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MELODIA, TEXTO E O CANCIONISTA,DE LUIZ TATIT: NOVOS

J á faz quase um século que a m úsica popular brasilei­ determinados estilos em contraposição às visões críti­
ra em ergiu com o form a de expressão no coração da cas que estes suscitam.
vid a cultural nacional — sendo, inclusive, g rad u al­ Mais grave ainda tem sido a falta de arcabouços meto­
mente incorporada com o tal em discursos de caráter dológicos capazes tanto de assegurar um tratamento
nacional-populista — e já se passaram mais de 50 anos equilibrado à diversidade de tradições do país quanto
desde seu prim eiro im pacto significativo em um p ú ­ de levar seriamente em conta seus conteúdos musicais,
blico internacional. Mesmo assim, o estudo dessa vas­ ou seja, metodologias capazes de trazer a prática e a es­
ta área como disciplina acadêmica mostra-se ainda em tética da produção m usical ao centro das análises, ao
sua infância. Há im pedim entos práticos patentes que invés de relegá-las à periferia. Vale ressaltar que o tra­
dificultam o trabalho de historiadores da m úsica, es­ balho pioneiro de um dos m ais im portantes intelec­
pecialmente no que diz respeito ao precário estado dos tuais do Brasil da prim eira metade deste século, o mul-
arquivos no Brasil. Exceto por História da música p o ­ tidisciplinar M ário de Andrade, teve poucos sucessores
pular brasileira, lançada pelo selo Abril e há tempo não até muito recentemente. Depois de obras como “ O sam­
m ais disponível no m ercado, e pela excelente série de ba rural paulista” e Ensaio sobre a música brasileira, fo­
relançam entos do Projeto Revivendo, a grande m aio­ ram poucos e esparsos os exemplos de uma abordagem
ria das gravações anteriores a 1960 continuam nas consistente nessa área. Contrastemos este estado de coi­
m ãos de colecionadores particulares, enquanto os pes­ sas com a situação dos estudos literários, que contam
quisadores se vêem obrigados a dedicar grande parte com um corpo de trabalhos historiográficos bem con­
de seu tempo à transcrição de song-sheets ou à garim - solidado (a pletora de Histórias da Literatura Brasilei­
pagem em sebos de m aterial bibliográfico e discográ­ ra, desde as de José Veríssimo e Sílvio Rom ero até An-
fico essencial. Há poucos dados sistematicamente o r­ tonio Cândido e A lfredo Bosi, para citar algum as) e
ganizados na indústria fonográfica, o que seria estudos de gênero, de m ovim entos e autores baseados
indispensável a qualquer análise rigorosa sobre a so ­ em diversas metodologias específicas aos seus objetos.
ciologia de produção e consum o m usical, ou m esm o De fato, o privilégio, no meio acadêmico, do discurso li­
ao teste de assunções gerais sobre a popularidade de terário como objeto de estudo em uma cultura reconhe-

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RUMOS NOS ESTUDOS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
0 CANCIONISTA: COMPOSIÇÃO DE CANÇÕES NO BRASIL. L U IZ TATIT [S Ã O PA U LO : E d u sp , 1996, 322 P.],

cidamente não-literária é um paradoxo tão banal e evi­ popular brasileira6, apesar de apresentarem algumas vir­
dente, quanto essencial para entendermos o relativo em­ tudes, também lançam mão dos piores subterfúgios da
pobrecimento dos estudos sobre música popular até ago­ abordagem do autor, por sua perspectiva mecanicamen­
ra. Apesar de toda evidência em contrário, podem os te tradicionalista sobre a evolução musical do país. Pe­
concluir, a partir do levantamento geral que apresenta­ quena história da música popular, por exemplo, consis­
remos a seguir, que a cultura musical do Brasil intenta te em uma série de capítulos que traçam uma sucessão
ser vista e não ouvida, lida ao invés de ser cantada. cronológica dos gêneros, quase como uma genealogia
Sem negligenciar algumas excelentes publicações semi- de cada tradição estilística, em termos de sua origem so­
populares, tais com o Brasil musical, de Tarik de Souza cial e das funções dos artistas em suas relações com a
et alli. e The Billboard Book o f Brazilian Popular M u- evolução da indústria da música e com práticas cultu­
sic \ de M cGow an e Pessanha, que são obras de refe­ rais relacionadas, tais como o carnaval. Em bora não
rência altamente úteis por conterem um valioso mate­ apresente qualquer prefácio explanatório do método uti­
rial descritivo, a m aior parte dessa literatura pode ser lizado — deixando crer que se apóia apenas no critério
classificada, de maneira geral, em três tipos de aborda­ musicológico — , há claramente uma ideologia im plíci­
gens (em bora elem entos de m ais de uma abordagem ta na seleção e organização dos títulos de cada capítulo:
possam estar com binados em alguns casos como, por entre dezoito capítulos, quatorze tratam predominante­
exemplo, em Música brasileira2, de Claus Schreider, ou mente das tradições urbanas pré-1960 — modinhas, lun­
na recente publicação de Hermano Viana O mistério do du, maxixe, tango brasileiro, as muitas variantes do sam ­
samba3 que traça a transformação do samba de sím bo­ ba — , dois capítulos são dedicados à música sertaneja e
lo étnico a símbolo nacional): sociologia e antropologia a “gêneros rurais urbanizados” , enquanto o restante é
social da música; história cultural e análise literária; jo r­ reservado ao movimento conhecido como M úsica
nalismo e biografia. A prim eira delas foi até então do­ Popular Brasileira (m pb ), que inclui a Bossa Nova e os
minada pela figura de José Ramos Tinhorão, cujas obras desenvolvimentos subseqüentes. De fato, a discussão
Música popular: do gramofone ao rádio e tv 4, Pequena simplificadora desses fenômenos contemporâneos apre­
História da música popular 5 e História social da música sentada por Tinhorão funciona como pretexto para uma

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crítica purista daquilo que ele vê como um cosm opoli­ de haver, de certa form a, um a aceitação sem questio­
tismo derivado de todos esses estilos — bossa nova, rock, namento das investidas do Estado Novo no sentido de
tropicalism o — , que teriam traído todos os princípios cooptar e reabilitar o sam bista com o um prom otor de
de lealdade à tradição do samba. Nessa determinação de valores oficiais. Eu suspeito que um olhar mais atento
defender sua linha conservadora, o autor vai longe, a sobre as características m usicais do gênero talvez ex­
ponto de equacionar os ecletismos experim entais dos pusesse uma relação mais complexa e ambivalente en­
tropicalistas (Caetano Veloso, Gilberto Gil et alii) com a tre o discurso populista oficial e a identidade popular
política desenvolvimentista do regime militar pós-1964, do que é sugerido pela abordagem de M atos, baseada
pela comum receptividade às tecnologias imperialistas fundam entalm ente na análise textual das letras das
e ao capital cultural da indústria dos meios de comuni­ canções desse período.
cação de massa anglo-americanos. O silêncio dos sociólogos e antropólogos em relação ao
Outra abordagem menos mecânica ou purista no cam ­ caráter estético e à experiência das atividades musicais,
po da sociologia e antropologia produziu resultados que são seus objetos de estudo, torna-se inquietante
frutíferos, com o é o caso do trabalho de H erm ano quando entramos no segundo grupo de contribuições
V ian n a Jr. intitulado O mundo fu n k ca rio ca 7, em que para este campo, aquelas dos analistas literários e histo­
exam ina o fenôm eno do soul nos subúrbios negros do riadores da cultura. Estudos desse tipo foram consagra­
Rio de Janeiro. Da m esm a form a, C láudia M atos, em dos nos ensaios e entrevistas do poeta concretista Au­
Acertei no m ilhar8, faz um estudo da evolução do sam ­ gusto de Cam pos — na coleção intitulada Balanço da
ba, em particu lar do gênero sam ba-m alandro, sob o Bossa e outras bossas9 (que inclui importantes trabalhos
im pacto das diretrizes culturais corporativistas e p o ­ musicológicos, como a análise da Bossa Nova de Meda-
pulistas de Getúlio Vargas nos anos 1930 e 1940. Entre­ glia) — , assim como em Música popular e moderna poe­
tanto, tam bém aqui encontram os a tendência a um a sia brasileira, de Affonso Rom ano de Sant’Anna, e em
visão de classe um tanto redutora no que tange à ava­ Masters o f Contemporary Brazilian S o n g 10, de Charles
liação do discurso do m alandro, tom ando-o com o a Perrone, os quais, sem exceção, assumem uma posição
expressão de um a consciência proletária, além do fato diametricamente oposta àquela de Tinhorão, no que diz

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respeito à questão da tradição e inovação. Os com posi­ de boleros e tangos e a geração de 1945, os tropicalistas
tores e m ovim entos favorecidos por estes autores são e os concretistas, Chico Buarque de Hollanda e n ova­
exatamente aqueles que dem onstraram afinidade com mente Noel Rosa.
as tendências internacionalistas de vanguarda iniciadas Minha objeção não é tanto com relação à validade das
pelos M odernistas nos anos 1920, notadamente o “an­ analogias em cada caso — há reais pontos de concor­
tropófago” Oswald de Andrade, cujo trabalho condensa dância ou m esm o diálogo entre os artistas atentos às
uma certa noção de fusão cultural entre popular e eru­ suas atuações em m om entos particulares de crise so ­
dito, local e internacional, tradicional e moderno. A pers­ cial, política ou cultural, o que faz desse trabalho com ­
pectiva cultural e histórica de críticos concretistas co­ parativo algo convidativo e recompensador. O que me
mo Campos foi decisiva na construção dessa genealogia parece questionável é a validade de construir uma his­
de afinidades que liga seus próprios trabalhos, a estética tória da m úsica popular a partir de critérios e lin gua­
“canibalista” de Oswald de Andrade e o vanguardism o gem analítica resgatados da tradição da crítica textual,
da Bossa Nova e da Tropicália numa única e ininterrup­ o que pressupõe certas inclusões e exclusões (como p o ­
ta tradição, identificada pela sua sofisticação lingüística dem a música sertaneja, a Jovem Guarda, o “ brega” , os
e sua auto-referencialidade. A conseqüência dessa pers­ novos ritm os dançantes com o o sam ba-reggae e f u n k
pectiva para a historiografia da música popular é um re­ ser acom odados neste esquem a?). Além disso, a pers­
corte interpretativo que privilegia e congrega os com ­ pectiva literária assum e como dado a fluidez da fro n ­
positores e movimentos mais “ literários” a uma história teira entre a cultura erudita e a popular, bem como con­
literária mais ampla, numa assumida cultura de expor­ sidera unicam ente a apropriação erudita da cultura
tação, universal ou internacionalista. popular, mas não o inverso. Acima de tudo, trata a can­
A contribuição de SanfiA nna vai além , ao traçar uma ção popular com o um sub-gênero da tradição lirico-
série de com parações explícitas entre com positores e poética, ao invés de considerá-la como uma prática ar­
poetas, colocando lado a lado Noel Rosa e os m oder­ tística de direito, que pede ferram entas específicas e
nistas dos anos 1920, A ri Barroso e Cassiano Ricardo/ apropriadas para a sua análise. A relação no Brasil en ­
Guilherm e de A lm eida, com positores do p ós-gu erra tre política, textualidade e tradição M odernista, que já

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foi explorada por Silviano Santiago, e as im plicações do sujeito e, do mesmo modo, um meio de coroar a críti­
dessa relação para o tratamento da música popular con­ ca literária como a mestra do domínio da criativa comu­
vidam à com paração com o que, de acordo com Paul nicação humana.11
Gilroy, foi o destino da expressão cultural negra, inclu­
sive de sua música, descaracterizada pelas mãos da crí­ As duas principais tendências nos estudos da música
tica literária: popular brasileira m ostrados até aqui serviram para
desmembrar e polarizar as duas dimensões do fenôme­
A noção de estética [...] é construída a partir da idéia e no da m usicalidade, cuja separação deve ser ultrapas­
ideologia que concebem o texto e a textualidade como um sada para que a disciplina possa fazer qualquer avanço
tipo de prática comunicativa que proporciona um mode­ sério. De um lado, a perspectiva sociológica/antropo-
lo para todas as outras formas de trocas cognitivas e de lógica examinou o significado sociológico e ideológico
interação social. Encorajados pelos críticos pós-estrutu- da prática e do gênero m usical, enquanto, de outro, a
ralistas ligados à metafísica da presença, os debates atuais história cultural e literária subsum iu as características
deixaram de citar a linguagem como sendo a analogia fun­ estéticas (principalm ente textuais) da canção popular
damental englobante de todas as práticas significativas e sob uma história mais ampla da tradição lírica. Há ain­
passaram a uma posição em que a textualidade (especial­ da outro grupo de obras que, embora tipicamente livre
mente quando concebida a partir do conceito de diferen­ de considerações teóricas e independente da polariza­
ça) expande-se e fusiona-se com a idéia de totalidade. Ao ção teórica m ostrada acim a (um a virtude bem como
dar especial atenção às estruturas de sentimento que sus­ uma lim itação), pode nos trazer uma contribuição de
tentam as expressivas culturas negras, mostram como es­ valor ao preencher a lacuna entre significado social e
sa crítica é incompleta, uma vez que se torna bloqueada prática estética. As biografias m usicais (e as autobio­
pela invocação de uma textualidade indiscriminadamen­ grafias) como a de Alm irante No tempo de Noel R osa12
te abrangente. Tomada desta forma, a textualidade torna- ou Foi assim: o cronista Lupicínio conta as histórias das
se um meio de esvaziar o problema da existência huma­ suas m ú sicas13, de Lupicínio R odrigues, as m onogra­
na, um meio de especificar a morte (por fragmentação) fias jornalísticas como Chega de saudade14, de Ruy Cas­

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tro, as coleções de artigos (Nada será como antes: m p b do no volume Ao encontro da palavra cantada (Rio de
nos anos 7 0 15, de A na M aria Bahiana, por exem plo) e Janeiro: Ed. 7 Letras, 2001).
entrevistas (com o a de J. E. de M ello M úsica Popular Desde pelo m enos 1979, W isnik adotou uma posição
Brasileira cantada e contada por Tom, Baden, Caetano crítica em relação a critérios extramusicais reducionis-
e outros)16proporcionam não apenas ricas fontes de in­ tas e a paradigm as disciplinares que, como vim os, difi­
form ação histórica e anedótica, mas tam bém um in- cultaram o progresso desta área até então:
sight vital na percepção de artistas e com positores so ­
bre sua própria prática m usical, dando atenção à esse tipo de música não tem um regime de pureza a de­
realidade do processo criativo e às perform ances que, fender: a das origens da Nação, por exemplo (que um ro­
com freqüência, apenas a linguagem da experiência mantismo quer ver no folclore), a da Ciência (pela qual
pessoal direta pode m ostrar. Desse m odo, eles ofere­ zela a cultura universitária), a da soberania da Arte (cul­
cem pistas cruciais para entenderm os a relação entre, tuada tantas vezes hieraticamente pelos seus represen­
de um lado, as estruturas m usicais e lingüísticas que tantes eruditos). Por isso mesmo, não pode ser lida sim­
devem ser integradas e internalizadas por ambos, com ­ plesmente pelos critérios críticos da Autenticidade
positor e intérprete, e, de outro, sua apreensão e seu nacional, nem da Verdade racional, nem da pura Quali­
significado com o um ato perform ativo na presença de dade. Trata-se de um caldeirão — mercado pululante on­
uma platéia. de várias tradições vieram a se confundir e se cruzar,
Não deve ser coincidência, então, que a recente produ­ quando não na intencionalidade criadora, no ouvido
ção acadêmica mais importante sobre música popular atento ou distraído de todos nós.18
brasileira seja aquela de dois especialistas que, ao m es­
mo tempo, são dois com positores e m úsicos: Luiz Ta- Nessa m esm a publicação W isnik levanta o problem a
tit, cujo inovador O cancionista: com posição de can ­ que Tatit trata sistematicamente em O cancionista, qual
ções no B ra sil17, publicado em 1996, será discutido seja, a com plexa relação entre m úsica e letra nas can ­
abaixo, e José Miguel Wisnik, cujo ensaio “A Gaia Ciên­ ções. O que com freqüência é erroneamente assumido
cia: literatura e m úsica popular no Brasil” foi publica­ com o uma hierarquia entre m elodia e texto, uma su ­

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bordinação da “ form a” pelo “conteúdo” , é provocado­ melhor, dessa “dicção” entre intérpretes e compositores
ramente descartado por Wisnik: em instâncias específicas, sugere a m aneira pela qual a
polarização disciplinar entre estética e significado so­
a música não é um suporte de verdades a serem ditas pe­ cial, que dominou os estudos da música popular brasi­
la letra, como uma tela passiva onde se projetasse uma leira até então, poderia ser superada por uma aborda­
imagem figurativa; talvez seja mais freqüente, até, o caso gem mais integrada. Por fim, por dirigir nossa atenção
contrário, onde a letra aparece como um veículo que car­ à relação íntima entre textualidade e musicalidade e por
rega a música.19 conceber palavra e tom dentro de uma m esm a forma
artística, o que é tão central para a vida cultural do país,
Desse m odo, ele antecipa as prim eiras palavras de seu fornece uma oportunidade para que sejam repensadas
colega na abordagem desse fenômeno em O cancionis- algumas polaridades cruciais da expressão cultural bra­
ta: “ No m undo dos cancionistas não im porta tanto o sileira, tais como oralidade e escrita, experiência somá­
que é dito mas a maneira de dizer, e a maneira é essen­ tica e intelectual, identidade popular e de elite.
cialm ente m elódica. Sobre essa base, o que é dito tor­ Para Tatit, o que caracteriza a arte do cancionista em
na-se, muitas vezes, grandioso.” 20 relação às canções individuais é a junção e a tensão en­
A magistral exploração da dialética entre fala e canção tre seqüências m elódicas e unidades lingüísticas no
feita por Tatit em seu recente trabalho é importante por processo entoacional, o que faz da canção uma exten­
muitas razões. Por fornecer a prim eira teoria e método são da fala. A habilidade de um com positor consistiria,
de análise não apenas sofisticado, mas também acessí­ então, na m anipulação dessas forças contraditórias. A
vel e aplicável, e que trata a canção como uma forma ar­ continuidade linear da melodia, cujo fluxo naturalmen­
tística única, O cancionista deve tornar-se um divisor te se adapta ao das vogais na linguagem verbal, produz,
de águas no desenvolvim ento da abordagem discipli­ ao mesmo tempo, uma fricção com a descontinuidade
nar deste campo, desde que seu modelo seja posterior­ inerente às consoantes, já que estas interrompem a so­
mente desenvolvido. Em segundo lugar, ao tornar pos­ noridade e segmentam o discurso verbal em fonemas,
sível a definição desse idioma singular e expressivo, ou palavras, frases, narrativas e assim por diante. Num ex-

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tremo, essa tensão pode ser direcionada para a conti­ “ fazer” . A tematização melódica presta-se naturalm en­
nuidade vocálica, aum entando a duração e a freqüên­ te à tematização lingüística, ou seja, dá-se sim ultanea­
cia de vibração das notas em itidas pelo cantor, assim mente a m aterialização m elódica e lingüística de um a
como os intervalos de altura entre elas. O efeito é o de idéia, com o a exaltação de nações e tradições, a con s­
desacelerar o movimento progressivo da melodia e ate­ trução de personagens como a baiana, o m alandro, ou
nuar os estím ulos som áticos que conduzem às ações a afirm ação de valores universais tais com o o bem e o
humanas, levando assim o ouvinte a identificar-se com mal, vida e morte, o prazer e o sofrimento.
um estado passional do “ser” , processo ao qual Tatit dá O segredo de um com positor em fazer com que essas
o nome d e “ passionalização” . Os efeitos de tensão mais tendências de articulação lingüística e continuidade
prolongados criados dentro de um a seqüência m eló­ m elódica — tem atização e passionalização — sejam
dica tendem a favorecer um “experim entar” introspec­ com patíveis ao invés de antagonistas está, para Tatit,
tivo de estados de tensão psicológica, geralmente asso­ no m odo com o qual o com positor consegue lançar
ciados à separação am orosa ou à busca de um objeto mão dos recursos usados na fala do dia-a-dia, que com ­
de desejo. A passionalização é, desse m odo, tipificada bina a musicalidade da entoação vocal com a segm en­
em gêneros m usicais com o a m odinha, o sam ba-can- tação do discurso verbal, de modo a chegar a uma “dic­
ção, o bolero, o rock romântico e o brega. ção” única e integrada:
No outro extrem o, o encurtam ento das vogais e das
freqüências ocasiona um a correspondente ênfase na Compor uma canção é procurar uma dicção convincen­
articulação rítm ica e tem ática da m elodia, pela acen­ te. É eliminar a fronteira entre o falar e o cantar. É fazer
tuação e segmentação operada pelas consoantes. A tra­ da continuidade e da articulação um só projeto de senti­
vés desse processo de “ tem atização” , a m obilização fí­ do. Compor é, ainda, decompor e compor ao mesmo tem­
sica do ouvinte é estim ulada, o que é geralm ente po. O cancionista decompõe a melodia com o texto, mas
associado a gêneros de canções intimamente ligados à recompõe o texto com a entoação. Ele recorta e cobre em
dança ou ao m ovim ento — xote, sam ba, m archa, rock seguida. Compatibiliza as tendências contrárias com o
— , em que passa a valer a m odalidade da ação ou o seu gesto oral. [p. 11]

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Longe de procurar uma forma melódica para um con­ atrás ou dentro da voz cantada, com o figura entoada
teúdo verbal preexistente, a arte de um compositor é, en­ oralmente, projetada e, em geral, disfarçada na forma
tão, descobrir e organizar as várias formas do que Tatit de melodia musical, uma vez que sem isso a mensagem
chama de “camuflagem da fala nas tensões melódicas” , a específica da canção não poderia ser apreendida e a voz
fim de regular e ordenar melódica e ritmicamente as va­ não seria m ais que um instrum ento m usical. Embora
riáveis expressivas da fala pura — que são essencialmen­ as linguagens musical e verbal não possam ser separa­
te instáveis — , transferindo essas zonas significativas de das no momento da escuta, o ouvinte reconhece as in­
tensão para o texto, onde podem adquirir a forma temá­ flexões musicais efetuadas pelo com positor como algo
tica de uma separação amorosa, da mobilização de um derivado de uma estrutura m elódica em brionária ine­
personagem para a ação ou de uma conversa coloquial. rente a qualquer língua, perm itindo que ambos se iden­
Desse modo, uma outra dialética está envolvida nesse tifiquem em suas origens culturais.
caso, já que em um movimento (“a passagem da forma Trata-se da habilidade do cancionista em emprestar
fonológica à substância fonética” ) a voz da canção dá um a entoação pessoal a essa estrutura m elódica em ­
presença corporal, dá vida, às abstratas, descontínuas e brionária, na m edida em que ele representa experiên­
efêmeras emissões da linguagem verbal: cias vivas na forma de canção individual, dotando esta
última de uma aura de naturalidade. A sensação de “ve­
A voz que fala, esta sim prenuncia o corpo vivo, o corpo racidade” é alcançada com m aior eficácia quando a li­
que respira, o corpo que está ali, na hora do canto. Da voz nha m elódica se aproxim a da inflexão verbal da letra
que fala emana o gesto oral mais corriqueiro, mais pró­ espontaneam ente entoada. A n alisan do a “gram ática
ximo da imperfeição humana. É quando o artista parece narrativa” que organiza essa estrutura textual de fone­
gente. É quando o ouvinte se sente também um pouco mas, palavras e frases dentro do tem po m elódico da
artista, [p. 16] canção (confira a sua adaptação dos term os semióti-
cos com o figurativização, tem atização e passionaliza-
Ao mesmo tempo, em movimento inverso, a inteligibi­ ção), Tatit recorre à abordagem sem iótica desenvolvi­
lidade lingüística da voz falada se mantém presente da em seu trabalho anterior Sem iótica da canção:

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melodia e letra21, este m enos acessível ao não-iniciado Seqüencializar acordes, produzir melodias, repisar bati­
do que O cancionista. das rítmicas, tocar em conjunto são verdadeiros exercí­
No ato criativo de com posição, a relação de texto e m e­ cios de manobra que preparam o cancionista para o res­
lodia com a experiência representada é, com o W isnik gate das experiências. Não é difícil aceitar que uma
observou, inversa às expectativas do senso com um . A canção tenha sido instantaneamente composta no já fa­
letra pode meramente circunscrever um tema, utilizan- moso guardanapo de papel de botequim. Na verdade, ela
do-se dos dispositivos do discurso poético para recriar já vinha sendo feita em outros guardanapos, em outras
sua própria singularidade — que se relaciona com a situações, havia dias, meses ou anos. Ela vinha sendo fei­
experiência original apenas indiretam ente, através de ta até por eliminação, por não ter sido incluída, mesmo
uma espécie de em patia coletiva — , já que é na m elo­ que parcialmente, em composições anteriores. Isso sem
dia que esta singularidade pode, de algum m odo, ser contar que, muitas vezes, a canção já estava pronta, só
melhor depreendida em sua essência: que carreando um texto não muito convincente. Nesse
caso, então, foi uma simples troca de letra. [p. 19 e 20]
Cada fragmento melódico elaborado delimita uma área
e os pontos de acento que nortearão o processo de sele­ Na interpretação, a “ veracidade” da enunciação da can­
ção lingüística. Não precisa falar muito. Basta ser exato e ção é adicionalmente garantida em termos de sua rea­
pertinente na conformação do texto, que a força da ex­ lização no tempo. A entoação vocal materializa e fixa a
periência já está melodicamente assegurada. Não impor­ duração im aginária da experiência representada como
ta tanto o que aconteceu mas como aquilo que aconte­ substância fônica dentro de um tem po periódico es­
ceu foi sentido. truturado pela m elodia e passível de infinitas repeti­
ções, num presente perpétuo vivid o fisicam ente pelo
Por isso, um texto de canção é, quase necessariamente, um cantor-compositor. Essa projeção do cantor-com posi-
disciplinador de emoções. Deve ser enxuto, pode ser sim­ tor na composição — que liga o conteúdo da letra à sua
ples e até pobre em si. Não deve almejar dizer tudo. Não entoação coloquial — Tatit denom ina “ figurativiza-
precisa dizer tudo. Tudo só será dito com a melodia. ção” . Desse modo, o ouvinte é capaz de “ perceber” a voz

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que fala na voz que canta, através do que é experim en­ Tatit, essas breves seções servem de lição sobre como
tado com o cenas enunciativas ou “ figuras” . D ois ele­ a relação entre um a análise m usicológica das estrutu­
mentos lingüísticos e musicais, em particular, auxiliam ras estéticas internas à com posição e seus significados
no processo de figurativização: os dêiticos, com o é o sócio-culturais podem ser articulados de m aneira in­
caso dos im perativos, vocativos, dem onstrativos etc., teligível. Entretanto, é no corpo principal de cada ca­
que localizam o “eu” da canção em uma situação enun­ pítulo, em que se apresenta um a deslum brante e m e­
ciativa por sua relação estratégica com a entoação m e­ ticulosa aplicação dos p rin cíp io s de análise acima
lódica; e o s “ tonemas” , isto é, três tipos de inflexões m e­ apresentados — e seriam vãs as tentativas de repro­
lódicas — um a descendente, um a ascendente e uma duzi-los aqui — , que o autor dem onstra todo o p o ­
suspensão — que, com o na fala, indicam term inação tencial de seu m étodo. M ovendo-se do nível que cha­
ou repouso, interrogação, continuidade ou expectativa m a de arquicanção — a som a dos denom inadores
de novas frases complementares. com uns apreendidos a p artir de um a totalidade de
Tatit indica em sua introdução que os “ tonem as” cons­ com posições — àquele da prática específica de com ­
tituem o principal elemento na prática analítica con­ posição, em que a origin alid ad e de soluções in d ivi­
tem plada na m aior parte de seu livro, dedicado à aná­ duais pode ser testada, o autor arrisca-se em algumas
lise de obras de onze compositores, desde os sambistas especulações sobre os reais efeitos de sentido experi­
da velha guarda com o Noel Rosa e A ry Barroso, p as­ mentados pelos ouvintes no m om ento da perform an­
sando pelos nordestinos D orival Caym m i e Luiz G o n ­ ce. Talvez não estejam os prep arad o s para o impacto
zaga, pelo bossa novista Tom Jobim , por Roberto C ar­ dessa grande conquista de Tatit que, com estas pala­
los, C hico Buarque e C aetano Veloso, apresentando, vras m odestas, conclui sua introdução: “ N ão poden­
portan to, um am plo espectro de estilos e exem plos do revelar os m istérios da criação só nos resta valori­
históricos. O tratam ento de cada artista é prefaciado zá-los, distinguindo-os cada vez m ais daquilo que não
p o r um a in trodução que aborda o contexto m usical tem m istério” (p. 27)
em que as distintas “dicções” de cada com positor são Entretanto, o que merece um a especial explicação é o
identificadas e, em bora não sejam o principal foco de método engenhosamente simples de Tatit, que nos per-

3 42 -1 T R EEC E, David. Melodia, texto e O cancionista..


mite acompanhar, com pouco ou nenhum conhecim en­ Figura i: “Aquarela do Brasil” , de A ry Barroso
to musical, a com plexidade e sofisticação de suas aná­
lises sobre a interação entre articulação lingüística e i

entoação m usical, ou seja, sobre a essência da canção


(figura i). O texto da canção é disposto em uma espé­
cie de pauta musical adaptada, na qual cada sílaba con­
secutiva é colocada em um espaço apropriado entre
uma série de linhas horizontais, cada uma delas repre­
sentando um sem itom , o m enor intervalo m elódico
empregado na com posição de canções ocidentais. A s­
sim sendo, como o que im porta é a posição relativa das
notas cantadas dentro da estrutura da canção (a idéia
chave da com posição), e não sua altura absoluta, não é
necessária fam iliaridade algum a com a notação m usi­
cal para apreender, com im ediata clareza e precisão, o 2
perfil lingüístico-m elódico de cada com posição, com 0 sil bam leio 0 sil te de
\ / \ \ / \ \ / \ \ / \
suas características relacionadas a segmentação ou con­ \ / \ \ / \ \ / \ \ / \
Bra sam bo que Bra do rra no nhor
tinuidade, reiteração crom ática ou saltos entoativos,
\ \ \ \ /
tonemas ascendentes ou descendentes. Em bora lim ita­ ba faz meu sso /
\ \ \ \ /
do em seu uso no que diz respeito à representação do que gin a se
\ \ \
movimento rítm ico, esse dispositivo oferece um meio \ \ \
dá gar mor
vital para a abertura de uma disciplina de análise mu-
sicológica àqueles que, de outro modo, se sentiriam ini­
bidos pela falta de conhecim ento form al de notação
musical.

Teresa revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 332-350, 2004. ■- 3 4 3


3 que a canção popular brasileira representa a forma
moderna do gaio saber, a cultura dos trovadores pro-
vençais, celebrada por Nietzsche em A G aia Ciência
como “essa união do cantor, do cavaleiro e do livre es­
pírito que distingue a maravilhosa cultura dos pro-
vençais de todas as outras culturas” 22. Para Nietzsche,
esse termo expressava o espírito anti-germânico, an­
ti-professoral, anti-acadêmico do ideal filosófico, em
que seriedade e disciplina intelectual são temperadas
por uma experiência corporal da arte, em uma fusão
dos princípios de Apoio e Dionísio:
É tentador especular — dada a inegável riqueza, in­
ventividade e sofisticação da composição cancional Let us dance in m yriad manners,
no Brasil, como demonstrado em O cancionista — se freedom write on our art's banners
há uma afinidade essencial entre esta forma artística our Science shall be gay!
e a consciência nacional ou a cultura como um todo.
Certamente, a caracterização feita por Tatit do can­ Let us break from every flower
tor/compositor como um malabarista dotado de um one fine blossom for our power
“ talento anti-acadêmico inato, de uma habilidade and two leaves to wind a wreath!
pragmática não comprometida com qualquer ativi­ Let us dance like trobadours
dade regular” , é sugestivamente próxima daquela de between holy men and whores,
um ícone da identidade popular, o malandro, famoso between god and world beneath!
por sua perícia e agilidade intuitivas, seu oportunis­
mo e paixão, seu lirismo e charme. José Miguel Wis- [“ To the M istral, A Dancing Song” ]23
nik, no ensaio já citado, vai além quando argumenta

3 4 4 -i TR EEC E, David. M elo d ia , texto e O cancionista..


Isso é traduzido para o contexto brasileiro contem po­ que, graças a um experim entalism o e a uma literarie-
râneo por W isnik como uma noção de “sabedoria poé- dade de vanguarda, se relacionam a idéia de uma “ tra­
tico-m usical” , com a qual a perspicácia intelectual da dição” brasileira do M odernism o, a mesma que, com o
cultura literária foi capaz de adquirir vida nova, atra­ discutim os no início deste artigo, im pôs um a leitura
vés de um a “ inocente alegria” que reside nas form as particular da história da música popular brasileira, do­
mais elem entares de m úsica e poesia e na cultura do minada pela disciplina da textualidade. A aspiração de
carnaval. A m úsica popular brasileira das últimas três reconciliar uma estética de vanguarda, aliada a inquie­
décadas reflete este “ m odo de pen sar” , no sentido de tações intelectuais, com expressões e tradições da cul­
que ofereceu um rico terreno ao diálogo entre com po­ tura popular foi possivelmente o projeto central da ge­
sitores e público, entre diferença e confluência, entre ração de artistas, incluindo os músicos, de classe média
cultura popular e cultura erudita. pós-1960. Isso se deu tanto por uma reação às críticas
Ainda assim, esse não foi o único tipo de diálogo para à Bossa Nova feitas pelo movimento esquerdista de m ú­
a composição de canções brasileiras desde os anos 6o, sica de protesto, quanto por uma explosão revolucio­
como testemunhou a investigação de Herm ano Vian- nária de ecletismo desencadeada pelos tropicalistas. É
na sobre a história da m úsica de carnaval no início do notável, ainda que pouco notado, que a canção que
século24. Qual é, então, o significado dessa intensa tro­ em ergiu do legado deixado por este projeto adquiriu
ca entre literatura e música, essa permeabilidade extre­ um tipo de hegem onia quanto à percepção nacional e
ma entre cultura de elite e cultura popular na com po­ internacional da vida musical do país, uma hegemonia
sição de canções dos últim os trinta anos, tão construída às custas de tradições e de artistas m enos
eloqüentemente ilum inada por W isnik? Os exem plos favorecidos pela máquina prom ocional do estado e da
escolhidos por ele para caracterizar o período — os indústria da m ídia — uma hegem onia expressa pelo
poetas Torquato Neto, Haroldo e Augusto de Cam pos, confuso e enganoso título mpb .

os cantores e compositores Gilberto Gil, Milton N asci­ O nascim ento da mpb coincidiu co m u m p e río d o em

mento e Caetano Veloso — correspondem a uma sele­ q u e a r e l a ç ã o e n t r e , d e u m l a d o , c a n t o r e c o m p o s i t o r e,

ta com unidade de artistas ligados por suas afinidades de outro, espectado res estava se n d o radicalm ente red e ­

Teresa revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 332-350,2004. r- 34 5


finida, uma vez que os meios de comunicação de massa rio em que aparecesse um ritmo musical independen­
e a indústria cultural aumentavam drasticamente a dis­ te; nada podia ser adicionado ou mudado” 25
tância entre artista e com unidade, pulverizando as li­ A entoação lingüístico-m elódica da canção moderna é
gações orgânicas que um dia os uniram, ainda que, si­ um eco distante daquela unidade, que começou a se de­
multaneamente, aproxim ando o artista e o espectador sintegrar com as substituições de inflexões musicais do
individual em um novo e diferente tipo de proxim ida­ verso cantado por marcações ou acentos, dando, assim,
de, através de uma tela de televisão, caixas de som hi-fi lugar às tradições da música, prosa e da poesia lingüis-
e do fone de ouvido estéreo. Se o impacto desse estado ticamente determ inada26. 0 esforço criativo envolvido
de coisas ainda não atingiu todo o espaço social e se as em com por e ouvir canções em nossa época pode tal­
novas práticas musicais ligadas à sociedade contrapu­ vez ser visto, até certo ponto, com o um esforço em al­
seram-se a isso (o exemplo mais óbvio é o projeto Olo- cançar um mesmo tipo de integração, um processo aná­
dum, de Salvador), o significado histórico desse p ro ­ logo às operações cerebrais ligadas ao desenvolvimento
cesso é, no entanto, com parável às transform ações mental de um indivíduo quando adquire o senso de
sofridas pela cultura musical herdada da Grécia antiga m usicalidade. Enquanto acreditam os que as funções
ao longo de muitos séculos. Em sua moderna sobrevi­ lingüísticas do cérebro são processadas predom inan­
vência ocidental, a própria palavra m úsica aponta eti- temente no hem isfério esquerdo e as m usicais no he­
mologicamente à continuidade e ao abismo entre nos­ m isfério direito, “ é provável que quando um ouvinte
so mundo e a civilização da Grécia antiga, já que o termo de m úsica se torna m ais sofisticado e, portanto, mais
mousike significava uma unidade de práticas culturais, crítico, sua percepção m usical se transfira para o he­
integrando dança, melodia, poesia e educação elemen­ misfério esquerdo. No entanto, quando palavras e m ú­
tar, enquanto a palavra meios referia-se a um verso m u­ sica estão fortem ente associadas, com o nas letras das
sicalmente determinado, ou música e poesia juntas: “o canções, parece que ambos estão alocados no hemisfé­
ritm o musical estava contido na própria linguagem. A rio direito, como parte de uma Gestalt única” 27
estrutura rítmico-musical era completamente determi­ A performance do cantor materializa uma unidade ain­
nada pela linguagem. Não havia espaço para um cená­ da maior entre ele, a platéia e o mundo que ambos ha­

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bitam. Com o coloca Victor Zuckerkandl, enquanto as pra frente, como que escutando uma consulta feita em
palavras aproxim am as pessoas, fazendo o cantor diri­ segredo.
gir-se aos seus com panheiros com o “ outros” , a m elo­ Isto faz parte sistematizada do samba, e também existe
dia as conduz na m esm a direção, transm utando in di­ no jongo, pelo que vi nas proximidades de São Luis do
vidualidade em com panheirism o. Ao mesmo tempo, a Paraitinga. É, pois, a coletividade que decide do texto-
entoação m usical da fala perm ite ao cantor reintegrar melodia com que vai sambar.
o mundo em si m esm o, viver aquilo que foi projetado No grupo em consulta, um solista propõe um texto-me-
ou objetivado na linguagem: lodia. Não há rito especial nesta proposta. O solista canta,
canta no geral bastante incerto, improvisando. O seu can­
Palavras dividem, tons unem. A unidade da existência que­ to, na infinita maioria das vezes, é uma quadra ou um dís­
brada constantemente pelas palavras, separando uma coisa tico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro tor­
de outra, sujeito de objeto, é constantemente restaurada no na a responder. E assim aos poucos, desta dialogação, vai
tom. A música impede o mundo de transformar-se inteira­ se fixando um texto-melodia qualquer. O bumbo está bem
mente em linguagem, de tornar-se nada mais que objeto, e atento. Quando percebe que a coisa pegou e o grupo, me­
impede o homem de tornar-se nada mais que sujeito.28 morizando com facilidade o que propôs o solista, respon­
de unânime e com entusiasmo, dá uma batida forte e en­
Alguma coisa daquela unidade “original” entre indiví­ tra no ritmo em que estão cantando. Imediatamente à
duo e grupo, dança, m elodia e poesia é m ostrada no batida mandona do bumbo, os outros instrumentos co­
notável relato de M ário de Andrade sobre “a consulta” , meçam tocando também, e a dança principia. Quando
um processo de im provisação coletiva na com posição acaso os sambistas não conseguem responder certo ou
de sambas que ele testemunhou no início dos anos 30 memorizar bem ou, por qualquer motivo, não gostam do
no interior rural de São Paulo: que lhes propôs o solista, a coisa morre aos poucos. Nun­
ca vi uma recusa coletiva formal. Às vezes é o próprio so­
Enfileirados os instrumentistas, com o bumbo ao centro, lista que, percebendo pouco viável a sua proposta, propõe
todos se aglomeram em torno deste, no geral inclinados novo texto-melodia, interrompendo a indecisão em que

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se está. Às vezes surge outro solista. Desse jeito vão até que ciedade cujas formas de auto-expressão continuam a ser
uma proposta pegue e toca a sambar. predominantemente orais, a cultura literária brasileira
Assim que os instrumentistas principiaram tocando, avan­ procura continuamente na música popular uma melo­
çam em fila para a frente. As filas de dançantes que os de­ dia para seus textos. Apenas, desse modo, pode encon­
frontam recuam. Depois são estas que avançam enquanto trar uma inteireza im aginada para um mundo contra­
os instrumentistas recuam. A visão que se tem é dum bo­ ditório e dividido e pode buscar reunir com tons aquilo
lo humano mais ou menos ordenado em filas, e que estrei­ que as palavras separaram.
tamente apertado, num áspero movimento de inclinar e O “otim ism o trágico” da Bossa Nova e o “ pessimismo
erguer de torso, avança e recua em poucos passos.29 alegre” do Tropicalism o que, para W isnik, constituem
as duas faces complementares de uma cultura musical
A enorm e m udança da prática tradicional de com posi­ nacional, por projetarem sim bolicam ente um destino
ção coletiva para a experiência criativa in d ivid u a l dos utópico para o país na harmonização da literatura e can­
cantores e com positores pós-M PB, nessa era de grava­ ção, textualidade e oralidade, intelectualidade elitista e
ções em estúdio e vídeos da m tv , condensou em c in ­ espontaneidade popular, deveriam , portanto, ser me­
qüenta anos ou menos os muitos séculos que separaram lhor definidos como a expressão ideológica particular
e u n iram nossa p ró p ria cultura m usical e a antiga c u l­ dos artistas da geração da mpb pós-1960. Pelo menos
tura da mousike. E exatamente pelo paradoxal desenvol­ para eles, a dem ocratização dos recursos culturais do
vim en to tardio e desigual do Brasil — pelo qual tra d i­ Brasil é um privilégio alcançável. Porém, em que medi­
ções antigas sobrevivem lado a lado com as m odernas, da, e de que m aneira, a perm eabilidade entre cultura
às vezes apenas com o m em ória, outras com o práticas popular e cultura de elite se dá na vida musical da maio­
vivas — , o com positor contem porâneo com educação ria analfabeta do país é uma questão que demanda uma
un iversitária tem um a percepção especialmente aguda pesquisa muito mais extensa. Esta é exatamente a ques­
do quão apartado está das fontes coletivas de sua arte, tão que, com a ajuda do m étodo analítico de Tatit, po­
ao mesmo tempo em que se m antém fatalmente p ró x i­ deremos agora começar a responder.
mo a elas. Consciente de sua m arginalidade em uma so­

348 -1 TREEC E, David. Melodia, texto e O cancionista..


1 s o u z a , Tarik de et alii. Brazil musical. Rio de Janeiro: Art Bureau, 1988; 13 r o d r ig u e s , Lupicínio. Foi assim: o cronista Lupicínio conta as histórias

2
MC gowan and pessa n h a. The bilboard book ofBrazilian Popular Music. das suas músicas. Porto Alegre: L&Pm, 1995.

New York: Guiness, 1991. 14 c a stro , Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras,

scmmíR.Qaus.Música brasileira. London:Marion Boyars, 1993;vianna 1989.

jr., Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ u fr j, 15 BAHiANA,Ana Maria. Nada será como anfes:MPB nos anos 70. Rio de

1995. Janeiro:Civilização Brasileira, 1980.

3 0 mistério do samba. Op.cit. 16 h o m em de m ello , J.E. Música Popular Brasileira cantada e contada por

4 TiNHORÃo, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio eTv. Tom,Baden, Caetano e outros. São Paulo: Melhoramentos, 1976.

São Paulo:Ática, 1981. 17 tatit , Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Pau­

5 Idem. Pequena história da música popular. São Paulo: Art Editora, lo: Edusp, 1996.

1986. 18 wiSNiK, José Miguel."O minuto e o milênio ou por favor, professor,

6 Idem. História social da música popular brasileira. Lisboa: Caminho, uma década de cada vez'.'ln:AUTRAN, Margarida; b a h ia n a , Ana Maria e

1990. wiSNiK, José Miguel. (Ed.) Anos 70:1- Música Popular. Rio de Janeiro:

7 viANNA j r ., Hermano. O mundo funk carioca. Op. cit. Europa, 1980, p.14.

8 m a to s, Cláudia. Acerte/ no milha r. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 19 Ibidem, p.11.

9 c a m po s, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Pers­ 20 TATIT, Luiz. Op.cit., p. 9.

pectiva, 1974. 21 Idem.Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994.

10 s a n T a n n a , Affonso Romano óe. Música popular e moderna poesia bra­ 22 n ie t z s c h e , Friedrich. Basic writings ofNietzsche. New Your: Random

sileira. Petrópolis:Vozes, 1978; p e r r o n e , Charles.Masters ofContempo- House, 1968, p.750

rary Brazilian Song. Austin: University of Texas, 1989. 23 Idem. The Qay Science. New York: Vintage Books, 1974, p.373.

11 GiLROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. 24 v iA N N A , Hermano.Op.cit., 1995.

London/ New York: Verso, 1993, p.77. 25 GEORGiADES,Thrasybulos. Music and language. C a m b r id g e : c u p , 1982,

12 a l m ir a n t e . No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 6.

1977. 26 wiNN, James Anderson. Unsuspected eloquence:d history ofthe rela-

Teresa revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 332-350,2004. r- 349


tions between poetry and music. New Haven/ London:Yale Univer-

sity Press, 1981, chapter 1.

27 sto rr, Anthony. Music and the mind. Harper Collins: London, 1993,

p.37.

28 zuckerknd l, Victor. Man the musician, sound and symbol. New Jersey:

Princeton University Press, 1973, p.75.

29 A n d r a d e , Mário de. Op. cit., p. 149-50.

David Treece é pesquisador de Estudos Brasileiros, chefe do Depar­

tamento de Estudos Portugueses e Brasileiros e diretor do Centro de

Estudos de Cultura e Sociedade Brasileiras no King's College, Londres.

É autor de The Gathering ofVoices: the twentieth-century poetry ofLatin

America, com Mike Gonzales [Verso, 1992], e Exiles, Allies, Rebels: BraziTs

Indianist Movement, Indigenist Politics, and the Imperial Nation-State

[Greenwood, 2000], Atualmente trabalha em estudos de estética da

música negra brasileira.

Tradução Renata Mancini [“MelodytextandLuizTatit's Ocancionista:

new directions in Brazilian Popular Music Studies", originalmente publica­

do em Journal ofLatin American Cultural Studies (Oxforshire), Carfax

Publishing CompanyyS, n.2, p. 203-16,1996.]

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