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Resumo: Este estudo propõe o uso de conceitos jurídicos indeterminados científicos e empíricos em
atos normativos como um dos meios estruturais do Direito pelos quais o agente político pode assegurar
sua decisão na positivação de preceitos normativos, restringindo a interpretação dos destinatários
(especialmente agentes normativos subordinados e intérpretes judiciais) por não conferir discricionariedade.
Ao mesmo tempo em que esses conceitos científicos e empíricos viabilizam a necessária plasticidade
interpretativa para fazer frente ao dinamismo e à complexidade da modernidade líquida e da sociedade de
risco, sua dependência de padrões científicos e empíricos minimiza as desfunções de legitimidade e de
insegurança jurídica porque potencialmente podem conduzir a uma solução unívoca (segundo o estado e o
estágio da ciência e do conhecimento em um momento determinado).
Palavras-chave: conceito jurídico indeterminado, discricionariedade, controle judicial de atos políticos,
interpretação criativa, ativismo judicial, politização do Poder Judiciário.
Objetivo
O objetivo deste estudo é apresentar o uso de conceitos jurídicos indetermi-
nados científicos e empíricos como um dos meios para delimitação do processo
interpretativo de atos normativos visando preservar competências legislativas e admi-
nistrativas e também proporcionar maior previsibilidade das decisões judiciais.
Para o desenvolvimento desta proposta, partimos da constatação de um
problema: a dinâmica e complexa realidade contemporânea (sociedade de risco e
modernidade líquida) levou à ampliação do grau de abstração de atos normativos (no-
tadamente da lei ordinária, que passaram a empregar expressões com maior abertura
semântica) como tentativa de dar maior elasticidade ou plasticidade ao texto normati-
vo pela interpretação. Contudo, essa maior abertura do texto é objeto de interpretação
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1 O problema
1.1 Ambiente contemporâneo
A despeito de críticas a expressões que empregam “neo”, “pós” e outros prefi-
xos para definições ou redefinições no ambiente contemporâneo, a bem da verdade
há um fato que nos parece claro e inquestionável, até porque reflete a própria lógica
histórica: a realidade de transformações do século XXI é diferente da realidade de
transformações de séculos passados, pois atualmente há importante dinamismo e
complexidade proporcionado por diversos fatores, notadamente o avanço tecnológico
em uma sociedade mundializada. Se é verdade que na história sempre o velho foi
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substituído pelo novo, atualmente vemos o novo sendo substituído pelo mais novo,
de modo que a diferença entre o passado e presente não está no simples fato de
haver mudanças, mas sim na intensidade e na rapidez das mudanças.
Partimos desse pressuposto não por adesão a modismos, mas porque real-
mente vemos, sentimos e participamos (nas devidas proporções) dessas mudanças.
Empregamos os conceitos de Modernidade Líquida e de Sociedade de Risco para dar
lastro e fundamentação teórica a essas ideias de intensa e dinâmica mudança.1
Temos nos apoiado na ideia de que o ambiente contemporâneo (segunda era da
modernidade ou modernidade líquida) é descentralizado, individualizado, pluralista,
complexo e interligado, valendo-se de novas tecnologias de comunicação (internet,
bibliotecas virtuais, nuvens etc.) que intensificam o armazenamento e a troca de
informações, potencializando as relações socioeconômicas e movendo fatos, valores
e ideias em velocidade extraordinariamente alta. Na passada sociedade industrial do
início da idade moderna (modernidade sólida), a lógica da produção de riquezas tinha
ascendência em relação aos riscos vividos, mas na atual segunda era da modernida-
de (modernidade líquida) essa relação se inverte de modo que o elemento dominante
é a incerteza, consequência desse contexto interdependente e integrado, complexo
e dinâmico. Por isso, no ambiente contemporâneo o risco está em toda parte, as
incertezas não são situações episódicas mas sim a rotina, gerando novas formas
de relacionamento e de comportamento. Porque vivemos indefinições em diversas
dimensões (presentes e futuras), há uma série de manifestações e de medidas que
antecipam riscos, levando os seres humanos a viver constantemente elaborando e
reelaborando mecanismos com os olhos no amanhã.2
A distribuição dos riscos não mais corresponde às diferenças de ordem social,
econômica e geográfica que marcaram as sociedades até o início do século XX, pois,
no atual ambiente mundializado, a sociedade de risco toma proporções globais que
atingem a todos (embora os riscos não sejam iguais para todos), já que vivemos in-
certezas num mundo diferente (e não propriamente pior se comparado com a primeira
era da modernidade). Ainda que o conceito de “globalização” seja complexo, mesmo
1
Temos estudado esse assunto, conforme FRANCISCO, José Carlos. Estado pós-moderno, confiança legítima e
anterioridade tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; João Bosco Coelho Pasin (Org.). Direito financeiro
e tributário comparado: estudos em homenagem a Eusebio González García. São Paulo: Saraiva, 2014, v. 1,
p. 24-46; FRANCISCO, José Carlos. (Neo)Constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais
e justiça pluralista. In: FRANCISCO, José Carlos (Org.). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do
passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, v. 1, p. 47-88.
2
Sobre o tema, por todos, BECK, Ulrich. La societé du risque: sur la voie d’une outré modernité. Paris: Aubier,
2001, para quem a noção de risco é entendida a partir da passagem de uma sociedade de penúria (preocupada
com uma melhor divisão das riquezas) para a sociedade de risco (cujo objeto central de preocupação é a
divisão dos riscos). Para Ulrich Beck, risco não significa necessariamente medo ou pura ameaça, mas uma
probabilidade, um perigo derivado de uma decisão de enfrentamento de algo. Também sobre o assunto,
BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony.
Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997; GIDDENS. Anthony. As consequências da modernidade. São
Paulo: UNESP, 1991.
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uma ideia vaga é capaz de exprimir a consciência de que os riscos e ameaças vividos
em um país têm potencial para se refletir de modo imediato e intensidades similares
em outros países, de tal modo que esse conjunto de riscos tem capacidade para pro-
porcionar novas formas de relação econômica, nova forma de sociedade, nova forma
de vida pessoal e nova forma de ordem global.3
As dinâmicas relações de comunicação da modernidade líquida alteram a rela-
ção de tempo e de espaço, e, se no passado uma antiga ideia era substituída por uma
nova que se propunha a ser permanente (modernidade sólida), hoje uma nova ideia é
substituída por outra ainda mais nova que se propõe a ser temporária. A volatilidade
e a complexidade dessa nova era da modernidade dificultam planejamentos estatais
e gestões socioeconômicas, pois a realidade e o horizonte se tornam mais instáveis
e de difícil previsibilidade, de tal modo que a falta de segurança, de certeza e de
garantia transforma a sociabilidade humana, enfraquecendo os sistemas de proteção
estatal às mudanças da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza e de
provisoriedade.4 Um dos maiores desafios da atualidade é desenvolver mecanismos
estatais de governança e medidas normativas capazes de proporcionar estabilidade
e de abrigar a confiança legítima dos indivíduos em relação às atividades estatais.5
3
Os riscos econômicos não são só de um ou outro Estado Nacional, pois foram “internacionalizados” sobretudo
em razão do fluxo financeiro do mercado de capitais e de empreendimentos transnacionais, deixando
altamente voláteis e instáveis o planejamento e a gestão de políticas macroeconômicas pelos governos. Sobre
a internacionalização da incerteza, BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo mundial. En busca de la seguridad
perdida. Barcelona: Ediciones Paidos Ibérica, 2008, analisa os riscos do século XXI e sua utilização para fins
políticos, passando pelo terrorismo e por mudanças climáticas, num contexto no qual o medo se mostra como
um ditador dessa era, e que transforma a linguagem política.
4
Sobre o tema, BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; Modernidade
líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
5
Sobre novos modelos de governança, CHEVALLIER, Jacques. L’État Post-Moderne. 3. ed. Série Politique, Paris:
LGDJ, 2008. A propósito dos desafios para proporcionar a proteção da confiança legítima, CALMES, Sylvia. Du
principe de protections de la confiance légitime en droits allemand, communautaire et français. Paris: Éditions
Dalloz, 2000.
6
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Cláudio de Cicco e Maria Celeste C. J. dos Santos,
São Paulo-Brasília: Ed. Polis/Ed. Universidade de Brasília, 1989, p. 40, lembra o aumento da abstração cada
vez que se sobe no nível das fontes do ordenamento, quando as normas se tornam menos numerosas e mais
genéricas, e descendo, ao contrário, as normas tornam-se cada vez mais numerosas e mais específicas.
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7
Acreditamos que o emprego de princípios e de conceitos jurídicos indeterminados em atos normativos também
se deve a outros fatores, destacando-se o fato de que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, muitos
sistemas jurídicos foram materialmente construídos a partir de ordenamentos constitucionais (que deixaram
de ser apenas referências formais para a produção normativa), a partir do que princípios fundamentais
refletiram valores predominantes da ordem internacional cooperativa (também estampados em documentos
como declarações de direitos produzidas por entidades como a Organização das Nações Unidas).
8
Desconstitucionalização, deslegalização, delegação legislativa e desregulação são consequências de um
mesmo fenômeno pelo qual se verifica a diminuição da capacidade normativa do Legislativo de primeiro ou
de segundo grau. Sobre a delegificação na Itália, conferir MARTINES, Temistocle. Diritto costituzionale. 9. ed.
Milano: Giuffrè Editore, 1997, p. 74, e LARICCIA, Sergio. Diritto amministrativo, Padova: Cedam, 2000, p. 121;
em Portugal, MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2000, t. V, p.
211; na Espanha, OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional. Sistema de fuentes. 2. ed., 6ª reimpr., Barcelona:
Ed. Ariel, 1998, p. 227; no Brasil, MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Mutações no direito administrativo.
Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000, p. 166. A respeito da deslegalização e do aumento da competência
regulamentar; FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
2009. Retomaremos o tema do ativismo mais adiante neste estudo.
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9
Como exemplo, em temas de tipificação penal, por certo os limites de criação interpretativa são menores, mas
em se tratando de direito de família nos parecem mais elásticos os campos de criação pela interpretação.
BITTENCOURT, Lucio. A interpretação como parte integrante do processo legislativo. Revista do Serviço
Público, v. IV, n. 3, dez. 1942, p. 121-127, criticava a visão “romântica” de alguns juristas por acreditarem
que o intérprete apenas mostrava o verdadeiro sentido dos textos, para então afirmar que são tão variáveis
as necessidades sociais e tão ativas as comunicações entre as pessoas que seria impossível ao legislador
tudo prever. Sobre a criação pelo processo interpretativo; TAVARES, André Ramos. A teoria da concretização
constitucional. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, n. 7, Belo Horizonte: Ed. Fórum/Instituto
Brasileiro de Estudos Constitucionais – IBEC, jul./set. 2008.
10
A respeito, REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994; TEUBNER,
Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1993; LLEWELLYN, Karl. Jurispru-
dence: realism in theory and practice. Chicago: The University of Chicago Press, 1962; ROSS, Alf. Direito e justiça.
Trad. Edson Bini, revisão técnica Alyson Leandro Mascaro. Bauru: EDIPRO, 2003. Sobre as diversas teorias, por
todos, DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. São Paulo: Ed. Método, 2006.
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11
Sobre o tema, por todos, COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
2007.
12
É um “panorama desolador”, segundo USERA, Raúl Canosa. Interpretación constitucional y fórmula política.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988, p. 138.
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13
Usamos a expressão “juízes ordinários” no sentido daqueles que atuam em Primeira e Segunda Instância do
Poder Judiciário brasileiro, tema de nossa pesquisa pela capilaridade da tarefa jurisdicional que prestam e pela
proximidade que têm com as pessoas que ingressam com ações judiciais. Mais dados sobre esse assunto
expusemos em FRANCISCO, José Carlos. Ambiente contemporâneo, positivismo e juiz ordinário. Revista
Brasileira de Estudos Constitucionais, v. 27, p. 605-629, 2013.
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no Estado de São Paulo, 38,5% dos pais e 8,7% das mães integravam o alto escalão,
27,4% dos pais e 20,9% das mães integravam o médio escalão, 24,9% dos pais e
12,2% das mães compunham o baixo escalão, e 9,1% dos pais e 8% das mães eram
empresários, ao passo que 56,5% das mães eram “prendas domésticas”.14 Exibindo
a composição pluralista de “classes sociais e econômicas” do Judiciário brasileiro,
esses dados mostram que a família do magistrado ordinário está distribuída por
todas as camadas socioeconômicas, levando a crer em uma potencial qualidade para
a compreensão das diversidades da sociedade contemporânea.
A idade média de ingresso dos estudantes no curso de Direito, em 1995, era
de 21,8 anos (a mediana estava em 21 anos), enquanto a idade média de conclu-
são do curso de Direito era de 26,1 anos (mediana em 25 anos). Fácil supor que a
trajetória universitária do magistrado era e ainda é significativamente dependente de
suas origens familiares, pois o ingresso tardio no curso de Direito está associado a
um perfil familiar de escolaridade mais baixa e de ocupações menos qualificadas (a
despeito de políticas públicas antigas como crédito ou financiamento escolar, e de
novas medidas de apoio como PROUNI e FIES).15
O pluralismo também reflete no ingresso do juiz por concurso público. A candida-
tura à magistratura ocorria, em 1995, majoritariamente até 5 anos após a graduação,
sendo que a idade média do candidato aprovado no concurso era de 33 anos e a
mediana de 31 anos. A idade média dos juízes concursados era de 42 anos, com
diferenças expressivas quando considerados alguns Estados-membros (p. ex., Rio
Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco tinham, respectivamente, 51%, 54% e 56%
de juízes com até 40 anos, enquanto o Rio de Janeiro tinha 33,7%, o que, em nossa
opinião, revela visível juvenilização do perfil magistrado e clara suscetibilidade aos
quadros sociológicos, legislativo e histórico).16
É claro que essa diversidade é exuberante ao exibir um perfil médio de magistra-
do ordinário capaz de compreender a realidade de mais de 200 milhões de habitan-
tes distribuídos pela área continental de 8,5 milhões de km² do território brasileiro,
14
Dados de VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS,
Marcelo Baumann. Corpo e alma da Magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan e IUPERJ, 1997, p.
88, 94 e 96. Embora os números apresentados sejam de meados da década de 1990, acreditamos que o
número de pais e sobretudo de mães com formação superior seja crescente dada a ampliação da oferta de
ensino universitário, o que não retira a presumível diversidade das origens socioeconômicas do magistrado.
15
Dados de VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha;
BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e alma da Magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan e IUPERJ,
1997, p. 153 e 169.
16
VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo
Baumann. Corpo e alma da Magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan e IUPERJ, 1997, p. 60 e 76.
Na p. 64, ainda quanto à idade, até 30 anos, havia 10,4% na Justiça Comum, 23,6% na Justiça Federal, 13,5%
na Justiça do Trabalho; entre 31 e 40 anos, 34,4% na Justiça Comum, 31,1% na Justiça Federal, 39,2% na
Justiça do Trabalho; entre 41 e 50 anos, 32,2% na Justiça Comum, 24,3% na Justiça Federal, 30,5% na Justiça
do Trabalho. Entre 51 e 60 anos, 18,0% na Justiça Comum, 18,2% na Justiça Federal, 13,1% na Justiça do
Trabalho; 61 anos ou mais, 5,0% na Justiça Comum, 2,7% na Justiça Federal, 3,7% na Justiça do Trabalho.
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mas também é claro que essa mesma diversidade potencializa o grau de incerteza
quanto aos métodos e critérios interpretativos adotados pela estrutura judiciária, e,
é claro, sobre o resultado interpretativo de preceitos normativos com elevado grau de
abstração.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2013 o Brasil possuía
16.429 magistrados, sendo 13.841 (84%) atuando na 1ª instância e 2.305 (14%)
atuando como desembargadores (aumento de 2,1% de magistrados no quinquênio
2009-2013). A estrutura de apoio contava com 412,5 mil funcionários.17
A mesma pesquisa realizada em 1995 mostra que a magistratura brasileira
não se desprendia inteiramente das grandes referências da sua formação doutrinária
(campo da Civil Law e do positivismo jurídico), mas ao mesmo tempo se via como
agente efetiva no processo de produção do Direito, admitindo, de algum modo, uma
atuação mais ativa (própria do campo político-cultural da Common Law). Analisando
se o juiz adotava uma postura neutra (“funcionário” das leis no cânon clássico do
Estado de Direito kelseniano, reproduzindo o Direito compromissado com a certeza ju-
rídica e com o primado do legislador sobre a função jurisdicional) ou não neutra (com-
portamento como um ator do processo de mudança social, produzindo o Direito com
afinidades substantivas em favor do Estado Democrático de Direito), 83% dos juízes
afirmaram sua não neutralidade porque devem aproximar a lei dos processos sociais
substantivos para influir na mudança social.18 Ainda, 74,8% dos juízes entrevistados
admitiram que o papel atribuído ao Judiciário nos processos de mudança social devia
se dar mediante a promoção do Estado de Direito por intermédio da correta aplicação
da lei, de tal modo que 61,7% dos magistrados afirmaram ser fiéis intérpretes das
leis, ao passo que 26,6% acreditavam que o Judiciário devia exercer papel ativo no
sentido de reduzir as desigualdades sociais. Eram juízes marcados predominante-
mente pela não neutralidade, pois 23,0% se posicionaram pela neutralidade e pela
certeza jurídica baseada na lei, ao passo que 46,4% admitiram baixa intervenção do
Judiciário e 30,6% admitiram alta intervenção.19
Outras pesquisas reafirmaram esses traços de uma magistratura mais engajada,
apontando que 73,7% dos magistrados entrevistados no Brasil “concordam inteira-
mente” ou “concordam muito” com a opinião de que o juiz não pode ser mero aplicador
das leis, pois tem de ser sensível aos problemas sociais, ainda que “apenas” 37,7%
17
Dados obtidos em <http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-em-numeros/Resumo_Justica_em_
Numeros_2014_ano-base_2013.pdf>. Acesso em 8 abr. 2015.
18
VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo
Baumann. Corpo e alma da Magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan e IUPERJ, 1997, p. 258.
19
VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo
Baumann. Corpo e alma da Magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan e IUPERJ, 1997, p. 260 e s.
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20
Dados de SADEK, Maria Tereza. A crise no Judiciário vista pelos juízes: resultados da pesquisa quantitativa.
In: SADEK, Maria Tereza. (org.). Uma introdução ao estudo da Justiça. São Paulo: Editora Sumaré, 1995.
21
Conforme PINHEIRO, Armando Castellar. Judiciário, reforma e economia: a visão dos magistrados. São Paulo: 11-
49, valendo-se de dados colhidos pelo Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo – IDESP,
disponível em <http://www.febraban.org.br/Arquivo/Destaques/armando_castelar_pinheiro2.pdf>. Acesso em
10 abr. 2015.
22
Dados obtidos em <http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-em-numeros/Resumo_Justica_em_
Numeros_2014_ano-base_2013.pdf>. Acesso em 8 abr. 2015.
23
Dados também obtidos em <http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-em-numeros/Resumo_Justica_
em_Numeros_2014_ano-base_2013.pdf>. Acesso em 8 abr. 2015.
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24
Nem sempre os meios alternativos de solução de conflitos oferecidos resultam em caminhos viáveis, pois
a busca por outras meios está condicionada à manutenção de qualidades que a esfera judiciária oferece,
acrescida de vantagens comparativas mostradas pela nova via.
25
Nem mesmo emendas constitucionais podem restringir o acesso à solução de litígios pela via judicial, de tal
modo que a inafastabilidade da apreciação jurisdicional é cláusula pétrea, seja pela separação de poderes, seja
porque o acesso ao Judiciário permite a garantia de múltiplos direitos fundamentais (art. 5º, XXXV, e art. 60,
§ 4º, III e IV, todos da Constituição de 1988).
26
Por exemplo, parlamentar poderá recorrer ao Judiciário para discutir a pena de perda de mandado aplicada
pela Casa Legislativa (matéria interna corporis) se não lhe for assegurado o direito de defesa, bem como
o Judiciário pode declarar inconstitucional medida provisória quando manifestamente não for observado o
requisito de relevância ou de urgência (elementos sujeitos à discricionariedade do Chefe do Poder Executivo).
Ainda, como projeto de lei não cria direito ou obrigação, e está sob a atribuição do Legislativo e do Executivo
(com sanção e veto), o tema de mérito não é considerado ameaça de lesão a direito, de modo que não é
passível de apreciação pelo Judiciário, embora seja possível a apreciação jurisdicional de projetos de lei em
ação ajuizada por parlamentar (normalmente mandado de segurança combatendo vício de forma) e, no caso
de projetos de emenda constitucional, é possível arguir tanto questões de mérito quanto de forma, dada a
redação do art. 60, §4º, da Constituição.
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27
Sobre o tema, RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial. Parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 129 e 138, numa perspectiva desfavorável, mostra o ativismo judicial como uma desfunção, uma violação
dos limites impostos ao magistrado pelo próprio ordenamento, quando então o Poder Judiciário exorbita sua
competência, caracterizando um desvio de conduta institucional e infringindo a separação de poderes do
Estado Constitucional de Direito. Com ressalvas mas numa perspectiva favorável ao ativismo, ROTHENBURG,
Walter Claudius. A dialética da democracia: entre legisladores e jurisdição constitucional. In: CLÈVE, Clèmerson
Merlin et al. (orgs.). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007; TAVARES, André Ramos.
O discurso dos direitos fundamentais na legitimidade e deslegitimação de uma Justiça Constitucional
substantiva. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, n. 2, 2007.
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Por certo há muita boa vontade na origem de decisões judiciais que, servindo-se
da abertura semântica de preceitos normativos, acabam por se aventurar em temas
reservados à esfera política. Esse voluntarismo chega a ser justificado até por ar-
gumentos coloquiais de contestação política, na ideia de que o Poder Legislativo
e o Poder Executivo fazem o que querem e o Poder Judiciário faz o que pode. Os
sucessivos e desconcertantes escândalos envolvendo segmentos da classe política
(à qual os magistrados não estão imunes, é bom que se diga) podem proporcionar
alguma indevida sensação de legitimação a magistrados que fazem enfrentamento a
decisões políticas lançadas por estruturas políticas desacreditadas.28
Contudo, algumas dessas ideias voluntaristas beiram a ingenuidade quando
verificadas as reais dimensões técnicas e a interdependência de políticas públicas
(especialmente as de conteúdo socioeconômico), lastreadas em estratégias dimen-
sionadas por diversos fatores (p. ex., realidades e potenciais geoeconômicos assi-
métricos cujo manejo está condicionado a delicado equilíbrio orçamentário), de tal
modo que o ativismo judicial (de viés social democrata, trabalhista, liberal etc.) pode
representar um grave obstáculo à execução de planejamentos e à própria adesão
da coletividade às medidas desenhadas de modo legítimo no ambiente político.29
Ademais, as insuficiências ou desvios de atuação do corpo político não podem ser
combatidas com desfunções de exercício de competências na função jurisdicional
(vale dizer, o magistrado não pode tomar para si a responsabilidade da decisão po-
lítica eventualmente mal desenhada e mal aplicada), pois cabe à estrutura judiciária
decidir sobre o certo ou errado no plano jurídico, e não sobre o bom ou ruim no plano
político.
Embora seja possível o controle judicial de políticas públicas no plano estrita-
mente jurídico (ainda que mediante interpretação criativa ou construtiva), a desfunção
da invasão de competência levada a efeito pelo ativismo judicial incorre em alguns
equívocos jurídicos. Se a politização do Poder Judiciário é um desvio humano pro-
porcionado por certos aspectos involuntários (impossibilidade de apartar a visão de
mundo do intérprete do modo pelo qual compreende o ordenamento) e alguns traços
voluntaristas (p. ex., o magistrado chamar para si a decisão política), de outro lado
também é verdade que esses desvios podem ser potencializados por parâmetros es-
truturais do próprio preceito normativo (especialmente pelo emprego de expressões
28
Trata-se do “neopaternalismo judicial”, mencionado por SCHUARTZ, Luis F.; FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda;
ARGUELHES, Diogo Werneck. Jurisdição, incerteza e Estado de Direito. Revista de Direito Administrativo. n. 43,
set./dez. 2006, São Paulo, p. 79-112.
29
O ativismo judicial pode ser temperado com diferentes ideias e ideologias, das mais conservadoras até as mais
progressistas. Sobre o assunto, MARSHALL, Willian P. Conservatives and the sevens sins of judicial ativism, Public
Law and Legal Theory Research Paper N 02-08, University Colorado Law Review, 2002, disponível em file:///D:/
Downloads/CONSERVATIVES%20AND%20THE%20SEVEN%20SINS%20OF%20JUDICIAL%20ACTIVISM%20-%20
WILLIAM%20P.%20MARSHALL.pdf.
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Nos EUA, corrente conhecida como minimalismo judicial afirma que o Congresso norte-americano atua de
modo mais democrático que a Suprema Corte, e que a Suprema Corte não é melhor que o Congresso para
decidir sobre princípios e direitos fundamentais. Sobre o minimalismo, PETERS, Christopher J. Assessing the
new judicial minimalism. Columbia Law Review (100 Colum. L. Rev. 1454), October/2000; SUNSTEIN, Cass R.
One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University, 1999.
31
Sugerindo autocontenção dos magistrados, DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Gasparetto. Ativismo
e autocontenção judicial no controle de constitucionalidade. In: FELLET, André; PAULA, Daniel; NOVELINO,
Marcelo (Org.). As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodivm, 2011, v. 1, p. 459-473.
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Como exemplos de conceitos indeterminados (em suas diversas espécies) temos urgência, relevância, ordem
pública, necessidade pública, interesse público ou interesse nacional, calamidade pública, utilidade pública,
justo preço, bons costumes, droga, elevado risco de acidente, alta periculosidade, reação proporcional à
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certo há risco importante nas desfunções acima referidas quando o processo inter-
pretativo se faz em face de princípios, notadamente os princípios fundamentais.33
Adotamos posição que apresenta três diferentes modalidades de conceitos
jurídicos indeterminados: conceitos científicos, conceitos empíricos e conceitos de
valor.34
agressão, boa-fé e má-fé, dentre outros, expressões empregadas tradicionalmente por atos normativos
brasileiros.
33
Em razão da extraordinária abstração de princípios fundamentais (tais como cidadania e dignidade humana),
vemos com ainda mais moderação as observações já prudentes de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e
aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 143 e s., tratando dos métodos de interpretação
constitucional evolutiva sem reforma formal da Constituição, tanto no Direito americano quanto no brasileiro,
quando observa que esse processo deve ser aplicado com limites, representados pelo próprio texto
constitucional (pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas,
devendo ser respeitados seus significados mínimos) e os princípios fundamentais do sistema constitucional
(que são intangíveis, de modo que as alterações não podem violar os programas constitucionais).
34
Apresentamos análise mais detida de conceitos jurídicos indeterminados em FRANCISCO, José Carlos.
Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009. Também sobre o tema, QUEIRÓ, Afonso
Rodrigues. A teoria do “desvio de poder”, Revista de Direito Administrativo, n. 6 e 7, p. 41-78 e 52-80.
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Reconhecemos que há divergências quanto a conceitos jurídicos indeterminados trazerem expressões que
transmitem sentidos unívocos restringindo a interpretação, de modo que haveria sempre uma única solução
válida possível, razão pela qual deles decorreria ato vinculado. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, Conceitos
jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. Atualidades Jurídicas n. 2, coord. Maria Helena
Diniz, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 103 e s., após destacar autores que consideram os conceitos jurídicos
indeterminados como sujeitos a soluções unívocas, lembra outros que entendem tais conceitos como única
fonte de discrição, e os que entendem que os conceitos fluidos podem conferir discricionariedade, adotando a
terceira posição por entendê-la em compasso com a realidade. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito
pressuposto. 4. ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2002, p. 195 e 204-205, critica a posição doutrinária que
associa conceitos indeterminados com discricionariedade, afirmando que nela se confunde juízo de legalidade
com juízo de oportunidade e fazendo também distinção entre conceito jurídico (signos de significações
atribuíveis ou não a coisas, estados ou situações) e termo (signo linguístico do conceito), afirma que o correto
seria falar em termos indeterminados dos conceitos (e não conceitos jurídicos indeterminados), concluindo
que na discricionariedade há juízo de oportunidade, enquanto em face de termos jurídicos indeterminados há
juízo de legalidade, com apenas um sentido a ser compreendido.
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A ANVISA publicou a Resolução n. 104, de 06.12.2000, retirando o cloreto de etila (lança-perfume) da lista
das substâncias entorpecentes ou psicotrópicas (inserindo-o na lista de insumos que não são proibidos, mas
controlados pelo Ministério da Justiça), mas poucos dias após foi republicada essa mesma Resolução n. 104,
reintroduzindo o lança-perfume como substância entorpecente ou psicotrópica. Acreditamos que não se deu
abolitio criminis, pois em momento algum a ANVISA teve discricionariedade para classificar o lança-perfume
como entorpecente ou insumo químico, de modo que há (como sempre houve) vinculação técnica aos termos
legais. Não nos parece correto punir aqueles que se orientaram pela resolução equivocada da ANVISA durante
os poucos dias nos quais ela vigeu (especialmente por razões de lealdade e boa-fé), mas, quanto ao delitos
passados, várias decisões judiciais (inclusive do STF, proferidas pelo Min. Marco Aurélio, por exemplo no HC
81.136-1/SP, liminar, DJU de 08.08.2001, p. 19 aplicaram abolitio criminis, afastando o entendimento de erro
material na primeira publicação da Resolução 104, que no entanto foi acolhida no STJ, no REsp 299.659, 5a
Turma, j. 18.02.2002).
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Exemplo de discricionariedade técnica é a opção dada ao agente normativo para escolher um dentre alguns
instrumentos ou equipamentos para proporcionar plena segurança de trabalho, partindo do pressuposto de que
todos darão plena segurança, mas ainda assim é necessário escolher um único modelo para padronização.
38
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações no direito administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000,
p. 169, com apoio em Massimo Severo Giannini, diferencia a discricionariedade político-administrativa da
discricionariedade técnica, pois esta última geralmente comporta opções mais restritas e que devem ser
consideradas dentro de parâmetros científicos que determinem a melhor escolha.
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Sobre discricionariedade, por todos, DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de direito administrativo. 14.
ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 65, que faz um profundo estudo sobre o tema no direito germânico, francês,
espanhol, italiano, português e brasileiro.
40
É comum a conjugação de elementos de experiência ou técnicos com aspectos de valor, tais como a definição
de padrões de segurança em postos de gasolina ou para passageiros em veículo de transporte, cuja exigência
em regra combina necessidades de proteção com os custos financeiros que viabilizam o produto.
41
RIVERO, Jean; WALINE, Jean. Droit administratif. 18. ed. Paris: Éditions Dalloz, 2000, p. 88, observam que
não existem atos inteiramente discricionários, pois todos os atos são submissos no mínimo à autoridade
competente e ao objetivo a ser buscado (que é necessariamente o interesse público), dois pontos ao menos
em relação aos quais a administração é sempre vinculada. Ao mesmo tempo, os atos mais vinculados sempre
terão um mínimo de discricionariedade, na escolha do momento para aplicação da decisão imposta pela lei
dentro de limites razoáveis.
42
RIVERO, Jean; WALINE, Jean. Droit administratif.18. ed. Paris: Éditions Dalloz, 2000, p. 88, lembram a
necessidade de equilíbrio entre a vinculação e a discricionariedade da administração, motivo pelo qual as
leis devem deixar certa margem para que seja possível a adaptação a certas circunstâncias particulares e
cambiantes. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista
Tributária e de Finanças Públicas, n. 35, p. 154, afirma que os conceitos discricionários contidos nas leis
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4 Conclusão
Por todo o exposto, acreditamos que o uso (sempre que possível) de conceitos
jurídicos indeterminados científicos e empíricos em atos normativos é um dos meios
estruturais do Direito pelos quais o agente político pode assegurar a prevalência
de sua decisão na positivação de preceitos normativos, restringindo a influência da
interpretação dos destinatários (especialmente agentes normativos subordinados e
intérpretes judiciais) por não conferir discricionariedade. Por se tratar de formatação
jurídica delimitadora da interpretação, sua adoção não depende de medidas de au-
tocontenção da atividade interpretativa (especialmente judiciária), motivo pelo qual é
recomendável ao agente político normatizador e um dado de observância obrigatória
pelo intérprete.
Embora não seja novidade no sistema jurídico brasileiro, esses conceitos cien-
tíficos e empíricos de um lado viabilizam a necessária plasticidade interpretativa para
fazer frente ao dinamismo e à complexidade da modernidade líquida e da sociedade
de risco, mas minimizam as desfunções de legitimidade e de insegurança jurídica
(potencializada por milhares de intérpretes judiciários em milhões de ações judiciais),
porque potencialmente pode conduzir a uma solução unívoca (segundo o estado e o
estágio da ciência e do conhecimento em um momento determinado).
Indeterminate legal scientific and empirical concepts and the limits of judicial interpretation
Abstract: This study proposes the use of indeterminate legal scientific and empirical concepts in normative
acts as one of the structural means by which the political agent may secure his decision in the establishment
of normative precepts, restricting the interpretation of recipients (especially subordinate normative agents
and judicial interpreters) by restraining discretion. At the same time as these scientific and empirical
concepts enable the necessary interpretative plasticity to account for the dynamism and complexity of
liquid modernity and its risk based society, its dependence on scientific and empirical patterns minimizes
the legitimacy dysfunctions and legal uncertainty because it can potentially conduct to a univocal solution
(second state and stage of science and knowledge in a determined moment).
Keywords: Indeterminate Legal Concepts. Discretion. Judicial Control of Political Acts. Creative Interpretation.
Judicial Activism. Politization of the Judicial Power.
que buscam legitimação pela eficiência dão à administração pública um juízo de realidade para além do juízo
de oportunidade (restrito à obediência formal). COSTA, Regina Helena, Conceitos jurídicos indeterminados e
discricionariedade administrativa. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, v. 29, São Paulo, jun.
1988, p. 79, lembra que o conceito indeterminado pode deixar margem de escolha para a administração, que
deverá se guiar pela razoabilidade.
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