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DA ECONOMIA

À ECOLOGIA
DAS ATENÇÕES
diálogos sobre a cena

BIANCA SCLIAR
EDÉLCIO MOSTAÇO
org.
Não estou confiando
segredos em ti. Todas
as coisas são decididas
e aplicadas por
acontecimentos muito
poderosos perdidos hoje
em um esquecimento
esquecido, não se
tem nenhum vestígio
deles, mas nossos atos
obedecem.
Hélene Cixous
Love Itself in the letterbox (2008)
PLANOS

7 Abertura
14 O que é o acontecimento
Conversa com Charles Feitosa

32 nãoestáemlugarnenhum
Respiro | Edélcio Mostaço

40 O que é o acontecimento
Conversa com Erik Bordeleau

60 Planos de cura | Refazer o corpo


através da escultura social
Respiro | Bianca Scliar

74 Sendo sereias ou mais uma


camada da pedra
Conversa de Giorgio Gislon
com Diana Gilardenghi

90 Presença/Ausência
Respiro | Edélcio Mostaço

94 Pequenas perturbações
Respiro | Bianca Scliar

102 A subjetivação erótica


Respiro | Edélcio Mostaço

110 Fora do tempo


Respiro | Bianca Scliar
ABERTURA

Este livro apresenta aos leitores entrevistas, comentá-


rios e reflexões formulados a partir do encontro entre
filósofos, artistas visuais, artistas da dança, estudantes e
professores, que ocorreu em fevereiro de 2020 no Centro
de Artes da UDESC, na imersão Da economia à Ecologia
das Atenções, durante o 1.º FIK, Festival Internacional
de Artes e Cultura José Kinceler, em um período cuja
efervescência não anunciava os anos de isolamento,
retração econômica e crise sociopolítica por vir.
A residência em pesquisa-criação que ocorreu
durante o 1º FIK resultou da convergência entre os
grupos de pesquisa Inter-textos-acontecimento e
performances do corpo e o Laboratório de Ensaios
e Imprevistos, coordenados respectivamente pelos
professores Edélcio Mostaço e Bianca Scliar, cujas
pesquisas investigavam aspectos transversais à
filosofia do acontecimento, no contexto das artes da
cena. O encontro, que visava a contornar a noção de
uma ecologia das atenções e refletir sobre modos
de financiamento, inspirou-se no conceito de uma
ecologia de práticas, marco do trabalho de Isabelle
Stengers1 (2021).
Ao considerarmos o esforço que pautou o
movimento da arte relacional, em fomentar, criar e
ensinar práticas artísticas menos interessadas na
produção de ‘objetos’, bem como a dissolução das
condicionantes autorais nas artes, nos falta ainda
refletir sobre modos possíveis de contornar sistemas de

1 Stengers, em seu texto Notas introdutórias sobre uma ecologia de


práticas, desenvolve a ideia de que é imprescindível tomar cada uma
das práticas e disciplinas, de modo ecológico, assim como “nenhuma
espécie viva é como outra. Aproximar-se de uma prática significa,
então, abordá-la conforme ela diverge, ou seja, sentir suas fronteiras,
experimentando as questões que os praticantes podem aceitar como
relevantes, mesmo que não sejam as suas próprias questões (...)”
(2021, p. 11).

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valor que ainda fundamentam o mercado de produção
simbólica, bem como as práticas de ensino em artes.
Quando nos lançamos a práticas que prezam pela arte
do encontro, valorizando modos de convivialidade, é
imprescindível explorar e abrir campos de reinvenção
para as estruturas de atribuição de valores. Além disso,
não há como desviar da observação de como o capital
torna tais práticas viáveis, plausíveis. É preciso atentar,
não apenas à discussão de como financiar, mas princi-
palmente indagar quais estruturas de valor evocamos
em nossas práticas criativas. Não é suficiente debater
presença no âmbito conceitual, sem tensionar as
pedagogias da percepção que empregamos nos
procedimentos de estudo e composição de nosso fazer
artístico. Não é suficiente engajar-nos em técnicas de
composição sem questionar o impacto dos arranjos
formulados no acontecimento. Afinal, o que é o aconte-
cimento neste contexto das práticas artísticas?
Foi a partir destas ponderações que surgiu
o enfoque temático central de nosso encontro,
associando as implicações do capitalismo neoliberal,
especialmente quanto às relações produzidas na
ecologia das atenções ao conceito de Escultura Social
e de finanças. Propomos mergulhar na obra de Joseph
Beuys e em leituras e provocações dos convidados Erik
Bordeleau e Charles Feitosa, cujos trabalhos circuns-
crevem a especulação sobre valores, sistemas capitais
e a filosofia da presença e da atentividade.
Os textos compilados aqui oferecem pontos de
entrada em tais temas a partir de entrevistas realizadas
entre os quatro dias de atividades imersivas, quando
o coletivo esteve envolvido com leituras, discussões
e estudos em grupo, além de práticas que envolviam
caminhadas e atravessamentos por outras atividades
do FIK. A transcrição das entrevistas procurou preservar
ao máximo o tom coloquial e falado das intervenções.
No caso de Bordeleau, observar que ele fala portu-
guês, mas emprega, em alguns momentos, raciocínios
frásicos oriundos do francês, aqui conservados quando
não prejudicam a intelecção. Adicionamos a este
volume ensaios que chamamos Respiros, formulados
ao longo de nossa pesquisa e que contribuem para
contextualizar os caminhos da pesquisa-criação que
atravessamos juntos. Para completar o panorama de

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nosso caminho investigativo convidamos a artista Diana
Gilardenghi, entrevistada por Giorgio Gislon, a refletir
sobre um processo de criação coletiva do qual fez parte,
apresentando algumas estratégias de ação e produção
de encontros que consideramos relevantes para as
ponderações sobre modos de atenção, memória,
interação, colaboração, como âmbitos constitutivos do
que chamamos de acontecimento na cena.
As conversas que ancoram este volume, com
Bordeleau e Feitosa, sublinham autores com trajetórias
distintas, através das quais observamos preocupações
singulares, postas em circulação em um trajeto não
linear, razão pela qual esse livro não tem começo nem fim,
mas pode ser atravessado em uma espiral de atenções.
Este livro é um anarquivo de encontros, lastro
impreciso, recomposto a partir de um lapso temporal
e as suspensões que se impuseram com a retração
pandêmica que sucedeu o FIK em 2020. Relatar o
passado é tão difícil quanto prever o futuro. São duas
dimensões que não existem, sendo uma póstera e
outra vindoura, portanto, narrá-las é um esforço para
amenizar e contornar devires.
Sobre o passado existem várias possibilidades
de torná-lo novamente presente, pois tudo é uma
questão de ânimo. De ânimo e de anima, dependendo
do grau das forças que o revestiram quando foi atual,
uma vez que o passado pode subsistir sob os formatos
de afeto, memória ou lembrança e permanece na tessi-
tura das relações, instanciando-se no corpo e em como
tornamos as convivialidades possíveis. Para a filosofia
do processo afeto, memória e lembrança distin-
guem-se não apenas conceitualmente, mas são forças
que indicam espectros diferentes sobre as relações
e a diferença, essa instância que tantos insistem em
suprimir… Enquanto a lembrança guarda aquilo que
subjetivamente retemos em relação ao tempo dos
relógios, calcada sobre convenções espaço-temporais
sólidas, o afeto comporta a duração, dimensão impon-
derável que nos marca na anima, capaz de produzir
inúmeras atualizações em corporeidade, a depender
de nosso estado de ânimo. Whitehead escreve que
cada momento da experiência se confessa enquanto
transição entre dois mundos, o passado imediato e
o futuro imediato e que o futuro imediato é imanente

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ao presente em alguma instância (1978 [1927]). É,
portanto, muito difícil explicar esta imanência se manti-
vermos a estrutura da experiência baseada nas noções
de sujeito e objeto.
Aqui nos propomos permitir que outros possam
refazer – ao menos parcialmente −, instantes cheios de
brilho e encanto que desfrutamos coletivamente, como
é próprio ao saber-sabor da partilha, quando a divisão
implica em multiplicação, quando a satisfação sobre uma
ocasião da experiência inicia-se pelo contentamento
sobre o passado e a vivacidade do futuro (Whitehead,
1978 [1927]). Certamente nem tudo poderá ser revivido,
revisitado, reinvestido, mas esperamos que cada qual
encontre seu percurso nesse labirinto disposto em
páginas travessas, cujo formato tenta um alcance pulve-
rizado, comprometido com as instâncias do tempo e da
presença que um livro almeja alcançar.
A língua prende. Não há como escapar à sua
lógica, à sua musculatura, muitas vezes perversa e
traiçoeira, sem despencar no abismo. Todavia, entre
as curvas feitas pelo emprego da linguagem diversa
que apresentamos neste volume, estendemos o desejo
por tocar, friccionar ritmos e sensações, sem instaurar
certezas, mas fertilizando sentires, dúvidas, tal qual
opera nossa ecologia das atenções. São os sentires que
a emolduram e cuja evanescência pede silêncio e leitura
pausada, degrau por degrau, página a página, para que
a degustação não atropele o ínfimo e o diferenciado, a
carne e o espírito, esses múltiplos que fazem do corpo e
dos modos de encontro instâncias ainda indecifráveis,
em uma ecologia que escapa à liquidez institucional e
que não nos cansamos de percorrer.

STENGERS, Isabelle. ARTECOMPOSTAGEM21. Trad.


Sebastian Wiedemann. São Paulo: Unesp / Instituto de
Arte, p. 09- 27, 2021.
WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality. Nova
Iorque: The Free Press, 1978 [1926].

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O que é o acontecimento
conversa com Charles Feitosa

EDÉLCIO MOSTAÇO: Charles, o que é acontecimento?


CHARLES FEITOSA: Essa é a pergunta mais difícil,
mas a mais importante. A filosofia do século XX para
o XXI, nessa passagem, tem algo em comum: uma
tentativa de pensar o acontecimento. Acho que é a
questão mais importante da filosofia contemporânea.
Ela é tão complexa – acredito que foi o Heidegger
quem primeiro deu o pontapé para colocar isso pra
frente – que cada um pegou e interpretou de um jeito
específico e há certa divergência, uma diversidade e
isso ainda não está resolvido. Não dá para responder
agora, mas acho que é importante deixar evidente a
distinção entre uma compreensão cotidiana da pala-
vra, quando a gente diz: “algo aconteceu”, que é algo
rolando no presente, no imediato, e a noção de acon-
tecimento inaugurada por Heidegger, a que estamos
buscando aqui e que, repito, tem várias nuances: é um
tema complexo, que difere da idéia de “quanto pesa
um fato”, ou daquilo que ocorreu. O que nos intriga
filosoficamente é a ideia de que algo aponta para o que
está em processo.
Acho que o acontecimento em filosofia – o que es-
tamos perseguindo – é uma tentativa de escapar de
noções muito “essencializantes”, fixas e substanciais.
E nosso modo de pensar, desde a escola, é muito ba-
seado nisso: querer algo estável que sirva de garantia,
e a noção de acontecimento, filosoficamente, está
tentando enfraquecer essas noções que apontam para
algo estável e fixo e apontam para uma dimensão de
processualidade, de devir, de instabilidade da exis-
tência, do mundo, de nossas ações e projetos. Agora

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esse é só o começo… há várias nuances. Por exemplo,
tem a ideia de entender que o mundo é acontecimento,
mas tem também uma questão bem mais prática que
discutimos no encontro: é possível e como produzir
acontecimento? É possível preparar? Que tipo de ação
pode permitir isso? São algumas das questões em jogo
em torno deste conceito.
EM: É interessante você falar que na sua percepção a
questão é um processo, não é? Pensar o acontecimento
como um processo. Nesse sentido temos que admitir
a simultaneidade, ou seja, a ocorrência de diversas
coisas ao mesmo tempo. Isso ajuda a pensar a questão
do acontecimento?
CF: Essa é uma boa pergunta que não sei se sou capaz
de responder. Quando penso em processo – um termo
do jargão filosófico que muita gente usa de maneira
substancialista, vamos dizer assim. Acredito que Kant
em A Crítica da Razão Pura (2015 [1781]), falando do
tempo, fala da sucessão temporal e da simultaneidade
temporal como duas formas possíveis de organização
do tempo; mas as pessoas pensam processo como
evolução, como progresso e juntam a sucessão e a
simultaneidade na ideia de um progresso evolutivo
linear, uma coisa da modernidade. Então, indicar que
acontecimento é processo não resolve, admito. Há de
se pensar e meditar um pouco sobre essa noção. Des-
viando para o termo processo, hoje em dia, ele está
associado a algo até judicial: “estou processando al-
guém”, “comecei um processo que dura 10, 20 anos…”.
Mas, quando associo o acontecimento ao processo, eu
penso em biologia: a ideia de que uma das maneiras de
escrever a vida é enquanto processo, algo estrutural
à vida, essa processualidade da vida. O meu caminho
– tudo isso é embrionário, porque eu sei que vocês tra-
balham filosofia processual com outros autores – mas
a minha intuição é fazer uma conexão não vitalista
entre acontecimento, processo e vida – um pouco ins-
pirado em Kafka.

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O romance de Kafka, O Processo (2005 [1925]) (vou
desviar um pouco do assunto), é lido como uma
metáfora para a vida contemporânea e moderna, do
sujeito que está preso a uma burocracia e engajado
em tentar resolver várias coisas, um poder que ele
não consegue buscar qual é. Mas eu leio o romance
de Kafka como uma descrição da vida, da existência
enquanto acontecimento, vamos dizer assim. Então,
quando se diz: “é uma situação kafkaeska”, é por-
que se está dizendo: “estou vivendo uma situação
burokrafka, burocrática e meio sem sentido”, mas a
minha hipótese é que o mundo, a existência, a re-
alidade, é uma situação kafkaeska, no sentido que
de que é algo processual, é algo que acontece. Não
sei se isso ajuda ou complica ainda mais, mas são as
associações que eu faço, por enquanto.
BIANCA SCLIAR: Eu queria te pedir pra comentar
um pouco mais uma pergunta que você fez no começo
dessa conversa: se é possível provocar um aconteci-
mento. Te provoco para ir um pouco mais além: não
seria a arte, não uma provocação para o acontecimen-
to, mas um treino para desenvolver a capacidade de
render-se ou reconhecer o acontecimento?
CF: É uma outra maneira de dizer. A minha formula-
ção da pergunta “como produzir um acontecimento?”
é uma formulação provocativa, porque, provavel-
mente, acontecimento não pode ser produzido do
modo como a gente imagina produzir algo, produzir
acontecimento enquanto evento, enquanto fato – co-
mo quando a gente planeja uma festa de aniversário.
Então, produzir um acontecimento nesse sentido não
cotidiano – que é cotidiano, mas não é usual e cuja
diferenciação tentei explicitar anteriormente – não é
articulável. Fazer essa pergunta é colocar um certo
impasse, em xeque, apontando para a ideia de que
o único modo de produzir enquanto processo que
não seja identidade, substância, é se você conseguir
abdicar da atitude de produção, de acontecimento

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enquanto eventos e quanto fatos. É algo contraditó-
rio, mas é essa a ambiguidade que eu queria destacar,
um certo treinamento para desautomatizar o modo
no qual fomos educados e preparados, que é sempre
planejar, antecipar e organizar o que está por vir. É
que há um paradoxo nessa proposta da produção de
acontecimento – pensando para um artista, um pen-
sador, um ativista – que implica um movimento ativo
de desligar os movimentos ativos. Os movimentos
ativos, de expectativas de produção de futuro, de pla-
nejamento não são desligados por si próprios, não se
desligam: eles incitam a ser confrontados e isso exige
treinamento, enfrentamento e, ao mesmo tempo,
acontecimento não se dá se não houver algum tipo de
preparação. Acontecimento não se dá na desatenção,
na distração, nem no simplesmente “deixar rolar”.
Então, tem algo um pouco paradoxal, e é isso que me
intriga: uma preparação despreparada, uma produção
que não produz.
Eu só consigo pensar isso, tentando ser mais concreto,
em situações do tipo: o surfista esperando a onda.
Essa espera não é uma espera desligada, desatenta,
mas uma espera ativa e em sintonia com o que está
acontecendo à volta dele e, é essa sintonia e essa espera
atenta, que permite uma confluência de atmosferas
que vai fazer com que ele pegue a boa onda, e se ele
não tiver essa atitude de atividade passiva ou passivi-
dade ativa, nunca vai acontecer de ele pegar a onda.
Não é possível planejar a onda, porque isso está além
do alcance dele, mas se ele não tiver a atitude que per-
mita essa sintonia com o mar, ele vai sempre deixar
passar a boa onda. É nessa ambiguidade que acho que
se coloca a pergunta, ou a resposta para a pergunta:
como se produz acontecimento na arte, na filosofia e
na existência, também.
Um outro exemplo concreto que eu gosto de dar é se
preparar para um encontro: você conhece alguém,
chama alguém para sair e é, obviamente, impossível

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planejar tudo o que vai acontecer, o que você vai dizer,
a hora que você vai tentar dar um beijo na pessoa ou a
hora que as pessoas vão se apaixonar – isso tudo está
completamente fora de controle. Mas, se não houver
algum tipo de preparação para o encontro com essa
pessoa que você quer conhecer e se aproximar, nunca
vai rolar a atmosfera que permita um apaixonamento.
A questão é: que tipo de preparação é essa que permite
o inesperado da paixão. Não é um zero de preparação
e não é o máximo da preparação, que é o mesmo que a
gente faz quando vai numa entrevista de emprego ou
em uma prova em que você tem que estudar todos os
temas e se preparar para responder a todas as ques-
tões. É algo do entre – acredito que é um pouco por aí.
BS: Eu queria te pedir para falar um pouco sobre
a noção de narrar um acontecimento. Ou seja, uma
coisa é reconhecer e sentir, outra é a ideia de retros-
pectiva e enunciação do acontecimento. Eu acho que
tem um pouco a ver com isso que você falava agora,
existe uma técnica? Porquê, da maneira como você
descreveu, me levou a indagar sobre a técnica. Então,
você não pode controlar as condições ou o porvir,
mas existe uma técnica?
CF: É uma boa pergunta que também não sei respon-
der ainda. Mas, acredito que há uma técnica ainda a
ser desenvolvida, essa técnica não existe ainda, mas
eu acredito que, similarmente, repetindo a imagem do
surfista, há uma técnica da escuta do barulho do mar,
há uma técnica de sentir a direção do vento, mas ela
não é matematizável e não garante tudo – isso que eu
queria dizer.
Eu gosto muito – eu disse no início que Heidegger
inaugurou essa noção de acontecimento e que vários
filósofos, cada um à sua maneira a interpretaram – mas
a maneira com que eu mais me identifico é a do Der-
rida (2012) que descreve a chegada meio inesperada da
alteridade, do outro.

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E a ideia da técnica que permite produzir o acon-
tecimento, pra mim, quer dizer: criar condições que
garantam que o outro efetivamente chegue, é mais ou
menos isso. O que nós temos são técnicas que ten-
tam antecipar o que está por vir, que tentam prever,
que tentam promover um tipo de fato específico que
não é mais o outro na sua surpresa, no seu caráter
inesperado, mas já é um outro segundo a minha fa-
ce, segundo o que eu quero que ele seja. As nossas
técnicas são nesse sentido. Aliás, é o modo como
nos relacionamos com o futuro, em geral. Quando
queremos fazer algo, as duas maneiras básicas do ser
humano lidar com o futuro, são o medo e a espe-
rança. Com o medo antecipo que o que virá é ruim,
com a esperança antecipo que o que virá é bom, nos
dois casos estou antecipando o que já está por vir e
esse é o modo estrutural. A economia num sentido
mais banal do termo: “vou fazer uma poupança para
a aposentadoria”, está atravessada dessas duas coi-
sas: “medo que eu não seja capaz de sobreviver ou
medo que eu não tenha condições de viver” e “uma
esperança de ter uma vida melhor quando eu tiver o
melhor emprego ou quando eu estiver aposentado”.
As nossas ações cotidianas estão atravessadas nessas
duas maneiras de lidar com o futuro.
Me parece que a lógica do acontecimento demanda
uma outra maneira de lidar com o futuro, do qual não
sabemos, não fomos ensinados a isso: deixar o futu-
ro ser. Só que esse “deixar o futuro aparecer” não é
mera passividade, não é resignação, exige um tipo de
atitude específica. O que eu estou tentando descrever,
de uma forma paradoxal, é uma técnica de suspensão
da técnica, um controle que se vê como anticontrole,
uma fala que deixe aparecer a voz do outro – algo que
temos que amadurecer, mas é por aí.
EM: A palavra técnica está carregada de sentidos
negativos em nossa cultura, mas ela formava o par
ambíguo com a arte na antiguidade, de modo que

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quando se fala em uma técnica do encontro, para es-
perar esse futuro, para esperar o acontecimento, talvez
seja uma arte. O surfista aguarda, ele aguarda o acon-
tecimento, há uma comunicação íntima com o mar em
que ele pressente quando a onda começa a se formar
e ele se encaminha para o melhor lugar para pegar a
onda, não é? É preciso ter a arte de esperar o momento
no qual você pode dizer algo ou você pode fazer certo
gesto. Aí, talvez, resida a sabedoria mais profunda e,
como toda sabedoria, ela não é facilmente discursável.
CF: Aí, voltamos à questão da narrativa, de alguma
maneira. Talvez, do mesmo modo que estou pensando
– isso tudo é algo bem embrionário – de um outro tipo
de técnica, mas que ainda seja técnica, no limite, talvez
seja possível um outro tipo de narrativa dos aconteci-
mentos que seja uma expressão um pouco diferente
das narrativas tais como conhecemos. Conhecemos
ou estamos acostumados com narrativas da ordem do
linear, do encadeamento, das conexões entre causa–
efeito, começo e fim. Isso é muito estrutural em nossa
cabeça ocidental. Lemos um texto da esquerda para
a direita, de cima para baixo e isso é tão arraigado
em nós que, às vezes, olhamos para outras situações
e dizemos - eu sou contra isso – e dizemos que esta-
mos “lendo” a situação. Tal como: “li uma situação de
tal maneira” ou “li uma pessoa”. Há as pessoas que
chamam um filme de “texto fílmico”, quer dizer, elas
acham que é possível ler o filme, ler uma obra de arte.
Acho isso um absurdo, porque ler é um modo muito
interessante de relação com o mundo, mas conectado
com esse encadeamento causal que se dá em uma cer-
ta ordem. Ora, quando eu estou diante de um filme,
se ler o filme, eu o empobreço, o filme é pra ser visto,
aliás, ele também é para ser ouvido, nós até esquece-
mos que é uma experiência audiovisual. Assim como
quando estamos diante de um quadro, um quadro não
é para ser lido, ninguém o lê de esquerda para direita e
de cima para baixo, nós olhamos o quadro de maneira
até meio errática e o olhar percorre em várias direções

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e tenta dar conta de detalhes e tem uma visão do todo, e
é um outro tipo de relação. Um pensamento, uma ativi-
dade nesse sentido “outro” que esses pensadores estão
tentando trazer, exige exercícios de outras narrativas.
BS: Há algo que excede a tecnicidade. Essa, para mim,
é uma pergunta tensa em relação ao acontecimento,
porque é possível compartilhar um modo de fazer,
mas tem uma parte que envolve uma prática. Eu posso
ensinar alguém a pegar uma onda e descrever com os
mínimos detalhes todos os aspectos aos quais deve-se
prestar atenção, o que fazer com o corpo, cada ângulo,
mas isso não vai funcionar, porque tem uma parte
dessa capacidade de entregar-se ao imprevisível ou
à dúvida ou ao que ainda não pode ser reconhecido,
que é indescritível, que precisa ser praticada. Isso é
difícil porque excede nosso hábito de treinar a partir
de relações causais diretas.
EM: Lembrei de As Técnicas do Corpo do Marcel Mauss
(2003 [1936]), livro em que o antropólogo vai exata-
mente nesse caminho. A arte corporal, que nesse caso
se confunde com uma técnica corporal, é de uma outra
ordem que não a da discursividade, da racionalidade
ou desse logos narrativo a que nós estamos habituados
e que você enfatizou muito bem. Mas, me parece, pas-
sa por outros percursos no corpo, onde a questão da
intensidade é um dos aspectos mais relevantes, pelo
menos, para mim.
CF: São questões boas. Na minha convivência com o
pessoal das artes cênicas, eu ouço muitas falas que
são instigantes e eu também não sei como responder,
mas eu sinto de um lado uma certa crença excessiva
na técnica, como se ela fosse dar conta de tudo, e eu
tenho que concordar que não dá conta, tem algo que
excede, mas eu sinto, também, por outro lado, uma
postura meio “antitécnica”, um certo desprezo pela
técnica, uma certa crença em algo intuitivo, da ordem
do mistério e as duas posturas acho meio extremas
e, talvez, incompletas ou pobres em relação ao que
21
é possível. Acredito que estou procurando algo real-
mente intermediário em relação a isso.
BS: Sim, concordo e por isso toquei nesse aspecto, por-
que acho que tem um fazer, um compromisso com o
modo de fazer ou um modo de perceber ou de apreciar,
seja lá qual for a dimensão de que estamos tratando,
que, ou foi excessivamente desprezado – como se isso
nos permitisse encontrar uma liberdade de expressão
e produzir magicamente o encontro com novidade ao
desprezar qualquer tipo de codificação acumulada – ou
submetido a um excessivo controle, como se também
fôssemos capazes de codificar os detalhes suficientes
para criar situações formidáveis.
CF: Sim, dada aquela técnica, essa situação formidável
vai acontecer. Mas o que eu imagino e vislumbro é
um outro tipo de técnica, não é essa que controla tudo
que tem causa-efeito, mas é um tipo de treinamento e
de narrativa, repito, tudo muito embrionário, mas, eu
penso muito em algo que tem em comum na filosofia e
nas artes contemporâneas, que é a ideia do making-of.
Antigamente, uma das coisas boas do DVD antigo, é
que nele tinha um material, às vezes, que acompa-
nhava e tinha um making-of de determinadas cenas.
Tem toda uma história de uma supervalorização do
gesto do artista criador, como se não houvesse técnica
nenhuma e ele fizesse tudo porque ele tem um grande
talento e é gênio. E ele escondia um pouco a disci-
plina, o treinamento que ele teve, as experiências, os
erros que ele cometeu, a aprendizagem que ele teve,
e muitos dos artistas passavam a imagem de que a
Nona Sinfonia caía do nada – estava andando na rua
e caía a Nona Sinfonia inteira para ele, porque essa
mistificação é uma forma de criar uma certa aura, uma
certa superioridade. Obviamente, o inverso também é
problemático. Tem um autor americano que tem uma

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teoria das dez mil horas1, onde se você estuda essas
dez mil horas alguma coisa, você irá fazer isso de
uma maneira genial. São dois extremos, as coisas não
acontecem de forma milagrosa e não acontecem, tam-
bém, só em uma repetição técnica de determinados
procedimentos que possam ser, todos eles, listados e
classificados. Mas, o making-of é um tipo de narrativa
– que eu poderia pensar como um tipo de narrativa
do acontecimento – que tem algo (acho que é um dos
aspectos fundamentais da filosofia) de desconstrução.
Um artista ou a pessoa que está propondo, constrói,
organiza e mobiliza mundos e o making-of desvela os
critérios de avaliação (depois nós vamos falar sobre
valor) e os valores são uma forma de compartilhamen-
to de poder. E é assim que alguém, ao assistir a um
making-of, não vai repetir exatamente o que aquela
pessoa fez, mas ele vai entender que também é capaz
de fazer outras formas de proposição (não sei se fica
clara essa analogia). Então, não é que o domínio da
técnica vá garantir, mas ele vai permitir a abertura
de um certo horizonte de possibilidades que, de outro
modo, não estaria acessível se eu não tivesse acesso
ao modo como essas produções são feitas, ao modo
técnico em que essas produções foram realizadas.
BS: Eu gostaria de completar, porque você deu o exem-
plo do artista, mas acho que a construção de uma ideia
filosófica também passa por essa mesma mitologia: de
que a ideia surge, brota!
CF: Isso, para mim, é bem importante, porque estou em
um projeto de filosofia pop, que é uma ideia de fazer
uma filosofia de um jeito mais acessível, sem perder
a densidade. A proposta está embutida em uma ideia
punk: você pode fazer você mesmo. Qualquer pessoa
pode fazer. Mas, para isso, é preciso não só dizer is-
so de uma forma simples: eu preciso compartilhar o

1 Ver o livro Outliers: the story of success [Fora de Série: a história de


sucesso], Malcolm Gladwell, 2008.

23
making-of dessas ideias. E não é lendo em alemão ou
estudando Hegel por vinte anos, mas mostrando como
essa ideia se dá enquanto acontecimento.
Eu acho que o culto ao gênio – do artista que mistifica
e esconde que erra, que estudou e finge que nem sabe
explicar como ele faz aquela música, aquele solo de
guitarra ou como ele consegue pintar aquela técnica
– é uma forma de um estabelecimento de poder da
mesma maneira que um teórico, um filósofo ou um
pensador, quando não compartilha isso e quer manter
uma aura de certa superioridade que muita gente tem:
a ideia de que os grandes filósofos são quase semideu-
ses e estão em uma outra instância.
Só para terminar esse ponto, eu acho que tem muito
a ver com uma história – nós ouvimos muito filosofia
e mitologia grega e eu tento citar histórias de outras
mitologia: tem uma história da mitologia mineira que
eu acho muito legal, a história do pulo do gato. Vocês
já devem ter ouvido essa expressão. Só rememorando:
uma onça viu um gato saltando e achou bacana e pediu
para o gato ensinar para ela os saltos que o gato sabia
fazer. O gato achou estranho a onça ficar pedindo
isso, mas foi lá e ensinou toda a técnica que ele tinha
de saltar. A onça treinou todos os saltos que o gato
passou para ela e, quando esgotou todo o repertório
de saltos, a onça deu um bote para comer o gato e o
gato deu um salto triplo, carpado, mortal, horizontal
em uma outra direção e fugiu: escapou das garras da
onça e a onça gritou: — Mas esse salto você não me
ensinou! E o gato, já bem longe, disse: — Ah, esse é o
pulo do gato (risos). Acho essa história maravilhosa. E
vejo que se relaciona com algo assim: se você é profes-
sor você não deveria ensinar tudo, porque senão seu
aluno vai devorá-lo. Tem uma coisa de manutenção
de poder. Saber é poder. Então eu - enquanto parte da
filosofia pop e dessa lógica contemporânea – acho que
temos que ser devorados, temos que nos deixar devo-
rar e isso significa compartilhar. Obviamente, a ideia

24
não é que os mesmos saltos vão se repetir, mas que
consigam descobrir sua singularidade, o que só será
possível vendo como eu consegui chegar na minha.
É um pouco nesse sentido que acredito ser possível
uma técnica que permita produzir acontecimentos.
Tem uma dimensão pedagógica nesse sentido, que é
quebrar com o poder do criador genial.
BS: Talvez, não uma técnica de como fazer, mas de
como encontrar modos de fazer.
CF: Isso! Eu te mostro como eu encontrei o meu modo
de fazer, agora vá lá e encontre o seu próprio.
BS: Eu, ontem, saí um pouco reflexiva sobre como
estávamos construindo esse encontro que, de certa
forma, acredita que nós – com uma determinada
configuração de proposições – conseguiríamos, con-
seguiremos ou conseguimos, produzir um movimento
do pensamento, em alguma instância, seja no indiví-
duo, no coletivo etc. E ontem saí frustrada. Ficou muito
nítido para mim, em vários momentos, o quão sólidas
e rígidas são as estruturas que nos levam a ocupar e
a reiterar posições em que o pensamento já sabe aon-
de vai chegar. Lembrei que nesse processo com meu
grupo de pesquisa, quando começamos a pensar que
um acontecimento nunca pode ser produzido e que
um encontro acadêmico nunca é um acontecimento,
porque todo mundo chega com seus defuntos para
exibi-los, usávamos técnicas com vários nomes e eram
técnicas extremamente alegóricas que para mim, que
trabalho como artista, me pareciam por vezes exces-
sivas. Então, fazíamos jogos onde cada um inventava
uma dinâmica, proposições que envolviam objetos:
quando as pessoas chegavam ao evento, achando que
iam propor aquele jogo, fazíamos a troca do objeto e
a pessoa tinha que propor outra coisa com o objeto
que não era o dela. Então, nós fizemos durante anos
essas práticas, para chegar a um ponto, ao longo de
oito anos, pelo menos, quando fomos retirando essas
coisas. Creio que hoje conseguimos chegar a um lugar
25
de abertura, vindo com uma certa preparação, uma
certa vulnerabilidade sobre o próprio entendimento
e expectativas que permitem que algo aconteça. Me
dei conta como aqui, em nosso primeiro encontro,
pulamos as etapas alegóricas, as técnicas de descons-
trução, o que nos leva a ocupar lugares já conhecidos,
porque este tom de: “vamos conversar abertamente” é
extremamente opressor. Há de se “forjar” as aberturas,
as rachas, no sentido de lapidar a prática da dúvida e
sintonizar as ocorrências. Existe uma pedagogia que
nos torna aptos não só a pegar a onda, mas a reco-
nhecer suas forças em formação, podendo participar
do acontecimento, ao lhe atribuir valor, importância.
CF: Mas, talvez, acho que precisa de um tempo, não
é? Assim como num encontro amoroso em que tem
o tempo de aproximação ao qual você vem com suas
inseguranças e certas poses. Com um certo tempo e, às
vezes, com ajuda de drogas lícitas, como o álcool, talvez
você comece a relaxar e a se mostrar um pouco mais.
Uma técnica que já experimentei quando organizei
dois eventos internacionais de dança e filosofia no
Rio de Janeiro. A ideia era trazer o pessoal de dança
para conversar com o pessoal da filosofia e juntar co-
reógrafas e filósofos em uma mesa: era incrível como
os dois se sentiam inseguros! Ou seja, filósofos que,
não necessariamente, falavam de dança e coreógrafas
que tinham interesse, mas também não se sentiam
como filósofos, e os dois se sentiam muito inseguros,
mas iam falar sobre um tema em comum, então, eles
eram obrigados a sair de um posto de autoridade que
tinham. Eles tinham uma certa autoridade, uma certa
segurança e uma certa posição de domínio do saber,
mas, colocados naquela configuração, os dois eram
destituídos igualmente e começavam a conversar a
partir dessa insegurança. Era um exercício que, às
vezes, funcionava e, outras vezes, não, mas um modo
de quebrar com algo.
BS: Mas ali você ainda tem um núcleo de espectadores.
26
CF: Sim, que podem participar.
BS: Aí, mistura um pouco o nosso interesse, especi-
ficamente, em pensar os problemas do que temos
chamado de arte relacional e que tem suas minúcias:
Quem é o artista? Quem é o espectador? O que, afinal,
é o objeto? Etc.
Aproveitando esta deixa, ao ouvir você falar da sua
concepção de filosofia pop, me parece muito semelhan-
te à ideia de escultura social do Beuys. Me parece que
o que ele propôs como uma prática artística é muito
próximo ao modo como você opera o fazer filosófico.
CF: Pode ser, talvez, tenho que pensar sobre isso, seja
uma analogia possível.
Eu fiquei pensando, dentro dessas analogias que eu
dei: a do surfista e a do encontro amoroso, que não
dá para planejar tudo, mas você tem que saber aonde
você vai, como você vai chegar lá, coisas desse tipo. E
pode ser que alguma coisa não dê certo, como quando
você reserva uma mesa em um lugar e alguém não
fez a reserva. Ou, uma viagem – uma viagem exige
um planejamento – mas, nem tudo dá certo em uma
viagem, mesmo você planejando. Eu vim para Floria-
nópolis esperando um dia ir à praia e, no dia livre,
choveu muito: isso é esse inesperado. E eu acho que
faz parte. Isso é uma espécie de técnica, a de não
entender essa chuva ou esse “fora da preparação”
como algo que destrói o acontecimento. É uma técnica
de interpretar o contratempo como estruturante do
tempo do acontecimento. O tempo do acontecimento é
marcado por contratempos, não é somente o tempo da
realização dos nossos planos. É nesse sentido que eu
entendo que exige, é possível e permitido algum tipo
de treinamento. Agora, tudo tem limites…
BS: Mas acho bem importante isso, não é só o tempo
forte, você tem uma pré-aceleração, uma antecipação
para que aquilo possa entrar em ocorrência.

27
Na noção de acontecimento de Whitehead, há um
aspecto que implica a ideia de valor, ou seja, quando
algo contrasta com um plano contínuo, com uma re-
corrência, é ali que há um acontecimento, por isso ele
se chama valor – valor não é financeiro – é que aquilo
ganha um valor e só ganha um valor por contraste.
CF: Como uma primeira dúvida: se o contraste se dá
no próprio processo… O que eu penso sobre valor que,
para mim, está ligado à ideia de processualidade e
acontecimento, é que é algo totalmente fluído. O valor
não é estável, tem a ver com hierarquia, com contras-
te, com diferenciação – com tudo isso concordo. Mas,
nunca é definitivo. O definitivo seria essa lógica que é
a lógica de Platão: a do tempo cotidiano, da carne que
se decompõe, é a do tempo inferior e a eternidade em
que nada muda, o estável, é o que vale. Platão usa uma
expressão em grego, onde ele vai dizer: o mundo aqui,
do efêmero, é o (meon), o que não tem valor ou o que
tem valor de nada. E isso em si e pronto, acabou. E
quando eu penso a importância de valor junto com a
ideia de acontecimento, é algo que pode ser sempre re-
configurado, revisto, mas não é possível não estar em
algum tipo de avaliação, em algum tipo de valoração.
Concluir que, já que não há nada que seja em si, logo,
então não há nenhum valor, isso seria uma forma de
niilismo. A ideia é que não existe um valor definitivo,
mas estamos sempre em alguma configuração de valor,
necessitando sempre reavaliar, reconsiderar, é nesse
aspecto. Para mim, a técnica de produção de aconte-
cimento implica avaliar nossas formas de avaliação. É
isso que é o making-of – ali na produção de algo eu
estabeleci alguns critérios de valores – o making-of é:
eu vou avaliar como eu avaliei, e aí eu vou ver se vou
avaliar de outras maneiras ou da mesma maneira. Isso
é o fundamental e me parece que é o grande segredo.

28
GLADWELL, Malcolm. Outliers: the story of success [Fora
de Série: a história de sucesso]. Boston: Little Brown Com-
pany, 2008.
DERRIDA, J. Uma certa possibilidade impossível de dizer
o acontecimento. Revista Cerrados, v. 21, n. 33, 2012. Dis-
ponível em: https://periodicos.unb.br/index. php/ cerrados/
article/view/26148
KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Editora
Vozes, 2015.
MAUSS, Marcel. Les techniques du corps [As técnicas do
corpo]. Trad. Paulo Neves. Journal de Psychologie, v. 32, n.
3-4, 15, março - 15 abril, 1936. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

29
30
31
NÃOESTÁEMLUGARNENHUM

Muitas vezes fui surpreendido, em minha vida que não


EDÉLCIO MOSTAÇO

é curta, pela revelação de alguma coisa insondável.


Revelar pode induzir a pensar que o mundo é um mistério
em busca de descoberta. Nem sempre. Revelar também
quer dizer contato profundo com aquilo que a superfície
não evidencia de pronto, trazendo à luz o que estava
obscuro, não por mistério, mas por falta de percepção.
Isso implica a economia das atenções.
Assim, deixar de seguir à risca o dicionário é
se aventurar por desvios, tão caros aos situacionistas,
que fizeram da deriva uma apologia ao nomadismo. No
RESPIRO

momento em que escrevo, uma mulher asiática ganhou


o mais prestigiado prêmio da indústria cinematográfica
do planeta com sua obra Nomadland. Tudo está em
rodopio. Mulheres dirigindo filmes, mulheres mudando
de espaços, personagens nômades tornadas heroínas
em corpos de atrizes sem glamour e nada estelares
em uma ficção bem pouco fictícia. São alegorias de
mudanças e prenúncios de que o devir está sendo absor-
vido como o ritmo de muitos.
Acostumar-se aos deslocamentos, aos percursos,
à navegação pelas telas é aprender a desterritorializar o
que parece estável e ancorado em algum sítio. Só que,
a cada dia, estamos mais e mais lançados ao além,
à nuvem que nãoestáemlugarnenhum, semovente e
incerta, que dificulta as sedimentações e puxa o tapete
de nossas percepções.
Muitos pensam que a economia é uma ciência,
destinada a gerenciar lucros e perdas, créditos e descré-
ditos, investimentos e criptoativos, os índices da bolsa
de valores. Em sua constituição mais profunda, contudo,
a economia não é uma ciência, embora seja um saber,
calcado, sobretudo, na satisfação de desejos pessoais
e coletivos, inerentes à sociedade humana. Uma das
razões pelas quais ela é política, é sua íntima conexão
com as práticas sociais, pois decorre de e insemina

32
todas as ações destinadas a suprir essas demandas
de desejo. Por isso, em bom português, fala-se em
oferta e procura.
Para Félix Guattari (2001), que fundou o que
denominou Ecosofia, existem três diretivas ecológicas: a
do ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade
individual e social. Antes dele, Gregory Batson fizera uma
afirmativa cheia de ressonâncias: “existe uma ecologia
das ideias danosas, assim como existe uma ecologia
das ervas daninhas”. A propulsão para Guattari e sua
postulação de platôs. No entrelaçamento de três platôs
– ambiente, relações sociais e subjetividades – está o
que se compreende atualmente como economia, motivo
pelo qual a residência artística Da Ecologia à Economia
das Atenções tomou tais acepções para pensar a
quantas anda nosso entendimento quanto aos devires
desejantes, que solapam, simultaneamente, o ambiente
e as relações sociais. Se o capitalismo é a grande raiz
de onde brotam os galhos danosos das ideias e as
ervas daninhas que produzem a escassez, o alto preço
da oferta e os devastadores formatos assumidos pela
geração de lucros, torna-se urgente compreender o que
esse platô oferece às chamadas “demandas coletivas”.
Assim, “não haverá verdadeira resposta à crise
ecológica, a não ser em escala planetária e com a
condição de que se opere uma autêntica revolução
política, social e cultural reorientando os objetivos da
produção de bens materiais e imateriais” (GUATTARI,
2001, p. 9). Percebe-se, nessa proposição de 1989
que, para o filósofo francês, a Ecosofia é um dispositivo
prático e especulativo, ético-político e estético, não
constitutivo de uma disciplina, mas um modo inovador
de rever e redimensionar conceitos erigidos sobre
desbotados parâmetros de apreensão do mundo, roídos
pelo uso e atrofias que sofreram no transcurso do tempo.
Não é desconhecido que o neoliberalismo opera
sob o formato de estratégias militares, uma guerra
contínua sem balas ou bombas, mas construída através
de mecanismos jurídicos, geopolítica milimétrica,
tratados internacionais, protecionismos restritos e falta
de protecionismo às mancheias, nessa guerra cujo
objetivo é a intensificação dos lucros. Lucros para uma
elite que não titubeia em aniquilar florestas, pessoas
e traços culturais penosamente construídos durante

33
milênios. Seu último estágio é tomado como o do cerco
e aniquilamento, fase na qual bazucas e mísseis podem
ser empregados e cujo resultado é a terra arrasada,
nenhuma pedra sobre pedra, tudo transformado em
poeira, esgotada sua possibilidade de gerar qualquer
valor. Nesse estágio final, o capitalismo entra em crise,
necessitando explorar novos planetas, ou mercados e
territórios, como costumam denominar.
O conjunto dessas íntimas conexões, interde-
pendências e implicações foi revisto e atualizado por
Deleuze e Guattari, notadamente em O anti-Édipo
(2010-2011) e Mil Platôs (2007), um desenvolvimento
da obra primeva e, por muitos, consideradas a mais
sólida contribuição conceitual de ambos para a filosofia
contemporânea, sobretudo, aquelas associadas aos
processos, também designadas como “da diferença”.
Tais temas e abordagens foram por mim tangenciados
em cursos de pós-graduação: um sobre Deleuze e outro
sobre a noção de “acontecimento”, ambos frutos de
projetos de pesquisa (PQ).
Tais atividades alcançaram outro estágio, após
um ano de debates em conjunto, entre nossos grupos
de pesquisa, Lab-Ei e Inter-textos, quando o pessoal
integrante se encontrava municiado conceitualmente
para experimentar, criar e debater propostas que
atingissem, simultaneamente, todos os extratos que
conformam esses processos. Daí decorreu a semana
de residência artística aqui tratada, sendo a escolha
dos convidados precedida de uma advertência: não
seriam aulas ou palestras, mas a criação de dispara-
dores criativos e artísticos que afetassem a todos e
pudessem ser compartilhados sob vários aspectos
expressivos, com ênfase sobre os performáticos. Os
estudos da performance integram desde há muito o
rol prático e teórico dos dois grupos de pesquisa, um
dos liames em comum que se estabeleceu desde que a
convivência se iniciou.
Eu me encontrava deveras intrigado em saber
“como salvar o comum do comunismo”, título de um livro
do canadense Erik Bordeleau (2014), um especialista em
Deleuze e colaborador direto de Brian Massumi, tradutor
para o inglês de Mil Platôs, que já nos tinha visitado
em companhia de sua mulher Erin Manning (2019), e
pelos quais nutria admiração. Eu insisti com Erik para
que explorasse ao máximo a ideia de “comum”, que me

34
instigava havia algum tempo, sendo ela uma daquelas
revelações a que antes fiz referência.
Charles Feitosa, nosso outro convidado, eu
conhecia de velhos carnavais acadêmicos, sempre
vestido com uma nova fantasia, ele que é um filósofo
pop por excelência. Foi em razão dessa sua pegada não
convencional relativa aos conceitos que o chamamos,
certos de que faria uma produtiva colaboração com
Erik, o que, de fato, veio a ocorrer. Para mim, o foco das
atenções esteve centrado sobre a noção de “aconte-
cimento”. Fora as horas dedicadas ao sono, todas as
demais, incluindo as refeições, aliás momentos fraternos
de descontração que permitiram trocas miúdas e cochi-
chos por demais instigantes, nossa residência artística
se mostrou pródiga.
Para um entendimento alargado da noção de
“atenção”, é preciso considerar o percurso teórico
empreendido em O anti-Édipo (DELEUZE e GUATTARI,
2010-2011), que evidencia como somos permanen-
temente atingidos por fluxos ou forças, uma vez que
somos máquinas desejantes, especialmente, quando
se manifestam em seus aspectos micro e de baixa
intensidade: tais forças nos atravessam incógnitas,
suaves, discretíssimas, praticamente fora de nossas
percepções. Daí decorre a necessidade de permanente
vigília da consciência, um dos aspectos implicados na
atenção. Com a cultura de massa, as diversas polui-
ções ambientais, a criação de permanentes desejos de
consumo veiculados pela propaganda, todos eles fluxos
discretos que quase não deixam sedimentos, somos
treinados a sobreviver sob o capitalismo, acostumados
às operações de sua lógica esquizofrênica, fatores que
motivaram Guattari a formular a esquizoanálise.
O anti-Édipo é o percurso explicativo para o
entendimento de nosso momento neoliberal, no qual a
atenção se evidencia como um fator estratégico funda-
mental, integrando o rol das percepções, a atenção está
implicada na estética e em sua gama de configurações,
uma das motivações para a organização de nossa
residência artística.
Encadernada sob um formato possível, ela entra
novamente em circulação, como uma segunda edição do
evento. Isto também é um acontecimento.

35
GUATTARI, Felix. As três ecologias. 11ª e 20ª ed. Trad.
Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 2001 e
2009.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. Luiz B. L.
Orlandi. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2010-2011.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil platôs. Vários tradu-
tores. 3 ed. São Paulo: Editora 34, 2007.
BORDELEAU, E. Comment sauver le commun du com-
munisme? Quebec: Le Quartanier, 2014.

36
37
38
39
O que é o acontecimento
conversa com Erik Bordeleau 1

EDÉLCIO MOSTAÇO: Erik, eu queria perguntar-


-lhe, de início: existem várias acepções diferentes
de acontecimento. O que, exatamente, para você é o
acontecimento e como pode contextualizá-lo?
ERIK BORDELEAU: Começamos com as grandes
perguntas. Acontecimento é um conceito muito impor-
tante da filosofia do século XX e tem sido abordado
por diversas escolas filosóficas. Para mim, a questão do
acontecimento é bastante prática, porque relaciona-se
com o campo dos afetos, com a emergência do reco-
nhecimento da importância dos afetos, desde o século
XX até agora, e faz parte de uma abertura à trans-
disciplinaridade. No momento em que se abre para a
filosofia, a questão do acontecimento, da performance,
da teatralidade, da cenografia, torna-se mais impor-
tante também. Tenho minhas preferências filosóficas,
mas o que realmente me interessa na questão do acon-
tecimento é a possibilidade de sair da individualidade
tal como a entendemos. O entendimento, digamos,
clássico, é também capitalista do que é um indivíduo
e chegar à borda deste indivíduo, chegar a este limite,
este umbral, onde há intensidades, onde algo está nos
passando e se pode notar, sentir. E, então, abrir a filo-
sofia ao pensamento sobre estas zonas de emergências
coletivas, de emergência de forças que vão além do
indivíduo, isso me interessa muito. Me parece que o
pensador que abriu este caminho foi Nietzsche2. Em
Ecce Homo (2007 [1908]), há um momento muito es-

1 Conversa realizada no dia 12 de fevereiro de 2020.


2 Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), filósofo e filólogo alemão.

40
tranho, quando ele diz: “Quando vou ao mercado, os
vendedores de frutas não podem resistir a dar-me as
suas melhores frutas”, e disse depois: “Assim tem que
ser o filósofo” . Essa não é uma definição, mas é um
modo de ser no mundo que, para mim, se abre quando
tomamos seriamente a questão do acontecimento.
BIANCA SCLIAR: Erik, talvez seja interessante você
explicitar um pouco melhor como o conceito de acon-
tecimento tem uma relação com os afetos.
EB: Um ponto de referência muito importante para
mim sobre esta questão é a única regra ética que
Deleuze (2003) formulou em seu trabalho, que é o
problema ético fundamental: o de estar à altura do
acontecimento que está nos passando. Creio que
há um sentido intuitivo no que quer dizer: “estar à
altura do que nos acontece”, mostrar-se valioso, mos-
trar-se com as capacidades requeridas pela situação
– esse seria um primeiro sentido. E, a seguir, quando
Deleuze discute tais questões, ao abrir uma dimen-
são mais virtual, quando fala da contra-efetuação
do acontecimento. Isso é um pouco menos intuitivo,
talvez, mas tem uma função fundamental em nossas
vidas. Muitas coisas nos passam e podemos sofrer
com estas situações, podemos estar em uma postura
de passividade ou sofrimento e um grande trabalho
ético é trocar essa postura, ser capaz de enfrentar
algo por que estamos passando e, em um nível mais
virtual, ser capazes de reconhecer os traços que os
acontecimentos passados têm deixado em nós para
começar a elaborar uma nova matéria com estes
traços. Há aí um trabalho que não é somente do pen-
samento, mas, sim, de perceber como o pensamento
é importante para abrir a possibilidade de uma nova
relação com o que está nos passando. E o pensamen-
to é uma coisa, mas faz falta também a capacidade de
atuação, no sentido de ser ator de sua própria vida,
ser capaz de chegar a alguns limites que nos tornem
capazes de ativá-los em nossas vidas.

41
BS: Eu vou dar um salto para uma coisa que eu tinha
planejado perguntar mais adiante, mas acho que é
coerente com sua resposta já alcançar essa questão:
ao falar em estar apto, estar à altura do acontecimento,
pergunto: se é possível e como é possível preparar-se
para o acontecimento? É capcioso porque acho que
quando pensamos em nos preparar para o aconteci-
mento, é muito fácil recair em uma noção de si mesmo
que se instrumentaliza para estar em efeito, apto ante
uma situação externa: a arte seria um modo de nos
tornarmos aptos a perceber o acontecimento?
EB: A questão de como se preparar o acontecimento
me parece super importante. O que escuto de sua
pergunta, é que há a questão fundamental da impro-
visação, e sabe-se que a improvisação é uma mescla
quase mágica de alguns temas já pré-existentes com
os quais se pode jogar e, depois, a capacidade de
escutar as novas harmonias e desarmonias que se
apresentam no momento.
Eu creio que há uma ilusão ou uma ideia um pou-
co ingênua de improvisação, quando se pensa a
fascinação pela potencialidade do instante e que,
claramente, é importante estar aberto a essa questão,
mas, ultimamente, estou mais interessado em trazer
as temporalidades longas dentro do marco desta
improvisação ou desta efetuação momentânea. E
isto opera como uma outra coreografia que se abre.
Como discutimos em nossa residência, a questão
é como nos tornamos contemporâneos de grandes
acontecimentos que nos precedem por anos, às vezes,
séculos? Como somos contemporâneos e como nos
tornamos contemporâneos dos grandes aconteci-
mentos que estão definindo a nossa época? E isto
me parece ser importante manter em um continuum
que se conecta à vitalidade extrema, à potencialidade
extrema do momento em sua pura emergência, mas
sempre mantendo uma disposição para o tempo lon-
go. Então, seria o início de uma resposta acerca do que

42
quero dizer com “preparar-se para o acontecimento”
e “perceber o que faz o acontecimento”, em alguma
medida. Isso não é sempre evidente. Como dizem os
ameríndios: “Quando há um fogo, cada perspectiva
sobre o fogo é valiosa, portanto total”, então eu tenho
um entendimento perspectivista do acontecimento. E
o perspectivismo não é somente uma pluralidade de
perspectiva no sentido, digamos, espacial, mas tam-
bém perspectivas no sentido das forças históricas às
quais nos conectamos.
EM: Isso tem a ver com a questão da atenção? Em que
medida?
EB: Atenção, creio que é uma questão muito impor-
tante, especialmente em nossa época, na qual sabemos
que os novos dispositivos tecnológicos e as mídias de
comunicação estão transformando profundamente
nossas capacidades atencionais. E, outra vez, há um
nível onde faz falta instaurar e estabelecer práticas
para defender nossas capacidades atencionais. Faz-se
necessário que as crianças do futuro saibam ler e sejam
capazes de escutar um tipo de música que requer uma
atenção que não vem tão facilmente, mas para a qual
é preciso ser treinado para um nível muito básico. É o
que eu, pessoalmente, quero para meus filhos, ou para
as crianças ao redor de mim. E, com isso sendo dito,
estamos frente a novos dispositivos tecnológicos que
nos dão novas capacidades atencionais mais à frente
do que se podia fazer antes. Podemos, nesse momento,
somente através da web 2.0, da web interacional, das
mídias sociais, Facebook, Instagram etc., sentir-nos no
mundo de uma maneira radicalmente diferente. Creio
que é necessário tomar isso de modo muito sério, mas
sério com um sentimento um pouco benjaminiano,
em que são novas ocasiões de derivas, novas ocasiões
de distrações que se tornam aventuras da percepção.
Não é necessário ser demasiado moralista sobre essas
novas possibilidades, como certos filósofos podem ser,
mas é necessário tomar de modo muito sério essas

43
potencialidades de agrupamento transindividual, nós,
que estamos enfrentando monstros de novos tipos,
novos fascismos, novas maneiras de nos agregarmos
coletivamente por meio dessas tecnologias e, para
ler os novos movimentos sociais, é importante uma
mescla de capacidade atencional em seu sentido mais
tradicional de ascetismo e capacidade de concentra-
ção e, ao mesmo tempo, é necessário uma imaginação
para estas novas formas que são, na verdade, muito
estimulantes e provocativas.
EM: Mas a minha pergunta tinha a ver com a questão
da preparação à qual você se referiu anteriormente, ou
seja, como se coloca a atenção neste sentido de uma
preparação para o acontecimento?
EB: A questão do treinamento, acredito.
EM: Eu não diria exatamente de um treinamento, mas,
quando você fala, por exemplo, que as novas tecno-
logias nos preparam um determinado ambiente de
recepção, um determinado ambiente de interação com
as próprias dimensões do real, me aparece, também,
que essa questão está ligada com a atenção. Ou seja, o
que nós podemos chamar, exatamente, de atenção? É
um ponto, um estado ou é um modo de estar?
BS: Eu queria continuar com essa ideia, porque me
pareceu muito interessante teu comentário em relação
a uma noção de acontecimento que tem uma extensão
de duração distinta do agora. Isso é uma armadilha
em que nós, frequentemente, caímos, principalmente
em nossa área de treinamento de presença: como se a
presença fosse apenas algo da natureza do instante. E
eu acho que, talvez, a pergunta em relação à atenção
tem um pouco a ver com isso, porque a atenção está
pulverizada em uma série de outras conectividades
que estão além da minha mera existência física e do
recorte do instante e dessa consciência que excede o
que está presente no instante e que nos faz perceber
onde, quando e quais acontecimentos têm algum tipo

44
de valor para que nós possamos responder, reagir,
atuar – o que nos afeta, talvez. Me parece que essa
ideia da hiperconectividade e esse treinamento ao
qual todos estamos submetidos pelas condições so-
cioeconômicas do agora nos retira essa consciência
pulverizada de uma duração maior do que vale, do que
importa nas nossas ações, pois estamos o tempo todo
com urgências, respondendo às urgências, no aqui e
agora.
Proponho para nós, para a discussão não definir o
que seja a atenção, mas diria que, como afirmei antes,
alguns procedimentos são necessários para manter
nossas capacidades atencionais, que surgem com
treinamentos de diferentes tipos. Existem todas as
indústrias terapêuticas baseadas na lei de que estamos
intoxicados com as novas mídias e isso tudo é muito
importante quando estabelecemos este campo mais
individualizado da questão da atenção.
Suponho que, quando se escuta a palavra atenção,
imediatamente, ela é tomada como uma relação con-
sigo mesmo, como “ser capaz de prestar atenção”. O
ponto que eu gostaria de abrir é que a atenção é um
feito fundamentalmente social, é o coração do poder,
onde a atenção se distribui em uma situação: é por on-
de o poder passa. São esses os limites das abordagens.
As aproximações demasiado terapêuticas da questão
da atenção ficam como que encerradas em algo que
pode retornar, digamos, à psicologia – um pouco su-
perficial – e onde a questão da atenção é o nervo da
guerra destes tempos. Então, o passo mais sagaz da
individualidade, quando se trata de questões atencio-
nais, é entender o fato de que prestamos atenção a
algumas coisas – e pode ser um pouco óbvio – porque
há outras pessoas a quem nos parecem interessantes
certos aspectos de nossa realidade, como o caso das
novas mídias, como Facebook, Google etc.: é neces-
sário entendermos que a nova economia está baseada
nesta economia das atenções, são atenções fortemente

45
manipuladas, com efeitos sociais muito evidentemen-
te marcados pela busca de lucro. Estou falando de
Joseph Beuys, para quem tudo isso é uma escultura
social, cujas delimitações são todas baseadas em um
entendimento de valor muito limitado ao lucro.
Outra vez, coisas muito sensíveis, que todos sabemos,
mas como fazemos para passar de uma economia
das atenções, tais como as conhecemos, às ecologias
das atenções, quando criamos outros modos de estar
juntos (e há aí um pedaço de resposta). Um primeiro
passo é reconhecer que, portanto, fazemos nosso yo-
ga, nossas diferentes artes terapêuticas e, em algum
momento, percebemos que a atenção é algo que entra
em um fluxo, um fluxo atencional de uma situação e
isso requer uma abertura para algo que é mais que um
mesmo, algo que chamamos de transindividualidade.
Há diferentes modos de falar sobre isso, que eu chamo
de comum sensível, por exemplo. A questão do comum
é uma maneira de se aproximar do problema da ecolo-
gia da atenção, por exemplo.
BS: Tu entendes, então, que a ideia de ecologia das
atenções se aproxima deste modo de atentividade que
é mais uma experiência transindividual, ou comum do
que uma habilidade em fazer interconexões individual-
mente, não é?
EB: Eu lhes dou um exemplo muito concreto. Em chi-
nês, quando dizemos “tu e eu”, se diz: “Nǐ hé wǒ”. Nǐ: tu,
hé: e, wǒ: eu. Wǒ, a palavra de conjunção, quer dizer paz.
Então, quando dizemos Nǐ hé wǒ, é que para que exista
conexão, é necessário estabelecer coordenadas com-
partilhadas. Nos falta que o mundo se estabilize, que
uma paz se estabeleça para aquele momento, uma con-
junção. E isso é um elemento ecológico, compreende?
Quando se fala em ecologia das relações, é uma maneira
de prosseguir com a questão do acontecimento, é dizer
que fazemos parte de alguns acontecimentos atencio-
nais. Bem, em que ponto estamos dentro ou fora, tudo
isso está em aberto, mas, exatamente por isso, entender
46
o mundo como uma série de forças atencionais, saben-
do que estamos dançando, jogando, aproximando-nos
de alguns, nos distanciando de outros. Vejo capacidades
revolucionárias nesta habilidade de mover-se entre es-
sas forças. Nos faz falta ver ou sentir o fogo e a força do
acontecimento e depois, estar apto a dançar com eles.
BS: Há aspectos que você pode comentar a respeito
dos modos através dos quais essa ecologia das aten-
ções torna possível a transformação social ou fugas
de um capitalismo linear, que opera pela modulação
das atenções?
EB: O que estamos falando pode parecer muito abstra-
to, mas são coisas muito sensíveis. Durante a residência
se falou da relação de mediação e imediação e pode-
ria ser um exemplo dizer: de uma parte, para pensar
a questão do acontecimento, nos falta reconhecer que
estamos sempre dentro de conjuntos de mediações de
diversos tipos - das micropercepções às macropercep-
ções, há mediações de todos os tipos. E, por outra parte,
um pouco do que estava dizendo conforme Nietzsche,
no início, nos falta, também, sentir o fogo, entrar no
fogo, entrar no que Deleuze e Guattari (2010-2011) cha-
maram o corpo sem órgãos. O corpo com órgãos faz-se de
todas essas mediações que nos conectam, mas quando
elas apontam para a questão do sem órgãos, vamos
até a visão do espírito, porque temos órgãos. É esta
a maneira de entrar em liquefação, entrar em outros
estados que possam parecer irreais, mas eu diria que
são muito reais, e que nos permitem entrar no que cha-
mamos de devir, de porvir. São questões grandes, mas
também muito alegres, porque começamos a jogar com
estas dimensões entre a necessidade de reconhecer as
mediações que nos rodeiam e saber que, também, nos
falta, em alguns momentos, sermos capazes de romper
os marcos dentro dos acontecimentos.
Eu, quando era mais jovem, era obsessivo com a ques-
tão de estar no que eu chamava de: “entrar no vivo do
anonimato” ou “entrar no vivo da intensidade que está
47
ocorrendo em uma situação, em uma cultura e venho
aqui para surfar, buscando momentos de alegria alta-
mente qualificada”, digamos.
EM: Erik, vou fazer uma pergunta bastante direta: o
que é o comum do comunismo?
EB: O comum da palavra comunismo vem do livro cujo
título é: Como salvar o comum do comunismo (BOR-
DELEAU, 2014). O comum do comunismo é o que está
fora do comunismo – salvarmos o comum destruído
pelo comunismo – mas, na minha interpretação é o
comum-do-comunismo com hífens, conectados. Qual
é o comum-do-comunismo? Veja, quando eu escrevi
esse livro, tinha fascinação pela imediatez, para en-
trar no fulcro do acontecimento, esses momentos de
transindividualidade um pouco espetaculares, assim
como entrar em uma manifestação ou em um carna-
val, quando se começa a ter certa densidade, que em
uma filosofia mais oculta se chamará egrégora, como
monstros que emergem das forças afetivas locais.
Bom, isso, em uma época, depois comecei a me inte-
ressar mais pelas questões de organização. Então, o
comum-do-comunismo, em sua melhor versão, está em
uma frase de uma escritora americana que diz: “Como
uma tempestade tropical, eu também, talvez, um dia,
serei mais bem organizada”, “Like a tropical storm, I,
too, may one day become ‘better organized’”. Para mim,
isso inclui o comunismo como horizonte ideal, como
dizer que o comunismo é sempre porvir - o avenir do
acontecimento - ou, em sua descrição mais derridiana,
agambeniana: “a comunidade que vem”. É uma espe-
rança de melhor organização, mas é transindividual em
um sentido pós-humano ou mais-que-humano, porque
temos como paradigma da organização um fenômeno
que conhecemos sempre melhor: o da tempestade tro-
pical - para trazer um pouco de drama (risos). Mas, sim,
essa ideia de nos organizarmos melhor com esta tensão,
um organizar que não é humano, me interessa, como
o horizonte de um comunismo que vem, porque nos
falta nos colocarmos à altura do que está acontecendo.
48
E as alterações climáticas são uma das coisas que estão
acontecendo, mas em relação às quais não podemos ter
uma relação fenomenológica, no entanto. Nós as com-
provamos, mas para realmente participarmos delas, é
necessário abstrairmos, ter confiança nos resultados
científicos e criar novos aparatos políticos para nos
transformarmos como coletivos humanos para integrar
este novo componente. Bom, enfim, esse seria o meu
comum-do-comum, tal como o penso hoje.
EM: Eu diria que, para nós contemporâneos, devemos
nos colocar à altura da revolução histórica, no sentido
nietzschiano: Qual a melhor fruta, como valorizá-la e
como nos apropriarmos dela.
EB: Como se acendem devires revolucionários, para
mim, trata-se de uma pergunta importante.
BS: Ou como eles se acendem, não é? Tem um pou-
co a ver com o que falávamos antes, estar à altura do
acontecimento impossibilita que possamos provocar o
acontecimento, porque isso já nos coloca fora do que
está em ocorrência.
EB: Sim, essas são as difíceis questões da imediatici-
dade e da avaliação de responsabilidade que tomamos
sobre algo que nunca pode ser inteiramente apropriado
e – para usar uma palavra mais heideggeriana – a de-
sapropriação do apropriante, há todas essas maneiras
de falar.
Me interessa esse jogo onde há a possibilidade de
uma preensão, de uma captura, de “agarrar” – há esta
possibilidade – mas nos falta, para agarrar as boas di-
mensões, recordar-se, como você disse, Bianca. Não é
todos nós falarmos do cenário da revolução que vem,
é um cenário que vem composto com muitas vozes
e diferentes ritmos. Esta polirritmia – não creio que
limitada a ser teorizada só sobre ela – mas creio que
seja uma das virtudes revolucionárias dos tempos que
vêm. Uma capacidade de idiorritmia, de polirritmia de
tomar essas questões a sério.

49
EM: Coral, também, eu acho. Está muito ligada não
somente ao ritmo, mas também ligada à voz: à voz
e ao sentido de coralidade. Quer dizer, quando você
tem muitas vozes – no sentido da polifonia – é como
compartilhar todas essas vozes sem que elas sejam
achatadas, ou seja, colocadas de lado.
BS: Quando você fala de coral, penso na coralidade,
no teatro e em como nós tomamos mal essa lição
da coralidade, transformando-a em um exercício de
obediência e não de habilidade em tornar-se coletiva-
mente responsivo para um desejo que não é uma soma
de desejos individuais, nem tampouco uma negocia-
ção de quem tem a vontade mais forte, mas, sim, uma
capacidade de estar disponível ou de tomar o passo de
acordo com o passo que se faz no estar junto, na co-
letividade. É um exercício que, hoje, vejo ser cada vez
mais difícil e mais importante, porque se transformou
em obediência, como em qualquer tipo de improvi-
sação. Na coralidade, há algo interessante, porque a
estrutura de improvisação que sobra é muito mínima,
então, não há uma transcrição de gestos como seria na
música, onde existe algum tipo de organização prévia:
ali, é mera existência.
EM: E eu diria que é mera dinâmica. Ou seja, a corali-
dade – pelo menos também como eu a entendo, nesse
sentido mais forte – não é uma coreografia coletiva,
nesse sentido banal da expressão, mas é muito mais
um pulsar de intensidades que encontra um diálogo
harmônico, que encontra um dialogismo harmônico
em sua emanação.
BS: Erik, eu queria que comentássemos, dentro desse
contexto, claro – porque também é uma pergunta que
poderia nos levar para outros problemas, outras ques-
tões filosóficas – sobre a noção de hospitalidade. Me
chamou muito a atenção algo que você me segredou
após o festival, a respeito de como as performances
teatrais sempre terminavam e eu nunca tinha repa-
rado nisso, apesar de já ter assistido a espetáculos em
50
diversos lugares do mundo. O Erik comentava ter se
impressionado como as pessoas agradeciam no final,
tanto os encenadores, quanto os atores e ele disse ja-
mais ter visto isso em lugar algum. Ele disse: “eu nunca
vi, as pessoas terminam e agradecem ao iluminador,
ao amigo, aos atores, ao diretor, ao fotógrafo”. Todas
as performances tinham esse ritual de generosidade
com um fazer, com aquela força de conjunção social
que tornou aquele objeto artístico possível.3
EB: Não é que não se faça em todas as partes, em todos
os lugares as pessoas agradecem, mas aqui, parece ser
um gênero em si mesmo, um tom. E não é somente
nos espetáculos teatrais, mas também após diversos
tipos de acontecimentos, pessoas que tomam um tom
particular e começam a falar com muita estabilidade e
agradecem a tudo o que está em torno. Bem, não quero
fazer uma antropologia selvagem do Brasil, mas uma
das razões pelas quais eu estou aqui, felizmente con-
vidado por outras pessoas, é porque reconheço uma
potência social única em uma mescla de forças que
não reconheço em outras lugares onde vivi. Venho do
Canadá e lá é um lugar onde há uma privatização exis-
tencial muito forte. Estamos muito isolados e mesmo
que se tenham muitos amigos de diversos tipos – há
muito menos ocasiões como estas de criar um comum
com esta qualidade, que é mais ritualizado e que tem
formas próprias de ritual, porque se sente que há uma
repetição. Por isso digo, há um tom tão estabelecido,
me parece, tão banal, que passa despercebido para
quem está acostumado, e vejo como algo terapêutico
e que tem um sabor e um saber. E o sabor e o saber
têm muito a ver. O saber dá um pouco de gosto à vi-
da. E, aqui, há um saber sobre as formas ritualísticas
que gostaria de trazer comigo e para outras partes. E
dentro de um marco, digamos, revolucionário mais

3 As referências são relativas às várias apresentações artísticas ocor-


ridas no 1o FIK e, em alguns casos, as apresentações fizeram parte
também da residência.

51
global nos falta esse tipo de saber para que não nos
esgotemos nos atos de grandes trocas. Nos faltam atos
de retorno, de devolução. Falamos muito de devir, mas
há também o “revenir”, o retornar. São movimentos
realmente importantes, mas talvez os modos de falar
de devir tenham que comportar o saber e aprender a
retornar realmente e humildemente. E, aqui, sinto que
há uma arte coletiva para envolver estas forças – isso
é algo que me toca muito.
BS: Eu quero te pedir para falar um pouco sobre a
noção de escultura social. Quem esculpe? De onde
vem essa escultura? Como essa noção do Beuys está
entrelaçada com esse modo revolucionário que você
comenta como sendo uma reconfiguração de valores.
EB: Quando começamos a pensar esse evento e o
conceito de escultura social começou a emergir para
mim, Bianca, com sua pesquisa em torno de Beuys, eu
gostei muito e me chamou a atenção, porque parece
que abre um horizonte especulativo e participativo
em questões que, frequentemente, parecem muito
grandes. Quando se trata, como quando falamos an-
tes, de questões como novas mídias, mídias sociais e
redes, nos parecem fenômenos tão grandes que não
sabemos sequer como entrar em relação com eles.
Estamos presos a eles de modos muito íntimos, mas
é difícil, ainda, imaginar que se pode voltar a uma
matéria de escultura social. Me interessa muito abrir
o horizonte especulativo presente na história da arte,
então, a partir dessa ideia, eu trago meu interesse
dos últimos anos sobre as questões de valores e, mais
precisamente, sobre as formas financeiras como meios
de escultura social. Então, a questão do dinheiro, co-
mo o dinheiro faz uma sociedade, como distribui as
forças: tomar uma perspectiva artística ou estética
sobre questões financeiras me parece uma maneira de
reunir a questão da escultura social com a questão da
ecologia das atenções. E Beuys é uma inspiração, é al-
guém que é necessário redescobrir, me parece, porque

52
sua importância é fundamental. Eu, com seu convite,
redescobri Beuys. Descobri, por exemplo, que ele foi
um dos cofundadores do Partido Verde na Alemanha
nos anos 1970 e ele chamava isso de arte: Isso é arte.
Todos somos artistas e isso é uma criação. É muito
fácil entender essa ideia de que somos todos artistas
como um reforço da individualidade, mas eu entendo,
quase 50 anos depois, como: somos todos parte da
escultura social em devir e, então, decidimos até que
ponto nos entregamos aos acontecimentos e até que
ponto tomamos responsabilidades, digamos, mais de
coração, porque também temos estes momentos em
nossas vidas que temos a noção de que precisamos
fazer escolhas mais curadoras, mas a maior parte do
tempo estamos mais entregues às esculturas de outros
e, então, falaria de hospitalidade. Porque para a arte da
hospitalidade são necessárias decisões acolhedoras,
atos de generosidade, no entanto (e depois), há toda a
dança entre a pessoa acolhida e a acolhedora – escul-
tura social, talvez, também nesse nível.
A questão da escultura social com Beuys e da maneira
como temos falado, a questão de tomar esse feito mais
repulsivo, repugnante com a questão do dinheiro e
incluí-la em nossa reflexão sobre as formas sociais,
me parece uma necessidade. Em minha trajetória
pessoal, é uma correção acerca de uma romantização
das forças transindividuais. Nos falta reconhecer que
a sociabilidade, tal como existe em nossa sociedade,
não é somente a busca dos momentos de fusão cole-
tiva, transindividual e o fogo do acontecimento: nós
queremos isso, mas o capitalismo não funcionaria se
não houvesse uma relutância, ao menos tão forte,
de privacidade, de retiro, de paz, fora do marco da
sociedade e de seus rituais próprios. E me parece que
para abrir a caixa escura do dinheiro e as surpresas
sobre nossos afetos mais íntimos, menos admissíveis
– porque o capitalismo funciona com as matérias
escuras de nossas vidas, senão seria muito fácil re-
vogá-lo – e, ao chegar a esta intimidade com as forças

53
financeiras, com as forças do dinheiro, aí, nos faz
falta um comum sensível que cada vez mais arrasta
nossas existências, indo pegar um pouco mais desta
intimidade ambivalente e, talvez, encontre aí um
modo de expressar-se de novo. A confissão seria um
desses lugares, onde algo se põe em movimento.
EM: Já que você tocou nesse assunto, vamos falar
um pouco sobre valor. Como o valor atravessa todos
esses movimentos a que você acabou de se referir?
EB: A questão do valor me parece difícil e, uma ma-
neira inicial, é nos darmos um pouco de liberdade
acerca de como a palavra está sendo usada na socio-
logia, na economia, ou do modo marxista: valor de
uso, valor de câmbio etc. Damo-nos um pouco mais
de ar para poder, depois, integrar valor de modo
mais perspectivista. É como dizer: cada vez que algo
chama a atenção, por diferentes razões, há aí, talvez,
um valor em formação. E depois podemos entrar
em graus de atualização de valor. Isso supõe que há
alguns valores virtuais com os quais se pode entrar
em contato em momentos particulares, como em
sonhos, em momentos de inspiração, mas, ao trazer
esses valores, há algo que se torna social – é nesta
passagem, para mim, que se encontra a questão do
valor. Assim, há uma atualidade nos valores. Se não
há atualidade, se não há ativação através dos valores,
algo falta para falar de valor.4 E é aí que se pode dar
uma interpretação, talvez, um pouco especulativa ou
alucinada. O dinheiro faz com que as coisas passem,
você paga alguém, a emprega, criam-se alguns dispo-
sitivos disciplinares, mas precisa-se do dinheiro para
que os agenciamentos sociais funcionem em nossa
sociedade. Valor e dinheiro não são a mesma coisa,
mas se vê que uma relação muito íntima está aqui em
movimento. Essa seria uma primeira aproximação da

4 A referência à “atualização” ocorre aqui em torno do par atual-virtual,


como pensada por Deleuze.

54
questão do valor, digamos. Não sei como se chama a
atenção que vocês dão à questão do valor.
EM: Eu, pessoalmente, nunca aprofundei essa
questão para mim mesmo; ela começou a ficar sig-
nificativa depois do encontro com vocês. Eu sempre
pensei o valor do ponto de vista ético, sempre tomei
nessa dimensão, ou do ponto de vista financeiro-eco-
nômico, mas nunca tinha pensado além desses dois
planos.
BS: Eu percebo muito como temos implícitos modos
de atribuir ou reconhecer valores que são extrema-
mente lineares e baseados no quantitativo capital
ou neoliberal e que acabam sendo transpostos para
outras relações. Inclusive, voltando à questão do
ritmo, dou um exemplo: eu sempre presto muito
atenção a uma reunião onde se está tomando algum
tipo de decisão difícil. No contexto da branquitude
existe um valor em quem fala mais rápido ou mais
alto, uma pessoa que tem uma hipercapacidade
de articular consecutivamente. Assim, parece que
é capitalizado um valor para aquela opinião, para
aquela posição; e as pessoas que têm uma fala mais
lenta, que demoram para articular as ideias, imedia-
tamente, são desvalorizadas. É um modo de transpor
a organização do capital para certas relações sociais
que não têm nada a ver, diretamente, com a efetivi-
dade daquela relação, porque não necessariamente
vai ser a melhor voz, ou a melhor decisão. Presto
muita atenção ao valor em relação a isso, ao que é
importante e mantido como pulso periférico no ‘ga-
gejar’, tropeçar com as palavras, inspirar lento como
força de atenção. É como na sala de aula, quando,
imediatamente, atribuímos valor ao estudante que
está elaborando uma questão naquele momento e,
também, ao contrário, àquele que se acha um grande
revolucionário por não ceder, quando a pessoa diz:
eu não vou entrar no sistema de valores porque sou
diferente, eu tenho uma outra opinião…

55
EM: Ou, principalmente, quando é assim: eu não vou
entrar no seu valor. Quer dizer, eu tenho e reconheço
os meus valores, mas não vou entrar nos seus valores.
Então temos um impasse ético.
BS: Eu acho que, de certa forma, Erik, todas as ques-
tões que estão tangenciando o teu trabalho sobre
a filosofia do capital e, principalmente, esse estudo
que você tem feito sobre os modos de construção de
valores financeiros através de sistemas imateriais, ou
seja, sem um lastro de commodity – o que não deixa
de ser uma especulação sobre as atenções, é uma es-
peculação financeira sobre conglomerados de atenção
e não sobre lastros materiais – elas virão a ter uma
implicação, elas vão respingar e vão reverberar no
modo como começamos a construir outras capacida-
des de valor em nossas relações coletivas, para além
do financeiro.
EB: Falando do financeiro, do que aprendi quando
era pequeno, sobre a questão ética do valor quando
nos perguntavam, em aulas de ética e religião: quais
são seus valores? Eu tinha doze ou treze anos e me
sentia muito mal. Eu não me via nominando meus
valores, me parecia a receita para produzir clichês, pa-
ra produzir banalidades, porque, ao final, depois que
tivéssemos definido nossos valores, supostamente,
teríamos construído um “nós”, um “pensamos assim”.
Algo em mim resistiu até agora, mas eu gosto de fi-
nanças, elas me parecem uma produção de saber que
me interessa, porque estão muito próximas do acon-
tecimento em um sentido em que nunca se fala, que
é o do descobrimento de valores, value discovery, é a
função dos mercados: os mercados estão superiores
em seu modo de organização, porque deixam passar
um processo de descobrimento imanente.
Quando um grupo, pequeno ou grande, pensa em or-
ganizar a cidade por declaração de valores em comum,
como temos neste momento em Quebec que está em
um momento, digamos, pré-fascista ou, digamos (não
56
posso falar muito da questão brasileira, mas sabemos,
de fora), sobre o que estão investindo aqui com as
declarações de valor do Brasil. Bem, se vê o quão ri-
dículo e caricatural cada processo de nominação de
valor pode ser. Eu tenho, uma sensibilidade: gostaria
que as pessoas levassem mais a sério os processos de
descoberta do valor, como uma provocação, ou uma
proposição um pouco desafiadora: isso quer dizer
reconhecer que nas finanças está ocorrendo algo
importante, que há modos de entrar em uma relação
prospectiva com os valores que nos rodeiam. Essa,
talvez, seja uma visão um pouco alucinada sobre as
finanças, mas a questão do value discovery, do des-
cobrimento do valor, é fundamental e conecta, creio,
com o que discutimos antes, sobre o que quer dizer
treinar-se a estar aberto às potencialidades de um
acontecimento. São muitas máximas para dizer que
falta «ser água», faz falta seguir as correntes. Pode
ser superficial, mas dá uma ideia de como saberes são
produzidos nesses âmbitos em que as coisas se movem
muito rapidamente.

BORDELAU, E. Comment sauver le commun du commu-


nisme? Québec: La Quaternaire, 2014.
NIETSZCHE, Friederich. Ecce Homo. São Paulo, Martin
Claret, 2007.

57
58
59
PLANOS DE CURA
REFAZER O CORPO ATRAVÉS DA
ESCULTURA SOCIAL 1
BIANCA SCLIAR

Há vinte e cinco anos penso este texto, quando conheci


o trabalho de Beuys (1921-1986), ainda aluna da licen-
ciatura em artes plásticas. Eu canto este texto com
alunas e alunos, que me sopraram palavras de dor ao
longo de longos meses de pandemia, em que estivemos
devastados por novos protocolos, cumprimentos,
urgências, medos, créditos a serem pagos, créditos
a serem cumpridos. Aqui, divido um relato sobre uma
RESPIRO

série de encontros que nos mantiveram em comunhão


no decorrer de 2021, em um suspiro de resistência que
sucedeu aos encontros tão vívidos que deram origem a
este livro. Costuro este texto com a paciência do meu
filho de trezanosequatrocentosemilanos, nos meses
em que o observei a aprender a se virar diante da panela
de pressão, enquanto eu traduzia e dançava e tentava
compor sobre a importância da escultura social, do
feitiço e ciência do qual a arte é capaz, restrita pelas
telas e em isolamento. Seu corpo aprendeu a fazer
bigodes e isso não é um acaso, é apenas a lembrança
dos pequenos milagres dos quais o corpo é capaz, em
matéria. É uma lembrança de que há nas brechas, nas
frestas, nas dúvidas, o desejo de criar.
Eu penso-danço estas palavras com Erin
Manning (2019), que me tragou para a universidade e
me fez crer que é possível repensar práticas do pensa-
mento no fazer: faço roda com a coragem de autores,
artistas e brincantes que insistem em querer saber, em
querer dar as mãos. Esculpo com A. N. Whitehead e
sua filosofia do organismo, guardada pela teologia da
libertação para poder ser reinstaurada no campo da
estética, quando a relação passa a tomar a frente do

1 Texto escrito a partir da colaboração com Leonardo Saconatto, Victor


Hugo Lago e Alice Rover, bolsistas de Iniciação Científica, ativadores
das práticas realizadas em laboratórios de improvisação virtuais.

60
fazer das coisas. Tento aqui delinear, através do estudo
de Joseph Beuys, modos de tornar sempre possível a
arte, que se distingue daquela que ele chamou de arte
tradicional, “incapaz de trazer à tona a arte em si, nem
de trocar qualquer coisa, nem com a sociedade, nem
tampouco com a habilidade e contentamento com a
vida” (BEUYS, 1990, p. 75, tradução minha), interes-
sando-se em fomentar uma arte que se relaciona às
necessidades e aos problemas existentes na sociedade.
Para Beuys, “este tipo de arte deveria ser formulado
desde o princípio, a partir de sua potência em modelar
o poder do pensamento através de uma lógica escultó-
rica” (1990, p. 75).
Penso com a Fapesc, agência de fomento que
financiou parte deste trabalho, possibilitando que
confeccionássemos eventos, encontros, piqueniques,
leituras e este livro, enfim, esculpíssemos dúvidas e
pensassemos com. “Pensar com”, como insiste Isabelle
Stengers (Sztutman, 2018) é estabelecer alianças. O com
é imprescindível, inalienável, inegociável para a criação
do comum possível, para que seja instaurado, sobre os
processos de encontro, o cuidado que demanda a noção
de práticas artísticas enquanto escultura social.
O termo, cunhado pelo artista alemão Joseph
Beuys, na década de 1960, resulta da extensão de
sua prática como artista visual e sua intensa atividade
docente, que abrangeu desde a arte comunitária e
relacional, a formulação de teorias sobre o deter-
minismo material, até a defesa de alternativas para
operar o impacto do capital na construção de valores
simbólicos, que pudessem renovar a polaridade entre
o capitalismo e o comunismo estatal. Beuys defendeu
o papel do artista enquanto criador que se ocupa com
matérias que extrapolam a produção de bens simbó-
licos, sendo um escultor de modos de sociabilidade,
em suas criações que inauguraram a noção de uma
pedagogia da percepção como raiz para a composição
de um coletivo por vir.
Destaco a importância do corpo-sentido, noção
fundamental para a compreensão das forças vibrá-
teis, cuja manipulação Beuys desejava pôr em suas
proposições sobre os materiais, almejando impactar
a transformação do corpo social. “O corpo é um
desdobramento imediato e / imediado / de sua relação

61
com tudo o que não está presente e seus sucessivos
potenciais de variação», descreve Massumi (2002, p.4,
tradução minha), em uma formulação que nos auxilia a
compreender o corpo como extensão de sentidos que
ocorrem em instâncias que por vezes não compõem
aquilo que chamamos de “presença” no senso comum.
Faço essa digressão sem receio de enfrentar que
estamos fartos do empilhamento de tentativas em definir
o que é um corpo, o que pode um corpo, ou da contagem
de quantos sentires compõem um encontro. São muitas
as armadilhas que nos levam de regresso a concepções
sobre o corpo, ao reduzirem o acontecimento à unidade
daquele que sente. Tal redução evidencia que ainda
não compreendemos a complexidade do perspecti-
vismo e a magia dos encontros, para citar apenas duas
abordagens que parecem hoje provocar menos espanto
nos círculos acadêmicos do que dantes e que tecem
as filosofias decoloniais, na tentativa de descrever
e destacar com menos substancialismo aquilo que
podemos perceber estar em ocorrência.
Algo se move para além da superfície das coisas,
cujas forças guardamos secretamente - são pulsos que
merecem ser compreendidos para além da metafísica
de contraposições entre “real e imaginário”, ‘particular
e comum”. “O sentimento de que algo nos escapa e
ao mesmo tempo nos anima, o sentido de um ritmo
e de um momentum que faz o mundo, uma espécie
de segredo que nos retém juntos e que outrora foi
chamado de solidaridad e que compõe nossas forças
primárias de existência.” (BORDELEAU, 2014, p.232).
Este é o comum vibrátil que Beuys almejava mobilizar
em seu empreendimento de Escultura Social: é preciso
fazê-lo ressoar e criar modos de dar-lhe sentido. Para
que o comum vibrátil ressoe, é preciso pensar com,
chamando à assembleia dos saberes corpos que
outrora não foram convidados.
Refiro-me aqui não só aos corpos de aparências
divergentes e diletantes, mas aos corpos que sequer têm
forma, o mundo dos não humanos e das indeterminações
com os quais, em alguma instância, nos relacionamos:
os encantados, a fé, a promessa, o pacto, o pulso, a
memória do futuro. Estes corpos vibram a matéria,
esculpem a experiência, embora, tanto quanto nós,
também não possam ser definidos por uma substância.

62
O que narro neste breve texto, são anotações
sobre uma prática que se confrontou com a vontade
de misturar àquilo que vibrava, cujos efeitos pareciam
não ser transferíveis pelas mídias habituais. Em 2020,
após nossa residência no FIK, mergulhamos em uma
pesquisa sobre as práticas xamânicas de Beuys,
interessados em saber como suas noções de escultura
social poderiam oferecer pistas para compreender os
planos de cura em proposições de improvisação e
que ultrapassassem o conceito de corpo individual.
Ao evitar concepções erguidas sobre pessoalidades,
buscávamos uma amálgama para composições
transindividuais na prática de estúdio.
Já era evidente a necessidade de evadir das
noções obsoletas de intersubjetividade, pois partimos
do pressuposto de que desde este campo vibrátil
comum não há sujeitos pré-formados que entram em
relação. Compreendemos, assim, que os planos de
cura abertos através do lastro deixado pela Escultura
Social procuram o espaço da amizade, essa dessubje-
tivação que indica tendências simultaneamente íntimas
e individuais. Há aqui uma emergência sensível do que
não tem aparência, mas tem semblância, dá consis-
tência à relação sem consistir.
A feitiçaria, a magia e o animismo se ancoram
nesta vitalidade de afetos que nós, professores e
criadores sabemos ser incontornável. O levante
assinado como “Clamor pela magia”, de Diana Baker
e Starhawk (SZTUTMAN, 2018), nos pareceu bastante
significativo, ainda que fosse necessário tomá-lo
sob nossos próprios termos e antropofagias. Jamille
Pinheiro Dias traduz o manifesto de Baker e Starhawk
e destaca a necessidade de reativar a feitiçaria “a fim
de abarcar o potencial terapêutico e político da ideia de
magia”, embrando que “a história do termo passa pela
ligação entre magia e espiritualidade e transformação
social e política”. Sublinho em coro que a noção de
“reativar” diz respeito, não a um gesto nostálgico de
repetição do passado, mas a ações e práticas situadas,
norteadas pelo empirismo e pelo pragmatismo que
observo estarem em curso.
Diante de um projeto investigativo que previa
a ação e práticas de movimento em alguns bairros da
cidade de Florianópolis, as condições de encontro

63
foram alteradas bruscamente por um panorama ecoló-
gico que demandou a tessitura de novos modos de
relação. Sem ousar recortar todos os âmbitos em
que o isolamento social provocado pela pandemia
de Covid-19 modulou nossos rumos investigativos,
ressalto apenas que se tornou incontestável aquilo
que a filosofia da performance já sublinhava há
alguns anos e que me esforcei em demonstrar em
outros artigos: ambiente, espaço e chão não são
suportes estáticos - em nada se aproximam de um
contêiner para o agenciamento de nossas ações e
práticas. O chão é repleto de movimento, assim como
o ar, o clima, que dançam conosco ritmicamente e
tonalizam a experiência de modo sempre radical. A
corporealidade, ou ação vibrátil destes elementos foi
feita secundária em nome de um discurso humanista
que herdamos com fidelidade de outras eras. Não
há, portanto, modos de socialidade puros, movência
sem entorno: o corpo é meio. É na movência que
guardamos a possibilidade de inclinação para
colaborar. Tal como Massumi destaca, a “interação
ocorre antes mesmo de qualquer dimensão individual
ser expressada” (2002, p.9, tradução minha). Isto
posto, é evidente que, quando perdemos o chão de
encontro, nossos hábitos de autorregulagem foram
transpostos e esculpidos por um panorama onde a
troca passou a ser possível apenas a partir do viés
estrito da linguagem e de códigos duros que nos
restringiram a elementos simultaneamente exces-
sivos (por sua redundância) e urgentes (por forçarem
um tipo de contraste de trocas que desprezava o
sutil, considerando tudo cujos efeitos não poderiam
ser imediatamente mensurados, como elementos
desprezíveis na interação e nos ajuntamentos).
As possibilidades de congregação que nos
restaram achataram as assembleias a pitorescos
espaçamentos predefinidos. Nos sistemas de reuniões
virtuais disponíveis, cada sujeito ocupa um espaço
igual em nosso aparato cognitivo - perdemos volume
e variação de intensidade. Restritos à frontalidade
e ao face-a-face que outrora pareceu um encontro
desestabilizador (LEVINAS, 2010), agora posicionados
apenas diante dos ‘amigos’. A face visível não é, neste
contexto, a face de conflito e fricção, mas a máscara

64
intangível da concordância pacata. As estruturas de
encontro virtuais pressupõem, mais do que qualquer
outra instauração, uma supremacia que apaga a diver-
sidade através da imposição de ritmos e diretividades
imediatas. Mais do que nunca, passamos a ser coreo-
grafados e a esconder o mais-que do corpo, compondo
presenças pasteurizadas pela tela e seus avatares. Nos
encontros online, os modos através dos quais perfor-
mamos estratégias de integração, de improvisação, de
participação ficaram repentinamente obsoletos.
Esta pasteurização abafou ecologias de práticas,
o saber sobre as relações que arrisca colocar algo em
ocorrência antes de estabelecer unidades. A ecologia
de prática, definida por hábitos que trespassam a
carne, passados por naturalidades e que marcam
diferenças, aproximações, distribuídos no contínuo
entre natureza e cultura é o que nos joga ao Materia-
lismo Incorporal, cuja importância Massumi ressalta
(p.11). Defendo que a ecologia de práticas é a matéria
que compõe a Escultura Social em Beuys - o campo da
vitalidade dos afetos que foi dispensado nos tutoriais
e experiências mediadas pelas telas. Se, neste plano,
o insensível comum passou a estar suprimido, como
seria possível acessar nosso desejo de experimentar
a magia da improvisação, a capacidade de esculpir a
vitalidade coletiva necessária ao estudo dos planos de
cura desde a distância?
Nossa pesquisa sobre os planos de cura estava
irremediavelmente alterada. O corpo não poderia de
modo algum ser considerado como estrutura mínima
do acontecimento e era necessário abarcar aquilo
que Deleuze e Guattari descreveram na frase revela-
dora: “Minha ferida existia antes de mim, nasci para
encarná-la” (2010-2011, p.151). Se há um impulso
de mover-se para fora de si, diferenciar-se continua-
mente, se somos interioridades repletas de exterior, no
corpo há tão-somente encarnações do Fora, âmbito
em que as práticas artísticas de natureza relacional
podem atuar enquanto articuladoras dos planos de
cura através do comum.
Enquanto nos mantínhamos isolados e imersos
num plano investigativo, elaborávamos nossas revisões
bibliográficas, análises e laboratórios de improvisação
virtuais, ainda ancorados em estruturas que emulavam
nossas práticas em estúdio (provocações, tempo de

65
investigação, exibição e partilha com o grupo), algo
significativo acontecia.
Que verbo era esse que nos tomou de sopetão,
quando os encontros partilhados passaram a nos
conter apenas na dimensão do retrato? Nós, artistas
do volume, dos cheiros, ritmos e vibrações, a trafegar
exclusivamente como se fôssemos imagens. Imagens
sem acontecimento? Se, como escreveu Deleuze “ Um
acontecimento não é somente ‘um homem esmagado’:
mas também a grande pirâmide, uma passagem da
Natureza ou uma passagem de Deus uma visão de Deus.
Quais são as condições de um acontecimento?” Ainda
distanciados, precisávamos “acolher que o aconteci-
mento se produz em um caos, em uma multiplicidade
caótica, com a condição de que intervenha uma espécie
de crivo (DELEUZE, 1991, p.117).
Tínhamos o caos, o desejo por planos de
cura, perguntas que queriam escapar às escalas de
fenômenos imediatos e o cuidado em evitar confundir
o acontecimento com uma impressão espetacular de
‘fatos’, atentando para considerar no tecido dos encon-
tros, fenômenos e ocorrências de distintas naturezas
(MASSUMI, 2011). Seria preciso ser fiel ao aconteci-
mento, deixar-se mover por ele sem objetificá-lo.
Sabendo que a Escultura Social joga com a
poliritmia entre Wirkwesen (causa eficiente) e Wirkungen
(efeitos), termos cunhados por Beuys, retomamos a
prática da improvisação na procura por uma política de
um corpo coletivo, fundamental a modos de afiliação
mediados pela tecnologia. Mas como ativar rituais neste
contexto e alcançar a escultura prevista pelo escultor
através de suas imensas matérias plásticas? Qual
aspecto da magia estava de fato a nosso alcance?
Foi à sombra desta pergunta que recebi o relato
de uma aluna. Empresto aqui suas palavras:
“Não estava fácil viver durante os últimos meses.
O medo de que esse presente tão assustador não
passasse aumentava cada vez mais; o medo de perder
pessoas queridas, a ansiedade e o desespero trans-
formavam meu corpo, e a falta de apetite e o mal-estar
estavam presentes todos os dias. Foi quando eu falei
em um encontro que estava difícil continuar com a
pesquisa e, no mesmo dia, encontrei-me na sala virtual,
lendo o prefácio de A Manga Perfeita. Aquele dia eu me

66
emocionei e não contive o choro. E, dessa vez, diferente
de todos os outros últimos dias, o meu choro não era de
desespero e angústia. Era um choro de esperança. Ler,
compor e viver A Manga Perfeita me deram esperança
de que a vida poderia seguir sem toda a dor que eu
sentia. Erin Manning me fez mais forte.”
Propus a instauração de um salão de leitura e
improvisação junto do livro A Manga Perfeita. Demos
o nome desta etapa da pesquisa de “Planos de Cura
através da Manga Perfeita”. Este é o primeiro livro de
Erin Manning, uma novela publicada em 1994, escrita
aos 25 de idade, quando “o terrível despedaçamento
que vem com a agressão sexual dobrou-se profunda-
mente em seu corpo e pensamentos de suicídio estavam
sempre por perto”. Erin Manning escreveu os dezenove
capítulos do livro em dezenove dias, em uma espécie de
operação de autorresgate, quando a escrita se tornou
uma maneira de fazer (e sentir) a vida de outra forma. A
Manga Perfeita convida a estar em excesso, a considerar
a procura por “condições para viver além da crença feroz
do humanismo de que nós, os privilegiados, os neuro-
típicos, os ainda incólumes, os corpos capazes, é que
guardamos a chave para todas as perspectivas no teatro
da vida” (MANNING, 2019).
O salão de leitura foi instaurado com periodici-
dade semanal, em que mantivemos um fluxo livre para
participação – sendo possível apenas ouvir, integrar a sala
com imagens, sons, ou mesmo mantendo as câmeras
fechadas, participando apenas como testemunha dos
experimentos. Assim, estendemos a preocupação com a
materialidade e com a composição, respeitando o campo
de atenções de acordo com os preceitos de Beuys, que
nos pareciam estar adormecidos com a hiperconectivi-
dade virtual imposta pelas circunstâncias sanitárias.
Nossos encontros, restritos às instâncias de
visibilidade possíveis, nos levavam à tensão entre as
aparências e a ideia de processo criativo enquanto
feitiçaria, que Beuys esforçou-se em compor através de
suas práticas em escultura social. Há algo implicado nos
materiais empregados no processo de criação e impro-
visação, a noção de uma “consciência não encarnada”
(Beuys, 1990, p.32), que extrapola o plano físico.
Tornou-se evidente em nossas tentativas de
tornar o encontro possível, a presença viável, a dúvida e

67
a novidade articulável que, tal como descreve a filósofa
Maria Zambrano, “Só há como salvar as aparências às
custas da loucura do corpo”: o acontecimento sempre
nos escapava. Aqui, não almejo descrever estratégias,
exercícios, nem tampouco as imagens geradas durante
os encontros, mas, sim, destacar o aspecto relacionado
tanto ao acontecimento quanto à presença que nos
faltava e que insistimos em contornar. Através da leitura
coletiva do livro de Manning, da criação de imagens
espontâneas, improvisações mediadas, recuperamos
os princípios de que os materiais que nos uniam não
deixavam de acolher “o caos, a temperatura, os nexos
possíveis” (Beuys, 1990, p.32, tradução minha). Lemos,
movemos, compomos através de contornos de ativação,
na procura por: 1 – alterar a qualidade de ritmo contínuo
que a presença mediada impunha e 2 – ocasionar um
sentir-em-movimento.
Se considerarmos que há uma sintonia de afetos
que constitui as sensações do corpo, autorreflexiva, sim,
mas primordialmente relacional, podemos identificar
o corpo como o autoarquivamento de um universo de
relações sentidas. Situar-se enquanto corpo ocorre não
por dados concretos (limites físicos) mas no âmbito
relacional. Há, portanto, uma intersecção entre estar em
movimento com o próprio acontecimento, um princípio
de “co-composição” de onde a novidade surge.
O acontecimento encontra-se na habilidade de
ativação e é aí que detecto um certo feitiço que reflete
as concepções xamânicas em Beuys. A manipulação
de materiais é estratégia para a composição de
coletivos de atenção.
A partir do texto A Manga Perfeita, tínhamos em
mãos um campo de pensamento em fluxo, um padrão de
enunciação nômade, costurado por sobreposições de
memória, remanejando papéis entre sujeitos conotados
por dor e também apetites e curiosidades sobrepostos.
Manning escreveu para encontrar uma técnica de sobre-
vivência: nós lemos, dançamos e ativamos o salão para
revitalizar um campo coletivo no momento de distan-
ciamento social. Existia algo eminentemente íntimo nas
palavras de Manning, da mesma maneira em que nossos
percursos sobre elas eram domésticos, recusando-se
a nos domesticar durante os encontros. As imagens do
livro sugeriam movimentos de associação que mimeti-
závamos, contrapúnhamos, ressoávamos. Adicionamos

68
funções a um cabideiro, empurramos os móveis do
quarto, rearranjamos o jogo de luzes, cavamos buracos
no quintal, cobrimos o rosto de feijão e o braço de prende-
dores-de-roupa, corremos no jardim, ateamos fogo em
frestas, dançamos por trás das cortinas, compartilhando
sem ensaio as poéticas disponíveis.
Ao conceituarmos uma experiência transindi-
vidual do corpo, que existe em contínuo e se estende
desde massas concretas até geometrias intensivas,
movediças e abstratas, pudemos perceber o domiciliar
como um dos principais campos-vetores do processo
de subjetivação da quarentena. A cada encontro online,
jogávamos com a principal tendência coletiva que nos
perpassava, precipitávamos outros corpos com os
elementos que surgiam no texto, feito corpo em nossas
vozes dissonantes. Levamos, assim, as preocupações
de Beuys de encontro com o que chamamos de uma
concepção somática do corpo social para refletir sobre
práticas de atenção e reconhecer os planos de cura ao
nosso alcance.
Stengers (SZTUTMAN, 2018), ao animar as
práticas marginalizadas e desqualificadas pelo mundo
moderno-capitalista, tais como a magia e a feitiçaria,
sugere serem estas modalidades de resistência política
e modos de recuperação de um “comum” indispensáveis
ao que nosso grupo chamou de planos de cura. O que
concluímos, da experiência do Salão é que haverá muitos
planos a serem sanados nos meses e anos por vir e que
será imprescindível recuperar a alegria de estar junto,
não de modo ingênuo, mas disposto a compor e fertilizar
encontros, interstícios sem encaixes deterministas, que
nos permitam esculpir este “agente inicial do pensa-
mento”, ao qual Beuys se referia, desde o princípio, nas
forças pré-forma.

Sou a convalescente. Acordo com os sons do mundo


ressoando em meus ouvidos procuro por saúde entre as
linhas e rugas de meu corpo. Em minha convalescência
vejo uma direção; não está claro o caminho (...)
Dobrado é o caminho da eternidade,
dobrado é o caminho do amor, eu digo.

Manning

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BEUYS, Joseph. Joseph Beuys in America. Energy
Plan for the Western Man. Nova Iorque: Four Walls Eight
Windows, 1990.
SZTUTMAN, R. Reativar a feitiçaria e outras receitas de
resistência – pensando com Isabelle Stengers. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, 2018, v. 69, p. 338-360.
Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.
v0i69p338-360
LEVINAS, Emmanuele. Entre nós: ensaios sobre a alte-
ridade. São Paulo: Vozes, 2010.
MANNING, Erin. A Manga Perfeita. Los Angeles: Punc-
tum Books, 2019.
MASSUMI, Brian. Parables for the Virtual. Movement,
affect, sensation. Durham: Duke University Press, 2002.
__________. Semblance and Event. Activist Philoso-
phy and the Ocurrent Arts. Cambridge, Massachusetts:
The MIT Press, 2011.
ZAMBRANO, Maria. Filosofia e Poesia. São Paulo: Moi-
nhos, 2021.

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71
72
73
Sendo sereias ou mais
uma camada da pedra
entrevista com Diana Gilardenghi, por Giorgio Gislon

No final de dezembro de 2016, o coletivo Mapas e Hi-


pertextos (composto pelos/pelas artistas, Cassiana dos
Reis Lopes, Diana Gilardenghi, Diana Piazza, Everton
Lampe, Giorgio Gislon, Inês Saber, Luana Leite, Mile-
ne Duenha, Paloma Bianchi, Raquel Purper e Thaina
Gasparotto) apresentou-se na festa La Xokata, da Xoke
– Mostra Independente de Arte de Guerra. Foi uma
sexta-feira desgastante, marcada pela chuva, trânsito
intenso e muito tempo de espera entre a preparação
durante a tarde e a apresentação do trabalho Esbarra,
à noite, na festa performática que ocorreria na Casa de
Noca, à beira da Lagoa da Conceição.
Depois da apresentação, eu e grande parte dos membros
que integravam o coletivo estávamos extenuados, sen-
tados pelos cantos do ambiente, reparando apenas de
relance na apresentação entusiasmada da performance
Perereca Brasil, de Thaiz Cantasini, que contagiava o
público. Destacava-se de nós Diana Gilardenghi, que
permanecia próxima do palco, observando atentamen-
te, arrebatada pela intensidade do que ali acontecia.
Essa curiosidade e abertura para a pulsação do mundo,
que narro na lembrança desse momento, mostra talvez,
uma qualidade vigorosa na potência criadora dessa
bailarina, coreógrafa e professora de dança contem-
porânea. Nascida em 1957, com formação em dança,
iniciada em cursos básicos na cidade de Lincoln, na
Argentina, onde nasceu e passou sua infância, Gilar-
denghi segue com sua formação, entre outros cursos,
no Taller de Danza Contemporánea do Teatro San Mar-
tín de Buenos Aires. Desde 1992, a artista radicou-se
em Florianópolis, Santa Catarina.

74
Nesses quase trinta anos de atividades no Brasil,
tanto com os grupos dos quais participou, quanto
individualmente, acumulou vários prêmios e exerceu
atividades artísticas e de docência ininterruptas.
Essa entrevista é fruto de uma atividade da disciplina
Técnicas de Dança II, do curso de graduação em Te-
atro da Udesc, proposta pela professora Bianca Scliar
que sugeriu a escuta de artistas e professores locais.
Aproveitando a proximidade com Diana, como com-
panheiro de grupo e de ser há mais de três anos seu
aluno, fiz essa entrevista objetivando focar especifica-
mente em sua participação no projeto Corpo, Tempo
e Movimento.
Diana participa desde 2014 nesse projeto, do qual fazem
parte também Milene Duenha, Paloma Bianchi e Sandra
Meyer. Contemplada pelos Editais Elisabete Anderle em
2014 e 2017, a partir de 2016, a proposta consistiu em
sua primeira fase na pesquisa, criação e realização de
seis ações em dança em Florianópolis . Na segunda fase
promoveu apresentações, residências e oficinas em ou-
tras cidades de Santa Catarina, tendo também circulado
por Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo.

***
GIORGIO GISLON: Como o projeto Corpo, Tempo e
Movimento relaciona-se com sua trajetória artística?
DIANA GILARDENGHI: O projeto foi especialmen-
te importante por ativar outros modos de acionar a
dança na relação com o público, com os diferentes
ambientes urbanos e naturais, e no modo de escutar
os lugares. Também pelos distintos contextos em que
as ações aconteceram, trazendo a relação entre cor-
po, memória e cidade, que vão por outros caminhos,
distintos das criações das quais participei anterior-
mente. Mesmo tendo participado de trabalhos na
rua, performances, algumas intervenções, flashmobs
e apresentações em espaços alternativos, o projeto

75
Corpo, Tempo e Movimento foi especialmente ins-
tigante no modo como aconteceu a pesquisa, como
foram surgindo as relações e as proposições. Com um
olhar para diferentes corpos, para o corpo situado na
cidade, os corpos e as trajetórias de Sandra Meyer e as
minhas, tudo isso foi se relacionando, imbricando-se
e compusemos a partir do que havia em comum e de
diferente, interesses e afetos.
GG: Qual foi o impulso que levou à criação do projeto?
DG: A provocação veio da Milene e da Paloma. Eu
participava do Mapas e Hipertextos com elas, que eu
já conhecia de uns anos atrás. Paralelamente, elas
conheciam Sandra por serem suas orientandas no
PPGT da Udesc. Paloma e Milene viam a mim e San-
dra, com cinquenta e nove anos, ainda trabalhando
com dança e pensaram que seria bom propormos um
trabalho em conjunto. Chamaram-nos um dia para
tomar um café e fizeram a proposta. Elas falaram:
“A gente quer muito falar do tempo, da trajetória
e sobre o que é dança para vocês, agora com qua-
se sessenta anos”. Eu e Sandra ficamos surpresas e,
ao mesmo tempo, felizes, pois é uma felicidade que
alguém te faça uma proposta como essa. Sandra e
eu nos olhamos, rimos um pouco e respondemos:
“Por que não? Mas como assim, a gente vai estar em
cena?” Eu nunca tinha estado em cena com Sandra e
foi uma oportunidade incrível poder estar junto dela.
Nesse encontro tornou-se evidente que o projeto
não trataria apenas da memória da dança em nossos
corpos, mas também dos corpos na cidade, e pre-
tenderia abrir questões sobre a memória coletiva. A
memória não estaria somente em nós, que iríamos
estar em cena, mas também nelas, que propunham,
que mediavam: era uma memória coletiva dos
nossos corpos e também da cidade. Importavam
as inquietações e desejos de todas nós e preten-
diamos investigar modos de compor, experimentar
processos de criação em dança e a possibilidade de
76
trabalhar juntas, a partir do momento de vida de cada
uma, enlaçando, assim, um tempo sincrônico, comum
e outro anacrônico – algo em cena que não está, mas
se faz presente, impulsionando os corpos expressivos.
Paloma e Milene atuariam como articuladoras dos proce-
dimentos de criação e das ações compositivas. Escrevemos
o projeto e neste processo o trabalho foi se conformando
até que surgiram as seis ações desenvolvidas.
GG: Em que medida as performances efetivamente
realizadas já estavam no projeto? Até que ponto era
possível acolher imprevistos nas ações?
DG: A gente imaginava que as ações seriam mais
curtas. Não sabíamos a dimensão que tomariam. Já
tínhamos essa ideia de trabalhar em espaços não
convencionais. Já no primeiro encontro, Sandra
colocou que não estava interessada em formato de
espetáculo, nem em ir para o palco italiano. Palo-
ma e Milene também tinham interesse em uma
pesquisa de site-specific, com a natureza e com os
espaços urbanos de Florianópolis. Depois de apro-
vado o projeto, começamos a andar pela cidade.
Foram quatro meses de caminhadas, visitas a vários
lugares, para sentir quais eram os espaços que nos
chamavam a atenção, sítios onde pensávamos: esse
lugar é possível, esse lugar tem uma história, esse
lugar se conecta com alguma memória de Sandra, de
alguma de nós ou da cidade. Sempre com essa ideia
que vinha da Milene e da Paloma de compor com o
lugar. Compor com e, não, ensaiar uma dança numa
sala e levar para o tal espaço. Fazer dança com o
lugar, no lugar. Foi instigante, apaixonante desco-
brir isso e ver como ia se desenrolando, aparecendo,
sendo trabalhado. Essa pesquisa de espaço foi muito
especial. Levou tempo até que as ações fossem se
configurando, mesmo que já estivessem em alguma
medida previstas no planejamento.

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A primeira das ações que compuseram o projeto
foi Narrativas em dois corpos, uma conferência
dançada em que Diana e Sandra contavam suas
trajetórias de vida na dança, entrelaçando-as
com o contexto social e político da Argentina e do
Brasil. As duas bailarinas vestiam roupas em tom
pastel e narravam as histórias em tom intimista.
Esta ação ocorreu no Teatro da UBRO, com o pú-
blico entrando pela sala de ensaio, atravessando
a sala de ensaio, assistindo ao aquecimento das
dançarinas na parte que seria não revelada do
espetáculo teatral. A relação com o público já se
estabelecia ali pelas avessas, uma vez que havia
um percurso marcado pelo trajeto usualmente
designado apenas aos artistas. As dançarinas
iam guiando o público após findo o aquecimento,
até que todos se acomodassem na plateia para o
início da narrativa, com as duas dançarinas em
cena, tornando visível a etapa de preparar o corpo,
aquecer, conversar. Ali ambas conversavam entre
si, contando sobre seu treinamento em uma con-
versa íntima, uma com a outra, nomeavam seus
professores, as marcas dos discursos que tinham
ouvido em seus anos de formação, palavras que
persistiam no tempo.
GG: Como se desenvolveu a criação das ações? Como
foi criada Narrativas em dois corpos?
DG: A pesquisa do Projeto Corpo, Tempo e Movimento
se desenvolveu a partir de perguntas-dispositivos,
perguntas disparadoras para cada uma das seis ações,
cujo tema comum era corpo, memória, contexto social
e cidade. A primeira ação, Narrativas em dois corpos,
desenvolveu-se no entrelaçamento entre Sandra e
artistas com o mesmo tempo de trajetória, a mesma
idade. Por isso, fomos buscar nossas memórias, his-
tórias pessoais e como estas conectavam-se com a
história da dança. A pergunta era: O que é a dança
para esses corpos agora? O que da dança resiste?

78
Assim, ativando a memória e buscando trazer o
contexto social e político que a gente vivenciou no
decorrer de nossas vidas, fomos evocando nossas
danças, reativando e refazendo caminhos. Foi um re-
lembrar, trazer o percurso de todo esse tempo de mais
de quarenta anos. A Sandra trouxe as suas danças, eu
trouxe as minhas. O processo criativo passou menos
por um uso de técnicas específicas e mais pela ativação
do corpo. Selecionamos trabalhos dos que já havíamos
feito e com isso fomos construindo a Narrativa em
dois corpos com uma linha cronológica entrelaçada,
escolhendo passagens e momentos de nossas vidas.
Mesmo que essa ação tivesse um formato mais de es-
petáculo, o uso do espaço foi transformado, o público
entrava pela sala de ensaio, não pelo acesso habitual.
Primeiro conhecia os bastidores, atravessava o palco
e depois ia para a plateia, tal como uma conferência
dançada e não era um espetáculo tradicional de dança.
A segunda ação foi chamada de Dança Coral e con-
sistiu na realização de um trajeto do público que era
instruído a usar roupas, luvas e máscaras pretas,
partindo do bolsão de estacionamento da Beira-mar
Norte e, passando por alguns lugares da Ponta do
Coral, participava de diferentes performances. A
primeira delas era de Diana e Sandra, com maca-
cões herméticos, fazendo movimentos lentos sobre as
pedras da beira do mar. A segunda, era uma dança
de movimentos como levantar e abaixar os braços,
efetivada em coro por um grupo de artistas convi-
dados que envolvia também o público. A terceira era
a performance do bailarino, morador da Ponta do
Coral, Maicon Floripa, que fazia os passos de dança
de Michael Jackson. A quarta performance consistia
na entrada de Diana e Sandra, vindas em um bar-
co, primeiro com roupas carnavalescas, enquanto o
músico Fábio Mello tocava saxofone e, num segun-
do momento, quando o barco voltava com Sandra,
vestida com enormes asas pretas, compondo uma
imagem de um anjo da morte.

79
GG: Por que foi escolhida a Ponta do Coral para a
realização da ação Dança Coral?
DG: No projeto constavam espaços da natureza,
espaços urbanos, espaços públicos de memórias.
Projetamos fazer ações nos canteiros da Beira-mar
Norte, na escadaria da Catedral, nas Dunas da Lagoa
da Conceição e em outros lugares. Colocamos várias
possibilidades, pois, durante o desenvolvimento da
pesquisa, eles foram se alterando.
Estivemos em Santo Antônio, Sambaqui, praia do For-
te. Lembro-me de que foi na Ponta do Sambaqui que
surgiu a ideia do barco. Nesse deambular pela cidade
para escolher lugares possíveis, começaram a vir as
vontades, os desejos, o que uma queria, qual era a
ideia da outra. A gente ia levantando possibilidades e
conversando muito em relação às memórias e aos afe-
tos. Isso foi parte da pesquisa até que surgiu a ideia de
visitar a Ponta do Coral. Também pensávamos que o
Sambaqui seria um lugar de difícil acesso, com poucos
horários de ônibus: queríamos achar um lugar mais
central, que ao mesmo tempo tivesse natureza, tivesse
mar e a Ponta do Coral cobria essas necessidades.
Mas não sabíamos se poderíamos ocupar esse lugar
e descobrimos essa possibilidade no decorrer da pes-
quisa. Foi a Associação dos Pescadores da Ponta do
Coral, a comunidade local que nos permitiu trabalhar
ali. Eles disseram: “Vocês não têm problema em vir
aqui, esse lugar é nosso e também é de vocês… podem
vir e estaremos aqui para o que precisarem”. A perfor-
mance com o barco foi possibilitada pelo contato com
esses pescadores da Associação.
GG: O que levou à criação da movimentação de vocês
e do público, e como foi decidido o uso de macacões
por vocês e máscaras pelo público ?
DG: Em relação à movimentação, as provocadoras fa-
lavam e insistiam muito nas questões: “Qual é a dança

80
para esse lugar? Como uma dança pode compor com o
ambiente? Qual seria o movimento justo? Precisamos
trazer esse espaço, esse espaço potente, escutá-lo e in-
tensificá-lo, evidenciar o lugar”. Esse lugar conflitivo
entre os prédios e a natureza, entre a beleza e o lixo,
entre a natureza e a contaminação, entre os pescado-
res e a especulação imobiliária, um lugar localizado a
poucos metros da avenida Beira-mar Norte.
Como dialogar com esse ambiente? Inicialmente, a
gente sabia que queria entrar no mar, mas era uma
água suja, contaminada. Por isso, surgiu a ideia de co-
locar os macacões impermeáveis. Como entrar nessa
água? Como estar, como ser parte do lugar? Experi-
mentamos entrar em outros lugares, em outras praias,
pesquisando como nos mover, como nos relacionar
uma com a outra dentro da água.
Fazíamos movimentos de braços e tronco, buscávamos
estar conectadas, estabelecendo relações espaciais,
mais perto, mais longe, com Paloma e Milene à distân-
cia nos dizendo: “Isso serve, isso não serve. É muito
movimento, não precisa tanto, menos”. Queríamos nos
fundir com o lugar, compor com o lugar, estar junto
dele, deixar emergir essa espacialidade de uma posição
mais humilde e menos hierárquica, estando, deixando
o espaço nos propor, sendo parte dele. Por isso, termi-
nou sendo algo quase mimético de nos confundirmos
com as pedras, as cores do macacão, a movimentação
suave e lenta, estando nessa espacialidade, em contato
com o céu e com as aves, sendo sereias, ou apenas
mais uma camada de pedra. O uso de máscaras e luvas
pretas entregues ao público anunciava proteção para
entrar nesse lugar, onde havia mau cheiro e restos de
lixo, acessórios que, somados às roupas pretas, unifor-
mizavam o público, colocando-o em contraste com a
paisagem. Encontramos os percursos para as pessoas
passarem vestidas de preto, de máscaras e luvas atra-
vessando aquele alto matagal verde, até chegar lá na
pontinha onde o mar se abre sobre as pedras, água

81
e areia, para desenvolver a movimentação da Dança
Coral. Também tínhamos a sensível figurinista Alice
Assal pesquisando e trabalhando junto na criação de
imagens e alegorias.
Vários contrastes surgiram nesta ação, como é caracte-
rístico daquele lugar, um espaço de lutas, de resistência.
Há décadas a Ponta do Coral é uma área de disputa
política entre o público e o privado, um lugar em que
uma concepção de cidade com natureza preservada e
espaços comuns está em atrito com uma concepção
privatista, dos grandes empreendimentos. De um lado,
a luta para que o espaço seja um parque aberto a todos,
de outro, a vontade de construir um grande hotel para
uso de alguns turistas endinheirados.
Durante a pesquisa, aprendemos a estar atentas
ao fluxo das marés, descobrimos a casa do Maicon
Floripa, soubemos que ele morava ali. Foi surpreen-
dente descobrir que este bailarino de rua, conhecido
no centro na cidade onde fazia seus passos de dança
por alguns trocados, foi morador de um abrigo de me-
nores que existia na Ponta do Coral, misteriosamente
incendiado em 1980. O abrigo se localizava no mesmo
lugar onde Maicon mora hoje. Maicon foi nosso baila-
rino convidado e dançou enquanto o público bebia e
celebrava o encontro espumante.
Linhamar foi uma ação em que Diana e Sandra
caminhavam pelo centro de Florianópolis, levando
uma caixa de som com o barulho do mar. Ambas
esticavam uma corda de barbante estendida no Lar-
go da Alfândega, marcando os lugares onde o mar
chegava antes da construção do aterro da Baía Sul.
GG: Como foi a pesquisa e realização de Linhamar?
DG: Linhamar foi uma infiltração, um modo de tra-
zer uma memória da cidade, um momento vivido no
passado, mas que ainda está presente. Como essa
memória está presente nesses outros corpos, nos tran-

82
seuntes, na memória coletiva dos antigos moradores?
A gente fez entrevistas, ouvimos relatos de como foi
se alterando e mudando o lugar da linha do mar. As
memórias dos moradores, seus depoimentos gravados
eram parte do acontecimento, que nos ajudavam a en-
contrar o lugar, uma marca, essa linha. Até onde o mar
chegava antes do aterro? Qual era esse lugar? Como
era antes? Como você lembra desse centro da cidade
antes e como é agora? Qual é a diferença?
Nos depoimentos vinha toda a marca de uma sauda-
de… a nostalgia de um mar perdido que ali estava e que
muitos mantêm vivo na memória. Essa “modernidade”
entre aspas, essas mudanças que foram acontecendo e
sobre que pensamos: Ganhamos ou perdemos? Assim,
realizamos a ação com a pergunta: “Até onde vinha
o mar?” escrita num papel que pendia de uma corda
estendida e que traçava aquela linha já perdida. No
final, nos afastávamos e uma caixa de som reproduzia
os depoimentos que havíamos coletado.
Greta foi um solo de Diana performado em uma
casa abandonada, na Rua Tiradentes, no Centro
de Florianópolis. Nele, Diana entrava num estado
análogo ao de um animal, caminhava pelas pare-
des, emitia grunhidos e ruidos e conduzia o público
dentro do espaço inóspito.
Sem Título foi o solo criado por Sandra. Ela chegou
no Memorial Meyer Filho, que homenageia seu pai,
carregando um galo vivo, animais que eram motivos
recorrentes nas pinturas de Meyer Filho, em uma
gaiola. Na sequência, performava pintando com
tinta laranja o seu corpo, suas roupas e as paredes
brancas do espaço.
GG: Que processos artísticos foram realizados para as
criações de Greta e Sem Título?
DG: Dentro da lógica de dispositivos com a qual traba-
lhávamos, a pergunta era: Qual é sua dança hoje? Para

83
o solo Sem Título, Sandra ativou ações que surgiram
pelas memórias de afetos em sua relação com o pai,
os espaços de exposição, as galerias de arte que ela
frequentava desde pequena. Fotos, pinturas, lembran-
ças de histórias e relatos da vida artística e familiar
serviram de disparadores para sua dança. Assim, o
Memorial Meyer Filho surgiu como local de realização
de seu solo. Paloma e Milene estavam muito atentas
ao que emergia de cada uma e reforçavam nossas pe-
culiaridades e modos de acionar o movimento.
Para o meu solo, lembro que a gente estava trabalhan-
do sobre as marcas do corpo, e a partir dessas marcas
surgiram elementos mais dramáticos. Exploramos
cicatrizes, rugas, manchas da pele… em um momento
começava a manipular meus dentes, minha prótese,
surgiu uma modulação da voz, grunhidos, começava
a mexer no cabelo, que ficava cobrindo meu rosto,
começava a me tornar uma espécie de bicho.
Estávamos trabalhando numa sala de ensaio e passa-
mos a buscar sentidos para contextualizar esse bicho,
perguntando-nos onde ele habitaria. Era um ser que
morava nas paredes, que surgia do chão, das racha-
duras, das gretas. Encontramos seu modo de estar e
de se mover antes de saber qual seria o seu habitat.
Por um lado, surgiu a ideia de ele viver em um espaço
abandonado, mas também foi cogitada a possibilidade
de estar na rua, poderia aparecer de algum cantinho
de uma calçada. Pensamos em colocar papelão, fazer
uma cobertura na calçada, fechar um pouquinho, mas
achamos que a rua poderia trazer uma imprevisibili-
dade em relação à chuva, ao tempo. Por isso insistimos
na busca por uma casa.
Foi uma tarefa difícil, mas Gabriel Campos que tra-
balhou na produção estava atento aos lugares com as
características que procurávamos. Quando achamos
a casa abandonada, foi surpreendente. Olha a coin-
cidência! Essas coincidências que nos treinamos a
perceber. Achar uma casa abandonada a três quadras
84
do Memorial Meyer Filho foi incrível, porque os dois
solos se conectavam, não só pelo pequeno trajeto a
ser percorrido do Memorial até chegar à casa, como
também pelo contraste entre as duas propostas.
O que é estar aqui? foi uma ação de interação direta
com o público, através de proposições escritas colo-
cadas em urnas espalhadas ao longo das dunas da
Lagoa da Conceição. Tanto as artistas quanto o pú-
blico realizavam as mesmas proposições, tais como:
rolar na areia, aparecer e desaparecer, evidenciar o
vento, interagir um com o outro etc. Ao final, a últi-
ma proposição pedia que o público tentasse sair das
Dunas sem deixar rastros.
GG: De que modo surgiu O que é estar aqui? Por que
escolheram as dunas da Lagoa da Conceição?
DG: A ação surgiu a partir do interesse em trabalhar
uma outra relação com o público, um fazer juntos
sem distinção entre artista e público. Era um convite
a uma construção coletiva. Trabalhamos proposições/
tarefas que surgiram a partir da relação entre corpo
e ambiente, buscando expandir nossa percepção, bus-
cando um encontro sensorial. Achamos que as dunas
da Lagoa da Conceição eram o melhor lugar para essa
ação. As dunas já estavam no projeto original, em que
a escolha foi feita pelos aspectos sensorial e espacial, de
modo que pudéssemos estar ao mesmo tempo em um
lugar público e conseguir fazer conexões entre corpos
num lugar delimitado. Procurávamos um lugar natural
que não tivesse sofrido alterações pela ação humana:
as dunas, ao mesmo tempo em que são um espaço
aberto, são também um lugar que nos envolve e abre
outras percepções. É isso que oferecem as dunas, que
se possam adentrá-las. Foram escolhidas por se tratar
de um lugar público com morfologia definida, subidas
e descidas, poder-se enxergar o horizonte, se afundar
na areia, rodar nas dunas, oferecendo a possibilidade
de desaparecer e ressurgir, de atravessar uma paisagem
visual e sonora, onde há silêncios e barulhos.
85
O que nessa ação também foi uma descoberta para
mim, foi a compreensão do que é uma proposição.
Eu lembro de a gente trabalhar nas proposições por
bastante tempo. Como o outro pode ser motivado a
agir para também ser protagonista e estarmos juntos,
sem hierarquia entre artista e público? O que é elabo-
rar uma proposição para chamar e convidar o outro a
dançar, a agir? Qual seria a provocação a ser feita para
estimular a escuta do ambiente, para motivar a compor
juntos? As instruções precisavam conter espaço, tem-
po e o modo de conexão com o outro. Estou sozinho
ou estou fazendo uma ação com alguém? É uma ação
grupal ou não grupal? Além disso, as proposições bus-
cavam aguçar os sentidos. Era um trabalho sensorial:
estimular o toque, a percepção do calor, da areia, do
céu, do ar, para que as pessoas pudessem se conectar e
se deixar serem convidadas pelo ambiente a habitá-lo.
GG: Como participar desse projeto alterou sua prática
como artista?
DG: Por um lado, reforçou minha percepção do que
é um coletivo, da potência de um encontro entre pes-
soas compromissadas, pessoas com muita experiência,
mas também com muito desejo. Impressiona-me e me
reconforta o quanto pode ser feito a partir de uma
proposta clara, de uma boa comunicação e de respeito
pela voz umas das outras. Por outro, estou mais atenta
e aberta, pois o projeto me fez vivenciar diferentes
instâncias de configuração de situações performáticas
e como essas situações estabelecem relações de parti-
cipação. Estava muito bem pensado e cuidado qual e
como seria o lugar do público em cada uma das ações.
Por exemplo, no Greta, as pessoas não sabiam o lugar
onde a ação aconteceria, iam buscando, entrando nos
diferentes cômodos da casa, num ambiente instável,
quase em ruínas, havia partes do chão onde não po-
diam pisar: estavam ao meu lado, seguindo a ação com
lanternas. O interesse na relação com o público, eu
guardei, trouxe comigo.

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PRESENÇA/AUSÊNCIA

Onde está a presença? Em algum ponto ou em nenhum.


EDÉLCIO MOSTAÇO

O teatro não pode mais continuar sendo pensado como


um tablado, dois atores e uma paixão – proposição
romântica e utópica – em total dissincronia com os
tempos que vivemos. Hoje, ele se define muito mais
como um espaço, um tempo e um olhar, recolocando o
jogo especular em primeiro plano.
Muitos ainda pensam o software como o código
que possibilita a existência de programas e aplicativos
para computadores e celulares, desconsiderando que
ele é produto de uma invenção e de executáveis que
RESPIRO

habilitam as máquinas em suas performances. Assim,


criar softwares, hoje, é atividade a que se dedicam
muitos artistas, em escolas de vários países, único
modo de continuarem seu trabalho artístico pari passu
com o mundo que nos cerca.
Obter treinamento quanto ao uso de aparatos
técnicos e suas inúmeras possibilidades é outra
necessidade para as sociedades. Em vários países da
Europa tais treinamentos já estão sendo efetuados,
para amadores e profissionais do teatro, com a finali-
dade de inseri-los e dar-lhes autonomia no terreno
criativo, inventivo e de interação com a chamada era
da internet das coisas. Obras de imersão, interativas,
que dependem do manuseio ou deslocamento do
público tornaram-se cada vez mais frequentes nas
instalações desde os anos 1990. Com a popularização
dos celulares, o emprego de avatares, tele chamadas,
emoticons, a presença real foi sendo substituída por
outros modos de fazer contatos entre indivíduos.
Hoje, as pessoas fazem até sexo usando as
redes sociais. Por que, então, recalcar a exigência
da materialização física do outro para afirmar sua
presença? O encenador Heiner Goebbels criou Stifters
Dinge em 2007, um espetáculo de uma hora e meia
sem a intervenção de nenhum performer, empregando

90
unicamente comandos digitais que executavam
música, discursos gravados, efeitos nas águas da
piscina central, alteravam luzes e promoviam toda
sua dramaturgia. O Rimini Protokol não dispensa o
emprego de recursos tecnológicos em suas criações.
Em Remote, são os fones de ouvido que guiam o grupo
de participantes através de uma imersão pela cidade,
olhando-a agora a partir de novos olhares e referen-
ciais. Em 100%, o censo de uma cidade é esmiuçado
e uma centena de seus cidadãos são convocados a
produzir um espetáculo. Perguntas-chave e de interesse
comunitário são formuladas para que as respostas
sejam vividas e desempenhadas naquele momento.
Questões delicadas são respondidas no escuro, com
o emprego de lanternas. Em ambas as produções,
a dimensão política está evidente, deslocando os
corpos a ocuparem lugares nunca imaginados, as
mentes a se colocarem questões que talvez nunca
tenham formulado. Trata-se de outra dramaturgia das
percepções, uma polifonia de recursos que repre-
sentam um avanço artístico da experiência teatral,
que transcende a narrativa linear, ressignificando o
conceito convencional de presença e intensidade.

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93
PEQUENAS PERTURBAÇÕES
BIANCA SCLIAR

Em No tempo das Catástrofes, a filósofa da ecologia,


Isabelle Stengers (STENGERS, 2015) propõe modos
de viver neste mundo em que a catástrofe ecológica
é conhecida e, de fato, incontornável. Haverá um novo
mundo, Stengers escreve, e temos que compreender
como recompor modos sociais e subjetividades
coletivas neste contexto de forma a não acatar nem a
inércia apocalíptica nem tampouco cair na esperança
idílica de que algo além salvará nossa existência (a
RESPIRO

esperança na ciência como solução única para nossos


entroncamentos existenciais).
Kerexu Yxapyry tratou, em uma recente fala na
Câmara dos Vereadores de Florianópolis, da noção de
desenvolvimento, ao lembrar que o termo carrega o
desengajamento entre corporealidade e ação (des-en-
volver). Enquanto a ouvia, reparei que sobre a mesa,
na parede, a única arte do ambiente era uma imagem
de um Cristo pendurado pelas mãos imobilizadas. Ele
tem seu corpo dilacerado, desfaz-se enquanto ascende
em idealismos comportamentais. No ícone cristão está
representado aquilo para o que alertava Kerexu: a não
ação, a espiritualidade sem corpo, sem organismo, sem
ambiente. Para o povo Guarani, em contraste, cada
gesto carrega em si um compromisso com a memória,
com a história, atados ao presente vivido.
Este entrelaçamento entre um modo de fazer
cotidiano e a ação espiritual é observado como o
fundamento mais valioso da espiritualidade por um
outro filósofo, A. N. Whitehead. Segundo ele, há algo
muito grave que ocorre quando contrapomos ao
mundo concreto as doutrinas espirituais. Nesta obser-
vação perspicaz, temos um indicativo da importância
em trazer debates como o que presenciei, na Assem-
bleia Legislativa de Florianópolis. Há algo precioso em
indagar sobre a importância das cosmovisões espiri-

94
tuais no contexto das instituições do Estado. Mas por
que isso é tão necessário de ser lembrado hoje?
Em seu livro Religion in the Making (sem
tradução para o português), Whitehead, que era, em
sua época considerado um filósofo da ciência e da
lógica e não um teólogo, defende, ao refletir sobre
doutrina, corpo e metafísica, que não passaria de ilusão
erguer nossas crenças e decisões sobre investigações
historicistas. Tal modo despreza o sentido da espiritu-
alidade e o conectivo entre a religião, a ação no mundo
e o processo de criação. Este conectivo é exatamente
o envolvimento, as práticas cotidianas individuais e
sociais.
“Temos apenas o presente e, a menos que este
presente esteja erguido em princípios gerais que incluam
toda a comunidade existente, não podemos nos mover
para além de passos medíocres de imediatividade” (p.36,
tradução minha), ele escreve. Esta inclusão só pode
operar em ações, em fazeres de um corpo conectado à
comunidade. Estas ações podem parecer não ter sentido
concreto, sob um olhar estritamente materialista, mas
são estes fazeres que trazem luz ao pertencimento ao
e entrosamento com o meio ambiente, aspectos funda-
mentais à dignidade existencial.
Whitehead evidencia que a religião só tem como
propósito a busca por claridade, por aprofundamento
de compreensão e, quando deixa esta busca de lado,
afunda-se em formas obscuras de prática. Os tempos
de fé, quando o sentido de espiritualidade se depreende
da ação e acomoda-se em uma abstração de sentires,
seriam eras obscuras quando reina o racionalismo. Para
este autor, não precisamos ter fé, mas, sim, ações que
considerem o meio ambiente e nossa sociedade como
algo para além de mero racionalismo concreto.
Nos rituais citados por Kerexu, relacionados às
práticas de parteria, manejo da placenta e do cordão
umbilical do recém-nascido, vemos um mundo real, um
mundo que é pura experiência, atividade física, mas que
não se encerra nem em uma memória abstrata nem em
pragmáticas funcionalistas de um cotidiano imediato.
O que eles produzem então? Como reconhecer e
atribuir valor a tais gestos? Há em cada ato relacionado
à sacralidade uma comunidade de entidades diversas
que contribuem para valores que são partilhados e que

95
também mantêm as entidades autônomas, em solida-
riedade, valiosas em si mesmas. Perceba que, sob esta
lente, as entidades não são apenas sujeitos humanos,
“agentes”, mas toda a ecologia das relações, empres-
tando termos de Whitehead para este relato.
Diante da noção de ancestralidade, de vitali-
dade, de pertencimento, podemos nos confrontar com
o quanto cada objeto e cada coisa podem ser transfor-
mados em algo sagrado, através de modos de atenção
e de ação. Assim, no fazer espiritual coloca-se em jogo
a habilidade de gestar consciência por empatia. Estas
habilidades deveriam ser reconhecidas também como
nossos commodities: estar no mundo criativamente.
Não trato aqui da criatividade enquanto estripu-
lias compositivas, mas como um modo de estar em que
o passado temporal é tomado como novidade e é a ação
de reconhecer o mundo no instante nascido de cada
encontro. Nesta quase-metafísica de se colocar sob a
perspectiva de outras entidades (cadeira, flor, nuvem,
criança, rio…) podemos criar o mundo sob perspectivas
múltiplas. Este não é um exercício mental, especulativo,
mas algo que se dá em atos, muitos destes despre-
zados por não terem sua concretude funcional explícita
em nossa sociedade de ações neutras e diretivas.
Esta ação espiritual-cognitiva-fabulatória compõe
um modo de operar com o mundo, com o outro e
também formula a compreensão sobre si mesmo,
descentralizando a lógica de nossa própria perspec-
tiva antropocêntrica. Dos equívocos resultantes de
uma compreensão barata de que ideologias religiosas
podem ou devem estabelecer argumentos que
sustentem decisões jurídicas e legislativas, temos
problemas óbvios implicados em hegemonias de
crenças em um país diverso, mas onde reconhecemos
no uso para a religião um uso equivocado recorrente.
Em sua melhor forma, a prática religiosa guarda
ações, comunitárias, coletivas e não doutrinas ou
controles morais. Tece conexões e, consecutiva-
mente, não se confunde com um sistema de verdades
generalistas, com efeitos de transformar caracteres
(como alardeiam algumas instituições e os discursos
de auto-ajuda neoliberais). Whitehead escreve que
o caráter e a condução de uma vida dependem de
convicções íntimas que não podem ser atenuadas

96
a partir de preceitos religiosos externos; seria a arte
de alimentar a vida de modo íntimo e paradoxalmente
compartilhado nos entremeios das doutrinas sociais,
gerando emoções coletivas e singulares.
Equivocamo-nos ao acreditar em que as cosmo-
visões espirituais sustentam uma experiência coletiva
– isto é doutrina.
Descreve Whitehead: “A religião é solitária,
portanto, se você nunca estiver solitário, você nunca
será religioso. Entusiasmo coletivo, memória, institui-
ções, igrejas, rituais, códigos de comportamento, são
armadilhas da religião, são formas passageiras. Elas
podem ser úteis ou prejudiciais, podem ser ordenadas
autoritariamente, ou apenas um expediente tempo-
rário. Mas os objetivos da espiritualidade estão muito
além disso” (WHITEHEAD, 2014 [1926], p.17, tradução
minha). O ponto mais importante para ele seria a prática
de transcendência, portanto, a capacidade de atribuir
importância a uma experiência que é tão real quanto
infimamente concreta.
Para fechar minhas elucubrações e tentar
compreender porque o “Direito à Natureza” requer
cosmovisões distintas e influi nas hierarquias de
importâncias de gestão de cidade, retorno ao texto
de Stengers (2015). Num exercício de nomear a Terra
como Gaia, ela devolve a esta coisa mais-que-hu-
mana um sentido de unidade, a concepção de um
planeta vivo e nos convida a deixar de lado a ideia de
reparações inclusivas, que só estariam ocupadas com
respostas econômicas e desviam o foco das travessias
que podemos ainda realizar, num planeta tão profunda-
mente ferido, por termos optado por des-envolver-nos.
Para Stengers (2015) é necessário sobreviver
ao pânico, pois esta emoção seria um caminho para a
barbárie e considerar amorosamente que não haverá
um milagre da ciência para salvar Gaia. Resta-nos
recobrar a arte do cuidado para aprender a viver neste
novo mundo, um mundo em que somos soterrados
diariamente pela ideia de catástrofe iminente. Finalizo
com suas palavras:
“É preciso criar uma vida depois do crescimento
econômico, uma vida que explore conexões com
novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar”, ela
escreve. Esperamos sempre que nossas contribuições

97
sejam gigantescas demais porque nos acostumamos
com essa escala planetária. Mas ela não é real: as coisas
grandes são formadas por partículas minúsculas. Cada
pequena coisa que conseguimos fazer no sentido desse
agir com cuidado e transformar nossas pequenas ações
cotidianas têm sua relevância, a autora complementa
em seu diagnóstico. Podemos “também continuamente
colocar tudo isso em uma caixa de ressonância e falar
sobre isso, a partir dos meios e das habilidades que
cada um tem. A esperança é que possamos (re)desco-
brir juntos dimensões da vida que ficaram soterradas
nesse conceito torto de progresso: a reconexão com a
terra, a existência dos ciclos, a convivência com seres
não-humanos, o valor do cuidado, a potência do não
agir.”, e, assim, tal como descreve Stengers, perturbar a
própria perspectiva de luta (2015, p.51).

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes. São


Paulo: Cosac & Naif, 2015.
WHITEHEAD, Alfred North. Religion in the Making.Nova
Iorque: Fortham University Press, 2014.

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101
A SUBJETIVAÇÃO ERÓTICA

A subjetivação de um indivíduo nunca é simples, breve


EDÉLCIO MOSTAÇO

ou linear, mas, antes, um agenciamento complexo de


múltiplas possibilidades e variáveis que ele necessita
trilhar e desvendar, uma vez que implicam desdobra-
mentos de outras dobras. Para dizer com Foucault,
o sujeito não é uma substância, mas uma forma que
nunca é idêntica a si mesma; se se entende por forma
essa rede de relações e como ele aceita e performa
certos regimes de verdade.
Com isso, cai por terra a ideia de uma identi-
RESPIRO

dade – orgânica ou cultural – e emerge com relevo


a construção e o modo como tais enredamentos
são estabelecidos. Essa micropolítica dos afetos é
regulada pelo desejo, quer dizer, a subjetivação de
poder que distingue aquele indivíduo em sua singu-
laridade, organizada segundo um eixo moral eleito.
Adotando essa mesma perspectiva, mas atualizando
e expandindo suas implicações, Judith Butler afirma
sobre a sexualidade:

ela não pode ser sumariamente feita e desfeita,


e seria um erro associar ‘construtivismo’ à ‘liber-
dade de um sujeito formar sua sexualidade como
bem desejar’. A construção não é, afinal, o mesmo
que artifício. Pelo contrário, o construtivismo
precisa levar em conta o domínio das restrições
sem as quais certas formas de viver e desejar
não poderiam existir. E cada ser é limitado não
apenas pelo que é difícil de examinar, mas pelo
que permanece radicalmente inconcebível: no
domínio da sexualidade, essas restrições incluem
o caráter radicalmente intolerável de desejar
de outra forma, a ausência de certos desejos, a
compulsão repetitiva de outros desejos, o repúdio

102
permanente de algumas possibilidades, pânico,
atrações obsessivas e o nexo de sexualidade e dor.
(BUTLER, 2019, p. 167)1.

A decantada proposição de performatividade


associada à autora norte-americana, várias vezes mal
assimilada ou distorcida, foi por ela retomada para ser
mais bem explicada:

a dimensão ‘performativa’ de construção é preci-


samente a forçosa reiteração das normas. Nesse
sentido, então, não é que só existem limitações
à performatividade, mas, pelo contrário, são as
limitações que necessitam ser repensadas como a
própria condição da performatividade. A performa-
tividade não é nem um jogo livre nem uma forma
teatral de apresentação de si, tampouco pode ser
simplesmente equiparada a uma performance.
Além disso, o que necessariamente estabelece um
limite para a performatividade não é a restrição;
a restrição é, pelo contrário, o que impulsiona e
sustenta a performatividade. (BUTLER, 2019, p.
167-168)2.

Esse é o eixo moral antes referido por Foucault:


confrontado com as normas, o sujeito necessita se
posicionar, aceitá-las ou negá-las, dirigir-se para um
objetivo que o impulsiona e baliza. E isso não ocorre
sem dor (a mágoa de não ser o que poderia ser) ou
sem renúncia (a impossibilidade de ser tudo sem freio
algum), uma vez que as normas delimitam, seja de
modo objetivo, seja subjetivo, o que o sujeito pode
efetivamente performar. Assim, se o sexo e o gênero
conhecem limites e margens, eles também implicam
forças propulsoras ou lesivas que atravessam tais
percursos, estribados em um confronto entre o Eu e
o Outro; aquilo que Foucault, após sucessivos refina-
mentos, denominou como biopolítica, a face que a
sujeição adquire nos tempos contemporâneos, atraves-
sada que está pelos avatares do capitalismo.

1 BUTLER, Judith. Corpos que importam – os limites discursivos do


‘sexo’. São Paulo: n-1 edições, 2019, p. 167.
2 Idem, p. 167-168.

103
Butler e, em certa medida, Foucault operam no
horizonte do sujeito, à sombra das noções de identi-
dade e construtivismo, de representação e escolha
ética, como reverberações distantes daquilo que a
metafísica de Hegel enquadrara como caminho para
a construção do espírito humano. Em acepção inteira-
mente diversa e visando a outros platôs, encontra-se
o pensamento de Deleuze e Guattari, ao formularem
o conceito de máquina desejante. Após refutarem os
posicionamentos clássicos da psiquiatria e da psica-
nálise instituídas – território no qual o trauma edípico
é um núcleo privilegiado –, eles divisam o inconsciente
como uma instância maquínica, formativa, em que até
mesmo as falhas são funcionais e cujo funcionamento
é indiscernível de sua própria formação, motivo pelo
qual esses dois processos são concomitantes e se
confundem com a própria montagem da máquina.
A subjetivação é um maquinismo porque opera por
ligações não localizáveis e localizações dispersas,
tempo e espaço de fragmentos e com ênfase sobre
algumas peças: o todo é produzido ao lado das
partes. “São máquinas propriamente ditas, porque
procedem por cortes e fluxos, ondas associativas
e partículas, fluxos associativos e objetos parciais,
induzindo sempre à distância conexões transversais,
disjunções, desligamentos e restos, com transferência
de individualidade numa esquizogênese generalizada
cujos elementos são os fluxos-esquizas.”3 (DELEUZE
e GUATTARI, 2010, p.378). Tal linguagem soa hermé-
tica, seus sentidos não são evidentes. Para os filósofos
franceses, a esquizogênese é assim referida em
função da coação e preponderância da lógica capita-
lística sobre a internalização do desejo, diuturnamente
repetida e aprendida por meio dos ritos sociais, motivo
pelo qual “o esquizo dispõe de modos de marcação
que lhe são próprios, pois, primeiramente, dispõe de
um código de registro particular que não coincide
com o código social ou que só coincide com ele a fim
de parodiá-lo.”4 (BUTLER, 2019, p. 29). Empregando

3 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo, capitalismo e esquizof-


renia. São Paulo: Editora 34, 2010.
4 BUTLER, Judith. Corpos que importam. são Paulo: n–1 edições,
2019.

104
outras palavras, observa-se aqui o que Judith Butler
acima advertira: a performatividade não é um artifício,
um modo teatral da apresentação de si e, quando isso
ocorre, é sempre enquanto paródia. O esquizo, por seu
turno, é aquele que embaralha todos os códigos, passa
rapidamente de uma coisa à outra, não registrando do
mesmo modo as retomadas de um acontecimento.
Isso porque nele os fluxos são permanentes e instá-
veis, ao sabor de um desejo que vaga.
Tais são as dobradiças, instâncias e escolhas
que enfeixam a subjetivação em geral, sendo que o
homoerotismo apresenta algumas notáveis singulari-
dades aos olhos dos dois filósofos.
“Somos heterossexuais estatisticamente ou
molarmente, mas homossexuais pessoalmente, quer
o saibamos ou não, e, por fim, transexuados elemen-
tarmente, molecularmente” – escreveram Deleuze e
Guattari5 (2010, p. 97.) – para referirem os coágulos
de condutas que servem de núcleos instáveis a uma
ou outra manifestação de um sujeito. Félix Guattari
retomou essa questão alguns anos depois:

o homossexualismo seria assim uma dimensão não


somente da vida de cada um, como também estaria
em jogo em toda uma série e fenômenos sociais,
como os da hierarquia opressiva, do burocratismo
etc. [...] Trata-se, de fato, mais de transexualidade
do que de homossexualidade: trata-se de definir o
que seria a sexualidade numa sociedade libertada
da exploração capitalista e das relações de sujeição
que ela desenvolve em todos os níveis da organi-
zação social”6. (GUATTARI, 1981, p. 40).

Essa condição instável é novamente invocada,


para referir o trânsito entre sexualidades molares e
moleculares, apontando para o devir que ela explora:

5 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo, capitalismo e esquizof-


renia. São Paulo: Editora 34, 2010.
6 “Três milhões de perversos no banco dos réus”, capítulo de A
revolução molecular (São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 40). O texto
complementa a carta enviada pelo autor às autoridades judiciais que
proibiram a circulação e mandaram incinerar toda a edição da revista
acadêmica Recherches, de março de 1973, organizada por Guattari,
inteiramente dedicada ao homossexualismo.

105
pode-se dizer ao mesmo tempo: 1) que todas as
formas de sexualidade, todas as formas de ativi-
dade sexual, se revelam fundamentalmente aquém
das oposições personológicas homo/hetero; 2)
que, no entanto, elas estão mais próximas do
homossexualismo e daquilo que se poderia chamar
de um devir feminino.7 (GUATTARI, 1981, p.35).

Guy Hocquenghem escreveu, sob a orientação


de Gilles Deleuze, uma tese publicada com o título
Le désir homosexuel, obra que causou tumulto e
discussão na França em 1972, ao efetivar uma reava-
liação do homoerotismo em diretrizes escavadas junto
a O Anti-Édipo. Dois anos após ele voltou à carga, de
modo ainda mais incisivo e desafiador, ao escrever
L’Apré-Mai des faunes, inspirado pelos ventos de maio
de 1968 e colocando em causa muitas teses políticas
que não constavam das agendas de esquerda. Deleuze
escreveu o prefácio para essa obra, ali assentando:

nunca se é homossexual em função de seu passado,


mas de seu presente, uma vez sabido que a criança
já era presença que não remetia a um passado.
Pois o desejo nunca representa nada, e não remete
a alguma coisa recôndita, a uma cena de um teatro
familiar ou privado. O desejo agencia, maquina,
estabelece conexões.8(DELEUZE, 2006, p. 358)

Relampejam novamente, a cada novo pronun-


ciamento dos dois filósofos, as mesmas teses antes
expostas em O Anti-Édipo, desdobradas agora sob os
novos ângulos de cada circunstância que vão adquirir,
em Mil platôs, ainda outros agenciamentos, sempre
associados às potências das atualizações moleculares
do devir, nunca a uma essência ou condição estável.
Trata-se sempre de “inventar sexos”.

7 Idem, pg. 35. Grifo no original.


8 DELEUZE, Gilles. [Prefácio] in A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras,
2006.

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FORA DO TEMPO

Estou fora do tempo. Moro no fim de uma rua sem saída,


BIANCA SCLIAR

cercada por um trecho resistente de mata nativa. Daqui


contemplo a cidade ao longe, a natureza de perto, a
metrópole em mim, o provincianismo dos sentires, os
tropeços nas saudades e testemunho um quase nada
dos fluxos nesta ilha retida em um modo pandêmico.
Entre suspensões e afazeres, rendo-me à relei-
tura de Rhythmanalysis (LÉFÈBVRE, 2004). Publicado
RESPIRO

postumamente em 1992, foi o último livro escrito por


Henri Léfèbvre e mostra uma volta vertiginosa em
sua teoria que até então privilegiava o determinismo
material através de engenhosas reflexões sobre como
desenhamos nossas cidades. Léfèbvre dedicou-se a
demonstrar que da intimidade às tensões sociais, os
modos de subjetivação coletiva e também os esforços
revolucionários amarram-se pela concretude das
relações espaciais. Neste livro, contudo, é a partir
de uma epifania contemplativa que apresenta uma
reflexão sobre o tempo, especulando sobre modos
através dos quais o ritmo seria a questão metafísica
primordial de nossa existência.
Mais do que uma teoria da arquitetura, é um
livro político cujas predições soam assustadora-
mente proféticas, diante de nossa condição atual de
suspensão dos afazeres cotidianos e dos aconteci-
mentos de convivialidade, causados pela situação
pandêmica. Tornados subitamente testemunhas
de nossos próprios ritmos, íntimos, comunitários,
biológicos, relacionais, estamos entregues às repeti-
ções. De meu isolamento doméstico, olho a vassoura
repousada na parede da sala, o caminho revelado
pelas formigas a trabalhar pelo assoalho e brechas

110
e compreendo um dos aspectos da feitiçaria que até
aqui se manteve despercebido.
Só quem se dá a varrer o chão, a olhar para
baixo, a balançar-se em vai e vem entretendo-se na
disputa por superfícies, só quem detém-se obser-
vando a própria respiração, e que pode ouvir a dança
entre o dentro e o fora; aquela que repara no lustro que
a luz traça, distinto a cada hora do dia, no assoalho da
sala; esta que, dia após dia, todos os dias, observa o
repouso e o voo das coisas tão aparentemente bobas,
como a poeira, pode reconhecer no ritmo um tecido
universal que atravessa substantivos e verbos, as
coisas e seus sentires.
Esta era mais ou menos a “ciência” que desejou
Léfèbvre, uma perspectiva analítica a partir dos ritmos
de um corpo-mundo, sobre a qual eu li há tanto tempo
e que só pude compreender neste momento, em que
posso observar repetidamente, sem exceção, a primeira
estrela transformar o plano do céu em uma nova noite.
O clamor por uma “ciência do ritmo” vela a
complexidade do pensamento marxista elaborado
ao longo de mais de 70 livros publicados em vida.
Seu mergulho sobre a estética do cotidiano constrói
desde uma concepção indispensável sobre a impor-
tância da contemplação até uma crítica áspera ao
capital, descrevendo-o em minúcias, a partir de suas
elucubrações feitas sobre a noção de manipulação do
tempo. Na análise ritmica, ele repara que enquanto
o capital se multiplica passa a gerar um vácuo: mata
tudo ao seu redor em uma escala planetária. Tanto de
modo generalista quanto em cada detalhe. O Capital
não constrói. Ele produz. Ele não ergue: ele reproduz
a si mesmo. Ele simula a vida. Produção e reprodução
tendem a coincidir de modo uniforme. [...] Ele mata a
cidade, virando-a contra suas próprias bases. Ele mata
a produção artística, a capacidade artística. Ele vai tão
longe, a ponto de ameaçar a última fonte ameaçadora:
a natureza, a terra natal, as raízes. Ele des-situa os
humanos (LÉFÈBVRE, 2004, p.32, tradução minha).

111
No trecho “Seen from the Window”, Léfèbvre
se esforça para refletir sobre o espaço e o tempo de
modo único, a ponto de questionar sobre a existência
do espaço como algo separado do movimento, da
ação e, consequentemente, da experiência de tempo-
ralidades justapostas.
Aqui alcançamos o ritmo como aspecto
revelador, em ruídos, murmúrios, espaços mentais
prolongados, tudo o que resulta da mistura de vidas
vividas. Para percebê-lo, ele que não é um objeto em
si, é necessário colocar-se dentro e fora, como em
uma varanda que nos permita prestar atenção, olhar os
cruzamentos, reparar no que é cíclico, no que está no
centro forte das relações causais, alternâncias, inter-
valos. “Continue e você verá este jardim de objetos,
que não são coisas, mas polirritmias relacionando-se
sinfonicamente”, ele escreve.
Repara, assim, na complementaridade entre o
horizonte, a opacidade, os obstáculos e, também, nas
relações sobre perspectivas maiores ou menores que
a escala do corpo humano, pede o autor. Toda esta
“reparação” coloca o corpo em sua potência mais rica,
o movimento, no eixo que distingue seu pensamento
sobre o ritmo da ideia de duração em Bergson. O corpo
não é colocado de modo abstrato como ocupação
espacial ou ente de sentires, mas como motor da
temporalidade vivida.
Há, neste pequeno livro, o reconhecimento
de que, apesar de conhecermos as ocorrências em
sentidos e sentires, nem tudo é expressado, publi-
cizado. Uma porção permanece nas opacidades e
impulsos rítmicos que só fazem sentido conectiva-
mente, escapa à forma ou ao material.
Hoje, tempo em que estamos encurralados em
expressividades absolutamente diretivas (faltam-nos
palavras, motivos, facialidades para todos os quereres
mediados pelas telas elétricas), essa observação é
fascinante e radical, pois sugere que qualquer modo
de expressão poderia ser uma armadilha para quem
testemunha efeitos de presença que utrapassem

112
semblâncias. Daí a insistência dos críticos em consi-
derar este um texto metafísico. Léfêbvre, através da
noção de ritmo, explicita que travamos relações que
são da ordem da presença, mas que vão para além
da linguagem e desafiam até mesmo o que reconhe-
cemos como pensamento.
O ritmo cruza o que é público e o que é privado,
informa nos ruídos e nos silêncios. Correntes, travessias,
agitações, a melancolia, o que aparece depois que o
murmúrio silencia? O que se revela para além da forma?
Finalmente, resta o convite a reconhecer nos
ritmos e no contato com aquilo que neles se esconde, a
distinção entre quais de nossas janelas estão abertas para
permitir ver e quais pretendem apenas nos tornar visíveis.

LÉFÈBVRE, Henri. Rhythmanalysis Space, Time and


Everyday Life. Londres: Continuum, 2004.

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Bianca Scliar é artista da performance e trabalha
AUTORAS/ES

com diversos suportes documentais. Graduada em


Artes Visuais pela Udesc, obteve mestrado em Arte
Pública e Estratégias Contemporâneas pela Bauhaus
Universität-Weimar e doutorado Interdisciplinar
com ênfase em filosofia e práticas artísticas pela
Concordia University, Montreal. Atua no Centro de
Artes da Udesc, no curso de Teatro e na pós-gradu-
SOBRE AS/OS

ação em Artes Cênicas, onde pesquisa pedagogias


radicais, movimento e escultura social. Colabora
com o Instituto das 3 Ecologias no Canadá e dirige o
Laboratório de Ensaios e Imprevistos, com sede em
Florianópolis. Seu projeto investigativo mais recente,
Pedagogias para Mover Jardins, compila anotações e
proposições sobre a consciência das plantas através
da dança.

Charles Feitosa obteve graduação em Filosofia


pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986),
mestrado em Filosofia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (1990), doutorado em Filosofia
na Albert-Ludwigs Universität Freiburg / Alemanha
(1995), pós-doutorado em Filosofia pela Universidade
de Potsdam-Alemanha (2007) e pela Universidade
de Paris VIII/França (2013). Prêmio Jabuti 2005
pela autoria do livro “Explicando a Filosofia com
Arte”. Professor titular e pesquisador do DEFIL e do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). É coordenador do POP-LAB (Laboratório
de Estudos em Filosofia Pop), vice-coordenador do
LABOGAD (Laboratório de Preservação e Gestão de
Arquivos Digitais) e do Seminário de Práticas Educa-
tivas no Curso de Pedagogia (EAD) da UNIRIO. Atua
na área de Filosofia, com ênfase em Estética moderna
e contemporânea. É membro colaborador do PPGF/
UFRJ e do PROF-FIL (UFABC).

Erik Bordeleau é filósofo, escritor, curador e teórico


cultural. Trabalha como pesquisador na Universi-

116
dade NOVA de Lisboa e é também filiado ao Art,
Business and Culture Centre da Stockholm School
of Economics. Publicou e co-editou livros e artigos
na interseção de filosofia política, arte contempo-
rânea, cinema, cultura blockchain, finanças e teoria
da mídia. Uma tradução alemã de seu livro sobre os
bens comuns, Das Commons des Komunismus.
Eine Kartographie, foi publicado no início deste
ano na Büchner Verlag (2021). Em colaboração com
Saloranta & De Vylder, desenvolve The Sphere, uma
infraestrutura web 3.0 para auto-organização nas
artes cênicas.

Edélcio Mostaço é professor aposentado da Udesc.


Pesquisador do CNPq, integra grupos de estudo e
pesquisa nacionais e internacionais. Formado em
crítica e direção teatral pela ECA-USP em 1974,
doutorou-se com uma tese sobre a Poética, de
Aristóteles (publicada em 2020). Entre seus livros
mais conhecidos destacam-se Teatro e política:
Arena, Oficina e Opinião (1982 e 2016), Para uma
história cultural do teatro (2010), Soma e Sub-tração
(2015) e Incursões & Excursões (e-book, 2018).
Foi colaborador em diversas obras coletivas, com
destaque para O pós-modernismo (2005), Dicio-
nário do Teatro Brasileiro (2006), Théâtres brésiliens
– manifestes, mises en scéne, dispositifs (2015) e
O ato do espectador (2017). Seus artigos podem
ser lidos em periódicos especializados nacionais e
internacionais.

Giorgio Zimann Gislon é dramaturgo e performer.


Ministra a oficina “Deslocamento de Histórias”,
contemplada pela Lei Aldir Blanc de 2021. Publicou
as dramaturgias O que dizer aos iguanas? (CPTM,
2020) e Debaixo do céu acidentado (Caiaponte, 2020).
Organiza com Stephan Baumgartel o projeto “Encontro
com Dramaturgo” desde 2017. Mestre em Estudos
Latino-Americanos pela Universidade de Leiden.

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ORGANIZAÇÃO
Bianca Scliar
Edélcio Mostaço

ENTREVISTAS
Bianca Scliar
Charles Feitosa
Diana Gilardenghi
Edélcio Mostaço
Erik Bordeleau
Giorgio Gislon

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Aline Natureza
Kamilla Nunes

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Kamilla Nunes

ILUSTRAÇÃO
Felipe Ferreira Ferro

REVISÃO
Leonor Scliar-Cabral

ALUNAS/OS BOLSISTAS
PARTICIPANTES DA RESIDÊNCIA
Giovanna Bittencourt
Rômulo Cassante
Karol Duarte
Rodolfo Lorandi
Abner Cipriano
Victor Hugo Lago
Lucas Santanna
CATALOGAÇÃO NA FONTE ELABORADA POR
KARLA VIVIANE GARCIA MORAES – CRB14/1002

E19 Da economia à ecologia das atenções : diálogos


sobre a cena / Organização Bianca Scliar, Edélcio
Mostaço. – Florianópolis : Cais, 2022.
120 p.: il.

ISBN: 978-65-996114-3-8

1. Arte e sociedade. 2. Filósofos – Entrevistas. 3. Artistas


visuais – Entrevistas. 4. Artistas da dança – Entrevistas. 5.
Festival Internacional de Artes e Cultura José Kinceler. I.
Scliar, Bianca. II. Mostaço, Edélcio. III. Título.
CDD 701

CAIS editora
Ilha de Santa Catarina
2022
caiseditora.com

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