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J á faz quase um século que a m úsica popular brasilei determinados estilos em contraposição às visões críti
ra em ergiu com o form a de expressão no coração da cas que estes suscitam.
vid a cultural nacional — sendo, inclusive, g rad u al Mais grave ainda tem sido a falta de arcabouços meto
mente incorporada com o tal em discursos de caráter dológicos capazes tanto de assegurar um tratamento
nacional-populista — e já se passaram mais de 50 anos equilibrado à diversidade de tradições do país quanto
desde seu prim eiro im pacto significativo em um p ú de levar seriamente em conta seus conteúdos musicais,
blico internacional. Mesmo assim, o estudo dessa vas ou seja, metodologias capazes de trazer a prática e a es
ta área como disciplina acadêmica mostra-se ainda em tética da produção m usical ao centro das análises, ao
sua infância. Há im pedim entos práticos patentes que invés de relegá-las à periferia. Vale ressaltar que o tra
dificultam o trabalho de historiadores da m úsica, es balho pioneiro de um dos m ais im portantes intelec
pecialmente no que diz respeito ao precário estado dos tuais do Brasil da prim eira metade deste século, o mul-
arquivos no Brasil. Exceto por História da música p o tidisciplinar M ário de Andrade, teve poucos sucessores
pular brasileira, lançada pelo selo Abril e há tempo não até muito recentemente. Depois de obras como “ O sam
m ais disponível no m ercado, e pela excelente série de ba rural paulista” e Ensaio sobre a música brasileira, fo
relançam entos do Projeto Revivendo, a grande m aio ram poucos e esparsos os exemplos de uma abordagem
ria das gravações anteriores a 1960 continuam nas consistente nessa área. Contrastemos este estado de coi
m ãos de colecionadores particulares, enquanto os pes sas com a situação dos estudos literários, que contam
quisadores se vêem obrigados a dedicar grande parte com um corpo de trabalhos historiográficos bem con
de seu tempo à transcrição de song-sheets ou à garim - solidado (a pletora de Histórias da Literatura Brasilei
pagem em sebos de m aterial bibliográfico e discográ ra, desde as de José Veríssimo e Sílvio Rom ero até An-
fico essencial. Há poucos dados sistematicamente o r tonio Cândido e A lfredo Bosi, para citar algum as) e
ganizados na indústria fonográfica, o que seria estudos de gênero, de m ovim entos e autores baseados
indispensável a qualquer análise rigorosa sobre a so em diversas metodologias específicas aos seus objetos.
ciologia de produção e consum o m usical, ou m esm o De fato, o privilégio, no meio acadêmico, do discurso li
ao teste de assunções gerais sobre a popularidade de terário como objeto de estudo em uma cultura reconhe-
cidamente não-literária é um paradoxo tão banal e evi popular brasileira6, apesar de apresentarem algumas vir
dente, quanto essencial para entendermos o relativo em tudes, também lançam mão dos piores subterfúgios da
pobrecimento dos estudos sobre música popular até ago abordagem do autor, por sua perspectiva mecanicamen
ra. Apesar de toda evidência em contrário, podem os te tradicionalista sobre a evolução musical do país. Pe
concluir, a partir do levantamento geral que apresenta quena história da música popular, por exemplo, consis
remos a seguir, que a cultura musical do Brasil intenta te em uma série de capítulos que traçam uma sucessão
ser vista e não ouvida, lida ao invés de ser cantada. cronológica dos gêneros, quase como uma genealogia
Sem negligenciar algumas excelentes publicações semi- de cada tradição estilística, em termos de sua origem so
populares, tais com o Brasil musical, de Tarik de Souza cial e das funções dos artistas em suas relações com a
et alli. e The Billboard Book o f Brazilian Popular M u- evolução da indústria da música e com práticas cultu
sic \ de M cGow an e Pessanha, que são obras de refe rais relacionadas, tais como o carnaval. Em bora não
rência altamente úteis por conterem um valioso mate apresente qualquer prefácio explanatório do método uti
rial descritivo, a m aior parte dessa literatura pode ser lizado — deixando crer que se apóia apenas no critério
classificada, de maneira geral, em três tipos de aborda musicológico — , há claramente uma ideologia im plíci
gens (em bora elem entos de m ais de uma abordagem ta na seleção e organização dos títulos de cada capítulo:
possam estar com binados em alguns casos como, por entre dezoito capítulos, quatorze tratam predominante
exemplo, em Música brasileira2, de Claus Schreider, ou mente das tradições urbanas pré-1960 — modinhas, lun
na recente publicação de Hermano Viana O mistério do du, maxixe, tango brasileiro, as muitas variantes do sam
samba3 que traça a transformação do samba de sím bo ba — , dois capítulos são dedicados à música sertaneja e
lo étnico a símbolo nacional): sociologia e antropologia a “gêneros rurais urbanizados” , enquanto o restante é
social da música; história cultural e análise literária; jo r reservado ao movimento conhecido como M úsica
nalismo e biografia. A prim eira delas foi até então do Popular Brasileira (m pb ), que inclui a Bossa Nova e os
minada pela figura de José Ramos Tinhorão, cujas obras desenvolvimentos subseqüentes. De fato, a discussão
Música popular: do gramofone ao rádio e tv 4, Pequena simplificadora desses fenômenos contemporâneos apre
História da música popular 5 e História social da música sentada por Tinhorão funciona como pretexto para uma
Teresa revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 332-350, 2004. r- 335
foi explorada por Silviano Santiago, e as im plicações do sujeito e, do mesmo modo, um meio de coroar a críti
dessa relação para o tratamento da música popular con ca literária como a mestra do domínio da criativa comu
vidam à com paração com o que, de acordo com Paul nicação humana.11
Gilroy, foi o destino da expressão cultural negra, inclu
sive de sua música, descaracterizada pelas mãos da crí As duas principais tendências nos estudos da música
tica literária: popular brasileira m ostrados até aqui serviram para
desmembrar e polarizar as duas dimensões do fenôme
A noção de estética [...] é construída a partir da idéia e no da m usicalidade, cuja separação deve ser ultrapas
ideologia que concebem o texto e a textualidade como um sada para que a disciplina possa fazer qualquer avanço
tipo de prática comunicativa que proporciona um mode sério. De um lado, a perspectiva sociológica/antropo-
lo para todas as outras formas de trocas cognitivas e de lógica examinou o significado sociológico e ideológico
interação social. Encorajados pelos críticos pós-estrutu- da prática e do gênero m usical, enquanto, de outro, a
ralistas ligados à metafísica da presença, os debates atuais história cultural e literária subsum iu as características
deixaram de citar a linguagem como sendo a analogia fun estéticas (principalm ente textuais) da canção popular
damental englobante de todas as práticas significativas e sob uma história mais ampla da tradição lírica. Há ain
passaram a uma posição em que a textualidade (especial da outro grupo de obras que, embora tipicamente livre
mente quando concebida a partir do conceito de diferen de considerações teóricas e independente da polariza
ça) expande-se e fusiona-se com a idéia de totalidade. Ao ção teórica m ostrada acim a (um a virtude bem como
dar especial atenção às estruturas de sentimento que sus uma lim itação), pode nos trazer uma contribuição de
tentam as expressivas culturas negras, mostram como es valor ao preencher a lacuna entre significado social e
sa crítica é incompleta, uma vez que se torna bloqueada prática estética. As biografias m usicais (e as autobio
pela invocação de uma textualidade indiscriminadamen grafias) como a de Alm irante No tempo de Noel R osa12
te abrangente. Tomada desta forma, a textualidade torna- ou Foi assim: o cronista Lupicínio conta as histórias das
se um meio de esvaziar o problema da existência huma suas m ú sicas13, de Lupicínio R odrigues, as m onogra
na, um meio de especificar a morte (por fragmentação) fias jornalísticas como Chega de saudade14, de Ruy Cas
Teresa revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 332-350, 2004. <- 341
que fala na voz que canta, através do que é experim en Tatit, essas breves seções servem de lição sobre como
tado com o cenas enunciativas ou “ figuras” . D ois ele a relação entre um a análise m usicológica das estrutu
mentos lingüísticos e musicais, em particular, auxiliam ras estéticas internas à com posição e seus significados
no processo de figurativização: os dêiticos, com o é o sócio-culturais podem ser articulados de m aneira in
caso dos im perativos, vocativos, dem onstrativos etc., teligível. Entretanto, é no corpo principal de cada ca
que localizam o “eu” da canção em uma situação enun pítulo, em que se apresenta um a deslum brante e m e
ciativa por sua relação estratégica com a entoação m e ticulosa aplicação dos p rin cíp io s de análise acima
lódica; e o s “ tonemas” , isto é, três tipos de inflexões m e apresentados — e seriam vãs as tentativas de repro
lódicas — um a descendente, um a ascendente e uma duzi-los aqui — , que o autor dem onstra todo o p o
suspensão — que, com o na fala, indicam term inação tencial de seu m étodo. M ovendo-se do nível que cha
ou repouso, interrogação, continuidade ou expectativa m a de arquicanção — a som a dos denom inadores
de novas frases complementares. com uns apreendidos a p artir de um a totalidade de
Tatit indica em sua introdução que os “ tonem as” cons com posições — àquele da prática específica de com
tituem o principal elemento na prática analítica con posição, em que a origin alid ad e de soluções in d ivi
tem plada na m aior parte de seu livro, dedicado à aná duais pode ser testada, o autor arrisca-se em algumas
lise de obras de onze compositores, desde os sambistas especulações sobre os reais efeitos de sentido experi
da velha guarda com o Noel Rosa e A ry Barroso, p as mentados pelos ouvintes no m om ento da perform an
sando pelos nordestinos D orival Caym m i e Luiz G o n ce. Talvez não estejam os prep arad o s para o impacto
zaga, pelo bossa novista Tom Jobim , por Roberto C ar dessa grande conquista de Tatit que, com estas pala
los, C hico Buarque e C aetano Veloso, apresentando, vras m odestas, conclui sua introdução: “ N ão poden
portan to, um am plo espectro de estilos e exem plos do revelar os m istérios da criação só nos resta valori
históricos. O tratam ento de cada artista é prefaciado zá-los, distinguindo-os cada vez m ais daquilo que não
p o r um a in trodução que aborda o contexto m usical tem m istério” (p. 27)
em que as distintas “dicções” de cada com positor são Entretanto, o que merece um a especial explicação é o
identificadas e, em bora não sejam o principal foco de método engenhosamente simples de Tatit, que nos per-
os cantores e compositores Gilberto Gil, Milton N asci O nascim ento da mpb coincidiu co m u m p e río d o em
ta com unidade de artistas ligados por suas afinidades de outro, espectado res estava se n d o radicalm ente red e
2
MC gowan and pessa n h a. The bilboard book ofBrazilian Popular Music. das suas músicas. Porto Alegre: L&Pm, 1995.
New York: Guiness, 1991. 14 c a stro , Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras,
jr., Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ u fr j, 15 BAHiANA,Ana Maria. Nada será como anfes:MPB nos anos 70. Rio de
3 0 mistério do samba. Op.cit. 16 h o m em de m ello , J.E. Música Popular Brasileira cantada e contada por
4 TiNHORÃo, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio eTv. Tom,Baden, Caetano e outros. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
São Paulo:Ática, 1981. 17 tatit , Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Pau
5 Idem. Pequena história da música popular. São Paulo: Art Editora, lo: Edusp, 1996.
6 Idem. História social da música popular brasileira. Lisboa: Caminho, uma década de cada vez'.'ln:AUTRAN, Margarida; b a h ia n a , Ana Maria e
1990. wiSNiK, José Miguel. (Ed.) Anos 70:1- Música Popular. Rio de Janeiro:
7 viANNA j r ., Hermano. O mundo funk carioca. Op. cit. Europa, 1980, p.14.
8 m a to s, Cláudia. Acerte/ no milha r. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 19 Ibidem, p.11.
9 c a m po s, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Pers 20 TATIT, Luiz. Op.cit., p. 9.
pectiva, 1974. 21 Idem.Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994.
10 s a n T a n n a , Affonso Romano óe. Música popular e moderna poesia bra 22 n ie t z s c h e , Friedrich. Basic writings ofNietzsche. New Your: Random
rary Brazilian Song. Austin: University of Texas, 1989. 23 Idem. The Qay Science. New York: Vintage Books, 1974, p.373.
11 GiLROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. 24 v iA N N A , Hermano.Op.cit., 1995.
London/ New York: Verso, 1993, p.77. 25 GEORGiADES,Thrasybulos. Music and language. C a m b r id g e : c u p , 1982,
27 sto rr, Anthony. Music and the mind. Harper Collins: London, 1993,
p.37.
28 zuckerknd l, Victor. Man the musician, sound and symbol. New Jersey:
America, com Mike Gonzales [Verso, 1992], e Exiles, Allies, Rebels: BraziTs