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“Conceituando a obra”
Não me leve a mal pela pergunta retórica, mas (ainda!) o que é o Diálogo? O
que é Falar, então? Expressar-se, sofrer, raciocinar?
Encerrados em ambientes, suas vontades expostas, que esperar da capacidade
humana em “Casa de praia”? Muito foi dito por aí que através de Beleza e da
sensualidade há alguma resposta além dessa inquietante pergunta! Milagres
serão entendidos como transformações. Tudo do tempo da representação ou
em seu começo.
Talvez o fato de detalhar tanto estrague a satisfação de ir delimitando por sua
conta a dramática peripécia que é essa a dos seres pensantes. “Quem sabe(s)”
vagueiam pela brisa daquela residência, estamos confessos como leitores
curiosos! Que fiquem os desafios aos jovens que se apresentam.
Salve quem puder! Vamos, você também!! “Com as vozes vivas, cara a cara...
tudo muda!”
UM ROTEIRO PARA “CASA DE PRAIA”
“Tela negra, apenas um esclarecimento escrito em letras brancas”
Após toda essa apresentação do panorama das praias e das pessoas em seus
momentos, há um corte. Vem um céu azul, a câmera vai aos poucos baixando
do céu azulado até um corpo indefinível na medida que a voz de uma criança
se faz aos ouvidos do público. É a menina que narra calmamente, suas palavras
são compassadas, quase que escolhidas enquanto fala:
““Não me leve a mal pela pergunta retórica, mas (ainda!) o que é o Diálogo?
O que é Falar, então? Expressar-se, sofrer, raciocinar?
Encerrados em ambientes, suas vontades expostas, que esperar da capacidade
humana em “Casa de praia”? Muito foi dito por aí que através de Beleza e da
sensualidade há alguma resposta além dessa inquietante pergunta! Milagres
serão entendidos como transformações. Tudo do tempo da representação ou
em seu começo.””
Ela pausa, respira. Aqui já vemos que ela está na frente de uma escola, poderia
ser um intervalo ou durante a hora da saída. Outras crianças correm de um
lado a outro no fundo da cena. O dia parece normal, até que ela prossegue
com sua fala:
Corte para uma mão feminina digitando a seguinte frase enquanto a vemos
aparecendo na tela de um celular: “Se passa no litoral do Rio de Janeiro.”
“As 16 cenas com Ani e Kalderash”
“Cena I”
Tela negra. Ouve-se apenas um suspiro. A voz é de Ani. Aqui começa a trama
efetivamente, com ela se ajeitando. Aparece Kalderash entrando em casa, ele
abre a porta apressadamente e encontra a moça. Ao vê-la ele se acalma.
Papeiam um de frente para o outro enquanto caminham pela casa. Vejamos:
– Você sabe bem que eu sou a favor de qualquer mudança – disse Ani, meio
irritadinha.
– E eu também, mor! – mas retrucou o acanhado Kalderash.
– Tá, mas então por qual motivo você não segue o que me diz? Enquanto
isso, fica rodeando e dando desculpas. [Ani]
– Eu? Que isso, mulher!? [Kalderash]
– É isso mesmo. Tu e essa mania de dizer, de ser o dono da verdade. Nada é
fixo, Kal! [Ani]
– Claro que não, mas são minhas ideias, poxa. [Kalderash]
– É autoritarismo, essa é a doutrina. Grande desse jeito e não pode distinguir
bem de mal?... Todos podem. [Ani]
– Como você me julga... [Kalderash]
– Como você me impede... [Ani]
– Faço o que acho necessário. [Kalderash]
– Sabichão. Tá bom, e pense bem... Acho muitíssimo necessário que você
pare com isso já e aprenda com seus erros. Quero um homem mutável. –
vemos ela descascando uma laranja.
– Eu me adapto bem! – e Kalderash coloca água em um copo, tirando de um
filtro de barro.
– Me ouve, caramba!! Deixa eu terminar – Ani expressa um sorrisinho de
satisfação pelo que diria: “A partir de hoje, você não vai mais ser o doninho
absoluto da verdade nem de nada, as ideias apenas vão te atravessar. Assim
vai poder absorver bem, crescer como pessoa. Digo e faço dessa forma porque
te amo e acredito no nosso relacionamento. Caso contrário...”
– O quê? Fala então... Caraca! [Kalderash]
– Que isso, menino! – ela agora recorta a laranja em cubos.
– Iahahahah, tô te provocando só. [Kalderash]
– Ah é!? Então é assim, de pirracinha. Pois vou te jogar uma praga: toda vez
que tentar impor tuas vontades e pensamentos, esses que não dão margem à
discussão... lembra, fofinho? – e ele corou a face do outro lado, arregalando
os olhos. Ani expõe: “Se prosseguir, você vai se coçar até não aguentar”.
– Ah, só quero ver essa. [Kalderash]
– Tu tá duvidando, é? – ela agora usa um tom mais doce e amável, oriundo
de pura paz de espírito.
– É, eu tô mesmo. – Kalderash está tenso, Ani sabe reconhecer isso.
– Então espera pra ver. Ou melhor, sentir – e Ani ri. Corte para a visão da
noite nos arredores da casa. A próxima cena já se passa em outro dia desses.
“Cena II”
– Então!...
– Se ligue, eu me dou bem assim. Olha só, você quer parar com isso? Tá
insatisfeita comigo, ãn... Qual foi? [Kalderash]
– Mais ou menos. É que vejo tanto poder, força... e virilidade em você... Em
compensação, te faltam outros “eus”. É como se eu apenas quisesse te
aperfeiçoar. Agora pescou minha sacação? [Ani]
– Ah tá – ele estica a mão e pega uma taça, depois dá um gole em seu vinho,
que já havia deixado de lado para escutar o que Ani discursava. Ele senta
também no sofá. Olham-se olhos nos olhos, transparentes como eram uns
para os outros. Continuam após rirem um para o outro:
– Ah tá – repetiu ela, remendando ele.
– Tu adora me zoar, pota que la mer... – Kalderash ri com força.
– Não é isso. Espero que o mais cedo possível você possa aprender mais sobre
você mesmo, e levantar-se sem mim! [Ani]
– Ih, qual foi, menina? Tô nesse jogo há muito... Eu, hem. Agora vem com
isso e aquilo. Quando te conheci, tu não tinha essas asinhas nem dava um
passo sem mim. Outra coisa, não vou a lugar nenhum! [Kalderash]
– Você é meu homem, maluco... estamos juntos!!! [Ani]
– Eu sei, doidinha. Como nos provocamos! [Kalderash]
– É, mas não foge do assunto, não. [Ani]
– Eu não, que isso – completa o tal Kalderash: “É impressionante como nada
escapa ao olhar de uma mulher, digo, DE VOCÊ” – ele enfatizou tanto a
última frase que já estava quase beijando ela.
– Eu sou muito esperta, nem era preciso repetir – e sorri fácil a Ani.
– Olha lá, hem. Não vá se coçar, diz Kalderash.
– Fale por si próprio, Kalzinho – e se ri Ani, contemplando o namorado a
mirá-la desconfiadinho. E ela recomeça, brusca: “Sem medo de encarar numa
boa, Kal, é assim que tem que ser. Você pode até fugir de mim, mas não
esquecerá o que represento” – e se cala, esperando a resposta dele.
– “Me dá um tapa no rosto que me acerta a direita... ao que te ofereço o outro
lado para que se iguale” – profetizou... ou parafraseou o rapaz.
– Vamos pra cama, more. [Ani]
Vemos a fachada da casa, o vento é agradável nesta tarde. Ani está sentada na
varanda lendo um livro. Aparece Kalderash todo se coçando, dos pés à cabeça
vermelho e já com brotoejas...
– Caramba, Ani. Tira essa porcaria da minha alma! Já deu. Não posso abrir a
boca, que sou fuzilado com isso. [Kalderash]
– Kal, Kal... tá difícil, hã!? – ela abaixa o livro e olha para ele.
– É, é mesmo. Eu que o diga. [Kalderash]
– Uma longa estrada, morin. [Ani]
– Ani, me escuta... [Kalderash]
– Não, não. Você é que tem que ficar tranquilo. Não precisa pedir, você só
tem que necessitar. Se você me ouvisse mais, rrum... [Ani]
– Tá legal, eu ouço agora. Só assim descanso a voz e o corpo... [Kalderash]
– Menino, não seja malcriado! [Ani]
– Não é o que queria? Pois então. [Kalderash]
– Poxa, percebi que você era boa pessoa desde o primeiro dia que nos vimos;
soube que não ia desistir de você, mesmo sendo como é... Lembra daquele
dia? [Ani]
– Claro, te comi com os olhos e logo estávamos travados na cama. [Kalderash]
– É... – e ela ri meio sem graça –, foi mais ou menos isso, ainda que mais
floreado, tá!? Humm. Então, continuando... Acho só que você foi um pouco
corrompido ao longo da sua vida. Te pergunto: renuncia à Liberdade? Ou
volta paro o (teu) mundo atual? Esse fadado e ultrapassado modo de... ser...
e estar?? Ahhh. Que droga!... Nosso amor fica aprisionado a um
egocentrismo ignorante moralmente. Esse mesmo ego que te enlaçou, e não
foi com pernas... Tanta filosofia e tantas mortes para encarcerar tudo nas
escolas. Você repetiu de ano, sinto lhe informar. [Ani]
– Escola é para quem não sabe meter a cara. [Kalderash]
– Imagina, quanto mais aperfeiçoar o teu ser, mais expressivo fica; outros
chamam de “sabedoria”, ou mesmo de “prática do bem”. Tem gente que diz
que é autoconhecimento. Mas o que é que você sabe? – enfatiza com o corpo
quando fala “sabedoria” e “prática do bem”.
– Que desse mato tá difícil sair cachorro. Eu teria que só ouvir? Aí... você me
regula demais, Ani. [Kalderash]
– Me poda, me poda, só repete isso. Capaz!!! Virou planta agora, menino?
[Ani]
– Não sou como as árvores, sou a folha. Putz, você é demais!... De onde tirou
essas coisas? [Kalderash]
– Mas isso é parte da experiência humana. Nem fui eu quem criou. [Ani]
– É, huummmn, são até possíveis, ainda que meio absurdas. Pena eu ser pária,
Ani... Párias leem e se cansam, jogam os livros num canto, procuram algo mais
fácil para fazer. – ele andava de um lado a outro, ora parando com a mão na
pilastra da casa, ora olhando o horizonte. Então Kalderash se detém e volta o
olhar para ela: “Eu sei que vai dizer que é má vontade... ou talvez fraqueza.
Não é que eu não tenha tentado, mas fiquei um tanto...”
– Não, você só está sendo atingido por uma das moléstias triplicadas deste
novo milênio: preguiça. [Ani]
– Mas como lutar contra algo que já existe antes de mim? [Kalderash]
– Se adianta. [Ani]
– Antecipar, é verdade. [Kalderash]
– Vem, vamos andar. [Ani]
Corte para Ani na cozinha mexendo algo em uma panela, ela cantarola.
Depois pega alguns pratos e talheres e coloca tudo em uma mesa. Ela olha
para a mesa e sorri, está satisfeita com o que produzira. Em seguida dá um
grito para que o namorado ouça do outro lado, no quarto deles: “ Não quero
ser a crítica da história... Mas vem logo pra cááá!!”
Ani suspira. Por algum tempinho a câmera foca em seu belo rosto. Ela
completa:
– Esses seres superficiais mesmo de carne e osso. Me diz onde erramos, Kal?
– Não posso, mas quero acreditar que está falindo, e chega ao ponto
culminante em que o caos é a melhor saída... Quem sabe se só esperando
desabar para reconstruir... [Kalderash]
– Acho justo. [Ani]
– Que seja. [Kalderash]
– Que seeeje, ela fala rindo. Depois eles comem, a cena é acompanhada em
seus detalhes. Apenas pela metade do prato deles Ani interrompe o silêncio:
– Trouxe minha sobremesa?
– Sim, minha linda. Você não viu porque eu coloquei na geladeira.
[Kalderash]
– Vou pegar. O açaí está com o quê? [Ani]
– Granola, uvas passas, do jeito que você gosta... mas pedi para bater com
banana também. [Kalderash]
– Ai que bom! [Ani]
– Acaba seu prato primeiro, vai! [Kalderash]
– Ah tá. [Ani]
– Amor, vou ligar a televisão. Estavam fazendo uma reportagem aqui perto,
nem acreditei. – e ele se levanta para ligar o aparelho.
– Mas depois você desliga, não passa nada interessante mesmo. Acho que vou
colocar um filme a seguir. [Ani]
– Coloca sim. – enquanto eles falavam, a narração da repórter já era ouvida.
Ela está no que parece ser o centro da cidade: “(...) contra bandidos, somos a
solução. Se você não percebeu mas falar e apoiar o produto do tráfico
postando fotos de armas ou tiroteios, usar drogas ou comprar algum produto
roubado, por exemplo, tudo isso e muito mais contribui para a bandidagem,
isso também é corruptivo. Não vire um fã desses seres equivocados, eles
apenas existem se você deixa; isso não é um filme, novela ou videogame.
Normalmente, um tiro dói! Da mesma forma, comprando os tóxicos que um
traficante consegue por vias árduas e tristes, um produto de guerra e
sofrimentos, você se nutre dessa carga negativa, e infelizmente, é a mesma
premissa de compra e venda e oferta e procura... o resultado pesa. Saia de
perto de tudo o que é errado ou duvidoso, abandone as más companhias e
locais perigosos, pense em coisas honestas que elas vêm, isso, pratique! Não
espere mais que politicagens resolvam a questão violência, seja você uma arma
só que do Bem.”
“Esse recado final é para você que tem o hábito de compartilhar vídeos ou
postar conteúdo dos tiroteios, assassinatos, roubos ou sobre tóxicos e
traficantes: você está contribuindo para propagar tudo isso, é assim que a
violência e o medo se espalham. Não compactue, fale de outras coisas, veja o
lado bom da vida; logo as pessoas vão se esquecer dessas atitudes, e serão
coisa do passado.”
– Nossa, essa mulher é corajosa. Isso não parece pauta nem script, observa
Ani.
– Tem razão. Tomara que não perca o emprego. [Kalderash]
– Mesmo que perca, o gesto foi louvável! [Ani]
– É, mas já cortaram ela... – Kalderash comenta isso porque logo o foco da
moça é desviado, e eles já podiam ouvir as seguintes palavras de outro repórter
cercado de urnas eleitorais: “Ocorrendo eleição, mas o eleitorado não se
decide (…) Pois as candidaturas são inconclusas, não havendo firmeza em
qualquer decisão. Comentam papéis e funções irrequietas, sem destinos
definidos (...)” CHUNK! Ani desliga o televisor.
– Que foi, não aguentou? (...) Nem eu, se quer saber, diz Kalderash.
– Não sei porque insiste em ligar isso. [Ani]
– Mas valeu o dia pela atitude da repórter. [Kalderash]
– Só não é suficiente. [Ani]
– Vai ser quando o boicote for geral? [Kalderash]
– Agora sim você ligou as coisas! – e ela sorri. Depois há um corte para a
repórter sendo censurada por seu superior, na cidade. Muitas pessoas ao
redor prestam atenção. Não há som, somente vemos o chefe dela gesticulando
e a repórter fazendo pouco caso. Ela ouve tudo mas depois sai de cena sem
dar bola para aquilo.
“Cena VI”
Ani se balança em uma rede. Vemos seu vai e vem em diversas tomadas.
Kalderash está de pé olhando o mar, suas mãos estão apoiadas no parapeito
da varanda. O casal está pensativo, como se esperassem por alguma situação
externa. Nisso, alguns minutos se passam entre o balançar e a vista à frente da
casa. Subitamente, Ani para a rede e dispara a seguinte frase para o namorado:
Vemos muitas ondas e seu som, é uma manhã. Há tanto o dia não começava
tão rico em tranquilidade. Os pássaros estão agitados, e com isso pegamos o
gancho para a cena em que Ani entra na cozinha, procurando aqui e ali,
motivada por um surto de fome suspeito. Abre a geladeira, toma mate e
prepara um sanduíche. Chega Kalderash e ela expõe:
– Lembra daquela nossa conversa... a dos livros e tal, que você gosta...!? Dos
poucos livros, então: acho que você é um tipo de leitor indireto. Muita gente
é assim, carece de paciência. E como a sua arma, teu recurso corruptivo
preguiçoso, a sua Internet, que tem de todo conhecimento acumulado
somado ao poder das novas mídias; bem, com ela você poderia ler uma obra
na descrição de um jogo, ou aprender mais das uiquipédias da vida. Mas não
é? Contanto que o assunto esteja lá...
– Não importa onde. Hoje você tá que tá espevitada, hem, loirinha!?
[Kalderash]
– Você só tem que andar e concluir. [Ani]
– Viver é concluir. [Kalderash]
– Isso, Kal. O mundo é das conclusões. [Ani]
– Esse mundo, esse dito “Sistema”, foi feito mesmo pra nos cansar até deixar
doidos!!
– Mas mesmo esse “Sistema”, que está mais para ordenamento e convenção,
é burro e falho demais, portanto suscetível de uma derrubada. É tão imbecil
quanto ignóbil; me espanta não terem desfeito ainda e suplantado por outro
mais equilibrado. Que desastroso. Que devaneio ter, levar-se por isso, por
governar-se. É um vexame histórico! As crianças do futuro vão rir de nós...
[Ani]
– Não é todo mundo que tem a sua velocidade e clareza, gatinha. [Kalderash]
E ela não se aquieta:
E ela se desmancha nele. Ani se joga ainda mais no corpo dele. Depois olham
com paixão nesse momento e confessam com muito mais intimidade:
Há muita gente nas ruas, passam e seguem o casal com olhares perscrutadores.
Querem saber de seus movimentos, é uma dependente e algo nociva busca
por explicações. Talvez seja motivada pela cumplicidade do casal. Eles dois
sentem esse estranhamento e apenas não dão bola. Kalderash então recomeça
o diálogo dessa forma:
– E veja você, loirinha. Por que você não está misturada com a gente humilde?
Me diz tanto, mas e na prática? Me sugere aí, que tal. Não precisa nem
pesquisar, eu te adianto alguma coisa: o que seria das tais “artes liberais” sem
a presença do público; à presença ativa, eu me refiro!
– Se já é liberal não precisaria da minha ajuda. [Ani]
– Boa resposta! [Kalderash]
– Já disse que sou muito esperta. [Ani]
– Então, em favor da coletividade, não passiva, eu digo... da presença. Apenas
estar no seio da galera. Como você faz? Indico isso, é uma ideia. E que
tenhamos força evidente para promover uma solidariedade real, como
verdadeiras crias de um organismo. [Kalderash]
– Hum, mais o quê? [Ani]
– Que sirva de exemplo, que tenhamos novos adultos decentes e mais
humanos. Ou que seja pela necessidade. Que sacuda a raça. Os instintos nos
ajudam, poxa. – e Kalderash se detém para continuar a falar com Ani... Ela
observa meio impaciente. Ele recomeça mesmo assim:
– Ficou muda, minha delícia? Será que fui chato? – arremata ele.
– Espera, eu tô pensando no que falar. [Ani]
– Eu espero, tá de boa. [Kalderash]
“Entra ela primeiro, sabe que é uma princesa. Algo lhe diz para ser mais
espevitada... só nisso já te admiro. Nunca vi tamanha sinceridade. Pensei que
nem existisse mais disso no gênero humano, já que nenhuma vez tive alguém
assim por perto. É mais que alguém, é a loirinha. ‘Entrou, caminhando com
rara elegância e sensualidade’, é, isso mesmo.” Corte para Ani já chegando à
mesa.
– Ani, espera! – gritou Kalderash. Como correndo atrás da namorada.
Ela toma o assento que lhe deve, então espera que ele se sente e só assim
contempla o local. As tonalidades claras e um tantinho de umidade em seu
olhar contrastavam com seu sorriso atento.
Nem bem chega o garçom, ele que pouco distrai a atenção de Ani, e já
recebem o cardápio com um leve cumprimento. E o aflito Kalderash
interrompe a ordem:
– Senhor, não tem “aipim frito com cane seca igual que vende na beira de
estrada não...” – e se volta a ela, que responde:
– Ah, não tem? – completa Ani, entrando na brincadeira.
– Senhora, não tem não, senhora... – diz Kalderash, fazendo cara de tonto.
– Olha, é uma delícia. Eu queria. [Ani]
– Penapena, senseora... [Kalderash]
– É? Pois deixe eu ver, hummm... Pode ser esse aqui da carta, olha. [Ani]
– Mas a senhora me apontou para as bebidas! [Kalderash]
– É isso mesmo, seu garção. Quero impin, e me dê desse vinho tinto de sangue
morno. Uma boa garrafa, que vamos compartir meu Kal e eu. [Ani]
“Cena XIII”
Para sair do restaurante seria brabo, cheio abarrotado que estava... Ani e
Kalderash caminham em direção à saída mas há fila até para se evacuar!
Muitos transeuntes. Dois participantes das filas fitam os dois, para variar. São
como uma atração à parte da comilança. Antenas, Ani e Kalderash têm algum
magnetismo, seguramente. Depois das cenas passadas, depois dos risos altos
deles e da imitação de Kalderash, de tão inesperado que fora para os
comedores e comedoras de sempre desse muquifo, que já não podem mais
se conter, comentam e fazem referência a Ani e Kalderash, nomeiam seus
atos. É nova essa embriaguez. Ainda é possível sentir o descontrole
desconfortável em seus rostinhos. “Mas que coisa boba!”, Ani pensa alto.
Ouvimos outra vez os pensamentos altos dela enquanto transitam por ali: “É
sabido que, no final, na curva ou na encruzilhada, o que se aprofunda é a
liberdade, o desejo por ela. E o que está inteira e carregada é a mente, não as
baterias corporais. Eu e meu amor sabemos bem! Quem não toma disso,
bem... estranha os outros.” Em seguida, já do lado de fora:
– Ani – ele vai além – Sabe, acho que se te põe em posição de oprimido, dá
asas a judiarias. Gostaria de pesquisar mais sobre a ética global, mas sou
barrado.
– Essa festa não é livre. O preço é alto demais. [Ani]
– São outros padrões... [Kalderash]
– Outros valores sabe-se lá quais... [Ani]
– É, mesmo guardados esses sentimentos... altruístas, te perdoo. Aproveito
para dizer, tá! Planejar é uma arte, o que me diz!? Você que o diga!!
[Kalderash]
– Em casa a gente resolve as nossas diferenças, tá bom? Talvez um carinho
seu resolva. – Ani pisca para o namorado.
Quando ela termina essas palavras, o corpo dele ainda está alerta pelos
espasmos da praga que recebera, mas o notamos mais calmo. “Que dia!”,
Kalderash pensa. Suas divagações internas vão longe. “Tudo se mistura. As
frustrações e anseios se revoltam. É um ciúme desmedido, uma falta; a queixa
da comparação e liberdade... o seu preço.”, pensa mais. Ele relembra também
das próprias palavras repetidas no passado, que ele era “todo Kalderash, em
essência”. “Que presunção.” Ani parece ouvir seus conflitos, e comenta com
bondade na fala enquanto caminham pela calçada:
– Você não vai ficar sozinho, estou contigo; vamos fugir dessa loucura imbecil
desmedida gerada no seio das necessidades básicas humanas, as mesmas em
suas curiosidades despropositadas. Que saiam do nosso rumo!
– Sim, mas primeiro vamos nos largar dessas ruas públicas desfiguradas, não
somos assim. [Kalderash]
– Vamos nos largar daqui – repete ela, enfática – Nada vai ser acrescentado. –
e mudando ligeira de assunto:
– Quer tomar sorvete? O pote tá cheião lá no gelo! – Ani sorri, e seu
namorado fica mais leve.
– Ôôô, é uma delícia! – fala ele, fazendo como ela.
– Siiim, sim. [Ani]
– Eu sei que você adora. Me faz tão bem te ver sorrir, Ani. É tão real.
[Kalderash]
– Seu bobo. [Ani]
Corte para o ônibus, cada vez mais rápido. Ani e Kalderash estão abraçados
e pouco notam isso, olham a vista e papeiam. Pouco mais de quinze
passageiros mais fazem o mesmo.
Na segunda parada, sobe uma jovem segurando uma neném nos braços, é sua
irmã. Ela pergunta se é a linha circular, e o motorista responde que sim. A
condução segue sem a jovem ter muito tempo de se acomodar com a irmã, e
isso já contraria a moça de cara. Pouco antes de sentar ela reconhece as
fisionomias de Ani e Kalderash; sim, já tinha visto esse casal. Corte para uma
escapada de cena, é quando aparece Ani saindo do restaurante em um ângulo
diferente e passa a irmã com a neném em seu colo indo para outra direção,
ela então acompanha com rosto sorridente os dois.
Voltamos. Quem guia esse ônibus corre muito, e treme. Parece preocupado,
olha o relógio a todo tempo. Há curvas, deslizes, sentimentos e reações
exacerbadas nesse percurso. É um dia qualquer do momento que importa a
você que acompanha. A jovem pensa e suas palavras são narradas: “O que
faz? O que sabe? Qual razão? Tem tanta raiva e calor envolvidos, mas tua
testa é fria, motorista! Na exatidão do instante em que deveria se encontrar a
si próprio, quando era para estar receptível à sua evolução, você por fim não
tem postura... ou um bem viver. Sem rumo, põe todos em risco, se corta as
ruas como corta com faca.”
– Desce do carro! – fala ela e indica com a pistola todo o caminho da saída.
Ele obedece. Os expectadores são nesse momento pedras impassíveis, jamais
reagiram desse jeito; quem jamais esperaria isso? “Seria a ira à sua frente,
motorista?”, a jovem pergunta alto para o motorista. Ani e Kalderash se
entreolham. Saem a irmã com a bebê e o condutor. Dentro do carro começa
um chiado de palpites, há do melhor que se possa concluir, aparecem enfim
as possibilidades! Muitos conseguem também abrir suas janelas para espiar
melhor. “A brutalidade chegara assim? Espera”, fala o rapaz que primeiro
abriu a janela.
No solo novamente, a irmã confessa para o condutor suando frio:
– Pra toda regra há uma exceção? Talvez porque, quando criadas as regras,
possivelmente, foram contra os particulares. Gente como eu ou você,
perdidos no esquema louco que vende mais que guarda, que vem de lá de
fora... tipo esse vento que chegou aqui. Talvez o mundo de hoje precise de
heróis, de seres geniosos, que tal?
– Toda sociedade precisa de ídolos, meu doce. O que você me diz a respeito?
Por acaso já teve vontade de resolver na força? O vento te assustou? [Ani]
– Que super-heróis só em ficção mesmo, é o que acho; aqui na vida real é o
que dá pra desenrolar! Brincadeira... É... Que para ser ídolo, penso eu, ao
que tento acrescentar, é que precisa ser mártir também... ser herói é viver pelo
sacrifício. Se você quer estar na boca do povo, claro. O povo ficaria menos
vicioso! Não sei se estou preparado ou deva ser minha sina dedicar-me assim.
Sei lá. Posso até pensar, juro. [Kalderash]
– Quem disse que eu quero te ver na boca do povo, menino? [Ani]
– Foi força de expressão, dona. Você me entendeu. [Kalderash]
– Tá, tá. Agora vou relevar; tudo bem porque foi um bom rapaz e não me
chateou... tanto... Tirando a parte mais cedo no restaurante. Mas vai lá, falou
direitinho, depois que voltamos nem se coçou tanto, né. Tá vendo como são
as coisas? Abra sua mente, Romeu meu querido. Aparece na janela quando
eu te chamo, ligadinho nos sinais que te dei. E vem pro quarto comigo tirar
um cochilinho. [Ani]
– Ah minha loirinha, olha só, olha você! Não faz essa cara... faladora, de onde
tirou essas pérolas? [Kalderash]
– Eu sou muito esperta, já disse. Não sei por que tenho que repetir tanto o
que digo... [Ani]
– E eu sou é maluco, afundado em instinto, adoro te pentelhar!! Bora
explodir!!! – e tocam um na mão do outro.
“Cena XVI”
– “Se os humanos ainda não aprenderam, pois vejam logo! O uso das
tecnologias foi sua maior distração, um gigantesco retrocesso; a vida simples é
o caminho de volta ao espiritualismo (...)”
Você concorda com isso, Ani? Muito interessante esse livro aqui, tão perto de
mim.
– Você gostou, é? Claro que eu concordo, meu docinho. Nunca deixaria um
livro em casa que não fosse de acordo com o que penso. – a namorada
pergunta, e ela mesma responde.
– Ani, a loirinha que não dá ponto se já não houver um nó feito por ela
mesma! – Kalderash zoa com ela.
– Bora ver um filme? [Ani]
– Qual? Dá teu papo. – ele responde tranquilamente enquanto abaixa o livro.
– Tem aquele que Mánya deixou aqui outro dia, lembra não? É filme de casal.
Ai, esqueci que você não gosta, nem vou insistir então. [Ani]
– Calma, calma, eu não disse isso. Deixa eu ver... Curta ou longa-metragem?
[Kalderash]
– É, ué. Tem que ler a ficha-técnica. Quer ver? Entendi nada agora. [Ani]
– Liga logo esse troço aí. [Kalderash]
– Tá escrito AOREM na capa do DVD. – Ani fala um pouco intrigada.
– A ó quê? – Kalderash ri.
– Vai ver que é bom, Mánya tem um tino bom para achar cultura. Se chama
“Amor, Ódio, Redenção e Morte”. Eita. [Ani]
– Pois é, já está passando? – ele pergunta de costas, ao mesmo tempo que
coloca o livro de volta à estante.
– Estou indo, cara. Apaga a luz aí, Kal.
– Quero só vê, heim... [Kalderash]
Foco nas mãos dela manuseando a capa do DVD durante toda a etapa de
retirar da embalagem, colocar no aparelho reprodutor; a câmera ainda
acompanha os movimentos dos dedos de Ani clicando até que apareça o
início do filme. Ela se distancia do aparelho para voltar para a cama. Deixa
cair o controle remoto enquanto isso. Ani ri. Olha para o namorado já se
emaranhando na cama. Começa o filme, a luz da tela ilumina um pouco mais
a cama. Ani e o namorado se abraçam.
“Parte 2. A ida”
Ani secretamente convida seus amigos para uma reunião em sua casa. Ela
envia uma mensagem de celular. Ela digita. Vejamos entre tomadas rápidas o
caminho dos personagens até lá, começando a sequência de imagens com
Mauri ligando para Mánya combinando detalhes da surpresa, e depois vemos
Mánya avisando Florinda, que estava com o mudo passeando em um parque.
Como se por acaso, o cabisbaixo esbarra com Mauri em um supermercado.
Ele fala com ela, enquanto andam escolhendo seus itens e colocando nos
carrinhos:
– Eu sei, não vão demorar muito, pode ter certeza. Mauri então, está ansiosa
para tirar um sarro do irmão. – avisa o cabisbaixo.
– Tá certo. Mas aí, voltando àquele assunto que começamos outro dia, sobre
as coisas naturais. [Mudo]
– Ah é! Acabou que nem prosseguimos, cara. [Cabisbaixo]
– Pelo celular não dá pra se expressar bem. [Mudo]
– Por isso os amigos são os que se veem! [Cabisbaixo]
– Opa! [Mudo]
– Tudo o que é natural, essa é a bandeira, pois é. [Cabisbaixo]
– Isso é bom mesmo. Outra história das coisas in natura... A gente comum se
irrita com essas piruetas geneticamente modificadas que chegam toda hora. –
o mudo troca o tom da conversa.
– Ah é... as doses dos sintéticos são muito altas. [Cabisbaixo]
– Aí está uma discussão bem viável... Podíamos usar esse tema, que tal!?
[Mudo]
– Alteradores? Difícil hein, irmão. Eu acho que vou escrever sobre isso só
bem mais velho... quando eu não precisar mais tanto deles. Por enquanto,
ainda tenho muita paixão. [Cabisbaixo]
– Não, ô adepto! [Mudo]
– Do quê, então? [Cabisbaixo]
– Falo ainda dessas paradas geneticamente modificadas, que na maioria das
vezes são maléficas; parecem suaves... e absorvemos. Mas essa é minha
opinião... e opiniões são questionáveis, muito baseadas em interpretações
ocasionais. [Mudo]
– Pô... Não tem como não falar de alteradores... [Cabisbaixo]
– Não falar com as palavras, mas fazer analogias. Vou pensar em algo. [Mudo]
– Começou com elas... Bom, as de farmácia, claro... [Cabisbaixo]
– De alteradores já temos uma boa porcentagem, já basta. – brinca o mudo.
O cabisbaixo ri também.
– Verdade. Mas é com o alterador, não sobre ele. – o Cabisbaixo responde e
vê o amigo pensando em mais coisas, dá alguns passos e fala, como se achando
novas ideias:
– Novos cidadãos inventando tudo artificial, é sobre esse tema que pensei.
Hoje tinha uma reportagem dizendo que em país tal fizeram um robô que
utiliza tecidos vivos e faz uma baita mescla!!! Por exemplo só, digo! [Mudo]
– Hum... Deve ser pra cultivar órgãos. [Cabisbaixo]
– Sei lá, amigo, é um robô que tem partes humanas. Vai mais longe ainda,
tem mó galera pilhada em “ficção científica”, nessas consequências... Só o
ruim desse dinheiro gasto é que provavelmente dava para melhorar a vida de
um cado de gente que não tem opção de vida, como os subdesenvolvidos de
verdade. [Mudo]
– Passo aqui um linque, vê. – brinca o cabisbaixo, e riem da analogia.
– É... mas não é culpa da galera da Ciência... São essas grandes corporações
sugadoras de vida que dão grana pro que está na moda porque vende mais.
É passageiro... atribuir a marca deles a isso de “positivo”, sabe? Miséria desde
o início dos tempos já existia, está geral acostumado... [Mudo]
– Por essas e outras que não resolvemos os problemas da Humanidade: tem
sempre grana travando um lance. Interesses demais também. Cara, pensa só:
uma revolução de verdade vai ser quando houver uma nova tomada de
consciência sobre como usar grana... Ou nem usar mais grana. Digo, uma
forma de repensar. Enquanto houver esses defeitos de caráter, como ganância,
mesquinharia, muiiita coisa vai ficar parada. Tanto que retrocedemos à beça.
[Cabisbaixo]
– Se a empresa não zerar a miséria, não adianta. Se bem que as empresas nem
tinham mais que existir. As pessoas deviam fazer trocas, a palavra e a honra
que deviam ser o usual. Poxa, não só o usual, mas naturalmente. [Mudo]
– Grana, grana.... Mau uso, porcaria. Nosso tempo vai ser muito malvisto
daqui a pouco, é como uma Idade Média corrida. Fora! O bom de estar uma
porcaria é que os bons se sobressaem. É, primo... Não sei qual vai ser o fim,
mas sei vai haverá um... e que não vai ser bom; porque o que começa errado,
termina errado.
E aí!?... [Cabisbaixo]
– Concordo, a contragosto, mas sim. – ele pausa, olha em volta. – Lembra
daquele desenho velhão, como era a sociedade no Planeta Selvagem? O
ambiente deles era inclusive muito pior do que o nosso. [Mudo]
– Tô ligado. Não existia mais muito que se considerar, era só escravidão.
Sociedade só dos azuis lá, eles eram um grupo coeso, porque seguiam
cadenciados. Bom filme! [Cabisbaixo]
– Com certeza, dentro de uns poucos anos o filme, e a gente, tudo vai... ser
revisto. Em muito menos, até. Vão é dar risada da nossa sociedade. Ou não
vai mais existir muito, porque do jeito que as coisas estão, se piorar apodrece
de vez. [Mudo]
– Aí eu monto uma resistência... pela vida! Você sabe, sem uso de força,
sempre apenas as ideias. [Cabisbaixo]
– Você não ficaria sozinho. Pena que depois de tanto passado ainda recorrem
à força. Façamos o nosso. Nossa parte que vai ficar na História. Nosso legado
de tentativas, pelo menos dos mártires as pessoas lembram. - e sorri xoxo do
outro lado o mudo.
– Se vier esse papo de 'ordem' e 'organização' do 'Estado' pra tudo e coisa e
tal... Aí fica feio pro lado deles, cidadão!! [Cabisbaixo]
– Guitarras e livros e boas atitudes. [Mudo]
– Bora! [Cabisbaixo]
– A zona onde estou é deprimente... Se tivesse um radarzinho igual aos jogos
dava pra dividir e identificar bem os setores dos pobres e dos menos pobres...
[Mudo]
– É... muita chateação... quanto pessimismo, onde caímos! – exclama. – Ainda
em obras. – fala e encosta as mãos encima do muro. – A fachada do prédio
na rua do prefeitura daqui já ficou toda zoada, e as persianas das janelas...
quase todas gastas, sabe? É a decadência dos governantes, roubam tanto que
esquecem até de maquiar; e nas casas deles a mesma ruína; você vê pelos
móveis e interior daquelas casas que a família x ou y já não prospera mais
como costumava ser, entendeu? [Cabisbaixo]
– Mas o que era prosperar pra essa gente? [Mudo]
– A ruína às vezes é necessária. [Cabisbaixo]
– Tanto foi! Mas essa é completamente desnecessária porque essa jogada é
mundial... Entende, ter governantes. Ou manter certas dignidades. – ele dá
um sorrisinho. – Manter. Aqui... até quem é muito rico se dana... [Mudo]
– Estamos em fase de teste para alguém ser liderzinho econômico e servir para
algum propósito financeiro. Ocasionais que acham que estão abafando e não
ligam de se sentir esquisito todo dia ao ir trabalhar, contanto que tenha
conforto. [Cabisbaixo]
– Viu? Pode se anuviar indefinidamente. Aí vira aquele exemplo em casa,
claro... Confuso, insensível... Daí, vai... [Mudo]
– Essa prefeitura daqui de onde moramos é subdesenvolvida, ainda. Até hoje,
um lugar que falta educação em todas as bases, nunca vai pra frente...
[Cabisbaixo]
– Somos é íntegros, vamos passar por este planeta dessa forma. E ainda
tentamos ajudar, seja musicando, escrevemos algumas letras; vamos falar com
as pessoas, fazer apresentações... Expor essas precariedades. [Mudo]
– Deve ser por isso que tanto sofremos... [Cabisbaixo]
– Deve! [Mudo]
– Eu acho que se a gente souber ficar de bico calado e firme nas falas
imprescindíveis... teremos melhores oportunidades de soltar o verbo em bons
veículos de comunicação, entendeu? Na hora certa, e tenho certeza de que
saberemos quando esse momento decisivo for indicado. [Cabisbaixo]
– Amamos a Humanidade, a noção de se humanizar, devemos pensar num
futuro igualmente... já que queremos persistir! [Mudo]
– Exatamente... Só os princípios justificados que estão errados. Não falhamos
também aguardando tanto. [Cabisbaixo]
– Com clareza absoluta. Igual temos que buscar instrução. Em grandes mídias,
poderíamos mexer com as cabeças dos outros, principalmente os jovens, os
que estão começando a se “coçar”. [Mudo]
– Pois é. [Cabisbaixo]
– Tô te falando! [Mudo]
– Mas as grandes mídias são apenas ditames, pronunciamentos. Talvez, de
coração, se formos pela cartilha e nunca mijarmos fora do pinico.... nossa
chance e voz pra falar virão. [Cabisbaixo]
– Sim. [Mudo]
– Já penso... Nós até então neutros, num programa desse e do nada
mandamos na lata... Aí sim... Vão querer matar a gente e tudo. [Cabisbaixo]
– Não é impossível. Muita gente boa morre por causa de ideias. Penso nisso
também, mais ainda quando me falou aquilo de cuidar da integridade
física...... Ficou na minha cabeça! [Mudo]
– Mas eu sou mais brabo que a maioria deles, compadre! [Cabisbaixo]
– Eu sei que é, irmão. Confio! [Mudo]
– Não tanto, mas o suficiente... infelizmente, a gente sempre precisa ter
consciência de que precisamos nos defender. [Cabisbaixo]
– Justo. Ainda que nossos instintos nos sejam aliados, é interessante utilizar
de forma... Medida! [Mudo]
– Na real, eu me defendo desde moleque, e só não me lasquei algumas vezes
porque fui safo na prática. – e fica se vangloriando o cabisbaixo.
– É que também estou pensando nisso agora... Nunca tinha parado para
pensar analisando por essa ótica... [Mudo]
– Temos que pensar no futuro igualmente, “já que queremos persistir”. – e
faz um gesto como um aceno com os dedos indicadores; após isso se detém
para pensar em algo mais, entretanto completa apenas com a frase seguinte:
“Sensato, não é...!?” [Cabisbaixo]
– Nós que nem somos como outros, os que se deixaram abater. Por que você
acha que uso um apelido e não digo meu nome verdadeiro? – brinca o mudo.
– Pode crer... A gente que nunca esqueça de quem lutou pra estarmos aqui
nesse momento... nossa gente não esquece um título. [Cabisbaixo]
– É. [Mudo]
– Se agora eu e você podemos falar tranquilamente, aqui nessa rua, em frente
de casa, é por causa dessas pessoas também, de alguma forma.
Digo, em aceitação, sabe? [Cabisbaixo]
– Ah sim. [Mudo]
– Se fosse tradicionalmente aceitável deixar o samba rolar, ia babar... Dá ruim.
Sabe fazer sambar? [Cabisbaixo]
– Eu? Sei nada. São exemplos, apenas isso. Eles foram pioneiros. Na
discografia mundial temos tantos! Deve ser por isso que ouço as bandas que
se tornaram bandas do mundo, gosto de quem sabe expandir. [Mudo]
– Mundo. Eu nem pagode sei.... [Cabisbaixo]
– Só rindo! Nem dançar, nem chutar um círculo. [Mudo]
– Pois é.... Nem eu. [Cabisbaixo]
– Cidadão, você! – o mudo começa uma imitação propagandista tosca. - A
memória é uma das armas de um povo. Se os gregos e romanos, por exemplo,
tivessem deixado virar pó os escritos dos filósofos, dos matemáticos ou
políticos daquela época, seria possível que a gente do século XXI ainda
estivesse em tribos esparsas. Ou não, depende, evidentemente. São
correlações. Mas a memória é o povo, numa magnificência.
Sabemos enxergar como se estraga uma educação com muito pouco. Veja
quantas crianças são mal-educadas, sem uma família no sentido da passagem
de valores. Porque não vemos nem pais nem mães esculpidos por zelos;
pouco recebem algo dos antecessores... Tememos por uma reação em cadeia,
tememos um montão de personalidades partidas.
Nas mãos, a oportunidade de abrir cabeças. Mas e se!?
– Atualmente, temos gerações, muita subdivisão... Fica mais fácil de
influenciar... – fala rindo o cabisbaixo.
– É, e gerações rápidas à vera.
Isso é relevante.... Eu mesmo já sou passado e me ridicularizo por tanta
falação. [Mudo]
– Muito importante. – caçoa o amigo cabisbaixo.
– Essa porcaria de tudo ser rápido e digerível, reciclado e ultrapassado é dose.
Acha não? Não ficam de cabelos em pé...? Num dia notícia, no outro... Ihhhh,
teu reflexo virtual simplesmente esquecido! Chato. [Mudo]
– Tenho uma lembrança, de bons tempos; as pessoas se falavam... Lembro
de um coro, não sei onde. Eram crianças também. Daí eu penso, queria que
as crianças de hoje cantassem, sabe... Muitas crianças. Acho que cantariam
direitinho, era só incentivar. [Cabisbaixo]
– Quem dera. [Mudo]
– Crianças são como oportunidades. Por isso... quando algo sai de um lugar e
dá espaço a outros; quanto mais rápidos e descartáveis forem os noticiários...
mais tempo eles os deturpadores vão precisar para lascar a pureza das
crianças. Se forem a notícia.. Fora disso, as coisas correm naturalmente.
[Cabisbaixo]
– É. Essa é uma discussão que a gente comum tinha que se habituar. Tanto
precisamos da pureza! [Mudo]
– Entendi, entendi... Dá pra falar em uns trinta minutos, até uma entrevista
resolve. [Cabisbaixo]
– Não é!? Vou salvar essa conversa, dar um printe. Quem dera se não é
reaproveitada! – ele ri, o mudo.
– Mais um ponto pra memória exercitada. Boa ideia! [Cabisbaixo]
Nisso, aparecem as meninas, estão tão belas que a única reação dos rapazes é
sorrir em apreciação. Se cumprimentam com cortesia e saem pela rua na
direção da casa de praia de Ani e Kalderash. A caminhada é longa mas a noite
embala seus corpos
“4. Na casa de praia”
Kalderash abre duas garrafas de cada vez, acende seu fumo e incita o grupo:
– É apenas uma brincadeira dessas que rolam pelas redes sociais, mas a
carapuça serve muito bem.
– Opa! Eu já vi, se é!! [Cabisbaixo]
– Eu também, até tenho aqui no celular, ouçam: “Burl-a-xou! Verve agora a
tensão de gêneros, estamos em uma festa privada, o que será da gente se todo
dia for assim? Que quero dizer? Eu nada sei, chutei, só deixei no ar; você não
quer dizer algo?” [Mánya]
– Inventam cada coisa... [Mauri]
– Eu quero o mundo, claro – volta Kalderash ao assunto: – Preciso sempre
estar nessa!... É, tudo bem... os critérios de vocês até que são possíveis, mesmo
que meio absurdos... (...) Na verdade, muito plausíveis. Eu agradeço de
coração.
– A perfeição está para todos. Isso inclui quem deseja ser livre moralmente –
arremata Mauri. Em seguida, ela nem dá aos outros o tempo de pensamento,
já dizendo outra coisa:
– E a pureza, essa sim foi deturpada! Pôôô, já viram!? Ouvi por aí isso de ferir
tal e tal. Então... Que é ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente senão
uma questão de ótica? Uma criança nua não é um símbolo de pureza e início?
Não deve então ser mostrada, e nem vista de forma alguma porque tem quem
ainda cultiva tanta frieza? Quem atribui dano moral ou mesmo lesão ficcional
é a mente do desajustado, dito “minoria”. Isso é opressão ou falta de tato?
– Ou falta do que fazer!? [Mánya]
– Volta, Flori. [Mudo]
– Ela se supera. [Mánya]
– Não entendi nada disso. Porrou já, mulher? – questiona Ani. Ela poderia
ser tanto afável quanto dura em seus comentários.
– Só quis instigar, vinha com esse tema na cabeça. Achei que o embalo e esse
fluxo de ideias pedia! [Florinda]
– Faça-me o favor! Piadeira. A pureza ficou lá na Antiguidade, teríamos que
reiniciar o mundo, ou que ele nos zerasse – é o que diz Mauri, cheia de gás.
E anda de um lado a outro, ela gosta de se mostrar. Prolonga o papo:
– Uma zoação que rola por aí, inclusive... Tem gente falando que o planeta
não é o mesmo e já dá sinais de mais uma limpeza geral. – e Mauri se senta.
– Desculpa, Flor, mas não pode fazer piada... O assunto vai para além, diz
Mánya e se volta para pegar algo na mesa.
– Ah é, e quanto a mim, te ofendi com minha clareza? [Mauri]
– Só um pouco, vou ter que te processar! – e se ri a retórica Florinda.
– Me processa, censura, me tira de contexto... – caçoa Mánya – e se diverte
dizendo: – Só não te deixa adequar, porfa! – ao que ri mais alto.
– Né! [Mauri]
– Mocinhas, diz Kalderash.
– Mas fala quem quer – Mánya joga na cara.
– Quem pode. [Florinda]
– ...apetites, fala baixinho o cabisbaixo.
– Livre é quem nem sabe – pensa alto Ani.
– Artes... vidas... liberadas!? [Mauri]
– Liberais... artes.... Vou nessa dica, Flor. [Mánya]
– Acredita que atualmente seja possível desenvolver a capacidade de apreciar
as delícias da vida? – Mauri provoca.
– Fica na tua, você às vezes se supera – responde Kalderash.
– Eita, que balde da água fria! [Mánya]
– Um mundo tem que oferecer saídas, você que saiba. [Mauri]
– Não pede, necessita. [Mánya]
– Ah, moço Kal... Só te perdoo porque somos da mesma família – diz Mauri.
– A humana? [Ani]
– Você é estranha, não sei por que te aguento. [Kalderash]
– Nos amamos todos, bobo! [Mauri]
– É o que vamos ver. Deixa eu ficar velho e não aprender mais nada! –
Kalderash brinca e todos riem.
– Mudinho hoje veio tranquilo, poxa. Nem disse nada, digo, nem se exaltou.
Fala, gente boa! – indaga Ani ao homem.
– Duvido dizer. [Mauri]
– Ele, quando se inspira, arrebenta. – Ani de novo atiça.
– Em favor da coletividade, não seja passivo, cara mudouuu!!! [Mánya]
E se descontraem pela sala. Riem felizes. A noite está propícia, a lua cheia
preenche o céu aberto nesse momento, pouco mais das 7 da noite. Retomam:
Então todos se detém por um curto prazo. Kalderash vaga de um lado a outro,
olhando para o chão e pensativo. Mánya está quieta. Florinda ri muito, mesmo
com a mão na boca. Mauri belisca umas comidinhas. O mudo troca de
posição com as mãos todo tempo. O cabisbaixo só acompanha.
Saem juntos para a praia, Ani carrega em uma das mãos mais alguns incensos.
A lua cheia penetra suas almas!
“Capítulo final. A confissão”