que move essa pesquisa sobre a atividade manual na cidade que busca o progresso.

O trabalho manual, entendido como arte, requer um fazer que exige outro tempo, um
tempo-único... um tempo moroso, contrastando com a lógica imposta pelo ritmo das
cidades, altamente urbanizadas, e do sistema de produção em massa de uma fábrica.
Por isso, tem efeito transgressor, pois subverte o que está colocado socialmente. To-
davia, por ser fruto –termo que representa adequadamente os processos únicos de um
fazer manual – adquire menor valor econômico, deprecia-se e tende a desaparecer.

Um exemplo é o trabalho das costureiras da cidade, mulheres que trabalhavam em suas


casas confeccionando roupas sob medida e que, com as modificações no processo de
produção de roupas na indústria têxtil, foram cada vez mais perdendo seu espaço. Pro-
duzir peças únicas se tornou algo elitizado, haja vista que as roupas produzidas pelas
fábricas, em larga escala, são mais baratas. É um ofício que, aos poucos, vai desapare-
cendo, resistindo pontualmente apenas em algumas regiões da cidade.

MEMÓRIAS E TESSITURAS NA CIDADE: HISTÓRIAS


DE GENTE QUE CONTINUA FAZENDO

Ponto atrás 3: olhar para o passado para entender o presente


A seguir, contarei histórias de algumas mulheres que dedicaram suas vidas às artes-ma-
nuais, à costura e ao bordado, bem como suas relações com a cidade. Trata-se de uma
tentativa de reconstrução histórica que objetiva preencher os vácuos da memória local,

3 Ponto de bordado em que se recua, enfiando a agulha no lado oposto ao sentido do bordado.

318
uma vez que a história oficial não foi narrada por mulheres nem por outras minorias
(econômicas ou de força produtiva).

Para lançar-me nessas memórias, gostaria de falar um pouco sobre o que me moveu a
registrar a trajetória de outras pessoas, um processo que mobilizou minhas vivências.
Nasci e cresci em de São José do Rio Preto e aqui construí minha história, com as
dificuldades e as facilidades que a cidade me proporcionou. A forma de viver neste
local moldou a maneira como leio e costuro a vida atualmente, pois passar infância e
adolescência em uma cidade do interior nos dá passe livre para ocupar diversos espaços
– ruas, praças, clubes, rios, matas etc. No entanto, com o crescimento desenfreado da
cidade, as possibilidades de ocupação foram se modificando.

As mulheres da minha infância – mãe, avós e tias – dedicavam seu tempo à casa e aos
filhos, como única opção de existir. A maioria foi educada para o trabalho doméstico e
para o casamento: eram mulheres brancas, de classe média baixa, com ensino básico,
que não puderam construir outras formas de ser.

A casa, local que lhes era atribuído, era muito adornada e ali havia forte presença das
artes-manuais como o crochê, a pintura em tecido e o bordado, produzidos intensa-
mente pelas moradoras ou recebidos como herança de família. O ambiente doméstico
era a potência que mobilizava o fazer, aliando o útil ao artístico. Os objetos do cotidia-
no – guardanapos, toalhas de mesa e toalhas de banho – eram espaços de expressão,
manifestações de arte que estavam presentes na vida dessas pessoas.

Aprendi a bordar e a crochetar observando tais mulheres: os movimentos com as mãos


e a forma de pegar a agulha e o fio estão presentes na minha memória afetiva. Atual-
mente, porém, na minha família, não há mais mulheres que se dedicam às artes-manu-
ais: o tempo, outro – veloz e moderno – trouxe novos afazeres. E talvez esse tenha sido
um dos motivos que me levaram à pesquisa.

Nesse sentido, anseio, com essa busca, encontrar gente que resista às pressões das
transformações nos modos de produção e de existência no âmbito doméstico. Quero
contar a história da cidade olhando para suas mulheres, entendendo a casa como po-
tência das artes-manuais.

319
Bainha aberta: o tempo do bordado 4
Queria dar voz às pessoas da cidade que permanecem fazendo um trabalho manual de
tradição e resistem na contemporaneidade tecendo tramas que trapaceiam o tempo por-
que são morosas e com muitos detalhes. Destaco que a relação do tempo com as minúcias
desses trabalhos é tão forte que, ao olhar para uma renda ou outro trabalho com fios e
linhas finas, as pessoas sempre perguntam: “Quanto tempo você demorou para fazer isso?”

Dona Alzira é uma das mulheres que despertou meu interesse: conheci-a por meio de
uma reportagem em uma revista da cidade que apresentava seus bordados de bainha
aberta. No final da reportagem, havia um número de telefone para quem desejasse en-
trar em contato e foi esse o início do presente bordado.

No auge dos seus 83 anos, ela me recebeu em sua casa, na Zona Sul da cidade, um bair-
ro de classe média alta, onde mora há mais de 20 anos. Por todos os cantos da casa, há
trabalhos manuais, crochês de linha muito fina e pontos delicados. Ela preparou uma
mesa na qual expôs suas produções, bordados em tecidos engomados, em que não é
possível distinguir o avesso do direito, tamanho cuidado no fazer.

Ela ensinou bordado para muita gente da cidade: era uma professora muito exigente,
primava pelo acabamento das peças. Orgulha-se de ter bordado camisolas de batismo
e fala com carinho dos lenços que bordou para a comemoração de suas Bodas de Ouro,
entregue a cada um dos seus quatro filhos.

Aprendeu a bordar olhando a mãe, uma italiana que chegou à cidade aos 12 anos, no iní-
cio do século XIX, e morreu aos 92 anos deixando um bordado inacabado sobre a mesa
de cabeceira. Suas histórias misturam-se às da cidade: morou muito tempo em uma das
ruas centrais, próximo à Avenida Alberto Andaló e ao Córrego Canela. Fez bordados
para personalidades locais e apresentou seus trabalhos em uma mostra em um dos clu-
bes de maior prestígio. Seus bordados têm o peso da tradição local. Reconhece que o
que faz é único e se alegra por isso.

Ponto rococó 5: seis mulheres e vários fazeres


Seis filhas tiveram suas vidas marcadas pelas artes-manuais: crochê, corte e costura,

4 Bordado de tecido desfiado, cuja beleza está nos pontos de entremeio.

320
bordado, macramê, culinária... Cada irmã com sua artesania preferida. Uma delas é
Pitica, uma artesã que aprendeu desde cedo o cuidado com acabamentos, a costura de
bonecas e a delicadeza do bordado.

Seus pais, evangélicos, com medo que suas meninas arrumassem namorados e se per-
dessem, trataram de lhes ensinar diversas manualidades; assim, elas não saíam para a
rua e estavam sempre entre mulheres. Criar seis meninas em uma cidade pequena, em
que todos se conheciam, era muito difícil, pois corriam o risco de “ficarem mal faladas”,
uma tragédia para as famílias de outrora.

Ela narra que estudou com suas irmãs em um colégio de período integral: durante o
período da manhã, estudava disciplinas do currículo comum; na parte da tarde, as me-
ninas tinham aulas de economia doméstica, bordado, costura e crochê e os meninos
aprendiam marcenaria e mecânica, entre outras disciplinas. Nesse período, aprendeu
diversos pontos de bordado e recorda-se que, quando errava algum arremate, a profes-
sora a repreendia com um tapinha na mão.

A irmã mais velha cosia roupas para toda família: comprava os tecidos e cada um esco-
lhia o modelo que desejava. Essas atividades auxiliavam na renda e viraram ofícios que
permanecem até os dias de hoje, pois a família é conhecida por ter grandes costureiras e
bordadeiras. Pitica dedica-se a ensinar a costura e o bordado em sua casa, onde há um
ateliê com paredes cobertas por bonecas.

Sempre produziu artigos para crianças: costurava roupinhas de bebê, bichinhos e bo-
necas. Quando era jovem, sua irmã fez um curso para costurar bonecas de tecidos, mas
ela não se interessou. Só depois de casada, com o sonho de ter uma filha, passou a pro-
duzir bonecas. Deixou de trabalhar fora de casa e, naquela época, começou a pesquisar
em revistas e sites sobre bonecas. Fez um curso e aprimorou sua costura e bordado.

Atualmente, mora na Zona Sul da cidade, próximo à rodovia BR-153 e do Córrego


dos Macacos, com seu filho e o marido. Na sua casa, organizou um ateliê que funciona
durante toda a semana, dá aulas de costura e de arte bonequeira para mulheres. Passa
seus dias entre os cuidados com a casa, as bonecas e os bordados.

5 Ponto delicado do bordado, em que se enrola a linha na agulha e perfura-se o tecido criando, geralmente, rosas.

321
No seu ateliê, sempre há espaço para um bom café e uma boa conversa, pois histórias
de bordados e costuras têm muitas para contar. Amor pelo que faz também! Ela expira
e inspira as artes-manuais... Foi essa mulher que me ensinou a costurar!

Ponto segredo 6, o enxoval e a renda


“Uma mulher forte, você precisa conhecê-la! Ela criou duas filhas, sem marido, buscan-
do enxoval em Ibitinga”, assim fui apresentada à Dona Iraídes. Essa história despertou
meu interesse e logo marquei um “dedo de prosa” com essa senhora muito ativa de 76
anos. O local escolhido para desenredar essa história foi sua casa, na Anchieta, um tra-
dicional bairro da cidade.

Chego à sua casa, uma tradicional construção de meados do século passado na cidade:
grades baixas, adornos no beiral do telhado, muitos vasos e cadeiras de alpendre na
varanda. Ela me recebe com um café e uma mesa repleta de crochês, amostras de tra-
balhos, fotos de suas filhas, de seus netos e de seu falecido marido. Expõe com orgulho
seus trabalhos na mesa preparada com muito capricho! Em cada canto de sua casa,
tapetes, almofadas e toalhinhas adornam os espaços e aquecem o local.

Dona Iraídes conta com satisfação que nasceu em uma casa com muitos filhos e apren-
deu observando sua avó a arte crocheteira para ter sua própria renda. Sua avó Carolina
era uma exímia artesã e muito conhecida na região. Desde muito nova, Iraídes tecia e
bordava peças duplicadas: uma para seu enxoval e outra que vendia. Seus crochês eram
conhecidos pela delicadeza, peças grandes, confeccionadas com fios finos, despertando
o interesse das moças que estavam prestes a se casar.

Com seu enxoval pronto, casou-se e teve duas filhas. No entanto, por uma “ironia do
destino”, expressão que ela mesma utilizou, ficou viúva muito cedo, aos 25 anos: seu
marido saiu para trabalhar e não retornou em consequência de um acidente sofrido na
empresa. A moça, que tanto tinha se preparado para o casamento, com enxoval e habi-
lidades domésticas, teve que batalhar para criar suas meninas sozinha.

Não podia sair de casa para trabalhar, mas produzia com muita intensidade: após os
trabalhos de casa, sentava-se na varanda, ligava o rádio, colocava uma boa moda de
viola e ali permanecia. Crochetar era o que fazia... era tudo que queria fazer!

6 Ponto de crochê com grandes elementos vazados, os quais formam um padrão geométrico.
E, crochetando, rompeu algumas barreiras: tirou a carteira de habilitação e, com isso,
passou a comprar enxovais na cidade vizinha de Ibitinga – muito conhecida pela varie-
dade de fábricas de bordado – para revender as suas clientes. O enxoval sempre esteve
presente em sua vida, seja no preparo para seu casamento ou de outras mulheres. As
famílias das noivas sempre a procuravam, pois ela oferecia peças únicas. Assim, vendia,
de porta em porta, peças que produzia e as que buscava em Ibitinga.

Com muita luta, formou as duas filhas. Narra, com emoção, que elas puderam estudar
fora com o dinheiro que obtinha com a venda de enxovais. Uma vida, segundo ela, mui-
to difícil, mas que valeu a pena.

Ponto caseado 7: costurando vidas


“Essa é uma boa cidade, não têm favelas”, disse o taxista a uma amiga minha que visita-
va a cidade em 2012. A fala deste motorista me chamou atenção na época e passei a me
questionar: O que representaria para ele uma cidade sem favelas? Seria uma cidade sem
pobreza e desigualdade? Ou o fato de não possuir ocupações invisibilizaria as mazelas
sociais a ponto de não perceber que existem famílias sem moradias?

Do final da década de 1980 até o início dos anos 2000, a cidade enfrentou um processo
de desfavelamento, com programas de construção de casas para os moradores de ocu-
pações; no entanto, sempre houve na cidade um déficit de moradias devido ao cresci-
mento desenfreado.

Em 2016, um grupo de famílias ocupou uma área na Zona Oeste da cidade e ali teve
início a comunidade conhecida como Favela da Vila Itália, em alusão ao bairro próxi-
mo ao Córrego Piedade. A cidade sem favelas passou a enfrentar grandes problemas,
pois as famílias viviam em condições precárias, sem saneamento básico e com energia
chegando apenas por meio de ligações clandestinas.

Nesse contexto, um grupo de mulheres se organizou: fez contato com empresas têxteis
para costurarem e bordarem parte da produção e, assim, compor a renda familiar. São
mulheres que aprenderam a costurar, a crochetar e a bordar muito cedo. Trabalharam

7 Ponto bordado utilizado para fechar peças e contornar aplicações.

323
em fábricas de costura ou bordavam peças em suas casas. Michele, 33 anos, e Eliana, 36
anos, costureiras do ateliê Mili – referências aos seus nomes, foram as fundadoras do
projeto – crochetam peças com muita agilidade. Elas contam que saíam de casa e cons-
truíram uma rotina para produção. Atualmente, trabalham embaixo de uma árvore ou
em um dos barracos. Residem no local desde o início da ocupação.

Dona Edineuza Gerônimo, 54 anos, é outra moradora da ocupação que costura, pinta
e crocheta com muita intensidade. Veio da Bahia, da cidade de Itaetê, para que sua
filha fizesse um tratamento médico, pois descobriu que a cidade de São José do Rio
Preto é referência na área da medicina. Disse que já trabalhou muito na vida, criou seus
10 filhos sozinha, sem companheiro.

Com uma máquina antiga, costura em seu barraco colchas com padrões do patchwork.
Revela que, quando visita outras casas ou vai até o centro da cidade, repara nos tra-
balhos manuais produzidos por outras pessoas e tenta reproduzi-los. Os tecidos que
utiliza em seus trabalhos são sobras de fábricas de costura na cidade.

Para essas mulheres, o fazer manual nunca foi concebido como passatempo, como nas eli-
tes, mas como fonte de subsistência. Vão à luta pela casa, trabalho e filhos! Fazem das artes
-manuais um manifesto de resistência na cidade que insiste em não enxergar suas mazelas.

ARREMATANDO AS IDEIAS...
Tinha como mote nessa busca olhar para os processos de apagamento das artes-ma-
nuais e sua relação com a cidade, narrados por mulheres em suas casas, pois concordo
que na história não há rastros dos saberes e os movimentos de modernização anulam
formas de ser e estar que não coadunam com a vida líquida (BAUMAN, 2007). Ob-
servar as mulheres e seus trabalhos, entendidos com Artes-Manuais, permitiu que elas
pudessem refletir sobre o valor do ofício que desenvolviam.

As conversas começavam tímidas, mas logo elas se davam conta da importância de seus
fazeres. Todas narravam seus feitos e apresentavam seus trabalhos com muita satisfa-
ção. Muito café e afetividade estavam sempre presentes, bem como um sorrisinho no
canto do rosto quando as memórias sobre as artes-manuais eram invocadas, mesmo

324
com as dificuldades enfrentadas. O contentamento por vencerem e a garra para superar
os obstáculos ficaram evidentes na maioria dos relatos.

A experiência da escuta e a visita às casas ressignificou minhas vivências com as artes


-manuais e a cidade, pois observei um estreitamento histórico entre a vida das artífices e
modo de viver no espaço-tempo que quer ser outro. Cada detalhe em suas casas, como
o vaso florido sobre uma toalha bordada, deslocava-me no tempo-espaço, na busca pela
história da cidade, da casa e das artes-manuais. Senti a vida sendo artistada pelo traba-
lho dessas mulheres que, muitas vezes, nem reconheciam o valor das suas experiências.

Percorrer a cidade em busca dessas histórias foi também uma experiência de cruzar por
entre os rios e córregos, alguns tímidos e escondidos, outros imponentes na cidade. As
formas de apagamentos das artes-manuais se entrecruzavam com o curso das águas,
pois quem anda pela cidade de São José do Rio Preto, mesmo que não perceba, está
caminhando por entre rios, por entre bordados.

Há muitas histórias desconhecidas e por vezes apagadas no curso da memória. Utilizo


a palavra curso para abordar a memória, fazendo referência ao curso d’agua que chega a
desaguar nos rios, pois essa imagem me faz perceber como a história de um lugar pode
ser reconstruída.

Durante o processo de pesquisa e entrevistas, passei a produzir um mapa da cidade


em patchwork, com as principais representações dos rios, córregos, avenidas e rodo-
vias. Talvez essa fosse a materialização das ideias e pesquisa que fazia sobre a cidade.
Concomitante com a escuta às mulheres que estabeleci nessa busca, descobria uma
geografia da cidade que muitas vezes era desconhecida por mim. Bordava no mapa um
rio, quiltava uma rua, costurava uma rodovia, outra forma de estar na cidade que abria
para mim outras possibilidades de ser nesse espaço.

Chegando ao fim desse trabalho, tenho um mapa que sempre estará inacabado, pois
as transformações ocorrem a cada momento, mas acredito que no término do processo
consegui reconstruir um bordado afetivo entre mulheres, rios, cidade e artes-manuais.
Como se as cidades e as vidas fossem bordadas com rios e fios.

325
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Abílio Moacir de. Territorialidade e plano diretor em São José do Rio
Preto. (Dissertação de Mestrado). Rio Claro: Universidade Estadual Paulista, 2004.

ARANTES, Lelé; SOLER, Mário. Memória da água de São José do Rio Preto. São
José do Rio Preto: THS, 2009.

BAUMAN, Zigmund. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 2007.

BLOC, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro:


Zahar, 2002.

C NDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e


a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964. (Coleção
Documentos Brasileiros).

CAVENAGHI, Airton José. Olhos do barão, boca do sertão: uma pequena histó-
ria da fotografia e da cartografia no Noroeste do Território Paulista. (Dissertação de
Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.

FRANCISCO, Arlete Maria. Arquitetura e Cidade: habitação vertical em São José do


Rio Preto-SP. (Dissertação de Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007.

MALTA, Marize. Paninhos, agulhas e pespontos: a arte de bordar o esquecimento na


história. XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares dos historiadores: velhos e
novos desafios. 27 a 31 de julho de 2015. Florianópolis.

SIMIONI, Ana Paula. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana


Palino eRosana Palazyan. Revista Proa, n. 2, v. 1, 2010.

TEODÓZIO, Delcimar Marques. Do sertão à cidade: planejamento urbano em São


José do Rio Preto: dos anos 50 aos 2000. (Dissertação de Doutorado). São Carlos:
Universidade de São Paulo, 2008.

326
artigo publicado conforme redação original

Redes que embalam


crescimento
por Alice Mariana Neves Pereira

RESUMO
Este artigo relata a busca pela compreensão das relações entre as manualidades e o
desenvolvimento pessoal. Parte da ideia de que as artes-manuais, muito além de seu
resultado exterior, trazem embutidas em si um movimento interior, ao qual pouca im-
portância tem se dado, mas que talvez seja o essencial.

Trechos da vida da protagonista aqui mencionados, são destacados como forma de vin-
cularmos suas experiências e buscas desde a infância até o momento atual. Seu processo
de aprendizado do ofício se confunde com seu crescimento físico, o amadurecimento
psicológico e emocional. As relações familiares, as dificuldades e limitações impostas
pelo meio social ajudam a tecer a trama invisível por onde é construído um desenvolvi-
mento que busca mais do que a afirmação profissional, persegue a realização integral.

Ao começar a descoberta de um caminho consistente para seus anseios, a personagem


aqui citada procura estruturar melhor seus conhecimentos, assim como se firmar pe-
rante o mercado de trabalho. Tendo começado como professora de jardim de infância,
passa a ser professora de trabalhos manuais e daí para ministrar oficinas. Através de
seu trabalho, procura levar o participante, a uma experiência de imersão em si mesmo,
estimulando o exercício da presença e da observação.

PALAVRAS-CHAVE: Rede. Família. Histórias.


Algodão. Oficinas

327
INTRODUÇÃO
A estrutura desde trabalho, está pautada na linha de pesquisa “Modos de ser e viver ar-
tes-manuais perdidas”. Pesquisar e praticar artes-manuais perdidas, tentando perceber
quais eram ou são os modos de vida de quem pratica, observando em mim as sensações
geradas, a importância de cada uma dessas técnicas e como seria possível revitalizá-las,
gerou em mim o desejo de produzir uma rede. A cidade onde moro, era conhecida por
suas verdes e frondosas árvores, sua dança e culinária típicas, mas também por ser a
cidade das Redeiras, lugar das mulheres que produziam redes com bordados encon-
trados somente aqui. Ouvir minha avó materna contar que aos nove anos, dormia na
rede produzida por ela, despertou em mim o desejo desvendar seus porquês, saber
quem era a pessoa por trás do objeto. Mas começar essa busca, me levou para outros
caminhos. A produção da rede aconteceu de outra maneira, se deu de forma coletiva.
Me descobri tecendo redes de conhecimentos das artes-manuais.

DESENVOLVIMENTO
Esta história tem início a muitos anos, quando Joana ainda menina, vivia com seus pais.
Naquela época já ajudava em toda lida da casa, na plantação de fumo, e sobrava tempo
para debulhar algodão, fiar e tecer. Aos nove anos, por necessidade e habilidade, já
havia tecido sua própria rede em um grande tear. Foi crescendo, e claro, seus compro-
missos na ajuda da família também.

Aos sábados um pequeno descanso. Iam todos para a fazenda vizinha, onde acontecia
um baile. Lá, Joana viu seu primeiro amor. Chapéu, botinas e facão na cintura, foi as-
sim que se apresentou o rapaz Joventino apelidado então de Jovem. Sem esperar muito
tempo, Joana com 15 anos, deixou para traz todo trabalho duro do sítio, seus pais,
irmãos e seu tear com uma rede começada. Casou-se.

Joana não tinha mais o trabalho duro das plantações de fumo, nem seu tear, que era
lugar de descanso e paz. A vida na cidade lhe mostrava outras dificuldades. Foi tra-
balhar em casas, lavava roupa na época em que o jeans era bem pesado, e o fazia na
beira do córrego. Filhos, sogra, cunhados, era o que Joana tinha agora. Ela morou um
tempo numa casa de passagem. Quem vinha do sítio, para ir ao médico, fazer compras,
resolver algum problema, tinha estada ali. Joana era a última a dormir e a primeira a
acordar, simplesmente porque sua rede, ficava na beira da porta.

328
Jovem, o seu rapaz, quase não estava presente, seu trabalho era nas glebas, nas fazen-
das, levando boiada, cortando árvores. Como no início do casamento Joana o acompa-
nhava, ela viveu aventuras incríveis. Foram para outro estado com os primeiros filhos,
viagens longas, horas caminhando a pé, dias viajando de barco, dormindo de fazenda
em fazenda, até chegar a destinos sonhados. Moraram em casas de pau a pique cons-
truídas no meio da mata, longe de tudo, perto do que a natureza podia oferecer, do
mais puro, mas nem sempre tranquilo estilo de vida. Seu jovem também trabalhou
como seringueiro nessa época.

Numa dessas viagens, passou por uma fazenda e se viu forçada a deixar uma de suas
crianças, Quitéria, a qual ficou por um ano e foi alfabetizada por seu Afonso, que na-
quela região, fazia contato com os indígenas. Ele deixava as atividades e ia para a lida
do dia, e também ia para as aldeias fazer trocas de produtos, e quando voltava, exigia
as lições na ponta da língua. Além de Quitéria, havia na fazenda uma moça que parecia
ser neta ou sobrinha dele e, quando ela não sabia a lição, apanhava do Seu Afonso.

Após o nascimento de mais filhos, Joana se viu impedida de se aventurar com seu Jo-
vem. Então, na cidade se firmou, para que pudesse criar, alimentar, educar e formar
seus filhos. E, quando seu Jovem se cansou da vida de viajante, fez morada na cidade
junto a Joana e seus filhos, netos e bisnetos. Joana então terminou o colegial, e como
queria, formou seus filhos. Mas a vida na cidade ainda lhe dava somente muito traba-
lho, pouco descanso para mente e nenhum momento para cuidar de si.

Quitéria, a filha que tinha passado um ano na fazenda longe dos pais, também se casou
muito cedo e, com 18 anos, já era mãe de três filhos. Diferente de Joana, foi deixada
sozinha, pois o marido, ao se envolver com uma outra mulher, a colocou para fora de
casa com os filhos. Sem lugar para morar com suas crianças e sem meios de sobreviver,
Quitéria teve que voltar a morar com a mãe e os irmãos. Assumiu sozinha a responsabi-
lidade de criar seus três filhos, que logo se tornaram quatro. Educar, alimentar, formar
era o que ela queria proporcionar a seus filhos.

Eu, Alice sou a segunda filha, e serei a personagem dessa história, ao mesmo tempo co-
mum e ímpar. Comum por compor a narrativa de um mundo estruturado na violência
e na exploração humana, mas singela e única, quando coloquei em mim, um olhar de
atenção aos diferentes rumos que cada pessoa assume a partir de sua própria história.

329
Morar com minha avó Da. Joana tinha seu lado bom: avó que pouco colo dava, mas fazia
um arroz soltinho, fritava um ovo, cozinhava o pouco que tinham como se o fizesse para
os deuses. Os pratos mais simples ficavam muito saborosos. Uma vez, numa noite bem
gostosa, ela fez um festival de ovo. Cada um podia escolher como queria seu ovo: frito,
cozido, mexido, gema mole. Sempre gostei de gema mole, bem em cima do arroz. Sendo
eu a mais serelepe de todas as netas de vovó Joana. Sentei me atrás da cadeira, para brin-
car como se estivesse sentada a mesa (não tínhamos mesa, somente algumas cadeiras e
banquinhos), desequilibrei e cai em cima do dedão da minha mão, e perdi a unha. Mas o
ovo mais gostoso da noite, vovó Joana fez para mim. Era daquelas avós que dava banho e
depois deixava ir brincar de novo na rua. Esconde-esconde, mamãe da rua, brincadeiras
de roda, subir em árvores, eram minhas favoritas. Antes de dormir, as vezes até depois
de dormir, ela vinha com um balde de água quente e um pano, para limpar os nossos pés.
E foi assim que cresci, numa casa cheia de árvores frutíferas no quintal. Goiaba, manga,
carambola, cacau, limão, cana-de-açúcar, caju, capim cidreira, tudo a mão.

Mas também tinha seu lado difícil de viver ali, no meio da família da vovó Joana, pois
ela precisava dividir sua atenção com filhos e netos, o que gerava uma certa antipatia
nos filhos. Eu e meus irmãos passávamos a maior parte do dia sozinhos com nossos
tios. Nem sempre tínhamos coisas gostosas para comer e as vezes não tínhamos nem
as ruins. Para escapar das broncas e as vezes de um beliscão, passávamos a maior parte
do tempo na rua, ou na casa dos vizinhos. Não que existisse confiança em deixar os
filhos sozinhos pelas ruas, mas frente a uma realidade tão difícil, não havia outro jeito.

Meus tios zelavam por nós, mas nem sempre eram bondosos. Uma vez, minha mãe saiu
para o trabalho, como todos os dias, e nós ficamos em casa, na rua. Nesse dia, um dos
tios já rapaz, revoltado com a presença de mais pessoas na casa compartilhando espaço
e atenção, resolveu agir de forma nada generosa. Quando minha mãe chegou tarde da
noite do trabalho, encontrou nossos parcos móveis, se assim podiam ser chamados sua
cama e guarda roupa, na calçada. Meu tio sorria satisfeito com a desapropriação que
conseguira fazer sem muito esforço. Fomos então viver na casa de minha sua bisavó.
Nem por isso, minha mãe tornou-se uma mulher amarga. Trabalhava duro, estudava a
noite e conseguiu fazer um curso superior.

Às vezes, eu acompanhava minha mãe no trabalho. Foi onde aprendi algumas manua-
lidades com Tia Didi, colega de trabalho de minha mãe. Trabalhos de avessos sempre

330
perfeitos. Tia Didi já era senhora, quando me ensinou a bordar. Na primeira aula, ofe-
receu um tecido diferente, para que aprendesse a fazer Vagonite. Mas eu, queria fazer o
mesmo que minha irmã mais velha estava fazendo, Crochê. Tia Didi, então me entregou
um barbante (um pouco grosso) e uma agulha grande, com um gancho na ponta, e pediu
que colocasse 80 pontos. Com mais ou menos 7 anos, comecei empolgada, mas logo
meus dedos foram ficando marcados, e com toda tranquilidade de uma criança, disse a
tia Didi, que não queria mais fazer crochê, que preferia o Vagonite. Tia Didi sorridente,
logo entregou as linhas e o tecido branco. Era fácil tramar o vagonite, era só passar o fio
por debaixo das três linhas, subir e descer com mandava o gráfico. Chato era quando
cortava a linha menor e tinha que desmanchar. Nessa trama não tem remendo. Como
em algumas coisas na nossa vida, não dá para remendar e por isso mesmo exige um treino
da atenção. Foi lá, com tia Didi, que aprendi e fiz muitas das minhas primeiras artes. Já
adulta, eu ainda encontro Tia Didi. Ela continua com seus bordados e tricôs.

Cresci e nunca deixei de lado as atividades de artes-manuais. Durante a adolescência


era o meio que tinha de fazer algum dinheiro. Roupas, biquínis, tapetes ajudavam na
renda da família e até proporcionavam alguns passeios.

Enquanto estudava na universidade, me apaixonei e, dessa paixão, dei à luz a uma linda
garotinha. Carreguei minha pequena filha durante a escrita da monografia e na noite
da formatura. Não diferente de minha mãe e de minha avó, assumi sozinha esse colo.
Me formei professora e fui para sala de aula de uma escola convencional onde me via
perdida entre a importância de crianças tão pequenas aprenderem a ler e a necessidade
que elas tinham de brincar e manusear coisas simples, como amarrar um cadarço do
sapato, usar pentes, vassouras, baldes, brincar com pedras, admirar as flores, subir em
árvores e muitas outras coisas que fazia parte do dia a dia, mas que passavam sem ser
percebidas, ou mesmo valorizadas.

Para harmonizar as funções de mãe e professora, levava sempre minha filha para o tra-
balho. Quando chegou a hora de escolarizá-la, me via perdida. Mesmo com a dedicação
das professoras, o processo educacional não se efetivava. Não era aquilo que cativava
meu coração de mãe. Então procurei outra metodologia para promover a educação
formal de minha filha. Logo depois fui contratada para exercer o cargo de professora
na escola onde minha filha passou a estudar. Me apaixonei logo de cara. Escola linda

331
(depende da concepção de cada um) não cimentada, localizada em uma rua sem asfal-
to. O pátio todo gramado, apresentava um verde tão bonito, repleto de arvores enor-
mes, tanque de areia, crianças penduradas nos brinquedos. Entrei e fiquei.

Nessa nova fase, descobri que tudo que fazia de manualidades, tinha sentido em outro
lugar. Na verdade, essa arte começava a ganhar sentido para mim também. Iniciei com
minha pequena, uma nova caminhada, eu como professora e minha filha como aluna
na mesma escola.

No jardim de infância, as professoras são exemplos de seres humanos para serem imi-
tadas. Foi nessa área que iniciei minha experiencia como docente nessa metodologia,
sem nenhuma prática. Fui desafiada a fazer pão, lanche, aquarela, cantar, fazer ritmo
com gestos, falar amorosamente, mas com firmeza. Quanta coisa a aprender. Porém
tinha uma que fazia sem dificuldades, manualidades com linhas. Era tão vivo e verda-
deiro para mim, que meus alunos imitavam. Eu não podia sentar que logo já vinham
algumas crianças ao meu redor pedindo um pedaço de linha. E lá ficavam até o fim do
tempo de parque. Assim minhas manualidades foram observadas, e recebi o convite
para auxiliar nas aulas de Trabalhos Manuais. Pela manhã auxiliava, naquilo que fazia
com destreza e prazer, a tarde via-me perdida ‘novamente’, entre fazer lanches, ativi-
dades e administrar conflitos entre os pequenos. Sem dúvida percebi que meu prazer
maior estava nas manualidades com fios.

Tendo em vista que eu demonstrava minha destreza tão forte pelas manualidades rece-
bi um convite: abrir mão da posição de professora e assumir como auxiliar de trabalhos
manuais. Não me via em conflito pela primeira vez. E aceitei, na certeza que estaria
fazendo a melhor escolha. Ensinar tricô, crochê, ponto cruz, bordados, costuras entre
outras atividades manuais, era o que preencheria meus dias.

Trocar a posição de professora e ir para de auxiliar, trouxe algum tempo depois, a sen-
sação da menos valia. Os olhares de pouco conteúdo, sem muita valorização levou-
me a buscar desenvolver mais meus conhecimentos na área. Tempos depois, assumi
a função de professora de trabalhos manuais, mas mesmo assim a sensação de menos
valia permanecia. Foi então que busquei Seminários, encontros de professoras da área,
eventos que me davam maiores possibilidades de melhorar meu trabalho, mas não de
levar minhas manualidades para fora dos muros da escola, já que este era o meu desejo.

332
As vivências passaram a fazer mais sentido dentro da sala de aula, despertando em mim
o desejo de oportunizar a outras pessoas, as experimentações com as manualidades.
Após dois anos, minha filha no 2º ano, fazendo crochê como disciplina escolar. D.
Joana, minha avó tecelã, nessa época já tinha deixado de lado suas manualidades, se
dedicava então a trabalhar para os outros em troca de um salário. Faltavam-lhe o tem-
po e a tranquilidade para sentar-se em frente a um tear, ou empunhar uma agulha de
crochê. Todavia, o fio de algodão utilizado por sua pequena bisneta durante a execução
da tarefa escolar parece ter mexido com as memórias de Da. Joana, lhe trazendo lá do
fundo um desejo de retomar alguma coisa quase perdida, que ia além das mãos e do
algodão. Tinha a ver com as profundezas de sensações que lhe faziam falta, algo pouco
palpável, mas muito sensível e necessário para se sentir mais viva. Foi então que surgiu
o primeiro despertar de minha avó, Da. Joana.

De repente Da. Joana resolveu fiar um algodão que tinha em casa, trazido do sítio de
seu Jovem, onde plantava e cultivava alguns dos seus sonhos. D. Joana então, debulhou
o algodão, e seu Jovem fez para ela um fuso, usando bambu e uma pedra. E lá foi ela,
fiou um fio tão fino e uniforme, que até parecia industrializado. Ela deu o fio de pre-
sente para sua bisneta, que o guardou com carinho. Da. Joana então resolveu voltar as
manualidades, desta vez fazendo crochê. Ela fez muitos tapetes. Apesar de suas netas
sempre terem feito crochê, acredito que, como estava perto de se aposentar, Da. Joana
achou que aquele era o momento de voltar a olhar para si. Então resolveu contar suas
histórias de tecelã. Falou sobre suas aventuras de menina, de suas artes-manuais que
a preenchiam o coração, momento em que ficava junto de suas irmãs e mãe, onde se
ouvia história e muito se aprendia.

Ouvir e vivenciar todas essas histórias, me despertou o desejo que cuidar de mim, de olhar
e desvendar meus grandes “por quês”. Não diferente de minha avó, eu sempre fui fazedei-
ra. Bordava, tricotava, crochetava, falava, andava, criticava, a tudo e a todos. Parecia tão
mais velha que a vovó, no auge dos seus 65 anos. O fazer para mim, sempre foi prazeroso,
quando loucamente aceitava uma encomenda, e em poucos dias a mesma estava pronta.
E ficava toda orgulhosa por ter feito algo tão singelo, e caprichado. Isso trazia cura, ou
as vezes somente apaziguava minhas carências tão profundas. Foi então que surgiu a
oportunidade de dar mais consistência e profundidade ao meu trabalho de manualidades
através de uma formação em artes-manuais. Logo surgiram os primeiros convites. Nem
imaginava que poderia viver experiências tão profundas em minhas oficinas.

333
Em meio às comemorações de fim de ano, seguidos de semana de imersão em seminário,
viagem para o congresso, me organizava para minha primeira oficina de manualidades.
Com tantas correrias e nervosa, bati o carro, mas nada pareceu grave. Só encostou no
carro da frente, então o dia continuou tranquilo. No fim da tarde, quando minha peque-
na menina que, estava no carro, não se sentiu bem, correremos para o hospital. Primeira
noite, baita susto, aguardar e aguardar nos corredores. Minha pequena, já estava melhor,
mas nada de alta. Pela manhã, me organizei com minha irmã, para acompanhar minha
filha no hospital. No período da tarde, seria minha primeira tarde de oficina.

Sai do hospital, para tomar um banho, e descansar (risos e choros). O carro não ligou,
deixei o carro e peguei um ônibus, mas sem dinheiro suficiente, foi então que motorista
disse que ou eu desceria num determinado ponto ou iria até o ponto final. Desci e fui a pé,
para meu compromisso, porém não pude conter minhas lágrimas. Naquele dia, só conse-
gui tomar banho, fiquei sem descanso e almoço. Mas era minha primeira oficina e queria
cumprir com o compromisso. Pensava, “sou uma mulher forte”. E passei a acreditar nisso.

Na hora de a oficina começar, não havia sala disponível. Fomos então para o corredor,
onde adolescentes, crianças, homens, senhorinhas com os netos, mãe e filhas, compu-
nham público da oficina. Ao contrário do que imaginava, correu tudo bem, como se as
últimas horas tivessem sido somente para preparação da oficina. Após a oficina, voltei
para o hospital. Essa noite foi mais tranquila, sem choros e gritos nos corredores, ou só
não ouvíamos porque estávamos na ala infantil. Minha pequena, leu o dia todo, como
se estivesse de férias, deitada na rede da chácara. Ou seja, estávamos de férias mesmo.
Naquela noite, dormi numa cadeira.

Amanheceu, e fui continuar a oficina. Mas, bem alimentada e cheirosa. No fim da tar-
de, minha pequena recebeu alta, e foi compor meu espaço de oficinas de manualidades.
Foi nesse contexto que me descobri Oficineira. Percebi que era uma função em que
verdadeiramente, eu estava presente, de corpo e alma. Isso não quer dizer que não
tinha outros incômodos, mas preocupações não tinham espaço de prioridade, porque
as oficinas me davam tempo para gerar energia e lidar com tudo que estava vivendo.
A partir daí para frente, passei a aceitar os convites e desafios para os trabalhos que
viriam, na certeza de que o acordar de minhas manualidades, traria para outros, essas
mesmas sensações de bem-estar e fortalecimento.

334
Viagens e mais viagens foram os
meses seguintes, de março a de-
zembro, mal conseguia arrumar
a sala de minha casa. Porém havia
um lugar em minha casa, que eu
não abandonava, meu quintal.
Foto 1: Primeira Oficina de Manualidades – Tricô de dedo

Sementes de feijão para plantar e observar era um exercício do curso de Artes-Manuais.


Minha semente não germinou.
Boba eu, presa no quadrado imposto.
Meu quintal, germina, brota, dá frutos e flores todos os dias.
E eu, presa no feijão, que nada de feijão tem, que não germinou, ao contrário, deu bicho.
Eca, pensava. Isso é o que colocamos em nossas panelas,
dizem que é rico em ferro e sei lá mais o que.
Plantei batata-doce, e as folhas cobriam o chão do quintal
Ao lado da batata, estava pé de arruda. Morta, esturricada?
Não. Estava só adormecida. Com água e atenção, um brotinho verde logo surgiu.
Goiaba, mamão, ata, tomatinho cereja, hortelã.
O quintal lembra o quintal da casa de D. Joana

Entre vivencias, viagens, formações, oficinas e aulas, passei a observar meus alunos
com outros olhos. Comecei a perceber a relação que tinham com as manualidades e
seus comportamentos na escola e em casa. Os que tinham mais vontade de fazer as
atividades, em geral eram os mais centrados e com melhor rendimento na escola. Nos
relatos de pais, professores e das próprias crianças, os mais resistentes e menos apre-
ciadores dos trabalhos manuais, também se empenhavam menos em outras matérias.

A sensação de incapacidade em que se colocavam frente a um trabalho manual que


exigisse mais de sua concentração e entrega, se manifestava também em outras áreas.

335
Tinham mais dificuldades de integração e participação em tarefas cotidianas, como
lavar o próprio prato, arrumar o quarto ou amarrar um cadarço de sapato. Eram jovens
crianças que passavam boa parte do tempo a disposição de aparelhos que dão a sensa-
ção de prazer. Jogos, vídeos, series, redes sociais eram os assuntos mais ouvidos nessas
rodas de crianças. Eu percebi que essas crianças também eram menos dispostas para a
superação de dificuldades. Para mim, ficou evidente que a superação de pequenas difi-
culdades no trato com as manualidades tinha um reflexo nos comportamentos tanto de
crianças quanto de adultos. É como se fosse um micro aprendizado, que atuava na mo-
dificação de padrões de comportamento, tornando fácil o que antes parecia insolúvel.

Meu cuidado com estes alunos precisava ser sempre no sentido de apresentar o traba-
lho prazeroso, trazendo momentos de olhar para si, falar de si. Propunha brincadeiras
como: Silenciar para ouvir os barulhos mais distantes, e depois para ouvir seus baru-
lhos mais próximos. Com relatos de que ouviam o próprio coração nesses momentos,
percebi que a entrega pessoal para as manualidades tornavam a atividade prazerosa,
de estar consigo, trazendo em alguns uma produção de matéria muito mais intensa.

Em minhas aulas com crianças, descobri que aprendia tanto ou mais que os alunos e pas-
sei a utilizar esse aprendizado em oficinas de manualidades com adultos. Sabia que não
bastava um conhecimento exterior, algumas informações práticas, para que os participan-
tes se sentissem realizados no trabalho que faziam. O que mais importava era esse apro-
fundamento em seu próprio ser, a busca da transformação de algo que se ocultava para a
maioria das pessoas. Eu queria recuperar alguma coisa que minha avó tangenciava, mas
nunca tinha conseguido verbalizar. Observei que não tinha uma técnica especifica que
proporcionasse uma sensação. Minhas vivências circulavam em várias técnicas, algumas
como: tear, tricô, crochê, bordados, ponto cruz eram mais conhecidas, mas quando fala-
va de Frivolité, renda de Nhanduti, Casinha de Abelha, percebia uma nostalgia entre as
mais velhas, que em algum momento já vivenciaram algumas dessas técnicas que estão
se perdendo. Como os mais jovens desconheciam. Trazia um breve histórico e ensinava
a técnica. Ficava nítido o entusiasmo dos participantes.

Uma de muitas oficinas no interior do estado, também foi o famoso tricô de dedo.
Compreendi que oficinas de Manualidades tem suas vantagens, podem ser realizadas
em qualquer espaço. Sala com ar, ventilador, iluminação natural, ao ar livre, sem mui-
tas exigências. Vale destacar que o mais importante é que a oficina acontecesse e ca-

336
tivasse a todos. Então realizamos a atividade no Bosque. Como não tinha inscrições
prévias, fiquei lá sentadinha, aguardando alguém que se interessasse. Convidei um,
outro, mas não tive sucesso. Sentei-me num banquinho, e fiquei fazendo tricô de dedo.
Logo chegaram uns e outros curiosos.

O que é isso? O que isso vai virar? Será que dou conta de fazer, tia? Menino pode fazer?
Afirmações negativas, como: Não dou conta! Tenho duas mãos esquerdas! Eu não
sei fazer nada! Foram logo substituídas por afirmações positivas. Ministrei oficinas
no Bosque por três dias, com uma média de 25 a 30 atendimentos por dia. Crianças e
adultos saiam cheios de colares, cintos, cordas, tiaras feitas de tricô de dedo.

Árvores altas, faziam sombra para oficina de Tricô de dedo, ministrada sobre uma gran-
de lona improvisada e em bancos do bosque. A oficina, que no início parecia tão desin-
teressante, ficou conhecida entre as crianças e adolescentes que passavam por ali e fica-
vam. A sensação que tive de possibilitar um disparo de criatividade neles, foi forte. Foi
como um despertar ouvi-los dizer: “Olha tia, consegui fazer um colar para minha mãe”.
“Tia, vou pedir para minha mãe comprar desse fio”. “Será que posso fazer mais?” “Tia, e
se eu fizer só com três dedos, dá certo?” “Nossa, dá para fazer colar, tiara, corda, tapete”.

Logo, as oficinas de tricô de dedo abririam portas para que as minha manualidades,
“Manualidades de Alice Pereira”, se fortalecessem naquele espaço e experiências pudes-
sem ser vivenciadas por mim e por meus alunos.

Foto 2: Oficina de Tricô de dedo no Bosque


Foto 3: Oficina Bordando Afetos e
Memórias da cidade de Poconé
Foto 4: Oficina de Crochê em São Pedro Foto 5: Oficina de Amigurumis -
da Joselândia, comunidade do Pantanal Animais do Pantanal

Foto 6: Oficina de Foto Bordada – Resgate Foto 7: Intervenção Abril Azul – Trabalho reali-
das memorias do Tanque da Rua, em Poconé zado com as mães das crianças com Autismo

Foto 8: Instalação e intervenção “ A Moça


Tecelã – História de Marina Colassanti
Nessas viagens, tive a oportunidade de conhecer um projeto de Mulheres Redeiras, e
colher relatos emocionantes do quanto as rodas de manualidades fazem bem para cada
uma, com suas histórias de perdas e suas vitorias, como história de Da. Zilda, mãe e
quase avó de dois netos. Sua filha ficou gravida de gêmeos, mas perdeu os bebês. Alguns
meses depois veio a falecer, sem muitas explicações médicas. Da. Zilda, que era redeira,
pensou em desistir, sem ânimo de voltar a fazer qualquer manualidade novamente. In-
centivada por uma professora, voltou a tecer e encontrou nas tardes de tecelã um balsamo
para suas dores. Disse que quando estava nas rodas, com outras mulheres tecendo, nem
se lembrava dos problemas, preferia mais passar a tarde com elas do que ficar em casa.

Outro caso emblemático aconteceu em uma de suas oficinas com uma mulher jovem, pro-
fissional de comunicações, que me deu um relato bem esclarecedor, que também confir-
mou a capacidade de transformação das manualidades. Afastada do mercado de trabalho
por mais de um ano e cuidando de um filho ainda bebê, Carla sentia-se beirando a de-
pressão, de tão baixo que era o nível de sua autoestima. Ao participar das oficinas de ma-
nualidades, ela disse ter percebido uma retomada de atenção em áreas de seu emocional,
que pareciam embotadas, frente à carga de obrigações e solicitações demandadas por sua
vida de jovem mãe. Começou então, a se dar conta da possibilidade de acessar uma certa
interiorização favorecida pela atividade, sem deixar de lado seu pequeno, que parecia até
se divertir em meio a linhas e tecidos. Chegou a pensar até mesmo na possibilidade de bus-
car renda através de trabalhos manuais, que poderia exercer em sua casa. Viu que poderia
conciliar o que antes lhe parecia incompatível: descontração, atenção consigo e cuidados
com o bebê. Carla fez um longo e agradecido relato sobre sua descoberta.

A reincidência desses relatos com participantes de diferentes perfis sociais e de faixa


etária só veio confirmar a mesma capacidade de transformação e a sensação de bem-es-
tar e fortalecimento que eu havia sentido em minha primeira oficina. Histórias cheias
de conflitos e, na maior parte das vezes, ocultas no fundo da alma vem à tona nas rodas
de artes-manuais, tornando essas oficinas espaços de segurança e acolhimento social,
onde os participantes relatam para o grupo acontecimentos e sentimentos guardados
por muitos anos. A atividade torna esses acontecimentos mais leves e a semelhanças
com o sofrimento e as dificuldades dos outros deixa no ar um clima de compreensão e
solidariedade. Diminui o peso do sofrimento de quem relata e de quem ouve.

339
Uma proposta de trabalho de cartografia me levou a fazer uma visita à casa de minha
avó, D. Joana, motivadora de minha trajetória. Da. Joana vive atualmente no sítio “Toca
do Tatu”, com seu Jovem onde exercem a atividade de agricultores familiares. Fiz essa
viagem com meu companheiro e minha filha. Foi um encontro motivado ao mesmo tem-
po pelo grande afeto que tenho por minha avó e pelo desejo de pesquisar minhas raízes.
Ouvir as mesmas histórias com um novo olhar, conseguindo colocá-las em um amplo
contexto, vistas com distanciamento e ao mesmo tempo admiração, teve o poder de pre-
encher algumas lacunas que haviam ficado ocultas sob um quase esquecimento de emo-
ções e dificuldades. Fazer o percurso de quase 150 km, com o olhar mais atento do que
de costume deu um outro tom a minha experiência. Estar junto com meu companheiro,
um fotógrafo e documentarista, que atentava o olhar admirado para coisas comuns,
ajudou a me surpreender com o cotidiano de uma vida muito simples.

Quando chegamos à casa, minha avó esperava na porta, sentada, pois para ela atual-
mente se tornou difícil andar por causa de problemas nas articulações. Comer boipá
(doce de abóbora com casca) e ter que escolher entre o café e a limonada ao chegarmos,
fez parte da recepção calorosa dos dois avós solitários que sempre se alegram com as
visitas. Encontro se tornou mais do que uma conversa, já que meu companheiro estava
gravando em vídeo as falas e os atos de Vovó Joana, que parecia não se intimidar nem
um pouco com a câmera e o microfone.

As falas de Da. Joana, minha avó te-


celã, fluíam como se não houvesse ali
um olho e um ouvido eletrônicos, a
dar sobrevida àquela visita. Os assun-
tos variavam desde a história pessoal
de Vovó Joana, sua vida de criança
sofrida, de um sofrimento e uma di-
ficuldade tão naturais quanto beber
água. Passavam por reflexões sobre
o que nos tornamos após a morte ou
por que sofremos algumas dificulda-
des em nossas vidas. Foi quando ela
contou que logo pela manhã iam para
Foto 9: Da. Joana, fiando nuvens de algodão
a roça trabalhar no plantio e colheita do fumo, que tinham que fazer comida para muitas
pessoas e que vida não tinha descanso. Também nos contou que a rede em que dormia
aos nove anos tinha sido tecida por ela, com algodão colhido e urdido por suas mãos.

Enquanto conversávamos, Vovó Joana, com mãos hábeis, debulhou o algodão, cardou
e foi transformando a massa branca e disforme em um fio perfeito e contínuo, o fuso de
pedra girando no chão e a mágica do fio acontecendo na nossa frente. Ela ia contando
as histórias de sua vida, tão difícil e truncada por acontecimentos adversos, mas para
ela, unida pela naturalização e pela simplicidade. Sentia transbordar em meu coração
sentimentos de gratidão e respeito, enquanto retomava o fio da meada de minhas his-
tórias, as histórias que teciam minha vida.

Seu Jovem, meu avô nos mostrou o pé de algodão de onde foi tirada a matéria prima
para o trabalho, um grande arbusto de quase três metros, muito diferente daqueles pés
de algodão que em vários lugares de Mato Grosso cobrem a paisagem como um mar
branco a perder de vista, plantinhas baixas, na altura do corte da máquina.

Os convites para ministrar oficinas continuaram surgindo e junto foram se somando al-
guns “por quês”. Ensinar técnicas e ver os participantes executarem não era o suficiente.
Por qual motivo usaria um ou outro material? O que iriam fazer com as pequenas peças
que resultavam dali? Dariam continuidade? Qual a repercussão da atividade no cotidiano
dessas pessoas? Os mesmos questionamentos que me incomodavam, me induziam a uma
maior observação nos detalhes dos comportamentos de alunos e participantes, e uma ava-
liação de suas necessidades, incentivando-me a um aprofundamento maior nas histórias
coletivas, mas principalmente nas individuais. Era como se continuasse procurando não
um elo perdido, mas a retomada do fio da meada solto tempos atrás por minha avó Tecelã.

Me emendar ao outro, e me achar no caminho.


Tantas experiencias nos últimos dias
Que começar do começo não parece ser tão possível.
Mas começar de onde estou é mais provável.
Estar. Resultado do que eu fui. Hoje estou cansada.
Fui... fui... fui...

341
Resultou num ser cheio de narrativas: molhadas, secas, queimadas.
A sensação de ser como meu Cerrado. Seco, galhos retorcidos, folhas grossas
Que se permite ser chamado de feio, pelos que ignoram seu valor
Sua beleza escondida
Que só é vista e percebida pelos que tem sensibilidade aguçada.
Roxas, rosas, amarela, violetas, vermelhas, assim são as flores do cerrado
Com essas não me pareço, sou somente discreta, como as sementes aladas
Que quando se abrem, voam longe, sem gosto, sem cheio
Mas que quando caem na terra, com a ajuda do vento seco e quente
Tem força e dureza para a esperar a chuva
E brotar longe

Em meio as aulas na escola e as oficinas, surge um convite inesperado: acompanhar


uma turma de adolescentes em visita a uma aldeia indígena. Como eu nunca tinha ido
a uma aldeia e aceitei prontamente o convite para visitar as Terras Indígenas do povo
Bakairi. Claro que em mim existia um anseio de voltar às origens. Tinha expectativa de
encontrar as raízes que me conectassem com minhas referências de infância. Também
queria que essa pequena visita me abrisse caminho para um conhecimento mais pro-
fundo das culturas ancestrais. Afinal, mesmo já tendo eles se rendido, ao agronegócio
e a alguns hectares de pasto, é ali que uma vegetação de cerrado protegida sobrevive.

Os povos Bakairi já têm mais de 200 anos de contato a cultura dos brancos e circulam
muito entre a aldeia e a capital do estado. Indígenas doutores, mestres, graduandos. Um
povo que se orgulha por vir estudar na cidade, e se orgulha ainda mais por voltarem com
seus títulos para sua terra, podendo assim cuidar e zelar ainda mais de seus territórios.
Ao mesmo tempo, eles mantêm algumas tradições, como a casa das flautas ou a festa do
milho, quando mostram em danças, o uso de máscaras de grande valor estético e cultural.

Na estrada, a paisagem se misturava. No cerrado seco, árvores sem verde, mas de uma
beleza exuberante desfilavam seus amarelos, rosas, roxos, brancos, misturados aos troncos
queimados e maltratados pelos incêndios que acontecem todos os anos. Logo se seguiram
as imensas pastagens a perder de vista, sem possibilidade de flores e fogo, só gado.

342
Momento lindo foi a chegada na aldeia, as índias esperando, mas não de cocar, ou dan-
ça da chuva, nem mesmo os índios de arco e flecha. O que encontramos foi uma gente
cheia de cultura, que mostrava seu dia-a-dia sem fantasias, seus talentos, suas simplici-
dades, seu jeito de resolver as dificuldades.

Na aldeia, algumas atividades são feitas pelos homens, como: caçar, tirar madeira, fazer
cestarias. Eles também estão nas escolas, são os alfabetizadores, sendo os únicos profes-
sores até o 3º ano do ensino fundamental. Outras atividades como: fazer rede, colher e fiar
algodão são das mulheres. Foi com elas que ensaiei várias manualidades, como esguede-
lhar, fiar, tecer com algodão, tirar a seda do buriti e produzir fios finos e fortes, que resul-
tariam em esteiras e redes. Foram poucos dias, mas de vivência intensa, um verdadeiro
mergulho cultural e histórico, para sorver alguma coisa daquelas manualidades que ali
também pareciam perder fôlego, correndo o risco de serem descontinuadas.

Nessa cultura existem dois tipos de fios para tecer: os de algodão, extraídos do algodão
silvestre, um grande arbusto de quase três metros de altura, e os fios que fazem do broto de
buriti. Tanto uma quanto outra planta exigem grande habilidade para terem suas fibras
transformadas em fios. Acompanhei com curiosidade e atenção, buscando incorporar esse
conhecimento, tentando identificar nele a conexão com a ancestralidade que tanto busca-
va. E junto com esse aprendizado, sentimentos se opunham: primeiro foi a alegria de ver
aquele povo em seu cotidiano produtivo, criando os artefatos do dia a dia. Mas veio logo
a seguir a tristeza de saber que aquela vivência tinha sido proporcionada pelo grupo de
visitantes vindos da cidade, algo parecido com uma vitrine do que era o passado recente
daquele povo. Os mais jovens pouco se interessam por aquelas atividades, pois estão mais
preocupados com o que vem da cidade, com as redes sociais e os produtos industrializa-
dos. Ao mesmo tempo em que sabem pertencer àquele povo, atendem a um forte anseio
de se voltarem para fora. Assim como fazem os jovens urbanos, mergulham em seus pe-
quenos objetos eletrônicos, em busca de um pertencimento criado pelo mercado.

Nos conhecimentos propagados pelos mais velhos, são sempre cultivadas diversas for-
mas de resistência cultural. O plantio do algodão silvestre e do buriti estão entre as
iniciativas desse povo, para não verem se perder suas tradições, em meio à avalanche
despejada pelos meios de comunicação de massa e os muitos objetos vindos da cidade.
No entanto, os incêndios anuais que acontecem no cerrado em Mato Grosso, muitas

343
vezes frustram essas tentativas, pois destroem a matéria prima essencial para a materia-
lização de muitos objetos. O buriti é considerado um Patrimônio Cultural, tamanha
importância que tem para os povos indígenas do cerrado. Do talo, os Bakairi produzem
esteiras, que são usadas para espremer e coar a massa da mandioca e tirar o polvilho.
Das folhas fazem os telhados das casas, saias, vassouras, enfeites culturais. Dos talos
mais grossos fazem móveis. A seda é uma película fina retirada da folha e dela se faz o
que mais encanta meus olhos, o fio para os arcos de caça e para a produção das redes.

Saber o que se mantem e o que se transforma dessas culturas tradicionais, seria objeto
de estudos por especialistas. Algumas pessoas mais velhas ainda mantém a tradição de
tecer redes como Dona. Vilinta, um bom exemplo disso. Com seus 83 anos, ela ainda
empenhava um grande esforço para passar esse conhecimento para suas filhas e depois
para as netas. Dona de uma personalidade muito curiosa, se mostrou aberta e interes-
sada em aprender comigo a técnica do crochê. Encontrei ainda outras mulheres hábeis
na tecelagem de redes, mas pôde saber também do pouco interesse pelos mais jovens.
Muitas das atividades manuais antes ligadas ao cotidiano e à sobrevivência, estavam
sendo substituídas em grande parte pela praticidade dos objetos industrializados.

O que teria acontecido com a mobilização de energia necessária para sua produção? Para
onde teria ido à atenção desenvolvida para conhecer o cerrado, tirar os talos e os brotos
do buriti? Onde se localiza agora a concentração necessária para desfiar as folhas e delas
tirar a seda? Correm também risco de extinção o silêncio e o cuidado, a presença e a ha-
bilidade de observação minuciosa das delicadas tramas tecidas nas esteiras? De vez em
quando eu parava para refletir se essas indagações estariam vindo da realidade objetiva
que eu estava vivendo, ou seriam projeções de minhas buscas pelo fio da meada em meu
interior, que pareciam tão necessárias para me sentir mais viva, inteira e humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os ciclos acontecem de fato, ou nossa mente os inventa com a intenção de dar uma
lógica mais natural aos acontecimentos? Em meu caso especificamente, mais parece
que uma vivência plantada em minha infância, ficou latente, encubada por anos e veio
a florescer em minha vida adulta. Quem sabe, no fundo sempre houve de minha parte
um desejo de perseguir alguma coisa menos palpável, que se poderia chamar de auto-
conhecimento através das manualidades.

344
Atualmente o que se vê ao nosso redor é um distanciamento, quase que um desprezo
pelas atividades manuais em favor de uma mecanização e uma virtualização de nossas
relações e de nossa atuação no mundo. Fica subentendido que nossa participação em
um mundo onde a tecnologia tem cada vez mais espaço, precisa abrir mão das ativida-
des manuais. Seriam mesmo excludentes essas duas posições, ou poderiam ser com-
plementares? Afinal, a ciência que tanto se desenvolveu na compreensão e domínio de
grande parte da natureza, apenas engatinha quando se trata de explorar a imensa gama
de possibilidades que existe na mente humana.

Tenho presenciado adultos, mas principalmente crianças e adolescentes mergulhados em


suas pequenas telas que os conectam com o mundo, mas não os ajudam a desenvolver habi-
lidades de lidar com pequenos desafios do cotidiano. Tampouco lhes abrem caminhos para
superar frustrações ou melhor refletir sobre quais seriam suas melhores escolhas na vida.

Quem sabe, talvez seja uma boa hora para se voltar a pensar nas atividades manuais
como um fio condutor de alguns processos de desenvolvimento humano e darmos uma
chance de retomada nesse fio da meada.

REFERÊNCIAS
VEIGA, Ana Lygia Vieira da. Fiar a escrita: políticas de narratividade – exercícios e
experimentações entre arte manual e escrita acadêmica. Um modo de existir em edu-
cações inspirado numa antroposofia da imanência. 2015. 540 p. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Educação. Universidade Federal de Juiz de Fora. 2015.

SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

STEINER, Rudolf. A Arte da Educação- I. São Paulo: Antroposófica, 3ªedição, 158p.


2003.

ROMANCINI, Sônia Regina. Espaço e manifestações culturais na região de Cuia-


bá. Cuiabá: UFMT/PROPEQ/CNPq, 2005a.

345
artigo publicado conforme redação original

Da memória
familiar aos
labirintos do ingá
por Marly Burity Dialectaquiz¹

RESUMO: Sabe aquela história que a gente ouve e guarda e visita anos depois? Pois
bem, essa memória das rendeiras do Ingá, contada pela minha mãe e por minha tia
Lourdes (in memoriam), nascidas no Ingá-Paraíba, é um lindo exemplo de como a tra-
ma das labirinteiras enreda gerações. No município de Ingá, às margens da BR 230, há
104 km da capital João Pessoa, fica a comunidade de Chã dos Pereiras, “terra” da Renda
Labirinto habilidosamente manufaturada, em sua maioria, por mulheres artesãs, que se
reúnem na rua para tecerem seus labirintos, caseando, perfilando, desfiando e enchendo
as tramas, arte do riscado simétrico do agreste nordestino. Nesse trabalho inicial de
conhecer mais profundamente o que é a Renda Labirinto, também conhecida como
Crivo, apresento a arte que se tornou para tantas mulheres ofício e renda, criando iden-
tidade cultural e artística naquela comunidade sendo fonte de ensinamentos passados
de geração a geração. Para Certeau (1998 p.157), “este saber se faz de muitos momentos
e de muitas coisas heterogêneas. Não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio.
É uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos tempos de sua aquisição
e vão desfiando as suas singularidades”. Faço assim, meu caminho, da memória familiar
aos labirintos do Ingá, materializando em imagens e texturas, o fino riscado crivado.

PALAVRAS-CHAVE: Renda labirinto. Ingá-Chã dos Pereiras. Memórias. Rendeiras.

1 Graduada em Artes Visuais pela UNIP (Universidade Paulista),


Aluna de Pós-graduação em Artes-Manuais para Educação pela
FACON/Nina Veiga Atelier de Educação. E-mail: marly.burity@gmail.
INTRODUÇÃO
Foi através da memória familiar que cheguei ao conhecimento da Renda Labirinto.
Sou filha de uma mulher Ingaense que contava histórias sobre as labirinteiras de Chã
dos Pereiras, despertando em mim a curiosidade em vê-las tecendo e estendendo as
“bandeiras rendadas”.

A pequena comunidade rural de Chã dos Pereiras localizada no município de Ingá no


estado da Paraíba, abriga um grupo de mulheres artesãs que carregam nas mãos a arte
de tecer a Renda Labirinto. No clima quente do agreste, elas se reúnem ao ar livre, ocu-
pando ruas e calçadas ao ar livre, para juntas contarem suas histórias e tecerem outras
novas, pois esse fazer manual é também um grito de liberdade e luta, cujas armas são o
pano, a linha e a agulha que, investidos de uma potência cultural transformadora, gera
renda e fortalece a identidade local. São fazeres de um saber ancestral que produz voz na
experiência em grupo e compartilha memórias e aprendizados por gerações.

Renda Irlandesa, Renda Renascença e a Renda Labirinto, também conhecida como Cri-
vo Labirinto são para Cunha e Vieira (2009) as “rendas de agulha”, assim denominadas
por terem a agulha como instrumento, ao contrário das rendas confeccionadas por bilro
(instrumento de madeira ou metal). Ainda segundo Cunha e Vieira (2009), as “rendas de
agulha” vindas do continente europeu, deram entrada no Brasil no final do século XV.

No Nordeste, a Renda Labirinto chega no final do século XVII para logo se tornar um
ofício, majoritariamente feminino, sendo riqueza material e simbólica de muitas comu-
nidades dessa região. Para Câmara Cascudo (1988),

“Uma profissão humilde e linda é a da nossa rendeira, tecendo maravilhas de de-


licadeza... São artífices em ambientes paupérrimos, conseguindo obras-primas
que encantam os olhos estrangeiros...” (CASCUDO,1988, p 670).

O olhar atencioso ao entorno e o riscado criativo de cada artesã, transforma o tecido


de algodão em obras de arte que retratam as imagens do cotidiano, rosas, frutas, cactos
palma, folhas e gavinhas, são elementos nordestinos desenhados pelas rendeiras. Ao
estudarmos a renda labirinto feita na comunidade de Chã dos Pereiras, concordamos
com Cascudo (1988) sobre “obras-primas que encantam os olhos”, “maravilhas de deli-

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cadezas”, mas o “ambiente paupérrimo” é demasiado forte para definir o município de
Ingá e a comunidade de Chã dos Pereiras.

Localizado a 104 km da capital, João Pessoa, na base do relevo da Planalto da Borbo-


rema, o Ingá, de clima quente e seco, é uma cidade de aproximadamente 18mil habi-
tantes distribuídos nas zonas urbana e rural. A economia da cidade passou de grande
produtora de algodão (séc. XIX) à serviço público e potencial turístico, esse último
representado por um sítio arqueológico de expressões em gravuras rupestres que cha-
ma a atenção de pesquisadores do mundo inteiro, mas que não teve, ainda, a atenção
devida dos gestores públicos locais e nacionais. A “Pedra Lavrada” assim chamada
pelo povo ingaense ou as Itacoatiaras , que em tupi significa “escrita na pedra” são um
mistério que provoca diversas histórias, suposições, para alguns, as inscrições teriam
sido feitas pelos povos originários da região, para outros, por povos polinésios e há
ainda a crença de que sejam escritas fenícias.

De acordo com o IPHAN, (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional) as represen-


tações nas Itacoatiaras descobertas em 1940, são notáveis pelo uso quase exclusivo de
inscrições não figurativas, compondo grandes painéis de arte rupestre que exprimem a
criatividade de um povo que se apropriou de padrões estéticos abstratos como forma
de expressão, com possíveis conceitos simbólicos-religiosos, se diferenciando de outras
representações como as zoomórficas e/ou antropomórficas.

Nesse território de pedras lavradas e grande riqueza cultural, se estabelece a Comunida-


de de Chã dos Pereiras onde tecidos são “crivados” por mãos que escolheram as agulhas
como o instrumento de seu trabalho, contribuindo para a economia do lugar e como uma
produção artística para o “fazer labirinto” transmitindo esse saber para a comunidade local.

AS RENDEIRAS DE CHÃ DOS PEREIRAS


Dotadas de um conhecimento adquirido através do tempo e no contato direto com o
objeto, no caso a renda, as mulheres rendeiras “da Chã”, assim chamada por elas mes-
mas, se tornaram especialistas em um fazer manual aprendido, não em instituições aca-
dêmicas, mas, um saber empírico assimilado da própria experiência no manuseio habili-
doso do tecido, da agulha e das linhas de forma que, o “fazer labirinto” pareça fácil, talvez
porque sejam práticas cotidianas, envolvidas por sentimentos e experiências. É como se

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esse saber viesse na transmissão do próprio DNA, algo que automaticamente se desen-
volve no contato com os materiais para rendar.

É importante destacar que desde muito cedo, em média aos oito anos de idade, as me-
ninas se iniciam na manufatura da Renda Labirinto, que não é um aprendizado direcio-
nado, aprendendo apenas olhando com atenção as mães, as tias e avós, que se reúnem,
geralmente em rodas de rendeiras para desenvolverem sua arte. É algo que acontece
naturalmente, é um brincar de pegar o bastidor, escolher a linha e agulha, selecionar
desenhos e cores, entrar na roda e iniciar-se no labirinto.

Não que essa prática não possa ser aprendida por outras pessoas que desejem apren-
der, mas é como se o exercício dessa prática naquele ambiente circular provocasse algo
diferente, como se estivessem interligadas por uma magia ancestral que as conectas-
sem naquele momento. Para Andréa Cordeiro (2017) as rodas de rendeiras assim como
as de bordadeiras e de pessoas em conversas não são apenas uma disposição atávica
que nos move a ficar juntos e circulares em torno de algo, mas sim, um dispositivo co-
municativo nos encontros, em especial na educação.

Com isso, pode-se dizer que o reunir-se em círculos, como nas “rodas de rendeiras”,
são encontros que produzem algo ainda maior que o objeto, se insere ali, educação.
Entremeando as rendeiras de Chã dos Pereiras e Cordeiro (2017), este círculo pode ser
entendido como uma representação de uma aliança ou de um encadeamento de elos
que fortalecem a igualdade de posições e de responsabilidades em transmitir o conhe-
cimento daquele fazer manual.

Vivendo apenas do sustento vindo da agricultura, do trabalho geralmente exercido pe-


los homens, essas mulheres artesãs firmaram através da trama do labirinto uma renda
financeira para suas famílias. Assim, a arte do labirinto abre caminhos para uma vida
inclusiva para as mulheres de Chã dos Pereiras.

O FAZER DA RENDA LABIRINTO


Pode-se dizer que a Renda Labirinto ganha vida em qualquer tecido com fios contáveis
como ponto de estrutura, ou seja, que possua uma trama que permita que os fios sejam des-
fiados, puxados com facilidade, a exemplo dos tecidos de algodão como o linho e o linhão.

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Linha e agulha se juntam para a execução de uma trama simétrica conduzidas pelas
mãos habilidosas das labirinteiras que em movimentos rápidos, ritmados e constantes,
do entra e sai da agulha no tecido, resultam numa simbiose com a peça produzida.

Para Ingold (2015), “na prática do trabalho manual, com uso de ferramenta, a sintoniza-
ção ou “correção sensorial” do movimento do profissional depende, no entanto, de um
acoplamento íntimo de percepção e ação...[...] Esse acoplamento multissensorial esta-
belece a destreza e controle que são as principais características da prática qualificada”.

Fazendo um ponto de união entre Ingold (2015) e a confecção da Renda Labirinto,


quanto ao movimento das mãos no manuseio da agulha, percebemos gestos quase invo-
luntários, independentes de um comando, o vai e vem da agulha como em modo auto-
mático torna-se acoplamento de percepção e ação. Assim as rendeiras com suas agulhas,
seguem tecendo seus pontos cerzidos, torcidos, de melindre e tantos outros.

O processo de feitura da Renda Labirinto passa por cinco etapas até a conclusão da
peça, são elas:

1. Riscado: O tecido é desenhado e marcado com uma carretilha. Em alguns


casos, moldes são utilizados para facilitar o desenho, em outros casos, são fei-
tos diagramas com pontos contados.

2. Desfiado: Consiste em desfiar todo o tecido deixando a trama vazada, res-


peitando o desenho ou diagrama.

3. Enchimento: acontece com o preenchimento das tramas vazias do tecido,


com contagem detalhada dos fios, respeitando o desenho riscado. Nessa etapa
é necessário a utilização de um bastidor de madeira, instrumento que prende o
tecido para que os pontos fiquem bem apertados e não aconteça a movimenta-
ção do tecido. O enchimento da trama é feito com uma linha específica, bastan-
te resistente, 100% algodão mercerizado, de fio lustroso, chamada “Esterlina”.
A agulha utilizada é própria para bordado, uma agulha grossa e sem ponta.

4. Torcimento: Nesse processo, o tecido é preso em armações geralmente


de madeira, para dar forma aos desenhos;

5. Perfilamento, termo utilizado para o acabamento das beiradas com o te-


cido fora do bastidor.
Após esse processo, o tecido é lavado, engomado e preso bem esticado para secar em
uma grade, para que a forma do desenho não seja perdida.

Apesar de as artesãs terem o conhecimento sobre as cinco etapas da confecção da renda,


algumas preferem etapas específicas, uma gosta mais de riscar e outra de desfiar, outra
prefere encher e assim, unidas, em cadeia, em roda, em processo de colaboração, manu-
seiam, muitas vezes a mesma peça, que será um vestido, uma toalha de mesa, a criativi-
dade não tem limites. Diversas formas podem ser transformadas em Renda Labirinto,
cada peça se torna exclusiva, tingidas em cores de vários tons fazem das ruas e calçadas
uma galeria de arte ao ar livre de rendas coloridas.

De acordo com Ferreira (2017), Chã dos Pereiras é considerado um dos maiores ex-
poentes na produção da Renda Labirinto na Paraíba, esse distrito rural de Ingá é
sustentado por esse artesanato que se tornou um elemento unificador, influenciando
o desenvolvimento local, atraindo as atenções do poder público instituindo formas de
melhoramento para a comunidade.

Hoje a comunidade é amparada pela Associação das Artesãs Rurais de Chã dos Pe-
reiras, fundada em 1983 por Dona Antônia Ribeiro de Mendonça (in memoriam) que
ajudou a transformar um processo individualizado em comunitário, sem a presença de
atravessadores, permitindo que juntas as artesãs discutam sobre o valor econômico de
seus trabalhos e todas recebam pelo produto vendido.

A produção da Renda Labirinto vem resistindo ao tempo graças ao empenho e disposi-


ção dessas rendeiras que por amor e necessidade seguem confeccionando suas peças de
um fazer mais que centenário, dando continuidade ao ensino de gerações,

“este saber se faz de muitos momentos e de muitas coisas heterogêneas. Não tem
enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimen-
tos não se podem separar dos tempos de sua aquisição e vão desfiando as suas
singularidades”. (Certeau, 1998 p.157)

351
Os momentos vivenciados pelas mulheres rendeiras de Chã dos Pereiras surgem de
uma força diária que se estabelece num devir mínimo daqueles gestos, crivando no teci-
do, memórias e conhecimentos que não se desvinculam da história de cada uma delas e
ainda que se desloquem para outros lugares, carregarão consigo esse saber.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esse trabalho procuramos apresentar o fazer manual da Renda Labirinto na co-
munidade de Chã dos Pereiras na Paraíba, um trabalho executado por mulheres de um
distrito rural que através de um saber empírico manuseiam suas agulhas e linhas tecendo
a renda e passando de geração a geração os seus conhecimentos.

Reunidas quase sempre em círculos, as rendei-


ras de Chã dos Pereiras transformam aquela
local em um ambiente de conversas e histórias
estendendo nas ruas o resultado de seus traba-
lhos que mais parecem “bandeiras rendadas’.
Aquelas mãos habilidosas estabelecem através
de devires mínimos, uma prática cotidiana que
abre caminho para uma vida mais inclusiva,
trazendo renda financeira para as famílias. Mu-
lheres que hoje produzem voz num lugar antes
sustentado apenas da agricultura.

Podemos considerar o artesanato desta comuni-


dade uma ação de resistência através das artífi-
ces da Renda Labirinto. Um fazer que se alinha
com movimentos por uma renda mínima, uma
arte que está no “saber da casa”, na transferência
de conhecimentos. Mulheres que produzem no
pequeno, um saber que circula fora das galerias,
das exposições, das passarelas, do capitalismo,
Imagem 1: Maria do Socorro Burity Dialectaquiz e Marly
sem grandes plateias, vivenciando ali na peque- Burity Dialectaquiz; Chã dos Pereiras, Ingá-PB, dezem-
na roda, um cotidiano de simplicidade em defe- bro de 2019. Toalha de mesa tecida em Renda Labirinto
sa do que para elas é produção da própria vida. por Dona Antônia Ribeiro de Mendonça (in memoriam).
REFERÊNCIAS
CASCUDO, L. C. Dicionário do Folclore Brasileiro, 6. ed – Belo Horizonte; Itatiaia;
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano.2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

CUNHA, Tania Batista; VIEIRA, Sarita Brasão. Entre o bordado e a renda: con-
dições de trabalho e saúde das labirinteiras de Juarez Távora, PB. Psicol. cienc. prof.
vol.29 no.2 Brasília 2009.

FERREIRA, A. Ingá: Retalhos da História...Resquícios de Memória. 2.ed. Campina


Grande: Cópias e Papéis, 2017.

INGOLD, T. Estar Vivo, Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição; tradu-


ção de Fabio Creder. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. – (Coleção Antropologia)

CORDEIRO, Andréa, texto disponível em: http://www.edpopsus.epsjv.fiocruz.br/si-


tes/default/files/texto-2-4-cc3adrculos-de cultura.pdf, acesso em 12/02/2020.

IBGE, Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/inga/panorama acesso em


11/01/2020.

LABIRINTO DE RENDA (Ingá e Chã dos Pereiras). Direção Geral: Bebeto Abrantes.
Produção: Cara de Cão Filmes, 2012. Vídeo (23:53min) Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=8glUyxzGSMs, acesso em 26/12/19.

PORTAL IPHAN, Itacoatiaras do Rio Ingá, Disponível em: http://portal.iphan.gov.


br/pagina/detalhes/824 acesso em 11/01/2020.

353
educação
tornar-se
pluralidades

afetar-se

ato político
corpo

arte-manual

354
Uma das perspectivas de conceito de educação que encontramos ao de-
bruçar sobre o assunto tem como base a proposta de que cada ser “torne-se
em si mesmo, até a sua altura, até mesmo o melhor de suas possibilidades”.
Encontraremos este conceito de “tornar-se o que se é” na potência dos ar-
tigos apresentados pelas pesquisadoras nestes Anais do I Congresso Ar-
tes-Manuais na academia.

Elas buscam, assim como nós, propor uma educação como experiência,
educação do compartilhar, essa educação que fazemos diariamente em
nossas trocas e conversas, mas não só.

Uma educação da experimentação, educação de composição de fios, ou


outros materiais, composição de textos e leituras, composição de mate-
riais e meios, mas não só.

Educação como afeto, afeto desse de afetar-se ao permitir-se afetar. O que


se afeta quando as artes-manuais permeiam a educação?

1 VEIGA, Ana Lygia Vieira Shil da. Fiar a escrita: políticas de narratividade – exercícios e experimentações
entre arte manual e a escrita acadêmica. Um modo de existir em educações inspirado numa antroposofia da
imanência. 2015. 540 p. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juiz
de Fora, Juiz de Fora, MG, 2015.

2 LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação. 3° ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 39.

3 Utilizar o feminino nas palavras é uma escolha política da autora deste texto, já que crescemos ouvindo e
incluindo-nos quando palavras de gênero masculino são ditas ou escritas. Essa utilização não pretende ferir ou
excluir a ninguém, sintam-se todes e todos incluídos nas palavras.
Não tento responder a esta pergunta, mas perceber aquilo que se apresen-
ta. Propor uma educação também escolar, a educação também acadêmica,
educação à qual se lê mundo antes de ler palavra. Educação que acom-
panha processos. E acompanhar processos é estar entre o propositor e a
proposição. É estar entre dispositivo e mundo.

Bordar pluralidades, a poesia do corpo, trazendo o ato político do educar.


Educar-se, no cinema, no crochê, na arte, na escola, na arte-manual, nas
rodas de conversa de bordado. Múltiplas educações aquelas que se fazem
em casa, no pano de prato ou no contexto escolar, na aula de inglês, que
constrói seus próprios modos de aprendizagem e ensinagem. Educações
escolares ou não. Educação que acontece na relação com o outro ou com
a materialidade.

Luciana Aguilar
Artífice Comunitária:
A criação de um espaço
para o exercício do agir
por Maria Aparecida de Morais

RESUMO
Neste artigo, o tema central gira em torno da observação das relações humanas como
agentes de desenvolvimento de talentos, criadoras de vínculos por meio do ensino e execu-
ção de trabalhos manuais em grupo, tendo como consequência a promoção de uma har-
monia estética no espaço físico onde trabalho, a Escola Waldorf Santos. Indiretamente,
notamos a aproximação entre a comunidade formada por pais de alunos e funcionários e
corpo docente, além da criação de espaços para lazer e troca de cultura e conhecimento.
Os produtos resultantes dessa ação de ensino/aprendizagem trazem consigo também uma
proposta de geração de renda extra para a comunidade escolar. Esse trabalho em conjunto
se materializou por meio da criação de uma sala específica, chamada multiuso, onde acon-
tecem as vivências relacionadas ao fazer das manualidades. Enquanto pensamos, conduzi-
mos e realizamos trabalhos manuais, nasce um espaço físico onde a comunidade materiali-
za os seus sonhos e os seus desejos. O pensamento se mistura com o fazer e com a força da
vontade, ganhando corpo: agora sou participante de um projeto que encontrou suas várias
maneiras de existir. Colaboro e alinhavo atividades propostas. Sou espectadora da minha
própria criação. E, me apropriando do título deste trabalho, sou também uma Artífice
Comunitária. Como existem multidemandas, elas foram e são atendidas em diferentes ofi-
cinas, que trazem organização para as várias maneiras de ser e estar na sala multiuso. Este
trabalho descreve a experiência da construção sentimental e física desse espaço.

PALAVRAS-CHAVE: Comunidade. Materialidade. Trabalhos manuais.

357
INTRODUÇÃO
Neste artigo, compartilho a história do nascimento de uma sala multiuso na Escola
Waldorf Santos, localizada na cidade de mesmo nome, com atuação desta autora como
Artífice Comunitária.

Artífice Comunitária é uma designação cunhada para se referir a uma operária das ar-
1
tes-manuais que atua como facilitadora de processos artísticos e criativos que envol-
vem uma comunidade escolar de pedagogia Waldorf.

Essa pedagogia específica se utiliza dos trabalhos manuais de diversas maneiras, sen-
do o ensino das artes muito mais do que simples prazer ou entretenimento, e sim um
instrumento para a formação equilibrada do ser humano. Dentro de instituições assim,
esse aprendizado acontece desde os primeiros anos da Educação Infantil e se estende
até o final da vida escolar.

Rudolf Steiner, filósofo, educador e artista, criador da Antroposofia e da filosofia da


educação que deu origem à pedagogia Waldorf, descreve a vivência humana destacan-
do que todas as atitudes que tomamos em nosso cotidiano, durante a vida inteira, pas-
sam pela aprendizagem por meio da imitação do agir de pessoas que admiramos desde
a mais tenra idade. Para tomar qualquer decisão que a vida nos impõe, nós pensamos
logicamente sobre o fato, avaliamos as sensações que ela nos causa e, após esse filtro
2
emocional, decidimos que atitude tomar .

O pensar que leva ao agir é organizado nos indivíduos e tem origem nos costumes e
culturas dos grupos. Também é observado nas relações sociais e comunitárias. Sendo
assim, o objetivo principal deste trabalho como Artífice é o ensino e o desenvolvimento
de trabalhos manuais e a união de uma comunidade em torno de ideais comuns, geran-
do um ciclo de acontecimentos e realizações dentro do ambiente escolar.

A primeira demanda para a execução das manualidades acabou se tornando o trabalho


inicial desta autora como Artífice Comunitária: a criação de uma sala onde pudessem

1 O hífen demonstra o tensionamento existente entre os dois conceitos.


2 KÖNIG, Karl. Os três primeiros anos da criança: a conquista do andar, do falar e do pensar e o desenvolvimento dos
três sentidos superiores. 6. ed. São Paulo: Antroposófica, 2014.

358
ser ministradas oficinas dos mais variados temas, além de rodas de conversa e expo-
sições. Uma maneira de integrar, enfim, diversas vivências em grupo, exercitando o
pensar, o sentir e, principalmente, o agir na vida dessa comunidade escolar.

Meu trabalho de ampla ação como Artífice Comunitária tem como síntese essa sala, um
espaço de construção de relações humanas e conhecimento; como resultado secundá-
rio, a geração de renda complementar para o grupo com a venda das peças produzidas.

DESENVOLVIMENTO
Este projeto foi gestado em um tempo não cronológico, em que os saberes dos meus
ancestrais vieram sendo costurados, bordados, crochetados, tricotados e, às vezes, cer-
zidos com o fio da sabedoria e da arte; fio este que me move e me sustenta até os dias
atuais. Busquei no meu baú de lembranças momentos vividos. Encontrei pérolas que
tenho a oportunidade de compartilhar. Possuo a sabedoria que o corpo guardou a par-
tir das experiências que as mulheres da minha vida me proporcionaram.

Entre elas, a minha avó materna, Maria Francisca. Tive a sorte de ter duas mães. Muito pe-
quena, quando chamava por uma, apareciam as duas. Sem dominar ainda a linguagem, eu
dizia Iôta. Assim ficou. Trago a lembrança dos nossos trabalhos com o fio. Do descaroça-
dor de algodão: eu sentava de um lado e a Iôtinha do outro. Juntas, tocavámos as manivelas.
Ela colocava a fibra ainda com sementes na máquina e eu a pegava na outra extremidade.
Ainda trago na memória o som das sementes caindo no piso de assoalho. Pretas e brilhan-
tes, no final do dia, elas iriam para uma cesta e eram os meus brinquedos favoritos.

Todo esse processo era permeado por canções suaves – Iôtinha cantava e eu me en-
cantava. Esse algodão era cardado, transformando-se em compridas nuvens brancas
e macias. Todas bem aconchegadas em um cesto de palha. Iôtinha cantava e eu me
encantava. As nuvens agora passavam para um outro processo, mais denso. Na roca ou
no fuso, viravam fios que, na minha inocência, dariam para enrolar o mundo. Tais fios
transformavam-se em meadas, nas quais eu tinha participação. Meus braços esticados
à frente serviam de apoio para formar essas meadas, cujos fios eram mergulhados em
um chá colorido e depois secavam ao sol. Após a secagem, eram enrolados em perfeitos
novelos – que mais pareciam uma obra de arte. Logo em seguida, eram desfeitos no
tear, virando colchas e mantas coloridas. Parecia tudo uma grande magia.

359
Da minha avó paterna, Fátima, que era cigana, herdei o olhar exagerado para formas
e cores. Amo uma estética descomprometida com a tradicional. Sou espectadora das
minhas criações, fico apreciando-as, encantada. Também sou muito corajosa e movida
a desafios. Não gosto de seguir receitas. Adoro deixar as formas surgirem, viver o ines-
3
perado, explorar o desconhecido. No meu mundo gajo , foco no presente.

Da minha mãe, Lazara Maria, trago o caos, que segue me orientando em tudo o que
me proponho a fazer. É no caos que encontro o equilíbrio de uma estética vinculada à
beleza e à harmonia.

Sou, enfim, a mistura dessas mulheres que ajudaram a escrever a minha história. Hoje
me descubro uma Artífice Comunitária. Quando comecei a redigir e colocar em prática
todos os processos necessários para adequar as famílias ao contexto escolar, percebi a
necessidade de criar um espaço comunitário, físico, onde pudesse dar voz à criatividade
e ao artista que habita em cada um.

1 NASCE UMA ARTÍFICE COMUNITÁRIA, NASCE UMA SALA


Discutir o despertar da conscientização sobre as relações comunitárias e o seu impacto
no mundo e as potencialidades dos trabalhos manuais como fonte de criação de renda
em um grupo é o que propomos a fazer neste artigo. Partimos, desse modo, de um ques-
tionamento básico: “O que acontece quando nada parece acontecer?” E, a partir daí,
criamos uma inquietação, um ponto que se agita e, ao mesmo tempo, deseja equilíbrio.

Por isso, é necessário encontrar um ponto firme e seguro, que possa transitar pelo es-
paço infinito e desenhar todas as formas que a criatividade junto com a vontade pode
sonhar. E é preciso termos foco para vermos, por exemplo, que um quadrado é uma
junção de pontos fazendo uma dança perfeita!

Dentro de uma sala assim, encontramos quatro lados – e esse quadrilátero nos mostra
as arestas nas relações. O relacionar tanto pode criar tais arestas quanto poli-las. Para
polir, é preciso substância e potencialidade. No quadrado de uma sala, em sua infinitu-

3 Palavra do dialeto cigano que tem muitos significados, entre eles, pessoa adulta.

360
de, cabe o mundo. Meu trabalho como Artífice é imprimir texturas, cores e densidade
dentro desses quadriláteros comunitários.

Os espaços onde são ensinados, produzidos e vividos os meios para se atingir essa vasta
gama de possibilidades visuais e táteis são também locais onde podemos firmar os pés
no chão e encontrar equilíbrio. Sentindo e encontrando a graça. E foi alicerçada nesses
conceitos que se deu a criação da sala multiuso.

Como Artífice Comunitária, trabalho para a construção de um espaço capaz de abrigar


oficinas de brinquedos em crochê, tricô, bonecas de pano e o que mais a comunidade so-
nhar, sentir. Minha ação compreende a integração de todos os elos que formam a escola
de Educação Infantil. As famílias dos alunos doam os materiais, as professoras da insti-
tuição e outros artistas convidados ministram as oficinas, a comunidade aprende a téc-
nica e confecciona as peças, disponibilizando-as para venda em um expositor que existe
na sala. Há, ainda, multiprojetos para o espaço: saraus, rodas de conversa e contação de
histórias. Toda a renda produzida ali será destinada a investimentos em novas oficinas.

E pensar que tudo começou com um tapete de crochê, realizado por pais de alunos da
Educação Infantil. O espaço reservado para ele é especial, em que é possível sentir no
ar o conhecimento deixado por nossos ancestrais, em pequenas partículas, no cheiro,
nas marcas e nas formas desenhadas ali pelo tempo. Um local que já foi a biblioteca, ao
receber esse tapete feito por várias mãos, tornou-se a sala multiuso.

2 A SALA VIVE: OFICINAS


OFICINA DE TAPETE
A proposta inicial de trabalho em grupo foi a execução de quadrados de crochê em três
tons de azul. A comunidade se empenhou na confecção dessas formas geométricas, que
nada mais são do que a metáfora da sala e dos tantos quadrados em que estamos inseridos.
O conjunto desses quadros, produzidos por diversas pessoas, tornou-se um grande tapete.

361
Fotografia 1: Tapete feito em
oficinas de crochê por pais de
alunos da Educação Infantil.
Fonte: Maria Aparecida de
Morais (2019).

BAZAR DE NATAL
O Bazar de Natal é um grande evento da Escola Waldorf Santos. Pais de todas as
turmas produzem objetos e iguarias para serem vendidos em um dia especial em que os
alunos expõem os trabalhos realizados durante todo o ano.

Antes mesmo da implementação da sala multiuso, como Artífice Comunitária agi na


organização dos trabalhos dos familiares de alunos da Educação Infantil. E assim fize-
mos: pais, mães, avós, demais integrantes das famílias das crianças e professoras deci-
diram os objetos que seriam produzidos; estas últimas ministraram as oficinas. Com os
materiais doados pelos pais, surgiram carneirinhos feitos de lã, caixas com personagens
e histórias para teatro, capas, varinhas de fada, coroas de príncipe, cestas de frutas feitas
em crochê, presépios de feltro, quadros e fadas em lã cardada.

Fotografias 2 e 3: Fadinhas e presépio feitos por fami-


liares de alunos para o Bazar de Natal. Fonte: Maria
Aparecida de Morais (2019).
CAFÉ COM SABERES
As avós da nossa comunidade se reúnem
semanalmente no encontro “Café com Sabe-
res”, já instalado na sala multiuso, onde há,
além de aconchego e da bebida que dá nome
ao grupo, pães e biscoitos feitos pelas crian-
ças nas atividades de culinária da escola.

As mãos dessas avós trabalham em ges-


tos profundos e confeccionam cortinas,
lençóis, almofadas e tapetes para nossas
salas. Futuramente irão produzir também
brinquedos, como bonecas de pano, bolas
em crochê e feltro, além de trabalhos em
feltragem com lã cardada, seca e molhada.
Bordados surgirão, resgatando histórias,
como um fio que seguirá costurando expe-
riências e dando grandes laçadas nos vín- Fotografia 4: Confecção de aventais por
avós do projeto “Café com Saberes”.
culos estabelecidos. A ideia é que as peças Fonte: Carolina Ozores (2019).
criadas sejam expostas e vendidas na loja
da escola e em bazares. A renda obtida
será para a compra de novos materiais.

O BORDADO, AS ARTÍFICES DOCENTES


DA COMUNIDADE E O PORTFÓLIO
O grupo de avós corta e costura aventais, acessórios de uso diário das professoras da
Educação Infantil, mas a criação não acaba aí. As professoras para as quais os aventais
são confeccionados, após oficinas de resgate do bordado, poderão personalizar as pró-
prias peças, trazendo sua essência em forma de trabalho manual para o dia a dia escolar.

Quem ministrará essas oficinas será uma docente convidada, ou melhor, uma Artífice Docen-
te, que produzirá um portfólio para as nossas pesquisas individuais. A proposta é de que cada
professora – agora na condição de aprendiz – borde uma história que seja representativa para
si e que possa ser externalizada para o ambiente da escola, a partir dos pontos aprendidos.
Com essas histórias bordadas, há a intenção de se produzir um livro, baseado na junção
de um texto com as várias formas e possibilidades desse tipo de técnica, despertando o
fazer artístico e respeitando o sentir de cada participante.

Fotografia 5: Portfólio
de pontos de bordados
utilizados em aulas para
professoras. Fonte:
Carolina Ozores (2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho foi desenvolvido em um tempo não cronológico em que os saberes e expe-
riências recolhidos ao longo da minha existência foram sendo costurados com o fio da
sabedoria dos meus ancestrais até os dia atuais, quando me torno Artífice Comunitária e
vejo os trabalhos manuais feitos por mim – que fazem parte do que sou desde a infância
– se transformando num instrumento de mudança e união dentro de uma comunidade.

Sinto a presença de minha avó materna, Iôtinha, que me mostrou e me deu a oportunidade
de usar o descaroçador de algodão. Ela sentada de um lado; eu, do outro, ajudando no
movimento da manivela, que de vez em quando travava com um caroço menor. O som
daquela máquina está até hoje em minha memória. O algodão era cardado e fiado em uma
roca ou fuso, e os fios em enormes novelos se transformavam, com minha participação.
Foi Iôtinha também quem me ensinou a costurar e a dar os primeiros pontos de bordado.

Da minha avó paterna, uma cigana chamada Fátima, recebi o olhar exagerado para
a beleza, para as composições descomprometidas com um padrão formal. Da minha

364
mãe, Lazara, herdei o caos, que segue me orientando em tudo o que me proponho a
fazer. É o que me ajuda a encontrar o equilíbrio da forma e da estética.

Das parcerias de vida que fiz ao longo dos meus 62 anos, trago as melhores referências
técnicas e a gratidão por grandes professores e mestres que tive a sorte de encontrar
pelo caminho e que me abriram portas para a beleza, sensibilidade e olhar artístico.

Não poderia ser diferente esta minha conclusão. Era imprescindível trazer de forma viva
a presença de cada agente que me propiciou essa formação e que, como pequenas células,
permanece em mim e me possibilita esse trabalho amoroso e transformador, materializado
numa sala construída por vontades e ideais, que instiga o surgimento de novas perspectivas.

Por fim, existe uma soma e uma completude que só o amor consegue costurar. Com
pontos firmes e fortes. Com cores e formas que delineiam caminhos percorridos e apon-
tam para o futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTALOT, Leonore. Criança querida: o dia a dia da alfabetização. 2. ed. São Pau-
lo: Antroposófica; Associação Comunitária Monte Azul, 1995.

FEDERAÇÃO DAS ESCOLAS WALDORF NO BRASIL (FEWB). Para a


estruturação do 1° ao 8° ano nas Escolas Waldorf/ Rudolf Steiner. Tradução Rudolf
Lanz. São Paulo: 1999.

KÖNIG, Karl. Os três primeiros anos da criança: a conquista do andar, do falar e do pen-
sar e o desenvolvimento dos três sentidos superiores. 6. ed. São Paulo: Antroposófica, 2014.

STEINER, Rudolf. O estudo geral do homem: uma base para a pedagogia Waldorf
(A Arte da Educação - Vol. 1). São Paulo: Antroposófica, 2007.

STEINER, Rudolf. A questão pedagógica como questão social: os fundamentos sociais,


histórico-culturais da pedagogia das Escolas Waldorf. Tradução Luciano Jelen Filho. 1. ed.
São Paulo: Antroposófica; Federação das Escolas Waldorf no Brasil (FEWB), 2009.
Bordado como intervenção
poética: Intermídia e remediação
no uso de têxteis e textos
por Erika Viviane Costa Vieira

RESUMO
Recentemente, observa-se maior protagonismo dos elementos relativos à materialidade
empregados em diferentes tipos de impresso, sendo as intervenções por meio de linhas e
agulhas uma delas. Algumas publicações têm empregado ilustrações de bordados, prin-
cipalmente em suas capas. Embora sejam locais de apelo comercial, as capas transmi-
tem informações que são cruciais tanto para a constituição do artefato-livro quanto para
o leitor, revelando-se como elementos de paratextualidade. Segundo Gérard Genette
(1987), esses elementos são convenções fundamentais que realizam a mediação entre o
livro e o mundo. As obras de Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho, e de
Ruth Silviano Brandão, Marília e Dirceu, são dois exemplos que usam a materialidade
do têxtil como ilustração e/ou temática poética. Este trabalho pretende refletir sobre o
impacto da materialidade do têxtil, em especial do bordado, no processo de construção
e/ou leitura das obras poéticas contemporâneas já citadas. Ao considerar o trabalho
de bordar tanto como topos quanto ilustração, pretende-se aproximar desse fenômeno
como intermídia, nos termos de Irina Rajewsky (2005), e como remediação, nos termos
de Bolter e Grusin (2000). Por fim, busca-se fomentar discussões sobre o bordado como
ilustração, o bordar e o uso do bordado tanto como temas poéticos quanto materialida-
des que inserem o aspecto háptico na escrita contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Bordado. Poesia. Intermidialidade.

366
INTRODUÇÃO
As artes têxteis não têm recebido o devido interesse dos estudos da intermidialidade,
tendo em vista os poucos encontrados ao iniciar a pesquisa desta temática. Seja por sua
inevitável associação com o artesanato ou como um trabalho vinculado às atividades do-
mésticas femininas, os têxteis têm sido estudados pelas áreas do Design, Moda, Economia
Doméstica, Materialidades da Arte, Artes Visuais, entre outros campos, mas pouco se vê
na área dos estudos comparados e interartes, negando, portanto, sua capacidade narrativa.

Por que as artes têxteis merecem ser estudadas pela intermidialidade? Porque elas são
compostas de estruturas semânticas complexas que estimulam diversos sentidos: com-
põem-se de cor, materialidade flexível e textura; estimulam não apenas a visão, mas
também o tato e a audição; podem estar associadas a narrativas de formas diversas,
seja ilustrando histórias, seja em sua composição, seja na forma de escrita. AnniAlbers
(1974) nos lembra que fomos muito treinados durante a escolarização para a leitura e a
escrita, trabalhando os sentidos da visão e da audição, mas muito pouco se fala sobre
a educação do toque, do sentir com as mãos. Os têxteis, portanto, teriam este papel de
estimular o sentido háptico, tornando mais complexa nossa percepção das superfícies.

De certa forma, este texto busca preencher uma lacuna e chamar atenção para o prota-
gonismo que as artes têxteis, particularmente o bordado, têm ocupado nas artes visuais
e na esfera literária, tanto em sua materialidade na constituição das publicações im-
pressas quanto temática poética. Nas publicações impressas, o bordado aparece como
intervenção artística na composição de alguns paratextos (GENETTE, 1997), como
na ilustração de capas e de algumas páginas do miolo do livro. Em contrapartida, en-
quanto temática poética, o bordado tem sido associado à metáfora do fazer poético, à
construção textual análoga à constituição do têxtil.

As obras de Angélica Freitas (2012), Um útero é do tamanho de um punho, e de Ruth


Silviano Brandão (2018), Marília e Dirceu, são publicações recentes que usam a mate-
rialidade do têxtil como intervenção artística e poética. A primeira usa imagens da série
“Indícios” (2005), de Anna Maria Maiolino, como ilustração da capa e aberturas das
séries poéticas na forma de ilustração. Já na publicação de Brandão (2018) ostenta uma
ilustração de um bordado na primeira e segunda capas, de autoria de Julia Panadés,

367
que remetem ao romance entre o poeta e inconfidente mineiro Tomás Antônio Gonza-
ga e Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão (a “Marília”, evocada nas suas famo-
sas liras). Além do texto em prosa poética evocar constantemente o bordado, Brandão
retoma o fato histórico de que tanto Gonzaga quanto Maria Doroteia eram bordado-
res. Seu ponto de partida é uma imagem de um lenço bordado por Maria Doroteia que
exibe a imagem de Maria Madalena.

Neste texto, serão tratadas questões conceituais relativos à intermidialidade de acordo com
Claus Clüver (2008) e Irina Rajewsky (2012). Em seguida, será abordado o conceito de
paratexto, segundo Gérard Genette (1997) e, finalmente, a análise das obras supracitadas.

2 BORDADO E INTERMIDIALIDADE
As ilustrações que aqui serão analisadas foram feitas usando a técnica do bordado so-
1
bre papel . Assim como um texto é uma estrutura semântica que nos faz “ver” imagens
poéticas, a ilustração é o resultado de escolhas de signos, estratégias e técnicas que
nos possibilitam “ler” o texto que ilustram. Dessa forma, a adoção da bordadura como
ilustração elege alguns elementos para comunicar algo aos leitores como uma forma de
linguagem. Roland Barthes (1973) já dizia que “linguagem” inclui todos aqueles siste-
mas dos quais se podem selecionar e combinar elementos para comunicar algo.

Certamente que compreendendo a agulha como instrumento, a linha como meio e o te-
cido (o papel, neste caso) como suporte, temos no bordado uma linguagem, uma mídia.
Tanto o tecido quanto a linha podem ser considerados mídias em que imagens, narrati-
vas e palavras também podem ser escritas e ressignificadas, por meio de um instrumento
pontiagudo, a agulha, que fere o tecido e inscreve, usando linha, uma mensagem. A inter-
midialidade, assim, pode contribuir para a teorização do uso dos têxteis nas artes visuais
por entender que este campo de estudos apresenta metodologia e conceitos apropriados
para examinar um amplo escopo de fenômenos artísticos, literários e culturais da contem-
poraneidade que envolvem o uso dos tecidos e das linhas em situações de fronteira com a

1 Em Freitas (2012), a ficha catalográfica aponta para a constituição da ilustração de Anna Maria Maiolino sendo em
“linha de costura sobre papel”; a obra de Brandão não detalha a ilustração de Julia Panadés, mas a textura da fotografia
aponta também para esta técnica.

368
literatura, como é o caso deste trabalho. A abordagem irá articular o conceito de mídia e
intermídia de Claus Clüver (2008) e de Irina Rajewsky (2012), respectivamente.

Clüver (2008) entende que mídia pode se referir tanto aos materiais de comunicação
(mídias públicas, impressas e eletrônicas) quanto ao suporte, instrumento ou aparelho
utilizado na produção de signos (até mesmo as chamadas “novas” mídias, que são as
mídias eletrônicas e digitais). Mais recentemente, Irina Rajewsky (2012, p. 23) concei-
tuou a intermidialidade como uma estratégia conceitual que torna possível o exame de
textos híbridos ou aqueles que são produtos da integração de mídias. A grande con-
tribuição de Irina Rajewsky encontra-se na sua categorização, de maneira que cada
fenômeno exibe uma qualidade intermidiática diferente.

Assim, Rajewsky estabelece três subcategorias de intermidialidade, a saber: (1) a trans-


posição midiática, que trata da transformação de um produto de mídia em outra mídia,
como as adaptações cinematográficas, por exemplo; (2) a combinação de mídias, que
se refere à conciliação de duas formas midiáticas distintas ou duas formas midiáticas
de articulação para a produção de uma nova mídia, como filmes ou histórias em qua-
drinhos; e (3) as referências intermidiáticas, que são aquelas que evocam ou imitam
elementos de uma mídia através dos meios específicos de outra mídia, como a écfrase
ou um texto literário que faz referências ao cinema ao imitar técnicas cinematográficas
como fades e tomadas em zoom.

Desse modo, as obras de Brandão (2018) e Freitas (2012) podem ser enquadradas na
categoria das referências intermidiáticas, uma vez que os bordados apresentados não
são efetivamente “capas bordadas”, mas são a representação fotográfica de um bordado,
disposta como ilustração. Portanto, o bordado é mediado pela fotografia o que, para
Bolter e Grusin (2000), significa que há uma remediação, uma vez que toda mediação
é uma remediação. (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 55)

O termo intermidialidade surgiu no início dos anos 60, quando novos gêneros poéti-
cos, híbridos, começaram a aparecer como a poesia visual e a arte performática. Com
isso, foi necessário buscar novas maneiras de denominar esses fenômenos e, também,
novas formas de pensá-las. Neste contexto, surgiu a intermidialidade de Dick Higgins

369
([1965]1997 apud ANTONIO, 2012, p. 70), que usava este termo para descrever as ati-
vidades artísticas híbridas, interdisciplinares e problemáticas de definir na época, po-
rém predominantes em um cenário de muita experimentação cultural. Em seu ensaio
“Intermedia” de 1965, Higgins afirma que: “muito do melhor trabalho que está sendo
produzido hoje parece desembocar entre mídias.” (HIGGINS, 1984, p. 18). Assim, o
uso das artes têxteis na arte contemporânea não fica muito longe disso: é algo que se
situa entre Arte e artesanato; Arte e artes-manuais; arte manual e ilustração, como é o
caso das obras sob análise neste trabalho.

As artes têxteis, ou mídias têxteis se assim podemos denominá-las a partir de então, con-
tribuem para o desenvolvimento de processos laborais diversos, distintos e únicos, além
de produzirem modos de significação particulares que desafiam a estética e a história da
arte. Com processos de trabalho que dependem do tempo e do corpo para prosperarem,
essas mídias mantêm fortes conexões com antecedentes culturais e históricos, que pro-
movem significações no âmbito dos afetos e sugerem modelos particulares de existência
e interação social. Dessa maneira, as artes têxteis fomentam ações estéticas que rompem
com diversos horizontes de expectativas no que se referem a assuntos relativos às rela-
ções hierárquicas entre artes e artesanato; às relações do fazer que se utilizam dessas
mídias e questões de gênero; às marcas que acompanham essa prática relativas a gênero,
classe, etnia e, por fim, aos agenciamentos promovidos pelas políticas artísticas.

2.1 Bordado como intervenção poética


As obras de Brandão (2018) e Freitas (2012) revelam processos criativos que ocupam o
espaço híbrido entre a poesia e o bordado. Ambas se revelam intermidiáticas porque
exploram as fronteiras entre imagem e palavra, ampliam os sentidos aos estimularem a
visão e o tátil, dissolvem as barreiras que separam artesanato e Arte, contribuem para a
ampliação do debate das artes têxteis como um espaço restrito das mulheres nas socie-
dades patriarcais e, ainda, valorizam uma prática que sofreu desvalorização cultural e
comercial após sua industrialização.

No que se refere ao lugar destinado às artes têxteis nas obras sob análise, percebe-se
que as ilustrações com bordaduras estão situadas em locais muito visíveis, como capa,
contracapa anterior (segunda capa) e divisórias das seções. Esses lugares, no objeto li-

370
vro, são denominados por Gérard Genette como paratexto. Esse termo foi definido por
Genette (1997) como um conjunto de elementos que informam, emolduram e acom-
panham o texto principal, como autor, título, prefácio, ilustrações, sendo todos esses
elementos pertencentes e articulados com a publicação. Tais elementos asseguram a
presença material do texto e o apresentam.

Ao mesmo tempo, os elementos paratextuais configuram-se como fronteiras, pois es-


tão no limite entre o mundo e o conteúdo do objeto livro, entre o interior e o exterior.
Nesse sentido, Genette (1997, p. 2) afirma que os paratextos são lugares de influência
sobre o público “(...) que está a serviço de uma melhor recepção para o texto e uma lei-
tura mais pertinente dele.” Em outras palavras, os bordados que servem de ilustração
de capa e de seção das obras sob análise evocam sentidos pertinentes que se articulam
com o conteúdo das obras.

Em Brandão (2018) e Freitas (2012), os paratextos exploram o aspecto ilustrativo da


bordadura, como se pode ver nas imagens de capa que seguem:

Figura 1: Imagem da capa de Brandão (2018). Figura 2: Imagem da capa de Freitas (2012).

371
Como se verifica, as capas das publicações evocam não apenas o aspecto visual, mas
também o tátil. Anni Albers (1974), artista têxtil e designer Bauhaus, refere-se à sensi-
bilidade como uma qualidade midiática própria das superfícies têxteis, o que ela chama
de matière (ALBERS, 1974, p. 63). Em suas próprias palavras, afirma que matière é
“(...) uma qualidade da aparência, é uma qualidade estética e, portanto, uma mídia do
artista.” (ALBERS, 1974, p. 63, tradução da autora)

Assim, além de cor, o têxtil reveste-se de consistência e estrutura que parecem respon-
der ao sentido do toque, mesmo que ele não exista, de fato. A percepção tátil passa a ser
um sentido solicitado para interpretarmos a ilustração-bordado em sua forma de reme-
diação nas capas de Ruth Silviano Brandão e de Angélica Freitas. Nesse sentido, essas
ilustrações-bordado podem ser entendidas como referências intermidiáticas, pois “não
podem usar ou genuinamente reproduzir elementos ou estruturas de um sistema mi-
diático diferente, usando seus próprios meios, mas podem evocá-las.” (RAJEWSKY,
2012, p. 28). Ainda as representações dos bordados em forma de fotografia podem ser
enquadradas como referências intermidiáticas porque lidam com a ilusão de que pode-
mos ver e sentir os relevos das linhas e os sulcos da agulha no papel.

A percepção tátil fica ainda mais evidente na capa e contracapa de Brandão (2018), em
que temos acesso ao título da obra, ao nome do autor e à representação do vestido da
personagem principal no bordado sobre papel. O vestido bordado da capa torna-se
um significante de efeito da obra como um todo, pois é um biografema (BRANDÃO,
2018, p. 84), neologismo criado por Roland Barthes para designar detalhes, fragmen-
tos do biografado carregados de significados (SOUZA, 2002). Na parte inferior do
vestido, outro biografema: uma caixa aberta que faz referência à caixa de joias de Maria
Madalena no bordado de Maria Doroteia. Os signos visuais constituem um verdadeiro
mise-en-abyme de referências têxteis. Na contracapa (ou segunda capa), temos acesso à
representação do avesso do bordado, que revela linhas desencontradas, assimétricas, e
2
o subtítulo em que se pode ler: “ter amado não acaba/ter amado não tem fim.”

2 Brandão (2018) classifica esta obra, no prefácio, como uma leitura crítico-poética, uma leitura amorosa de
Marília de Dirceu.

372
Figura 3: Capa
e contracapa de
Brandão (2018).

Essa representação do direito e do avesso na capa e contracapa, respectivamente, nos


presenteia com diversas chaves de leitura que são retomadas ao longo da obra em prosa
poética: uso do direito-avesso de um bordado, o uso de linha dourada (ou que remete a
essa cor) e a representação do vestido de casamento de Marília.

O primeiro deles se refere ao subtítulo da obra que, na capa, surge como um elemento que
causa estranhamento devido ao seu caráter indecifrável. O avesso de um bordado é um lu-
gar de desordem, de falta de linearidade e sentido. Além disso, a parte de trás de qualquer
costura é algo para ser escondido, não revelado. Assim, a imagem espelhada de Julia Pana-
dés de capa/direito e segunda capa/avesso ressalta ainda mais a simulação de “tecido borda-
do” que se pretende transmitir. As linhas retorcidas do subtítulo e que indicam avesso, um
elemento da esfera do privado, são exibidas na capa, na “vitrine” da publicação, no local onde
viria o subtítulo, o que aguça nossa curiosidade e nos provoca a abrir o livro e a desvendá-lo.

O jogo avesso-direito, mostra-e-esconde, sugere também que a leitura crítico-poética


de Brandão vai perscrutar a intimidade de Marília (Maria Doroteia) e Dirceu (Gonza-
3
ga), em suas incursões intertextuais em fatos históricos e literários. Sabe-se, por exem-

3 Em suas “Notas”, Brandão (2018) lança mão de diversos estudos de historiadores, como os estudos de Ana Cristi-
na Magalhães Jardim (2009), M. Rodrigues Lapa (1996) e Augusto de Lima Júnior (1998).

373
plo, que Cecília Meireles dialoga com as liras de Gonzaga em O romanceiro da Inconfi-
dência (1972), o que também é retomado por Brandão (2018). Entre os fatos históricos,
Brandão destaca o fato de que Gonzaga bordava durante os encontros da conjuração
mineira, por exemplo: “Sabemos que Tomás nos encontros da conjuração se ausentava,
alheio, a bordar.” (BRANDÃO, 2018, p. 55). Ademais, traz à cena também o fato de
que Maria Doroteia veio a amar outro homem e ter filhos com ele: “Teve três filhos,
dizem. Amou um homem casado, dizem...” (BRANDÃO, 2018, p. 72)

A partir de suas leituras como poeta e também professora de literatura brasileira, Bran-
4
dão revela que Gonzaga bordou o vestido da noiva (sua Marília) em seus versos, en-
quanto Doroteia bordou um lenço com o tema de Maria Madalena. Na parte inferior
do bordado, há a seguinte inscrição, sem indicação de autoria:

O fruto de uma perfeita conversão tal como foi a de Madalena é de chorar


sem cessar nossos pecados & que como fizemos servir aos membros de
nossos corpos à impureza e à injustiça para cometer a iniquidade, o faça-
5
mos daqui em diante servir à justiça para nossa santificação.

Brandão sugere que temos acesso à voz de Gonzaga e ao seu ponto de vista sobre sua amada
Doroteia por meio de suas liras à Marília. À voz de Doroteia, em contrapartida, não temos
acesso: “(...) da noiva não temos voz, não temos eco.” (BRANDÃO, 2018, p. 16). O lenço
bordado por Doroteia torna-se, desse modo, sua voz, pois foi o que dela chegou até nós.

Em segundo lugar, a capa do livro de Brandão remete aos fios dourados usados por
Gonzaga para bordar o vestido de ouro de sua amada: “Nas Minas de ouro, de ouro se
borda a noiva de ouro.” (BRANDÃO, 2018, p. 55). Essa referência é sobretudo entre-
cruzada com a mineração de ouro de Vila Rica, motivo pelo qual se inicia a conjuração
6
mineira. Entretanto, os fios dourados também remetem aos cabelos dourados da Marí-

4 GONZAGA, T. A. Lira XV: “Se não tivermos lãs e peles finas,/Podem mui bem cobrir as carnes nossas/As peles
dos cordeiros mal curtidas/E os panos feitos com as lãs mais grossas./Mas ao menos será o teu vestido/Por mãos de
amor, por minhas mãos cosido.”
5 Do original em francês: « Le fruit d’une parfaite convertion telle que fut celle de Madelaine est de pleurer sans
cesse nos prechez ; & que comme nous avons fait servir les membres de notre corps à l’impureté & à l’injustice,
pour commettre l’iniquité ; nous les fassions desormais servir à la justice pour notre santification. »
6 GONZAGA, T. A. Lira XVI: “(…) Limpa os olhos com as tranças/Do fino cabelo louro./A minha Marília vale,/
Vale imenso tesouro.”

374
lia do poeta que, pela cor, é associada a um tesouro, também vinculado ao contexto his-
tórico da mineração. O bordado de Doroteia, encarnado na figura de Maria Madalena,
também é feito com detalhes em fios dourados, como bem lembra Brandão (2018, p. 72):
“Os fios que bordam o vestido de Madalena são dourados. O ouro cobre o amor. O ouro
brilha na veste, no planejamento, faz borda àquilo que as mãos da Madalena seguram.”

Por último, a capa invoca ainda a imagem do vestido dourado de Marília, bordado por
7
Dirceu, em seus versos : “Doroteia (...) vai vestir o vestido de noiva bordado por Dir-
ceu, bordado por Tomás. Só pode ser verdade, esse vestido de ouro, (...). Não importa
se houve o vestido, houve nas linhas da escrita, nos pontos e furos de seus nós. (...). ”
(BRANDÃO, 2018, p. 54). Esse gesto poético, recuperado por Brandão, faz referência
aos estudos do biógrafo de Maria Doroteia, Tomás Brandão, que relembra que um
dos costumes da época da Vila Rica era a obrigação imposta ao noivo de bordar o ves-
tido nupcial daquela que seria sua esposa (PACHÁ, s/d, nota 187).

Com relação ao material histórico que


restou de Doroteia, o lenço bordado
figurando Maria Madalena, Brandão
indaga se a temática foi ela quem esco-
lheu ou se foi uma imposição religiosa
(BRANDÃO, 2018, p. 20), pois Mada-
lena, pecadora e sofredora, “será sempre
aquela que amou.” Questiona ainda
sua escolha: “Por que Maria [Doro-
teia] borda a outra Maria [Madalena]?”
(BRANDÃO, 2018, p. 45), pois, para a
autora, Maria Madalena, cujo amor de
pecado não aconteceu, se arrepende e
se petrifica na dor. Em outros palavras,

7 GONZAGA, T. A. Lira XXXIV: “Pintam que estou


bordando um teu vestido/Que um menino com asas,
cego e louro,/Me enfia nas agulhas o delgado, /O
brando fio de ouro.” Figura 4: Reprodução do bordado de Maria Doroteia.

375
o modelo escolhido por Maria Doroteia é de uma mulher pecadora, arrependida, que
esconde algo sob o panejamento de suas vestes.

A obra de Brandão articula o amor impossível dos amantes por meio dos bordados e da
bordadura: os amantes que bordavam, o amante que borda o vestido da noiva e a noiva
que borda um lenço de sofrimento, de um casamento que nunca aconteceu, o símbolo
da eterna despedida e exílio: “Dos amantes que bordavam. O bordado borda essa his-
tória de amores de fios costurados, rompidos, tornados escrita. (...) Os fios escrevem, os
fios bordam o tecido da escrita. O tecido de ouro do vestido da noiva que o não vestiu.”
(BRANDÃO, 2018, p. 23)

No trecho, observa-se claramente o fio que entrelaça o ato de bordar e o amor impos-
sível, eternizado pelas liras de Gonzaga. A intertextualidade une o que a História se-
parou e isso fica evidente na interrelação sígnica entre a capa da publicação e a histo-
riografia, a poesia de Gonzaga e o lenço bordado pela personagem histórica de Maria
Doroteia Seixas. Os fios se entrelaçam entre a representação da capa de Brandão que
estampa o vestido de Marília bordado em vermelho e dourado e o vestido dourado de
Marília das liras de Gonzaga.

A obra de Angélica de Freitas (2012), por sua vez, também explora a remediação do
sentido tátil por meio da referência intermidiática ao bordado, mas de uma maneira
8
menos literal. Tendo como pano de fundo a obra visual de Anna Maria Maiolino , os
pontos não ferem um tecido, mas o papel com linhas de cores preta e vermelha na capa,
enquanto o miolo apresenta ilustrações em preto e branco para as aberturas das seções.
As obras fazem parte da série Indícios de Maiolino: a capa remete à obra, de 2005, e a
imagem das aberturas das seções de poema do miolo, de 2000.

8 Anna Maria Maiolino é artista plástica ítalo-brasileira, nascida em 1942, na região da Calabria. De pai italiano e mãe
equatoriana, estudou Arte Pura em Caracas, na Venezuela. Chegou ao Brasil em 1960 e frequentou cursos livres de
pintura e xilogravura, participou do movimento de Nova Figuração e, mais tarde, assinou o manifesto de “Declaração
de Princípios Básicos da Vanguarda”, junto com Hélio Oiticica, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Lygia Clark e Lygia
Pape, entre outros. Seus trabalhos utilizam diversas mídias e ficou conhecida por suas experimentações durante os
anos 1970 com poesia escrita, filme super 8, performance, fotografia, desenho, pintura, gravura e escultura.

376
Figura 5: Capa de Freitas (2012). Figura 6: Capa de abertura de
uma das seções de Freitas (2012).

A série Indícios é um de seus trabalhos mais recentes e revela um rigor estético apurado
no uso gráfico de materiais simples, como o papel tamanho ofício e a linha, bem como
seu interesse por formas geométricas abstratas, orgânicas, além da participação do as-
pecto sensorial e do aleatório, sobretudo constatado pelos caminhos percorridos pela
linha sobre o papel. Lambert (2004, p. 19) menciona que Maiolino dialoga com seu tra-
balho com linhas de outros momentos de sua carreira, como a série Foto-poema-ação:
Por um fio (1976) da década de 1970. Nesta obra, observa-se seu desejo de “presentificar”
o passado, o presente e o futuro, no qual Maiolino aparece ao lado de sua mãe, Vitalia,
e de sua filha, Verônica, ligadas por um fio preso à boca de cada uma delas.

Sobre essa interação entre a obra do passado e a recente, Maiolino esclarece: “Naqueles
trabalhos, a linha tinha um caráter virtual e real. Agora não. A linha e a agulha realizam
dois desenhos, um de cada lado do papel” (MAIOLINO apud LAMBERT 2004, p.
22). Maria de Fátima Lambert (2004, p. 22-23) declara que Maiolino explora o tato e
a intuição para desenhar, usando tanto a frente quanto o verso, além da gestualidade
pensada da “mão que faz”. A série Indícios foi pendurada no teto e o espectador podia
ver tanto o direito quanto o avesso de sua obra. Ainda, para Lambert (2004), essa série
é fragmento de uma realidade tomada na sua privacidade, registrada para diferentes

377
planos de recepção, já que a obra pode ser experimentada dos dois lados e revela os
princípios da materialidade do grafismo:

A série trabalha ao mesmo tempo a frente e o verso do papel. Os trabalhos estão apre-
sentados pendurados no teto, de forma que o espectador possa apreciar os dois la-
dos dos desenhos. Não há nem frente nem verso. “Acho que hoje, finalmente, minha
procura do espaço negativo, do que está atrás do papel, está saciada. Pelo menos no
momento”, afirma a artista. (LOPES apud LAMBERT, 2004, p. 25).

Ao trabalhar avesso e direito, o traço e os espaços em branco, seu trabalho está imbuído
de narratividade de linhas e curvas que divergem e convergem em planos de caráter
experimental e emotividade para que o espectador possa ler. Seu trabalho revela um
processo de marcações na página em branco, como se quisesse mapear ou traçar rotas
por meio da costura.

Figura 7: Reprodução da
série Indícios (2000, 2005),
de Anna Maria Maiolino.

Em contato com a poesia de Angélica Freitas, os pontos de Maiolino sugerem suturas, ci-
catrizes, pontos construindo caminhos na página em branco enquanto os espaços vazios
podem remeter ao útero de uma mulher. Tal associação só faz sentido se articulada com

378
a primeira edição datada de 2012, publicada pela editora Cosac Naify. Outra edição, mais
recente, da Companhia das Letras, em 2017, não possui a mesma arte de capa e miolo.

Assim, esta análise encontra respaldo apenas na primeira edição do livro de Freitas. Di-
vidido em sete seções, a saber: “Uma Mulher Limpa”, “Mulher de Regime”, “A Mulher
é uma Construção”, “Um útero é do tamanho de um punho”, “3 poemas com o auxílio
do Google”, “Argentina” e “O Livro Rosa do Coração dos Trouxas”, Angélica Freitas
nos presenteia com representações fragmentadas de mulher por meio de uma lingua-
gem ácida, tomada de ironias, para desconstruir as imposições sociais sobre o corpo e
à psiquê das mulheres.

Para Santos e Inácio (2017), a obra de Freitas (2012) denuncia os diversos mecanismos
de controle exercido sobre o corpo feminino e, muitas vezes, versões contemporâneas
com certa dose de misoginia, que podem ser enumerados como: problemas de sanida-
de mental; padrões de beleza; questões de autonomia; relações sociais e profissionais;
construção e naturalização do que é ser uma mulher contemporânea; relações nem
sempre possíveis com a maternidade; mecanismos de busca (Google) como reproduto-
res de pensamento misógino e, por fim, relações amorosas.

Em “Uma Mulher Limpa”, por exemplo, Freitas (2012, p. 11) faz uma crítica ao assepsis-
mo exigido das mulheres, associado às boas maneiras e à moralidade cristã ao vincular
a figura feminina às palavras “mansa e boa e limpa”: “porque uma mulher boa/ é uma
mulher limpa”; “não ladra mais, é mansa/ é mansa e boa e limpa”. Há ainda a figura
abjeta da mulher gorda: “uma mulher gorda/incomoda muita gente/uma mulher gorda
e bêbada/incomoda muito mais” (FREITAS, 2012, p. 16) e da mulher suja, pintada de
forma animalesca: “é o poema da mulher suja/da mulher suja que vi na feira/no chão
juntando bananas/e uvas caídas dos cachos.” (FREITAS, 2012, p. 17)

Em “Mulher de Regime”, há a comiseração da culpa por não se enquadrar nos padrões


de beleza: “eu me sinto tão mal/eu vou dizer eu me sinto tão mal/engordei vinte quilos
depois que voltei do hospital/quebrei o pé.” (FREITAS, 2012, p. 41). Em “A Mulher
é uma Construção”, Freitas (2012, p. 45) convida o leitor a olhar os vazios: “(a mulher é
uma construção/com buracos demais).”

379
Onde as imagens de Maiolino e os poemas de Freitas se encontram? Nas dores do
ser mulher em suas roupagens de injustiças, violências, assédios, sulcados em forma
de linha sobre papel. O bordado ainda é vinculado ao feminino, principalmente nos
contextos de papéis sexuais rigidamente estabelecidos e, dessa forma, essa dor de ser
mulher fica assim retratada.

Rozsika Parker (2010, p. 211) associa o trabalho do bordado como aquele que vai da do-
mesticação da mulher à sua libertação, quando esta atividade foi aliada à opressão femi-
nina por ser atividade “doméstica” e, também, aos banners bordados por ativistas e usa-
dos nos protestos de 1970 e 1980. Dessa maneira, a afirmação do bordado como mídia
e sua integração às artes visuais no final do século XX possibilitou seu reconhecimento
como forma de expressão apropriada para transmitir valores libertários e questionar
valores patriarcais, pois a arte da vida privada e pessoal é também uma arte política.

Portanto, os grafismos de Anna Maria Maiolino que remetem a suturas e cicatrizes se


articulam com a poesia ácida de Angélica Freitas: os pontos tentando unir o impossí-
vel, construindo caminhos no papel branco, narrativas possíveis sobre as mulheres. A
arte e a poesia se encontram quando as palavras ferem o papel com aguilhoadas, ques-
tionando os lugares (des)confortáveis destinados à mulher em seu lar, em seu o corpo
perfeito, no seu trabalho. Com isso, vai expondo os espaços vazios, o vazio de um útero
iterado: “repita comigo: eu tenho um útero/fica aqui/é do tamanho de um punho (...).”
(FREITAS, 2012, p. 61)

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os diálogos entre os textos e têxteis são bastante profícuos e certamente não se encer-
ram aqui. As chaves de leitura para as obras de Brandão (2018) e de Freitas (2012) são
inúmeras e este texto apenas iniciou sua busca ao procurar fazer um pequeno recorte
no que concerne às incursões entre o bordado, as ilustrações e os escritos poéticos. Em
diálogo com a arte têxtil, essas obras utilizam-se da estratégia das referências midiáticas,
de forma que o bordado desperta não apenas nossa visão como simula o aspecto tátil das
composições. Contudo, não podemos nos esquecer de que, ao mencionarmos as mídias,
falávamos do meio e da mensagem. Neste caso, o meio é a mensagem, pois o bordado
e o texto poético foram usados para falar da mulher, sua feminilidade e suas questões.

380
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In.:Crítica cult. Belo
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382
A cartografia da
casa e a experiência
do vivido
por Flávia de Almeida Alves Lopes

RESUMO
O presente trabalho tem como tarefa cartografar, em uma narrativa do vivido, a evoca-
ção da memória da ancestralidade através do habitar de um território e a dinâmica das
relações estabelecidas no seu interior. Para tanto, utiliza a narrativa do vivido dos gestos,
do cuidado e da confiança no cotidiano no intento de reformular um território habitável,
com todas as suas nuances e sutilezas, a partir do uso de dispositivos das manualidades
como forma a dar materialidade aos gestos do cuidado e da confiança como cozinhar,
cultivar hortaliças, cuidar do jardim, fazer reparações e pequenos consertos de utensí-
lios domésticos. Para abordar tais questões, recorre aos conceitos propostos por Joanna
Overing, Deleuze e Guattari, Tim Ingold e Ana Lygia Vieira Schil da Veiga.

PALAVRAS-CHAVE: Cartografia. Artes-Manuais. Cuidados. Território. Dispositivos.

383
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo resgatar, a partir de uma narrativa, elementos
vivenciados, mas com elementos poéticos que possam dar a dimensão do processo vivi-
do e observado durante uma experiência num dado período da existência. Para tanto,
recorreu-se a autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Ana Lygia Vieira Schil da
Veiga, Tim Ingold, Leonardo Boff e outros que pudessem auxiliar na condução teórica
do processo investigativo e cartográfico. O propósito é fazer um resgate da memória e
dos feitos experimentados de uma forma mais dinamizada e com o movimento contido
no germe da vida. Vida é movimento!

Eis o desafio, construir uma narrativa em que o movimento pode ser percebido aos olhos
que repousarão sobre o desenrolar desse processo. Só nos resta fazer um convite para em-
barcar no trem em movimento e curtir uma viagem realizada e “remixada” no presente.

2 DESENVOLVIMENTO
A aspirante à universitária estava aguardando ansiosamente o resultado do vestibular.
Já era a sua segunda tentativa, precisava definir a sua vida. Não queria trabalhar no mer-
cado financeiro tal qual era o desejo de seu pai. Sua mãe, dona de casa, havia cumprido
bem o seu papel de mãe e cuidadora do lar, mas Tuane sentia que ela já não estava mais
satisfeita com as tarefas domésticas. Finalmente, o resultado! Comprou o jornal de con-
cursos e procurou o número da sua inscrição. À primeira vista não o localizou; passou
novamente os olhos e leu 084321. Lá estava o número da inscrição e o seu nome, Tuane
Arruda da Rosa Jatobá. Ela ficou felicíssima, não sabia se chorava ou se ria. A verdade
que dali por diante iniciaria uma nova etapa na sua vida.

Quando criança, ouvia a sua avó materna dizendo para a sua mãe: “Filha, volte a estudar,
eu tomo conta das crianças! Volte a estudar.” Ela ouvia atentamente os conselhos que
sua avó dava para a sua mãe. E registrou: Volte a estudar. Essa frase ecoou como uma
sentença de vida: VOLTE A ESTUDAR!

Nos finais de semana, costumava almoçar na casa dos avós paternos. A avó, excelente
anfitriã e muito generosa, recebia os netos com fartura na mesa. Sempre havia queijo,
pães, bolos, café fresco e a disponibilidade para ser ouvida. Nos almoços, adorava pre-

384
parar o seu prato preferido: galinha ao molho pardo com macarronada. Em uma sequ-
ência, lembrou de algumas vezes que havia ido com ela para escolher a galinha na granja
para o abate. Cenas inesquecíveis que a acompanharam por muitos anos.

Uma mulher maravilhosa que sabia o seu lugar de avó paterna no cuidado daquela me-
nina. Já o avô, um senhor de cabelos grisalhos, alegre, adorava contar histórias, cujo or-
gulho maior era narrar a sua saga desde quando saiu do interior de Pernambuco, as difi-
culdades enfrentadas e a sua ascensão social à custa de muito esforço e estudo. Ensinava
à menina que o segredo era a vontade de se superar e ele fazia questão de lhe apresentar
os livros que estudara, dentre eles, o Curso de Contabilidade cujos volumes ostentava
com orgulho na estante da sala de estar.

De novo, estava lá a menina com o imperativo de estudar. “Estudar o quê? Estudar o


quê?” Perguntava a si própria, repetidamente, a jovem aspirante ao ensino superior. Ela
sabia que não gostaria de ir para o mercado de finanças. Odiava o papo de bater metas
que seu pai era obrigado a ter para manter o emprego de bancário.

Ali estava o fio divisor. Sem ter muita consciência, naquele momento, já havia feito a
distinção entre o que era o mercado e o que era outro tipo de coisa que queria estudar e
fazer, mas não sabia exatamente o que era. Optou pelo curso de Estudos Sociais, embo-
ra ainda não tivesse muita consciência sobre as perspectivas de trabalho. Estavam lá o
seu nome e a sua colocação no curso escolhido. Ufa! Que alegria!

Graças à atenção dada aos conselhos da sua avó materna para a sua mãe e a escuta das
histórias do seu avô paterno sobre a importância do estudo, Tuane entrou na universi-
dade para cursar algo que ela não sabia bem o que era, mas sabia que nada tinha a ver
com que já houvera tido contato.

Naquela época, a sua avó materna já havia falecido, mas Tuane nunca se esqueceu dos
cuidados dela com a família, sobretudo com as filhas. Esse cuidado era traduzido no estar
presente na vida de cada uma delas e dos netos seja no preparo dos almoços ou da ceia
de natal, seja no apreço pelas plantinhas que cultivava em pequenas latas de leite em pó.
Num dia, veio uma lembrança de quando era criança. Sua avó fora visitá-los numa pe-
quena casa alugada. Ela chegou e trouxe os melhores presentes que até então tinha rece-

385
bido: um filhote de vira-lata e uma plantinha num pequeno vaso improvisado. A menina
tinha ficado tão feliz com os presentes, sobretudo com a vira-latinha. Tempos depois,
tinha entendido que sua avó havia lhes presenteado com a Vida. A Vida Viva.

Tuane, a partir daí, começou a perceber que o cuidado é algo que tem a ver com a vida
viva e a sua experimentação. Nesta direção, Tim Ingold aponta que “A experimentação
na vida cotidiana, por outro lado, é uma questão não de testar conjecturas em arenas de
prática, mas de se inscrever na atividade prática no processo mesmo de seguir uma linha
de pensamento.” ( INGOLD, 2015, p. 44)

Já na universidade, matriculada nas disciplinas do núcleo básico do ensino dos Estudos


Sociais, teve logo contato com o tema das Relações Sociais. “O que eram essas relações
sociais?” “Com quem nos relacionamos?” “Em que chão se estabelecem tais relações?”
Essas perguntas ficaram maturando dentro de Tuane que ora se sentia presa em alguns
conceitos herméticos, ora se deixava fluir com as dúvidas típicas de quem está entrando
num mundo codificado.

A universidade é isso. “Pensou que sairia ilesa?” “Que depois que entrasse sairia facilmen-
te?” “Querida, aqui não é o seu lugar!” “De onde você veio?” “Quem você pensa que é?”
1
Diante do desafio, só restava habitar a Universidade, essa casa complexa que ora tinha
o aconchego de seus mestres, ora esses mesmos mestres faziam nos lembrar dos nossos
pais que nos testam para o vôo:

[...] Viajantes atravessam o país, e não o espaço. E quando andam ou ficam de


pé, eles plantam os pés no cchão, não no espaço. Pintores armam seus cavale-
tes na paisagem, não no espaço. Quando entramos na casa, estamos dentro da
casa, não no espaço, e quando vamos ao ar livre estamos a céu aberto, não no
espaço. Lançando os olhos para cima, vemos o céu, não o espaço, e em um dia
ventoso sentimos o ar, não e espaço. O espaço é nada, e porque é nada não pode
absolutamente ser habitado. (INGOLD, 2015, p. 215).

Eram muitos livros para serem devorados, muitos conceitos a serem apropriados. Mas
tudo era tão novo, tão complexo, tão difícil. Mais-valia, os juízos de valor, os fatos sociais

1 Em referência aos estudos de antropologia realizados por Tim Ingold, em “Estar vivo” (2015).

386
- isso para ficar na tríade (Marx, Weber e Durkheim). Os estudos iam evoluindo, se com-
plexificando; em um momento, nada fazia sentido, em outros, as cortinas iam se abrindo.

Conseguiu uma bolsa de extensão para fazer parte do resgate da memória da faculdade.
Semanalmente, reunia-se com o grupo de estudos e de trabalho para analisar os regis-
tros oral e escrito de documentos da história da criação da Faculdade. Com isso, ga-
nhou experiência em como decifrar o enigma dos códigos que compõem a memória de
uma território (ali, o acadêmico). Aprendeu a transcrever as fitas cassetes, a ler as atas de
documentos e as imagens nas fotografias.

Esse material faria parte do Projeto 50 Anos da Faculdade e, para Tuane, seria uma es-
pécie de porta aberta para entender um pouco do resgate da memória. Descobriu novos
autores como Clifford Geertz e o seu olhar em relação à antropologia e à cultura; Cecília
Minayo e o método de pesquisa; Carlo Ginzburg e o seu estudo sobre a narrativa oral
no consagrado livro “O Queijo e os Vermes”. Novos janelas e um novo mundo iam se
abrindo a partir da leitura dos autores acadêmicos. Mas, vez por outra, duvidava da
sua capacidade: “Você não queria ir para a Academia???” “Agora entra, entra com tudo!”
“Leia tudo!” “Devora tudo!” “Vou ter uma indigestão!!”

Para cada matéria, zilhões de autores, conceitos complexos, diria até de outro mundo.
Como pode o simples gesto de comprar, consumir, trabalhar, produzir, se relacionar,
constituir família ou não, professar um credo, ter um tom de pele diferente, ter uma
sexualidade não hetero, utilizar os aparelhos do estado ter uma infinidade de conceitos
criados para cada gesto ou percepção do uso daquilo que se faz?

2
Para a jovem universitária, as portas e janelas não foram abertas , mas escancaradas.
Uma avalanche de conceitos, sistemas e códigos à disposição. Mas será que ela seria
capaz de conseguir de fato tirar proveito de tudo isso ou desistir de tudo aquilo não seria
mais proveitoso? Afinal, ela desconfiava que seu corpo não daria conta, mas não tinha
outro jeito: “Ajoelhou tem que rezar!!!”

As notas no final do semestre não foram as melhores. O coeficiente de rendimento não


foi dos melhores. Havia ficado em uma matéria: “A questão social no Brasil”. Que “ques-

2 As janelas e portas abertas a convidavam a sair da sua casa . Era um convite para estar mais viva e no mundo.

387
tão” era essa? Dívida histórica de um país escravagista, genocida de indígenas, bando
de saqueadores, mais tarde imerso numa longa ditadura que deixou marcas profundas
na sociedade. Na própria família, sua avó materna, de ascendência indígena, que veio
da região da Amazônia trazida por uma família, aos 9 anos, foi provavelmente traficada.

A voz da avó ecoava na lembrança da Tuane : “Estuda minha filha.” Por que será que sua
avó incansavelmente falava para a sua mãe estudar? Tuane tinha menos que oito anos
quando ouviu o conselho; sua mãe não acatou o pedido da avó. Tuane se incumbiu da
tarefa de estudar. A primeira universitária do lado paterno e materno. Sua avó soube da
sua entrada na academia, mas ela não tinha noção do que isso significava. Alguns meses
depois em que Tuane entrou na universidade, a sua avó faleceu.

Por que será que aquilo que não foi resolvido pela geração anterior sobra para a pró-
xima resolver? Ouvira ou lera algo sobre isso, em algum lugar. Suponha que fosse em
3
Jung . O fato é que essa marca (dobra) de sua ascendência indígena, com forte indício
de que sua avó tenha sido vítima de tráfico humano, criou uma espécie de marca na sua
4
alma . Tuane se sentia estranha, não sabia o porquê dessa sensação. Não havia consci-
ência ali, apenas sensações.

Na composição da grade curricular, ela gostou tanto de algumas matérias de Filoso-


fia que foi fazer disciplinas eletivas no próprio Instituto de Filosofia, onde também fez
grandes amigos. Foi apresentada ao “Banquete”, de Platão e ao “Mito da Caverna”. Ah,
Eros! Eros definitivamente flechou o seu coração com a filosofia. Essa sede insaciável
de querer saber. Esse amor por cada conceito que estava aprendendo e como isso fazia
sentido na vida que vivia: “Gratidão, vó!!! Grata pelos seus conselhos, que diretamente
não eram para mim. Será que não eram mesmo!?”

Ainda, nas aulas de Filosofia, tivera um professor cedido do Instituto de Filosofia para
compor a grade curricular das disciplinas da ementa da sua Faculdade. Além do “Ban-
quete”, de Platão, o professor apresentou “Heráclito”, de Éfeso. Foi orgiástica a fluidez

3 Carl Gustav Jung foi criador do conceito fundamental da Individuação, o processo psicológico de integração dos
opostos, incluindo o consciente e o inconsciente.
4 Um aspecto da desterritorialização. Aqui a expressão de que não havia mais uma casa concreta: a casa era o seu
próprio corpo em sua nova constituição.

388
do pensamento. “O que pode um pensamento?” “Qual a força de uma ideia?” “Puro devir,
pura fluidez.” O início de uma longa jornada que, para Tuane, lá na frente, viria a fazer
um novo sentido. Um novo olhar, um novo vir a ser, num intenso movimento.

Quanto às amizades, construiria as mais diferentes, do pessoal de Letras ao pessoal da Psi-


cologia, Engenharia, Medicina. O importante era experimentar a diversidade para daí tirar
um caldo. Os saraus, as vinholadas, as festas do diretório e as festas dos encontros. Tudo
era motivo para vivenciar e digerir todo aquele conhecimento que penetrava por todos os
poros. O chão da universidade foi o território e o laboratório para que as experiências mais
marcantes do conhecimento se realizassem na pele de Tuane. É bem verdade que muitas
experiências ainda estavam na mente, ou seja, na parte superior. Demorariam ainda muitos
anos para que tudo isso pudesse ser vivenciado no corpo. Talvez não! O vivido pela sua
ancestralidade já fazia parte da sua vivência e que, somente mais tarde, reverberaria.

Fora do ambiente universitário, a vida na intimidade da casa já não tinha mais o mesmo
peso do que fora na infância. A avó materna já havia falecido, a avó paterna apresentava
os primeiros sinais do Alzheimer. Os pais cuidavam dos avós paternos que já começa-
vam a demandar maior assistência. Quando os via, lembrava-se do tempo da infância,
dos Natais (naquele tempo com a avó materna) e a passagem do ano novo na casa dos
avós paternos. Lembrava-se da casa deles, com o vasto quintal e, nos fundos, uma área
pantanosa onde gostava de caçar girinos. Mais à frente, um pé de jambo e muitas plan-
tas; a preferida da avó era o Antúrio, cuja folha tinha formato de coração e uma exótica
flor vermelha, além de roseiras e diversas espécies de philodendrons. As plantas, em am-
bos os lados da linhagem materna e paterna, sempre foram elementos de muita conexão,
embora em todas as casas que morara com os seus pais, além de serem pequenas, as
5
plantas não ocupavam lugar de destaque . Tinha uma ou outra.

Possuía algumas lembranças, quando era adolescente, da mãe comprando flores, como
margaridas e crisântemos para decorar a casa, hábito que aprendera a cultivar com um
tio paterno, cujo ofício era bastante curioso. O tio confeccionava vestidos de noivas e
festas e sua mãe assumiu o compromisso de auxiliá-lo na parte de bordar pedrarias, cha-

5 Embora a sua casa fosse mais “pobre” em relação à casa dos avós, a jardinagem já havia se constelado no seu território
existencial, pois o seu olhar durante a infância já havia capturado esse fazer.

389
tons, paetês, vidrilhos quando ele adoeceu e precisou, além dos cuidados, auxílio para
honrar os compromissos das encomendas que havia assumido.

Com o novo ofício da mãe, os vestidos bordados começaram a fazer parte do seu cotidiano;
o mundo das artes-manuais, concretizado em um vestido, aos olhos da adolescente, era uma
obra de arte. A mesa da pequena sala do apartamento onde morou com os pais era repleta
de objetos para bordar, tecidos nobres como tafetá, crepes de seda, seda pura, renda guipir e
francesa, além dos chatons e paetês compunham o cenário da pequena morada. Alguns anos
depois, o tio paterno faleceu e deixou para a mãe o legado de terminar alguns vestidos de
alta costura e, por conseguinte, o know how e ferramentas para confeccionar os vestuários.
Ao findar a entrega dos vestidos, a mãe investiu em máquinas de costura e iniciou o pro-
cesso de uma pequena confecção doméstica de roupas de malha de algodão, cujas roupas
Tuane levava para a faculdade para vender, o que ajudava nos recursos da casa.

No entanto, o contato com o ofício da costura e do bordado ainda passava ao largo dos
seus olhos e de suas mãos. Provavelmente, as plantas fossem de maior interesse, visto
que, na sua memória da infância, era as que mais apareciam, bem como a mesa posta dos
lanches da tarde que sua avó paterna colocava com gosto.

Essas memórias que se alternavam entre a infância e a adolescência de Tuane se mescla-


vam a uma conjuntura política e econômica. No final do século XX, quando criança, a
abertura do processo de democratização, a inflação dos preços dos produtos de primeira
necessidade e a dificuldade do acesso à cultura faziam com que o seu mundo interno se
tornasse a sua maior ocupação. Tudo muito bem explorado. Talvez fosse um período de
incubação e preparação para a entrada no campo da ideias.

O sentir foi profundo e, quando se lança no território do saber e do conhecimento uma


nova linha de força6 se configura, ou uma nova variável, de estar no mundo. Assim, Tu-
ane, à medida que ia aprofundando o pensamento, o seu sentimento do vivido ia embo-
tando ou se esvaindo. Somente no encontro no futuro presente ela compreenderia as
etapas da sua infância à idade madura e, com isso, o processo do devir. Possivelmente,
uma reconciliação no presente seria possível com o seu passado.

6 [...] um dispositivo comporta linhas de forças. Dir-se-ia que elas vão de um ponto de luz e nas linhas de enunciação,
de algum modo elas rectificam”. Disponível em: www.uc.pt\iii\ceis20\conceitos-dispositivos/programa/deleuze-dis-
positivo. Acesso em: 18 dez. 2019.
É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e
aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do actual. A história é o arquivo, é o
desenho do que somos e deixamos de ser, enquanto o actual é o esboço daquilo em que va-
mos nos tornando. Sendo que a história e o arquivo são o que nos separa ainda de nós pró-
prios, e o actual é esse outro com o qual coincidimos desde já. (DELEUZE, 1997, p. 37).

Após um período inacessível às criações artísticas 7, no caso durante a sua adolescência,


tudo era diferente na universidade, local onde praticamente todas as semanas acon-
teciam eventos culturais: desde peças de teatro a festivais de dança e apresentações
musicais. Do chão daquele território, brotavam as belas criações do que até então Tu-
ane não imaginara existir. Uma apresentação inesquecível foi da companhia de dança
da universidade, em que os bailarinos no palco da Concha Acústica mostravam uma
coreografia apenas com a silhueta através dos focos de luz. Assim seus corpos aumen-
tavam a dimensão a partir da projeção do jogo de luz e sombra. A coreografia frenética
formava as mais diferentes imagens criadas, já não se sabia se eram somente corpos
ou agenciamento com outros objetos compondo assim um novo movimento. A dança
então é apresentada a jovem Tuane cujas imagens marcaram a nova etapa.

A inserção no novo território despertou em Tuane novos desejos até então inexplorados.
Como utilizar essas sensações e experiências na nova casa existencial que estava inaugu-
rando? Afinal eram muitas novidades para um corpo que estava se preparando para o
mundo recém-inaugurado.

E com esses novos agenciamentos, feitos a partir de descobertas das criações artísticas
que estavam diante dos seus olhos, perceberia mais tarde que:

O que é produzido pela subjetividade capitalística, o que nos chega através da mídia,
da família, de todos os equipamentos que nos rodeiam, não são apenas ideias; não são
transmissão de significações através de enunciados significantes; nem são modelos de
identidade ou identificações com polos maternos, paternos etc. São, mais essencial-
mente, sistemas de conexão direta entre, de um lado, as grandes máquinas produtoras
e de controle social e, de outro, as instâncias psíquicas, a maneira de perceber o mundo.
(GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 78).

7 Guattari e Rolnik (2013, p. 14) apontam que a “cultura enquanto autônoma só existe em nível dos mercados de
poder, dos mercados econômicos, e não em nível da produção, da criação e do consumo real.”

391
Provavelmente, a percepção de que trabalhar no mercado financeiro, como desejava o
seu pai, tinha alguma raiz naquilo em que ela ainda não compreendia, mas que já suspei-
tava o que poderia acarretar. E compreenderia também num futuro pretérito:

Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se
concentra no momento imediato? Como se podem buscar metas de longo prazo numa eco-
nomia dedicada ao curto prazo? Como se podem manter a lealdades e compromissos mú-
tuos em instituições que vivem desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas? Estas as
questões sobre o caráter impostas pelo novo capitalismo flexível. (SENNET, 2000, p. 10).

Talvez esse fosse seu desafio pessoal, a construção de um modo de existir que levasse em
consideração o compromisso a longo prazo, mesmo com a desconfiança que esse sistema
social que todos estavam enredados pudesse causar uma fratura e, certamente, danos di-
fíceis de serem recuperados. Até porque a confusão em torno do afeto como recurso, obri-
gações legais e uma certa má vontade de compreender as falsas promessas que o imposto
a colocara, fazia com que Tuane desconfiasse das intenções do que até então se colocava
como a única verdade. Existia uma espécie de cortina que cobria o sentimento da confian-
ça. Era preciso um exercício de se colocar à prova e correr o risco de descortinar o véu que
a impedia de discernir o que de fato era esse sentimento do confiar.

Tuane se lembrava da frase que seu pai incansavelmente falava: “Tempo é dinheiro”.
Ao mesmo tempo, chocava-se com os gestos de como utilizava o seu tempo. “Tempo é
dinheiro?” ou “Tempo seria uma espécie de presente que se ganha quando nasce e que
esqueceram de dizer (ou propositalmente não disseram) que se ganha uma única vez?”

De fato, estranhava o modo de viver no automático, na alienação que o sistema socioe-


conômico impunha aos desavisados. Talvez fosse por isso que resolvera estudar o que
essa relação produzia em seu corpo, mente e coração. E que bem posteriormente iria se
contrapor a essa experiência, precisamente quando deixasse emergir sob o signo do cui-
dado no cotidiano. Mas graças a este tempo presente, Tuane resgata as marcas que sua
ancestralidade insinuou e que contradiz todo um sistema no qual estava imersa.

Sobre a expressão do cuidado numa comunidade indígena na Amazônia, a antropóloga


norte-americana Joanna Overing descreve:

392
As ideias Piaroa sobre o cotidiano remetem a um discurso que supõe a existência de muitos
outros mundos, além daquele da existência salvática humana: a miríade de outros que habitam
esses mundos (e tempos) compõe o pano de fundo sobre o qual são formulados todos os juízos e
considerações acerca da vida humana nesta terra.. Nesse universo de mundos múltiplos, repleto
de “agência”, as habilidades pessoais para a vida cotidiana, tão valorizadas pelos Piaroa, têm
uma história muito longa, que trata dos traumas da criação original e dos perigos que ali emer-
giram. É por causa das violações que então tiveram lugar (atos de incesto, assassinatos e trai-
ções), que viver hoje na segurança do ‘céu dos domesticados’ é considerado pelos piaroa de tão
grande importância para a construção bem sucedida da vida-diária. (OVERING, 1999, p. 87).

Tuane não sabia conceituar totalmente o sentimento da confiança, mas suspeitava que
esse sentimento poderia ser de extrema importância para sobreviver no seu tempo. Tal-
vez desconfiasse de que os frágeis contratos sociais, como os estudados nas Ciências
Política, um dia pudessem ser rompidos.

Tempos depois, após o período acadêmico, ela encontraria duas vozes que iriam ajudá-la a
reencontrar o que havia sido semeado durante a sua primeira experiência como profissional
da área e que teria grande influência na sua existência. Eis que ela iria descobrir com eles, que

[...] lemos que a função de Satanás, do diabolos, é, em nome de Deus, testar a força do ser
humano, de Jó. [Mas não o mate]. “ Essa pessoa fechou a Bíblia e disse: “Pronto. Estamos
vivos. Não precisa de nenhum comentário. Vamos recomeçar, Vamos fazer tudo de novo, va-
mos aprender deste sofrimento”. O Livro de Jó nos ensinou o que Nietzsche escreveu séculos
depois. (BOFF; LELOUP, 1997, p. 65).

Compreendeu que o sofrimento trazido pela diáspora sofrida pelos seus antepassados ren-
deu-lhe a responsabilidade da restituição de ajudar a colocar o verdadeiro valor que os en-
sinamentos do cuidado com a vida viva pudessem resgatar, agora com honrarias e alegrias.

CONCLUSÃO
Nesse trabalho, é utilizada a metáfora da casa para demonstrar o processo cartográfico de
uma experiência da saída da casa concreta para uma nova morada (um corpo). Uma casa que
sofreu uma metamorfose no decorrer do processo com um sentimento de fragilidade que
não podia se descuidar nem ser superestimado, mas de vivenciar o que tinha sido colocado
como desejo. Traz também a vontade como um elemento a ser cartografado como terapêu-
tico, bem como as observações fenomenológicas que ficaram registradas nas reminiscências.
Como elo que funda a cartografia da casa, o uso do legado do Cuidado (ora na práti-
ca do cotidiano no servir um almoço, nas festas comemorativas de final de ano, ora no
aprendizado de um novo ofício, como aprender a costurar ou cuidar de uma planta)
como objeto de estudo no interior de um território, no caso, do corpo.

Os elementos acima foram concebidos como um dispositivo, como forma de responder


a um incômodo, mas que, para isso, lançou mão também de agenciamentos para que o
processo de territorialização fosse inúmeras vezes desterritorializado, sendo este trabalho
apenas uma faceta das várias reterritorializações feitas na “casa/morada/corpo/território”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOFF, Leonardo; LELOUP, Jean-Yves. Terapeutas do Deserto: De Fílon de Ale-
xandria e Francisco de Assis a Graf Dürckheim. Petrópolis: Vozes, 1997.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. V.


4. São Paulo: Ed. 34, 1997.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petró-


polis: Vozes, 2013.

INGOLD, Tim. Estar Vivo: Ensaios sobre Movimento, conhecimento e Descrição.


Petrópolis: Vozes, 2015.

OVERING, Joanna. Elogio do Cotidiano: a confiança e arte da vida social em uma


comunidade amazônica. Revista Mana. Vol. 5. Rio de Janeiro: Apr., 1999.

PASSOS, Eduardo; Kastrup, Virgínia e Escóssia, Liliana. (Organizadores). Pistas do


método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Ale-
gre, Editora Sulina, 2015.

SENNET, Richard. A Corrosão do Caráter: Consequências pessoais do trabalho no


novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2000.

VEIGA, Ana Lygia Schil da. Minha Ariadne, o instante é eterno: Desejo como produ-
ção - Mil anos em cartas entre Ana Schil e G. São Paulo: Círculo das Artes, 2017.

394
Embonecando:
O trabalho manual como ferramenta
da educação empreededora
de jovens e adultos
por Luana Fidelis

RESUMO
Este trabalho é um estudo, sob a ótica da educação empreendedora e do autodesenvolvi-
mento, de resgate e de observação de jovens e adultos na execução de trabalhos manuais
– costura e confecção de bonecas de pano. Para isso, foram considerados dois diferentes
contextos de aprendizagem: os jovens, no ensino de Ciências, em uma escola pública
localizada em Águas da Prata (SP) e os adultos, em um curso de formação continuada de
educadoras infantis da rede municipal de São João da Boa Vista (SP). O objetivo é apon-
tar como as atividades manuais, cada vez menos praticadas nas escolas, atuam diretamen-
te na construção de um agente protagonista e transformador do meio social em que vive.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho Manual. Educação Empreendedora.

395
INTRODUÇÃO
Quando nos sentamos em uma praça, por exemplo, e observamos as pessoas que ali estão,
não é difícil reconhecer vários jovens totalmente absorvidos pelo meio virtual. Essa gera-
ção já nasceu “dentro” dessa tecnologia e não consegue se desvincular dela. Talvez isso
justifique a apatia dos jovens em relação a atividades que possam estimular o aprendizado
de novas técnicas, especialmente das manualidades. De acordo com Creamer (2011),

existe no mundo atual uma separação perigosa do pensar do cérebro e do agir. Po-
de-se acreditar que este desligamento tem a ver, entre outros fatores, com o fato
que desde pequeno a mão ficou atrofiada por falta de uso de suas potencialidades.
Porque a mão, por ela ser “aberta” e não especializada, precisa ser manuseada para
não atrofiar. A cegueira dos dedos pode não ser como a cegueira dos olhos; talvez
ela seja pior, porque enquanto o cego pode simplesmente não ser capaz de achar o
objeto, o “cego do dedo” não consegue compreender o seu significado intrínseco e
seu valor. Se nós deixarmos de desenvolver e treinar os dedos das crianças e a sua
capacidade de criar então negligenciamos o desenvolvimento de sua capacidade
de compreensão da unidade das coisas e impedimos a expressão de seus poderes
criativos e estéticos. Ainda bem que o ser humano é capaz de adquirir habilidades
manuais, pelo resto da sua vida. (CREAMER, 2011, p. 36).

A Educação Empreendedora, nesse contexto, serve como ferramenta para despertar e


motivar a construção de ideias inovadoras, auxiliando na formação de cidadãos críticos,
autônomos, transformadores e empreendedores, que busquem o crescimento coletivo,
através de ações integradas e comunitárias frente a um mercado desleal e competitivo.
(AMORIM, 2018)

O trabalho manual de confeccionar uma boneca de pano, um brinquedo arquetípico e


tão simbólico, desperta em cada envolvido a possibilidade de criação e de vínculo com
algo confeccionado por si mesmo. Segundo Lameirão e Eckshmidt (2015), a boneca é a
imagem do ser humano! Ela proporciona vínculo com tudo o que é humano.

Este estudo justifica-se, assim, pela necessidade de resgate do trabalho manual para
incentivar e desenvolver o vínculo, a interação e as habilidades que promovam o auto-
conhecimento e autodesenvolvimento e que estão sendo negligenciadas, principalmen-
te pela massiva utilização de smartphones, redes sociais e jogos eletrônicos, tanto por
jovens quanto por adultos.

396
O nosso objetivo, no decorrer do texto, é apontar como a costura de uma boneca de
pano pode ser uma ferramenta para o desenvolvimento do indivíduo enquanto prota-
gonista de transformações. Estas, é importante salientar, começam em si mesmo para
posterior atuação no meio social. De acordo com Dolabela (2004),

(...) possui foco na comunidade, e não no indivíduo. Porém, trabalha-se o indivíduo


porque, dentro da Pedagogia Empreendedora, o empreendedor é um indivíduo que
gera utilidade para os outros, que gera valor positivo para sua comunidade. Assim, pro-
cura-se desenvolver as comunidades através das pessoas. (DOLABELA, 2004, p. 56).

2 DESENVOLVIMENTO
A. TRABALHOS MANUAIS: UM SABER, UMA HISTÓRIA, UM RESGATE...
Durante décadas, os trabalhos manuais fizeram parte da grade curricular da educação
pública no Brasil. Meninos e meninas aprendiam, ainda na educação primária, ativida-
des como costura, modelagem, carpintaria, tricô, crochê etc.

Um pouco antes do início da Primeira República muito se debatia sobre a necessidade de


uma ruptura com o modelo tradicional de ensino vigente. Vemos um exemplo dessa pre-
ocupação em Rui Barbosa, quando ele é convidado a redigir pareceres sobre a instrução
pública brasileira por ter conhecimento tanto da realidade europeia quanto da nacional.

Barbosa propõe uma nova forma de pensar o ensino, tendo como base ideias difundidas
por Lutero, Bacon, Ratke, Comenius, Pestalozzi e Buisson. Assim, para ele, o processo
de aprendizagem deveria ser intuitivo, ou seja, a instrução deveria ser principiada atra-
vés da contemplação, do mundo exterior para o mundo interior, por meio da relação
sensorial entre o ser humano e a natureza. Barbosa afirma que:

Teem [sic] por fim, pois, como se está vendo, as lições de coisas cultivar no menino as
faculdades perceptivas, assimilar-lhe ao espírito a arte de observar, adestrá-lo em en-
contrar, diante de cada objeto, a palavra apropriada, em achar diante de cada palavra,
na inteligência, a concepção da realidade correspondente. (BARBOSA, 1883, p. 210).

397
Mas onde o ensino intuitivo, no período da Primeira República, se encontra com o Tra-
balho Manual na educação escolar? Em 1892, Bernardino de Campos, então presidente
do estado de São Paulo, promulga a Lei nº 88, de 8 de setembro de 1892. Em seu arti-
go 5º, institui que, em cada escola primária, tenha uma sala para os trabalhos manuais.
Além disso, que a mesma contenha objetos necessários à prática do método intuitivo
de ensino. A partir daí, nos anos posteriores, foram lançados alguns decretos, visando a
instituição normativa de grupos escolares, nos quais podemos encontrar relações com
o método intuitivo e suas lições de coisas e o trabalho manual. Também encontramos a
especificação dos trabalhos manuais nas escolas.

No artigo “O ensino ativo dos Trabalhos Manuais no curso primário paulista: um estudo
da escolarização dos saberes matemáticos”, Claudia Regina Boen Frizzarini e Maria Célia
Leme da Silva discorrem sobre os trabalhos manuais nos programas primários paulistas,
entre os anos de 1894 a 1925. Esse estudo será usado como fundamentação teórica, porém
com enfoque no que nos é mais importante nesse trabalho: o trabalho manual de costura.

Em 1925, é promulgado, por um ato executivo, um novo programa escolar, no qual


desde o início se adota o método intuitivo como necessário à prática escolar. Nesse
programa, as atividades básicas de costura são indicadas para as classes mistas, embora
sejam mais trabalhadas com as meninas.

Concluímos, desse modo, com a revisão histórica da formatação do ensino escolar na


Primeira República, que os programas escolares tomaram como base os preceitos da
pedagogia moderna, conceituada no início da presente revisão. Desde então, o trabalho
manual foi restrito à formação de educadoras primárias nas escolas normais e reduziu-se,
basicamente, a trabalho com papel na Educação Infantil.

B. EDUCAÇÃO EMPREENDEDORA NA ESCOLA: UM CAMINHO...


Durante muito tempo, as políticas brasileiras desmotivaram o empreendedorismo. A educa-
ção, historicamente, mostrou-se autoritária e excludente, colocando muitos à margem deste
processo. Este cenário foi se transformando paulatinamente para suprir uma necessidade
urgente de formar mão de obra técnica, porém sem que fosse estimulado a empreender.

398
De acordo com Sousa Neto (2010), a ausência de uma efetiva política educacional de-
monstrou a falência de métodos tradicionais e impulsionou educadores progressistas
à busca de novos caminhos a fim de reverter o quadro de fracasso no qual imergiam os
métodos autoritários.

Farias (2018) afirma que, como consequência do movimento, a escola de hoje não pode
mais limitar-se a alfabetizar e dar formação básica. É preciso preocupar-se com a pre-
paração do aluno para enfrentar os desafios futuros do mundo do trabalho, até porque
o jovem contemporâneo questiona a escola quanto à sua preparação para enfrentar os
desafios no mundo do trabalho.

Sousa Neto (2010) defende que o desafio da pedagogia empreendedora é, neste sen-
tido, ousado, na medida em que supera os métodos educacionais baseados na escola
tradicional e de enfoque tecnicista, do modelo bancário de ensinar e aprender. Propõe,
ainda, a mudança de paradigmas na formação do educador, cujo papel é crucial na for-
mação de seus alunos. Segundo Pacheco et al. (2006), o professor é o agente principal
para impulsionar essa mudança.

A Pedagogia Empreendedora vê na escola uma referência comunitária na busca da cons-


trução de um futuro coletivo promissor, em que é imprescindível desenvolver no educando
uma relação questionadora e reflexiva com sua realidade social. (AMORIM, 2018)

Muitas são as iniciativas de inovação das práticas nas escolas – a Educação Empreendedo-
ra pode ser um caminho. Disseminar a cultura é fundamental na formação dos professores
na busca do autoconhecimento, de novas aprendizagens, contribuindo para uma educa-
ção transformadora, quebrando paradigmas na busca do fortalecimento da autonomia, do
projeto de vida e da liberdade de decidir sobre o próprio destino. (FARIAS, 2018)

C. EMBONECANDO COM JOVENS E ADULTOS – PONTOS, CONTOS E


EMPREENDEDORISMO
A boneca de pano, assim como a bola, são brinquedos primordiais na educação dos
seres humanos. Desde pequenos, temos contato com esses objetos que, inocentemente,
manuseamos e brincamos mas que, internamente, estão fazendo um maravilhoso traba-
lho educativo. Segundo Lameirão e Eckschmidt (2015),

399
quando brinca, a criança exerce atividade própria (...). Elas brincam porque isso
faz parte da necessidade espontânea que as crianças têm de se ativar. É também
dessa forma que elas integram percepções sensoriais. Quando o educador oferece
um ambiente adequado, elas se ativam e aprendem por meio dessa situação. (LA-
MEIRÃO; ECKSCHMIDT, 2015, p. 39).

Com o passar do tempo, as impressões, que tivemos enquanto criança pequena, moldam
as nossas percepções do mundo e a forma de nos relacionarmos com os outros e conosco.

Se vivenciarmos o processo do cuidar enquanto somos crianças, ganhamos


base para a competência social que levará a marca do indivíduo. Entretanto,
toda trajetória de vida pode modificar essa interação, pois também podemos
aprender quando adultos. (...) Mas, a competência social básica, à qual me re-
firo, diz respeito à maneira de como um ser humano se vincula ao outro que
acabou de chegar, à criancinha.

Dentro da possibilidade do constante aprendizado ao longo da vida, esse estudo apre-


senta a construção manual de uma boneca de pano com finalidade pedagógica, em
duas diferentes situações:

Jovens do 8º ano da E.E Cap. Jão Urias da Silva, Águas da Prata - SP


No currículo do Estado de São Paulo (BNCC, 2019), o conteúdo de Ciências Físicas
e Biológicas trabalha o tema “Gravidez na adolescência”. O material didático apresenta
diversas sugestões de dinâmicas para serem realizadas com os jovens. Uma delas consiste
no cuidado de um ovo cru (estrutura bem frágil) durante uma semana, levando-o para
todos os compromissos do aluno, inclusive para escola (Manual do Multiplicador – Mi-
nistério da Saúde). O objetivo é que o jovem vivencie o cuidado e o compromisso durante
sete dias, compartilhe com os colegas como foi essa experiência e produza um relatório.

Para atingirmos o objetivo com a nossa pesquisa, que vem sendo realizada nesses mol-
des desde 2016, houve uma adaptação na metodologia dessa dinâmica: o ovo cru passou
a ser o “enchimento” de uma boneca de pano simples, porém, costurada por eles mesmos
a partir de retalhos, linha e agulha.

Assim, a boneca é toda de retalhos de pano. Primeiro, há a confecção da cabeça e, a


partir de um quadrado de aproximadamente, 20 x 20 cm, é costurado o corpo. A costura

400
é feita nas linhas diagonais para formar braços e pernas. O ovo cru é o último a ser adi-
cionado à boneca e só depois o aluno fecha a “barriga” da boneca. Depois disso, podem
desenhar o rosto e colocar cabelo ou outros adereços que conferem identidade à boneca.

Após a confecção das bonecas, ocorre um “batismo” simbólico (FIGURA 1). Os alunos
nomeiam suas bonecas e recebem a tarefa de cuidar dela e levá-la para todos os lugares,
inclusive para escola, durante o período de sete dias. Também devem criar um “berço”
para acomodá-la e preencher um diário contando a rotina estabelecida com a boneca.

Figura 1: Turma do 8º
ano de 2017 com suas
bonecas ovo. Fonte:
Autoria própria.

Figura 2: Boneca ovo,


seu berço e diário. Fonte:
Autoria própria.

Após esse período de uma semana, os alunos apresentam o relatório escrito. Em roda,
cada um mostra a sua boneca e conta o que aconteceu durante o período da ativida-
de. O papel da educadora é fundamental para orientar e mediar a explanação. Algumas
perguntas-chave norteiam a discussão e a reflexão do grupo e são conduzidas pela pro-
fessora: “Como foi a chegada da boneca em casa?”; “Qual a reação dos seus familiares?”;
“Como você se sentiu durante esse período que cuidou da boneca?”

Adultos educadores da rede municipal de educação


de São João Da Boa Vista - SP

O trabalho foi realizado com profissionais da Educação Infantil da Rede Municipal de


São João da Boa Vista – SP, no contexto do Projeto Brincar e sua Singularidade, rea-
lizado pelo Instituto Olinto Marques de Paulo (IOMP), de março a outubro de 2017:

401
O Instituto OMP investe na educação como caminho para a transformação social
através do processo de autoeducação e autodesenvolvimento do educador, pois
o consideramos como sujeito e com grande potencial multiplicador, tendo por
objetivo que o educador seja um modelo a ser imitado e que as crianças sejam pro-
tagonistas da vida futura. Deste modo, atuamos através de programas e projetos
de formação continuada que busca através de diferentes ações contribuir com a
sociedade promovendo a consciência da importância dos primeiros anos de vida
1
do ser humano para a construção da identidade do indivíduo.

Nesse contexto, a docência em Trabalhos Manuais permitiu a observação e a condução


de um grupo de adultos no processo de confecção da boneca de pano estruturada como
parte da formação no curso “Brincar e sua singularidade”.

Os encontros eram quinzenais e a boneca foi feita ao longo de 3 meses de trabalho, em


parceria com outra docente Gisele Flaminio. Participaram, no total, 58 educadores de 12
instituições municipais de educação básica.

O trabalho de construção da boneca de pano estruturada ocorreu em etapas: 1) Cabeça;


2) Tronco e pernas; 3) Braços; 4) Pés; 5) Rosto e Cabelos; 6) Roupa. A cada encontro,
iniciado sempre com uma roda, as docentes traziam o tema e as educadoras compar-
tilhavam as suas impressões pessoais no processo de construção da boneca. Assim, as
contribuições eram conduzidas para uma reflexão durante a oficina, convidando-as para
um momento de autorreflexão e, consequentemente, autodesenvolvimento.

Figura 3: Educadoras em roda para início


do trabalho manual. Fonte: IOMP, 2017.

Figura 4: Educadoras no momento


de criação. Fonte: Autoria própria.

1 Disponível em: http://www.instituto-omp.org.br/projetos/projeto-brincar-projetos-em-andamento/projetos- finalizados

402
D. RESULTADOS
A Educação, assim como outras práticas sociais, não é algo estático, pois se desenvolve
historicamente, em contextos, tempos e espaços específicos, sofrendo constantes trans-
formações. Nesse sentido, para a realização da presente pesquisa, foi fundamental re-
alizarmos a revisão e a contextualização histórica dos trabalhos manuais na educação
brasileira, mais especificamente no estado de São Paulo, no período de 1889 a 1930, ou
seja, na Primeira República. Isso porque foi um período em que pudemos nos situar
com um distanciamento temporal histórico permissível de análise, tal como nos prove-
mos de acesso a fontes e às análises históricas para tal trabalho.

A partir deste levantamento, podemos concluir que, em muitos aspectos, o trabalho ma-
nual foi valorizado como parte importante do currículo do estado de São Paulo. O con-
texto histórico e cultural proporcionou que os ensinamentos manuais fossem executados
como um modo de formar esses trabalhadores para que pudessem ser mais autônomos.

Em estudo feito sobre trabalho manual e formação de uma nação laboriosa, de acordo
com Hoeler e Daros (2014, p. 48), “autores convergem no sentido da necessidade de
considerar os trabalhos manuais de modo distinto do que se apresentava e, em especial,
levando a perceber a importância disto ligado aos aspectos sociais e não apenas aos pe-
dagógicos, pois os alunos aprenderiam a ser úteis e produtivos.”

Vale lembrar que as tecnologias industriais de alimentos e vestimenta só chegaram ao Bra-


sil após a II Guerra Mundial. Antes disso, as pessoas, especialmente no interior, tinham que
confeccionar a maioria dos produtos usados no cotidiano. As crianças acompanhavam os
adultos e vivenciavam todo o processo de construção, desenvolvendo habilidades manuais.

Uma Educação Empreendedora, do ponto de vista pedagógico, almeja, por meio da disse-
minação e do desenvolvimento da cultura de empreendedorismo, a formação de uma juven-
tude melhor preparada para os desafios e as transformações destacadas. Devem ser, antes
de tudo, plenos de consciência de suas responsabilidades perante o desenvolvimento de sua
sociedade e, numa esfera político-econômica, dos rumos do país. (FARIAS, 2018)

Em jovens do Ensino Fundamental II, da rede pública do Estado São Paulo, o trabalho
foi executado durante as aulas de Ciências do 8º ano. Dentro do tópico “Gravidez na

403
adolescência”, a atividade consistiu em confeccionar um bebê de pano com um ovo cru
em seu interior. Da confecção à entrega do relatório final, os jovens vivenciaram o traba-
lho manual como ferramenta de aprendizado e autoconhecimento.

Por ser uma atividade conhecida (e esperada) pelos alunos dessa série, o fator surpresa
não causa tanto efeito. Porém, o contato com os panos, a agulha e linha é sempre surpreen-
dente. Existem jovens que nunca haviam manuseado tais objetos. As reações são variadas,
mas giram em torno da insegurança (pelo medo de não conseguirem realizar a atividade
manual), da curiosidade (“O que será que vai sair daí?”) e, algumas vezes, do preconceito
(especialmente dos meninos por acharem que costura não é uma atividade “masculina”).

O diálogo é fundamental durante todo o processo para, aos poucos, consolidar alguns
conceitos e desmanchar os “pré-conceitos”. A educadora, com papel de intermediar esses
saberes, conceitos e conhecimentos, deve estar atenta para solucionar qualquer situação
adversa que possa se instaurar durante o trabalho. Os alunos devem se sentir à vontade
e acolhidos para poderem realizar a atividade, deixando a criatividade fluir livremente.

No momento de criação, os alunos curiosos podem acompanhar o “passo a passo” e se


tornar sujeitos ativos no processo de construção do conhecimento, vivenciando todas as
etapas. Os alunos inseguros vão, aos poucos, recebendo orientações simples que mos-
tram que o trabalho manual não é um “bicho de sete cabeças”. O constante acompanha-
mento da educadora vai criando um ambiente seguro para que eles desenvolvam sua
atividade, inclusive com ajuda e incentivo dos colegas, estabelecendo, assim, um vínculo
com o objeto que é fruto de seu próprio trabalho.

Figura 5: Momento de
confecção da boneca ovo.
Fonte: Autoria própria.

404
Durante a roda de conversa, os alunos compartilham as experiências. Sempre existem
bonecas que se quebram. Daí parte do aluno a iniciativa de refazer a boneca ou de fina-
lizar precocemente a atividade. Na maioria das vezes que ocorreu do ovo se quebrar,
a boneca foi refeita. A grande maioria deixa a boneca em casa e não a leva em todas as
atividades. Em casa, geralmente, fica acondicionada no berço, dentro de um armário.
Porém, aqueles que atendem a proposta relatam o quão trabalhoso é lembrar de levar e
trazer a boneca. Compartilham que a maior dificuldade é ter essa responsabilidade do
cuidado. Interessante observar que aqueles que se vinculam ao objeto, fruto da criação,
conservam a boneca (sem o ovo) mesmo após o término da atividade.

Figura 6: Bonecas em expo-


sição ilustrando brinquedos
populares no mês do folclore.
Fonte: Autoria própria.

Os jovens têm, em média, 12 a 13 anos de idade. Estão em plena transição da infância para
a adolescência. A boneca resgata essa infância de vínculo e cuidado com a criança menor
(tanto por meninas quanto por meninos). Porém o “alerta” para uma responsabilidade

tão precoce como uma gravidez não planejada fala mais alto. É visível que os jovens
fiquem atentos para a questão e externem suas opiniões, suas dúvidas e seus anseios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em consonância com os objetivos desse estudo, o trabalho manual permite a valori-
zação do ser humano ao ponto dos alunos se vincularem e cuidarem do objeto como
uma forma de aprendizado vivenciado pelas responsabilidades afetivas conquistadas
nos relacionamentos sociais.

405
É necessário, assim, promover e ampliar o entendimento sobre o que é empreendedo-
rismo. Um empreendedorismo que não apenas gire em torno do sentido empresarial,
mas que mergulhe fundo no estudo do comportamento, que reconheça e incentive as
atitudes empreendedoras do indivíduo, das condições ambientais e da formulação de
métodos de ensino para a sua socialização. (FARIAS, 2018)

Isso porque, segundo Creamer (2011),

Se nós deixarmos de desenvolver e treinar os dedos das crianças e a sua capa-


cidade de criar então negligenciamos o desenvolvimento de sua capacidade
de compreensão da unidade das coisas e impedimos a expressão de seus po-
deres criativos e estéticos. Ainda bem que o ser humano é capaz de adquirir
habilidades manuais, pelo resto da sua vida. (CREAMER, 2011, p. 79).

Isso pode ser confirmado na experiência que tivemos com o trabalho manual como
ferramenta da educação empreendedora em adultos da rede pública municipal de São
João da Boa Vista – SP, em que a confecção de bonecas de pano se deu no curso de
formação de educadoras infantis. Todos os envolvidos confeccionaram uma boneca de
pano ao longo de três meses (encontros quinzenais) e vincularam-se ao trabalho manual
(FIGURA 7). Esses educadores puderam vivenciar o trabalho manual como forma de
autodesenvolvimento. A partir daí, tornando-se espelho para seus alunos e estimulando
crianças pequenas.

Ambas as experiências reforçam, cada vez mais, o contato com materiais naturais e a
importância de proporcionar isso para as crianças e os jovens. “Se nós valorizarmos, de
novo, a mão humana, quer dizer se a deixássemos agir, se experimentar, se capacitar, se
criarmos uma competência manual estabeleceríamos um equilíbrio entre aquilo que o
cérebro é capaz de pensar e aquilo que a mão quer executar”.

Assim, a “cegueira de dedos”, como aponta Creamer (2011), poderá ser diminuída e “a
criança aprenderá manuseando suas mãos a ter vivências concretas e visíveis das conse-
quências dos seus atos. Recriará a religação entre seu pensar e seu agir. Ela aprenderá a
‘olhar com a mão’ e agir com pensamentos morais.” (CREAMER, 2011, p. 78).

406
REFERÊNCIAS
AMORIM, D. A. A Pedagogia Empreendedora Na Educação Básica Brasileira.
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ção Empreendedora, UFSJ - MG, 2010.

408
Fios e histórias nos fazeres
das artes-manuais: Uma
peregrinação com Tim Ingold pelo
emaranhado das linhas e tramas
por Claudia Valéria de Assis Dansa, Cristina Yamazaki,
Elissângela Freitas Leite, Elizabeth Renata Gladcheff Fonseca, Flávia de
Almeida Alves Lopes, Marcia Gallo De Conti, Maria Cláudia Vieira Fernandes

RESUMO
Pós-graduandas em Artes-Manuais para Terapias criam um dispositivo para operar con-
ceitos propostos por Tim Ingold no livro Estar vivo, em especial o que o antropólogo
propõe sobre a relação entre produção, história, habitação e linhas. A partir dessa urdi-
dura teórica, são explorados os conceitos de emaranhado e malha como possibilidades de
compreensão do mundo e das relações de produção. O grupo compôs, com base na siste-
matização desses conceitos-chave, um dispositivo em forma de minioficina que estimule
as participantes a mergulhar também nesses fios e nós, literalmente. Desse emaranhado,
que possam produzir e produzir-se partindo de um fazer-pensar sobre a relação entre as
formas de produção e sua história, na perspectiva de semear algumas possibilidades de
transformação dessas formas de produzir/produzir-se. Em um ambiente que contextu-
aliza historicamente a evolução das artes dos fios, e que ofereça materiais e ferramentas
diversos, as participantes iniciarão um trabalho manual individual e depois coletivo. O
dispositivo visa propiciar que elas vivenciem o fazer nas artes-manuais associando-o com
sua história de vida e refletindo sobre seus entrelaçamentos com as bases históricas (pes-
soal e coletiva) que lhes dão sustentação.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-Manuais. Terapia. Fios.

409
1 AS LINHAS
Esta proposta nasceu a partir da Pós-Graduação lato sensu em Artes-Manuais para Te-
1
rapias, coordenada pela Profa. Dra. Ana Lygia Veira Schil da Veiga . Nesse curso, o
trabalho artesanal associado à cultura manual das artes da casa (costura, fiação, tecela-
gem, bordado, tricô, crochê e as demais artes ligadas às práticas ancestrais domésticas)
constitui um importante dispositivo clínico de sensibilização e cuidado.

A obra Estar vivo, do antropólogo inglês Tim Ingold, instigou-nos uma nova leitura do
mundo – uma leitura na qual os livros não sejam guias de estudos intelectuais, mas que
promova uma observação do mundo ao nosso redor e também nos ajude a responder ao
que as coisas do entorno nos dizem, o tempo todo. Para não reduzir os conceitos de In-
gold a exercícios mentais, e tocadas pelos fios do emaranhado dos ensaios que compõem
o livro, propusemo-nos uma tentativa de operar esses conceitos. Manipular, torcer, engo-
lir, pisar. Compor, a partir da sistematização de alguns conceitos-chave, um dispositivo
em forma de minioficina que estimule as participantes a mergulharem também nesses fios
e nós, literalmente. Desse emaranhado, produzir e produzir-se partindo de um fazer-pen-
sar sobre a relação entre as formas de produção e sua história, na perspectiva de semear
algumas possibilidades de transformação dessas formas de produzir/produzir-se.

Escolhemos as artes do fio por compreender que a cultura manual das artes da casa (cos-
tura, bordado, tricô, crochê, fiação, tecelagem e outras artes ligadas às práticas ancestrais
domésticas) tem técnica, arte e saberes historicamente constituídos que compõem com
os conceitos trabalhados por Ingold. A minioficina propõe uma composição com a his-
tória pessoal dos fazeres domésticos das participantes e a produção coletiva da história.
Apesar de uma inegável dimensão educadora, entendemos que este trabalho insere-se no
campo teórico das artes-manuais para terapias, uma vez que visa construir um espaço que
convida os sujeitos a se aproximarem de sua própria história ao entrar em contato com as
motivações, os bloqueios e outros componentes psíquicos e sociais que influenciam sua
ação no mundo para transformar-se.

1 Curso realizado pelo Nina Veiga Atelier de Educação e pela Faculdade de Conchas (Facon). A turma das autoras foi
iniciada em 2019 e será concluída em 2020.

410
2 EMARANHADO DE CONCEITOS
Iniciaremos esta reflexão trazendo um primeiro entrelaçamento fundamental, feito por
Tim Ingold em diálogo com vários outros autores, sobre a relação entre produção, his-
tória, habitação e linhas – e que constituirá a urdidura de nossa proposta. A partir dela,
exploraremos também os conceitos de emaranhado e malha como possibilidades de com-
preensão do mundo e das relações de produção, conectando essas ideias com a constru-
ção de nosso dispositivo.

Partindo de uma reflexão crítica sobre o que é produção, embasando-se em autores como
Marx e Engels, Godelier, Sahlins, Ortega y Gasset e outros, Ingold traça sua própria no-
ção do que é esse processo para os seres humanos em particular e para os seres vivos em
geral. Nesse contexto, o autor vai desconstruindo o sentido de produção como realiza-
ção de algo previamente idealizado/teorizado/projetado e concentra-se numa perspectiva
mais abrangente de produzir, no sentido de transformar, transformando-se.

Assim, a dimensão de produção de si como parte fundamental da produção do mundo


atualiza a visão da relação entre natureza e cultura, ser humano e outros seres, criando
uma perspectiva de visão mais integrada do mundo, onde todos produzem e são produzi-
dos, construindo um só processo histórico que entrelaça tudo e todos, incluindo coisas e
os seres humanos e não humanos, numa perspectiva evolucionária e sistêmica.

Produção, nessa perspectiva, passa a significar “extrair e atualizar potencialidades na pes-


soa do produtor e no mundo circundante” (INGOLD, 2018, p. 30), o que inclui também
2
seres não humanos e coisas , imprimindo marcas dos processos que formam a vida, uma
vida em nascimento contínuo. Todos atuantes nessa produção “de si mesmo e [de] uns
aos outros, estabelecendo, através de suas ações, as condições para o seu contínuo cresci-
mento e desenvolvimento do mundo.” (INGOLD, 2018, p. 32)

Na essência da produção, destaca o autor, está uma qualidade atencional da ação e em


seus desdobramentos sobre o desenvolvimento do produtor, ou seja, “na sua sintonização
e responsividade à tarefa conforme ela se desdobra.” (INGOLD, 2018, p. 29)

2 Ingold, dialogando com Heidegger, diz: “[...] a árvore não é um objeto, mas um certo agregado de fios vitais. É isso que
entendo por coisa” [...] “A coisa, por sua vez, é um ‘acontecer’, ou melhor, um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam.
Observar uma coisa não é ser trancado do lado de fora, mas ser convidado para a reunião.” (INGOLD, 2012, p. 48)

411
Assim, investigar a vida humana seria “explorar condições e possibilidades em um
mundo povoado por seres cuja identidade vem mais do que produzem do que daquilo
que são.” (INGOLD, 2018, p. 31)

Seguindo essa mesma linha, a história é vista como trama de produções de todos os seres
que estão se produzindo no mundo em que habitam. Falando do geógrafo Torsten Hä-
gerstrand, Ingold explica:

Há devires humanos, devires animais, devires vegetais e assim sucessivamente.


Conforme se movem juntos através do tempo e encontram-se uns aos outros, esses
caminhos se entrelaçam para formar uma imensa e contínua tapeçaria em evolução.
A Antropologia, portanto, é o estudo dos devires humanos conforme desdobram-
se dentro da trama do mundo. (1976, p. 332 apud INGOLD, 2018, p. 34).

História, então, “é o processo no qual seres vivos de todos os tipos, naquilo que fazem, consti-
tuem as condições de existência uns dos outros, tanto para si próprios como para as gerações
subsequentes.” (INGOLD, 2018, p. 32) As formas de vida que surgem são evolucionárias.

Ao processo de entrelaçar, por meio de uma visão de tessitura, a história, a evolução e


a vida social, Ingold chamará habitação. Habitar, para o antropólogo, é reinserir o ser
humano e o devir na continuidade da vida, a partir de uma construção que é história
dos homens e do mundo, produzindo suas vidas e seus modos de vida/produção em
relação com todo o mundo vivo e não vivo. As linhas seriam caminhos de movimento
ao longo de um modo de vida. Como afirma o autor, “estabelecer um caminho ao longo
da vida é habitar, que é viver historicamente. Cada forma histórica de vida é um modo
de produção.” (INGOLD, 2018, p. 26)

Ao desconstruir o conceito de produção como algo pré-programado sobre formas amor-


fas, como interpretam os deterministas, Ingold propõe alternativamente trabalhar os
materiais e trazer formas à existência a partir de um reconhecimento de suas possibili-
dades e limites, os quais são estabelecidos nas relações do produtor com os materiais e
as ferramentas. O autor opõe a criação feita com base em objetos e imagens ao fluxo dos
materiais e correntes de consciência sensorial, fluxos a partir dos quais as coisas e ideias
tomam forma. Vai encontrar em Merleau-Ponty um tipo de envolvimento com o mundo
descrito como senciente, que relaciona a percepção do mundo e sua produção.

412
Ser senciente [...] é abrir-se a um mundo, render-se ao seu abraço e ressoar
em seu interior as suas iluminações e reverberações. Banhado na luz, sub-
merso no som e arrebatado em sentimento o corpo senciente, ao mesmo
tempo percebedor e produtor, traça os caminhos do devir do mundo no cur-
so mesmo da contribuição para sua contínua renovação. (2018, p. 38).

Habitar é, então, iniciar um movimento ao longo de um caminho de vida. Ser é estar ao


longo de caminhos. Caminho é condição primordial do ser ou vir a ser. Cada ser é um
feixe de linhas do seu próprio movimento.

Em um diálogo, com algumas imagens invocadas por Deleuze e Guattari ao descrever a


produção rizomática em Mil platôs, a partir das linhas de fuga e de devir e seu movimento
como um rio, que corre erodindo as margens e ganhando força no meio, Ingold constrói
sua própria imagem para descrever seus conceitos de transitividade e intransitividade –
como as chama o autor – e sua proposta de movimento. Para isso, compara a travessia do
rio em uma ponte com nosso hábito de projetar a imagem de um ponto e depois tentar
concretizá-la como objeto no ponto seguinte, ignorando que, na correnteza do rio, temos
as linhas de fuga ou intransitividade. Ou seja, ignorando o que escapa em todo processo
criativo e corre em direção própria erodindo as margens, demandando desconstrução o
tempo todo, além de reconstrução das pontes originalmente projetadas. Para recuperar
o sentido desse rio na produção, “precisamos mudar nossa perspectiva da relação trans-
versal entre objetos e imagens para as trajetórias longitudinais de materiais e conscienti-
zação.” (INGOLD, 2018, p. 41)

Nesse sentido, essas linhas que se entrecruzam fazem da vida um constante processo
de movimento e superação que exige sensibilidade e criatividade, atenção, pesquisa e
aprendizagem para que possamos perceber as texturas e emaranhados que se formam
no percurso. Além de que sejamos capazes de lidar com eles e seguir o que acontece na
imanência, rastreando as múltiplas trilhas do devir aonde quer que elas nos conduzam:

[...] imaginar o mundo social como um emaranhado de fios ou caminhos de


vida, sempre embaraçando-se aqui e desembaraçando-se ali, no qual a tarefa
para qualquer ser é improvisar um caminho e seguir em frente. As vidas estão
vinculadas no emaranhado, mas não estão vinculadas por ele, já que não há
nenhum enquadramento, nenhum limite externo. (INGOLD, 2018, p. 316).

413
Um emaranhado de coisas, um emaranhado de conceitos a sustentar a urdidura para
tecer a malha da minioficina aqui proposta. Não uma rede de conexões, como Ingold
(2012, p. 27) faz questão de destacar, pois não se trata de linhas que se conectam – uma
imagem corriqueira hoje em dia, num mundo que se diz conectado, em rede – mas
literal e concretamente um emaranhado. Linhas que foram entrelaçadas ao se movi-
mentarem e que não compõem “uma entidade fechada para o exterior”, mas que vão
formando nós, deixando para fora umas linhas soltas, a serem capturadas, emaranha-
das por outros nós. (IDEM, p. 29)

É nesses fluxos e contrafluxos, serpenteando através ou entre, sem co-


meço nem fim – e não enquanto entidades conectadas com limites inte-
riores ou exteriores – que as coisas são evidenciadas no mundo do ASO
[ambiente sem objetos]. (IDEM, p. 40).

Seguindo a trajetória ingoldiana, concebemos as peças de artes-manuais a serem criadas


durante a minioficina – ou ao menos iniciadas no período da atividade – como coisas pro-
duzidas seguindo o fluxo dos materiais. Coisas que vazarão não só dos materiais, mas
também da paisagem, do fazer, do grupo de seres humanos ali reunidos – e da urdidura
dos conceitos ingoldianos em operação. Sem impor “forma à matéria, mas reun[indo] ma-
teriais diversos e combin[ando] e redirecion[ando] seu fluxo.” (INGOLD, 2012, p. 36).
Coisas que, esperamos, sejam um acontecer, “um lugar onde vários aconteceres se entre-
laçam” (IDEM, p. 29) – e não, portanto, mero objetos.

Embora o autor não desenvolva nenhum conceito de saúde em Estar vivo, após experi-
3
mentar uma leitura da obra enquanto estávamos a também pensar com as mãos – fazen-
do crochê e tricô, bordando, arriscando-nos em pontos iniciais de frivolité – aventuramo-
nos a nos perguntar o que, na perspectiva ingoldiana, poderíamos chamar de saúde.

Certamente não se trata aqui de lidar com padrões cristalizados de normalidade, para
os quais todos deveriam convergir, mas da produção de um devir-habitação que nos co-
necte ao mundo como seres cocriadores, imersos no processo de produção da história a
partir de uma produção de nós mesmos, que nos permita viver a vida simultaneamente

3 No curso de Pós-Graduação em Artes-Manuais para Terapias.

414
de forma senciente e consciente – de forma que nossas pontes não sejam tão rígidas que
o rio constantemente as derrube, e que nosso rio não seja tão caudaloso que não nos
permita nunca atravessar a ponte.

Assim, talvez pudéssemos conceber saúde como processo de conseguir transitar entre os
emaranhados e as tramas da nossa vida de forma senciente, sendo capazes de tomar cons-
ciência do que produzimos no mundo e do que ele produz em nós – transformando-o ao
nos transformarmos. Em outras palavras, encontrando caminhos de fazer da vida um pro-
cesso próprio de criatividade e superação que nos vitalize e revigore enquanto vitalizamos
e revigoramos o mundo. Pois, segundo Ingold, “crescendo no mundo, o mundo cresce ne-
les.” [nos produtores, ou seja, nos seres humanos e não humanos] (INGOLD, 2012, p. 30).

Nesse sentido, produção e saúde parecem-nos conceitos indissociáveis. E, por isso, se


torna fundamental nos atentar para a forma como produzimos, além de nos perceber
como feixe de linhas que inscrevemos no movimento, ao caminhar. Entendemos que o
percurso pelas memórias de nossa história individual e coletiva, a partir dos fazeres e dos
materiais (as artes do fio), pode ser um caminho interessante para abordar a saúde, sendo
as artes-manuais ferramentas importantes na construção de dispositivos terapêuticos.

3 AS ARTES-MANUAIS COMO DISPOSITIVOS TERAPÊUTICOS


Ao propor um dispositivo, deve-se exercer algo que estimule o desejo do sujeito à ação,
a viver e caminhar pelas ideias. Para Veiga (2019), as artes-manuais são um dispositivo
com potencial para lentificar e presentificar os processos, de certa forma em “traição” ao
intelecto. Também podem ser pesquisadas como dispositivo clínico para a percepção
das “forças do fora”.

O corpo é uma fonte de ressonância de sensações que desperta para ações, que nos faz
pensar, sentir e querer. É por meio dos sentidos que chegam as informações do mundo
exterior para assim ocorrer a reprodução de respostas. A vivência corpórea espontânea
promove a liberação de emoções, restabelece funções prejudicadas e estimula a criativida-
de, desenvolvendo e resgatando potências.

415
Os dispositivos acionados pelos movimentos corporais, como no caso das artes do fio, reve-
lam a extensão de nossa compreensão tátil mais primária e das experiências a ela relaciona-
das. O envolvimento durante a atividade manual favorece o equilíbrio interior e as conexões
do corpo; mente e alma se relacionam e geram experiências sensoriais múltiplas, ativando
as forças físicas. E é nesse processo reativo que se amplia a capacidade de motivação de um
corpo vivo e as possibilidades de conexão com sua história de cocriação com o mundo.

Segundo Ingold, um ser que se move, conhece e descreve deve estar atento para o
mundo (INGOLD, 2018, p. 13). Observar todos os recursos do corpo implica o mo-
vimento e suas inúmeras possibilidades, descobertas e aprendizagens. O contato com
materiais e ferramentas específicas em situações terapêuticas pode apoiar o sujeito em
seu processo de perceber as marcas que o constituem e como elas influenciam em seu
processo de produzir produzindo-se.

Todo e qualquer corpo é constituído de exploração, movimento e criação. Por isso, o


olhar terapêutico para as artes-manuais pode contribuir para produzir corpos que se
percebam e reconheçam como feixes de linhas a se produzirem no fluxo, no movimento.
Segundo Merleau-Ponty (1964, apud INGOLD, 2018, p. 18), as variações das experi-
ências habitam o mundo visível e suas qualidades. Trata-se do mundo interior abrindo-
se para o mundo em formação, de forma senciente, num processo de compreensão mais
profunda do seu caminhar/habitar e cocriar.

4 A MINIOFICINA
Este dispositivo visa propiciar que as participantes vivenciem o fazer nas artes-manuais
associando-o com sua história de vida e refletindo sobre seus entrelaçamentos com as
bases históricas (pessoal e coletiva) que lhes dão sustentação, bem despertando a atenção
para os processos de transição das ações individuais para as coletivas.

Operaremos na minioficina com os conceitos de Tim Ingold de fio/linha, emaranhado,


redes, tramas – léxico que “coincide” com muitos termos das artes-manuais. Foi conce-
bida sob influência de Tim Ingold, em especial nos textos de Estar vivo, mas também
traz o aporte de outros autores (as).

416
4
Um grupo de pesquisadoras em Artes-manuais organizará um ambiente que exponha
alguns elementos para contextualizar historicamente a evolução das artes dos fios. Assim,
por meio de materiais e ferramentas, as participantes poderão iniciar ali algum trabalho
individual e coletivo e, também, enquanto produzem com as mãos, refletir e debater.

O dispositivo também será integrado por ações que articulem algum exercício de corpo,
leituras de pequenos textos e contos para acompanhar os fazeres manuais.

Etapa 1: Corpo
Preparar o corpo para o espaço-tempo de produção. Como os corpos chegam com expec-
tativas e ansiedades, será proposto algum exercício para presentificação.
Atividade: Andar pelo espaço, de forma lenta, observando os movimentos do caminhar.
Em seguida, caminhar e manter contato visual com as pessoas pelas quais passar. No
momento indicado, parar e aproximar-se de um par, mantendo contato visual por 30 se-
gundos. Depois, voltar a andar. Escolher um lugar para se acomodar.
Duração: 5 minutos.

Etapa 2: Produção individual


Olhar os materiais e as ferramentas no ambiente. Na sequência, escolher alguns deles
para trabalhar. Materiais a serem selecionados conforme o gosto pessoal.
Atividade: Escolher o material e produzir alguma peça. Durante o trabalho, será narrado
o conto “Fiandeiras do destino” e serão lidos alguns trechos de Tim Ingold relacionados
aos conceitos que fundamentaram a minioficina.
Partilha oral da experiência.
Duração: 45 minutos.

Etapa 3: Produção coletiva


Criação coletiva com base no trabalho já feito individualmente, que pode ser complemen-
tado com peças novas também.
Partilha oral da experiência.
Duração: 30 minutos.

417
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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na reabilitação. Patchwork como facilitador do resgate da autoestima em pacientes
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INGOLD, T. Estar vivo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

_____. Trazendo as coisas de vota à vida: emaranhados criativos num mundo


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VEIGA, Ana L. V. S. da. Fiar a escrita: políticas de narratividade – exercícios


e experimentações entre arte-manual e escrita acadêmica. Um modo de existir
em educações inspirado numa antroposofia da imanência. Tese de doutorado em
Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), 2015.

_____. Aula ministrada na disciplina “Os dispositivos em Artes-manuais para Te-


rapias”, no curso de pós-graduação em Artes-manuais para Terapias, São Paulo,
Facon, 7 set. 2019.

418
Fios, brincadeiras
e poesia: As artes-manuais
na sala de aula da educação
básica da rede pública
por Simone Maria de Lima

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar as contribuições das Artes-Manuais
o contexto da educação básica, inseridas no currículo escolar da rede pública, bem como
apresentar as implicações referentes ao desenvolvimento psicomotor, cognitivo e afetivo
da criança. Também tem como objetivo a valorização dos trabalhos manuais no cotidia-
2
no através de atividades práticas com ‘fios moles’ , da construção de brinquedos, além
da valorização da poesia e do folclore brasileiro e suas influências indígenas, africanas e
portuguesas.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-Manuais. Currículo Escolar. Poesia. Folclore Brasileiro.


Ludicidade.

419
INTRODUÇÃO
1
O interesse pelo tema Artes-Manuais no currículo escolar da educação básica partiu das
observações, das reflexões e da prática em sala de aula como professora polivalente da
educação básica na rede pública municipal de Santo André – SP. Na unidade escolar em
que atuo em uma turma de trinta crianças, na faixa etária de oito a nove anos, os trabalhos
manuais foram inseridos como conteúdo no currículo escolar. A experiência iniciou-se
com atividades como brincadeiras com fios; construção de brinquedos; fazer de dese-
nhos; contar de histórias do folclore e da literatura de cordel. Todas as atividades foram
envolvidas por músicas tradicionais do universo infantil e popular.

DESENVOLVIMENTO
As atividades pertinentes ao conteúdo foram realizadas durante um ano e seis meses por
meio de pesquisas bibliográficas e atividades práticas mediadas por mim. As pesquisas
individuais dos alunos foram realizadas nas aulas de informática, que acontecem uma vez
por semana, com uma hora de duração. A turma foi dividida em dois grupos por causa
do espaço físico e cada criança teve 30 minutos para pesquisar e depois, em sala de aula,
partilhar suas descobertas em rodas de conversa. Os temas pesquisados foram: a origem
do povo brasileiro; a origem do folclore; os contos e os personagens do folclore brasilei-
ro; a influência indígena, africana, portuguesa e de outros povos na cultura brasileira; os
significados dos nomes dos personagens do folclore (Indígena, africano, português e de
outros povos); a história de vida da criança (Onde nasceu? Onde nasceram seus pais e
familiares?); o multiculturalismo; a leitura de poemas; as narrativas de histórias com per-
sonagens do folclore brasileiro na literatura de cordel; regiões do Brasil (estados e carac-
terísticas culturais de cada região); a pesquisa sobre as características de um personagem
do folclore brasileiro que chamou mais a atenção da criança; a ampliação do repertório
sobre autores da literatura de cordel e repentistas.

1 Artes-Manuais: produção de hífen, ligação entre essas duas palavras; a arte enquanto alma a produzir com o corpo
objetos; processo que ocorre de dentro para fora do ser, a expressão de cada um; a arte como modo de existir, onde o
querer é sempre livre, compondo trabalhos manuais enquanto arte; composição de forças entre trabalho e arte; ligação
da artesania com os processos de subjetivação do corpo; produção da verdade de cada ser consigo; alinhamento da
ética com o fazer na produção de beleza (estética); o objeto como expressão da alma. (Anotações das aulas da disciplina
“Políticas de Narratividade: Artes-Manuais e Escrita”, ministrada pela Dra. Profª Ana Lygia Vieira Schil da Veiga,
Nina Veiga, idealizadora e fundadora do curso de especialização Artes-Manuais para a Educação, 2018).

420
Nas aulas de Arte, uma a duas aulas por semana, sempre em rodas de conversa, os alunos
conversavam sobre as histórias e os personagens do folclore brasileiro e compartilhavam
os desenhos das histórias, as composições individuais em versos sobre o personagem es-
colhido. Foi realizada a exposição em sala de aula dos desenhos dos personagens e dos
poemas que foram escritos pelos alunos, pendurados em um cordão com pregadores.
2
Nos trabalhos manuais do currículo escolar, seguimos o que propõe Rudolf Steiner ,
baseado no desenvolvimento da criança, para cada ano escolar. Assim, os alunos fizeram
as seguintes atividades:

• Leitura e escuta de contos sobre tecer, fiar, contos rítmicos.

• Confecção do cantinho da Páscoa com elementos da natureza tendo a borboleta como


símbolo do renascimento por meio das fases do seu ciclo de vida.

• Ampliação do repertório dos gêneros textuais fábula, conto e poema.

• Brincadeiras e brinquedos com fios e cordões.

• Escrita cursiva e desenho com fios.

• Desenho de formas.

• Diferença entre lã de carneiro, de algodão e sintética.

• Conhecimento das lãs de carneiro suja, lavada, cardada e as cardas para as nuvens de lã.

• Brincadeiras com as nuvens de lã de carneiro.

• Escolha do novelo de lã individual.

• Feitura do novelo em dupla.

• Cordão de São Francisco.

• Cachecol de dedo.

2 Filósofo, educador, artista e esoterista. Nasceu em 1861, em Kraljevec (Áustria), e faleceu em 1925, em Dornach
(Suiça). Fundador da Antroposofia, propõe uma forma livre e responsável de pensar, de perceber a realidade e de
atuar, observando e respeitando o ser humano e a realidade na qual está inserido, e da pedagogia Waldorf (pedago-
gia que procura integrar de maneira holística o desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico dos alunos
com o objetivo de desenvolver indivíduos livres, integrados, socialmente competentes e moralmente responsáveis).
Fonte: INSTITUTO RUDOLF STEINER. Antroposofia. Disponível em:
<http://institutorudolfsteiner.org.br/antroposofia/>. Acesso em: 31 ago. 2018.

421
• Confecção de quadrados de tricô, pontos meia e tricô utilizando agulhas de tricô feitas
de hashi de bambu.

• Uso do tear de papelão.

• Confecção de brinquedos.

• Confecção de bonecos do folclore brasileiro utilizando materiais variados.

• Exposição na unidade escolar sobre as atividades realizadas.

• Vídeo com registro do processo e dos produtos confeccionados.

A participação das famílias nas atividades, por meio de oficinas e do auxílio nas pesqui-
sas realizadas pelas crianças, foi de muita importância para o estreitamento dos laços
entre a escola e as famílias.

Brincando com nuvens


A querida luz do Sol
Ilumina-me o dia.
A força espiritual da alma
Dá forças aos membros;
Em brilho de luz do Sol
Venero, ó Deus,
A força humana, que Tu
Em minha alma para mim
Tão bondoso plantaste,
Para que eu possa ser laborioso

E desejoso de aprender.
De Ti provém luz e força,
Para ti flui amor e gratidão.

3
Steiner

3 SOCIEDADE ANTROPOSÓFICA NO BRASIL. Aforismos, versos e partes de textos de Rudolf Steiner. Dis-
ponível em: <www.sab.org.br/steiner/afor_educ.htm>. Acesso em: 10 jul. 2019.

422
Numa manhã ensolarada, na sala de aula, momentos antes de irmos ao parque externo,
mostrei para as crianças a lã de carneiro já lavada. A maioria delas nunca havia visto de
perto um carneiro e muito menos a lã retirada dele. Foi um alvoroço só, já que moram em
uma área urbana rodeada por avenidas, prédios e muito comércio.

– Posso ver, professora?

– Posso tocar?

– Eu também quero!

Todas as crianças queriam tocar na lã. Assim, passei um chumaço de lã para que todas
pudessem tocá-la, sentir a textura, a maciez, o cheiro característico, as sujeirinhas impreg-
nadas e como era feita a lavagem com sabão neutro e a secagem.

4
Ao meu lado, Gabriel , sentado em sua cadeira de rodas, sem poder movimentar-se
com autonomia nem falar devido à sua limitação física e baixa visão, tocava o chumaço
de lã e sorria.

Muitas crianças ficaram curiosas e preocupadas se o carneiro não sentia dor quando ti-
ravam a lã dele. Por isso, mostrei imagens de carneiros e ovelhas, contei sobre a criação
desses animais, o período de tosquia, a utilização da lã e também o quanto significava
fonte de renda para muitas famílias. Ainda contei sobre os trabalhos manuais que podem
ser feitos com a lã e a questão da Sustentabilidade. Elas ficaram mais tranquilas ao saber
que o carneiro não sentia dor e que todo o processo de retirada de lã era feito com cuida-
do para não assustá-lo ou machucá-lo.

Depois, mostrei as rasqueadeiras, facilmente encontradas em pet shop e muitas crianças


identificaram-nas com as que tinham em casa para pentear os pelos dos cachorros. Mos-
trei também como poderíamos fazer nuvens de lã e elas ficaram maravilhadas! Cada uma
queria uma nuvem e, assim, fui mostrando para cada uma delas o processo de cardar a
lã. Mostrei ainda o fuso de madeira e como era feito o fio de lã com muitas nuvenzinhas e
depois o novelo. Todas, ao meu redor, queriam ver como se fazia.

4Nome fictício.

423
No momento de irmos para o parque externo para as crianças brincarem livremente,
em um dia de sol radiante e com poucas nuvens contrastando com o azul do céu, enten-
di que, na Terra, as nuvenzinhas de lã tornaram-se o brinquedo. E não qualquer brin-
quedo, mas a brincadeira preferida aguçando os sentidos, a criatividade, as interações
com o outro e com a natureza propiciando muitos sorrisos, momentos de alegria. As
nuvenzinhas de lã tornaram-se as ternurinhas do dia.

De volta à sala de aula, cada criança escolheu a sua lã, na cor de sua preferência, dentre
as que tínhamos disponíveis. Não era a lã de carneiro, mas era o material para a nossa
preparação para o início dos trabalhos manuais em sala de aula dentro do currículo de
Arte da educação básica na rede pública.

Em dupla, cada uma das crianças fez o seu novelo.

Brincando com cordões


Para Rudolf Steiner,“Se a criança é capaz de se entregar por inteiro ao mundo ao seu re-
dor em sua brincadeira, então em sua vida adulta será capaz de se dedicar com confiança
e força a serviço do mundo.” (FEWB, 2019, p. 14)

O brincar livre e as brincadeiras passadas de geração em geração, nossa herança cultural,


contribuem para o desenvolvimento psicomotor e neurológico responsável pelos movi-
mentos e pelo domínio corporal. Além disso, contribuem para o desenvolvimento cogni-
tivo – no qual liberdade e a entrega nas vivências trazem e ampliam os conhecimentos so-
bre si e de interpretação do mundo. E, ainda, para a afetividade – que influencia as ações
do ser humano, o lidar com as emoções nas mais variadas situações e de forma integral,
além de aguçar a imaginação, a cooperação e a socialização.

As brincadeiras com fios são diversas assim como os tipos de fios utilizados. O fio é o elo
que nos liga ao mundo, ao outro e ao sagrado!

O fio, o cordão umbilical visível e invisível, é a passagem do alimento do corpo da mãe


para o filho, visível antes do seu nascimento para o mundo e que, após o parto, é cortado
para que o corpo possa desenvolver-se fisicamente em sua singularidade. No entanto, o
cordão invisível permanecerá ligado ao fio da vida e ao sagrado em si.

424
Esse simbolismo cheio de significados sobre o fio, o cordão, carrega uma carga semânti-
ca positiva sobre a existência humana e transformadora, onde o fio possa ser tecido, dar
frutos, criar laços, desatar nós, ligar-se a inúmeros outros fios, gerar fluxos de energias
contínuas e a sensação de infinitude no ser.

Brincar com fios é brincar com a vida, às vezes, de maneira leve; às vezes, fazendo ou
desatando nós.

Algumas brincadeiras tradicionais infantis que utilizam cordões e que foram comparti-
lhadas com as crianças: pular corda (individual e coletiva); cama de gato com as mãos
(em dupla) e com o corpo todo (individual), transpondo barreiras sem tocar nos fios. Tais
brincadeiras propiciam o desenvolvimento do equilíbrio (posicionar o corpo de forma es-
tável); da lateralidade (controle dos lados do corpo, como direito e esquerdo); da coorde-
nação motora fina (uso de pequenos músculos do corpo por meio de movimentos delica-
dos como amarrar, encaixar, desenhar, entre outros) e grossa (correr, saltar, pular, entre
outros), além da criatividade e imaginação na criação de inúmeras outras brincadeiras.

Desenho de formas e o uso de cordões


“Toda linha é um eixo do mundo.
Linha reta: lei.
Linha curva: vitória da natureza livre sobre a regra.”
5
Novalis

Na natureza, encontramos linhas retas e curvas e, no desenvolvimento do traçado da


criança, os exercícios repetitivos de linhas retas e curvas nas mais variadas posições e
movimentos conduzem ao desenvolvimento da escrita, da letra de forma, ‘bastão’, à le-
tra cursiva, ‘de mão’, dando ao traçado da criança sua personalidade – sua característica
pessoal. Assim, a criança desenvolve a lateralidade, o equilíbrio, a percepção do espaço, a
expressão artística, o raciocínio lógico e a motricidade fina.

6 Fonte: LAMEIRÃO, Luiza Helena Tannuri. Do movimento ao traço e à escrita: caderno 1. 1ª edição. São Paulo:
João de Barro Editora, 2016, p. 20 apud NOVALIS, Fragmentos matemáticos sobre a linha reta e curva, citado por
KUTZLI, R. Entfaltung Schöpferischer Kräftedurchlebendiges Formenzeichnen, OratioVerlag, 1998, p. 13.

425
Linhas desenhadas no ar ou no papel, abstrações do movimento, traçadas de cima para
baixo, o fio de ligação da alma com o corpo, do céu com a Terra, o homem como parte inte-
grante de um todo revelam a importância das mãos para o trabalho necessário no mundo.

Antes do exercício, o desenho de formas, são necessários a concentração, o respirar leve,


o relaxamento dos músculos, a coluna ereta e os pés paralelos.

Na mesa, o papel na horizontal. Uma das mãos segura o papel para que se mantenha na
mesma posição durante o exercício e a outra segura o giz de cera. Observa-se as linhas
traçadas na lousa pela professora e a criança as imita com o seu traçado; primeiro com
uma cor clara, depois observa o que fez e, assim, faz esse mesmo traçado pela segunda vez
com o giz de cera mais escuro por cima da cor clara: não há certo ou errado, afinal cada
ser humano traz dentro de si na sua expressão para o exterior por meio do seu traço, sua
história, sua singularidade.

A repetição do mesmo desenho de forma se dá pelo menos três vezes por semana. A cada
exercício de repetição e imitação, ocorre o desenvolvimento da criança em relação ao tra-
çado das formas geométricas e artísticas até chegar à escrita.

Nesse percurso, durante todo o ano escolar, a criança utiliza o fio, o cordão, para também
exercitar o seu traço, de maneira lúdica e artística, expressando sua criatividade e sua
necessidade de comunicar-se com o mundo por meio da escrita.

Figura 1: Reta e curvas. Figura 3:Consoante feita com


Fonte: LIMA (2019). cordão. Fonte: LIMA (2019).

Figura 2: Vogal feita com cor- Figura 4: Estrelas feitas com


dão. Fonte: LIMA (2019). cordão.Fonte: LIMA (2019)
426
Poesia
No pensar, clareza
No sentir, cordialidade,
No querer, prudência:
Almejando-as
Posso então esperar,
Que eu corretamente
Possa encontrar-me
Nas trilhas da vida

Diante de corações humanos


No âmbito do dever.
Pois clareza provém da luz da alma,
E cordialidade contém o calor do espiritual;
Prudência,
Intensifica a força da vida.
E tudo isso, em confiança em Deus
Anseia,
Em caminhos humanos
Conduz
A passos bons e seguros na vida.
7
Steiner

A poesia está intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento do ser humano e é na in-


fância – por meio da imitação – que a criança vai desenvolvendo suas habilidades físicas
e anímicas. Assim é também, segundo Aristóteles (in: Poética, capítulos IV e V, século
IV a.C), que surge a poesia, por meio do instinto da imitação. O amor e a admiração da
criança por um adulto irão influenciar suas ações no mundo, pois ela imitará os gestos
deste adulto e assim irá compreender o mundo ao seu redor.

7 SOCIEDADE ANTROPOSÓFICA NO BRASIL. Aforismos, versos e partes de textos de Rudolf Steiner. Dis-
ponível em: <www.sab.org.br/steiner/afor-todos.htm> Acesso em: 10 jul. 2019.

427
A poesia, considerada como expressão dos sentimentos e das emoções do poeta sobre algo
que queira dizer seu eu lírico, por meio de versos, rimas, ritmos e regras características des-
se gênero textual, traz à tona, com as palavras, a arte de ser de cada singularidade humana.

A seguir, registro de imagens do processo de construção de poemas feitos por crianças,


em versos livres e limeriques (poemas com tom de humor, composto por cinco versos,
no qual o primeiro, o segundo e o quinto versos rimam entre si; o terceiro e o quarto
versos, mais curtos, rimam entre si). Cada uma escolheu um personagem do folclore
brasileiro, pesquisou sobre ele, desenhou e compôs seus primeiros versos livres, suas
primeiras experiências no fazer poemas.

Figura 5: Quadro de Imagens I – Desenhos dos personagens do folclore


brasileiro e poemas feitos por crianças. Fonte: LIMA (2019).

Figura 6: Tricô de Figura 7: Aprendendo Figura 8: Aprendendo Figura 9: Confecção da boneca


dedo – Confeccionan- a fazer tricô duas agulhas. a usar o tear de papelão. Abayomi (iorubá = encontro
do cachecol. Fonte: Fonte: LIMA (2018). Fonte: LIMA (2018). precioso) feita com tiras de
Lima (2018) pano e nós; criação de Lena
Martins 7, artesã.
Fonte: LIMA (2019).

7 ARTE DO BRASIL. Sudeste - Lena Martins. Disponível em: <www.artedobrasil.com.br/valdilena_serra.html>


Acesso em: 10 jul. 2019.

428
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Artes-Manuais nas brincadeiras remetem à expressão mais pura do ser humano: o
amor. Por isso, é provável que o fazer algo, o confeccionar um objeto com amor, orga-
nize as emoções, os pensamentos e expanda a afetividade nas interações do ser vivente
com outros seres numa corrente de fluxos de energias curativas e terapêuticas (energias
que ativam as forças internas do ser humano).

As Artes-Manuais em sua origem, em seu sentido antropológico, trazem à tona significados


além do material, do físico, por meio de vivências e experiências singulares que permeiam os
sentidos do ser humano na percepção do mundo e nos processos de criação que é inerente à
sua sobrevivência. Por isso, sua necessidade de integralidade com o todo e, ao mesmo tem-
po, como parte da natureza, de algo maior, superior, que pode ser sentido e não explicado.

A inserção dos trabalhos manuais do currículo da Pedagogia Waldorf, no contexto da


educação básica da rede pública, demonstrou mudanças significativas nas práticas em
sala de aula, propiciando momentos de criação, apreciação e valorização da cultura bra-
sileira e de outras culturas. Além disso, validou a importância do brincar e do brinquedo,
dos aspectos afetivos, da empatia e da interação com o outro no desenvolvimento dos
trabalhos manuais. Ainda, validou a importância no despertar de uma consciência crítica
do ser singular e atuante no mundo e na poesia de cada gesto, de cada momento, consti-
tuindo um campo fértil para as pesquisas na busca de novos conhecimentos.

REFERÊNCIAS
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«http://institutorudolfsteiner.org.br/antroposofia/». Acesso em: 31 ago. 2018.
LAMEIRÃO, Luiza Helena Tannuri. Do movimento ao traço e à escrita: caderno1. 1ª
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________ apud NOVALIS, Fragmentos matemáticos sobre a linha reta e curva, cita-
do por KUTZLI, R. Entfaltung Schöpferischer Kräftedurchlebendiges Formenzeich-
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idealizadora e fundadora do curso de especialização em Artes-Manuais para a Educação, 2018.

SOCIEDADE ANTROPOSÓFICA NO BRASIL. Aforismos, versos e partes de


textos de Rudolf Steiner. Tradução VWS. GA 40, p. 244, 1919. Disponível em:
<www.sab.org.br/steiner/afor_educ.htm>. Acesso em: 10 jul. 2019.

______. Aforismos, versos e partes de textos de Rudolf Steiner. Tradução VWS. GA 40, p.
135, 1919. Disponível em: <www.sab.org.br/steiner/afor-todos.htm>. Acesso em: 10 jul. 2019.

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Acesso em: 31 ago. 2018.
Línguas e jogos:
Confecção, adaptação
e resultados em sala de aula
por Emerson Aparecido dos Santos Bezerra

RESUMO
O presente trabalho visa a discutir como a utilização de jogos nas aulas de línguas, tan-
to portuguesa quanto inglesa, influencia no processo de ensino e aprendizagem de estu-
dantes da educação básica e como o professor pode melhorar sua prática docente con-
feccionando e/ou adaptando jogos para as suas aulas. Por meio da leitura dos trabalhos
produzidos por Huizinga (1938), Piaget (1971) e Vygostky (1978), na área de Teoria da
Aprendizagem, e levando em consideração os objetivos e objetos de estudos presentes
nos documentos que norteiam a educação básica, principalmente a Base Nacional Co-
mum Curricular (BNCC), apontar-se-á se há ou não evolução na apreensão do conteúdo
ministrado por parte do corpo discente a fim de propor estratégias e dicas de como elabo-
rar os jogos manuais com materiais de fácil acesso.

PALAVRAS-CHAVE: Jogos manuais. Ensino de línguas. Ensino-aprendizagem.

432
INTRODUÇÃO
A sala de aula é um ambiente desafiador, pois a probabilidade de acontecer coisas inespe-
radas e que fujam ao controle do docente é muito alta. No cenário atual, há salas de aula
dos mais diversos formatos – carteiras em formato de círculo, para que todos os alunos en-
treolhem-se ou em formato de “u”, para que se entreolhem, mas tenham também um ponto
central a focar; há salas nas quais os objetos estão à distância de um braço exercitando a
autonomia do aluno; há salas tradicionais nas quais as carteiras estão enfileiradas entre ou-
tras organizações. Além disso, há instituições com as mais variadas abordagens e práticas
de ensino – construtivismo, interacionismo, método Montessori, construcionismo etc.

Dessa forma, urge a vontade, nos educadores, de exercitar o método científico, isto é,
proporcionar o encadeamento de habilidades como observar, formular hipótese, testar
e avaliar as novas metodologias e/ou novidades no cenário educacional para aprimorar a
prática docente e potencializar a aprendizagem dos alunos.

Recentemente, houve a homologação e difusão de um novo marco no cenário legal da


educação: a Base Nacional Comum Curricular, a BNCC. O documento, que possui
caráter obrigatório, determina as competências e as habilidades que os estudantes da
educação básica devem desenvolver durante a etapa escolar. Nele, existe a preocupação
com o desenvolvimento da educação integral:

A sociedade contemporânea impõe um olhar inovador e incluso a ques-


tões centrais do processo educativo: o que aprender, para que aprender,
como ensinar, como promover redes de aprendizagem colaborativa e
como avaliar o aprendizado. (BRASIL, 2018, p. 14).

Para que a educação integral aconteça, é proposto o trabalho de algumas competências


ditas gerais que são transversais e permeiam todas as disciplinas. A base define compe-
tência como:

[...] a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habi-


lidades (práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para
resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da ci-
dadania e do mundo do trabalho. (BRASIL, 2018, p. 8).

433
Assim, as competências auxiliam no desenvolvimento pleno do estudante, nas dimensões
intelectual, física, emocional, social e cultural, e pretendem fazer com que se ampliem as
possibilidades de ação e de transformação na sociedade de forma mais ética, reflexiva
e justa. Para atingir esse propósito, foram fixadas dez competências gerais, de acordo
com a Anna Penido, do Movimento pela Base (2019): 1. Conhecimento; 2. Pensamento
científico, crítico e criativo; 3. Repertório cultural; 4. Comunicação; 5. Cultura digital; 6.
Trabalho e projeto de vida. 7. Argumentação; 8. Autoconhecimento e autocuidado; 9.
Empatia e cooperação e 10. Responsabilidade e cidadania.

Os jogos, quer sejam manuais quer sejam digitais, são úteis para despertar algumas des-
sas competências gerais atrelando-as aos objetos de estudo e às habilidades de cada com-
ponente curricular.

2 CORRENTES TEÓRICAS
Para compreender o impacto positivo do ensino por intermédio dos jogos, é importante
apontar quais teóricos debruçaram-se sobre a utilização deles na educação. Johan Hui-
zinga, em seu livro Homo Ludens (1938), atribui ao jogo um caráter essencial ao desenvol-
vimento da sociedade, pois possui uma realidade superior com regras lógicas, pautando-
se na cooperação, na competição e no cumprimento de regras, uma vez que:

as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início,


inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da lingua-
gem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de
poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite dis-
tinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com
essa designação elevá-las ao domínio do espírito. [...] Por detrás de toda
expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo de
palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria outro mundo, um
mundo poético, ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 1938, p. 7).

Sendo assim, é importante compreender que os jogos criam atmosferas próprias de inte-
ração em que a atividade e as regras determinam o equilíbrio da prática. Ao encontro des-
sa linha pensamento, é possível citar Lev Vygotsky e sua teoria do Sociointeracionismo.
Ao interagir com o meio, segundo o autor, a criança desenvolve-se no “faz de conta”, isto
é, compreende a distinção entre a realidade e a fantasia.

434
Assim, por exemplo, ao brincar de bombeiro, de médico ou de professor, estabelece-se
uma realidade à parte em que a criança segue as regras do convívio em sociedade dos
adultos. Ao se fantasiar, ela toma posse da função simbólica e compreende que regras
devem ser seguidas para “ganhar”, construindo o nível básico da moralidade. Vygostsky
(1984, p. 69) afirma que “A criança sempre se comporta além do comportamento habitual
de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior
do que é na realidade.”

Atrelado a isso, Jean Piaget, com o Construtivismo, estabelece que a evolução e o de-
senvolvimento da criança acontecem por estágios. Para avançar ao próximo estágio é
importante desenvolver por completo o anterior para que não haja déficit na formação
intelectual da criança. Miranda, apropriando-se da teoria evolutiva dos estágios, propôs
um quadro de utilização de jogos para cada etapa:

Imagem 1: Diagrama com as diferentes etapas de evolução


de atividades de jogo na infância (Miranda, 2013, p.25)

No diagrama, é possível identificar quatro estágios e, para cada estágio, uma identificação
de jogo. Para o estágio sensório-motor, indicam-se jogos de percepção do ambiente; já
para o intuitivo-simbólico, os jogos simbólicos, pois apresentam por meio de metáforas,
comparações e relações o funcionamento das atividades sociais e desenvolvem a capaci-
dade imaginativa; nos dois últimos estágios, operatório-concreto e operações formais, são
indicados os jogos de regras, porque estimulam tanto a competitividade e a cooperação.

435
Analisando essas correntes teóricas, vê-se que a utilização de atividades lúdicas é indicada
em todos os estágios do desenvolvimento desde que respeitando os limites e as necessida-
des dos participantes. Destaca-se que a simbologia empregada auxiliará na formação do
caráter moral da criança, estimulando o cumprimento de regras e o trabalho em equipe.

Nesse contexto, vê-se que a sua utilização dialoga com as competências gerais propostas
na BNCC. Ao trabalhar com um dominó em sala de aula, por exemplo, é possível exer-
citar, principalmente, o conhecimento, pois é importante saber o conteúdo e as regras do
jogo. Também o pensamento científico, crítico e criativo, ao analisar as jogadas e possí-
veis estratégias, além da argumentação, já que pode ser necessário refletir e defender os
pontos de vista à medida que as rodadas avançam. Por fim, a empatia e cooperação, uma
vez que será uma atividade engajadora com os estudantes.

Se o dominó hipotético ocorrer mediante um computador ou outro meio eletrônico, po-


de-se atrelar também o desenvolvimento da competência de cultura digital.

2.1 ESTUDO DE CASO


O potencial educativo dos jogos é algo verificável na prática docente cotidiana. Os do-
centes que fazem uso desse recurso podem notar certa evolução no processo de ensino
e aprendizagem dos estudantes, visto que é uma prática de interesse não exclusiva das
crianças, mas de muitos adultos também, pois em sua aplicação em sala de aula, segundo
Bezerra (2019, p. 28), “o jogo é ressignificado e deixa de ser objeto de distração para tor-
nar-se elemento de consolidação de um conteúdo prévio.”

Para exemplificar o impacto positivo do uso de jogos, realizou-se uma breve pesquisa
com uma turma de Ensino Médio em um colégio em São Paulo, com vinte alunos pre-
sentes. Foram verificadas as notas dos alunos em atividades antes e depois da utilização
de Jogo de Dominó e Jogo da Memória para a explicação do conteúdo de formas do
particípio passado, no componente de Língua Inglesa.

O conteúdo foi ministrado, em um primeiro momento, de forma expositiva-dialogada


com a utilização de recursos tradicionais de sala de aula: giz, lousa, material apostilado
e caderno. Após a explicação, foi proposta a resolução de exercícios sobre o conteúdo e
70% da turma não obteve nota 7,0, que é a média utilizada pela instituição de ensino para
aprovação. Os resultados estão dispostos no gráfico a seguir:
Imagem 2: Situação antes
da utilização de jogos

Após o feedback da atividade, foi proposta outra metodologia para o ensino do mesmo
conteúdo: uma nova exposição dos conteúdos no quadro e a divisão dos alunos em gru-
pos menores e, para cada grupo, foi entregue um jogo podendo variar entre dominó ou
memória. Como são jogos canônicos, isto é, jogos presentes na memória afetiva dos alu-
nos, não houve a necessidade de ampla explanação sobre o seu funcionamento e suas
regras. Fez-se necessário apenas a explicação de como o conteúdo foi adaptado para o
jogo e, brevemente, sua jogabilidade.

O jogo foi manualmente criado utilizando papelão, tesouras e canetões. Logo, apresen-
tou boa relação custo-benefício, uma vez que os resultados sofreram alterações como
mostra o gráfico a seguir:

Imagem 3: Situação depois


da utilização de jogos

437
Os dados resultantes dessa observação mostraram que, ao fazer uso de recursos diversos,
inclusive dos jogos, o desempenho dos estudantes melhora consideravelmente, uma vez
que se aplicam diferentes competências no processo de aquisição do conhecimento. Jo-
gando, eles revisam os objetos de estudo ao passo que exercitam a lógica, o pensamento
crítico, a criatividade e a empatia.

2.2 CONFECÇÃO E ADAPTAÇÃO


Embora, atualmente, haja grande variedade no mercado de jogos educativos, muitas ve-
zes, por inúmeras questões, os profissionais não dispõem desses recursos, seja por razões
econômicas, logísticas ou pessoais. Nessa seção, serão exploradas algumas opções de
adaptação para jogos canônicos e como a sua confecção manual pode ser realizada além
do diálogo direto entre eles e as competências gerais presentes na Base.

Cabe salientar que os jogos foram adaptações pessoais relacionadas à prática docente do
autor do artigo, como professor de língua inglesa, em São Paulo – SP. Entretanto, a male-
abilidade dos jogos garante a adaptabilidade para diversos campos do saber e conteúdos.

JOGO DE DOMINÓ
Para Bezerra (2019, p. 21), “o dominó é um dos [jogos] mais antigos do mundo e consiste
em pôr lado a lado peças semelhantes [...] o jogo estimula o pensamento estratégico e
pode ser jogado em grupos, reforçando o trabalho em equipe.” Reforçam-se, dessa for-
ma, competências como pensamento crítico, empatia e cooperação. Para a confecção do
jogo, seguem-se dois passos principais: cortar o papelão em formato de peças de dominó
e escrever o conteúdo adaptado.

JOGO DA MEMÓRIA
O objetivo é identificar peças semelhantes, mediante a memorização da posição das peças
quando estão viradas para baixo. Exercitam-se o conhecimento, o pensamento crítico e a
comunicação. O método de confecção desse jogo segue os mesmos passos do de dominó.

JOGO DE UNO
O Uno é um jogo de cartas que consiste em alinhar elementos com cores e/ou caracterís-
ticas semelhantes. É importante para se trabalhar a argumentação, o pensamento crítico

438
e a competitividade, o trabalho e projeto de vida além da cooperação. Para adaptá-lo,
escolhe-se o material que pode ser papelão ou algo mais maleável que, por sua vez, deve
ser cortado em formato das peças e escrito o conteúdo adaptado em cores diversas, pois
o jogo faz uso de recursos visuais.

BINGO
As cartelas do bingo devem ser preenchidas à medida que as peças são sorteadas. O jo-
gador é considerado vencedor após completar a cartela ou, em algumas versões, após
completar quinas. Ele auxilia na aquisição do conhecimento, do repertório cultural, na
comunicação e na cooperação. Para sua confecção, é necessário dispor de papeis, para
que funcionem como cartelas, e bolas de isopor, tampas de garrafa ou até mesmo papel
dobrado em que se escrevam as palavras para simbolizar as peças a serem sorteadas.

LEGO
Com uma infinidade de possibilidades para construção, o lego, ou monta-monta, como é
popularmente conhecido, é um ótimo recurso para a formulação de palavras e frases. Ge-
ralmente, o brinquedo já existe. Logo, para a adaptação, são necessários papeis cortados
com o conteúdo escrito para que sejam colados sobre eles. De todas as possibilidades, é
aquele que existe mais trabalho manual por parte dos alunos, porque são eles que movi-
mentam as peças a fim de construir as palavras e/ou frases.

TABULEIRO
Para o docente, é o que exige mais aplicação, porque é necessário pensar em todos os
aspectos: tabuleiro, peças, fichas e regras. Por se tratar de um jogo de regra, é importante
pensar em diversas possibilidades de jogadas possíveis e suas implicações. Também é
premente usar excessivamente a relação se/então, ou seja, se determinada jogada aconte-
cer, então, determinada reação será encadeada. Esse tipo de jogo é válido para trabalhar
diversas competências, tais como conhecimento, pensamento crítico, raciocínio lógico,
empatia, competitividade, cooperação, responsabilidade e cidadania.

Há uma sequência de etapas para a confecção para o tabuleiro: defina a superfície, que pode
ser de papelão, madeira, MDF entre outras. É importante cortá-la em retângulo grande e
desenhar o trajeto a ser percorrido. Lembre-se de adicionar bônus e/ou penalidades. Para
as peças, podem ser usados objetos recicláveis como tampas de garrafa, peças de jogos anti-

439
gos, bonecos, pinos etc. O número de peças varia de acordo com o número de participantes.
As regras e fichas podem ser feitas cortando e escrevendo em folhas de sulfite.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre todos os desafios enfrentados em sala, a utilização de jogos como recurso didáti-
co-educativo não deve ser mais um. Esse tipo de atividade pressupõe uma preparação à
parte do docente para que avalie, previamente, o objetivo do jogo e seu potencial peda-
gógico para que não seja apenas fonte de diversão, mas sim de conhecimento. A grande
preocupação é ressignificar o jogo a ponto de fazer com que o diversão seja consequência
da atividade e não a sua finalidade.

O foco em sala de aula, por muitos anos, esteve centrado no professor e, recentemente,
centrou-se no aluno a fim de lhe tornar o aprendizado significativo. Com a Base Nacio-
nal, além da noção de aprendizagem significativa, atrelam-se as competências gerais para
que se haja uma educação integral, isto é, uma educação centrada no desenvolvimento
de diversas competências relacionadas não só aos componentes curriculares, mas tam-
bém no convívio em sociedade, na preocupação e valorização do indivíduo como cidadão
cujas ações têm implicaturas em um grupo e, por fim, no exercício do pensamento crítico
e criativo. Ao fim da etapa escolar, espera-se o desenvolvimento de todas essas competên-
cias no estudante e cabe ao professor despertá-las.

Para melhorar a atuação e interação dos alunos, é importante lançar mão de métodos,
recursos e atividades pedagógicas que vão além da aula tradicional. Os jogos funcionam
como elemento de interação entre os estudantes, pois auxiliam na realização, revisão e
apreensão do conteúdo ministrado e na relação entre os pares. Por exemplo, ao propor
jogos educativos, são trabalhadas competências como empatia, cooperação e competiti-
vidade, uma vez que é necessário seguir as regras para ganhar o jogo. Também exercita-
se o conhecimento aliado à comunicação, ao conhecimento, à cultura digital, à respon-
sabilidade e ao pensamento crítico, pois é importante analisar a situação e determinar
estratégias a fim de potencializar a jogada.

As chamadas competências gerais, que devem ser trabalhadas ao longo da educação bá-
sica, podem e devem ser exercitadas por meio dos jogos, pois, por intermédio deles, o

440
conteúdo em sala de aula é ministrado e altera-se a rotina dos estudantes, tirando-os da
zona de conforto e engajando-os em atividades lúdicas que lhes ensinam diversos tópicos
concomitantemente à prática. Isso faz com que a diversão deixe de ser o propósito e passe
a ser um fator adjacente, ou seja, decorrente do cumprimento das regras, da interação
entre os alunos e da internalização das competências.

É importante que os estudos acerca da utilização de jogos em sala de aula da educação


básica proliferem-se, uma vez que é um recurso pedagógico rico e de fácil adaptabilidade
e aplicabilidade. Em contextos atuais, a discussão pode ser estendida aos jogos digitais,
incluindo a tecnologia a favor da educação ou focada em jogos manuais, garantindo a
perpetuação e o resgate da memória afetiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEZERRA, Emerson. BNCC de língua portuguesa: a adaptação e confecção de jogos para
sala de aula. In: ROSSI, João Carlos. Reflexões acerca do ensino de língua portuguesa em
formação continuada: um viés colaborativo. Campo Grande: Editora Inovar, 2019, p. 19-31.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Co-


mum Curricular, DF, 2018. Disponível em: <https://basenacionalcomumcurricular.
mec.gov.br> Acesso em: 15 jan. 2020.

HUIZINGA, Johan. Homoludens. 8ª ed.São Paulo: Perspectiva. 2014.

MIRANDA, Simão de. Oficina de ludicidade na escola. Campinas: Papireis, 2013.

MOVIMENTO PELA BASE NACIONAL COMUM. As Competências Gerais da


BNCC. 2018. (13m19s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-wtxWf-
CI6gk> Acesso em 10. jan. 2020.

PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo, sonho, imagem e re-
presentação. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

VYGOTSKY, Lev. A formação social na mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

441
Manualidades recicladoras
em “árvores dos desejos”:
Atuações e observações em workshops
colaborativos multimídia no Brasil,
na Namíbia e na Índia
por Rosana Bernardo

RESUMO
O artigo apresenta experiências vividas no campo das Artes-Manuais em um conjunto
de workshops de produções artísticas, colaborativas e multidisciplinares realizados no
Brasil, na Namíbia e na Índia, entre 2018 e 2019.

PALAVRAS-CHAVE: Artes-Manuais. Manualidades Multiculturais. Manualidades


Recicladoras.

INTRODUÇÃO
Por toda minha vida, sempre tive vontade de conhecer o mundo todo. Ficava imaginan-
do como seriam as expressões das crianças, as linguagens, a culinária, as manualidades.
Meus olhos queriam se encantar com a natureza exuberante, respirar um ar diferente,
degustar um mundo novo com todos os sentidos. Experimentar o inexplicável.

442
Ampliar os sentidos e fazeres manuais, ao mesmo tempo reconhecer que as impressões
de um sentir estavam dentro de mim, fez com que, desde muito nova, tivesse contato
com trabalhos manuais oriundos de diversas partes do Brasil e do mundo. Sempre fui
curiosa para conhecer as mãos que construíram peças e obras feitas manualmente por
onde fosse e identificar quais eram as destrezas, os sentimentos táteis e as formas ances-
trais pelas quais os indivíduos aprendem e ensinam.

Isso porque as artes-manuais promovem vivências profundas ao serem incorporadas pelo


âmbito corporal e anímico e os órgãos do sentido envolvidos nessas atividades são as janelas
pelas quais o ser humano se relaciona com o mundo externo. Como afirma Steiner (2016, p.
57), “Existem muitos fios de ligação do fazer manual com a vida. Fios nos quais se vivenciam
nesse fazer manual consciente, mãos para trabalhar e com elas fazer vários tipos de coisas.”

Como um caminho de investigação e conhecimento, o braço humano, aliado aos senti-


dos, vai além de ser apenas uma parte do corpo. Pode ser um instrumento para expressar
a vida interior de várias formas; uma delas é o gesto individual como um artífice que ex-
pressa no mundo externo o interior da sua alma. Alves (2002, p. 35) destaca que “embora
isso esteja esquecido, o caminho para a inteligência passa pelas mãos. Pensamos para
ajudar as mãos. Das mãos nascem as perguntas. Da cabeça nascem as respostas. Se a
mão não pergunta, a cabeça não responde.”

Atuar no workshop internacional multidisciplinar “Árvore dos Desejos”, desenvolvido


e dirigido pelo midiartista Paulo Cesar Teles, professor do Instituto de Artes da Uni-
versidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tem sido uma oportunidade ímpar
de vivenciar experiências pedagógicas e (trans)culturais com docentes e estudantes de
outras nacionalidades, continentes e culturas, além de ampliar minha visão acerca das
manualidades e da própria arte.

No presente artigo, trago um relato sincero deste conjunto de experiências artístico


-manuais que vivenciei nos dois últimos anos, acompanhado por breves descritivos das
atividades realizadas e das experiências manuais observadas, ensinadas e assimiladas
em cada localidade visitada.

443
CARACTERÍSTICAS, OBJETIVOS E OCORRÊNCIAS DO PROJETO
Trata-se de um projeto internacional de arte tecnológica cuja proposta é fazer com que
o digital e o tradicional convivam e possibilitem experiências ecológicas e estéticas trans-
formadoras. Criado originalmente pelos Professores Doutores Paulo Cesar Teles (Uni-
camp) e Mousumi De (Univ. de Indiana / EUA) para estudantes e professores, cada
oficina desenvolve a produção de uma instalação interativa denominada “A Árvore dos
Desejos” — uma interpretação interativa e multimídia sobre uma árvore que tem o poder
de satisfazer os desejos a ela associados.

As “árvores” são construídas a partir de lixo reciclado que é selecionado pelos participan-
tes. Os desejos são expressos por crianças, com idade aproximada entre 9 e 14 anos, em
textos, desenhos e discursos. Eles são digitalizados e programados para serem dispara-
dos e projetados por meio de sensores (armazenados na escultura), que captam e “respon-
dem” aos gestos e movimentos do público-alvo através de um ambiente mapeado com
sensores ultrassônicos fornecidos pelo autor do workshop.

As esculturas são, portanto, uma cocriação entre oficineiros e participantes que, depois
das oficinas, ficam expostas nos locais de sua realização — escolas; aldeias etc. — e sem-
pre serão lembradas já que ressignificam objetos e embalagens que faziam parte do lixo
local. Além de seus locais de produção e realização, algumas das instalações produzidas
já foram exibidas em museus, galerias de arte, centros culturais e congressos nacionais e
internacionais. As oficinas são realizadas desde 2012 e, até 2019, percorreram escolas de
Ensino Fundamental e centros culturais de comunidades de dez países.

A oficina é inspirada no folclore japonês da Tanabata (Árvore dos Desejos). Feita origi-
nalmente com bambus, todos os anos, entre junho e julho, as pessoas escrevem e pendu-
ram seus desejos a fim de serem realizados. Nesta “releitura”, constrói-se uma escultura
de uma árvore a partir de lixo reciclável que, antes de ser reaproveitado, é apresentado
aos participantes como “desejos já realizados” com o intuito de fazê-los refletir acerca de
consumismo e da produção de lixo.

444
Figura 1 - Fotomontagem
de algumas das instalações
“Árvore dos Desejos”.

Dessa forma, o projeto, como um todo, busca realizar diálogos artísticos colaborativos,
multiculturais e multidisciplinares, misturando tecnologia e manualidades, bem como
promover uma conscientização ecológica e anticonsumista com o reuso artístico de obje-
tos e embalagens descartados.

Gráfico 1:
País Manualidades vivenciadas Ano Histórico das
oficinas "Árvore
Escola SESI Santos Dumont, Campinas 2012 dos Desejos".

Brasil EMEI Termosina Siqueira, Chapada dos Guimarães 2015

Aldeia Milagrosa Pataxó Hãhãhãe 2018

Portugal Agrupamento Escolar 2/3 João Meira, Guimarães 2012

Alemanha Tulla Realschüle, Kehl 2014

Grécia Escola Secundária de Oreokastro 2014

Nova Zelândia Somerville Intermediate School, Aukland 2015

Nigéria Kingdom Kids School / Excellent School, Osogbo 2015

Nepal Annapurna Secondary School, Sikles 2017

Namíbia !Nara Primary School, Walvis Bay 2018

Vidyavanam School, Annaikatti 2019


Indía
Tatwwa School, Koshi (Cochim) 2019
Além de aprimorar a cultura de alfabetização digital dos professores participantes, este
workshop também aborda, discute, aplica e integra diferentes faixas de tecnologia, em
um amplo processo de arte-educação, a diferentes materiais e meios em seu rol de ativi-
dades a saber:

• Coleta e seleção de materiais recicláveis;

• Construção manual da escultura;

• Desenho dos desejos;

• Entrevistas em vídeo (desejos);

• Produção musical;

• Edição e animação dos desejos;

• Mapeamento sensorial de aproximação;

• Projeção das imagens e sons de acordo com o movimento das pessoas


ao redor da escultura.

PAPEL DESEMPENHADO NO CAMPO DAS MANUALIDADES


Ensinar com vida e arte é como trilhar um caminho interior, alinhavando os vários fios
de conhecimento para melhor compreender o ser humano. Exige tato, delicadeza e res-
peito. Tomei contato com o projeto em 2015 e, a partir de 2016, atuei na produção das
oficinas e das exposições. A partir de 2018, além da produção, passei a atuar também
na coordenação das manualidades e participei de oficinas e exibições que ocorreram no
Brasil, na Namíbia e na Índia.

Durante as oficinas, as informações sobre como serão desenvolvidas e quais professores


estarão presentes chegam através do contato prévio do autor e executor deste projeto
com a instituição responsável. Porém, como se desenrola é uma surpresa em cada lugar,
com cada criança e com diferentes materiais, possibilidades e tempo. É quando a cultura
local, a música, as manualidades, os elementos da natureza se revelam para todos os en-
volvidos. E, na apresentação final, traz como magia o encontro com o audiovisual, com o
fazer manual, com a transformação de um material em arte viva.

446
Manualidades vivenciadas Manualidades aplicadas

• Inserção de elementos da • Confecção de bonecas


Brasil natureza, como argila e madeira abayomi a partir de sobras
junto com o material reciclado. de tecidos.
• Reuso ornamental de vestimentas • Tranças de fios.
ancestrais e instrumentos
de usos rituais.
• Ressignificação da “sobra
da sobra”.

Namíbia • Produção quase toda na


• Pontos básicos de tricô.
base de recorte e colagem.
• Trança em corda e barbante.
• Uso de garrafas pet na base
(com areia dentro) e na estrutura.

Índia • Desenhos e pinturas • Recortes e colagens de


a base de cola e areia. materiais plásticos e papel.
(Tamil Adul)
• Manuseio com fibras de coco.

Índia • Esculturas em jornal • Esculturas em jornal


(galhos e pedras). (galhos e pedras).
(Kerala)
• Confecção de ramos florais • Confecção de ramos florais
com talos de coqueiro e papel. com talos de coqueiro e papel.
• Pintura em jornal e papel • Pintura em jornal e papel
com tinta a óleo. com tinta a óleo.

Gráfico 2: Manualidades desenvolvidas, observadas e praticadas nas oficinas em que participei.

Aldeia Milagrosa Pataxó Hãhãhãe


O trabalho realizado na Aldeia Milagrosa, junto à comunidade indígena Pataxó
Hãhãhãe, em Pau Brasil (BA), ocorreu por meio de um edital internacional de resi-
dências artísticas “Arte Eletrônica Indígena” (AEI), promovido pela ONG Tidewá. O
conjunto de todas as obras, exibidos no Brasil, Inglaterra e Alemanha, foi premiado,
em 2019, com Menção Honrosa da Comissão Europeia em homenagem à Inovação,
Indústria e Sociedade Estimulada pelas Artes.

447
Nela, a árvore escolhida para ser representada na escultura foi a jabuticabeira. Foram
pensados e definidos em conjunto quais materiais seriam reciclados e usados para a
sua construção. No entanto, além de restos de produtos industrializados como garra-
fas pet, barbantes, tecidos, canos de plástico, dentre outros, os participantes também
optaram por incluir elementos da natureza como argila e um pedaço de tronco. Alguns
tecidos (sobras da construção das jabuticabas) foram recortados em tiras coloridas e
pretas e se transformaram em bonecas abayomi.

Não havia horário fixo para início e fim das atividades. Pessoas chegavam e saíam a toda
hora. Mesmo assim havia trabalho, envolvimento e participação para todos. Debaixo de
um quiosque, trabalhamos cantando e as crianças maiores traziam os irmãos menores
para cuidar enquanto suas mães estavam no mutirão da farinheira.

Em uma aldeia indígena, as crianças brincam de fazer colar com diversas sementes
potencializando, desde cedo, os seus talentos naturais. É evidente também o contato
diário deles com um brincar na terra. Na infância, a brincadeira de fazer colar desen-
volve a arte de tecer os cocares, colares, pulseiras, tornozeleiras, saias com ráfia, linhas,
barbantes e fios diversos. Enfeitam os instrumentos, adornam as cabeças, honram seus
cocares, fazem o próprio maracá, plantam e moem a própria farinha. As mulheres la-
vam as roupas no rio e as batem nas pedras.

Dessa forma, os menores fizeram as bolinhas de argila, enquanto os maiores usaram as


tesouras para cortar garrafas pet cor verde para as folhas da jabuticabeira. Trabalho de-
talhado, com folhas e frutos pequenos, redondos. Ao recortar as folhas na garrafa pet,
restava um recorte das mesmas que, ao olhar de ponta cabeça, virava uma coroa de rainha
e de rei. Eles fizeram várias e se enfeitaram... Quanta riqueza!

Algumas mães foram convidadas para encapar com tecido na cor preta e lilás as jabutica-
bas de argila feitas pelas crianças. Mulheres e crianças na construção artística da jabutica-
beira. Conhecemos a ceramista Dona Arlinda: planta mandioca, faz farinha e beiju para
o filho vender na feira. Ela moldou um passarinho com a argila e o colocou na “Árvore”.
A instalação final foi exibida no quiosque central da aldeia para toda a comunidade. No
dia seguinte, foi exibida na Escola Indígena Caramuru-Paraguaçu e, duas semanas de-
pois, no Museu de Arte Moderna de Salvador juntamente com as outras obras produzi-
das nas demais oficinas do Festival.

448
Figuras 2 e 3: Oficina em
curso (esq.) e a escultura
pronta (dir.). Aldeia
Milagrosa (BA) - 2018.

!Nara Primary School, Walvis Bay


A oficina de Walvis Bay, na Namíbia, se deu por meio de convite da escola, agenciada
pelo Ministério da Educação daquele país e membros da cúpula diretora do “InSEA”
(International Society for Education trought Art). Nessa experiência, foi perceptível a in-
tensidade das cores nas vestimentas e nos ambientes. As esculturas, feitas em cerâmica,
foram exibidas em uma loja de jardinagem e confeccionadas por mãos extremamente ha-
bilidosas. Aliás, os animais eram feitos em madeira, detalhados, expressivos e fortes.

As manualidades praticadas na confecção da árvore não exigiram nenhuma complexi-


dade maior nas ações individuais, mas sim na organização do coletivo por conta deste
trabalho em grupo. O tronco foi construído com uma ripa de madeira e garrafas pet em-
baladas em papel craft. Algumas das garrafas, as de baixo, foram preenchidas com areia
para compor a base firme da escultura. Caixas de papelão se transformaram em pequenos
recortes em formato trapézio para representar as palmas cortadas ou caídas.

No lixo coletado na escola, havia muitos saquinhos de salgadinhos coloridos por fora
e prateados por dentro. Estes foram recortados em tiras finas e compuseram as folhas
da palmeira que foram coladas nos talos que, por sua vez, foram feitos com mangueira
de borracha e encapados com jornal. Durante todo o tempo, os participantes animados
trabalharam cantando.

Conheci a professora de artes daquela escola e, com ela, as crianças trabalham com bar-
bantes, algumas lãs, mas sem ministrar um currículo de artes manuais com tricô, crochê

449
e bordados. Algumas professoras trazem o fazer manual, mas como hobby. Durante um
intervalo, uma aluna, com duas agulhas de tricô, solicitou minha ajuda e conseguiu apren-
der o ponto básico. Como não havia agulhas para todos, ensinei o tricô de dedos para um
grupo de alunos. Aprenderam e se encantaram.

No Congresso internacional de Educação pela Arte (InSEA) - ocorrido também em


Walvis Bay na semana seguinte à da oficina (onde a instalação produzida também ficou
exposta), os cordões dos crachás dos participantes foram confeccionados por um grupo
de adultos. Também desconheciam esta técnica dos trabalhos manuais que, nas escolas
waldorf, as crianças aprendem no primeiro ano do Ensino Fundamental nas aulas de
Trabalhos Manuais.

Figuras 4 e 5: Oficina em
curso (esq.) e a escultura
pronta (dir.). Walvis Bay,
Namíbia - 2018.

A exibição final ocorreu na escola para todos os alunos e professores e, na semana seguin-
te, no Congresso Interrnacional de Educação Através da Arte (InSEA, Namíbia - 2018),
realizado na mesma cidade.

Vidyavanam School e Tatwwa School


As oficinas no sul da Índia ocorreram em duas escolas: cada uma localizada em uma ci-
dade distinta. Em Annaikatti, os alunos revelaram seus talentos artísticos manuais com
diversos materiais e técnicas: desenhos e pintura com terra e dobraduras. As mãos habili-
dosas recortaram folhas das garrafas de plástico e moldaram “jacas” de diversos tamanhos
com algumas garrafas pet embrulhadas em papel craft com pingos de cola quente.

450
O tronco foi feito com sobras de canos, tubos de plásticos e preenchido por fora com
papéis de jornal molhado e amassado, o que deu um formato mais “orgânico” e menos
geométrico. Ainda recebeu uma camada de cola de papel que foi coberta com areia grossa
para texturizar toda a peça. Após secar a cola com a areia, as tiras de folha e as “jacas” foram
nele pregadas. A árvore manteve-se em pé por meios de pedras escoradas ao seu redor.
Um “ninho” construído por eles, em outra ocasião, na base de fibra de coco, foi reutilizado
na ornamentação da árvore sendo pendurada em um dos “galhos” (Fig. 7), o que me fez
lembrar o mesmo tipo de ligação com a natureza visto na oficina da Aldeia Milagrosa.

A exibição ocorreu para toda a comunidade escolar e fez parte das comemorações festivas
do 150º aniversário de nascimento do Patriarca da Independência da Índia, Mahatma
Gandhi, celebrado naquele dia.

Figuras 6 e 7: Oficina em
curso (esq.) e a escultura
pronta (dir.). Annaikatti,
Índia - 2019.

Em Kochi (Cochim), também se fizeram presentes os mesmos talentos dos alunos para
a construção da árvore. Nesta escola, houve maior participação dos professores nos faze-
res manuais. Para compor o cenário natural, “pedras” foram feitas de jornal amassado e
foram distribuídas ao redor da árvore.

Em todas estas oficinas, ensinei aos participantes como se trança qualquer tipo de fio ou
tiras de tecidos; trabalho manual que adornou a construção artística das árvores repre-
sentando cipós ou cordões, como a natureza das árvores produz. Nesta oficina, tecidos
sem uso foram oferecidos para fazerem parte da escultura. Alguns foram selecionados e
a mesma técnica de trançado usada na oficinas anteriores também foi utilizada aqui. Os
alunos incrementaram o ambiente de toda a escola com vasos de garrafas pet com mudas
diversas. Além disso, o corrimão da escada de acesso à sala das oficina/instalação foi tran-
çado com barbantes coloridos.

451
Figuras 8 e 9: Oficina
em curso (esq.) e a escul-
tura pronta (dir.). KOchi
(Cochim), Índia - 2019.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“(...) É o ser humano que desperta a matéria, é o contato da mão maravi-


lhosa, o contato dotado de todos os sonhos do tato imaginante que dá vida
às qualidades que estão adormecidas nas coisas [...] a realidade material
nos instrui. De tanto manejar matérias muito diversas e bem individualiza-
das, podemos adquirir tipos individualizados de flexibilidade e de decisão
[...] matéria e mão devem ser unidas para formar o ponto essencial.”

G. BACHELARD

Uma grande lição como professora é de alinhavar essas experiências: trazê-las para pró-
pria vida e para a sala de aula. Senti-me estimulada por meio das imagens que enriquece-
ram a minha alma e compreendi a riqueza de diversificar os materiais usados, disponíveis
em cada região, para um trabalho mais vivo. Estas experiências, por sua vez, reativaram
forças que já existiam dentro de mim. Descobri que dentro de mim existem coragem e
vontade para revisitar diferentes locais com suas especiarias e com sua culinária regional.

Meus olhos passearam na magnitude dos estímulos visuais, olfativos e auditivos na Índia,
na forte expressividade corporal e das mãos africanas e na familiaridade com as artes manu-
ais indígenas brasileiras. Também ficou evidente a enorme capacidade do fazer e atuar das
mãos desses povos e como é potente o fio preservado que os liga à ancestralidade, consi-
deravelmente importante para eles. Tradição. Energia que reativa a nossa ancestralidade.

452
Assim, é importante reconhecer que este é um projeto que traz com profundidade a rela-
ção de alma com a natureza e com o ser humano e, ao mesmo tempo, reconhece e fomenta
a expressão da essência da cultura local. Os encontros foram preciosos, os olhares verda-
deiros e o respeito mútuo.

Foi maravilhoso perceber o interesse e o envolvimento dos participantes despertando mais


do que um sentido para esse projeto, mas levando arte para a própria vida. Pude perceber
o quanto meu olhar, como professora de trabalhos manuais, em relação ao fazer artístico,
colaborou para alcançarmos uma qualidade na construção dos elementos das instalações.

Além disso, ao me deparar com os artesanatos exibidos nos três países, constatei que seria
possível trazer para a prática de sala de aula materiais mais naturais como palha, cordas,
bambu, cabaças, madeira, fibra do coco. Além de buscar uma diversidade de materiais
possíveis das matas nativas do nosso país, me aproximei das ancestralidades neste campo
dos fazeres, o que muito contribuirá com as minhas aulas.

BIBLIOGRAFIA
ALVES, R. As mãos perguntam, a cabeça pensa. In: Folha de São Paulo - Caderno
Tendências e Debates. 21/07/2002.

BACHELAR, G. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das


forças. São Paulo: Martins Fontes, 2016

STEINER, R. A Arte da Educação. Coleção Metodologia e Didática. Vol. 2. São Paulo:


Ed. Antroposófica, 2016.

280
Vivências com a lã:
A criança, a f ibra e as artes-manuais
dentro e fora da escola
por Laura Erig Salimen

RESUMO
O artigo parte da compreensão da criança na visão ampliada da Antroposofia. Através de car-
tografias de experiências dentro e fora da escola, a pesquisa apresenta o sentir da lã como ma-
téria-prima viva que estimula o desenvolvimento infantil, relacionando a riqueza das vivências
táteis do material e as ações deste brincar: lavar, esguedelhar, feltrar, fiar e tecer. O estudo
reflete sobre a importância pedagógica de conhecer o caminho da lã: da ovelha ao fio do tra-
balho manual; como o trabalho manual com a lã natural pode atuar como dispositivo para um
desenvolvimento saudável na infância; o que transborda para além das experiências com os
fazeres manuais dentro e fora de sala de aula; como a arte-manual fora da casa pode atuar como
potência contaminante capaz de resgatar o fazer manual afetivo.

PALAVRAS-CHAVE: Criança. Lã. Artes-manuais. Educação.

ABSTRACT
This article starts from the understanding of children in the light of the broad view of An-
throposophy. By mapping experiences within and outside the school, this research presents
the experience with wool as a powerful living material that stimulates children’s development,
connecting the richness of the tactile perceptions of wool to the playful actions correlated: scou-
ring, flicking, felting, spinning and weaving. The study ponders about the pedagogical relevan-
ce of getting to know the process of wool: from the sheep to the yarn of the handwork; how the
handwork produced with natural wool can act as a device for promoting healthy development
in children; what overflows from the experiences with manual tasks within and outside the
classroom; how the manual arts experienced outside children’s homes can act as a spreading
power able to recover domestic affective handworks.

KEYWORDS: Children. Wool. Handwork. Education.

454
INTRODUÇÃO

“Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas


experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de
raciocínios e intuições. […] Quando nada acontece, há um
milagre que não estamos vendo.”

João Guimarães Rosa

A presente pesquisa busca entender a antropologia da criança de sete a nove anos de


1 2
idade tendo como base teórica a visão ampliada da Antroposofia da Imanência . A fim
de desvendar o potencial da criança desta faixa etária, esta investigação indaga como
3
melhor contribuir e possibilitar o desenvolvimento saudável de seus sentidos . (LIE-
VEGOED, 2017)

Através de cartografias 4 de experiências dentro e fora da escola, a pesquisa apresenta a


5
voz dos afetos que surgem no sentir da lã como matéria-prima viva que estimula o de-
senvolvimento infantil relacionando a riqueza das vivências táteis do material e as ações
deste brincar: lavar, esguedelhar, feltrar, fiar e tecer. Cartografar é acompanhar processos
(BARROS; KASTRUP, 2009), fortalecendo a geração de conhecimento e dando vazão
aos questionamentos que surgem internamente durante a pesquisa.

1 Do grego, “conhecimento do ser humano”. Ciência Espiritual fundada no início do século XX pelo austríaco Ru-
dolf Steiner (ver nota 4) que considera o ser humano dentro dos processos do mundo.
2 Antroposofia ocupada com aquilo que se dá no próprio viver.
3 A teoria dos sentidos, de Rudolf Steiner (ver nota 6), pressupõe a existência de outros sentidos em oposição à habi-
tual divisão em cinco. Em 1916, o filósofo define os doze sentidos considerando o seu estudo a base da recém-fundada
Antroposofia. (STEINER, Rudolf. Os Doze Sentidos e os Sete Processos Vitais. São Paulo: Antroposófica, 1997)
4 Método de investigação que mantém o observador próximo à experiência, sendo afetado e afetando o campo.
“Cartografar é dar língua aos afetos que pedem passagem.” (ROLNIK, 2007, p. 27 apud BARROS; KASTRUP,
2009, p. 57)
5 Aquilo que nos afeta, o que move a alma humana. “Por afeto, compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua
potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.”
(ESPINOSA, Ética III, Def. 3)

455
Considerando que o indicado por Rudolf Steiner 6 é proporcionar um ambiente de salu-
7
togênese , o estudo lança um olhar sobre a cultura atual das fibras têxteis, caracterizando
as fibras naturais e as sintéticas. Propõe ainda a reflexão sobre a importância pedagógica
de conhecer o caminho da lã: da ovelha ao fio do trabalho manual. A fim de oportunizar
8
aulas e vivências das artes-manuais na infância plenas de sentido, o artigo apresenta
um olhar cuidadoso ao currículo dos trabalhos manuais no primeiro e no terceiro ano das
9
Escolas Waldorf , quando as crianças aprendem a técnica do tricô. Dessa forma, esta in-
vestigação deseja estimular o uso da lã como matéria-prima para vivências com as crianças.

Se o pensamento e o sentimento estão contidos no processo do fazer (SENNETT,


2009), o que esse processo revela a nosso respeito? Como o trabalho manual com a lã
natural pode atuar como dispositivo para um desenvolvimento saudável na infância? O
que vaza para além das experiências com os fazeres manuais dentro e fora de sala de aula?
Como a arte- manual fora da casa pode atuar como potência contaminante capaz de res-
gatar o fazer manual doméstico? Um possível caminho seria por meio da criança ou dos
adultos próximos a ela que identifiquem nesse fazer algo de bom, belo e verdadeiro.

pensar a criança sentir a lã querer as artes-manuais

Cardar a lã... cardo meus pensamentos! Materializo o meu pensar na escrita. Cardo vozes
que reverberam dentro de mim. Esta nuvem é de desejos... Desejo escrever, mas escrever é
tarefa difícil. No pensar, as palavras fazem sentido, no entanto, quando as tento colocar no
papel, não se parecem com o que eu sentia ecoar. Cardar a lã é organizar os pensamentos,
sentir o pensar. Lá fora o céu está cheio de nuvens escuras. Parece que vai chover. Desejo!

6 Filósofo austríaco (1861-1925), educador, artista e fundador da Antroposofia.


7 Conceito criado por Aaron Antonovsky, em 1979, que visa caracterizar as forças geradoras de saúde, considerando
sua origem, promoção e proteção, observando o ser humano de forma integral. Os estímulos adequados repercutem
em vitalidade e saúde.
8 Conceito de Nina Veiga que remete aos modos de existir no tensionamento entre a arte e os fazeres manuais. O hífen
em artes-manuais reside na teimosia humana de unir arte e tradição em fazeres singulares.
9 Escolas que seguem a pedagogia de Rudolf Steiner baseada na Antroposofia que considera a idade de 7 anos para o
ingresso da criança no Ensino Fundamental.

456
EU-CRIANÇA
Quando busco na memória as lembranças das artes-manuais na infância, lembro-me ime-
diatamente das casas das minhas avós, ambas muito habilidosas. A vó paterna era tricoteira
de mão cheia! Pelotense, dona de casa, sabia fazer diversos doces, bastante açucarados, e um
pão de ló di-vi-no. Sempre fazia blusões de lã para os netos no inverno. Uma vez, a desafiei:
pedi que fizesse um blusão com o logo do colégio, pois não poderia mais usar roupas que não
fossem uniforme da escola. E não foi que ela fez? Sentia-me “o máximo” passeando pelos cor-
redores com o blusão-uniforme exclusivo! Por diversas vezes, ela tentou me ensinar tanto os
doces quanto o tricô. E me lembro da insatisfação dela comigo, pois não conseguia aprender
nem uma coisa nem outra. Faltava paciência e sobrava ansiedade no encontro. Eu gostava
mesmo era de estar ali, naquela “bagunça” entre agulhas, novelos e doces muito doces. No
verão, passávamos na casa dos meus avós maternos na praia de Nova Tramandaí. Uma
casinha de pinus bem simples, mas muito aconchegante. Lembro-me da vó trabalhando em
tapeçaria e da minha descoberta apaixonada pelos fios. Muito mais fácil que manusear duas
agulhas compridas de tricô era bordar os pontos na tela de tapeçaria! A partir deste desper-
tar para o fazer manual, minha mãe começou a me presentear com “brinquedos-acessórios”
em artes-manuais: maquininha de bordado, tearzinho, macramê, todos em plástico rosa
chiclete, claro. Dos três, só não tenho mais o tear... Isso porque o deixei na casa da praia e
um dia ladrões fizeram a limpa na casa e levaram absolutamente tudo! Chorei por anos não
só pelo tearzinho roubado como também pelas peças trabalhadas nele que estavam na cai-
xa. A única peça que sobrou foi uma bolsinha que fiz para a minha Barbie... A vó materna
morava em Canoas, na grande Porto Alegre. A casa era nosso refúgio de finais de semanas e
férias de inverno. Na época, minha tia e madrinha ainda morava com meus avós. Pedagoga,
sempre inventava atividades artesanais para passar o tempo, geralmente envolvendo papel e
cola branca: cestaria em jornal, papéis artesanais, cartões para mamãe e papai. Lembro-me
da farinha voando na cozinha onde fazíamos muita cueca virada e bolos diversos enquanto
meu avô passava no pátio cuidando das plantas. Até hoje é para esta casa que me desloco nos
10
sonhos, mesmo meus avós tendo se mudado de lá há anos. É a minha casa de Bachelard
e os meus devaneios me levam até ela: o meu canto no mundo, meu abrigo. Cozinha e sala
se misturam nas lembranças de artes-manuais na minha infância. Minha vida se resumia a
comer e a criar, alimento para corpo e também para alma. Pouco mudou, ainda bem!

10 Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando,
na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Ime-
morial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. (BACHELARD, 2003, p. 201)

457
Desanuviar. De onde vem este meu encanto pela lã de carneiro? Por que será que esta fibra
capturou o meu pensar, sentir, querer? É um reencontro com a lã... de outras vidas talvez.
Reconexão do meu Eu com o carneiro. Será que já vivi carneiro? Se não, com certeza vivi
pastora! Ou decerto uma vida de fiandeira... A lã me acalma, independentemente da raça
11
do animal. Gosto do cheiro, do toque... até mesmo das mais crioulas . Sou ser humano
sensível. Alguns dizem que o motivo é a data de nascimento, outros afirmam ser questão
de temperamento. Tem dias que o sentir é tanto que transbordo em lágrimas. Em outros,
extravaso, cantando bem alto, quero que o mundo se alegre comigo. De tanta intensidade,
até meus dentes são sensíveis! Preciso de dias de sol para produzir. Dias nublados me trazem
melancolia e vontade de “fazer nada”. Então me sento na poltrona da sala e faço um tricô
despretensioso. Não há como cardar em dias nublados, não consigo... a umidade tampouco
ajuda. A lã fica com aspecto pegajoso, não se deixa pentear. É preciso sol para cardar. Há
nuvens suficientes no céu, quem sou eu para “nuvelar” na terra?

PRESENTE PARA AS CRIANÇAS

“A brincadeira é a prova evidente e constante da


capacidade criadora, que quer dizer vivência.”

D. W. Winnicott

Fui convidada a participar do bazar de celebração do Dia das Crianças na novelaria da ci-
dade. Seria a primeira vez como “oficineira” de crianças. Digo oficineira entre aspas, porque
nunca tive intenção de produzir nada com elas... O grupo do coletivo da novelaria estava
muito focado em oferecer atividades diversas para as crianças e eu trouxe a proposta de roda
12
rítmica do pastorzinho a fim de oferecer a lã suja para lavagem. Acolhida minha ideia,
chamei-a de “Vivência terapêutica com a lã de ovelha para crianças”. Improvisamos um

11 Raça local do Rio Grande do Sul de toque que varia de áspero a modernamente suave e cor que pode variar do bran-
co ao preto incluindo diversos tons intermediários como, por exemplo, amarelo, cinza, marrom, ocre e grisalho, além de
todas as combinações possíveis. A ovelha crioula representa uma enorme importância social nas comunidades em que
outros animais da espécie não sobrevivem e contribui para a manutenção da vida humana no campo.
12 A roda rítmica é um recurso utilizado nas Escolas Waldorf para a harmonização do grupo. Em círculo, formato que
promove integração e onde cada um vê o todo, as crianças exercitam o corpo, espacialidade, dicção, atenção, integra-
ção social e muitos outros aspectos através das imagens narradas pelos cantos, histórias e gestos do educador.

458
tapete na laje do pátio interno, com bandejas, garrafas térmicas com água morna e, bem ao
centro, coloquei a lã bruta. A pelagem marrom já anunciava minhas segundas intenções.
Queria provocar as crianças com aquela lã bruta e marrom. Na hora da minha vivência,
cadê as crianças? Peguei a mão do meu filho e fizemos um trenzinho pelo bazar cantando:
“Dê-me cá sua mão, dê-me cá sua mão. Chame logo, chame logo. Chame logo seu irmão…”.
Uma roda logo se formou, com crianças de todas as idades - de 3 até 12 anos. Alguns adul-
tos acompanhavam os pequenos. Gelo quebrado, começamos a roda do pastorzinho, como
numa roda de jardim de infância Waldorf, com fala tranquila, cantar doce e gestos das ima-
gens da história: “De manhã, o pastor se levantou, pegou o seu cajado e o rebanho juntou.
Vejo o pastorzinho na colina além/ Levando sozinho seu rebanho vem/ Desde a madrugada
até o pôr do sol/ Vai o pastorzinho, sempre bem feliz/ Guiando as ovelhas pelos alcantis.
Bem alegres pelos campos, vão saltando os carneirinhos do mais forte ao miudinho, sempre,
sempre, bem juntinhos. Quanta lã e que calor! Corta nosso pelo, ó bom pastor. O pastor logo
lhes atende e começa a tosquiar. Roc, roc, roc, roc, bem fresquinhas vão ficar! Que lã fofinha,
disse o pastor, vou tecer dela um belo cobertor! Tirou então, picão por picão, lavou-a no
Ribeirão e pendurou-a no mourão. A lã está seca, podemos cardá-la. Carda, carda, carda,
carda, bem macia vai ficar! Agora vamos fiá-la? Fia, fia, com a roca, gira, gira sem parar!
Que fio comprido! Vamos enrolá-lo? Enrola, enrola, puxa, puxa, um, dois, três. O novelo
está pronto, podemos tecer! Navete pra cá, navete pra lá, tece, tece no tear! O cobertor está
pronto e que quentinho! Obrigada, queridos carneirinhos! Carneirinho, carneirão/ Olhai
13
pro céu, olhai pro chão/ Manda o rei, nosso senhor, todos darem um abraço!” As crianças
imitam os movimentos, algumas mais entregues, outras mais tímidas. Os adultos terminam
a roda com um sorriso no rosto. Aponto para o centro e digo que ali está um pouquinho da
lã que o pastorzinho enviou de presente para as crianças. Rapidamente elas se aproximam
do velo. E várias questões surgem. As crianças perguntam se podem tocar na lã, outras se a
ovelha está dormindo e ainda há aquelas que comentam sobre o cheiro forte. Cada uma, ao
seu tempo, foi pegando um punhadinho de lã para lavar. E novas inquietações se apresen-
tavam. Algumas não tiveram pudor algum e logo se espalharam pelo chão, se entregando
para a proposta. Uma criança pergunta se era para esfregar até ficar branca. Digo que não,
que existem carneiros de muitas cores, mas este carneirinho tinha o pelo marrom mesmo.
Outras demonstravam preocupação em se sujar ou molhar a roupa, afinal, era um dia de

13 MANZANO, E; MOURÃO, P. CantarOmundo. São Paulo, 2005. Disponível em: https://soundcloud.com/ isabe-
lanmfc/sets/cantar-o-mundo. Acesso em: 1 jun. 2019.

459
“festa”, estavam arrumadas… Alguns adultos não resistiram e pediram para participar da
brincadeira. Ao final, me perguntaram se poderiam levar a lã. Alguns pais não gostaram da
14
ideia: “Mas o que é que vamos fazer com isso em casa?” “Ora, brincar!” Foi difícil dar fim
à lavação. Mas como final de outubro faz frio, aos poucos, o grupo foi se diluindo. Saí de lá
realizada. Alma lavada.

A lã chegou em minhas mãos ainda bruta, suja, com cheiro e sebo de ovelha. É tão linda!
Tosquia do sítio do Seu Claudio. Sinto que tenho duas ovelhas dentro do apartamento... A
vontade é deixá-la assim, em seu estado natural, nem lavar quero. Hoje faz sol e cardo a lã
bruta na varanda. A sujeira vai se soltando no fluir do encontro das cardas. Estou falando
dos pequenos pedaços de grama, gravetinhos e aqueles pegas-pegas do pasto... É vida do
campo! Afinal de contas, o que é sujeira? A produção de hoje é de nuvens brutas. Nuvens com
cheiro. Se preciso for, lavarei a lã em outro dia. Hoje faz sol e não vai chover.

COLÔNIA DE FÉRIAS
“O brincar é determinado pelo interior,
pelo ser da criança que quer desabrochar.”
Rudolf Steiner

Na minha cidade, as escolas entram em férias escolares duas semanas antes do Natal. E,
geralmente, as famílias tiram férias após essa data. Pensando nisso, e a partir de necessidade
própria, em dezembro de 2017, criei uma colônia de férias de verão diferente. A proposta era
oferecer um ambiente acolhedor às crianças, que lembrasse a casa, com amplo espaço para o
livre brincar, pães e lanches preparados no dia, permeado por artes-manuais e música. Uma
composição entre as lembranças de férias escolares na casa da minha avó e as vivências em
casa como mãe de aluno de jardim de infância Waldorf. O lugar não poderia ser outro: a no-
velaria da cidade com as suas lãs, os seus fios e as suas linhas. Esvaziamos os fundos da loja,
levei os brinquedos do filho e montei minha casinha com cozinha, fiz cantinhos de brincar
e de descanso e um pequeno ateliê especial onde ficavam as lãs e a roca. Armamos até uma
piscina no pátio, já que eram dias de muito calor. O cuidado de crianças de idades variadas,

14 O brincar como uma experiência criativa. (WINNICOTT, 1975)

460
entre 3 e 9 anos, foi uma experiência muito gostosa e desafiadora especialmente com os
menores que, justamente pela característica da fase evolutiva, sentiam muitas dificuldades
de se vincular a mim e ao grupo. A rotina era simples e contemplava momentos de contra-
ção e expansão. Aguardávamos todos chegarem para iniciarmos o preparo do pão, um dos
momentos mais especiais do dia e bastante revelador. Algumas crianças nunca haviam tido
a oportunidade de sovar o pão. No máximo, tinham preparado bolos. Mas o fazer do pão
traz outra qualidade, um pão bem macio precisa de muito carinho e descanso. Enquanto as
crianças brincavam, eu fazia crochê ou costurava um novo brinquedo. Um generoso tempo
era destinado a este brincar livre 15 e era lindo observar os movimentos que surgiam. Gos-
tavam de ficar na cozinha da casa, preparando doces, pães, bolos, cafés e sucos. Cuidavam
dos bonecos de panos, aos quais se referiam como “bebês” ou “meu filho”, levando-os no
colo de um lado a outro da sala, colocando-os para dormir ou se recolhendo com eles nas
cabanas tipis montadas no pátio. Com os panos coloridos, faziam capas, saias, vestidos,
lenços, montavam cenários ou simplesmente jogavam-nos para o alto festivamente. Em
seguida, fazíamos a roda dos carneiros e era contada a história do pastor que cuidava de
suas ovelhas e tecia um belo cobertor com sua lã. Ao longo da semana, a história avançava
e, aos poucos, dia após dia, o pastor seguia o seu belo trabalho desde a tosquia gentil na
época de calor, limpeza do velo, cardação, fiação e tecelagem até chegar no cobertor. Após
a roda, era o momento de vivenciar a lã e, assim como parte da história contada naquele
dia, lavávamos, cardávamos, fiávamos, tecíamos e ainda feltrávamos vivenciando as co-
res! Os dias de lavar, cardar e feltrar foram mais aproveitados pelos menores, enquanto
o fiar e tecer despertou mais interesse dos maiores. Para os pequenos, a fiação na roca
era quase um teatro. Assistiam atentamente aos movimentos e logo queriam brincar com
a roda e o pedal. Alguns se interessavam em auxiliar a fiação, abrindo a lã penteada
enquanto eu fiava. Tecemos um tapete colaborativo em um tear de prego, bem grande,
improvisado em um antigo cavalete da novelaria. Algumas crianças ficavam dentro do
cavalete e ajudavam o vai e vem das tecelãs. Passavam o fio de um lado para o outro com
alegria. Tecemos com o nosso fio e um pouco de lã penteada também. E ainda feltramos
tapetinhos e sabonetes. Tudo era muito livre. Após o bom trabalho manual, fazíamos nos-
so lanche coletivo com frutas da estação, sucos feito na hora e os pãezinhos acompanhados
de mel, geleias vivas e pastinhas de legumes. Para relaxar, finalizávamos o dia com uma
história-presente ao som do sitar indiano e seu tapete mágico. Uma mãe da escola Waldorf

15 É através deste brincar que a criança conhece a si e o mundo e experiencia sua liberdade.

461
me indagou em relação às idades das crianças e disse que era complicado misturar os se-
tênios 16. Questionou a prontidão dos menores, a antecipação do currículo… Como estava
oferecendo um espaço de brincar e convivência com as artes-manuais como acontece, ou
acontecia, naturalmente na casa, não via nenhum mal em reuni-las. Será mesmo que mis-
turar as idades é prejudicial às crianças? E as famílias com crianças em idades variadas?
Os irmãos não brincam uns com os outros? Será que essa proposta é tão nociva quanto as
outras atividades oferecidas às crianças nos contraturnos escolares? Será?

O PRÍNCIPE CORAJOSO

“Olha este arco de flores


Mostrando o caminho
Para uma princesa corajosa
Seguir com alegria.”

O menino estava ansioso para o grande dia: passar pelo arco de flores! Há anos se despede
dos amigos “grandes” do jardim de infância neste rito de passagem para o Ensino Fun-
damental. Hoje era o seu dia! Estava muito feliz, dizia-se corajoso e torcia para se sentar
logo no seu trono vermelho. Aos olhos da mãe, parecia inseguro ainda. Na última semana,
encasquetou que teria de ter capa e coroa, caso contrário, não seria príncipe! A mãe, que já
no último aniversário rompera com a tradição de capa e coroa, convenceu o menino de que
príncipes modernos não precisam de capa nem coroa. Porém, o menino precisava de algo
para se sentir corajoso (WINNICOTT, 1975). Levou então seu boneco de pano feito pela
mãe quatro anos antes. A cerimônia da passagem pelo arco de flores é muito singela, porém
de muita beleza e repleta de gestos significativos. As famílias do primeiro ano montam um
arco com varas de bambu no pátio da escola e o revestem com folhas e flores diversas. As
turmas mais velhas, que passaram a semana ensaiando, apresentam coral e banda para re-
cepcionar a nova turma que chega. A professora de classe veste roupas claras e aguarda seus
novos alunos embaixo do arco. Ao fundo, as cadeiras enfeitadas com cetim coloridos aguar-
dam seus príncipes e suas princesas corajosos. Os grandes alunos do 7º ano apadrinham o

16 Teoria dos Setênios de Rudolf Steiner, que compreende a vida humana em fases de sete anos.

462
1º ano e os conduzem um a um até a professora. É bonito perceber que estas crianças, de
aproximadamente sete anos, que até o ano anterior ainda apresentavam formas arredon-
dadas, hoje são meninas e meninos compridos e retilíneos. São uma espécie de miniatura
dos padrinhos da turma dos grandes. Muitos já começaram a trocar os dentes, outros ainda
tem o sorriso de leite (LIEVEGOED, 2017). É um momento de muita alegria e emoção
para as famílias, um marco na biografia da criança. Além disso, a passagem do arco é um
momento muito revelador da personalidade das crianças e das famílias também. Estava
tudo pronto. A banda começa a tocar e a professora chama o nome do menino primeiro. A
mãe leva um susto, mas a criança não esconde a euforia. O menino entrega o boneco à mãe,
abraça o pai e segue com sua madrinha em direção ao arco. Embaixo dele, a professora o
aguarda também emocionada. Ela estende a mão direita e pega a mão direita dele, buscan-
do o encontro dos olhos. Eles se olham, dão bom dia um ao outro e ela o direciona para as
cadeiras. Passou o arco feliz e ainda pôde escolher a cadeira vermelha como desejara.

Cardar pensamentos, sentir o material.


Produzir nuvens.
O que carregam? Para onde vão?
Será que resistirão ao vento, ao tempo?
Nas nuvens, a memória do carneiro permanece viva.

Nuvens escuras carregam o devir chuva.


Caderno é terra semeada.
Escrita é chuva.
Alimento para o devir composição.
Escrita de nuvem é tormenta no céu:
escrita caótica, escrita potente.

Cardação é liberar o fluxo.


Ventilar, inspirar, expirar.
Deixar-se tornar-se o que se é.
Aceitar o destino.
Devir fio.

463
Palavra, lã e nuvens.
Quem tem olhos para ver?
Olhos de sentir em harmonia constante e espiritualizado?

Nuvens... Chuva é extensão da nuvem?


Ovelhas são nuvens.
É preciso estar com os sentidos atentos para apreciar sua beleza.
Crianças são nuvens.
É preciso manter os olhos abertos para contemplá-las além da matéria.
Eu sou nuvem passageira.
É preciso manter o meu eu criança vivo e nutrido.
Nuvem tem alma.

ESQUILAR

“É preciso ser capaz de observar a vida


em todas as suas manifestações.”
Rudolf Steiner

Primavera é época de tosquia no sul do país. Aproveitamos as férias de primavera da es-


cola e fomos até Caçapava conhecer as ovelhas da fazenda Pitangá. A viagem foi longa e
cansativa, não é nada fácil ficar quase cinco horas dentro de um carro, ainda mais quando
se tem seis anos. Mas o menino conseguia se distrair com as novas paisagens e algumas
brincadeiras e cantorias da família. Chegamos na fazenda e fomos recepcionados pelo pe-
queno gaúcho de quatro anos e seu cachorros. O gauchinho estava numa alegria imensa
em conhecer o primo da cidade. Nos levou para o galpão onde o pai estava trabalhando.
Lá, o homem estava agachado sobre a ovelha, esquilando. Com o joelho, segurava o corpo
do animal, que parecia tranquilo, mesmo com as patas amarradas. Parecia não haver es-
forço algum no corpo do homem que, com a mão esquerda, abria o caminho no pelo para
a grande tesoura de tosquia da mão direita passar. Trabalhava com rapidez e agilidade. A
tesoura parecia a extensão de seu braço. A cena impressionou a família urbana que acaba-
ra de chegar. Logo, o pequeno menino quis também apresentar suas habilidades. Foi até o

464
guachinho 17 e o tombou no chão. Agachou-se em cima do animal e, com o joelho, o manteve
no chão. Pegou uma tesourinha pequena e começou a brincar imitando perfeitamente os
gestos do pai. Lembrou-me de Rudolf Steiner (1923, apud HAUCK, 2008): o desejo mais
ardente de uma criança é imitar o trabalho dos adultos, quer esse trabalho seja feito com
uma pá ou com uma agulha. Começou uma chuva e a tosquia teve de ser interrompida. Era
preciso levar as ovelhas para o abrigo ou, caso contrário, poderiam ficar doentes. O homem
contou que existem duas técnicas de tosquia, a martelo, que é com a tesoura, ou a máquina.
Ele prefere a tesoura, pois é menos agressiva com o animal e também mantém um pouco
mais de lã no corpo do animal, protegendo as ovelhas do clima. Explicou que o objetivo da
tosquia não é somente obter a lã enquanto matéria-prima, até porque a lã não tem grande
18
valor comercial . E afirmou que se tivesse que pagar um esquiador não valeria o custo.
A tosquia é necessária para garantir o bem-estar do animal. Como raça domesticada, ao
contrário do que acontece com as raras ovelhas selvagens em que o pelo cai naturalmente no
tempo quente e cresce muito menos, a lã não para de crescer. A ovelha sem tosquia ficaria
com sobrepeso e também sofreria um sobreaquecimento no verão, causando desconforto e
prejudicando sua mobilidade. Sem falar na questão higiênica! O excesso de pelo poderia
provocar doenças e atrair insetos e vermes a se alojarem no seu corpo. A tosquia é um ato
de amor do ser humano ao animal. Mas não necessariamente toda ovelha esquilada segue
com vida. Nova saca de lã chega nas minhas mãos! A ovelha foi para o céu, virou churrasco.
Agora só restou sua lã. Honrarei sua vida na terra cardando nuvens brancas e macias.

A FIBRA ECOLÓGICA E A CRIANÇA VEGANA

“Podemos alcançar uma vida material mais humana,


se pelo menos entendermos como são feitas as coisas.”
Richard Sennett

17 Guacho diz-se do animal que é criado por outro que não a própria mãe.
18 O valor do quilo da lã, a depender da qualidade, atualmente varia entre nove e dez reais por quilo. O estado do RS
produz mais de 90% da lã do Brasil, porém apenas 20% desta fica no país.

465
Após passar as férias planejando e desejando as aulas de trabalhos manuais com a nova
turma de primeiro ano da escola, eis que se matricula um aluno vegano. Fico paralisada
por um momento, mas logo me ponho a pensar. Não quero abrir mão de proporcionar
à turma as vivências com a lã de carneiro, porém respeito e acolho o olhar da família.
Reflito sobre os meus valores, revejo a experiência que quero proporcionar. Como com-
por uma aula inclusiva? Para a mãe, usar a lã de carneiro é uma violência, a lã não nos
pertence. A lã pertence à ovelha e com ela deveria permanecer! Como acolher este olhar?
Como fazer com que esta criança não se sinta violentada em aula? O colegiado sugere
separar o menino da turma para ter a vivência do algodão com o segundo ano. Insisto na
inclusão, menino do primeiro ano participa da aula do primeiro ano! A mãe se propõe,
então, a pesquisar fornecedores de lã. Disse que se encontrasse um produtor ético, o seu
filho poderia manipular a fibra. Mas retorna indignada, pois não vê ética no trabalho do
produtor do RS. Por isso, ela não deseja que o filho manipule a lã e me pergunta se pode-
mos trabalhar com fio acrílico. Não quero entrar em conflito com a família, mas discordo
que o acrílico seja mais ecológico que a lã. Antes algodão que acrílico, penso. E a ajuda
chega a quem sabe pedir. Uma amiga querida me envia botões de algodão do pé da sua
casa. Outra, tinha muitas nuvens de algodão prontas para fiar. A mãe parece estar com o
coração tranquilo com a notícia do uso do algodão para a sua criança. Deixo a lã suspensa
por um tempo e me delicio nas artes-manuais com esta fibra. Ainda é verão, faz calor na
cidade e a experiência de aproximação com esta fibra vegetal me traz leveza no pensar.
Dedico-me a crochetar quadradinhos em fio de algodão na Quaresma. Crocheto e penso
no menino fiando o algodão, brincando com suas nuvens... Aprendi que, ao lado da casa
do pastor, tinha um pé de algodão branquinho e o colchão de sua cama era recheado por
algodão fofinho. Assim como a toalha com que ele se secava e a roupa com que se vestia.
Após a Páscoa, entro em sala e ponho em prática o meu planejamento! Mas abril chegou
com uma notícia triste: a família saira da escola. Embora não tenha entrado em sala com
esta criança, sou grata por todo o processo vivenciado a partir de um desafio dado.

466
material Pelo de Carneiro Algodão Fibra Siliconada

reino Animal Vegetal Mineral

Aconchego; toque suave; Toque macio; cheiro Nem quente, nem fria;
cheiro agradável; calor; suave de algodão; frio; asco; rinite; aflição da
vontade de esfregar no vontade de fazer um fibra que se espalha no
impressões corpo, comer… esfrego, travesseiro e deitar ar; não quero manipulá
mas não a como. sobre ele. -la; aversão.

Produtor rural; tosquia Flor; arbusto; planta- Mineral


gentil; ovelha; reba- ção orgânica; biodinâ-
nho em pasto aberto; mica ou agroflorestal;
bezerro livre; útero; colheita de semente;
Indústria; refinaria;
origem embrião; sexo consen- arbusto de plantação de
petróleo; extração
sual; tosquia agressiva; monocultura com uso
agressiva; perfuração
ovelha; confinamento; de agrotóxico; semente
do solo.
bezerro desmamado transgênica; compra de
precocemente; útero; semente produzida em
embrião; inseminação laboratório.
artificial (estupro).

limpar, lavar, extração limpar, cardar, pentear, microfibra, poluição,


da lanolina, produtos tingir naturalmente ou espalha-se pelo ar,
de higiene, produtos de quimicamente ou cla- contaminação das
beleza, cardar, pentear, rear ou não tingir, fiar, águas, contaminação
tingir naturalmente ou enredar, tecer, tricotar, dos animais aquáticos,
quimicamente, clarear crochetar, bordar, vestir, contaminação dos
ou não tingir, feltrar, resfriar, enfeitar, absor- humanos que se alimen-
devir fiar, enredar, tecer, tri- ver sangue, saliva, suor tam dos peixes e outros
cotar, crochetar, bordar, ou sujeira, remover animais; tingir quimi-
vestir, aquecer, enfeitar, esmalte, maquiar, camente, fiar, enredar,
isolar o calor, abafar higienizar, polir, encher, tecer, tricotar, crochetar,
chamas, enterrar e em 6 enterrar e em alguns bordar, vestir, aquecer,
meses tornar-se pó. meses tornar-se pó. pinicar, enfeitar, encher,
preencher, tornar-se
resíduo, reutilizar, voltar
a ser resíduo, enterrar e
contaminar o solo e
em mais de 100 anos se
decompor.

467
A tabela traz as impressões a partir da experiência da manipulação de fibras. Ao longo de
dois meses, a autora carregou uma trouxa com um punhado de fibra de lã de ovelha, de al-
godão e siliconada. O exercício era o pensar, o sentir e o querer das fibras empiricamente,
sem buscar conhecimento rigoroso. Junto à fenomenologia goetheniana, exercitar uma
outra cognição. A partir da provocação “O que acontece quando nada parece acontecer?”,
investigar a natureza dessas matérias-primas das artes-manuais.

As qualidades das fibras diferem entre si, mas é evidente o contraste da fibra siliconada
em relação às outras duas. Enquanto as fibras animal e vegetal apresentam qualidades
sensórias que aproximam a pesquisadora ao toque, a fibra mineral causa grande descon-
forto, tanto no tato quanto no vital, provocando leve alergia.

Ao imaginar a origem das fibras, a animal e a vegetal remetem a devaneios românticos e, ao


mesmo tempo, a realidades não tão agradáveis como a possibilidade de exploração animal,
o uso excessivo de água e de agrotóxicos e a exploração do sol. Porém a mineral, talvez
até provocada pela antipatia, não gera outro pensar além dos questionamentos: Onde há
19
virtude no caminho desta fibra sintética ? Será que é necessário estimular o seu consumo?

Os devires das três fibras são distintos, mas encontram nas artes-manuais um ponto em
comum. Porém, os processos de beneficiamento da fibra ao fio podem ser mais ou menos
prejudiciais ao meio ambiente. E é no fim, no descarte, que se evidencia a questão ecoló-
gica: enquanto as fibras animal e vegetal são biodegradáveis, a fibra siliconada não é. E
por mais que se tente aumentar o seu ciclo de vida, reutilizando ou reciclando o material,
ele sempre será um resíduo com potencial poluidor. Segundo Sennet, “ um milhão, por
exemplo, foram os anos necessários para que a Natureza criasse a quantidade de com-
bustíveis fósseis atualmente consumidos em um único ano.” (SENNETT, 2009, p. 13). É
uma fibra naturalmente insustentável.

BENEFICIAMENTO DE QUE(M)
No primeiro ano, ainda há um clima de fantasia permeando o ambiente da sala. Chego na
sala e sou muito bem recebida pelas crianças, todas com brilho no olhar e atenção plena a

19 A fibra siliconada também é conhecida como fibra sintética ou acrílica.

468
todos os meus gestos e movimentos dentro da sala – ainda que baste uma aranha no canto
da sala para que ela passe a ser o centro das atenções. Planejei fazer uma época de bene-
ficiamento da lã partindo da lã bruta até a fiação artesanal manual, sem ferramentas. É
uma delícia dar aula para os pequenos. São tão fantasiosos… Já na primeira aula, trouxe
a roda dos pastores e a lã bruta para esguedelhar. Esguedelhamos a lã que trouxe de Ca-
çapava, ainda suja, rica em lanolina e cheiro forte. Duas crianças se incomodaram muito
com a graxa que grudava em seus dedos. Pediam para lavar as mãos, mas voltavam a
trabalhar. Uma delas dizia que a lã tinha cheiro de pomada. A vivência tátil é o resultado
do encontro do nosso querer com o mundo circundante (KÖNIG, 2000). Que mundo as
crianças vivem hoje? Repetimos o ritmo e esguedelhamos a lã suja na aula seguinte. Nessa
aula, mais relaxada, pude observar melhor o trabalhar das pequenas mãos do primeiro
ano. Todos trabalham bem, com exceção de uma criança, com laudo, que se distancia da
roda, voltando somente quando lhe convém e enchendo os bolsos com a lã. Na semana
seguinte, lavamos a lã apenas com água quente nas bandejas de aquarela da escola. Uma
aula de total entrega das crianças. Surpreendeu-me a entrega daquela criança especial
na atividade. Ficou o tempo inteiro ali no lavar da lã. Brincou de fazer formas com a lã
submersa na água. Gostou da textura. Na aula seguinte, esguedelhamos a nossa lã limpa
e as crianças logo perceberam a diferença do toque. “Não tem mais pomada na lã”, repetia
a criança. Na outra semana, fiz uma aula espetáculo: fiei com o meu fuso artesanal feito
à mão. “É uma espada, professora?” “Não…” Comecei a cantar a história da velha a fiar
enquanto fiava a nossa lã limpa e eles brincavam de fiar à mão. E tivemos que repetir a
música várias vezes porque as crianças não queriam ir embora da minha sala… Na aula
seguinte, contei a eles a história do pastor, das ovelhas e dos javalis selvagens que gostam
de pegar as ovelhas distraídas. Uma introdução ao tricô de dedo que logo chegará.

TAREFA DE CASA
Sexta-feira, fim de semana do Dia das Mães, o menino chegou da escola com um envelope
pardo todo desenhado com giz de cera de abelha. Era um presente para a mãe. Dentro
havia tufos de lã para lavar e “cardar com as mãos”. Junto havia um bilhete: “Tarefa para
fazer em família”. A mãe não estava em casa, na verdade estava em outra cidade, a cente-
nas de quilômetros de distância. Antes de viajar, havia tido longa conversa com o menino,
que estava triste com a ausência da mãe neste domingo “especial”. Quando a mãe chegou
na noite do domingo, encontrou na sala de casa os presentes do menino: uma caixinha de

469
madeira feita às escondidas numa oficina no bazar de outono da escola. Dentro dela, o
bombom favorito da mãe e um cartão preparado em conjunto com o pai. O presente que
veio da escola estava jogado pela sala da casa, o envelope aberto e a tarefa toda por fazer
com a ansiedade de entregar de volta para a professora no dia seguinte. Era uma tarefa ou
era um presente? É possível ser as duas coisas? O presente era a presença. Era uma tarefa
para a mãe passar um tempo com o filho. Mas que tempo? O domingo? Quem disse que
faltava tempo e presença naquela relação mãe e filho? Eventualmente, eles iriam lavar
esses tufos de lã, afinal, estão quase sempre juntos. Um dia desses fariam a tal tarefa. E as-
sim o foi. Mas não a fizeram seguindo o bilhete da professora. Isso quase deixou o menino
confuso. O bilhete dizia para lavar com água quente, sabão e água fria. A mãe quase ficou
confusa e se pôs a pensar se era pra feltrar ou lavar. Lavaram a lã com água morna, sem
sabão. Depois, a lã enfrentaria o relento na varanda por alguns dias chuvosos. Mas o tem-
po iria abrir-se novamente. E abriu. Aproveitando o calor antes do pôr do sol de outono no
terraço, esguedelharam com as mãos a lã lavada em conjunto na casa. O menino reforçava
que “a tarefa de casa era para ser feita em família”, insistindo para a avó acompanhar. “É
preciso delicadeza ao manusear a lã para deixá-la fofa como uma nuvem”, dizia o menino
com voz doce.” Vê, vó!”, diz o menino jogando sua nuvem fofa pro alto. Silêncio se faz.
A mãe observa a avó e o menino com os olhos voltados para suas mãos a trabalhar. E o
menino diz: “Mãe, cardar é como afofar a terra. Está ouvindo? Faz até o som da enxada:
tcha, tcha, tcha…” Assim, a mãe, o menino e a avó materna cumpriram finalmente a ta-
refa-presente- para-família.

A CRIANÇA SATÉLITE E O PONTO MONTAINHA


Na sala do primeiro ano havia apenas quatro meninos; era para ser uma aula tranquila.
Porém, era desafiador manter a atenção das crianças no bom trabalho do tricô. Um dos
meninos se negava a ficar na roda. Em todas as aulas, ele ficava no canto da sala, próximo
às janelas. O professor de classe me orientou a deixá-lo de lado e não insistir na partici-
pação. Sentia-me frustrada, queria que todos ficassem na roda, mas acolhi o menino do
seu jeito. E, em todas as aulas, contava a mesma história: “De manhã, o pastor pega o
seu cajado e leva o seu rebanho até o alto da montanha. Abre a porteira, e as ovelhinhas
passam uma por uma debaixo da ponte e sobem a montanha. Depois de passar suas 10
ovelhinhas, o pastor fecha a porteira. É assim, todos os dias. Passam debaixo da ponte e

470
sobem a montanha.” Certa manhã, um dos meninos da roda pergunta o nome do ponto,
pois sua mãe quer aprender. E a resposta vem lá do canto da sala. Debaixo da janela, o
outro menino responde: “É ponto montainha! Vocês passam a aula inteira subindo e des-
cendo montanhas…” Todos sorriem. Meu coração se enche de alegria! Agora sei que, em
todos estes dias, ele esteve conosco na aula. Nada fazia o menino ter vontade de participar
da roda. Tentei de tudo, história, brincadeira, ajuda do professor de classe… não tínhamos
vínculo. Eu havia entrado na escola no meio do ano, substituindo o antigo professor de tra-
balhos manuais. Precisava de algo que chamasse a sua atenção. Pensei logo em fazer uma
bola! Bola é universal, não há quem não goste de brincar de bola… Fiz um quadradinho
no ponto montanha, alinhavei feito fuxico, base e topo, e coloquei o restinho do novelo
da mesma cor do tecido. Levei-a para a próxima aula como uma brincadeira na roda. O
menino foi chegando, curioso. Quis brincar. Sentou-se e participou da roda. É isso que os
meninos estão fazendo? Uma bola? Eu também quero! Pegou os seus cajados e começou a
tecer a sua bola, sem grande dificuldade, como se a imagem do pastor subindo e descendo
as montanhas tivesse permeado sua alma.

SÓ SEI O QUE SINTO

“Sinto, vejo, penso, tudo é simultâneo.


Pensar é com o corpo…”
Maria Gabriela Llansol

Esguedelhar. Palavra esquisita, né? Os adultos até questionaram a existência dela. Pen-
saram que eu a tinha inventado. Adultos... mania de achar que sabem tudo. O que não
entendem, desmerecem, dizem ser invenção, fantasia… Mas hoje as crianças e eu esguede-
lhamos. Penso que nas aulas de trabalhos manuais não se trata apenas de produzir objetos
belos e úteis. É preciso criar pequenos espaços para sentir os materiais. Pego o grande saco
de lã bruta da escola e levo à sala do terceiro ano. O gesto de esguedelhar é lindo, minucio-
so, delicado. Não precisa de explicação. Precisa de calma, sentar ereto, respirar tranquilo.
Qualquer pessoa é capaz de esguedelhar. Esguedelhar é desalinhar, desordenar as fibras,
produzir um pequeno caos. Abrir as fibras sem pretensões. Fácil, não? Mas quando o gesto

471
não é sentido e sobe à cabeça, o pensamento trava o movimento. Uma criança repetia in-
sistentemente com todas as letras pausadamente: “E-u n-ã-o c-o-n-s-i-g-o!”. Respiro. Con-
vido-a a sentar-se ao meu lado e fazermos juntas. Parece funcionar por um tempo, mas
a tensão entre mãos e cabeça não deixa o ar penetrar a lã, que se recusa a se desprender.
Percebo sua respiração ficar acelerada. É preciso desacelerar. Diminuo o volume de ma-
terial em suas mãos na tentativa de facilitar o fluir do gesto. Mas as mãos seguem tensas.
Ela não vai conseguir sozinha... A essa altura, já observo o suor escorrer no canto do seu
rosto. Respiro profundamente. Procuro palavras que tragam leveza para aquela pequena
criança-adulta ao meu lado. Repito o movimento exageradamente lento em frente às suas
mãos: “Olha que linda a minha nuvem!”. A criança expira. Agora está no céu. Alívio,
meu e dela. Ela consegue acariciar a lã e uma nuvem também surge nas suas mãos. Com
ela, brota um sorriso nos lábios, ainda que os olhos inseguros não acompanhem a boca e
as sobrancelhas questionem em silêncio: “Assim está bom, professora?” “Está muito boa,
gordinha e alegre. Vamos fazer outra?”

MOVIMENTO E IMAGEM

“Era uma vez um pastor que morava no pampa.


Todas as manhãs, após tomar o seu café,
abria a porteira e levava o rebanho até o alto da coxilha.
Lá as ovelhinhas encontravam o pasto verdinho e gostoso.”

No terceiro ano das escolas Waldorf, na aula de trabalhos manuais, as crianças tecem pe-
ças de tricô. Já na primeira aula, trouxe a imagem do pastor e suas ovelhas. Todos os dias,
o pastor abre a porteira para as ovelhas comerem o pasto verdinho das coxilhas. A aula
de tricô requer alta concentração e agilidade dos dedos e das mãos. É através das histórias
que as crianças vivenciam o movimento do tecer. Partimos do movimento amplo do tricô
de braço sentados em roda. Começamos o trabalho com uma corda emprestada pelo pro-
fessor de jogos da escola, material improvisado, já que o nosso ainda não havia chegado.
Foi ótimo, pois a matéria pesa e é preciso corpo para lidar com o material (VEIGA, 2015).
As ovelhas gostam de saltitar para os campos vizinhos, e o pastor precisa ficar atento e

472
contá-las cada vez que fecha a porteira. Foi um bom exercício de vontade, para as crianças
do terceiro ano, lidar com a corda dura e pesada. Na segunda aula, formamos a roda no
centro da sala e juntos tecemos uma peça em tricô de braço com o fio industrial. Existem
as ovelhas mais distraídas e que se perdem pelo caminho. Vez ou outra, o pastor consegue
encontrá-las e juntá-las ao rebanho. Algumas se perdem e podem ser devoradas pelos
javalis selvagens que atualmente habitam a região. Felizmente, hoje não tivemos perdas e
todas as ovelhas encontraram o seu caminho de volta pra casa. Na aula seguinte, usamos
a lã penteada. As crianças ficaram surpresas ao verem o novelão. Ele circulou pela roda e
todos puderam sentir o peso, o cheiro e abraçá-lo. Todos querem ser pastores, todos parti-
cipam. O pasto do vizinho é sempre tão mais verdinho, e as ovelhinhas estão famintas! O
tricô foi circulando na roda e, conforme crescia, também pesava. Foi um trabalho delicio-
so de fazer. Um aluno novo se emocionou: havia um brilho no seu olhar e um sorriso no
rosto. Não sabia bem explicar, mas o movimento da aula o fez lembrar da avó costureira
e as suas linhas e os seus fios. O final da aula se aproximava e tivemos que terminar o
trabalho. Então, as crianças tiveram a ideia de “vestir” o cobertor tecido. Queriam sentir
o peso nos ombros. Alguns queriam levar pra casa, outros queriam continuar o trabalho
e fazer um tapete para a sala. Ficaram tão felizes que queriam mostrá-lo ao professor de
classe - deixamos a peça exposta. Ninguém resiste à lã penteada! Na mesa de marcenaria,
no canto da sala, estavam os três trabalhos em tricô de braço tecidos nas aulas de trabalhos
manuais: em corda sintética laranja; em fio pura lã tingida quimicamente em tom bege e
o recém-tricotado em lã penteada crua. De repente, uma polêmica surge na sala: “Esse não
é o caderno cru, esse é o caderno branco”, dizia o menino à colega, indignado. Ela, com
muita rispidez, respondeu que era o cru sim. O outro menino levantou da cadeira e trouxe
um caderno branco para comparar as cores. “Está vendo”, dizia ele, “Este é o branco, este
aqui é o cru!”. “Professora, qual a cor do cru então?”. Respondo a eles que o nosso caderno
é de uma das cores do algodão cru. Aponto para a mesa de marcenaria e digo que o nosso
trabalho da aula passada foi tecido em lã tingida. O trabalho ao lado deste é em lã sem
tingimento, em lã crua. Volto os olhos para a mesa do aluno e reparo em um pequeno grão
e pergunto a eles: “Isto aqui, o que é?”. “Milho cru!”. “E qual a cor do milho cru?”. “Ama-
relo”, todos respondem. E a paz retorna à sala.

473
O BONECO DE TRICÔ
Existem muitas maneiras de fazer um boneco de tricô. Mas o boneco confeccionado no ter-
ceiro ano não é um boneco qualquer. Ele simboliza a antropologia do momento evolutivo
da criança dos 9 anos. Ele precisa ser uma representação desta criança. Não cabem aqui
formas caricatas do humano. É preciso tecer um corpo proporcional e harmonioso como
o corpo do ser humano saudável (Será? Aqui resta ainda uma dúvida, mas sigamos…).
Existe um modelo de boneco que vem sendo produzido nas escolas Waldorf brasileiras em
que as crianças tecem uma roupa e depois são costurados mãos, pés e cabeça. Em alguma
delas, as professoras não deixam as crianças participarem de partes do processo, pois consi-
deram as imagens fortes demais para a alma das crianças. Por isso, os pais são convocados
a trabalhar. Este fazer se dá geralmente no final do ano, quando as crianças conseguem
(muitas com ajuda da professora ou das “fadas”) terminar as vestes. É um processo que,
para algumas famílias, é feito com leveza e alegria, porém, para outras, causa estresse e
tensão em “ter de fazer” a tarefa com prazo sempre apertado. Com tudo isso em mente,
estava muito insegura em iniciar o trabalho com a minha primeira turma de terceiro ano.
Como dar uma tarefa tão complexa em uma turma que não havia sido introduzida no
tricô anteriormente? E ainda com três alunos novos? A receita era cheia de aumentos e di-
minuições e não me agradava estética e conceitualmente. Queria tecer um corpo, não uma
roupa! Pensava maneiras de transformar este fazer possível para as crianças do início ao
fim. Não queria deixar tarefas para os pais, não me agradava pensar em todo o estresse das
famílias… Queria que fosse um projeto gostoso de se fazer. Será que seria capaz de fazer
uma receita própria? Já estava prestes a desistir do projeto quando a professora do primeiro
ano da escola me mostra o seu boneco de tricô feito no curso de Pedagogia Waldorf. Lindo!
Ainda que, com roupa tecida, pouca pele... Pedi-lhe a receita e a adaptei para um corpo nu.

COR DE PELO OU DE PELE


Chegamos ao fio do trabalho manual do terceiro ano: o fio industrial em pura lã. No cen-
tro da nossa roda, distribuí diversas meadas em tons que se aproximavam dos tons de pele
e cabelo humanos. Enquanto as crianças transformavam as meadas em novelos, conversá-
vamos sobre a variedade de tons, qual se aproximava mais do nosso e percebíamos a mul-
tiplicidade de cores dos corpos e pelos da nossa escola. “Cabelo é pelo, não é, professora?”
“Então a lã é o cabelo da ovelha!” Cada criança escolheu um novelo para tecer aquele que

474
seria o seu boneco. Tínhamos passado a época anterior trabalhando a imagem do pastor
e suas ovelhas neste movimento amplo dos braços. Naquele momento, trouxe a imagem
do cajado – nossa agulha de tricô. A cada dia, ou carreira, as ovelhas subiam a monta-
nha para comer o pasto verde do vizinho, tecendo em ponto tricô ou ponto montainha e,
no seguinte, o pastor voltava com o rebanho para casa, tecendo em ponto meia que faz o
desenho do V. O trabalho intercalado em subir a montanha e voltar com rebanho traz o
conceito do lado “avesso”. Depois caberá a cada um deles escolher o lado que ficará para
dentro e qual ficará para fora, conforme o senso estético individual. Impressionou-me a fa-
cilidade da turma, em geral. em aprender o tricô com a agulha nº 5, pois, em sua maioria,
as crianças deslancharam a trabalhar. No início, alguns relataram dores de cabeça, mas,
com o tempo, as reclamações se diluíram. Os alunos novos também foram uma surpresa.
Um pela rápida entrega e desenvoltura manual. Vindo de uma escola tradicional, forçava
um ar de “bad boy” no coletivo, mas que não colava na minha aula. O mesmo menino, que
lembrou da avó com o tricô de braço, se mostrava um doce de menino com um par de agu-
lhas na mão. E mesmo após ter quebrado o braço, queria seguir trabalhando. Uma aula
até brincamos de tricotar em conjunto, pois, nas primeiras semanas, ele não podia mover
nem braço, nem ombro. Ainda com o braço engessado, trabalhava com o tricô com velo-
cidade que impressionava. O ponto mudou: no começo era apertado e depois ficou mais
solto. Adorei acompanhar o seu processo! Havia outro menino novato que me preocupava.
Passara uma época do tricô com muita dificuldade para o tecer e não tinha referências na
casa para auxiliá-lo. A mãe até animou aprender, mas não conseguimos combinar um en-
contro. Com ele, tive que voltar ao processo do primeiro ano: cardar a lã bruta e tecer o tri-
cô nos dedos. Voltou às agulhas mais calmo e me surpreendeu ao tecer mais de um dia na
mesma aula. Quase um milagre da lã. Alegrou-me imensamente o dia em que o professor
de classe também quis aprender o tricô e fazer o seu boneco. Ele estranhou o clima na sala.
“Parece que estão tricotando mesmo”, comentou na saída. “Deixo conversar, mas muitas
vezes o silêncio se apresenta sozinho. Eles estranham o silêncio e muitas vezes cantam para
descontrair.” A questão do gênero se apresentou naturalmente na aula: ss crianças queriam
saber se o boneco seria menino ou menina. Uma delas disse que poderia ser os dois, pois
não havia diferença. Outra respondeu que a diferença era o corte de cabelo. Ao lado dela,
outra afirmava que era a roupa. Todos se olhavam… não... não era a roupa... O rosto
de um fica corado, a boca de outro se cala e com ela a questão se encerra com a mesma
naturalidade com que se iniciou. O tricô seguia e novas questões surgiam: “Quanto tempo

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vamos demorar para fazer?”; “Posso levar pra casa para continuar?”; “Minha mãe quer
aprender a fazer o tricô comigo”; “Não tenho tempo para fazer tricô em casa, pois tenho
agenda cheia durante a semana e no final de semana quero brincar”. Tenho alunos que já
teceram 50 dias; outros, 7 dias. Cada um ao seu tempo vai seguindo o seu bom trabalho.
Já vislumbro belos corpos tecidos até o final do ano.

SOBRE CORPOS E MUNDOS

Será que é o mundo ou sou eu?


Será que sempre foi assim
e somente agora percebi?

Quero me colocar na vida,


exponho e imponho minhas vontades.
Eu grito, eu brigo! Exijo e quero.
Por outro lado, ando sensível demais,
com medo e quero me fechar.

Visto meu manto de invisibilidade,


acocoro-me num canto e choro.
Meu mundo caiu,
minha alma está nua.

Já não bastam mais as vestes


ou o cabelo tentando esconder o rosto.
É preciso tecer nova pele.

Tecer e pensar maneiras de me alinhar.


Tecer e sentir o processo.
Tecer e querer seguir em movimento.
Tecer um corpo novo para chamar de meu.

Pele tecida.
E agora?
Como habitar um corpo outro?
CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Senti que o tempo é apenas um fio.


Nesse fio vão sendo enfiadas todas as experiências
de beleza e de amor por que passamos.
Aquilo que a memória amou fica eterno.”
Rubem Alves

O gérmen deste artigo está na observação e na busca de uma mulher por um brincar mais
rico para o seu filho recém-chegado. O título é uma “resposta” às inúmeras provocações
vindas das oficinas de Bonecas Waldorf e dos encontros de artes-manuais para educação.
Nesses espaços, a mãe-artífice é estimulada a pensar sobre a qualidade dos materiais utili-
zados atualmente na confecção dos brinquedos infantis. Se o brincar é urgente, é preciso
rever a matéria-prima dos brinquedos.

Quais materiais proporcionam vivências táteis vivas, ricas de significados, plenas de senti-
do? Como pode a criança ter vontade de brincar com a lã? O que faz uma criança de sete
anos olhar para um punhado de lã e desejar tocá-la? Como o movimento do tecer é capaz
de resgatar uma memória? O que pode um boneco? O que faz uma criança de nove anos
desejar tricotar no carro a caminho da escola ou no intervalo do recreio? O que sustenta
essa necessidade de seguir trabalhando? Neste artigo, algumas pistas são dadas. Para
apreendê-las, é preciso estar atento ao tempo e às relações afetivas.

Nas vivências das artes-manuais, não é o chronos, e sim kairós, que rege. Dar este outro
tempo às crianças e possibilitar um espaço para suas singularidades é salutar. Como disse
Rubem Alves, “O tempo pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser me-
dido com as batidas do coração.” (ALVES, 1999, p. 35). É preciso, por isso, proporcionar
o tempo para respeitar os afetos, para que as vivências interiores possam se mostrar: o que
aumenta e o que diminui a potência das crianças.

Steiner afirma que o sentimento é o meio pelo qual o conceito obtém inicialmente vida con-
creta (STEINER, 2000). A narrativa através de imagens é uma ferramenta que favorece
esse espaço de respiro ao longo do percurso, além do olhar acolhedor do educador. Co-

477
nhecer o caminho da lã, da ovelha ao fio do trabalho manual, revela às crianças que a vida
é um ciclo: com começo, meio e fim. E cada processo precisa de determinado tempo para
ser realizado, contrastando com a realidade consumista na qual o imediatismo prevalece.

As ações deste brincar - lavar, esguedelhar, feltrar, fiar e tecer - estimulam os sentidos e
aqui abre-se uma janela para uma investigação futura. A lã não é neutra; tem cheiro, cor,
peso, textura na sua forma bruta, o que pode gerar tanto antipatia quanto simpatia nas
crianças. Ao longo do processo de beneficiamento, essas características se alteram, abrin-
do espaço para novas possibilidades de interesse por parte daqueles que antes resistiam à
aproximação. A frustração também se fez presente no percurso, pois aprender a lidar com
a lã é de grande valor especialmente para os menores.

Outra qualidade da lã é a sua versatilidade. Através dessas experiências de grande im-


portância pedagógica, os processos do fazer manual são valorizados e há múltiplas pos-
sibilidades de devires do velo às crianças, além de propiciar uma relação afetiva com o
material. Mesmo as crianças que nunca tiveram a oportunidade de observar uma ovelha
no campo, através desse contato com a fibra viva, podem vislumbrar a ovelha onírica.

O artigo, em suma, apresentou três territórios de vivências nas artes-manuais com as


crianças: a casa, a oficina e a sala de aula. O ponto em comum das vivências dentro ou fora
da escola é que as ações deste brincar com a lã geralmente remetem a histórias afetivas.

Nas oficinas, apesar de o vínculo entre as crianças e a educadora geralmente ser inexis-
tente, era natural que surgissem narrativas de memórias por parte delas logo no encontro
das mãos e do material. O interesse despertado pela lã é o mesmo percebido nas aulas
semanais ou nos fazeres na casa. Em todos os ambientes, há curiosidade nas crianças
de sete anos. Permeadas de fantasia, devaneiam expectativas do fazer com a lã, sonham
cardar nuvens gigantes para voar mais alto, imaginam os carneirinhos. As mais acordadas
já vislumbram o tecer de blusões para o inverno com um brilho no olhar. Já as de nove
anos são mais pragmáticas e, apesar de aceitarem a história do pastor e suas ovelhas, já
sabem o que estão fazendo, que as ovelhas são os pontos de tricô e os dias, as carreiras.
No entanto, ainda se deixam levar pela narrativa.

478
Na escola, é a frequência dos encontros que permite a criação de vínculo entre educa-
dora-aluno. A partir dessa conexão, os espaços de vivências transbordam para além da
escola. Brota o desejo da criança de seguir o trabalho em casa. Algumas são capturadas
pelo fazer e tricotam nas horas vagas, no recreio, na casa, no carro a caminho da escola.
Seguem a aventura do pastor, querem saber onde esta história termina! Quando encon-
tram a professora nos corredores da escola, contam dos dias de pastoreio.

Dentro da escola Waldorf, a maioria das famílias valoriza o trabalho manual. Muitas mães,
avós e alguns pais ainda mantêm viva a cultura do fazer com as mãos. No entanto, nem
todas as crianças encontram na casa tempo e espaço para esse trabalho. Na casa, os gestos
dos adultos são estímulos para a produção da criança, mas o contrário também acontece.
Algumas famílias acolhem esse desejo e se inspiram pelo movimento gerado pelas crian-
ças. Frequentemente, chegam relatos dos processos que transpassam as experiências em
sala de aula. Processos que reverberarão nas suas vidas no para sempre da infância.

Assim, as vivências com a lã permitem desenvolver caminhos perceptivos que


propiciem o desenvolvimento cognitivo, afetivo e volitivo da criança através da integra-
ção do trabalho manual e dos processos de fazeres coletivos e compartilhados com este
material vivo. O que acontece nas vivências com a lã é a produção de memória afetiva.

REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Do Universo à Jabuticaba. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010

ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. Campinas: Papiros, 1999

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PAS-


SOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do Método da Cartografia. Porto
Alegre: Sulina, 2009.

479
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WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

480
Artes-manuais:
Experimentação artística
para composição
de outras linguagens
por Lara Arce

RESUMO
Este artigo pretende desvelar um caráter artístico das Artes-Manuais. Descreve uma expe-
rimentação que parte da manualidade e compõe processos com enfoque em outra lingua-
gem artística, a linguagem audiovisual cinematográfica. Trata-se de uma peça de crochê,
elaborada com o mesmo caráter experimental, utilizada para a promoção de um exercício
gerador de relações entre a peça, os atores, os produtores e os espectadores da obra final,
tendo por produto o curta-metragem. Uma expressão de um impulso arte-manual que
movimenta signos e significações, gerando um sequencial de cocriadores artísticos.

Palavras-chave: Artes-Manuais. Experimentação. Crochê. Cinema.

481
INTRODUÇÃO
Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto

Esta experimentação teve início na especialização em Artes-Manuais para Educação,


em que me indaguei sobre qual seria o caráter artístico das Artes-Manuais: “Para alcan-
çar uma expressão artística, que caminho devo seguir?” (ARCE, 2018, p. 13). A pesquisa
realizada se concentrou na cartografia do fazer manual (o crochê) e a interação desta
manualidade com as pessoas, o que resultou na construção de uma escrita poética para
a efetivação do trabalho de conclusão de curso.

O intuito, no presente artigo, é utilizar a peça de crochê elaborada na especialização


como objeto impulsionador de um fazer artístico na composição de outra linguagem
também artística, neste caso o cinema.

482
Ao dar continuidade no exercício da experimentação, busquei como metodologia, na
construção da linguagem cinematográfica, dar enfoque às Artes-Manuais. Para tal,
trouxe a peça de crochê - objeto impulsionador - para o primeiro plano da cena, o que
permitiu, no processo de criação do filme, o máximo de interação entre as pessoas en-
volvidas, já que acolheu os impulsos e as interpretações do significado das imagens
geradas para a constituição do todo. Houve também o acolhimento das situações que
se apresentaram durante o processo. Como resultado, faço a apreciação de alguns dos
depoimentos do público após assistirem ao filme.

2. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO FILME


Descrevo como se desenrolou o processo de construção do filme a partir das peças
criadas e experimentadas anteriormente na composição da escrita poética.

O primeiro grito de galo que se lança para os outros galos.

O impulso inicial para a construção do filme foi dado durante a contemplação do traba-
lho do artista plástico Rodrigo D’Alcântara, em seu filme “Capikarã”. Senti o desejo de
compor o filme, pois vi nessa linguagem a possibilidade de unir as três peças manuais
que construí na primeira etapa da minha pesquisa, “Ouroboros”, “Dafne” e “Casulo”. En-
trei em contato com o artista que transita com seu trabalho pelo universo LGBT. Teria
então, como primeiro desafio, trabalhar com uma temática da qual não tenho aprofunda-
mento. No entanto, o artista não tinha a disponibilidade para participar do projeto.

Após esse primeiro impulso, a vontade de experimentar a linguagem cinematográfica


permaneceu viva. Vislumbrei um novo roteiro e pensei em algumas pessoas que pode-
riam me apoiar nessa experimentação: o ator e bailarino Jorge Dupan; o cinegrafista
André Luís Abrahão e a artista plástica Thelma Mello que aceitaram participar da exe-
cução do projeto.

Para outros galos.

Escrevi o roteiro para as três peças e entreguei ao cinegrafista. Era a descrição de uma
sequência de imagens, sem texto e sem música. Meu objetivo era criar uma sequência

483
de imagens que, por si só, permitissem ao apreciador interpretar e inferir significados e
sensações particulares, sem direcionamento de leitura. O cinegrafista ficou bastante in-
comodado com a falta de direcionamento de enredo no roteiro e insistiu que eu deveria
aproveitar a oportunidade para dizer algo ao espectador. Foi necessário convencê-lo da
minha intenção de permitir que a “coisa” se fizesse por si só. O exercício seria o fazer e
à medida que as leituras fossem surgindo verificaríamos as possibilidades e caminhos,
nos adequando para que uma história pudesse surgir num exercício de flexibilidade.

Para outros galos.

Duas das peças então foram entregues ao ator e bailarino, sem muitas explicações. Mi-
nha intenção era a de que ele convivesse com elas, se afetasse e criasse um corpo a partir
do seu manuseio. Essas peças foram entendidas por ele como um figurino que não se
adequavam, que não podiam se vestir. Encaminhei então o roteiro de cenas e a primeira
mensagem que ele me enviou foi: “Bom dia, não tenho como vestir seus figurinos. Você
tem de pegar de volta pra terminá-los e fazer os ajustes necessários”. Sobre a segunda
peça, “Dafne”, Jorge Dupan me escreveu: “Essa segunda peça não tenho ideia de como
vestir! Me fala um pouco dela e o que você quer do personagem. Quem é ele? Temos
que amadurecer isso”. Chamou as peças de “roupa” e conseguiu pensar numa compo-
sição com peruca e botas. Pensou também numa função social crítica ao militarismo.
Viu também a peça como um tapete com corcova, figurino objeto que se deve inserir no
corpo: “Coloquei-o nas costas como um dromedário, não sei o que fazer com ele”. Disse
que ficou cheio de ideias e ansioso.

No dia da gravação, durante a caracterização do personagem, Thelma e eu não tínha-


mos um desenho a seguir. A preocupação era com a sustentação da peça aderida ao cor-
po de Dupan , através dos fios em amarrações, e lhe dar condições de movimentação.

A teia tênue se tecendo entre todos os galos.

Fizemos a gravação das cenas com a primeira peça, mas o tempo foi se estreitando e
se tornou inviável reunir a equipe toda novamente para realizar as gravações das cenas
com as outras peças.

484
Na tentativa de resolver o problema, assistimos às cenas gravadas e vimos que tínha-
mos material suficiente em qualidade e tempo, mas eram cenas soltas sem contexto e
sequência. Vimos a possibilidade de realizar interpretações de sentidos dos gestuais
com as imagens estabelecidas. Então o cinegrafista se propôs a realizar a edição e deu
ideias para a mudança do roteiro. Como os nossos encontros eram mais viáveis, ele
sugeriu que eu mesma fizesse as gravações como atriz.

Acolhido novo roteirista, novo roteiro e atriz, realizamos a segunda etapa das filma-
gens, trazendo sequência e ligação entre início, meio e fim.

Durante a edição das imagens, realizamos a limpeza, o enfileiramento sequencial do


que poderíamos usar e fomos buscando dar sentido às cenas através de uma leitura sub-
jetiva dos gestos nos seus possíveis significados. A música foi inserida aleatoriamente
e, em diversos momentos, se casava muito bem com o gestual das cenas em sequência.
E, assim, o filme foi concluído com duração de tempo superior ao planejado e com um
roteiro diferente do que foi escrito inicialmente.

3. DEPOIMENTOS DOS ESPECTADORES


“E se encorpando em tela, entre todos” os galos.

Com a exibição do filme, obtive alguns depoimentos de afetações que registro aqui.
Gestos foram destacados, a peça de crochê foi citada em suas significações, o fazer da
manualidade foi referenciado, houve comentários referentes à construção da história e
mergulhos mais profundos na existência. Surgiram também comentários de deprecia-
ção de si próprio.

Transcrevo parte destes depoimentos para registro:

“Cheio de simbolismo. Fiquei encantado. O bater os fios nas pernas me remete a


uma afirmação: ‘Eu vou, sou dona do pedaço’”.

485
“Não é o que vai ser nem o que fomos. Somos nós, agora”.

“Este filme mostra o poder que a gente tem de transformar as linhas”.

“Vou pela dedução sem base: entre o emaranhado das linhas e a delicadeza guar-
dada na caixinha, parece que você está buscando ficar bem resolvida. Só acho”.

“Me senti num emaranhado, como vivemos em nosso dia a dia, com tudo perfeito
ao nosso redor, essa natureza, essa bondade de Deus a nossa volta, e nós não en-
xergamos, não enxergamos nem dentro nem fora de nós. Senti até inveja daquela
cascável, daquela cobra... pela natureza, parecia que o animal peçonhento era eu e
não ela. A liberdade dos bichos, a comunhão com a natureza... Quando passa o ator
numa água límpida, dentro duma mata tão calma, tão tranquila e ele emaranhado,
tentando arrancar aquelas linhas, e eu dizia para mim mesma: ‘Tenho que tirar esse
emaranhado de dentro de mim pra eu poder enxergar a perfeição que está ao meu
lado’. Gostei do final, essa calma, esse lar, a representação da mulher, da construção
com o crochê, num fim de tarde, apreciando a natureza. Isso era o que deveria per-
manecer na gente desde o amanhecer até o entardecer, anoitecer, em todo o momen-
to em que nós temos posse da nossa consciência. Porque tudo é perfeito”.

“Me senti como se estivesse em momentos emaranhados da minha vida”.

“Por que é que eu não consigo ouvir uma sinfonia como esta quando meus fios
do tricô ficam emaranhados? Tenho uns ataques, uso a tesoura, um horror...você
mostra o lado bom do emaranhado e o uso destes pela vida”.

“O sacudir dos fios. Criar a música tem a ver com invadir espaços e corações,
mas o tecer vai vestir, vai cobrir e o som invade o espaço. Eu vi a necessidade
de todos os tipos de arte”.
“Me perdi no emaranhado de fios e quase fui engolida pela cobra que se engole
por pura falta de aptidão artística. Me senti meditativa”.

“Não entendi muito bem a história...sou leigo nesse assunto”.


“Muito cabeça pra mim”.

“O roteiro estimula minha imaginação”.

4. DEPOIMENTO EM DESTAQUE
Outros galos lançam seus gritos, que outras interpretações se façam.

Destaco este depoimento que recebi da amiga Renata Rocha Radicchi. Em verdade,
aqui temos a criação de um outro trabalho artístico, construído em outra linguagem,
que partiu da apreciação estética do filme. Compõe para mim o lugar da vontade e dos
impulsos que deflagram a importância da arte em sua capacidade de composição e co-
municação de alma, de essência, de vida. Adentrar a alma e mover afetos num impulso
criativo. Em sua mensagem, Renata usa a expressão “cascata de vontades que a arte
produz”. Desvela o lugar do fazer artístico e da contemplação artística. Ela escreveu
para mim: “(...)Tem sido minha descoberta transcender o concreto, utilitário. Tangen-
ciar algo que não se mede, que dialoga com força interior, da alma.” E me enviou um
conto de sua autoria que transcrevo aqui:

Era uma mulher jovem que morava em uma casa rodeada pelas
plantas que cultivava e pelos pássaros que viviam ali. Era esperta
e atenta, pois além de cultivar plantas, pomar e horta, cuidava de
uma cabra, suas seis galinhas e um coelho. Também sabia cortar
madeira e lixar, e foi assim que fez sua cadeira de descanso.

Numa visita a sua avó quis aprender o crochê. Pegou uma agulha
grossa de sua avó, um pouco de lã branca, um pouco de lã preta e

487
um pouco de lã azul e foi-se para a sua casinha. Lá começou a imi-
tar o jeito que sua avó fazia o crochê. Mexeu daqui e mexeu dali
até que acertou o primeiro ponto. Que felicidade! Depois acertou
mais um e assim começou a fazer os pontos e, de uma tira, começou
a uni-la a outra e resolveu mudar de cor e mudou de ponto e não
conseguia parar de tricotar. E crochetando, crochetando uma hora
parou. Olhou para a sua peça enorme de crochê, colorida de azul,
preto e branco e gostou. Mas a linha... agora estava toda embolada.
A jovem havia esquecido de fazer os novelos antes de começar. E
puxou uma linha pra cá, outra pra lá, fez força, sacudiu e nada
adiantava. Puxou tanto e tão brava que arremessou pra longe sua
peça e foi-se embora.

Um cachorro que passava por ali viu a peça, cheirou e lambeu:


“Nada bom pra comer”. Se encostou no tecido macio e resolveu des-
cansar antes de continuar a procurar sua próxima refeição. Tirou
um cochilo gostoso, que até esqueceu da fome. Levantou sobres-
saltado com o barulho de galhos e foi ver se não encontrava um
ratinho.

Passou então uma cobra muito grande e curiosa. Viu o buraquinho


da grande peça de crochê e nele foi entrando, procurando o que era
aquilo. E foi entrando, entrando, virou uma roupa! Como ficou fe-
liz a cobra com sua roupa colorida. E saiu a rastejar toda satisfeita.
Andou pela beira do rio em uma parte de areia fina e, ao descer
pelas pedras, o emaranhado de fios começou a se prender e a cobra
teve que se despedir de sua bela roupa.

Perto do rio, passou então um caçador que vivia sozinho há tempos


naquela região. Encontrou a peça de crochê e estranhou: “Como
poderia ter chegado até ali objeto feito pelas mãos humanas?”. Ele
achava que ali só viviam ele e os animais. Pegou a peça e levou para

488
seu acampamento. Era bonita demais para um tapete, mas estava
suja demais para um travesseiro. Então resolveu guardar nela a sua
espingarda. Com o tempo usou para outras coisas, fazer chá, corda
e balanço, até rasgar por completo e servir como uma bela fogueira.

A jovem moça, em todo esse tempo, nunca encontrou o caçador.


Mas, agora, crochetava em agulha fina rendas delicadas e belas que
guardava em seu pote para um dia jogá-las ao vento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta experimentação, as Artes-Manuais são geradoras da construção cinematográ-
fica, tanto como temática quanto processo. A peça feita de crochê em fio de malha é
trazida para um primeiro plano no roteiro do filme e, por meio da interação e afetação
com os envolvidos no processo do fazer, foram disparados os dispositivos da composi-
ção das imagens. As possíveis significações e caminhos da construção artística criaram
afetos e movimentaram pensares.

A interação com a peça de crochê foi definidora da forma dada durante o processo do
fazer, numa constante construção e desconstrução, num exercício de escuta das imagens
geradas pelo objeto e das suas significações na construção de um sequencial com sentido.

Além de viabilizar um processo de construção artística, a expressão cinematográfica foi


movedora até da expressão de outras linguagens artísticas por parte do espectador. O
objeto da manualidade foi tomado como movedor dos sujeitos que criam e que contem-
plam a criação artística.

Deu-se ao ato do fazer certa autonomia, e o resultado ficou melhor que o idealizado.

O impulso do fazer resulta aqui de uma contemplação artística que, por sua vez, propi-
cia um trabalho que gera no outro o impulso de uma nova criação.

489
O primeiro grito de galo são as peças de crochê, que se lançam para outros galos: a
apreciação, os depoimentos, a escrita do conto. Para outros galos: a linguagem cine-
matográfica, o roteiro, o figurino, a atuação etc. Tudo isso para construir a luz balão: a
manhã que se clareia, à medida que outros galos lancem seus gritos, que outras inter-
pretações se façam, que outras apreciações se deem.

REFERÊNCIAS
ARCE, Lara. Artes-Manuais: Experimentação artística para uma escrita poética.
Org. Ana Lygia Vieira Schil da Veiga. São Paulo: Círculo das Artes, 2018. (Coleção
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CAPIKARÃ, Rodrigo D’Alcântara. Residência Artística JBB. Julho/2019. Disponível


em: < https://www.youtube.com/watch?v=Xl0UHBX9FFE>

RADICCHI, Renata Rocha. Conto. Brasília. Não Publicado. Janeiro 2020. Contato:
rerocha09@gmail.com.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oli-
veira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 345. (Biblioteca Luso-Brasileira)

490
Bordado como
intervenção política:
Artivismo na universidade
por Isabella Maria Albuquerque dos Santos Carneiro

RESUMO
A pesquisa que será apresentada tem como base a “Antropologia através do corpo”, dis-
ciplina do curso de Pedagogia na UFF, lecionada pela professora Celia Gouvêa. As au-
las começaram na sala de aula, com um debate sobre o corpo, mais especificamente as
mãos. Considerando a conjuntura política naquele momento, tomamos a decisão das
aulas serem abertas ao público e sentamos na portaria do bloco, onde qualquer pessoa
poderia ter acesso. A prática do bordado se iniciou nesse contexto ao bordarmos uma
faixa para levar ao ato do dia 15 de maio de 2019, que era contra o corte de verbas da edu-
cação e questionava o uso da palavra “balbúrdia” para definir a educação pública. Além
disso, ocorreu um caso de abuso sexual dentro da universidade e, novamente, realiza-
mos uma intervenção artística dentro do prédio, bordando nomes de mulheres vítimas
de feminicídio com linhas vermelhas para representar o sangue que é derramado pelo
machismo impregnado na sociedade. Dessa maneira, o curso propiciou manifestações
artísticas e políticas usando nossos corpos.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Educação. Política. Bordado. Feminismo.

491
INTRODUÇÃO
O que é uma antropologia através do corpo? Como esse estudo perpassa o corpo? Não
seria toda antropologia uma vivência do corpo?

Quando fazemos esses questionamentos, podemos refletir também na separação cor-


po-mente, já que existe uma antropologia do corpo e através dele. Ao frequentar as au-
las de “Antropologia através do corpo”, como estudante de Ciências Sociais, esperava
produções escritas sobre esse corpo. Pensei em gênero, sexualidade, questão étnico-ra-
cial. E foi sobre isso, mas não no formato que esperava.

A academia e os processos acadêmicos são atrelados à produção textual, que, por sua
vez, assumem demasiada importância e o saber-fazer é deixado de lado. A proposta do
curso era de criarmos um entendimento através do que nós mesmas iríamos produzir.
Ao ter contato com essa possibilidade, minha mente teve um estalo: “Como, por todos
esses anos, vivi aprendendo sem realizar? Como eu nunca usei meu corpo?”

Isso se justifica porque em uma cultura hegemônica, etnocêntrica, vivemos uma reali-
dade que busca a docilização dos corpos: “É dócil um corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT,
1987, p. 157). O sistema educacional é voltado para o reforço dessa submissão, com to-
das as pessoas sentadas, enfileiradas, em silêncio. Sendo transformadas e aperfeiçoadas
para o mundo do trabalho, moldadas para um sistema disciplinado.

As aulas do curso, inicialmente, eram na sala de aula. As primeiras aulas foram em roda,
no chão, e produzimos nossos próprios cadernos. Esse foi um dos processos que pro-
vocou em mim o sentimento de pertencimento ao grupo. Produzir meu material trouxe
um sentimento de pertencimento e também de identificação. Não era um caderno com
meu nome escrito. Na verdade, era eu.

Em muitos momentos, inseguranças, oriundas de diversas meninas que compartilhavam


entre si que não sabiam como fazer. Afirmavam não ter habilidades manuais e que o resul-
tado seria ruim. A partir daí, foi questionado o que seria “ruim”. Os padrões estéticos são
impostos constantemente, a ponto da criatividade e liberdade de criação serem cerceadas...
A recomendação da professora Celia, titular da disciplina, foi que nos deixássemos levar...

492
Novamente, o molde acadêmico produz seres pensantes que não se permitem ter sensibi-
lidade. Falta-nos o sentir unido ao fazer. Por isso, produzir arte, ainda mais não padroni-
zada, dentro da universidade, é uma forma de resistência a várias determinações sociais.

Uma das atividades propostas, antes de começar o bordado em si, foi feita com nove-
los de lã. Após criarmos nossas próprias identidades individuais, pelo caderno, come-
çamos a desenvolver um coletivo. Com o novelo vermelho associado ao sangue, aos
corpos, fizemos leitura de trechos de um texto sobre bordar e linhas, e fomos nos en-
trelaçando pelas linhas físicas enquanto trocávamos de parágrafo e de leitor. Por fim,
emaranhadas, colocamos uma música sobre emaranhar e enrolar, e nos juntamos ainda
mais. Uma das meninas tinha um filho bebê, que também participou dessa atividade,
criando uma relação intimista entre o grupo.

O fato de nos organizarmos naquele espaço, nos tocarmos, sentir a linha pelos nossos
corpos, nos aproximou. Depois, descemos as escadas, como um corpo só. Nesse dia, nos
tornamos aranhas, mulheres aranhas, unidas pelas teias do novelo, para começar a pensar
no tecer, já que estávamos fazendo parte dele, tecendo com nossos corpos. A reação do
exterior era surpresa, curiosidade. Passeamos pela parte externa do prédio, até deixarmos
nossos emaranhados em uma árvore, ficando ali as teias que nos uniram fisicamente, nos
deixando o sentimento de união do que vivemos e passaríamos a viver juntas.

2 GÊNERO E BORDADO
A turma era composta predominan-
temente por mulheres. Apesar de
um ou dois homens matriculados,
eles frequentaram poucas aulas.
Isso nos fez desenvolver um debate
ancorado em um recorte de gênero.
Pensamos nossos corpos e limites,
inseridas em um sistema machista
e capitalista, que não nos respeita
no geral, principalmente quando se
trata do feminino e suas particulari-

493
dades, como menstruação, gravidez. Em muitos momentos, lembrávamos, enquanto
mulheres, a dificuldade de considerarmos nossas próprias limitações e a compreensão
de pertencimento sobre nossos próprios corpos.

Começamos a ter nossas aulas do lado de fora. A universidade é pública, mas o espaço é
hostil. A qualquer momento, teoricamente, qualquer pessoa pode entrar na sala de aula.
A problemática é que a construção do espaço e das pessoas não é convidativa. Ao come-
çar as aulas na parte externa do bloco, ganhamos visibilidade. O campus da UFF é fre-
quentado não somente por estudantes o que tornou essa decisão ainda mais importante.

Assim, na área externa, como tecedeiras, nos juntamos e iniciamos a prática do bordado.
Pensar o bordado como uma aula de antropologia, de certa forma, nos tira da zona de
conforto. O meio acadêmico nos mecaniza e dociliza ao usar nossos corpos e objetos que
estão ligados ao saber-fazer, que, muitas vezes, são deixados de lado. No primeiro dia de
encontro, na entrada do bloco de Pedagogia, foi levado um livro de bordado, simples,
com poesias. Foi possível sentir novamente a insegurança de quando fizemos o caderno...

Uma das propostas do curso, antes de começarmos a prática, foi de entendermos o “olhar
cego”, de Lygia Clark, para utilizá-lo em nossas atividades. E, na realidade, o “olhar cego”
não é utilizado por nós, como defende Godard (2006, p. 73), ele é “como se o mundo che-
gasse a mim tal como é”. E completa: “não é ligado à história do sujeito, que não funciona a
partir de uma interpretação e que não é tampouco um confronto entre um passado e uma
atualização do olhar – algo que seria um olhar mais ‘geográfico’”. (GODARD, 2006, p. 73)

Esse olhar é quase cru, ele se permi-


te. Atravessar o corpo antropologica-
mente é se permitir sentir, viver e ser,
sem pré-julgamentos. Por isso, nosso
bordado é proposto para ser, sentir.
Retomo a questão do saber-fazer: a
mente está ligada às mãos, essas mãos
produzem e sabem. Não pensamos
somente com a cabeça, todo nosso
corpo produz um conhecimento e
possui um saber. Uma grande parte de nós chegou ao bordado com o olhar cego e
quem já tinha vivência se propôs a tentar reconstruir. Poderíamos costurar o que qui-
séssemos, da forma que achássemos melhor. Com base no livro, observamos alguns
pontos que nos inspiraram a criar, utilizando nossas teias.

Assim, não há como não retomar à questão de gênero, que sempre esteve presente, no
sentido de pensar no tecer como uma atividade atrelada ao gênero feminino:

No vínculo invisível percebemos a história de opressão e resistência do tecer. Vio-


lência e opressão ao ser utilizado pelos patriarcas como um instrumento de domes-
ticação e silenciamento de mulheres. Histórias de domesticação que guardamos
na memória do espaço doméstico e do labor cotidiano. Muitas das vezes o tecer é
cúmplice. (GUIMARÃES, 2017, p. 36).

Mariana Guimarães traz uma perspectiva do bordado entre casa, corpo e obra. As re-
lações que a escritora faz com a casa me remeteu ao estudo da “Casa Kabyle”, de Pierre
Bourdieu. Este a analisa de acordo com os gêneros, sendo cada parte da casa voltada
para o masculino ou feminino. No caso de Guimarães, o espaço doméstico remete ao
espaço feminino como um todo. Bourdieu traz que, a cozinha, por exemplo, é um local
“feminino”. Além disso, ele menciona o tear em que

toda a vida da menina se resume de certo modo nas posições sucessivas que ela
ocupa simbolicamente em relação ao tear, símbolo da proteção viril: antes do ca-
samento ela se situa atrás do tear, em sua sombra, debaixo de sua proteção, da
mesma forma que está colocada debaixo da proteção de seu pai e de seus irmãos;
no dia do casamento, ela está sentada na frente do tear, dando lhe as costas, em
plena luz; a seguir ela se sentará para tecer com as costas para o muro da luz, atrás
do instrumento. (BOURDIEAU, 1999, p. 149).

O sistema patriarcal trata as produções de tecer, costura, tear como algo atrelado ao es-
paço doméstico. Os rituais são diferentes, as falas podem ser diferentes, mas a essência
se mantém. Pensando em tudo isso, Mariana Guimarães vai tratar o bordado como algo
também político. A problemática não é sobre ser atrelado ao feminino, porque o feminino
é algo bom. É sagrado, é sensível. Mas como tornar essa linguagem do bordado qualifi-
cada e politizada, deixando de ser algo submisso e atrelado ao doméstico para o público?

495
2.1 A POLÍTICA DO BORDAR
Após essa aula em que bordamos com linhas e agulhas, o presidente da República Jair
Bolsonaro fez uma declaração que a universidade pública é sinônimo de “balbúrdia” e
anunciou corte de verbas para a educação. Em seguida, foi declarado um ato político, na
Candelária, para reivindicar os direitos da universidade pública. Nesse momento, po-
demos dizer que de fato exercemos o “artivismo”, como aponta Augusto Boal. O autor
traz uma perspectiva de arte como ativismo político, na sua manifestação teatral. Como
diria Boal, a arte é política, nos fazendo ver e sentir o mundo de forma não hegemônica.

Portanto, para o dia 15 de maio de 2019, dia do ato a favor da educação, decidimos fa-
zer uma faixa, a mão, bordada, reivindicando nossos direitos enquanto estudantes da
educação e bordadeiras. Naquele momento, nos sentimos potentes, políticas, fortes.
Juntas, mulheres, nos unimos pelos nossos direitos enquanto estudantes em defesa da
educação pública.

Para a produção da faixa, utilizamos retalhos, cola, tesoura e bordado. Cada uma assu-
miu uma função e, muitas vezes, trocamos de função entre nós. Manipulamos diversos
materiais, diferentes texturas e cores. Pudemos sentir a arte que produzíamos, ver e
criar. Tudo o que fizemos foi carregado de sensibilidade. Fomos decidindo qual seria a
melhor forma para fazer uma faixa resistente, legível e significativa. E o principal disso
é que, quando concluída, levamos a faixa às ruas, exercendo nosso direito de protestar
por meio da arte, com a frase que nos representava: “Tecendo nossos direitos”.

496
Após esse processo intenso é possível afirmar como toda essa construção do curso foi
criando uma identidade política coletiva. A partir daí, ficou cada vez mais clara a rela-
ção da arte com a política. Um destaque ao fato de que, dentro da sociedade patriar-
cal, machista, a competição entre mulheres é extremamente incentivada. Mulheres se
entrelaçando a outras mulheres, com essas teias, materiais e imateriais, é mais um ato
político. Estabelecer esse coletivo e uma rede de apoio é um posicionamento feminista.
A cada encontro, nós nos uníamos mais e costurávamos além do tecido: nos costuráva-
mos umas às outras, nos remendando e nos fazendo mais fortes.

Também criamos nossas identidades


próprias nesse processo, nos descobri-
mos. Uma ressalva para quando a pro-
fessora Celia não pôde ir ao campus e
organizamos a aula entre nós. Sua pre-
sença é de extrema importância para a
construção das atividades, mas man-
ter uma aula, como um grupo, mostra,
primeiro, que a educação não é hierár-
quica. Estamos ali para construir um
espaço, desenvolver juntas. Segundo, é
muito simbólico uma das alunas, Shir-
ley, orientar a aula baseada no seu saber-fazer. Ela é uma artista manual, auxiliou muito
na parte do bordado e sugeriu uma aula para produzirmos estandartes. Ali, criamos uma
personalidade artística individual, como no caderno, sempre uma ao lado da outra. Esse
momento de compartilhar materiais e afetos culminou em diversos trabalhos lindos, cada
um contando sua história pessoal e, ao mesmo tempo, se entrelaçando no coletivo.

No fechamento do semestre, ocorreu um caso de abuso sexual em um dos blocos da UFF,


que foi descoberto por conta de menina ter sido encontrada desacordada e as câmeras
terem registros. Isso nos gerou, enquanto mulheres estudantes, um impacto muito gran-
de. Na sociedade, já é difícil se sentir segura, entretanto, há espaços que nos propiciam
maior confiança e temos a ilusão de que a universidade é um deles. Isso tudo nos gerou,
enquanto coletivo, mal-estar, tristeza, nervosismo e indignação. Por isso, mais uma vez,
tomamos iniciativa de intervir, politicamente, em um espaço público.

497
Juntamos retalhos vermelhos, como o sangue, da menstruação, do corpo, da dor, linhas
vermelhas, cartazes e nos organizamos para fazer uma manifestação artística pela UFF.
Em um tecido, bordamos, cada uma, o nome de diversas mulheres que foram vítimas
de feminicídio: Marias, Julianes, Claudias, Marielle, Luana Barbosa, Margarida Al-
ves, Heley de Abreu, Maria da Penha, Susy, Eloras e Elira. No final dos seus nomes,
fizemos um trançado, também vermelho, que escorria até o chão, como o sangue que
foi derramado injustamente.

Em outros cartazes, escrevemos e desenha-


mos (ainda que escrever também é uma for-
ma de desenhar) frases que são comumente
escutadas por mulheres no cotidiano e colo-
camos uma caneta ao lado para que, quem
passasse por ali, pudesse escrever algo para
externar sua indignação. Criamos assim
não só uma manifestação política, mas de
quem tivesse passando. Quem visse, pode-
ria fazer parte desse nosso coletivo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Viver a antropologia através do corpo foi
uma experiência inimaginável dentro do
contexto universitário. Parece óbvio que a
antropologia deve passar pelo corpo, mas
possuímos um modelo de sociedade no
qual perpassar o corpo é inexistente. É sur-
preendente como esse curso me atravessou
e me fez questionar: “Como estudar se não
for através do meu corpo?” Isso porque nós
somos, afinal, nossos corpos.

Falta, na educação, desmecanizar os pro-


cessos de aprendizado. É possível sair da
prisão da sala de aula. Sair dessa bolha é um ato político dentro do sistema. Não que
a sala de aula deva ser condenada, mas falta, em muitos momentos, explorar outros
ambientes e possibilidades criativas.

Todo o processo do bordado trouxe sensibilidade para quem esteve nesses encontros,
mostrando a possibilidade de um emaranhado de mulheres, unidas, combatendo as
condições políticas vigentes do momento atual em que vivemos.

Os afetos trocados, quando se utiliza o corpo, as mãos, os movimentos, as teias, são úni-
cos e essenciais para mudar a perspectiva daquilo que vivemos. Quando terminamos as
aulas e nos encontramos para falar sobre as nossas experiências, era quase unânime o
sentimento de que o curso foi um momento de reflexão, leveza, sentimento.

Bordamos em tecidos, nos emaranhamos entre nós com linhas. Costuramos e tecemos
nossos direitos.

REFERÊNCIAS
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BOURDIEU, P. A casa kabyle ou o mundo às avessas. Cadernos de Campo (São


Paulo 1991), v. 8, n. 8, 30 mar. 1999, p. 147-159.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde


Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.

GODARD, Hubert. Olhar cego. Entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik.
In: ROLNIK, Suely. (Org.). Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde.
A você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006a, p. 73-80.

GUIMARÃES, Mariana. O fio como paisagem na mediação casa, corpo e obra. In


Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 2017, Campi-
nas. Anais do 26º Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, 2017, p. 2511-2524.

499
artigo publicado conforme redação original

Subsistindo,
superando,
existindo:
A mão que tece o fio
que tece o mundo
por Néria Lima de Souza

RESUMO
O objetivo desse trabalho é observar de que forma as artes manuais e suas múltiplas
modalidades no manuseio dos fios podem atuar como um fator de auxílio e cuidado,
visando à autoestima de pessoas. O cotidiano contemporâneo valorizando o ter em
detrimento do ser, não consegue apagar de vez a lembrança de nossos ancestrais no
trabalho das mãos com os fios, não importando a técnica. A arte de tecer o fio subsiste
ao tempo, à automação e às relações de obrigatoriedade com o consumo. A pesquisa
procura dar ênfase a uma possível construção de vida mais leve, mais interessante,
utilizando mãos e fios como instrumento de trabalho e lazer. Propõe organização de
pequenos grupos que de modo continuado concentrem-se na alteridade como um bem
a ser explorado, para a construção de um mundo melhor.

Palavras-chave: Fio. Mãos. Cuidado. Alteridade. Mundo.

500
INTRODUÇAO
O mundo contemporâneo torna-se cada vez mais preocupante, quando se busca a me-
lhor forma de contribuir para que, pelo menos até onde possam alcançar os olhos, vidas
possam caminhar em harmonia. Fala-se muito em poder. Onde está o poder?

Parece estar na confortável sensação vivida por pessoas que tem ao seu alcance tudo o
que o dinheiro pode comprar. Tudo parece estar muito perto de suas mãos. Poder signi-
fica possuir. Quanto mais “ter” mais “poder”. Possuir coisas, pessoas, territórios... Quanto
mais, mais. O dinheiro em primeiro plano, e em seguida todas as coisas que representam
a sua imponência. O consumo exacerbado, casa, carro, joias, roupa de marcas famosas
viagens internacionais... Tudo seria bom se esta relação não se tornasse perigosa e fizes-
se brotar sentimentos como ostentação, egoísmo, mesquinhez e desprezo pelo outro. A
sensação de poder pode gerar um ser tirano. De si mesmo e dos outros.

As artes manuais, no entanto, seguem na contramão com a beleza de seus fios e suas
cores trançadas, entrelaçadas, costuradas, bordadas, tecidas, cortando o tempo. Ela-
borando e tecendo ideias, revendo e refazendo sentido na trama da vida.

Vive-se com, vive-se para, vive-se em torno... É mister suscitar vida.

DESENVOLVIMENTO

O fio
Seu conceito abrangente explica que por si só ele pode ser apenas fibra longa, delgada
e retorcida de matéria têxtil (cânhamo, algodão, linho, seda...) ou mesmo a direção das
fibras de madeira. Pode ser fio de fibra natural ou sintética, usado na fabricação de te-
cidos com os quais se confecciona roupas, artigos de cama e mesa, panos para limpeza
e ainda, lembrando-se de sua utilidade medicinal, na confecção de ataduras, gaze para
curativos... Porém a intenção aqui não é revelar a indústria têxtil no emprego desta
matéria primordial e sim descrever sobre a beleza de seu emprego nas artes manuais
e sobre como ele, um elemento genuíno, se torna extremamente relevante na transfor-
mação tanto dele mesmo como fio, quanto na transformação de pessoas que o tecem.

501
“No tear que tece a nossa vida, não há pontas soltas. Todos os fios
estão entremeados entre si e revestidos de significado”. (Holic)

“A linha que tece a vida é também a que manobra o tear do caminho.


Somos tecelões de nós mesmos. O estranho é não termos o controle
da agulha. O destino vai criando traços e formas, contudo não termin
a no final. Deixe o fiar dos fios te surpreender, até alcançar
o colorir da alma, fio a fio.” (Higor Edward)

“Somos sempre obras em andamento, e linha entre linha tecemos


o tecido da vida.” (Marissol Melo)

“A linha que borda sonhos, é a mesma que costura a vida.” (Edna Frigato)

Tecer os fios esteve desde sempre presente no cotidiano da humanidade. O homem ini-
ciou o trançar e entremear fibras fazendo cestos e descobriu que poderia utilizar outros
fios como algodão, linho e lã da mesma maneira, no vestuário. Assim, esticando esses
fios amarrando-os entre uma árvore e seu corpo, alternando a trama, inventou o tear.

De lá pra cá, em sua trajetória, o tear sofreu diversas transformações pelo aparecimento
de novas tecnologias. A indústria, praticamente, tomou a automação como regra de
eficiência, supervalorizou a produção, aumentou o consumo, a disputa e a concorrên-
cia nos negócios. O trabalho de artesãs agora de somenos, torna-se ineficiente para
a produção de riqueza imediata. Seu conhecimento reduzido ao domínio da técnica,
limitando seu campo de atuação e criação ao conhecimento objetivo, prático e produ-
tivo das máquinas e da força masculina.

O fio feminino
Em todos os povos, de diferentes culturas, tecer o fio era um trabalho feito basicamente
por mulheres. A elas eram dadas a arte do cuidado, não somente com a casa criando
peças de uso pessoal, mas contribuindo também para a comunidade onde viviam. Sepa-
radas dos homens, elas se reuniam para tecer, bordar, costurar, cantar, contar histórias,
suas e de outras mulheres, criando e dando asas à imaginação. Pelo menos em sua pro-
dutividade podiam se sentir longe das repressões e produzir com liberdade suas criações.
De interesse do patriarcado, esse cuidado feminino com a casa, a família, muito valoriza-
do e até mesmo exaltado, camuflava a intenção e a maneira como se exercia a autoridade
e o controle dos homens a exigirem a obediência das mulheres. Até mesmo a autorida-
de religiosa, nos séculos XII e XIII, se fazia presente. “A moralidade cristã foi a principal
influência na formação do “homem” existente no artífice cristão urbano. [...] a doutrina da
Igreja considerava o tempo livre uma tentação, o lazer, como um convite à indolência. Esse
temor aplicava-se particularmente às mulheres. [...] Os patriarcas da Igreja consideravam as
mulheres especialmente tendentes à licenciosidade sexual se nada tivessem para ocupar as
mãos. Este preconceito deu origem a uma prática: a tentação feminina podia ser combatida
através de um artesanato específico, o da agulha, fosse na tecelagem ou no bordado, man-
tendo permanentemente ocupadas as mãos das mulheres.” (SENNETT, 2019, p. 70-72).

As artes manuais eram enaltecidas como profissões de domínio material, intelectual e


moral exercida pelos homens, as quais as mulheres não tinham acesso. Torneiro, car-
pinteiro, marceneiro, etc... Nessa ocasião a educação nas escolas era voltada para uma
formação masculina e com rigor, ensinava que o artesanato devia levar em consideração
as capacidades mentais e físicas e desse modo exercer influência física e psicológica.
“O trabalho manual não devia ser realizado nem mecanicamente, nem artisticamente,
mas devia reter seu objetivo pedagógico continuamente, ou seja, o desenvolvimento
dos olhos e do senso de forma, e a provisão de uma destreza manual geral e não de uma
habilidade particular e persistente...” (BENNETT, 2015, p.62,63).

Atualmente, apesar da criação do tear mecanizado e o fiar e tecer passarem a ser tam-
bém comum aos homens, ficou registrado na história da humanidade que esta ativida-
de está ligada ao universo feminino e suas diversas formas de expressão.

Além de sua importância histórica, as artes manuais com o fio alcançaram outros valores
e se tornaram universalmente reconhecidas. Martins (1973) apontava sobre o crescimento
das praticas artesanais no mundo, apesar da globalização e do fortalecimento da indústria.
A autora observou que duas questões exerceram influência sobre esse acontecimento:

• As sociais: possibilitando pessoas conseguirem melhores condições de vida,


por meio de seu trabalho; transformação nas situações de desemprego em que o
trabalho manual pode ser considerado elemento de equilíbrio, fator de coesão e
paz social; oportunidade para construção de núcleo de aprendizagem profissional

503
e a pessoa artesã desempenhando um papel relevante na comunidade tornando a
sua arte um fator de prestígio.

• As artísticas: provocando despertamento de aptidões latentes do artífice e


aprimoramento do seu intelecto. Suas mãos, obedecendo aos impulsos mentais
com o calor de sua imaginação conseguindo transformar a matéria prima, às vezes
grosseira, em coisa útil e de beleza única.

As Mãos
Pode-se fazer uso dos termos “mãos de fada”, “estar em boas mãos”, “mãos limpas”, “mão
por mão”, “mãos estendidas”... todas essas expressões estarão de acordo com a narra-
tiva. Além da subjetividade e da criatividade no manuseio dos fios, as artes manuais
para educação trazem potencialidade de transformação e de renovação de pessoas que
nela se envolvem e trazem afetividade. Revelam em suas práticas mudanças tanto in-
trapessoais quanto interpessoais, contingentes favoráveis de se ver e se posicionar. Na
possibilidade do contato com o outro se pode reconstruir identidade e visão de mundo.

Mundo este que em constante evolução, avançando em tecnologias, em comunicação,


em informação, tem na educação a exigência de mudanças em seu arcabouço. Torna-se
necessário que se pense, reflita, sugira soluções sobre problemas atuais e se trabalhe vi-
sando cooperação, principalmente com as questões humanas. A educação forma cida-
dãos críticos conscientes de sua contribuição nas mudanças sociais. As artes manuais
para educação estão inseridas nesse contexto. A trama traz aprendizagem neste pro-
cesso vivencial, é mútua, “de mão dupla”, uma vez que as pessoas envolvidas têm muito
a ensinar, a oferecer, mas também a receber. Há um fio invisível que é tecido formando
uma ligadura, enxertando vida.

A ideia pode ser aplicada na formação de pequenos grupos realizando um projeto que
vá ao encontro de pessoas em situação de vulnerabilidade fruto das desigualdades so-
ciais, políticas, econômicas e culturais. Já não se fala mais em feminino ou masculino,
homem ou mulher. Fala-se de pessoas, fragilizadas em seus direitos básicos de cida-
dãos, dadas às circunstâncias atuais da organização de políticas públicas. Aumentar as
capacidades sociais por meio de experiências vivenciadas nas artes manuais, utilizando
mãos e fios, pode ser interessante quando associadas aos princípios da solidariedade,

504
da cultura de paz e certamente da alteridade. É relevante considerar que cada pessoa se
sinta integrante desse grupo, bem recebida, aceita. Conhecer, interagir, trocar. Rela-
ções empáticas podem promover reflexões e estimular o sentimento de pertencimento.

Essa possibilidade de interação nas artes manuais vai muito além do aprendizado de
bordados e outras técnicas envolvendo o fio. Cada pessoa tem possibilidade de trans-
formação independente de sua particularidade.

As lembranças de antepassados e o exercício de suas simplicidades na beleza dos fios


em suas mãos permanecem vivos. Conseguem ultrapassar a linha do tempo, revelando
usos, costumes, tradições e características de inúmeras regiões. Superam até mesmo os
bens materiais mais considerados no mundo contemporâneo, os quais podem ser per-
didos a qualquer tempo. A mão que tece o fio que tece o mundo, continuará sempre.

“Costura – parece ferir o tecido, mister da agulha do tempo


conduzir a linha por diversos caminhos a coser histórias
únicas de vida.” (Pedro Galuchi)

“Somos uma máquina de costura, criando ideias todos os dias...


Com o fio da vida tecendo novos destinos.” (Gabriela Alves)

“Quando se trata da vida, nós tecemos o nosso próprio fio,


e onde terminamos é realmente, de fato, onde sempre
intencionamos estar.” (Julia Glass)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha da pesquisa sobre as mãos e o emprego dos fios para este artigo foi motivada por
questões sociais, tendo em vista os benefícios provenientes de sua prática. Sobre pensa-
mentos de levar fazeres com os fios como bordados diversificados, tricô e crochê a outras
comunidades. Sobre entrelaçar essas artes manuais com pessoas, principalmente aquelas
que gostariam, mas nunca tiveram oportunidade para realizar tal experimentação.

O artigo evoluiu conforme as pesquisas bibliográficas e consultas à internet, as quais


foram importantes para contextualizar o tema. A análise dos dados coletados, tanto na

505
bibliografia quanto na internet, teve como objetivo entender, tornar claro, testificar ou
refutar os objetivos iniciais do estudo. Etapa esta que maior tempo foi utilizado, tendo
em vista a necessidade de entrecruzamento de dados, para melhor compreensão do
objeto em análise e a composição do texto. Abordou uma contextualização histórica
sobre a transformação das fibras em fio, sobre o uso dos fios enquanto possibilidade de
criação de arte; e pelo uso dos fios como transformação de vida de pessoas, utilizando
citações de outros autores para compor essa textura de impressões.

Sem a pretensão de ser definitivo, esse estudo tentou consolidar uma ideia sobre a in-
fluência benéfica dos fios utilizados pelas artes manuais, mas elas não se tornam fixas.
Em virtude da limitação de tempo, não responde, evidentemente, a todas as questões
que envolvem o tema. Sendo assim, recomendam-se estudos complementares que
abordem tanto o trabalho com fios direcionados a outros públicos, quantas outras
estratégias de disseminação dessa materialidade plástica.

REFERÊNCIAS
BENETT, Charles Alpheus. História da Educação em Artes Manuais e Industriais.
1870 a 1917. Tradução Paulo Sérgio Bonagura, São Paulo: SENAI-SP Editora, 2015.

FAUR, Mirella. Fiar e Tecer, as artes mágicas femininas. Disponível em <http:www.


teiadethea.org/?q=node/170>. Acessado em 05/12/2019.

MACHADO, Ana Maria. O Tao da teia: sobre textos e têxteis. Estud. Av. São Paulo,
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com/fib.html>. Acessado em 05/12/2019.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques, 6ª ed., Rio de Janei-


ro: Record, 2019.

SILVEIRA, Nise. Jung. São Paulo. Paz e Terra, 22ª reimpressão, 2011.
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