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“CASA DE PRAIA” ROTEIRO ADAPTÁVEL

(Uma livre edição do autor)

Editorial Presente
“Conceituando a obra”

Há uma imensa e pesada estrutura sobre a Terra e a Raça Humana, na


verdade, existem muitas dessas estruturas, a nos enfraquecer. Apenas o “Amar
(ser) sem precedentes” é suficiente? Seria isso então vencer? É correto dizer
ou será que podemos passar por tudo isso?
Se a pergunta for cabível ao que falar de errar e quais as consequências desses
tipos de atos nas vidas das pessoas, a depender claramente do quanto for
dispondo de energia para tanto, bem, mesmo assim não é legal julgar; é tido
que falhar é humano, da mesma forma é tão humano pedirmos nutrição para
suprir nossos corpos. Como punir ou pensar em indenizações,
compensações.... sob qualquer pena, se julgar é relativo tanto quanto perdoar
é visto como dos mais nobres gestos?
A conceituação de tudo, qualquer legado de pureza, toda poderosa
misericórdia e compaixão pelo mundo todo e sua elevação, seja área ou
estrutura, carne ou espírito, dentro de valores até o que se possa explicar,
enfim, fica dessa forma solta que pretende o diálogo de “Casa de praia” nos
beliscar pela atenção; desde agora vindo pela construção, e a seguir durante
uma grande melhoria emotiva.
O título do livro se refere ao estado de férias e repouso intelectual em que
estão alinhadas as vidas dessas pessoas na estória, mas apenas para disfarçar
momentaneamente uma ótica de preparação ao que está por vir.
A narrativa, em tom meramente coloquial, expressa ensejos de união e ajuda
mútua em prol de um melhor desenvolvimento do ser e seu conjunto; sua
preferência gira desde um estilo de vida (atuação) em benefício do planeta,
mesmo saídos dali, dito refúgio (casa) em época de descanso até as chamadas
distrações (praia, férias, bebida). Como não seria gratificante e fácil raciocinar
(em pé de igualdade) no conforto (lar)! Mas como é isso no mundo real e sem
tréguas?
A trama começa quando Ani, a namorada de Kalderash, sentencia que toda
vez que ele se gabasse, ou quando tentasse ser o dono da verdade, o namorado
se coçaria.
A questão cabal é a igualdade, a chegar fixa pelo equilíbrio, finalmente! Será
que podem?
Depois aparecem seus amigos para lhes acudir, gente comum em pleno
arrebatamento em torno da impessoalidade e desprezos da vida
contemporânea, frente ao contexto em que prevalece o cada um por si, e
assim pelo acaso. Mas não compactuam!

Não me leve a mal pela pergunta retórica, mas (ainda!) o que é o Diálogo? O
que é Falar, então? Expressar-se, sofrer, raciocinar?
Encerrados em ambientes, suas vontades expostas, que esperar da capacidade
humana em “Casa de praia”? Muito foi dito por aí que através de Beleza e da
sensualidade há alguma resposta além dessa inquietante pergunta! Milagres
serão entendidos como transformações. Tudo do tempo da representação ou
em seu começo.
Talvez o fato de detalhar tanto estrague a satisfação de ir delimitando por sua
conta a dramática peripécia que é essa a dos seres pensantes. “Quem sabe(s)”
vagueiam pela brisa daquela residência, estamos confessos como leitores
curiosos! Que fiquem os desafios aos jovens que se apresentam.
Salve quem puder! Vamos, você também!! “Com as vozes vivas, cara a cara...
tudo muda!”
UM ROTEIRO PARA “CASA DE PRAIA”
“Tela negra, apenas um esclarecimento escrito em letras brancas”

EXCLARECIMENTO. “Os personagens neste momento ainda ignoram


certos preceitos fundamentais à melhor vida terrena, como, por exemplo, ter
o corpo livre de impurezas; o fato de ingerirem bebidas alcoólicas e fumarem
apenas demonstra sua falibilidade. Devemos notar que qualquer toxina, e isso
inclui sim os alimentos extremamente industrializados, de forma alguma se
torna benéfica; o desconhecimento de tais práticas muitas vezes se reflete em
hábitos viciosos. É preciso refletir.”
“Tema inicial, primeiras tomadas”

Vemos diversas imagens de cidades costeiras em países diferentes, uma


seleção contendo o que cada um de nós pudesse selecionar na memória.
Imaginem agora muita gente se divertindo, veja o que aconteceria a cada uma
dessas pessoas. Assim, começa a música principal do filme. Lentamente os
créditos do filme vão aparecendo, começando pelo elenco, em ordem
alfabética. “Personagens, em ordem de aparição: A menina, que apresenta a
narrativa; Ani, a loirinha (Eu sou muito esperta!) (É uma dêeelícia!) (Capaz!...);
Kalderash (Eu sou todo Kalderash, em essência); A repórter e seu chefe; As
cinco pessoas da mesa ao lado; O garçom; A irmã e a bebê; O motorista;
Mauri, que vem tirando proveito; O cabisbaixo; Mánya e Florinda, as das
garrafas de vinho branco; e o mudo.” Usar letras brancas. Após toda a
passagem dos créditos aparece escrito na tela em letras grandes o título do
filme, também na mesma fonte e cor branca, que aqui sugerimos ser
“Baskerville Old Face”.
“Introdução ao filme”

Após toda essa apresentação do panorama das praias e das pessoas em seus
momentos, há um corte. Vem um céu azul, a câmera vai aos poucos baixando
do céu azulado até um corpo indefinível na medida que a voz de uma criança
se faz aos ouvidos do público. É a menina que narra calmamente, suas palavras
são compassadas, quase que escolhidas enquanto fala:

““Não me leve a mal pela pergunta retórica, mas (ainda!) o que é o Diálogo?
O que é Falar, então? Expressar-se, sofrer, raciocinar?
Encerrados em ambientes, suas vontades expostas, que esperar da capacidade
humana em “Casa de praia”? Muito foi dito por aí que através de Beleza e da
sensualidade há alguma resposta além dessa inquietante pergunta! Milagres
serão entendidos como transformações. Tudo do tempo da representação ou
em seu começo.””

Ela pausa, respira. Aqui já vemos que ela está na frente de uma escola, poderia
ser um intervalo ou durante a hora da saída. Outras crianças correm de um
lado a outro no fundo da cena. O dia parece normal, até que ela prossegue
com sua fala:

““Talvez o fato de detalhar tanto estrague a satisfação de ir delimitando por


sua conta a dramática peripécia que é essa a dos seres pensantes. “Quem
sabe(s)” vagueiam pela brisa daquela residência, estamos confessos como
leitores curiosos! Que fiquem os desafios aos jovens que se apresentam.
Salve quem puder! Vamos, você também!! “Com as vozes vivas, cara a cara...
tudo muda!””

Corte para uma mão feminina digitando a seguinte frase enquanto a vemos
aparecendo na tela de um celular: “Se passa no litoral do Rio de Janeiro.”
“As 16 cenas com Ani e Kalderash”

“Cena I”

Tela negra. Ouve-se apenas um suspiro. A voz é de Ani. Aqui começa a trama
efetivamente, com ela se ajeitando. Aparece Kalderash entrando em casa, ele
abre a porta apressadamente e encontra a moça. Ao vê-la ele se acalma.
Papeiam um de frente para o outro enquanto caminham pela casa. Vejamos:

– Você sabe bem que eu sou a favor de qualquer mudança – disse Ani, meio
irritadinha.
– E eu também, mor! – mas retrucou o acanhado Kalderash.
– Tá, mas então por qual motivo você não segue o que me diz? Enquanto
isso, fica rodeando e dando desculpas. [Ani]
– Eu? Que isso, mulher!? [Kalderash]
– É isso mesmo. Tu e essa mania de dizer, de ser o dono da verdade. Nada é
fixo, Kal! [Ani]
– Claro que não, mas são minhas ideias, poxa. [Kalderash]
– É autoritarismo, essa é a doutrina. Grande desse jeito e não pode distinguir
bem de mal?... Todos podem. [Ani]
– Como você me julga... [Kalderash]
– Como você me impede... [Ani]
– Faço o que acho necessário. [Kalderash]
– Sabichão. Tá bom, e pense bem... Acho muitíssimo necessário que você
pare com isso já e aprenda com seus erros. Quero um homem mutável. –
vemos ela descascando uma laranja.
– Eu me adapto bem! – e Kalderash coloca água em um copo, tirando de um
filtro de barro.
– Me ouve, caramba!! Deixa eu terminar – Ani expressa um sorrisinho de
satisfação pelo que diria: “A partir de hoje, você não vai mais ser o doninho
absoluto da verdade nem de nada, as ideias apenas vão te atravessar. Assim
vai poder absorver bem, crescer como pessoa. Digo e faço dessa forma porque
te amo e acredito no nosso relacionamento. Caso contrário...”
– O quê? Fala então... Caraca! [Kalderash]
– Que isso, menino! – ela agora recorta a laranja em cubos.
– Iahahahah, tô te provocando só. [Kalderash]
– Ah é!? Então é assim, de pirracinha. Pois vou te jogar uma praga: toda vez
que tentar impor tuas vontades e pensamentos, esses que não dão margem à
discussão... lembra, fofinho? – e ele corou a face do outro lado, arregalando
os olhos. Ani expõe: “Se prosseguir, você vai se coçar até não aguentar”.
– Ah, só quero ver essa. [Kalderash]
– Tu tá duvidando, é? – ela agora usa um tom mais doce e amável, oriundo
de pura paz de espírito.
– É, eu tô mesmo. – Kalderash está tenso, Ani sabe reconhecer isso.
– Então espera pra ver. Ou melhor, sentir – e Ani ri. Corte para a visão da
noite nos arredores da casa. A próxima cena já se passa em outro dia desses.
“Cena II”

– Tu tá de sacanagem – foi assim que chegou reclamando o tal Kalderash, e


continua: “Eu tava na rua, uma senhora me perguntou onde era tal lugar... Eu
expliquei, mas fiz dando detalhes sórdidos. Sabe aquele monte de escritórios,
estilo salas comerciais, não é uma porcaria?”
– Não sei, Kal – e sentou-se para ouvir atenta algo sobre o dia dele e o que lhe
passou.
– Bom, é o que acho – disse isso, começou logo a coçar a nuca. Ele persiste:
– Aí, tá vendo, veio de novo! Eu vou te botar na Justiça, hem. Sabe, essa dos
homens da Terra, dos advogados e juízes, vou te processar... – nem bem
acabou de dizer isso e a namorada começa a caçoar dele, triunfante:
– Eu imaginei. [Ani]
– Tá calma, é... [Kalderash]
– E por que não? [Ani]
– Como você me faz um troço desses, mulher? Como eu fico? Não vou poder
fazer mais nada, nem trabalhar... Não que seja o pior, mas... E aí... – disse já
se desesperando.
– Ai meu Deus!... tadinho... Boa noite pra você também! Teve um dia legal
também? Nem me deu beijo quando chegou, nem quis saber se estou bem...
nem n.d.a. [Ani]
– Dormi contigo. [Kalderash]
– Não gostou não, é? [Ani]
– Sua maluca, quer minha desgraça. Nunca se acostuma com o meu jeito.
Então não gosta de mim, deve ficar aí formulando retoques pra ver se eu fico
mais parecido com teu ideal. Quando nos conhecemos, não era assim.
[Kalderash]
– Nem você. Tudo se revela, querido. [Ani]
– Sua bruxa feiticeira, doida quizumbeira... Se não te amasse tanto... –
Kalderash puxa ela da cadeira, tasca uma beijoca tão forte que Ani fica tonta.
– Ui... assim é melhor. [Ani]
– Vai passar isso que me impôs, ãn... [Kalderash]
– Quem sabe? Depende de você. [Ani]
– De mim, o caramba. Sem rodeios, Anii, por favor! – ele se exalta.
– Sim, depende do teu empenho. Sim, da tua consciência, de saber medir as
palavras. Cansei de te alertar, não sou tua mãe – e arregalou a boca, bocejando
logo para mudar de assunto: “Hoje eu fiz macarrão batentope, vamos comer?
É uma dêêêlícia... Tem doce de banana também, hummm”.
– Onde é que eu fui amarrar meu burro... é onde me vejo. – há um corte
passando já para a outra cena. As roupas e o cômodo da casa são outros,
indicando também outro momento. A câmera paira por esse cômodo até que
a próxima cena apareça.
“Cena III”

– Comporte-se como se estivesse em um mundo exterior, caso fosse um


estrangeiro. Pense nas pessoas que te veem... Faria o mesmo que elas? –
questionou Ani. Ela está sentada no sofá massageando a testa do namorado,
ele conversa com os olhos fechados:
– Eu não sei, tenho que refletir... É, bem. – respira fundo – Já sei. Não, minha
resposta é “não”. Como poderia? – falou Kalderash.
– Se você abrir sua mente e adquirir o poder de perceber e filtrar as
possibilidades, terá uma gama maior de campos de atuação, entendeu? [Ani]
– “Abrir mente”, “gama”... que isso? Tô achando isso raro de mais...
[Kalderash]
– Eu sou muito esperta! [Ani]

E ouvimos na mente de Kalderash que ele “Conhece a peça...”, é um


pensamento tão alto que Ani parece escutar; e ela responde sem pensar, ao
mesmo tempo que se ajeita no sofá:

– Então!...
– Se ligue, eu me dou bem assim. Olha só, você quer parar com isso? Tá
insatisfeita comigo, ãn... Qual foi? [Kalderash]
– Mais ou menos. É que vejo tanto poder, força... e virilidade em você... Em
compensação, te faltam outros “eus”. É como se eu apenas quisesse te
aperfeiçoar. Agora pescou minha sacação? [Ani]
– Ah tá – ele estica a mão e pega uma taça, depois dá um gole em seu vinho,
que já havia deixado de lado para escutar o que Ani discursava. Ele senta
também no sofá. Olham-se olhos nos olhos, transparentes como eram uns
para os outros. Continuam após rirem um para o outro:
– Ah tá – repetiu ela, remendando ele.
– Tu adora me zoar, pota que la mer... – Kalderash ri com força.
– Não é isso. Espero que o mais cedo possível você possa aprender mais sobre
você mesmo, e levantar-se sem mim! [Ani]
– Ih, qual foi, menina? Tô nesse jogo há muito... Eu, hem. Agora vem com
isso e aquilo. Quando te conheci, tu não tinha essas asinhas nem dava um
passo sem mim. Outra coisa, não vou a lugar nenhum! [Kalderash]
– Você é meu homem, maluco... estamos juntos!!! [Ani]
– Eu sei, doidinha. Como nos provocamos! [Kalderash]
– É, mas não foge do assunto, não. [Ani]
– Eu não, que isso – completa o tal Kalderash: “É impressionante como nada
escapa ao olhar de uma mulher, digo, DE VOCÊ” – ele enfatizou tanto a
última frase que já estava quase beijando ela.
– Eu sou muito esperta, nem era preciso repetir – e sorri fácil a Ani.
– Olha lá, hem. Não vá se coçar, diz Kalderash.
– Fale por si próprio, Kalzinho – e se ri Ani, contemplando o namorado a
mirá-la desconfiadinho. E ela recomeça, brusca: “Sem medo de encarar numa
boa, Kal, é assim que tem que ser. Você pode até fugir de mim, mas não
esquecerá o que represento” – e se cala, esperando a resposta dele.
– “Me dá um tapa no rosto que me acerta a direita... ao que te ofereço o outro
lado para que se iguale” – profetizou... ou parafraseou o rapaz.
– Vamos pra cama, more. [Ani]

Corte da mão dela chegando em um interruptor. Apagam-se as luzes, por um


tempo a tela fica negra e não ouvimos som algum.
“Cena IV”

Vemos a fachada da casa, o vento é agradável nesta tarde. Ani está sentada na
varanda lendo um livro. Aparece Kalderash todo se coçando, dos pés à cabeça
vermelho e já com brotoejas...

– Caramba, Ani. Tira essa porcaria da minha alma! Já deu. Não posso abrir a
boca, que sou fuzilado com isso. [Kalderash]
– Kal, Kal... tá difícil, hã!? – ela abaixa o livro e olha para ele.
– É, é mesmo. Eu que o diga. [Kalderash]
– Uma longa estrada, morin. [Ani]
– Ani, me escuta... [Kalderash]
– Não, não. Você é que tem que ficar tranquilo. Não precisa pedir, você só
tem que necessitar. Se você me ouvisse mais, rrum... [Ani]
– Tá legal, eu ouço agora. Só assim descanso a voz e o corpo... [Kalderash]
– Menino, não seja malcriado! [Ani]
– Não é o que queria? Pois então. [Kalderash]
– Poxa, percebi que você era boa pessoa desde o primeiro dia que nos vimos;
soube que não ia desistir de você, mesmo sendo como é... Lembra daquele
dia? [Ani]
– Claro, te comi com os olhos e logo estávamos travados na cama. [Kalderash]
– É... – e ela ri meio sem graça –, foi mais ou menos isso, ainda que mais
floreado, tá!? Humm. Então, continuando... Acho só que você foi um pouco
corrompido ao longo da sua vida. Te pergunto: renuncia à Liberdade? Ou
volta paro o (teu) mundo atual? Esse fadado e ultrapassado modo de... ser...
e estar?? Ahhh. Que droga!... Nosso amor fica aprisionado a um
egocentrismo ignorante moralmente. Esse mesmo ego que te enlaçou, e não
foi com pernas... Tanta filosofia e tantas mortes para encarcerar tudo nas
escolas. Você repetiu de ano, sinto lhe informar. [Ani]
– Escola é para quem não sabe meter a cara. [Kalderash]
– Imagina, quanto mais aperfeiçoar o teu ser, mais expressivo fica; outros
chamam de “sabedoria”, ou mesmo de “prática do bem”. Tem gente que diz
que é autoconhecimento. Mas o que é que você sabe? – enfatiza com o corpo
quando fala “sabedoria” e “prática do bem”.
– Que desse mato tá difícil sair cachorro. Eu teria que só ouvir? Aí... você me
regula demais, Ani. [Kalderash]
– Me poda, me poda, só repete isso. Capaz!!! Virou planta agora, menino?
[Ani]
– Não sou como as árvores, sou a folha. Putz, você é demais!... De onde tirou
essas coisas? [Kalderash]
– Mas isso é parte da experiência humana. Nem fui eu quem criou. [Ani]
– É, huummmn, são até possíveis, ainda que meio absurdas. Pena eu ser pária,
Ani... Párias leem e se cansam, jogam os livros num canto, procuram algo mais
fácil para fazer. – ele andava de um lado a outro, ora parando com a mão na
pilastra da casa, ora olhando o horizonte. Então Kalderash se detém e volta o
olhar para ela: “Eu sei que vai dizer que é má vontade... ou talvez fraqueza.
Não é que eu não tenha tentado, mas fiquei um tanto...”
– Não, você só está sendo atingido por uma das moléstias triplicadas deste
novo milênio: preguiça. [Ani]
– Mas como lutar contra algo que já existe antes de mim? [Kalderash]
– Se adianta. [Ani]
– Antecipar, é verdade. [Kalderash]
– Vem, vamos andar. [Ani]

E saem juntos de mãos dadas, rindo e dando beijos de vez em quando. A


câmera acompanha o casal pela orla; apenas alguma música suave caberia
aqui.
“Cena V”

Corte para Ani na cozinha mexendo algo em uma panela, ela cantarola.
Depois pega alguns pratos e talheres e coloca tudo em uma mesa. Ela olha
para a mesa e sorri, está satisfeita com o que produzira. Em seguida dá um
grito para que o namorado ouça do outro lado, no quarto deles: “ Não quero
ser a crítica da história... Mas vem logo pra cááá!!”

– É uma palhaçada sem limites – começa, com o braço estendido, tentando


se controlar das coçeradas! E segue, ao mesmo tempo que entra na cozinha:
“Sabe, todo mundo querendo ser minoria oprimida, ofendida, esses delírios.
É muita falta do que fazer...” – e se alastra a coceira pelas costas e cóxi,
chamando mais a atenção de Ani, que esboça um contentamento obviamente
atento. Prossegue Kalderash: “Se ligue: a maldade sempre esteve em quem a
vê, quem dá tom. Meus comentários são apenas isso, comentários! E quanto
mais fuçamos, seguramente, mais situações aparecem; as pessoas não sabem
é ouvir. Por que não se voltam para as novas?”
– Tá estressado, bem? [Ani]
– É, ahãm. – e ele coloca uma sacola na geladeira.
– Fica! Tá já todo empolado. [Ani]
– Eu sei, é, mas fiquei na pilha de desabafar. [Kalderash]
– Tudo bem, isso eu entendo. Tantas associações fazem com que as pessoas...
embaralhem a ordem de qualquer um! [Ani]
– Gostaria de saber como vai parar a Humanidade desse jeito. Vamos ficar
loucos uns com os outros? Completamente arrogantes, pedantes? [Kalderash]
– A autoproclamação é uma merlda! – Ani brinca enquanto está colocando o
prato dele.
– Hum... – e Kalderash se joga na cadeira, bufando e se recuperando de sua
sina. E Ani recomeça ao atento namorado:
– Lembra do doce? O sabor e o afago que te relaxa e depois dá gás? A
compreensão universal não vai ser atingida a menos que as pessoas se
entendam, percam suas travas e esses lances de... devo grifar, de “meia-hora”
para qualquer tranqueira – fala e pausa pois tem que parar para respirar a
moça.
– Isso me lembra a frase de Sócrates: “Livre é quem não se deixa sofrer com
os próprios apetites”. [Kalderash]

Ani suspira. Por algum tempinho a câmera foca em seu belo rosto. Ela
completa:

– Esses seres superficiais mesmo de carne e osso. Me diz onde erramos, Kal?
– Não posso, mas quero acreditar que está falindo, e chega ao ponto
culminante em que o caos é a melhor saída... Quem sabe se só esperando
desabar para reconstruir... [Kalderash]
– Acho justo. [Ani]
– Que seja. [Kalderash]
– Que seeeje, ela fala rindo. Depois eles comem, a cena é acompanhada em
seus detalhes. Apenas pela metade do prato deles Ani interrompe o silêncio:
– Trouxe minha sobremesa?
– Sim, minha linda. Você não viu porque eu coloquei na geladeira.
[Kalderash]
– Vou pegar. O açaí está com o quê? [Ani]
– Granola, uvas passas, do jeito que você gosta... mas pedi para bater com
banana também. [Kalderash]
– Ai que bom! [Ani]
– Acaba seu prato primeiro, vai! [Kalderash]
– Ah tá. [Ani]
– Amor, vou ligar a televisão. Estavam fazendo uma reportagem aqui perto,
nem acreditei. – e ele se levanta para ligar o aparelho.
– Mas depois você desliga, não passa nada interessante mesmo. Acho que vou
colocar um filme a seguir. [Ani]
– Coloca sim. – enquanto eles falavam, a narração da repórter já era ouvida.
Ela está no que parece ser o centro da cidade: “(...) contra bandidos, somos a
solução. Se você não percebeu mas falar e apoiar o produto do tráfico
postando fotos de armas ou tiroteios, usar drogas ou comprar algum produto
roubado, por exemplo, tudo isso e muito mais contribui para a bandidagem,
isso também é corruptivo. Não vire um fã desses seres equivocados, eles
apenas existem se você deixa; isso não é um filme, novela ou videogame.
Normalmente, um tiro dói! Da mesma forma, comprando os tóxicos que um
traficante consegue por vias árduas e tristes, um produto de guerra e
sofrimentos, você se nutre dessa carga negativa, e infelizmente, é a mesma
premissa de compra e venda e oferta e procura... o resultado pesa. Saia de
perto de tudo o que é errado ou duvidoso, abandone as más companhias e
locais perigosos, pense em coisas honestas que elas vêm, isso, pratique! Não
espere mais que politicagens resolvam a questão violência, seja você uma arma
só que do Bem.”

Depois de uma pausa, ela olha ao redor, sorri e arremata:

“Esse recado final é para você que tem o hábito de compartilhar vídeos ou
postar conteúdo dos tiroteios, assassinatos, roubos ou sobre tóxicos e
traficantes: você está contribuindo para propagar tudo isso, é assim que a
violência e o medo se espalham. Não compactue, fale de outras coisas, veja o
lado bom da vida; logo as pessoas vão se esquecer dessas atitudes, e serão
coisa do passado.”

– Nossa, essa mulher é corajosa. Isso não parece pauta nem script, observa
Ani.
– Tem razão. Tomara que não perca o emprego. [Kalderash]
– Mesmo que perca, o gesto foi louvável! [Ani]
– É, mas já cortaram ela... – Kalderash comenta isso porque logo o foco da
moça é desviado, e eles já podiam ouvir as seguintes palavras de outro repórter
cercado de urnas eleitorais: “Ocorrendo eleição, mas o eleitorado não se
decide (…) Pois as candidaturas são inconclusas, não havendo firmeza em
qualquer decisão. Comentam papéis e funções irrequietas, sem destinos
definidos (...)” CHUNK! Ani desliga o televisor.
– Que foi, não aguentou? (...) Nem eu, se quer saber, diz Kalderash.
– Não sei porque insiste em ligar isso. [Ani]
– Mas valeu o dia pela atitude da repórter. [Kalderash]
– Só não é suficiente. [Ani]
– Vai ser quando o boicote for geral? [Kalderash]
– Agora sim você ligou as coisas! – e ela sorri. Depois há um corte para a
repórter sendo censurada por seu superior, na cidade. Muitas pessoas ao
redor prestam atenção. Não há som, somente vemos o chefe dela gesticulando
e a repórter fazendo pouco caso. Ela ouve tudo mas depois sai de cena sem
dar bola para aquilo.
“Cena VI”

Ani se balança em uma rede. Vemos seu vai e vem em diversas tomadas.
Kalderash está de pé olhando o mar, suas mãos estão apoiadas no parapeito
da varanda. O casal está pensativo, como se esperassem por alguma situação
externa. Nisso, alguns minutos se passam entre o balançar e a vista à frente da
casa. Subitamente, Ani para a rede e dispara a seguinte frase para o namorado:

– Acredite, por trás desses argumentos, há séculos de reflexões e tentativas!


– Eu acredito em você, querida. – e ele se vira para ela. – Acho muito que
você é uma daquelas pessoas iluminadas que vêm ao mundo como coringas
para o jogo da vida.
– Que isso, Kalzinho. Assim você me deixa vermelha... [Ani]
– Te amo, Ani. [Kalderash]
– Eu também. – e se agarram na rede. Ele questiona:
– Ani, minha loirinha linda, me diz... Você acha que atualmente seja possível
desenvolver a capacidade de apreciar as delícias de viver? [Kalderash]
– É, sim... De verdade que dá sim. – e de repente ela muda o tom da voz. –
Mas que isso? Já está pensando mesmo mudar? Vê o teto, Kal, é branco e
com pequenas teias proeminentes...? Até os animais se adaptam. Por que você
continuaria?
– Eu apenas vejo quem não se perdeu na cegueira funcional. [Kalderash]
– Quem se mantém ativo, perceptivo ao calor humano; sim que pode. Nós
todos. Muitas coisas na vida são apenas simples questões de empenhos. [Ani]
– Mesmo sendo este cenário tão mutável e contraditório? [Kalderash]
– Essa pergunta vai para o entrevistador. Depois me diz. [Ani]
– Ah, tá bom... [Kalderash]
– Mudando de assunto... – intervém Ani – Por que ficou tão irritado antes,
meu amor? Foi alguém que te provocou? – nisso, Kalderash se anima mais.
Ele confessa então:
– É, imagina... É essa gente travada por aí, me forçando a falar... está cheio de
gente maluca por aí fazendo besteira, tendo ações incongruentes... cismáticas.
Molecagens, Aninha. – rapidamente, sente leve inquietação nas pernas e
palma da mão direita!...
– É... E que fez? [Ani]
– Dei um grito: não aporrinha, ô chatão! Falei isso – e ele ri desafinado. – Tive
até que gastar depois, mas ri, saí foi correndo... Só mesmo saindo de cena, já
que tua praga se manifestava. Se eu me cocar assim do nada, me tomam por
doido; aí já viu, vai ter que me visitar em alguma, é... “casa de repouso”.
– De repouso?? – Ani ri alto. – Confessa que tem te feito ver com outra
clareza, vai!
– Pode até ser. Mas eu sou apenas mais um sujeito! [Kalderash]
– Não te entendi... E melhor não fazer esforço, não é!? [Ani]
– Isso, é por aí. Mesmo assim, tive que pedir também para o tal impertinente
que 'adiantasse o meu lado... e... ficasse quieto!...' até eu poder fugir
completamente. [Kalderash]
– Baita desconforto hilário emocional! [Ani]
– Tá vendo... – e se beijam, deixando os corpos caírem dentro da rede.
“Cena VII”

Vemos muitas ondas e seu som, é uma manhã. Há tanto o dia não começava
tão rico em tranquilidade. Os pássaros estão agitados, e com isso pegamos o
gancho para a cena em que Ani entra na cozinha, procurando aqui e ali,
motivada por um surto de fome suspeito. Abre a geladeira, toma mate e
prepara um sanduíche. Chega Kalderash e ela expõe:

– Lembra daquela nossa conversa... a dos livros e tal, que você gosta...!? Dos
poucos livros, então: acho que você é um tipo de leitor indireto. Muita gente
é assim, carece de paciência. E como a sua arma, teu recurso corruptivo
preguiçoso, a sua Internet, que tem de todo conhecimento acumulado
somado ao poder das novas mídias; bem, com ela você poderia ler uma obra
na descrição de um jogo, ou aprender mais das uiquipédias da vida. Mas não
é? Contanto que o assunto esteja lá...
– Não importa onde. Hoje você tá que tá espevitada, hem, loirinha!?
[Kalderash]
– Você só tem que andar e concluir. [Ani]
– Viver é concluir. [Kalderash]
– Isso, Kal. O mundo é das conclusões. [Ani]

E Ani sorri. Ouvimos sua digressão:

– Marx disse que “cabe agora transformá-lo”, não foi?


– O mundo. [Kalderash]
– Ou eu tô maluca? [Ani]
– Talvez. [Kalderash]
– Não, né... Pena ele ter ficado em desuso pelo passar do tempo. Virou
figurinha, peça histórica... dessas que os desavisados zombam quando
transformam em estampa de camisa ou meme, e não prestam atenção à obra;
as pessoas não veem o lado bom dos autores. Ninguém dá relevância para
nada mesmo. [Ani]
– Mas eu não sou bacharel. Sei lá, poxa! – nisso, Ani o interrompe com os
gestos e as palavras certas, ditas como diria uma sábia legisladora:
– Eu sei da noção de probabilidade. Sei tanto antes como agora quando
apostei em você... ou tu acha que jogo minhas fichas fora? Aposto é alto,
moço. Mas quero que descubra mais sobre encarar os problemas globais,
incertezas, será que pode? Preparado ou não? [Ani]
– Nunca me subestima, pilantrinha. E me respeita. [Kalderash]
– Sempre, tio. – ela diz isso em um tom provocador, o que resulta no olhar
desconfiado do namorado. Cada um vai para um lado do cômodo. Alguns
minutos em silêncio são suficientes para clarear os ânimos.

Após o desconforto de egos desse final de tarde ensolarado, ele diz,


tranquilamente:

– Eu sei o que dizem sobre etnocêntricos e o caramba a quatro, tá bom,


mulher branca! Fala que não me importo com as ideias dos outros, ãn,
rostinho correto dos olhos turquesa!? Eu não gosto de me autoproclamar.
Algo me diz: é meu corpo e entranhas. E que sou ânsias também, igual sou
fera quando quero (...) – nem bem Kalderash termina a frase e é interrompido
pela namorada:
– Sou, Sou, isso, aquilo, idem. Você me pentelha, Kal. Há uma grande
diferença entre a memória e a realidade presente... a que deve se ater. Tem
uma diferença enorme entre o “Eu sou” que realmente se conhece, e o “Eu
sou” mantra existencial. Mas isso é papo para outra vez. Se quiser, pesquisa.
[Ani]
– Tu tem argumento pra tudo mesmo, poxa... [Kalderash]
– Fica na tua, que já me liguei que você tá andando pra lá e pra cá se coçando
agoniado, eu sei – disse ela afinando mais a voz para menina sapeca que era.
E ele? Kalderash era ainda um ser cheio de manias de grandeza, ela estava
certa.
– Será que há tanta diferença assim entre ser o que sou? [Kalderash]
– Você tem que saber que... Kal, escuta. Tá prestando atenção? [Ani]
– Claro, tudo bem. Você tem razão, está na hora de baixar a bola. [Kalderash]
– Não é apenas para ler maquinalmente, mas deve interpretar. – eles estão de
pé um na frente do outro, e por um tempo ficam assim se fitando.
“Cena VIII”

– A verdade é um trem desgovernado! – brada a loirinha. Ela está empolgada.


E começa uma música bem agitada enquanto a vemos se sentar na bancada
da garagem; Kalderash está debruçado olhando o motor da van deles.
– Eu sei, doa a quem doer – defende-se ele, rebatendo suas culpas aos outros.
– Você e seus outros “por aí”!! [Ani]
– Anii, porfa... [Kalderash]
– A partir disso – prossegue ela, e a câmera viaja por sua boca falante e gestos
graciosos – nada sem base sobrevive, a força está na autenticidade. Como nada
é eterno além do Divino, tudo se torna possível; então quem tem limites?
Ficar se atendo é chato!! E por que não se impor, ou por qual motivo deixar
que pisem na gente!? A questão também é: quem PODE delimitar limites?
Vivemos num contexto infestado de referências, padrões, moldes e afins, o
certo e o errado confundem-se e anulam seus poderes como polos
convergidos.

Kalderash termina de colocar óleo no reservatório, fecha o capô do motor e


se dirige a um sofá velho perto da bancada que ela está. E, relaxando o corpo
nesse sofá, ele assinala meio que correndo atrás do raciocínio dela:

– Esse mundo, esse dito “Sistema”, foi feito mesmo pra nos cansar até deixar
doidos!!
– Mas mesmo esse “Sistema”, que está mais para ordenamento e convenção,
é burro e falho demais, portanto suscetível de uma derrubada. É tão imbecil
quanto ignóbil; me espanta não terem desfeito ainda e suplantado por outro
mais equilibrado. Que desastroso. Que devaneio ter, levar-se por isso, por
governar-se. É um vexame histórico! As crianças do futuro vão rir de nós...
[Ani]
– Não é todo mundo que tem a sua velocidade e clareza, gatinha. [Kalderash]
E ela não se aquieta:

– Vamos processar o mundo inteiro, Kal! Botar todos na “Justiça” deles


mesmos. Desestabilizá-los com a dúvida, bandar esses manés. Eles, do chão,
como verminhos que são, ofegantes, bambeados, duas caras. – ela gesticula
como se estivesse colocando e tirando uma máscara. – Óbvio! Deixar de
aceitar já é algo! Digo mais: caberia também um abaixo-assinado pedindo
pelos valores; pedindo pela ética e pelo bem-estar novamente... Seria uma...
revoltante greve geral! [Ani]
– Eu colaboro. [Kalderash]
– Quanto maior o número de descontentes, melhor, já que a crise se
aproxima. Pelas gerações que estão por vir, que, finalmente, tenham como ter
uma vida mais correta, sem tantas dívidas que não pedem nem descontos não
oferecidos; por essa geração, não tem mais como ignorar a luta pelo
mantenimento da espécie... SÃ! [Ani]
– O ser sofre e não percebe! Perde suas melhores características. – ele fala de
olhos fechados agora, coçando levemente a cabeça. [Kalderash]
– Para os responsáveis, que todos saibam que, se não podem consertar o
estrago, que tal parar de zoar? – ela fala e anima ele, que levanta e comenta
enquanto fala:
– É um trabalho árduo esse, não, amor? As pessoas querem isso, ralar? As
pessoas são fracas, têm medo de mudanças. Todos somos fracos às vezes,
claro, mas tentar é outra história. É o tipo da parada que pede muita dedicação
e igual vontade. Só não entra na minha cuca a quantidade de pessoas deste
mundo comparada com a soma de governantes... A massa é muito maior!
[Kalderash]
– Isso, vontade; para mudar precisamos de vontade! Essas mudanças não
serão bruscas. Que levem mesmo gerações, mas que comecem. Ou cada vez
mais vai ficando distante... e as distrações criadas prevalecem, dia a dia. É
preciso ser realista, não só dizer que “é sim”, e que “vamos, vamos” – e ri para
ele; nesse instante a câmera focaliza o rosto dela, depois o dele em close. –
aqui ninguém pode se analisar? Que troço é esse? É feio? Isso não existe. Não
pode, pooooo... hunf. [Ani]
– Tudo bem, mas existe sim uma solução, se chama: expressar-se. É doidera
pra poucos... precisa de um empurrão, de um susto ou choque de realidade.
E fé, minha querida. A fé que escapa do palavreado da nossa gente.
[Kalderash]
– Que nada, qualquer um consegue. [Ani]
– Calma, não se canse. [Kalderash]
– Eu não, agora é que penso ainda mais! [Ani]
– Então melhor pensarmos em algo maior, como o maior dos boicotes... para
fazer essa galera que se diz mandar perder seu dinheirinho... que é o que os
atinge no âmago! Perder posição. Que tal me diz? Podemos propagar essas
ideias. [Kalderash]

Começa outra música rápida e assistimos a uma profusão de imagens de


bancos, pessoas na bolsa de valores quase se estapeando, caixas eletrônicos e
saques, loterias, apostas e mais gente pagando contas. Imagine todo tipo de
analogia para dinheiro rolando, subornos, escambos e, infelizmente, a alegria
de alguns possuindo tais “bens”. A última sequência de imagens é uma criança
furtando uma senhora de idade e correndo em disparada, enquanto as pessoas
ao redor fim paralisadas.
“Cena IX”

Ani e Kalderash estão parados na porta da frente da casa, cada um escorado


em um lado da parede, ficando apenas a porta aberta dividindo o casal. Olham
o mar, é outro final de tarde e a tonalidade do horizonte é avermelhada. Ele
explica:

– Há quem prefira o nomadismo, o deus-dará. Pouca gente entende esse


sentimento, essa escapada constante, a liberdade. É triste como são tratados
com desconfiança pelos mal-informados, pelos desavisados, detentores, pelas
pessoas geradas na “Sociedade” tola e preconceituosa. O que fazer? Revidar?
Não. Melhor não, não é o justo. Vejo de frente e rio de sua bobagem. É
mesmo, os ignoro. De outra forma, as síndromes de pânico vão afetar a mim!
Ainda que nunca deixaria de estender a mão aos que precisam, porque
ninguém é autor, nem ator principal ao mesmo tempo nesta existência.
[Kalderash]
– Imagina o caos se não nos ajudarmos, fala Ani.
– Sim, amor. E reforçando estas pronúncias, digo: mesquinharia é nada, não
vale. Ani, você é boa no que enfatiza. Só agora vejo como sua peça em mim
valeu. [Kalderash]
– De tanta fricção, você deve explodir como se nem tivesse existido! – ela
brinca.
– Pois é, são muitos defeitos em mim. – Kalderash para de falar, e
rapidamente protesta à amada:
– Ah Ani... Tá difícil. Me gasto já, ó... de coçar...
– Kalzinho... pelo menos durou um tempo o teu alívio! Você já viveu tanto da
forma antiga, meu intuito era um novo rumo. [Ani]
– Show! [Kalderash]
– Isso tudo que disse, sim, que foi fora do comum, mas soou bem. Eu sou
muito esperta! Te vejo completamente enganchado, atrapalhadinho. Tá nessa.
[Ani]
– Ih, qual foi? – o namorado protesta, e se viram um para o outro.
– Pelo menos, tiramos algo de bom de nossas bobeiras e viagens... [Ani]
– Pelo menos. [Kalderash]
– Pois é. [Ani]
– Dá um arrego aê, parceira!? Tira esse encargo de mim um pouquinho só,
vai. Um dia, pelo menos. [Kalderash]
– Ah, tá bom que sim, vai nessa que vou. Você tá é muito enganado. [Ani]
– Pequetitinha, ah, é de pegar na mão e comer Ê RÊ. Vem cá, Aninha.
[Kalderash]
– Não me chama assim – ela foge para dentro da sala. Ele segue atrás,
cantando uma imitação barata de música comercial: “Vamo jogar uma pelada,
bem, vamos.”
– Não sei, vou pensar. – ela foge de novo para mais perto do quarto. Depois
olha para trás.
– Te ajudo a achar a resposta. [Kalderash]
– Você é tua sarna de se coçar, menino.
– Sou tua sarna pra você coçar – e gargalha. Corre até ela, e agarra o corpinho
por trás, afundando a cabeça nos cabelos da loirinha. Os dois se sentem bem,
e ele confessa para ela:
– Eu era só tímido, minha...

E ela se desmancha nele. Ani se joga ainda mais no corpo dele. Depois olham
com paixão nesse momento e confessam com muito mais intimidade:

– Você é muito safadinho. [Ani]


– Fazer saliência é bom, deixa a gente mais vivo, fortinho. [Kalderash]
– Eu não tenho mais nada pra dizer... – e envolvem-se com afinco. Depois ele
interrompe o beijo para avisar:
– Nem vai dizer mais nada, Ani, deixa que eu assumo. Agora somente nossos
corpos serão o palco, nosso palco, minha linda.
E se escafedem na direção do quarto, ao mesmo tempo que uma canção suave
se estende; a mesma canção ainda toca por uns minutos com a câmera estática
de frente para a porta do quarto.
“Cena X”

Ani e Kalderash estão ainda deitados na cama, é pouco depois do almoço e


aparecem rindo à toa. Depois há um corte para eles se arrumando em silêncio.
Saem de casa na direção da via pública. Assistimos seus passos e o movimento
de seus braços dados indo e vindo apenas com o som exterior da rua e sua
diversidade. Por muitos ângulos vemos a vista da rua.
Passando por uma vidraça, ela pergunta, olhando no espelho:

– Que é isso, bambalalão? – questiona Ani aos risos de Kalderash.


– Você sabe, todo mundo sabe, é mais que o natural. – ele ri mais.
– Ah, já posso imaginar. Deixa de bobeira. [Ani]
– Vamos andando, Ani. O restaurante ainda está meio longe. [Kalderash]
– É bom andar. A mente também acelera. [Ani]
– Sim. – esse comentário calmo é o oposto da reação de Ani ao ver uma
pichação em um muro. Está escrito “O fim do mundo está na degradação
social.”
– Nossa, viu ali? [Ani]
– Se vi! Ia até comentar contigo. [Kalderash]
– “... na degradação social.” ela repete baixinho. [Ani]
– Isso é muito amplo, daria muitas interpretações. [Kalderash]
– Faz pensar. Que bom!! – Ani se empolga.
– As pessoas se expressam bem quando querem. [Kalderash]
– Há tantos talentos por aí, quem dera aproveitarmos todos. [Ani]
– Você vê só! [Kalderash]
– E sobre as coisas simples, Kal.
– O quê? Que que tem? [Kalderash]
– Anda braba a tua memória, hem. Ou você se esquece de propósito? [Ani]
– Não, que isso. Mas já mudou de assunto? Que rapidez, amor. [Kalderash]
– Você anda da pá virada. Não gosto disso. [Ani]
– Mentirosa. Acho que te atiça, isso sim. [Kalderash]
– Menino, você é uma desorganização cultural evidente! Só não sei precisar
ainda se te classifico como artigo de luxo ou não. [Ani]
– Táquil [Kalderash]
– Ãhn? [Ani]
– Me quebrou as pernas, aê... [Kalderash]
– Desbocado! Você é o que se crê ainda – Ani conclui alto.
– Eu ainda tenho boca – e se ri o namorado.
– Vai que a coceira ainda dá comichão nela! [Ani]

Há muita gente nas ruas, passam e seguem o casal com olhares perscrutadores.
Querem saber de seus movimentos, é uma dependente e algo nociva busca
por explicações. Talvez seja motivada pela cumplicidade do casal. Eles dois
sentem esse estranhamento e apenas não dão bola. Kalderash então recomeça
o diálogo dessa forma:

– E veja você, loirinha. Por que você não está misturada com a gente humilde?
Me diz tanto, mas e na prática? Me sugere aí, que tal. Não precisa nem
pesquisar, eu te adianto alguma coisa: o que seria das tais “artes liberais” sem
a presença do público; à presença ativa, eu me refiro!
– Se já é liberal não precisaria da minha ajuda. [Ani]
– Boa resposta! [Kalderash]
– Já disse que sou muito esperta. [Ani]
– Então, em favor da coletividade, não passiva, eu digo... da presença. Apenas
estar no seio da galera. Como você faz? Indico isso, é uma ideia. E que
tenhamos força evidente para promover uma solidariedade real, como
verdadeiras crias de um organismo. [Kalderash]
– Hum, mais o quê? [Ani]
– Que sirva de exemplo, que tenhamos novos adultos decentes e mais
humanos. Ou que seja pela necessidade. Que sacuda a raça. Os instintos nos
ajudam, poxa. – e Kalderash se detém para continuar a falar com Ani... Ela
observa meio impaciente. Ele recomeça mesmo assim:
– Ficou muda, minha delícia? Será que fui chato? – arremata ele.
– Espera, eu tô pensando no que falar. [Ani]
– Eu espero, tá de boa. [Kalderash]

Passam-se apenas dois minutos. Olham um no outro se reparando, enquanto


isso. “Vai, Ani”, pensa o namorado. E ela fala:

– Primeiro, você tá todo empolado. E eu sugiro que dê o braço a torcer e


comece a se limar porque extrapolou as estribeiras.
– Mas eu estou pensando, agora posso concluir mais! Fui pelas tuas dicas.
[Kalderash]
– Não posso me misturar com a... “galera” se não for realmente
imprescindível. Além do mais, que gente é essa? Depende muito. Olha por
exemplo para aquela “galera” dentro daquele bar. Você já foi assim, não é?
Perdendo seus dias à toa. [Ani]
– Isso não vem ao caso. [Kalderash]
– Estou dando um exemplo também, é tão trivial quanto os seus, ou não acha
válido? [Ani]
– Tudo bem, vai, continua. Mas não precisa esculachar. [Kalderash]
– Eu entendi, tem gente ali, na “galera”, que realmente precisa de ajuda. Isso
eu sei. Mas muitos, digo... a maioria, a maioria se esconde atrás de um copo.
[Ani]
– E se não atrás de uma garrafa inteira... [Kalderash]
– Você teve exemplos. [Kalderash]
– Mas, vai... Sabe, até certo ponto... e depende de cada um, não poderia
especificar!... – ele pausa, pensa melhor e continua:
– Até certo ponto a bebida atua muito bem, te relaxa, solta as palavras
entranhadas, fica mais sociável... [Kalderash]
– Depois vai zuretando as próprias conclusões e te confunde; ou seja, perde
as certezas e atua só no modo “E DAÍ”. Segundo: um pouquinho de respeito
ao próximo vai bem, não convém sair por aí atropelando as pessoas; imagina
a confusão. Tenha em conta que palavras são também como matéria cortante,
com todo seu poder... [Ani]
– Entendo. [Kalderash]
– Ah, outra coisa, lembrei: “solidariedade real, como verdadeiras crias de um
organismo”, você disse. Mas para isso as “crias” precisam estar despertas, e
por elas mesmas, a partir delas mesmas. Não podemos forçar ninguém. [Ani]
– É... mas a intensão foi boa. [Kalderash]
– Kal! [Ani]
– Aii. [Kalderash]
– E não me venha com essa desculpa esfarrapada de jeitinho brasileiro, de
revolução, e depois ficar julgando por aí quando eu não estiver por perto.
Meus atos serão sempre nomináveis, isso é para a vida toda; todo um trabalho
de retidão. Eu sou transparente e minha existência é pautada na verdade,
equilíbrio e balança ajustados. Pode relaxar os músculos agora. [Ani]
– Pera... [Kalderash]
– Oi... [Ani]
– Você ouviu o que disse? [Kalderash]
– Ouvi sim. [Ani]
– A questão não vai tanto por beber ou não. Passa pela quantidade, pelo bom
senso, essas coisas. [Kalderash]
– Temos que ter cuidado com as substâncias. Ontem tive um sonho, e nele
tive uns alertas. [Ani]
– Não somos abusivos, Ani. Isso não é pecado, fica tranquila. Pecar é mentir
para si mesmo. Deus já sabe de tudo. [Kalderash]
– Sim. [Ani]
– Concordamos, viu!? [Kalderash]

Por fim, ele se cala. Chegam ao seu destino, é um restaurante de aspecto


modesto. Outras pessoas se dirigem para dentro. Entram normalmente,
escolheram pelo preço quando se entreolharam. Lá as pessoas estão falantes,
muitos cheiros e sons de pratos, talheres, atendentes fermentam o lugar. Que
espetáculo estarem de pé e o vapor de suas bocas carregar mais o ar, gerando
tal ambiente complexo de valores e líquidos nesse calor energizado... que
calha bem! “Agora nos misturamos”, ela sussurra.
“Cena XI”

Um restaurante pertinho dali. Ouvimos as pensamentos de Kalderash


narrando enquanto assistimos Ani desfilar sua simpatia pelo recinto:

“Entra ela primeiro, sabe que é uma princesa. Algo lhe diz para ser mais
espevitada... só nisso já te admiro. Nunca vi tamanha sinceridade. Pensei que
nem existisse mais disso no gênero humano, já que nenhuma vez tive alguém
assim por perto. É mais que alguém, é a loirinha. ‘Entrou, caminhando com
rara elegância e sensualidade’, é, isso mesmo.” Corte para Ani já chegando à
mesa.
– Ani, espera! – gritou Kalderash. Como correndo atrás da namorada.

Ela toma o assento que lhe deve, então espera que ele se sente e só assim
contempla o local. As tonalidades claras e um tantinho de umidade em seu
olhar contrastavam com seu sorriso atento.
Nem bem chega o garçom, ele que pouco distrai a atenção de Ani, e já
recebem o cardápio com um leve cumprimento. E o aflito Kalderash
interrompe a ordem:

– Ani, tá zangada comigo?


– Eu? – e olha para o lado, enfatizando: “Eu nunca notaria, Kal.”
– Não se leve tanto a sério, fofa. Nem pra nada, nem ninguém. Relaxa.
[Kalderash]
– Eu tô relaxada. Você é que me põe nervosa, gostosão. – Ani debocha.
– Não estamos trocando ideias? [Kalderash]
– Ideias? Trocando? Patadas, farpas, cê diz. [Ani]
– Êta mulher! Conversando. [Kalderash]
– Sim, pois não! [Ani]
– Ouve – e Kalderash clareia o rosto voltando-se a ela para falar. – é muito
inacreditável, mas virou minha cabeça. A transformação é involuntária, digo,
ainda que com tanta insistência, dedicação... – ia prolongar, mas a pinicação
lhe subia pelo braço.
– Em mim não surtiu efeito! Me roguei a mesma praga... só não funcionou.
Em você sim, que bom. Deve ser a consciência pesada! [Ani]
– Todo mundo tem o poder de trocar o arranjo... o ruim é querer – nem bem
diz e já é fuzilado por comichões nas pernas e pé, enquanto força-se a abaixar.
“Ah chatice, é só eu opinar!” Machuca-se loucamente com as mãos, num
esforço para diminuir o infortúnio. Ani ri sozinha. Nisso, com mais desses
calafrios, Kalderash se encabula com a pele avermelhada.
– Ih, danôusse!... – Ani baixa a vista do cardápio para conferir.
– Tu se diverte, não!? Eu que me lasque e fique com fome, ãhn? – e faz gestos
imitando ela. – Tô vendo, você me usurpa o arbítrio, menina... Cuidado
comigo, ãhn? Ãhãn, ãhãn, ãhãn, ãhãn?? – e da-lhe coçadela!
– Tsic tsic tsic, ai Kalzinho, vai revidar? Como? Você não é esse monte de
fraqueza; não sei como, mas ainda acredito nisso. Fica escutando só.
– Não tem jeito, né. Eu que era pura essência mundana. [Kalderash]
– Até o mundo é passageiro, quem dirá da gente. [Ani]
– Não é legal desta parte daqui passar por vergoinhas. Se tu já quebrou alguma
vez um braço ou perna, sabe da agonia daquele troço. Bem que parece. As
coceiras infinitas, ah caramba... É isso vezes dois, lindinha – e bebe um pouco
d’água que trouxeram a fim de se controlar. Vemos como Kalderash está
tentando respirar, buscando concentração pela falta da harmonia de seu
corpo. Mas arremata, tentando se conformar: “Tá por fora, dona... Vou
melhorar.” Depois há um corte rápido para Ani lendo o cardápio e
exclamando “Capaaaz!”
“Cena XII”

– Um mar de desejos e conclusões como música bem executada aos ouvidos


de quem quer. É assim, Ani. [Kalderash]
– É um método interessante, tenho que confessar. [Ani]

Ao redor do casal, o restaurante fervilha. É um perfeito campo de batalha de


alimentação e energia. Muitos olhares seguem os dois; são tensos, injetados
de adrenalina gulosa.
Na mesa ao lado, por exemplo, fica evidente também como conversam
algumas dessas pessoas. Segue seu diálogo entre cortes deles e a mesa que Ani
e Kalderash estão se alimentando:

Pessoa 1 (Homem): Como eu arrumei tanta confiança?


Pessoa 2 (Mulher): Foi sofrendo, querido?
Pessoa 1 (Homem): É bem provável... que não! Eu dou um sorriso ou outro,
puxo uma nota a mais. Muita coisa acontece.
Pessoa 3 (Moça): Bora reclamar juntos, então. Me dá dessas coisas que
acontecem, sempre é bom ter mais!!
Pessoa 4 (Senhora): Calma, pequena.
Pessoa 5 (Homem mais velho): Vocês jovens cada vez mais evasivos, melhor
a gente incentivar uns aos outros e ficarmos numa boa.
Pessoa 3 (Moça): Pensando nesse mundo... com todas as faltas de respostas
mesmo? Eu quero é ser mais racional, ainda que ter mais conforto me agrade
sim. – e olha para o homem (Pessoa 1)
Pessoa 4 (Senhora): Se a causa for rica, vale a perda de tempo. Seus burgueses!
Pessoa 2 (Mulher): Muita frigidez que é contagiosa! Gostei da sugestão de
reclamar, e também de conseguir algo fácil. Confesso!
Pessoa 3 (Moça): Isso!
Seus comentários são hilários, se riem deles mesmos entre garfadas e goles.
Tudo indica que têm uma situação financeira estável, ainda que estivessem ali
“poupando” ao comer em um restaurante popular. A mulher (Pessoa 2) não
tira os olhos de Ani e Kalderash, do outro lado. Apenas o homem mais velho
(Pessoa 5) não toma partido.

Depois de um curto intervalo, Ani e Kalderash aparecem comendo. Servem-


se bem e sob trégua, os dois puderam enfim nutrir e acalmar os ânimos nesse
ambiente. Mas Ani tem uma certa pulga atrás da orelha. E nessa soma de
constatações há alguma liga, conforme as cadeias se formam. Há quem chame
toscamente de “efeito dominó”. E ela se pronuncia após colocarem os talheres
de lado:

– Olha para essa gente, Kal... – e pausa para organizar a torrente de


pensamentos. Ani é manhosa, tem nos gestos a expressividade correta para
todos os dizeres, talvez até com um sabor culto. Pois ela determina:
– Essa galera tá perdidona. Aquele papo nosso de que aumenta o número de
pessoas que se perdem, saca!? Ficam mais doidos a cada dia... É uma
consequência de fatalidades. Como será que se consertariam?
– Se é que pode consertar! [Kalderash]
– Falo dessa gente que tem a si própria primeiramente, para saber do que é
feita. Fracos e... ou oscilantes, quem dá ouvidos para as baboseiras dos ricos?
Dos que fazem questão de tudo? [Ani]
– E fazem mesmo, não adianta duvidar! [Kalderash]
– Não estão preparados para as nuances. É também alguma ausência de
postura na vida. [Ani]
– Por qual razão, correto? [Kalderash]
– Quem tem o manejo de encarar? Quem sabe, não!? Antigamente, diriam
que alguém de postura poderia chegar a ter seu refinamento: a classe. E você,
ciganinho... fica esperto. Segura teu bico, ó! O que tem já é suficiente por
hora, é melhor que se aprume. [Ani]
– Sobre na cacunda, nena... Contigo eu sei o que é reaprender. [Kalderash]
– Ah... que bonitinho. Levou coça braba e fez carinha, mas até que dá jeito!
[Ani]
– Não é que não tenha caráter, todo mundo tem. Se bom ou ruim, louvável
ou não, aí é trem de interpretação e depende de quem interpreta. – Ani sorri
depois da fala do namorado, e ela é bela, lustrada em seus gestos. Enfatiza:
– Quem julga, poxa, que chato!
– É, mesmo. [Kalderash]

Abruptamente, o atendente aborda os dois. Ele chega, olhando para os lados.


Traz a conta com uma mão mas já querendo sair. Pagam deixando a nota
dentro da comanda, entretanto ficam ainda um segundinho na mesa.
Kalderash surpreende Ani, imitando os trejeitos do garçom:

– Senhor, não tem “aipim frito com cane seca igual que vende na beira de
estrada não...” – e se volta a ela, que responde:
– Ah, não tem? – completa Ani, entrando na brincadeira.
– Senhora, não tem não, senhora... – diz Kalderash, fazendo cara de tonto.
– Olha, é uma delícia. Eu queria. [Ani]
– Penapena, senseora... [Kalderash]
– É? Pois deixe eu ver, hummm... Pode ser esse aqui da carta, olha. [Ani]
– Mas a senhora me apontou para as bebidas! [Kalderash]
– É isso mesmo, seu garção. Quero impin, e me dê desse vinho tinto de sangue
morno. Uma boa garrafa, que vamos compartir meu Kal e eu. [Ani]
“Cena XIII”

Para sair do restaurante seria brabo, cheio abarrotado que estava... Ani e
Kalderash caminham em direção à saída mas há fila até para se evacuar!
Muitos transeuntes. Dois participantes das filas fitam os dois, para variar. São
como uma atração à parte da comilança. Antenas, Ani e Kalderash têm algum
magnetismo, seguramente. Depois das cenas passadas, depois dos risos altos
deles e da imitação de Kalderash, de tão inesperado que fora para os
comedores e comedoras de sempre desse muquifo, que já não podem mais
se conter, comentam e fazem referência a Ani e Kalderash, nomeiam seus
atos. É nova essa embriaguez. Ainda é possível sentir o descontrole
desconfortável em seus rostinhos. “Mas que coisa boba!”, Ani pensa alto.
Ouvimos outra vez os pensamentos altos dela enquanto transitam por ali: “É
sabido que, no final, na curva ou na encruzilhada, o que se aprofunda é a
liberdade, o desejo por ela. E o que está inteira e carregada é a mente, não as
baterias corporais. Eu e meu amor sabemos bem! Quem não toma disso,
bem... estranha os outros.” Em seguida, já do lado de fora:

– Ani – ele vai além – Sabe, acho que se te põe em posição de oprimido, dá
asas a judiarias. Gostaria de pesquisar mais sobre a ética global, mas sou
barrado.
– Essa festa não é livre. O preço é alto demais. [Ani]
– São outros padrões... [Kalderash]
– Outros valores sabe-se lá quais... [Ani]
– É, mesmo guardados esses sentimentos... altruístas, te perdoo. Aproveito
para dizer, tá! Planejar é uma arte, o que me diz!? Você que o diga!!
[Kalderash]
– Em casa a gente resolve as nossas diferenças, tá bom? Talvez um carinho
seu resolva. – Ani pisca para o namorado.

Quando ela termina essas palavras, o corpo dele ainda está alerta pelos
espasmos da praga que recebera, mas o notamos mais calmo. “Que dia!”,
Kalderash pensa. Suas divagações internas vão longe. “Tudo se mistura. As
frustrações e anseios se revoltam. É um ciúme desmedido, uma falta; a queixa
da comparação e liberdade... o seu preço.”, pensa mais. Ele relembra também
das próprias palavras repetidas no passado, que ele era “todo Kalderash, em
essência”. “Que presunção.” Ani parece ouvir seus conflitos, e comenta com
bondade na fala enquanto caminham pela calçada:

– Você não vai ficar sozinho, estou contigo; vamos fugir dessa loucura imbecil
desmedida gerada no seio das necessidades básicas humanas, as mesmas em
suas curiosidades despropositadas. Que saiam do nosso rumo!
– Sim, mas primeiro vamos nos largar dessas ruas públicas desfiguradas, não
somos assim. [Kalderash]
– Vamos nos largar daqui – repete ela, enfática – Nada vai ser acrescentado. –
e mudando ligeira de assunto:
– Quer tomar sorvete? O pote tá cheião lá no gelo! – Ani sorri, e seu
namorado fica mais leve.
– Ôôô, é uma delícia! – fala ele, fazendo como ela.
– Siiim, sim. [Ani]
– Eu sei que você adora. Me faz tão bem te ver sorrir, Ani. É tão real.
[Kalderash]
– Seu bobo. [Ani]

E se vão, andando a largos passos, à espera do refúgio que a alma merece.


Porém, Ani avista um ônibus passando, faz sinal rapidamente. “Pensa rápido,
Kal!”, ela chama. Eles entram. “Chegaremos o quanto antes, não é!”,
Kalderash diz. “Ao refúgio que a alma merece”, completa Ani. A condução
parte.
“Cena XIV”

Corte para o ônibus, cada vez mais rápido. Ani e Kalderash estão abraçados
e pouco notam isso, olham a vista e papeiam. Pouco mais de quinze
passageiros mais fazem o mesmo.
Na segunda parada, sobe uma jovem segurando uma neném nos braços, é sua
irmã. Ela pergunta se é a linha circular, e o motorista responde que sim. A
condução segue sem a jovem ter muito tempo de se acomodar com a irmã, e
isso já contraria a moça de cara. Pouco antes de sentar ela reconhece as
fisionomias de Ani e Kalderash; sim, já tinha visto esse casal. Corte para uma
escapada de cena, é quando aparece Ani saindo do restaurante em um ângulo
diferente e passa a irmã com a neném em seu colo indo para outra direção,
ela então acompanha com rosto sorridente os dois.
Voltamos. Quem guia esse ônibus corre muito, e treme. Parece preocupado,
olha o relógio a todo tempo. Há curvas, deslizes, sentimentos e reações
exacerbadas nesse percurso. É um dia qualquer do momento que importa a
você que acompanha. A jovem pensa e suas palavras são narradas: “O que
faz? O que sabe? Qual razão? Tem tanta raiva e calor envolvidos, mas tua
testa é fria, motorista! Na exatidão do instante em que deveria se encontrar a
si próprio, quando era para estar receptível à sua evolução, você por fim não
tem postura... ou um bem viver. Sem rumo, põe todos em risco, se corta as
ruas como corta com faca.”

Também dentro do veículo, temos o jovem aleatório dali da cidadezinha de


Kalderash e Ani, mas esse jovem é como a poeira de um ventilador
direcionado por qualquer lado, ele é só desatenção fluida. Abre sua janela
direita e deixa escapar um cado do ar-condicionado da lotação, isso irrita os
demais passageiros, que cochicham como ele é “poeira de um ventilador
direcionado por qualquer lado, ele é só desatenção fluida”; mas ele nem dá
importância. Ani fala para Kalderash: “Todos os passageiros sabem que o ar
é fundamental aqui, por sinal pagaram mais caro por tal conforto.” Kalderash
complementa “E eles sabem como o conforto é lei no século XXI!” No banco
de trás do casal outros igualmente cochicham. Eles acompanham e aquiescem
após breves queixas àquela atitude. Têm lá suas opiniões e o rapaz aleatório
sabe disso. Porém, teima, e continua a deixar escapar mais ar. Fica cada vez
mais evidente que ele não liga. Diz o jovem em pensamentos que “são suas
ideias!” Isso ainda sem ao menos notar nada dos comentários sobre ele.
Continuam falando mais do comportamento do motorista, agora tão veloz
quanto antes.
Na outra ponta, a irmã se segura o máximo que pode, mas quase que ela
mesma fora jogada ao chão pelo manejo dessa caravana. A jovem com a irmã
no colo fala sozinha, ainda que no intuito de ser escutada: “Por que isso aqui?
É uma cidade pequena, logo ele já vai dar a volta por tudo. O motorista está
com fones de ouvido, deve ser; o cara só pode estar zapeando, ou postando
nas redes sociais; dirigir é só um trabalho, ali na frente ele passa seu tempo!
Longe de casa não escuta nada, muito menos tem que prestar contas à esposa
ou brincar com seus filhos....”
Apesar disso, pouco acontece. Nem mesmo Kalderash quer se indispor com
o motorista, nem nenhum outro homem. “Você fique aqui, Kal.”, Ani pede.
Mas a menina sim tem todos os motivos para se enfezar, e com razão, vai que
cai com esse neném!? Então engrandece sua indignação de vez. E move seu
corpo de onde estava, levanta da forma que consegue e vai tateando pelo
mesmo ar que muitos ali respiram. Ela gela o olhar dos outros que lá estão.
“Que faria?”, Ani pergunta baixinho. A visão da neném amarrada à cintura a
todos compadece, afinal é uma menina carregando outra! A irmã aproveita
esse encorajamento, anda mais segura; depois calmamente retira das vestes da
criança um cartucho retangular. Em seguida, faz brotar a pistola pequena que
já aponta para a nuca do condutor. Ele freia e vai deslizando o ônibus para o
acostamento. A tremedeira muda. Ouvimos muitos “Uhhs”. O cartucho foi
para a pistola como a violência para o erro, e ainda surpreende mais do que a
irmã tirando bem rapidinho um silenciador ajustado que se faz encaixar
perfeitamente ao tal dispositivo letal. “Vamos lá”, fala ela ao homem vermelho
de vergonha à sua frente. “Nunca que ia imaginar isso, é?”, ela pergunta. Ele
que nem se atreveria a achar que a arma era piadinha dessas de televisão, vocês
sabem, tipo “pegadinhas” feitas para passarmos as horas.

– Desce do carro! – fala ela e indica com a pistola todo o caminho da saída.
Ele obedece. Os expectadores são nesse momento pedras impassíveis, jamais
reagiram desse jeito; quem jamais esperaria isso? “Seria a ira à sua frente,
motorista?”, a jovem pergunta alto para o motorista. Ani e Kalderash se
entreolham. Saem a irmã com a bebê e o condutor. Dentro do carro começa
um chiado de palpites, há do melhor que se possa concluir, aparecem enfim
as possibilidades! Muitos conseguem também abrir suas janelas para espiar
melhor. “A brutalidade chegara assim? Espera”, fala o rapaz que primeiro
abriu a janela.
No solo novamente, a irmã confessa para o condutor suando frio:

– Deixa de ser bobo, não vou atirar em tu. É falsa, tá vendo....


– Deixa eu te falar... então... eu sei que corri rapidão [Motorista]
– Tá, tá bom, xii iiihhhhhh.... Minha irmã vai acordar se você der chilique,
por favor. – e vemos a pequenina despertando aos poucos. [Jovem]
– Nossa, desculpa. É que estou com uns problemas. [Motorista]
– Moço, olha ali. Depois você se desculpa! O que se vê aqui fora na rua é uma
manifestação. [Jovem]
– Que isso? O que quer dizer, vai me dedurar pros outros? Vão me linchar...
[Motorista]
– Eita, sabe não? Pensei que sim... estão pedindo calma nessa manifestação!
– e ele e os demais passageiros avistam também. “Que dia!”, fala Ani. “Não
sabia que aqui faziam isso. Interessante!”, comenta Kalderash. A câmera
acompanha o movimento das pessoas em sua modesta passeata em muitos
cortes e ângulos. Após alguns minutos o foco retorna. Close na expressão do
motorista. Depois mais closes na jovem e na irmã.

O velho guia passa os olhos em volta e lê tudo aquilo, os cartazes, as camisas,


as reportagens, e sua mente registra diversos pedidos. “A mocinha brinca
comigo”, ele percebe. “Como fui trouxa!” E vê uma irmã entretendo a outra,
que já desperta totalmente. O rostinho recheado da bebê está mais dócil que
nunca, agora que bem acordada.
A jovem estica a mão mostrando o revólver, e devolve o aparato ao velho
condutor. Ele segura, fica olhando para as próprias mãos em close, depois
pensa: “Para quê eu vou ficar com essa arma, logo eu que carreguei tantas
pessoas!... Você é uma altruísta, mocinha. Eu teria provocado uma besteira”
– diz e sorri para ela. Assim, o gasto motorista se cala. A menina pensa consigo
e escutamos sua voz: “Tudo bem, isso passou. Mas mesmo que não exponha
seus dilemas da melhor forma, trabalhou sim pelos excessos. Refletiria você
da mesma forma com a morte oferecida em punho? E ainda mais com sua
irmã nos braços? Com o manejo de tanta gente ou com frases de apoio? Presta
mais atenção, por favor!!”
Por fim, o homem e a moça olham a aglomeração e suas placas,
caracterizações, bandeiras. Todos de dentro da condução também assistiam.
“Arde uma revolta sem liderança, guisa de aspectos, luzes, pacificidade.” Ani
diz em voz alta para que os pensativos tripulantes. Alguns concordam
maneando suas cabeças.

Uma escapada de cena. Primeiro chegam imagens de ondas de todo tipo. É


como uma lenta procissão da Natureza. Novo corte e é mostrada uma onda
muito maior; adicionar imagem impactante um sopro de vento.
Outro corte brusco tendo como fundo imagens de gaivotas em muitas
situações. O clima fica ameno depois de um tempo, enfim.
“Cena XV”

Em casa já, ela prepara o fumo e acende despreocupadamente. Traga as vezes


que quer e passa para ele, que voltava de outro cômodo com dois cachos de
uva em uma mão. Para na porta, se encosta e faz pose de romano. Ou o que
ele acha parecido! Eles riem um para o outro. Kalderash passa um cacho a
ela, que lambia os beiços ao deparar-se com a surpresa, enquanto ele põe o
fumo na boca e bafora. Joga fumaça para o alto, mira em Ani, que sorri
extasiada... A cena repete-se corriqueiramente com os dois revezando o fumo.
Não há muita troca de ideias nessa hora, o que igual faz bem para as cabeças.
Comem devagar as uvas. Ouvimos uma música bucólica, quase uma suíte.
Satisfeitos, servem-se de goladas de água natural. Os copos são transparentes
e vemos o conteúdo. Foco na água. Ani pensa nos gelos e pede ao namorado
que encha um copo com muitos cubos de gelo.
De repente, bate um vento que abre a porta! Levam um baita susto. Vem a
brisa e um tanto mais de vento. Kalderash brinca: “Está devendo, Ani?”. Ela
sorri e balança a cabeça em negativa. Entreolham-se. Percebe-se uma leve
tensão no ar, mesmo depois da piadinha dele. “A brisa da tarde é assim, minha
linda. É tão corriqueira quanto deva ser.” Ani complementa a linha de
pensamento: “Mas desnutre e enraivece como nos momentos em que uma
câmera e seu foco principal não estão sobre as altas alegrias a fotografar; as
poucas alegrias são como barro molhado na velha rua que se desfaz; tanto
desfaz como molda o que vier pela frente. Querem a foto ideal.” Ele pergunta,
enquanto encosta o fumo já quase apagado em um cinzeiro: “Poesia?” Ani
esclarece: “Prosa. Um recorte.”
Kalderash quer entender, mas nenhuma pergunta aparece naquele instante,
só o vemos pensativo fitando a namorada. “No caso você queria o quê?
Precisaria de uma questão que tirasse nossa ordem?”, comenta ela, e
Kalderash responde com outra pergunta, titubeando pelos cantos das frases:

– Pra toda regra há uma exceção? Talvez porque, quando criadas as regras,
possivelmente, foram contra os particulares. Gente como eu ou você,
perdidos no esquema louco que vende mais que guarda, que vem de lá de
fora... tipo esse vento que chegou aqui. Talvez o mundo de hoje precise de
heróis, de seres geniosos, que tal?
– Toda sociedade precisa de ídolos, meu doce. O que você me diz a respeito?
Por acaso já teve vontade de resolver na força? O vento te assustou? [Ani]
– Que super-heróis só em ficção mesmo, é o que acho; aqui na vida real é o
que dá pra desenrolar! Brincadeira... É... Que para ser ídolo, penso eu, ao
que tento acrescentar, é que precisa ser mártir também... ser herói é viver pelo
sacrifício. Se você quer estar na boca do povo, claro. O povo ficaria menos
vicioso! Não sei se estou preparado ou deva ser minha sina dedicar-me assim.
Sei lá. Posso até pensar, juro. [Kalderash]
– Quem disse que eu quero te ver na boca do povo, menino? [Ani]
– Foi força de expressão, dona. Você me entendeu. [Kalderash]
– Tá, tá. Agora vou relevar; tudo bem porque foi um bom rapaz e não me
chateou... tanto... Tirando a parte mais cedo no restaurante. Mas vai lá, falou
direitinho, depois que voltamos nem se coçou tanto, né. Tá vendo como são
as coisas? Abra sua mente, Romeu meu querido. Aparece na janela quando
eu te chamo, ligadinho nos sinais que te dei. E vem pro quarto comigo tirar
um cochilinho. [Ani]
– Ah minha loirinha, olha só, olha você! Não faz essa cara... faladora, de onde
tirou essas pérolas? [Kalderash]
– Eu sou muito esperta, já disse. Não sei por que tenho que repetir tanto o
que digo... [Ani]
– E eu sou é maluco, afundado em instinto, adoro te pentelhar!! Bora
explodir!!! – e tocam um na mão do outro.
“Cena XVI”

Na manhã do próximo dia, assistimos Ani deitada na cama se espreguiçando.


Kalderash está no sofá do quarto sentado com um livro antigo na mão, só não
é possível distinguir o título. A câmera passeia pelo quarto. Ele após alguns
minutos de introspecção lê um trecho para que ela ouça. Foco em seu rosto:

– “Se os humanos ainda não aprenderam, pois vejam logo! O uso das
tecnologias foi sua maior distração, um gigantesco retrocesso; a vida simples é
o caminho de volta ao espiritualismo (...)”
Você concorda com isso, Ani? Muito interessante esse livro aqui, tão perto de
mim.
– Você gostou, é? Claro que eu concordo, meu docinho. Nunca deixaria um
livro em casa que não fosse de acordo com o que penso. – a namorada
pergunta, e ela mesma responde.
– Ani, a loirinha que não dá ponto se já não houver um nó feito por ela
mesma! – Kalderash zoa com ela.
– Bora ver um filme? [Ani]
– Qual? Dá teu papo. – ele responde tranquilamente enquanto abaixa o livro.
– Tem aquele que Mánya deixou aqui outro dia, lembra não? É filme de casal.
Ai, esqueci que você não gosta, nem vou insistir então. [Ani]
– Calma, calma, eu não disse isso. Deixa eu ver... Curta ou longa-metragem?
[Kalderash]
– É, ué. Tem que ler a ficha-técnica. Quer ver? Entendi nada agora. [Ani]
– Liga logo esse troço aí. [Kalderash]
– Tá escrito AOREM na capa do DVD. – Ani fala um pouco intrigada.
– A ó quê? – Kalderash ri.
– Vai ver que é bom, Mánya tem um tino bom para achar cultura. Se chama
“Amor, Ódio, Redenção e Morte”. Eita. [Ani]
– Pois é, já está passando? – ele pergunta de costas, ao mesmo tempo que
coloca o livro de volta à estante.
– Estou indo, cara. Apaga a luz aí, Kal.
– Quero só vê, heim... [Kalderash]

Foco nas mãos dela manuseando a capa do DVD durante toda a etapa de
retirar da embalagem, colocar no aparelho reprodutor; a câmera ainda
acompanha os movimentos dos dedos de Ani clicando até que apareça o
início do filme. Ela se distancia do aparelho para voltar para a cama. Deixa
cair o controle remoto enquanto isso. Ani ri. Olha para o namorado já se
emaranhando na cama. Começa o filme, a luz da tela ilumina um pouco mais
a cama. Ani e o namorado se abraçam.
“Parte 2. A ida”

Ani secretamente convida seus amigos para uma reunião em sua casa. Ela
envia uma mensagem de celular. Ela digita. Vejamos entre tomadas rápidas o
caminho dos personagens até lá, começando a sequência de imagens com
Mauri ligando para Mánya combinando detalhes da surpresa, e depois vemos
Mánya avisando Florinda, que estava com o mudo passeando em um parque.
Como se por acaso, o cabisbaixo esbarra com Mauri em um supermercado.
Ele fala com ela, enquanto andam escolhendo seus itens e colocando nos
carrinhos:

– Acho que todos já sabem, a informação corre rápido. – ela ri.


– Pois é, pra isso as redes sociais funcionam que uma beleza! [Cabisbaixo]
– Mas com as besteiras, aii. – Mauri gesticula caçoando.
– Falando nisso, quem vai ser o primeiro a zoar o Kal? [Cabisbaixo]
– Poxa, já nem precisa, o pobre está passando por umas... Melhor irmos com
cuidado. [Mauri]
– Tudo bem. Mas ia ser engraçado. – e riem juntos. Corte para os dois saindo
do mercado; Mánya está já do lado de fora, encostada em uma carro; depois
outro corte para o mudo e Florinda já fora do parque.
“Terceiro esquema. O mudo e o cabisbaixo esperam as meninas”

Vemos Mauri, Florinda e Mánya se arrumando em um quarto. A música alta


praticamente abafa o que elas dizem, mas estão sem pressa e despreocupadas;
provam roupas, colares e anéis. Do lado de fora, na rua e de pé na calçada, o
mudo e o cabisbaixo conversam tranquilos, enquanto aguardam elas:

– Eu sei, não vão demorar muito, pode ter certeza. Mauri então, está ansiosa
para tirar um sarro do irmão. – avisa o cabisbaixo.
– Tá certo. Mas aí, voltando àquele assunto que começamos outro dia, sobre
as coisas naturais. [Mudo]
– Ah é! Acabou que nem prosseguimos, cara. [Cabisbaixo]
– Pelo celular não dá pra se expressar bem. [Mudo]
– Por isso os amigos são os que se veem! [Cabisbaixo]
– Opa! [Mudo]
– Tudo o que é natural, essa é a bandeira, pois é. [Cabisbaixo]
– Isso é bom mesmo. Outra história das coisas in natura... A gente comum se
irrita com essas piruetas geneticamente modificadas que chegam toda hora. –
o mudo troca o tom da conversa.
– Ah é... as doses dos sintéticos são muito altas. [Cabisbaixo]
– Aí está uma discussão bem viável... Podíamos usar esse tema, que tal!?
[Mudo]
– Alteradores? Difícil hein, irmão. Eu acho que vou escrever sobre isso só
bem mais velho... quando eu não precisar mais tanto deles. Por enquanto,
ainda tenho muita paixão. [Cabisbaixo]
– Não, ô adepto! [Mudo]
– Do quê, então? [Cabisbaixo]
– Falo ainda dessas paradas geneticamente modificadas, que na maioria das
vezes são maléficas; parecem suaves... e absorvemos. Mas essa é minha
opinião... e opiniões são questionáveis, muito baseadas em interpretações
ocasionais. [Mudo]
– Pô... Não tem como não falar de alteradores... [Cabisbaixo]
– Não falar com as palavras, mas fazer analogias. Vou pensar em algo. [Mudo]
– Começou com elas... Bom, as de farmácia, claro... [Cabisbaixo]
– De alteradores já temos uma boa porcentagem, já basta. – brinca o mudo.
O cabisbaixo ri também.
– Verdade. Mas é com o alterador, não sobre ele. – o Cabisbaixo responde e
vê o amigo pensando em mais coisas, dá alguns passos e fala, como se achando
novas ideias:
– Novos cidadãos inventando tudo artificial, é sobre esse tema que pensei.
Hoje tinha uma reportagem dizendo que em país tal fizeram um robô que
utiliza tecidos vivos e faz uma baita mescla!!! Por exemplo só, digo! [Mudo]
– Hum... Deve ser pra cultivar órgãos. [Cabisbaixo]
– Sei lá, amigo, é um robô que tem partes humanas. Vai mais longe ainda,
tem mó galera pilhada em “ficção científica”, nessas consequências... Só o
ruim desse dinheiro gasto é que provavelmente dava para melhorar a vida de
um cado de gente que não tem opção de vida, como os subdesenvolvidos de
verdade. [Mudo]
– Passo aqui um linque, vê. – brinca o cabisbaixo, e riem da analogia.
– É... mas não é culpa da galera da Ciência... São essas grandes corporações
sugadoras de vida que dão grana pro que está na moda porque vende mais.
É passageiro... atribuir a marca deles a isso de “positivo”, sabe? Miséria desde
o início dos tempos já existia, está geral acostumado... [Mudo]
– Por essas e outras que não resolvemos os problemas da Humanidade: tem
sempre grana travando um lance. Interesses demais também. Cara, pensa só:
uma revolução de verdade vai ser quando houver uma nova tomada de
consciência sobre como usar grana... Ou nem usar mais grana. Digo, uma
forma de repensar. Enquanto houver esses defeitos de caráter, como ganância,
mesquinharia, muiiita coisa vai ficar parada. Tanto que retrocedemos à beça.
[Cabisbaixo]
– Se a empresa não zerar a miséria, não adianta. Se bem que as empresas nem
tinham mais que existir. As pessoas deviam fazer trocas, a palavra e a honra
que deviam ser o usual. Poxa, não só o usual, mas naturalmente. [Mudo]
– Grana, grana.... Mau uso, porcaria. Nosso tempo vai ser muito malvisto
daqui a pouco, é como uma Idade Média corrida. Fora! O bom de estar uma
porcaria é que os bons se sobressaem. É, primo... Não sei qual vai ser o fim,
mas sei vai haverá um... e que não vai ser bom; porque o que começa errado,
termina errado.
E aí!?... [Cabisbaixo]
– Concordo, a contragosto, mas sim. – ele pausa, olha em volta. – Lembra
daquele desenho velhão, como era a sociedade no Planeta Selvagem? O
ambiente deles era inclusive muito pior do que o nosso. [Mudo]
– Tô ligado. Não existia mais muito que se considerar, era só escravidão.
Sociedade só dos azuis lá, eles eram um grupo coeso, porque seguiam
cadenciados. Bom filme! [Cabisbaixo]
– Com certeza, dentro de uns poucos anos o filme, e a gente, tudo vai... ser
revisto. Em muito menos, até. Vão é dar risada da nossa sociedade. Ou não
vai mais existir muito, porque do jeito que as coisas estão, se piorar apodrece
de vez. [Mudo]
– Aí eu monto uma resistência... pela vida! Você sabe, sem uso de força,
sempre apenas as ideias. [Cabisbaixo]
– Você não ficaria sozinho. Pena que depois de tanto passado ainda recorrem
à força. Façamos o nosso. Nossa parte que vai ficar na História. Nosso legado
de tentativas, pelo menos dos mártires as pessoas lembram. - e sorri xoxo do
outro lado o mudo.
– Se vier esse papo de 'ordem' e 'organização' do 'Estado' pra tudo e coisa e
tal... Aí fica feio pro lado deles, cidadão!! [Cabisbaixo]
– Guitarras e livros e boas atitudes. [Mudo]
– Bora! [Cabisbaixo]
– A zona onde estou é deprimente... Se tivesse um radarzinho igual aos jogos
dava pra dividir e identificar bem os setores dos pobres e dos menos pobres...
[Mudo]
– É... muita chateação... quanto pessimismo, onde caímos! – exclama. – Ainda
em obras. – fala e encosta as mãos encima do muro. – A fachada do prédio
na rua do prefeitura daqui já ficou toda zoada, e as persianas das janelas...
quase todas gastas, sabe? É a decadência dos governantes, roubam tanto que
esquecem até de maquiar; e nas casas deles a mesma ruína; você vê pelos
móveis e interior daquelas casas que a família x ou y já não prospera mais
como costumava ser, entendeu? [Cabisbaixo]
– Mas o que era prosperar pra essa gente? [Mudo]
– A ruína às vezes é necessária. [Cabisbaixo]
– Tanto foi! Mas essa é completamente desnecessária porque essa jogada é
mundial... Entende, ter governantes. Ou manter certas dignidades. – ele dá
um sorrisinho. – Manter. Aqui... até quem é muito rico se dana... [Mudo]
– Estamos em fase de teste para alguém ser liderzinho econômico e servir para
algum propósito financeiro. Ocasionais que acham que estão abafando e não
ligam de se sentir esquisito todo dia ao ir trabalhar, contanto que tenha
conforto. [Cabisbaixo]
– Viu? Pode se anuviar indefinidamente. Aí vira aquele exemplo em casa,
claro... Confuso, insensível... Daí, vai... [Mudo]
– Essa prefeitura daqui de onde moramos é subdesenvolvida, ainda. Até hoje,
um lugar que falta educação em todas as bases, nunca vai pra frente...
[Cabisbaixo]
– Somos é íntegros, vamos passar por este planeta dessa forma. E ainda
tentamos ajudar, seja musicando, escrevemos algumas letras; vamos falar com
as pessoas, fazer apresentações... Expor essas precariedades. [Mudo]
– Deve ser por isso que tanto sofremos... [Cabisbaixo]
– Deve! [Mudo]
– Eu acho que se a gente souber ficar de bico calado e firme nas falas
imprescindíveis... teremos melhores oportunidades de soltar o verbo em bons
veículos de comunicação, entendeu? Na hora certa, e tenho certeza de que
saberemos quando esse momento decisivo for indicado. [Cabisbaixo]
– Amamos a Humanidade, a noção de se humanizar, devemos pensar num
futuro igualmente... já que queremos persistir! [Mudo]
– Exatamente... Só os princípios justificados que estão errados. Não falhamos
também aguardando tanto. [Cabisbaixo]
– Com clareza absoluta. Igual temos que buscar instrução. Em grandes mídias,
poderíamos mexer com as cabeças dos outros, principalmente os jovens, os
que estão começando a se “coçar”. [Mudo]
– Pois é. [Cabisbaixo]
– Tô te falando! [Mudo]
– Mas as grandes mídias são apenas ditames, pronunciamentos. Talvez, de
coração, se formos pela cartilha e nunca mijarmos fora do pinico.... nossa
chance e voz pra falar virão. [Cabisbaixo]
– Sim. [Mudo]
– Já penso... Nós até então neutros, num programa desse e do nada
mandamos na lata... Aí sim... Vão querer matar a gente e tudo. [Cabisbaixo]
– Não é impossível. Muita gente boa morre por causa de ideias. Penso nisso
também, mais ainda quando me falou aquilo de cuidar da integridade
física...... Ficou na minha cabeça! [Mudo]
– Mas eu sou mais brabo que a maioria deles, compadre! [Cabisbaixo]
– Eu sei que é, irmão. Confio! [Mudo]
– Não tanto, mas o suficiente... infelizmente, a gente sempre precisa ter
consciência de que precisamos nos defender. [Cabisbaixo]
– Justo. Ainda que nossos instintos nos sejam aliados, é interessante utilizar
de forma... Medida! [Mudo]
– Na real, eu me defendo desde moleque, e só não me lasquei algumas vezes
porque fui safo na prática. – e fica se vangloriando o cabisbaixo.
– É que também estou pensando nisso agora... Nunca tinha parado para
pensar analisando por essa ótica... [Mudo]
– Temos que pensar no futuro igualmente, “já que queremos persistir”. – e
faz um gesto como um aceno com os dedos indicadores; após isso se detém
para pensar em algo mais, entretanto completa apenas com a frase seguinte:
“Sensato, não é...!?” [Cabisbaixo]
– Nós que nem somos como outros, os que se deixaram abater. Por que você
acha que uso um apelido e não digo meu nome verdadeiro? – brinca o mudo.
– Pode crer... A gente que nunca esqueça de quem lutou pra estarmos aqui
nesse momento... nossa gente não esquece um título. [Cabisbaixo]
– É. [Mudo]
– Se agora eu e você podemos falar tranquilamente, aqui nessa rua, em frente
de casa, é por causa dessas pessoas também, de alguma forma.
Digo, em aceitação, sabe? [Cabisbaixo]
– Ah sim. [Mudo]
– Se fosse tradicionalmente aceitável deixar o samba rolar, ia babar... Dá ruim.
Sabe fazer sambar? [Cabisbaixo]
– Eu? Sei nada. São exemplos, apenas isso. Eles foram pioneiros. Na
discografia mundial temos tantos! Deve ser por isso que ouço as bandas que
se tornaram bandas do mundo, gosto de quem sabe expandir. [Mudo]
– Mundo. Eu nem pagode sei.... [Cabisbaixo]
– Só rindo! Nem dançar, nem chutar um círculo. [Mudo]
– Pois é.... Nem eu. [Cabisbaixo]
– Cidadão, você! – o mudo começa uma imitação propagandista tosca. - A
memória é uma das armas de um povo. Se os gregos e romanos, por exemplo,
tivessem deixado virar pó os escritos dos filósofos, dos matemáticos ou
políticos daquela época, seria possível que a gente do século XXI ainda
estivesse em tribos esparsas. Ou não, depende, evidentemente. São
correlações. Mas a memória é o povo, numa magnificência.
Sabemos enxergar como se estraga uma educação com muito pouco. Veja
quantas crianças são mal-educadas, sem uma família no sentido da passagem
de valores. Porque não vemos nem pais nem mães esculpidos por zelos;
pouco recebem algo dos antecessores... Tememos por uma reação em cadeia,
tememos um montão de personalidades partidas.
Nas mãos, a oportunidade de abrir cabeças. Mas e se!?
– Atualmente, temos gerações, muita subdivisão... Fica mais fácil de
influenciar... – fala rindo o cabisbaixo.
– É, e gerações rápidas à vera.
Isso é relevante.... Eu mesmo já sou passado e me ridicularizo por tanta
falação. [Mudo]
– Muito importante. – caçoa o amigo cabisbaixo.
– Essa porcaria de tudo ser rápido e digerível, reciclado e ultrapassado é dose.
Acha não? Não ficam de cabelos em pé...? Num dia notícia, no outro... Ihhhh,
teu reflexo virtual simplesmente esquecido! Chato. [Mudo]
– Tenho uma lembrança, de bons tempos; as pessoas se falavam... Lembro
de um coro, não sei onde. Eram crianças também. Daí eu penso, queria que
as crianças de hoje cantassem, sabe... Muitas crianças. Acho que cantariam
direitinho, era só incentivar. [Cabisbaixo]
– Quem dera. [Mudo]
– Crianças são como oportunidades. Por isso... quando algo sai de um lugar e
dá espaço a outros; quanto mais rápidos e descartáveis forem os noticiários...
mais tempo eles os deturpadores vão precisar para lascar a pureza das
crianças. Se forem a notícia.. Fora disso, as coisas correm naturalmente.
[Cabisbaixo]
– É. Essa é uma discussão que a gente comum tinha que se habituar. Tanto
precisamos da pureza! [Mudo]
– Entendi, entendi... Dá pra falar em uns trinta minutos, até uma entrevista
resolve. [Cabisbaixo]
– Não é!? Vou salvar essa conversa, dar um printe. Quem dera se não é
reaproveitada! – ele ri, o mudo.
– Mais um ponto pra memória exercitada. Boa ideia! [Cabisbaixo]

Nisso, aparecem as meninas, estão tão belas que a única reação dos rapazes é
sorrir em apreciação. Se cumprimentam com cortesia e saem pela rua na
direção da casa de praia de Ani e Kalderash. A caminhada é longa mas a noite
embala seus corpos
“4. Na casa de praia”

Primeiro vemos algumas tomadas com Mánya e Florinda em um mercadinho,


estão contentes e papeiam ao som ambiente. Noutro momento, chegam as
duas de volta. Passam pela porta, têm uma caixa de papelão com três garrafas
de vinho branco, embutidos e diversas frutas. Entram e cumprimentam-se
com Ani e o namorado. Kalderash elogia as bebidas. É a voz dele narrando
um pouco das características de seus amigos:

“Logo após, o restante da galera também se apresenta: dona moça Mauri, a


espertinha... e o mudo e o cabisbaixo. São os que não se arriscam à toa.
Mauri, de tanto que via vantagens nas relações e alianças com as pessoas, se
esquecia todo tempo dos seus próprios objetivos. Era seu jeito de ser altruísta;
O mudo só ria e esbarrava nas louças pela casa, falava apenas quando fosse
preciso. Nos ensinou muito sobre a intuição;
Já o cabisbaixo foi um dos que mais mudou, antes se recusava a acreditar em
tudo, sempre ironizando e dizendo que nunca daria certo; excluía as
possibilidades que não estivessem perto de sua alçada.”

Kalderash abre duas garrafas de cada vez, acende seu fumo e incita o grupo:

– Agora que temos a nosso favor a precipitação do ganho, podemos amplificar


cada sutileza e novo acorde... Que a voz de cada um tenha sentido, ainda que
precise vir a ser justificada...
– Diz logo, figura! – lhe corta Mánya.
– Entendi, já vai... vai é sugerir que falemos entre nós sobre esse lance de ainda
haver discórdia. [Mánya]
– Todo mundo anda falando nisso agora. Qual a novidade? – fala novamente
a provocadora Mánya.
– E é para parar? – pergunta Florinda.
– Unf... o homem nasceu para a alegria; não amaria apaixonada e
continuamente os prazeres se não fosse formado para eles. Quer que eu diga
que a essência da natureza humana é deleitar-se, e todo o resto é loucura.
Ahhhh, vamos a beber!!! [Mánya]
– Que isso, Mánynha!? [Mauri]
– Prazer por prazer é se enganar; da medida esquecem, né!? [Ani]
– E você aí se coçando, geral já sabe... [Cabisbaixo]
– Como? [Kalderash]
– Que droga! Kal fadado a teu egocentrismo ignorante moralmente. Tanta
filosofia e tantas mortes para encarcerar tudo nas escolas... tuas escolas, tuas
escolhas, tuas cabeçadas – fala Mánya de novo.
– Ani já nos adiantou o assunto, meu amigo. [Mudo]
– É isso mesmo que veio aqui pra me apedrejar, Mány? [Kalderash]
– A pedrada é conselho! [Mánya]
– A pedrada é falta de respeito. [Kalderash]
– Você se ofende fácil – diz Florinda a ele. – Somos amigos e irmãos em todos
os sentidos, falar o que pensamos não é ruim.
– Tranquilidade, vai!!! – se intromete o cabisbaixo.
– Toma um vinhin mais, vai Kal – chega Ani a seu lado, enche-lhe a taça, alisa
suas costas e para sua mão na cintura dele.
– Viu, Kalkal... – Ani ironizando – A compreensão universal nem nada vai ser
atingida a menos que as pessoas se compadeçam, e que o sangue esteja
quentinho.
– Acredite, por trás desses argumentos, há séculos de reflexões e tentativas! –
fala Ani, novamente.
– Troca de ideias, quem dera – diz baixinho Florinda, enquanto sai de perto
deles e vai encher seu copo já vazio.
– Olha, não sou disciplinável, ainda que o mundo ao redor diga que tenho
que estar, fazer, viver “isso e aquilo”, pois é... Então acho que vocês estão
sendo muito duras com ele. É difícil pro fraco aceder – intervém Mauri.
– Ia a lá? [Mudo]
– É sério. Já é muito pra você aguentar, Kal... [Mauri]
– Não preciso de ninguém para moldar minhas condutas! [Kalderash]
– O que tem já é suficiente, é preciso aprender a controlar-se. [Ani]
– Já chegou adiantada, hem, entendi! [Kalderash a Mauri]
– Falo de quando alguém tem que se voltar a si próprio. Só quero te dar um
conselho. Eu tenho essa liberdade, não é?! [Mauri]
– Claro que sim, chata. Eu não regi bem, é isso? É muita piadinha junta...
combinaram, foi?
– Reagiu. Você que se acha o atacado – completa Mánya.
– Vi que você é bom, que foi corrompido um pouco, meu irmão. Renuncia
essa antiga liberdade autoritária? Ou volta pro mundo atual?? [Mauri]
– É o Burlaxou! Iêiiiiiii... – corta Florinda. Todo mundo está rindo, ela vai
rodeando os demais, enquanto diz, pausadamente, continuando:
– Burlaxou! Tô te falando....
– Que isso de burlaxô, tá doida, filha? [Mauri]
– É o Burlaxou! Inveja, cara de pau, teatrinhos, manhas... que de real tem
nisso? A representação? Se fosse uma propaganda, seria assim:

“Comporte-se como se estivesse num mundo exterior, caso fosse um


estrangeiro. Pense nas pessoas que te veem. .. Faria o mesmo que elas?
Burlaxou, data vênia da conspiração vaga.
Se ligue.....
Você pode contar muito mais do que com a sorte!!”

E riem da presençona. Ela continua:

– É apenas uma brincadeira dessas que rolam pelas redes sociais, mas a
carapuça serve muito bem.
– Opa! Eu já vi, se é!! [Cabisbaixo]
– Eu também, até tenho aqui no celular, ouçam: “Burl-a-xou! Verve agora a
tensão de gêneros, estamos em uma festa privada, o que será da gente se todo
dia for assim? Que quero dizer? Eu nada sei, chutei, só deixei no ar; você não
quer dizer algo?” [Mánya]
– Inventam cada coisa... [Mauri]
– Eu quero o mundo, claro – volta Kalderash ao assunto: – Preciso sempre
estar nessa!... É, tudo bem... os critérios de vocês até que são possíveis, mesmo
que meio absurdos... (...) Na verdade, muito plausíveis. Eu agradeço de
coração.
– A perfeição está para todos. Isso inclui quem deseja ser livre moralmente –
arremata Mauri. Em seguida, ela nem dá aos outros o tempo de pensamento,
já dizendo outra coisa:

– Posso pegar um desses fuminhos?


– À vontade – fala Kalderash.
– Como e do que se libertar para tal onde ou talvez? – essa é a frase do
cabisbaixo.
– Talvez da noção de noção de probabilidade, amigo. [Kalderash]
– Mesmo em constante processo, mesmo mutável e contraditório, ou se parte
da experiência humana, da ética global... e encarar problemas globais,
incertezas, você pode? Está preparado? – pergunta o mudo a Kalderash. Eles
gostam de perguntas, é um exercício costumeiro no grupo. E após outra pausa
entre goles, o namorado de Ani solta esta frase:

– Estou é confuso. [Kalderash]


– Já parou para analisar as próprias atitudes em diversos pontos de vista? Tuas.
Separe somente as tuas. Mas o que é você senão alguma sucessão? – enfatiza
Mánya.
– Não assusta ele – pede Ani.
– Só estou provocando. [Mánya]
– Sei... [Mauri]
– Faço porque me descontento igualmente. Na verdade, é um apelo geral...
com dúvidas mútuas. [Mánya]
Em close vemos Ani chegando com um par de incensos acesos, ela chega da
cozinha. Sorri para os amigos e coloca os incensos na bancada que divide a
sala. Novo corte e então quem volta agora é Florinda, sorrindo, dizendo:

– E a pureza, essa sim foi deturpada! Pôôô, já viram!? Ouvi por aí isso de ferir
tal e tal. Então... Que é ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente senão
uma questão de ótica? Uma criança nua não é um símbolo de pureza e início?
Não deve então ser mostrada, e nem vista de forma alguma porque tem quem
ainda cultiva tanta frieza? Quem atribui dano moral ou mesmo lesão ficcional
é a mente do desajustado, dito “minoria”. Isso é opressão ou falta de tato?
– Ou falta do que fazer!? [Mánya]
– Volta, Flori. [Mudo]
– Ela se supera. [Mánya]
– Não entendi nada disso. Porrou já, mulher? – questiona Ani. Ela poderia
ser tanto afável quanto dura em seus comentários.
– Só quis instigar, vinha com esse tema na cabeça. Achei que o embalo e esse
fluxo de ideias pedia! [Florinda]
– Faça-me o favor! Piadeira. A pureza ficou lá na Antiguidade, teríamos que
reiniciar o mundo, ou que ele nos zerasse – é o que diz Mauri, cheia de gás.
E anda de um lado a outro, ela gosta de se mostrar. Prolonga o papo:
– Uma zoação que rola por aí, inclusive... Tem gente falando que o planeta
não é o mesmo e já dá sinais de mais uma limpeza geral. – e Mauri se senta.
– Desculpa, Flor, mas não pode fazer piada... O assunto vai para além, diz
Mánya e se volta para pegar algo na mesa.
– Ah é, e quanto a mim, te ofendi com minha clareza? [Mauri]
– Só um pouco, vou ter que te processar! – e se ri a retórica Florinda.
– Me processa, censura, me tira de contexto... – caçoa Mánya – e se diverte
dizendo: – Só não te deixa adequar, porfa! – ao que ri mais alto.
– Né! [Mauri]
– Mocinhas, diz Kalderash.
– Mas fala quem quer – Mánya joga na cara.
– Quem pode. [Florinda]
– ...apetites, fala baixinho o cabisbaixo.
– Livre é quem nem sabe – pensa alto Ani.
– Artes... vidas... liberadas!? [Mauri]
– Liberais... artes.... Vou nessa dica, Flor. [Mánya]
– Acredita que atualmente seja possível desenvolver a capacidade de apreciar
as delícias da vida? – Mauri provoca.
– Fica na tua, você às vezes se supera – responde Kalderash.
– Eita, que balde da água fria! [Mánya]
– Um mundo tem que oferecer saídas, você que saiba. [Mauri]
– Não pede, necessita. [Mánya]
– Ah, moço Kal... Só te perdoo porque somos da mesma família – diz Mauri.
– A humana? [Ani]
– Você é estranha, não sei por que te aguento. [Kalderash]
– Nos amamos todos, bobo! [Mauri]
– É o que vamos ver. Deixa eu ficar velho e não aprender mais nada! –
Kalderash brinca e todos riem.
– Mudinho hoje veio tranquilo, poxa. Nem disse nada, digo, nem se exaltou.
Fala, gente boa! – indaga Ani ao homem.
– Duvido dizer. [Mauri]
– Ele, quando se inspira, arrebenta. – Ani de novo atiça.
– Em favor da coletividade, não seja passivo, cara mudouuu!!! [Mánya]

E se descontraem pela sala. Riem felizes. A noite está propícia, a lua cheia
preenche o céu aberto nesse momento, pouco mais das 7 da noite. Retomam:

– Mudin promove a solidariedade. [Mánya]


– É sim, é gente importante. – comenta Mauri, que tem a cara afável para ele.
– Não é apenas para ler maquinalmente, mas deve interpretar – ele começa,
bem tranquilo.
– Aêee, falou! [Florinda]
– Eu já tinha falado! [Kalderash]
– Mas agora completou uma frase. – diz Florinda rindo alto.
– Xíii, deixa ele. [Mauri]
– Vai, querido.... [Mánya]
– Tem gente que diz que é entendimento, outros chamam de sabedoria, ou
mesmo a prática do bem. Mas, quanto mais aperfeiçoa o teu ser, mais
expressivo fica, também sabemos de antemão... Amor, Espiritualidade,
Companheirismo... Que mais é preciso provar para se ligar que o ser humano
não foi feito para solidão!? – fala ele em tom descontraído e absolutamente
normal.
– Mas, provar... por quê? Não confia na gente? [Mauri]
– É óbvio que sim. [Florinda]
– Deixa. [Mauri]
– Abstinência doutrinada pela falta de ímpetos, de revoluções. Abstinência, a
doutrinada. Se ficou chato, é porque parou de tentar! – ele pausa enquanto
adivinha as futuras expressões dos amigos. Eles refletem em silêncio por um
pouco.
– Gran consumo pelo resto da gente! [Mánya]
– Avidez por ser afável... [Mudo]
– Falta de um bom gosto generalizado. [Mauri]
– Falta discernir legal de legal fraudulento. [Kalderash]
– Moldes. [Mauri]
– Pedimos jogos e diversão – e Ani levanta e ginga a taça com todos os
presentes seguindo seu gesto.
– Que fazem as crianças quando não choram? Chamam atenção? – questiona
Florinda.
– Cantam e dançam até amanhã... Por qual motivo se preocupar com o
passado e com o que já foi iniciado? [Mánya]
– Se comemoramos hoje é porque estamos no caminho, e não encaramos
como jogo!! [Cabisbaixo]
– Crianças sem seus brinquedos e distrações. – começa Mánya – Em uma
organização de qualquer forma, ou do jeito que dá... – pausa, revê as
expressões atentas à sua frente, ganha energia, e continua: – Sem suas belezas
e esculturas naturais, sem tamanha fauna e flora ricas, já está é perdida! E vai
e pede auxílio e empréstimos, pois não formula nada, apenas recria, pega as
migalhas da sorte. Do tempo que vier, da forma que for e tá bom. Assim pensa
o miserável, que com um gole d'água se satisfaz, achando que nutriu muito o
corpo!... E dorme, pois amanhã é outro diaaaa... Desejam consideração e
risos, esperam voltar às próprias ocas de concreto. A conjecturar a próxima
moda da vez. Leis? “Dá-igual” é seu livro. Ser é só um verbo que vai para
cadeia, matar vai para cadeia, pedir vai à cadeia... mas comprar te livra,
usurpar despista, reclamar te redime, e possuir é assinalado como ter fé.
Emoldurar a face te deixa exausta! Deixa acontecer. Quem sabe, não é
mesmo!? Quem sabe o de amanhã se não planejamos... Sem heróis atuais,
qualquer imitador imagético borra e ofusca em suas bancas de escritos, tem
esses manuais e mais manuais nas mãos; são mãos trêmulas quando sozinhas;
e eles persistem nos livros-fórmula chamados de autoajuda...
– Respira, amiga. [Ani]
– Eu tento! – e ela se encosta na bancada. – Mas eles buscam um prazer sem
limite, querem de todas as formas algum prazer, um já extra, já fiado, que não
se renova pedindo. Têm no prazer apenas consolo rápido. Ahhhh...
– Teriam. Mas estamos aqui. Como uma barreira... Melhor, como uma
resistência. [Cabisbaixo]
– Não falimos. [Ani]
– Que bom!! [Florinda]
– Mas não é que está tudo à venda que tem que sair comprando – diz o já
nada desligado mudo, ironizando.
– Com esses valores parcos, só se vislumbra fiascos... Gostaria de transformar
minha pena por esse tipo de gente. [Mánya]
– Que mundo antigo! [Cabisbaixo]
– Um vacilo rola solto sem rédeas: é a idiotização fácil.. [Mauri]
– Uma tal cegueira atrelada à raiva e esvaziamento pessoal. Em meu coração
eu sei que ainda alguns pensam pelo Bem, e isso me conforta. Espero que
com vocês ocorra o mesmo! [Ani]
– Somos poucos, mas temos força, garantimos!! [Florinda]
– Ouçam! É hora do silêncio... [Ani]

Então todos se detém por um curto prazo. Kalderash vaga de um lado a outro,
olhando para o chão e pensativo. Mánya está quieta. Florinda ri muito, mesmo
com a mão na boca. Mauri belisca umas comidinhas. O mudo troca de
posição com as mãos todo tempo. O cabisbaixo só acompanha.

– Agora vamos acordar os preguiçosos!!! – provoca. Ani está elétrica.


– Essa produtividade que “ainda hoje” – intervém o mudinho – ela ainda
desafia todo e qualquer consumo, todo o desperdício. O direito à preguiça
deve aparecer após alguma finalização, não como escape. Talvez um dia
poderão tentar me comprar em supermercados ou pela rede mundial de
computadores... mas serei também adulterado para facilitar meu escoamento
e abreviar minha própria existência.
– Poderão tentar! [Ani]
– Mudin – diz alegre a Florinda.
– Bem – ele sorri e fala: – Só assim terão bastado, no caso... se fartado de
mim, para tão logo se queixarem e jogarem fora, de tão imprestável que serei
– termina de confessar. Mánya se senta na poltrona. Ela se reconforta:
– Ninguém precisa de ninguém empurrando ideais e fórmulas, dizendo o que
tem que fazer ou não. Que deixem pensar quem quer pensar, claro que por
si próprios, é mais justo... proveitoso. Acha não? – pergunta Mauri.
– Mas e os bons conselhos? – Ani indaga.
– Melhor esperar pedirem, não!? – adverte Kalderash. E dá um beijo no rosto
da Ani.
– Ambivalência – comenta Mánya.
– Se é de grana que falam... – começa a Mauri – Dinheiro e acúmulos não
“vão para o Céu”, parceiros, nunca será espiritual! É um mero instrumento
terreno que não compartilha nossos anseios tanto quanto um título ou apólice
fariam.
– Humanos – incita Florinda – já têm de tudo, os vejo abarrotados.
Conhecimento guardado, tecnologia à mão; tem a experiência passada pelas
eras e gerações... Mas ainda rastejam. Que faltou, um empurrãozinho? Um
bom pai e uma mãe firme? A Glória é teu destino, cumpre então; não se
sacaneie.
– Ao lixo tudo o que nos isola! [Cabisbaixo]
– Do passado só o que interessa. Por isso estamos aqui!! [Florinda]
– Nada pela ociosidade e pelo que bastar, nem mais nem menos, o ideal, o
justo, o equilíbrio simplório! Até porque de gorda já basta nossa interferência
negativa no planeta... - segue Florinda dizendo, ao que acaba com a salva
endereçada a todos: “Que bom é amar!!”
– Mãos aos céus, vamos agradecer sob o luar!!! [Ani]
– Transformado... – diz Kalderash, em seu olhar paralisado.
– É nossa vez! [Ani]
– Ei, vamos sair!! [Florinda]
– “Como nada é eterno”, diria a Mãe Natureza, “espero que o mais cedo
possível que você possa aprender a levantar-se sem mim!”. Ani comenta e olha
para o restante da sala com sua gente. Seus amigos se ajeitam para irem à praia,
mas Kalderash faz gesto para que permaneçam mais um pouco, e tranquiliza
todo mundo com estas palavras:
– Eu vejo... – e ele levanta o rosto para cima.
– Sim! [Ani]
– Eu vejo que Deus é a Natureza, e nós humanos somos da Natureza. Assim,
se tudo faz parte de uma ordem e ciclos, Deus é igualmente paz, vida ou
morte. – a câmera se aproxima dele, já em close – Deus é in natura, a vez e os
ciclos que são dos mesmos processos... Talvez até ser Deus seja o maior
desejo humano... digo, desejo dos que se enganam... ser Ele, tal qual; como
não são, nunca serão... não lhe entendem, repudiam, inventam ou zombam...
como à Natureza, como a si mesmos.
– E sempre tem quem fuja de discutir isso. [Cabisbaixo]
– Preferem que haja afastamento de diálogos – Florinda comenta, e nesse
ensejo Kalderash percebe que:
– O Deus dele! Dela? – ele expõe e a câmera passeia pelas expressões dos
amigos – Quantos mitos e deuses!! Qual é? Mas Deus não é para todo
mundo? Botam essas roupinhas, desfilam com livrinhos e saem falando
baboseiras achando-se melhores que os outros... Não sabem o que é religião,
não sabem o que é espiritualidade. Lamentável. É falta de informação ou o
quê?
– “Não me peça desculpas por esbarrar ou tocar em mim”, diria a Natureza,
adiciona Florinda. “Enquanto ainda pensarmos como seres da mesma raça;
da afetividade que é mamífera e se basta ao virar um puro laço; enquanto isso
por aí o erro não vai correr solto.” E Florinda respira.
– Vamos ajudá-los. [Mánya]
– É mínimo, é nosso papel já que sabemos. [Mauri]
– Alcançamos... [Florinda]
– O que pretendermos. [Mudo]
– Sempre voltamos ao início de tudo – finaliza Kalderash.
– Amar é sem precedentes – fala Ani – se você não conhece, ou mesmo sente
isso; se você apenas tem paixões, dessas que te ligam e soltam mole, cuidado.

Saem juntos para a praia, Ani carrega em uma das mãos mais alguns incensos.
A lua cheia penetra suas almas!
“Capítulo final. A confissão”

– Amigos... – Kalderash começa, com a voz decidida, o rosto firme como se


fosse emoldurado. A noite da praia colora o rosto dos amigos também. Eles
estão de pé na areia, o vento leva aos poucos a fumacinha dos incensos. – a
ideia de virem até aqui foi dela – e aponta para a sorridente Ani –, mas sou eu
que tenho umas palavrinhas para vocês. Agradeço já agora e por todas as vezes
que estivemos juntos, eu devo essa mesmo! Não como um comerciante ou
mercador que fui, mas pela boa vontade e companheirismo de todos esses
anos. Errei em muitas coisas, sei até que vocês já tanto perceberam. Só que
não vou ficar me lamentando nem vim para pedir desculpas, eu quero é
mostrar; mostrar o que tirei dessa lição e mostrar meu peito aberto para sua
opinião. Primeiro sobre minha mania de vangloria e egoísmo, eu temo que
isso seja o mais chato de extirpar...
– Mas estamos aqui para isso, esse é nosso mundo – interrompe Florinda.
– Pois é, o planeta de expiação! – brinca o mudo.
– Vocês têm razão, e não era sem hora! [Kalderash]
– Seria complicado se você nunca quisesse ouvir ninguém – Ani enfim
comenta.
– Ou caso soubesse não tomasse partido – fala o amigo cabisbaixo. Nós
estamos na mesma, ou você acha que nunca pensamos sobre isso?
– É, desleixo tem limite – Florinda ri.
– Não se preocupa, esse foi o primeiro passo – enfatiza Ani.
– Questão de tempo, sei. Eu topo! [Kalderash]
– Muitas vezes na vida somos deparados com essas questões de tempo.
[Mánya]
– Imagina se a gente não se visse ou estivesse como esses da fixação das redes
sociais! Nem se veem, nem percebem as expressões. Como pode haver uma
resposta sem nos enxergamos cara a cara? – complementa o mudo.
– É uma febre. Mas isso passa. [Mauri]
– Mas é isso, meus amigos. Mais uma vez reunidos, eu só agradeço seu apoio.
Já respiro aliviado, sem nem perceber as coceradas estão passando. Digo
“sim”! Eu ainda tenho esperança, e a esperança é amiga da fé; por muito
tempo eu existi isolado dessas duas dádivas de Deus. Eu inclusive reneguei
algumas vezes as duas, mas sempre estiveram aqui, e agora a boa verdade é
devo exteriorizar; isso, me sinto feliz com vocês ao meu lado nesse momento
em que sinto cada vez mais minha fé e toda essa esperança em uma existência
melhor. É graças a Deus! – ao dizer isso, seus amigos igualmente sentiam paz,
juntos. – Aliás, que tal aproveitarmos e pegarmos a estrada amanhã. A van
está funcionado.
– É uma boa, acho apenas que precisamos pegar algumas roupas. Você sabe
como as meninas precisam se preparar – responde Florinda pelas amigas.
– Muito bem, me leva rapidinho lá em casa, Cabi – pede Mauri.
– Vão lá que eu, Flor e Mánya nos adiantamos. [Mudo]
– Então deixa que preparo umas comidinhas pra gente, avisa Ani.
– Vou arrumando a van e logo nos encontramos. É o de sempre, seguimos
até que a intuição nos diga para parar.
– Boa! [Mánya]

Corte para outra tomada, em que Mánya, Florinda, o mudo, Mauri, o


cabisbaixo, Kalderash e Ani brindam, e riem em exibição sadia de grande
alegria e contentamento. Suas mãos ficam esticadas à beira mar. Propõe
Kalderash:

– Saúde e prosperidade aos que têm sede, sinto que é o destino.


– Mauri se emociona aqui do meu lado?? Olhem! – avisa Florinda, em um
misto de espanto e contentamento.
– É a hora da gente. – Mauri confessa com os olhos úmidos.
– Como foi feito, sei lá, mas aconteceu – Florinda diz para mudo, e ele coloca
a mão no ombro dela. Mánya e o cabisbaixo comentam um ao outro algo
inaudível. Todos trocam olhares, há calma e amizade no ambiente.
– Vamos, vamos! – Mauri chama o cabisbaixo.
– Espera, esqueceram de tirar a sorte para qual direção? [Kalderash]
– Ih, é! [Mudo]
– 1 a 10 para Norte, 11 a 20 Sul, 21 a 30 Leste, 31 ou mais vamos para Oeste!
– se empolga Florinda, dizendo o mais rápido que pode.
– Vai, cada um casa uma mão, avisa Mauri.
– Doule um, doule dois, brinca Ani rindo. Mánya ri também, e é a primeira
a estender a mão. Em seguida, quase ao mesmo tempo todos a seguem e
estendem seus braços cada um com uma numeração apontada com as dedos.
Ani aponta dois dedos, Kalderash também; o mudo, Florinda e Mánya, como
que em uníssono apontam três dedos cada, e Mauri e o cabisbaixo apontam
um dedo cada um. A soma dá quinze.
– Eita, quinze! [Cabisbaixo]
– Vocês jogaram baixo! – brinca Mánya.
– Inconscientemente queriam ir pro Sul, fala Kalderash.
– Está bom, da outra vez fomos pra Oeste. Temos que balancear, diz o
cabisbaixo.
– Andem, que pela manhã saímos antes do Sol raiar. [Florinda]
– Isso. [Mauri]
– Em umas duas horas voltamos para aqui, avisa o mudo olhando para
Kalderash e Ani. Todos se despedem e saem contentes.

Corte para a estrada, é o final da madrugada; vemos o horizonte e uma música


começa. Lentamente, e após mais da metade dessa música ser ouvida
inteiramente aparece a van deles, aos poucos se delineando no final da pista.
Acompanhamos esse desenrolar. Ela passa enfim pela câmera frente a frente
e então há outro corte, ‘Vrumm'. Depois assistimos outras tomadas do passear
da van e seus ocupantes; o vento atiça seus cabelos e olhares; a jornada é suave;
é o momento que os sons de outra canção se iniciam, dessa vez mostrando o
interior do veículo e os amigos lá dentro. Eles conversam porém apenas a
música é ouvida. O dia está raiando por detrás dos morros. O carro segue e
acompanhamos o nascer do dia de forma compassada. Mesmo terminada a
música, ainda assim assistimos o panorama.

Corte final, é última cena de “Casa de praia”. A paisagem é insólita, é uma


localidade despovoada; a van está parada no acostamento e os ocupantes estão
no meio da pista, não passa carro algum, somente há a Natureza ao redor
deles. Também não há música, somente o som ambiente do lugar. Ani,
Kalderash, Mánya, Florinda, Mauri, o mudo e o cabisbaixo estão em círculo
e de frente uns para os outros, parecem calmos e em paz. Estão de pé olhando
para cima, é quase meio-dia e o Sol está prestes a chegar bem acima de suas
cabeças, se alinhando. Ouvimos de repente um ‘Tic, tic, tic’ continuo. São as
batidas de seus corações, soam tanto que se assemelham a tambores! A
câmera acompanha o movimento do Sol atentamente, chegando, chegando,
e no instante em que o ponteiro do relógio de pulso de Kalderash chega ao
meio-dia também o Sol se alinha acima de suas cabeças. Há um grande clarão!
Ouvimos um estrondoso sino disparar um ‘Tóumm’ ao mesmo tempo que
esse alinhamento se conclui. Enquanto o ressoar do sino se estende assistimos
o rosto de cada um deles ser atingido pelos raios luminosos em flashes
seguidos. Suas expressões se transfiguram como em milagre!! O foco então
volta para o Sol, cada vez mais claro. Corte para a tela branca. O filme se
encerra. Outra música pode ser ouvida e os créditos se descrevem de baixo
para cima.
“Primeira sugestão para o trailer do filme”

Usar imagens de diversas cidades costeiras em países diferentes e mesclar com


tomadas de praias e cenas doces de pessoas se divertindo. Corte para flashes
mais leves de Ani e Kalderash na cozinha e na varanda. Depois para as cenas
em que fumam e riem juntos, tudo apenas com uma música lenta de fundo.
Lá pela metade da música entra por cima a seguinte narração: “A namorada
disse: toda vez que se gabasse, ou quando tentasse ser o dono da verdade, o
namorado se coçaria. Que tenham amigos pra lhes acudir!” Por fim vemos os
amigos em sua viagem de carro e as imagens do final solar. Créditos do filme
e nome tomando a tela.
“Outra sugestão para o trailer do filme, esta mais longa”

Não há som algum. Depois Ani e Kalderash saem do restaurante. A seguir


estão em casa em suas cenas na cama e na varanda de frente para o mar,
papeando. Vemos também a reunião deles com Mauri, Florinda, Mánya e o
mudo e o cabisbaixo; depois vemos sua saída de carro pela estrada. Começa
a narração por cima de todas essas imagens a partir da saída do restaurante:
“Ani, a namorada de Kalderash, sentencia que toda vez que ele se gabasse, ou
quando tentasse ser o dono da verdade, o namorado se coçaria. (...) A
questão cabal é a igualdade, a chegar fixa pelo equilíbrio, finalmente! Será que
podem? (...) Depois chegam seus amigos para lhes acudir, gente comum em
pleno arrebatamento em torno da impessoalidade e desprezos da vida
contemporânea, frente ao contexto em que prevalece o cada um por si, e
assim pelo acaso. Mas não compactuam!” Outro corte, dessa vez para as cenas
da menina e do motorista no meio da manifestação e ouvimos mais essa
narração: ““Há uma imensa e pesada estrutura sobre a Terra e a Raça
Humana, na verdade, existem muitas dessas estruturas, a nos enfraquecer.
Apenas o “Amar (ser) sem precedentes” é suficiente? Seria isso então vencer?
É correto dizer ou será que podemos passar por tudo isso?”” Corte agora para
a parte da repórter sendo censurada por seu superior na cidade. Muitas
pessoas ao redor prestam atenção. Há outro fundo musical e vemos o chefe
dela gesticulando e a repórter fazendo pouco caso. Ela ouve tudo mas depois
sai de cena sem dar bola para aquilo. A música para junto. Corte final e
ouvimos estas palavras por cima das cenas praianas do começo do filme: “Saia
de perto de tudo o que é errado ou duvidoso, abandone as más companhias
e locais perigosos, pense em coisas honestas que elas vêm; isso, pratique! Não
espere mais que politicagens resolvam a questão violência, seja você uma
arma... só que do Bem.” O som termina. A última tomada do trailer é a
imagem reflexiva do Sol e dos personagens em círculo. Créditos do filme e
nome tomando a tela.
“Sobre o autor”

Paulo Vitor Grossi é escritor e músico espiritualista, publicou entre outros


títulos a novela “Sim & não”, além do argumento de “Amor, Ódio, Redenção
e Morte”. Pela Poesia, lançou “Cura”, “Servidão”, “A Conferência”.
“Cabezada”, “Esencias”, “Maneja” e “El Viajero Loco Ø § La May Madre”
são suas obras em espanhol. Participou como guitarrista e vocalista das bandas
Alice, íO, Instrumental Vox, Ummantra e SAEM

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“Sobre a ilustradora”

Marília Veloso é fotógrafa e editora da página “Pela Harmonia”. Assina


também o blog “À Zíngara”

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“Para você, que adquire este livro na forma física”

O preço (quando não, apreço!) terreno atribuído às obras do presente autor


apenas se justificam pelos meios de produção e sua posterior divulgação. A fé
em Deus, à Luz e ao Bem Comum, é e sempre será o intuito desta vida, por
enquanto durarem seus dias.
Agradeço a todos a oportunidade, e que nossos erros possam ser perdoados.
Que a Paz esteja em nós!
“Contracapa do livro”

A trama de “Casa de praia” começa quando Ani, a namorada de Kalderash,


sentencia que toda vez que ele se gabasse, ou quando tentasse ser o dono da
verdade, o namorado se coçaria. A questão cabal é a igualdade, a chegar fixa
pelo equilíbrio, finalmente! Será que podem? Depois chegam seus amigos
para lhes acudir, gente comum em pleno arrebatamento em torno da
impessoalidade e desprezos da vida contemporânea, frente ao contexto em
que prevalece o cada um por si, e assim pelo acaso. Mas não compactuam!
Atos I Casa de praia Paulo Vitor Grossi © 2018

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