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Villa-Lobos
(quase)
desconhecido
Análise de peças musicais, em especial
as sinfonias, revela o complexo processo
de criação do compositor brasileiro
C
om centenas de músicas catalogadas, além de poe-
mas sinfônicos e concertos para diversos instrumen-
tos e balés, o compositor e maestro Heitor Villa-
-Lobos (1887-1959) teve sua trajetória consagrada
por obras que evidenciam elementos da identidade
nacional, entre eles ritmos afro-brasileiros e alusões a cultu-
ras indígenas. No entanto, um novo aspecto da produção do
autor carioca, que também compôs 11 sinfonias, três óperas e
18 peças para quarteto de cordas, começa a se tornar conheci-
do. E envolve exatamente obras em que esses elementos não
prevalecem, como mostram os resultados de dois projetos de
pesquisa recentes.
O primeiro deles, Villa-Lobos, um compêndio – Novos desafios
interpretativos (Editora da UFPR, 2017), livro com ensaios de
diversos pesquisadores, revela a complexidade dos processos
de composição do artista, enquanto o segundo, o resgate e a
gravação integral de suas sinfonias pela Orquestra Sinfônica
do Estado de São Paulo (Osesp), coloca em circulação um con-
junto musical praticamente esquecido. “Villa-Lobos criou suas
obras a partir de um processo complexo, que combina
elementos da música popular brasileira com a tradi-
Museu Villa-Lobos
S
artista compunha sem técnica e rigor, e a alles explica que parte da ideia
de compositor intuitivo, presente no ima- de que Villa-Lobos não tinha for-
ginário popular. Tais visões aparecem, mação técnica advém do fato de
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por exemplo, no documentário Índio de ele não ter concluído estudos formais.
casaca, produzido pela Rede Manchete Outros compositores brasileiros, como
em 1987 e dirigido pelo jornalista Roberto Carlos Gomes (1836-1896), chegaram a
Manuscritos das Feith. O filme contém um depoimento de realizar estudos na Europa. Suas par-
sinfonias (acima e Antônio Carlos Jobim (1927-1994), rela- ticipações em rodas de choro no Rio
abaixo) e versão da
tando encontros com Villa-Lobos, quan- de Janeiro também contribuíram para
fotos 1 Centro de Documentação Musical da Osesp 2 e 3 Museu Villa-Lobos 4 AFP PHOTO PIC / ARCHIVES -N / B-PIG / AFP
partitura (ao fundo)
após edição do este compunha partituras enormes, reforçar essa concepção. “No entanto,
ao mesmo tempo que fumava charuto, como autodidata, ele estudou a fundo
escutava sinfonias com a TV ligada e uma partituras de compositores europeus,
soprano e um pianista ensaiavam na sala como as do francês Claude Debussy
de seu pequeno apartamento. Jobim lem- [1862-1918] e do russo Igor Stravinsky
bra que, mesmo nesse ambiente caótico, [1882-1971], ao mesmo tempo que vi-
era possível observá-lo abstraído em seu venciou o universo da música popular,
processo de criação. Em certo momen- ao tocar não apenas nas rodas de choro,
to, o narrador do documentário diz que mas também com seresteiros”, observa.
Villa-Lobos era genial quando compunha Para Salles, a experiência com os músi-
intuitivamente, mas, quando se guiava cos que tocam choros e serestas fez parte
pela razão, sua música soava irregular. do processo de aprendizagem do autor e
“O próprio Villa-Lobos colaborou para foi incorporada em seus procedimentos
propagar essa ideia do compositor que de composição, combinando com o co-
cria impulsionado pela intuição”, avalia nhecimento que ele detinha da música
o musicólogo Manoel Aranha Corrêa do clássica europeia. Um dos elementos
Lago, membro da Academia Brasileira que permitem comprovar o apuro téc-
de Música (ABM). O livro contesta es- nico de suas composições é o conceito
sa ideia ao mostrar a sofisticação de seu de simetria, que aparece em diferentes
processo criativo. trabalhos, inclusive nas sinfonias. “Villa-
Nahim Marun, pianista e professor -Lobos se preocupava em criar estrutu-
do Instituto de Artes da Universidade ras musicais equilibradas ritmicamente
Estadual Paulista (IA-Unesp), campus e harmonicamente, da mesma forma que
de São Paulo, lembra que obras como a compositores europeus formados em
3 série de nove bachianas brasileiras e os conservatórios”, explica Salles.
U
m dos erros identificados envolve
passagens em que vários instru-
mentos tocam a mesma melodia.
Quando a página da partitura muda, um
deles desaparece da melodia. “Isso sig-
nifica que houve um erro de transcrição
para aquele instrumento por parte de
quem estava copiando o trabalho. Fa-
zendo um paralelo com a literatura, é co-
mo se uma frase fosse cortada ao meio”,
explica Nestrovski. Além das correções
feitas pelos maestros, nos ensaios os mú-
sicos também indicaram tudo que não fa-
zia sentido envolvendo acordes,
Manuscrito da conexões entre notas e a con-
Suíte sugestiva,
tinuidade de melodias. As gra-
uma das peças
mais experimentais vações das sinfonias só foram
1 do brasileiro possíveis depois da correção
de novos erros, como proble-
cia de alusão direta a elementos da mú- mas de unidade, sonoridade e dinâmica,
sica popular brasileira, como também a percebidos após três ou quatro apresen-
inúmeros erros nas partituras e à ampla tações. Sozinha, a análise das partituras
estrutura de instrumentos necessários não permitiu identificar tais falhas.
em suas performances, as 11 sinfonias de As partituras editadas estão agora dis-
Villa-Lobos ganharam nova vida com o poníveis, para aluguel, no site da ABM.
projeto coordenado pelo maestro Isaac Villa-Lobos Neves, da Osesp, conta que a editora
Karabtchevsky e pelo Centro de Docu- francesa Max-Eschig detém os direitos
mentação Musical (CDM) da Osesp, di- combinava de uso de algumas partituras – entre elas
rigido pelo também maestro Antonio das sinfonias 1, 8, 9, 10, 11 e 12 – até 2029,
Carlos Neves. Na iniciativa, a Osesp re-
elementos da quando se tornarão de domínio público.
visou e editou as partituras, apresentou- cultura popular Apesar disso, a editora revisou apenas
-as em concertos e gravou integralmente parcialmente os manuscritos feitos pelo
todo o conjunto musical. Antes dessa brasileira com compositor e sua última mulher, Armin-
empreitada, apenas a Orquestra da Rá- da Neves de Almeida, a “Mindinha”, que
dio de Stuttgart, regida por Carl Saint a tradição da o ajudava a copiar as notas. A Academia
Clair, havia gravado as sinfonias, entre Brasileira de Música, no Rio de Janeiro,
música clássica
fotos 1 Museu Villa-Lobos 2 HARCOURT / AFP
F
lávia considera que as sinfonias per-
mitem ilustrar o apuro técnico de
Villa-Lobos, na medida em que fize-
2 ram parte de um projeto de composição
de longo prazo, iniciado em 1917 e con-
cluído poucos anos antes da sua morte.
forma como as melodias se desenvol- por denominar suas obras como quarte- “As obras possuem coerência entre elas
vem, “expressando um certo espírito da tos ou sinfonias significa que elas apre- e foram criadas de maneira articulada”,
Belle Époque”. “A segunda sinfonia con- sentam caráter universal e não local”, reforça. Salles, da USP, avalia que o tra-
tém uma valsa no segundo movimento”, destaca. A partir desse projeto coorde- balho da Osesp com as sinfonias propi-
exemplifica. Já as últimas, escritas após nado pela Osesp, avalia Lago, a tendên- ciará novos estudos acadêmicos, além de
1945, contêm linguagem característica e cia é que as sinfonias sejam executadas estimular pesquisas sobre outros traba-
amadurecida do compositor, na qual ele com mais frequência em todo o mundo. lhos menos conhecidos do compositor,
combina influências europeias de manei- Além disso, a gravação das sinfonias de- como os quartetos. “Uma das obras mais
ra mais sutil com elementos da cultura ve estabelecer novo padrão para outras experimentais de Villa-Lobos, a Suíte
popular, principalmente nos movimentos orquestras interpretarem as peças, uma sugestiva, de 1928, conta com apenas
lentos. “Nas sinfonias, a identidade bra- vez que foram executadas por maestros uma gravação conhecida, feita por uma
sileira não é tão explícita ou tematiza- e músicos majoritariamente brasileiros, orquestra finlandesa. Ela é apenas uma
da. É uma música mais intelectual, com que não apenas detêm conhecimento do das muitas músicas esquecidas de seu
menos alusões a elementos da cultura repertório de Villa-Lobos, mas também repertório que merece ser redescober-
popular”, explica Nestrovski. da linguagem musical nacional, incluin- ta”, conclui. n Christina Queiroz
Corrêa do Lago, da ABM, concorda do os ritmos e as melodias utilizadas em
que as sinfonias ficaram relegadas a um choros, sambas e serestas.
segundo plano por não conterem ele- Para Flávia Camargo Toni, professora
Livro
mentos tão evidentes de brasilidade, e pesquisadora do Instituto de Estudos
Salles, P. de T. e Dudeque, N. (org.). Villa-Lobos um
a não ser a décima sinfonia, intitulada Brasileiros (IEB-USP) e na ECA, as sin- compêndio: Novos desafios interpretativos. Curitiba:
Ameríndia. “Quando Villa-Lobos optou fonias são menos conhecidas provavel- Ed. UFPR, 2017.