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Didática da literatura no ensino de E/LE: teoria e prática

Profa. Dra. Ana Cristina dos Santos (UERJ-IL/ UVA)

“El texto literario no está acabado en sí mismo


hasta que el lector lo convierte en un objeto de
significado, el cual será necesariamente plural.”

Roland Barthes. Le plaisir du texte, 1974.

Considerações iniciais

Na reforma dos Cursos de Licenciatura do Instituto de Letras da UERJ —

que entrou em vigor no primeiro semestre de 2006 — o Departamento de Neolatinas

aprovou para o currículo de seus alunos a criação da disciplina obrigatória sobre o

ensino da literatura nas aulas de língua estrangeira. O Curso de Letras Português/

Espanhol criou a disciplina “Prática II: o ensino do texto literário em língua espanhola”,

de 30 horas/ aula, cujo foco é uma didática sobre o ensino do texto literário em língua

espanhola. A disciplina Prática II tem como objetivos: a) discutir a importância de

utilizar o discurso literário no processo de ensino/ aprendizagem de língua estrangeira; b)

especificar o lugar e o papel do texto literário no processo de ensino e aprendizagem

de E/LE, c) ampliar as propostas de utilização do gênero literário em sala de aula de

E/LE e; d) elaborar propostas de atividades para o uso do texto literário em sala de

aula, visando às competências leitora e literária1 com apoio teórico nos pressupostos

da Análise do Discurso de base enunciativa.

A disciplina é ministrada no terceiro período do curso de Português/

Espanhol e divide-se em uma parte teórica e outra prática. Na primeira, apresenta-se

uma discussão teórica dos principais textos que abordam o tema. Na segunda há uma

aplicação prática da disciplina, em que se formulam exercícios que tenham como

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objetivo a exploração dos textos literários em língua espanhola como material didático

para as aulas de espanhol como língua estrangeira (E/LE). Esses exercícios devem

enfocar o valor estético do discurso literário e mostrar que esse discurso exige a

utilização de estratégias diferentes das utilizadas pelo leitor quando lê textos de outras

tipologias.

Concepção da disciplina

A inserção da disciplina no currículo fez-se necessária porque se constatou

que nas atividades propostas nas aulas da disciplina prática de ensino, no estágio

supervisionado e nos projetos de iniciação à docência em língua espanhola, os alunos

(futuros professores de língua espanhola) não formulavam exercícios com o texto

literário. Um projeto de pesquisa anterior, da autora deste trabalho2, havia detectado que

tal fato acontecia também com os professores que já atuavam na docência de língua

espanhola. Esses professores reportaram que não utilizavam o discurso literário por

considerá-lo uma modalidade complexa, elaborada e de pouca incidência nos usos mais

freqüentes do sistema da língua, sendo assim, não encontravam espaço para o seu uso

em sala de aula. Além do mais, afirmaram que a literatura não era o interesse básico do

aluno, pois o que ele queria era aprender língua e não literatura; que os textos literários

presentes nos materiais didáticos para o ensino de língua serviam apenas para ensinar

cultura e deveriam estar presentes nas atividades sempre que houvesse a necessidade

de introduzir questões culturais e que em sua graduação, as disciplinas de língua e

literatura eram ensinadas em separado e, por isso, não sabiam como inserir um texto

literário nas aulas de língua. Essa última afirmação foi a que mais nos chamou a atenção,

pois se contatava que o professor não utilizava propostas com o discurso literário porque

não lhe fora ensinado como fazê-lo em seu curso de formação.

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Assim, percebeu-se que o questionamento sobre a ausência do texto

literário nas aulas de E/LE deveria estar presente desde a formação do futuro

professor, pois somente assim o capacitaria a trabalhar com propostas de atividades

que incluíssem o texto literário entre o elenco de gêneros que deve compor a

formação do leitor em nível escolar. Este seria o primeiro passo para estimular no

futuro professor a inserção do texto literário em seu trabalho com o ensino da língua

espanhola. A partir dessas constatações, criou-se a disciplina específica sobre a

didática do ensino de literatura nas aulas de espanhol como língua estrangeira no

ementário do curso de Letras Neolatinas da UERJ.

A concepção metodológica do curso abrangeu as estratégias de leitura que

desenvolvem a competência leitora e as especificidades do gênero literário, o

conteúdo estético, que desenvolvem a competência literária. Para tanto, partiu-se do

modelo proposto pelo teórico espanhol Fillola Mendonza (2002, p. 111 et seq.) que

associa o ensino de literatura ao de leitura. O autor afirma que o contato com o texto

literário acontece através da leitura realizada. A partir de então, o leitor pode interpretar e

emitir um juízo de valor. Acrescenta que o ensino de literatura exige uma ampla formação

leitora e uma freqüente atividade de leitura. Assim, os professores devem priorizar as

atividades que regulam o processo leitor; ensinar as estratégias de leitura e o modo de

relacionar as diferentes produções literárias e considerar as contribuições pessoais dos

alunos para a interpretação dos textos. Em seu modelo teórico, a competência leitora

(que é um componente da competência literária) é a chave que abre o acesso à

interação entre o texto e o leitor. Dessa forma, tornou-se necessário incluir na disciplina

Prática II os aportes teóricos da leitura interativa de Solé (1994) e Kleiman (1993) e os

de Análise do Discurso de base enunciativa, especificamente Bakhtin (2002) e

Maingueneau (2001), com o objetivo de conscientizar os alunos sobre o seu processo

leitor e, conseqüentemente, desenvolver a competência literária.

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O objetivo principal da parte prática da disciplina é o de destituir o uso do

texto literário como pretexto para criar propostas de atividades que enfoquem somente

aspectos culturais de um grupo social específico ou para exercitar um ponto gramatical

ou lexical. Cabe destacar que não discordamos do valor cultural do texto literário.

Contudo, se consideramos que todo e qualquer texto se produz dentro de uma cultura

específica e adquire os sentidos da cultura em que foi produzido, pois quem usa a

linguagem, o faz de algum lugar determinado social e historicamente; então, todo e

qualquer texto é instrumento para o ensino de questões culturais e não somente o

literário. Assim, para tal prática, quaisquer outros textos servirão e não, especificamente,

um texto literário.

A prática

Uma vez organizado metodologicamente o curso, inicia-se a primeira turma

no primeiro semestre de 2008, no horário de 16h20min às 17h50min. Inscreveram-se

no curso 13 alunos. Desse total, dois já trabalham como professores de espanhol em

cursos de idiomas e quatro participam das atividades de Iniciação à Docência do

Instituto de Letras. A disciplina consta de 15 aulas de dois tempos. Nesse primeiro

grupo, as aulas eram ministradas sempre às quintas-feiras. Como a proposta do curso

é teórica e prática, nas 10 primeiras aulas foi apresentada ao aluno à teoria sobre o

tema tratado e pedido três atividades práticas. A primeira atividade prática foi a de

análise de materiais didáticos de E/LE para verificar o papel que ocupa o texto literário

nos livros didáticos. A segunda, a elaboração de uma atividade de interpretação leitora

de um texto literário e outro não literário que englobassem o mesmo tema. A terceira,

uma atividade de compreensão leitora com uma poesia. A partir da décima primeira,

todas as aulas passam a ser práticas e os alunos devem trazer textos em poesia e em

prosa para elaborar atividades em sala de aula. Todas as atividades elaboradas

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devem abranger perguntas que desenvolvam tanto a competência leitora quanto a

literária. Como a intenção fundamental do curso é que o futuro professor saiba

elaborar atividades com o texto literário, todos os exercícios propostos são discutidos

com o grupo e, após a discussão, podem ser refeitos se o aluno achar que pode

melhorá-los. Somente após a entrega final é que a atividade elaborada é avaliada e

recebe uma qualificação. A nota final do aluno é a soma de todas as atividades com a

sua auto-avaliação. O questionário de auto-avaliação consta de 11 assertivas que

englobam a assistência constante às aulas, a leitura do material proposto, a

elaboração das atividades e a compreensão dos objetivos da disciplina. Há ainda um

espaço para o aluno acrescentar outros aspectos não incluídos na auto-avaliação e

que ele considera importante avaliar. Na última aula, o aluno responde a dois

questionários: o primeiro, avaliando o curso (importância da disciplina para o seu

currículo, material teórico utilizado, docente, carga horária do curso, entre outros) e, o

segundo, com assertivas relacionadas ao ensino aprendizagem de E/LE, à leitura, à

literatura e ao seu uso.

O trabalho proposto objetiva a análise qualitativa das respostas ao

questionário auto-avaliação e ao de avaliação de curso. Todos os alunos inscritos na

disciplina responderam aos questionários.

As reflexões

Ao analisar a auto-avaliação dos alunos, pode-se observar que todos

afirmaram que inter-relacionaram os conhecimentos adquiridos com os que já

possuíam (pergunta n. 6). Acredita-se que tal fato aconteceu porque todos os alunos já

tinham cursado a disciplina “Prática I: a língua espanhola no ensino fundamental e

médio” em que já tinham discutido questões referentes à compreensão leitora. Quando

questionados se houve ou haverá uma mudança em sua prática docente, a partir dos

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conhecimentos adquiridos (pergunta n. 7) e se compreenderam a importância de

utilizar o discurso literário nas aulas de E/LE (pergunta n. 8), todos foram unânimes em

afirmar que sim. Essas respostas corroboram as assertivas do questionário de

avaliação do curso em que afirmam que o estudo da disciplina é importante para o seu

futuro profissional (pergunta n. 1), que as discussões fomentadas ao longo do curso

estimulam o uso do texto literário nas aulas de E/LE (pergunta n. 4) e que a disciplina

possibilita um uso consciente do texto literário nas aulas de E/LE (pergunta n. 7).

Inclusive o aluno n. 13 afirma que “a partir de agora, olharei os textos literários com

outros olhos, vi que os textos literários não servem só para ‘enfeitar’ os livros”, o aluno

n. 12 que “Ainda que não esteja trabalhando ainda, comecei a observar melhor as

minhas próprias aulas na graduação com relação ao trabalho com o texto literário”. E,

o de n. 2 que:

Anteriormente só imaginava o texto literário como pretexto para ensinar conteúdos


gramaticais e o próprio uso da língua. Agora tenho uma consciência de seu uso
relacionado às questões literárias como a plurissignificação das palavras, a
interpretação variada e outras coisas mais.

Ainda no questionário de avaliação do curso, todos acreditam que, após o

término da disciplina, são capazes de criar propostas de atividades utilizando o texto

literário (pergunta n. 8). Doze alunos acreditam que a parte teórica de confecção dos

exercícios foi suficiente para pôr em prática o conteúdo da disciplina (pergunta n. 3),

como se constata na resposta do aluno n. 1: “Porque quase sempre tínhamos

atividades para fazer, o que foi bom, pois a cada atividade era mais fácil fazer boas

questões”. Ou na do aluno n. 2: “Foram com estas atividades que conseguimos

diminuir as dúvidas”. Somente o aluno n. 3 respondeu “não” a essa questão,

justificando que “deveria haver mais exercícios práticos”. Ainda que só um aluno tenha

chamado atenção para esse fato, os alunos n. 10 e 12 ratificaram essa posição ao

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afirmarem que a disciplina possui uma carga horária pequena para o seu conteúdo. O

aluno n. 12 afirma que:

A disciplina deveria ter outra etapa, ou seja, a primeira etapa seria para refletir/
pensar nessa nova abordagem do texto literário em aula de E/LE e começar a
trabalhar o texto literário e, na segunda, poríamos em prática com muitas tarefas o
uso do texto literário, pois nessa segunda etapa as idéias estariam mais
amadurecidas.

A parte prática de confecção de exercícios foi para todos a parte que mais

gostaram do curso (pergunta n. 9), conforme a resposta do aluno n. 5: “O que mais

gostei foi a divisão da disciplina em duas partes: uma teórica e outra prática”. Essa

prática aliada à motivação levou a todos os alunos a responder, na auto-avaliação,

que compreenderam os passos para elaborar atividades para o uso do texto literário

em sala de aula, objetivando as competências leitoras e literárias (pergunta n. 11),

além de serem capazes de identificar os traços do texto literário e do não literário

(pergunta n. 9).

Entretanto, essa constatação se opõe à pergunta n. 2 da avaliação do

curso, pois ainda que todos compreendessem os passos para elaborar atividades com

o texto literário, quatro alunos (2, 3, 7 e 11) acreditam que os textos teóricos

apresentados em aula não foram suficientes para a compreensão do conteúdo da

assinatura e mais textos deveriam ser inseridos na parte teórica da disciplina.

Acredita-se que essa necessidade de mais textos literários não tenha repercutido de

maneira negativa na compreensão dos passos para elaborar as atividades por causa

da atuação da docente da turma, que segundo os próprios alunos no questionário de

avaliação do curso, apresentou os conteúdos de maneira satisfatória (pergunta n. 5),

conforme a resposta do aluno n. 1: “A professora nos fez perceber quais seriam os

caminhos adequados ao se trabalhar com textos literários”.

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Ainda que, segundo os alunos, o curso tenha uma carga horária pequena e

haja a necessidade de mais textos teóricos, todos foram unânimes em afirmar que

durante a disciplina conseguiram aprender uma didática da literatura no ensino de

E/LE e que “conseguiram aprender um caminho para retirar o conteúdo estético do

texto literário e passar isso aos alunos” (aluno n. 1).

Considerações finais

Verifica-se que a criação da disciplina nos Cursos de Letras Neolatinas da

UERJ é importante, pois inicia um processo de conscientização dos futuros

professores da inserção do texto literário nas aulas de E/LE, de como podem utilizá-lo

e, finalmente, quais as competências que desenvolvem. Observa-se que os alunos

antes de cursar a disciplina não pensam no texto literário como material autêntico para

o ensino de E/LE ou quando o fazem não elaboram atividades para o desenvolvimento

das competências leitoras e literárias. Após cursarem a disciplina, percebe-se, pelas

respostas dadas ao questionário, uma mudança de mentalidade respeito ao uso do

texto literário por parte dos alunos, inclusive daqueles que já tinham prática docente.

A inserção de uma disciplina sobre a didática da literatura no currículo de

formação do professor de E/LE torna-se imprescindível, pois assinala que o lugar e o

papel do discurso literário são determinados pelos enfoques metodológicos que

orientam o material didático e as atividades propostas em sala de aula; apresenta

modelos; mostra o potencial didático dos textos literários e assinala um caminho que

pode ser percorrido, preenchendo o vazio existente nessa área. Dessa forma, já que

os cursos de formação de professores não podem modificar os métodos e tampouco

os materiais didáticos existentes no mercado, resta a conscientização do professor,

único elemento que pode fomentar a aplicação de propostas que considerem a

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natureza específica dos textos literários com mais freqüência e, inclusive, com

possibilidades de ampliar a sua utilização em sala de aula.

Referências

BAJTÍN, Mijaíl M. Estética de la creación verbal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores,

2002.

FILLOLA MENDONZA, Antonio. La utilización de materiales literarios en lenguas

extranjeras. Aspectos didácticos de lengua y literatura. Zaragoza: Publicaciones ICE/

Universidad de Zaragoza, 2002. n. 12. p. 109-140.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura — teoria e prática. Campinas: Pontes, 1993.

MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SANTOS, Ana Cristina. El texto literario: su importancia en la enseñanza y aprendizaje

de E/LE. In: BENÍTEZ PÉREZ, Pedro; ROMERO GUILLEMAS, Raquel (Coords.).

Actas del I Simposio de Didáctica Español para Extranjeros: Teoría y Práctica. Rio de

Janeiro: Associação Hispano Brasileira Instituto Cervantes, 2004. p. 82-93.

______. El texto literario y sus funciones en la clase de E/LE: de la teoría a la práctica.

Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos: Suplemento Jubileo de Plata de la

APEERJ, Brasília, Embajada de España en Brasil, Consejería de Educación, p. 33-45,

2007.

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SOLÉ, Isabel. Estrategias de lectura. Barcelona: Grao Editorial, 1994. p. 137-149.

Notas

1
“Entende-se como competência literária o conceito difundido por Jonathan Culler, a partir da
lingüística chomskiana, para traduzir o grau de conhecimentos que um indivíduo deve ter para
poder ler um texto literário [...] o conceito deve entender-se apenas como uma forma de
distinguir a capacidade de um indivíduo para a leitura literária, que lhe permite reconhecer a
especificidade de um texto literário, respeitando o modo e o gênero literário a que pertence, o
contexto que o caracteriza e a tradição em que se inscreve” (CEIA, Carlos. E — Dicionário de
termos literários. Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl/>. Acesso em: 17 maio 2008).
2
“A inserção do discurso literário no processo de ensino e aprendizagem de espanhol como
língua estrangeira”, projeto subsidiado pelo CNPq durante o período de 2004 a 2006.

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