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MOÇAMBIQUE ESTADOS UNIDOS ENTREVISTA ESPECIAL
CAMPONESES ENFRENTAM COMO PAPAI ME OS DESEJOS E ANSEIOS
AGRONEGÓCIO BRASILEIRO COLOCOU EM HARVARD DE ELZA SOARES
POR STEFANO LIBERTI POR RICHARD D. KAHLENBERG POR GUILHERME HENRIQUE
LE MONDE
BRASIL
diplomatique
2 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
Capachos europeus
POR SERGE HALIMI*
s súplicas e as manifestações de
EDITORIAL
Enfrentar
a barbárie
POR SILVIO CACCIA BAVA
© Claudius
governo Temer não mede con- A aposta de que podem fazer tudo A disputa pela apropriação da ri- são buscas coletivas de defesa dos bens
CAPA
golpe fracassou em construir mento das desigualdades, tampouco Outra faceta negativa da recupera- transportes que desabasteceu o país
emprego e renda, o que se reverte em complexo industrial da saúde, no qual FIGURA 1. NÚMERO DE OCUPADOS INFORMAIS E CONTRIBUIÇÃO PARA A VARIAÇÃO DO NÚMERO DE
mais consumo, investimento e renda. setores prestadores de serviço, como OCUPADOS INFORMAIS (MÉDIA MÓVEL 4 TRIMESTRES)
O investimento social, como segun- hospitais, ambulatórios, serviços de
do “motor” do crescimento, tem um diagnósticos e tratamentos, articu-
enorme efeito dinâmico a curto prazo lam-se com dois principais setores in-
por meio dos multiplicadores de gasto e dustriais: 1) a indústria de base quími-
da geração de empregos, sendo, portan- ca e biotecnológica, que fornece
to, um vetor de saída para a atual crise fármacos, medicamentos, vacinas, he-
econômica. Mas também tem amplos moderivados, reagentes para diagnós-
efeitos positivos sobre o crescimento ticos e equipamentos; e 2) as indús-
econômico a longo prazo, por meio da trias de base mecânica, eletrônica e de
melhora da qualidade de vida das pes- materiais, que fornecem equipamen-
soas e da produtividade do sistema e de tos mecânicos e eletrônicos, próteses e
uma redistribuição de renda e riqueza. órteses e materiais de consumo.
São trabalhadores que demoram No eixo de saneamento também
menos tempo para ir e voltar do traba- ocorrem encadeamentos produtivos
lho, com serviços de transporte de importantes por meio dos investimen-
maior qualidade. Trata-se de uma for- tos sociais. Além de consideráveis efei-
ça de trabalho com mais saúde, educa- tos multiplicadores de emprego, o in-
ção, lazer e cultura, decorrentes de vestimento em saneamento possui
uma maior oferta de serviços sociais. fortes encadeamentos diretos e indire- Fonte: Elaboração própria com base na Pnad Contínua.
Por meio da expansão da infraes- tos com materiais elétricos, química e
trutura social pode-se ainda diversifi- serviços de informação.
car a estrutura produtiva e repensar a Considerando o fornecimento de FIGURA 2. PRINCIPAIS MOTORES DO DESENVOLVIMENTO PARA UM PROJETO SOCIAL
tradicional concepção de política in- água e esgoto, temos grupos tecnológi-
dustrial como política voltada à promo- cos que envolvem o fornecimento de
ção de setores, empresas e tecnologias bens e serviços em torno de bombea-
tidas como chave para a modernização mento, processos físicos e químicos de
das forças produtivas e para a aproxi- tratamento, recuperação e reúso da
mação da fronteira tecnológica. Uma água, controle de odores e disposição de
nova política para a estrutura produti- lodos, todos com forte potencial deman-
va pode se basear na formação de eixos dante de novas tecnologias. A tendência
voltados para “missões orientadas à so- tecnológica é que a médio prazo tenha-
lução de problemas históricos da socie- mos cada vez mais estações de trata-
dade brasileira”. mento que contarão com sistemas auto-
Não se trata de reinventar a política matizados, bioprocessos e biofiltros,
industrial e outras políticas para o se- biorreatores com membranas e tecnolo-
tor produtivo, e sim de utilizar a imen- gias voltadas à reutilização dos lodos.
Fonte: FAGNANI, E. et al. Desenvolvimento social e estrutura produtiva. Disponível em: <http://pedrorossi.org/
sa carência de infraestrutura social Portanto, não se trata de reinven-
wp-content/uploads/2018/03/DesenvolvimentoSocialeEstruturaProdutiva.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
para garantir maior apoio político, tar setores prioritários nem trajetó-
ampliação da escala produtiva de par- rias e paradigmas tecnológicos. Pelo
te da indústria nacional e aumento do contrário, defende-se que é possível FIGURA 3. ARTICULAÇÃO ENTRE DEMANDAS SOCIAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIVERSIFICAÇÃO PRODUTIVA
encadeamento de importantes setores criar condições para a promoção de
industriais no Brasil. empresas nacionais em setores dinâ-
Colocando em exemplos práticos, micos do ponto de vista tecnológico,
podem-se sugerir eixos das políticas porém com diferenças significativas
públicas em torno dos seguintes seto- sobre a forma de execução das políti-
res: mobilidade urbana, saneamento cas e cobrança dos atores envolvidos.
básico, tecnologia verde, habitação A proposta se dirige para a mudança
popular, saúde – em particular a ca- da lógica das políticas pelo lado da
deia produtiva em torno do SUS – e demanda, sobretudo no sentido de
educação, além de outros eixos volta- fornecer maior legitimidade às políti-
dos para as especificidades regionais, cas para o setor produtivo.
como desenvolvimento das atividades Por fim, a agenda econômica neoli-
agropecuárias do Semiárido e desen- beral institucionalizada pelo golpe
volvimento sustentável da Amazônia apresenta resultados desastrosos. Em
(incluindo a expansão do mapeamen- pouco tempo perdeu credibilidade e
to do genoma da região amazônica), viabilidade eleitoral. O momento pede
entre outros a serem elencados. o debate de uma agenda alternativa
Nesse sentido, a ideia básica das que legitime a redução da desigualda-
políticas produtivas e tecnológicas de e a infraestrutura social como car-
orientadas por missões é promover a ros-chefe do desenvolvimento. Essa
diversificação do setor produtivo por agenda tem muito mais aderência en- Fonte: FAGNANI, E. et al. Desenvolvimento social e estrutura produtiva. Disponível em: <http://pedrorossi.org/
meio das demandas sociais específi- tre a população brasileira do que a wp-content/uploads/2018/03/DesenvolvimentoSocialeEstruturaProdutiva.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
cas, conforme ilustra a Figura 3. Ou agenda neoliberal, a julgar pelas pes-
seja, a articulação de uma ampla po- quisas que mostram que 80% dos bra-
lítica orientada pela demanda possi- sileiros preferem melhores serviços redução da desigualdade, o provimen- beral para além de trágico aumenta a
bilita reconstruir a estrutura de ofer- públicos à redução de impostos; sete to de saúde, educação... Portanto, o possibilidade histórica de construir e
ta brasileira e fornecer meios para em cada dez brasileiros são contra as Brasil tem todas as condições de reto- colocar em prática esse projeto.
sua modernização. privatizações; a maioria dos brasilei- mar o desenvolvimento e radicalizar
Por exemplo, a saúde movimenta o ros acha que o Estado deve ter respon- seu caráter social e distributivo. Já o *Pedro Rossi e Guilherme Mello são profes-
que Carlos Gadelha conceitua como sabilidades como o bem-estar social, a fracasso da alternativa golpista/neoli- sores do Instituto de Economia da Unicamp.
6 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
EMENDA CONSTITUCIONAL 95
O
número de pessoas em situação
de extrema pobreza no país
passou de 13,34 milhões em
2016 para 14,83 milhões em
2017, o que signiica um aumento de
11,2%, de acordo com levantamento
da LCA Consultores, com base em mi-
crodados da Pnad Contínua, divulga-
da pelo IBGE. O estudo considerou co-
mo pessoas em extrema pobreza
aquelas com renda familiar de até R$
136 mensais em 2017, linha de corte
adotada pelo Banco Mundial para paí-
ses de desenvolvimento médio e alto.
O avanço da pobreza é um dos
grandes efeitos tanto da recessão eco-
nômica quanto das medidas de auste-
ridade adotadas para lidar com ela.
© Tulipa Ruiz
© Alpino
que alardeiam suas consequências
mais óbvias – redução do emprego, da
renda e do consumo –, as tais “medi-
das de austeridade” não aparecem co-
mo agravantes dessa situação de crise,
e sim como solução. lhista, a reforma previdenciária, as pri- sileiros chegou a R$ 549 bilhões em de um ganho de um setor econômico
Ora, além dos problemas econô- vatizações e a reforma administrativa. 2017, um crescimento de 13% em rela- especíico ou da classe mais rica, man-
micos e da queda do emprego, impac- Assim, ainda que o Brasil esteja so- ção ao ano anterior. Ao mesmo tempo, tendo o restante da população no mes-
tam a pobreza os signiicativos cortes frendo com a recessão econômica os 50% mais pobres do país viram sua mo patamar de pobreza ou em situa-
orçamentários de políticas públicas desde 2015, as decisões políticas que fatia da renda nacional ser reduzida ção pior. Foi isso que ocorreu em 2017
essenciais para a proteção social. Ao seguiram a cartilha da austeridade – ainda mais: de 2,7% para 2%, segundo no Brasil, com o aumento do PIB ad-
contrário do que vendem os governos sendo a Emenda Constitucional 95 relatório da Oxfam Brasil.1 Em 2017, a vindo da expansão do setor agrope-
neoliberais que sustentam o “mito da (Teto dos Gastos) sua medida-símbolo parcela dos 5% mais pobres da popu- cuário, extremamente mecanizado,
austeridade”, segundo o qual um con- – aprofundaram a situação de crise e lação brasileira teve um rendimento concentrado, com pouco impacto no
trole maior dos gastos do governo por conduziram ao atual cenário de: médio real de R$ 40 por mês, queda de emprego e na renda. Já a queda da in-
si só solucionaria crises, o que obser- • Aumento da taxa de desemprego: a 18% em relação ao ano anterior. No ca- lação foi decorrente da atividade eco-
vamos é um aprofundamento da desi- desocupação média em 2017 icou so da parcela 1% mais rica da popula- nômica em baixa, com redução do
gualdade e da vulnerabilidade social. em 12,7%, a maior taxa registrada ção, esse rendimento encolheu menos, consumo das famílias, pressionadas
Isso porque o “corte de gastos” só desde 2012. São mais de 13 milhões com queda de apenas 2,3% e um ga- com endividamento e desemprego.
acontece no lado mais fraco. Não ve- de trabalhadoras e trabalhadores nho médio mensal de R$ 15.504, ainda
mos, por exemplo, o governo cortando sem emprego; segundo dados da Pnad Contínua tra- TETO DOS GASTOS
despesas inanceiras – que para 2018 • Fechamento de postos de trabalho balhados pela LCA Consultores. O estudo “Direitos humanos em
têm dotação orçamentária autorizada com carteira assinada: as ocupações A priori, essas informações pare- tempos de austeridade”, elaborado pe-
de 54% do orçamento da União, supe- criadas no período foram informais, de cem contrastar com os indicadores lo Instituto de Estudos Socioeconômi-
rando o montante destinado às políti- baixa remuneração e ganho instável. O macroeconômicos que estão sendo cos (Inesc), pelo Centro para Direitos
cas sociais e aos investimentos. país perde, em média, 1 milhão de pos- utilizados pelo governo de Michel Te- Econômicos e Sociais (CESR, na sigla
As tais medidas de austeridade têm tos com carteira assinada por ano, ain- mer para indicar um cenário artiicial- em inglês) e pela Oxfam Brasil, mostra
implicações na proteção social em de- da segundo a Pnad Contínua do IBGE; mente otimista, com o crescimento de os efeitos perceptíveis depois de ape-
corrência de cortes orçamentários de • Queda real do salário mínimo: uma 1% do PIB em 2017, após dois anos de nas um ano em vigor da Emenda Cons-
políticas públicas essenciais. Impactam vez que seu reajuste foi realizado abai- retração, e inlação em 2,95%. titucional 95, completado em dezem-
ainda o emprego, a renda e o consumo, xo da variação da inlação; Entretanto, o aumento do PIB não bro de 2017. Conhecida como Teto dos
por causa da adoção de políticas restri- • Ampliação das desigualdades: o pa- necessariamente implica redução da Gastos, a emenda é considerada a mais
tivas de direitos, como a reforma traba- trimônio somado dos bilionários bra- pobreza, uma vez que ele pode resultar grave das medidas de austeridade ado-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7
tadas no país e no mundo, congelando nos próximos anos e ultrapassam os que volte a tributar lucros e dividen- Juan Pablo Bohoslavsky – especialista
em termos reais os gastos primários setores abordados no mencionado es- dos a 35% nas rendas mais altas. Tal independente da ONU para dívida ex-
do governo federal por um período de tudo. Outras pesquisas e reportagens medida poderia gerar outros US$ 5,6 terna, finanças públicas e direitos hu-
vinte anos. também revelam dramáticas conse- bilhões e reduzir a desigualdade em manos –, que estava agendada há qua-
Desde que anunciou as medidas de quências da austera EC 95. 4,3%. Isso porque a atual composição se um ano e teria como um de seus
austeridade, que conformariam o “no- A mortalidade infantil, por exem- da carga tributária brasileira faz que a objetivos avaliar os primeiros impac-
vo regime fiscal”, o governo brasileiro plo, cresceu 11% para crianças entre 1 desigualdade no Brasil mude muito tos nos direitos humanos da Emenda
vem desmantelando as instituições mês e 4 anos de idade, atingindo o pa- pouco com o atual sistema de impos- Constitucional 95. O especialista está
que asseguram a igualdade de gênero. tamar de 12,7 mortes por mil nascidos tos e transferências sociais. Em outras desenvolvendo um documento com
Entre 2014 e 2017 houve um corte de vivos em 2016, segundo dados do Mi- palavras, a capacidade redistributiva “princípios orientadores para avaliar
58% do orçamento destinado ao pro- nistério da Saúde, consolidados pela da política fiscal brasileira é muito os impactos nos direitos humanos das
grama de enfrentamento da violência Fundação Abrinq. baixa – não apenas em comparação políticas de reforma econômica”. O
de gênero e de promoção da autono- Mais de 170 mil brasileiros, com aos países da OCDE, mas também em governo brasileiro insiste em dizer
mia econômica das mulheres. E mais: idade entre 19 e 25 anos, abandona- relação a alguns países latino-ameri- que não foi cancelamento, mas mero
o estudo mostra que, para cada R$ 10 ram a graduação em 2017. A saída da canos, como mostrado no Fiscal Mo- adiamento em razão da mudança do
cortados do orçamento das políticas graduação passou de 5% entre 2013 e nitor 2017 do FMI. ministro dos Direitos Humanos. En-
para as mulheres entre 2015 e 2016, os 2016 para 47,8% em 2017. Essa queda tretanto, três meses depois, ainda não
pagamentos do serviço da dívida au- brutal deve-se, em grande parte, à di- ofereceu nova data para a vinda de
mentaram em R$ 1.350. minuição da renda dos estudantes em Bohoslavsky ao Brasil.
Em 2016 já eram 28% menos servi- decorrência do desemprego – deles e A previsão de crescimento As limitações do modelo e os efei-
ços disponíveis para atender as mulhe- de seus pais – e da redução do finan- do PIB é menor com tos adversos da austeridade fizeram o
res em situação de violência, deixando ciamento estudantil pelo governo. Em ela do que sem ela, e a próprio FMI, famoso pela defesa que
sem assistência muitas mulheres vio- 2017, foram apenas 98,9 mil contratos fazia dessas medidas, rever seu posi-
lentadas. Por exemplo, o governo pro- do Fundo de Financiamento Estudan-
previsão de resultado cionamento e, no documento Fiscal
meteu construir unidades do projeto til (Fies) contra 732,7 mil em 2014, co- fiscal com ou Monitor de 2018, convocar os países a
Casa das Mulheres Brasileiras – que vi- mo informou reportagem do Valor sem a EC 95 é evitar políticas pró-cíclicas, como é o
sa à construção de um espaço físico pa- Econômico (11 abr. 2017). praticamente igual caso da EC 95, durante períodos de cri-
ra o fornecimento combinado de servi- se fiscal. O fundo argumenta que polí-
ços especializados para vítimas de MEDIDAS ALTERNATIVAS ticas contracíclicas poderiam produ-
violência – em 25 capitais brasileiras até A EC 95 é ainda ineficiente, isto é, zir melhores resultados, por meio do
2019. Porém, apenas três dessas casas não cumpre sequer os propósitos pro- Ao desconsiderar alternativas às investimento público em proteção so-
estão abertas e nenhuma nova foi cons- metidos para sua aprovação. A previ- medidas de austeridade, o Brasil des- cial e infraestrutura, que poderiam ser
truída em 2017, com a execução do pro- são de crescimento do PIB é menor respeitou normas internacionais de financiados com tributação progressi-
grama ficando bem abaixo da meta. com ela do que sem ela, e a previsão de direitos humanos, posto que, de acor- va e pelo crescimento decorrente dos
Já o Programa Farmácia Popular, resultado fiscal com ou sem a EC 95 é do com o direito internacional, a investimentos feitos, por causa dos
que chegou a 80% dos municípios bra- praticamente igual, conforme estudo margem de autonomia dos Estados efeitos multiplicadores dos investi-
sileiros e atendeu mais de 38 milhões de Antônio Albano.2 para responder a crises econômicas mentos sociais e da redistribuição de
de pessoas, também está ameaçado Também se calcula que com a EC não é absoluta. Para estarem de acor- renda na economia nacional.
pela Emenda do Teto dos Gastos. Uma 95 o gasto primário cairá de 20% para do com essas normas, as medidas de Definitivamente não é o que ocorre
importante política social do Brasil 12% do PIB3 entre 2016 e 2026. Isso afe- consolidação fiscal devem: ser tem- no Brasil nos dias de hoje. O cenário
para promover o direito de acesso a tará principalmente o orçamento de porárias, estritamente necessárias e projetado é de piora social, ambiental
medicamentos vem sofrendo cortes programas sociais essenciais para o proporcionais; ser não discriminató- e climática. A pobreza extrema, por
desde 2016, que levaram ao fechamen- combate à pobreza, a exemplo do Bol- rias; levar em consideração todas as exemplo, que diminuiu expressivos
to de 314 farmácias públicas, deixando sa Família e do PAA, e orçamento de alternativas possíveis, inclusive me- 75% entre 2005 e 2015, com conse-
somente 53 em operação. A medida investimentos, importante para a re- didas tributárias; proteger o conteú- quente saída do Brasil do Mapa da Fo-
afetou de modo desproporcional os cuperação econômica e o combate à do mínimo dos direitos humanos; e me em 2015, aumentou nos três anos
municípios mais pobres das regiões pobreza, ao ampliar vagas de emprego ser adotadas após cuidadosa consi- de austeridade.
Norte e Nordeste, que por falta de inte- e renda. Ambos passariam de 8% para deração e genuína participação dos De fato, o estudo do Inesc, CESR e
resse de mercado não contam com far- 3% do PIB. grupos e indivíduos afetados nos Oxfam Brasil demonstra como essa
mácias privadas em seus territórios. Além da celeridade no processo de processos de tomada de decisão. decisão de “novo regime fiscal” da EC
O “novo regime fiscal” do Brasil aprovação da emenda, que não contou Na realidade, com a EC 95, o Brasil 95 colocou em risco os direitos sociais
também pode aumentar significativa- com uma ampla discussão e consulta descumpriu todos os princípios elen- e econômicos básicos de milhões de
mente o número de pessoas em situa- da população, foram desconsideradas cados: em vez de ser temporária, a brasileiros, com destaque para os di-
ção de insegurança alimentar e nutri- medidas alternativas menos restritivas, emenda tem previsão de vinte anos de reitos à alimentação, à saúde, à assis-
cional. Cortes de 69% no orçamento algumas delas apontadas no referido duração; é desproporcional, por limi- tência social e à educação, ao mesmo
do Programa de Aquisição de Alimen- estudo “Direitos humanos em tempos tar apenas as despesas primárias e tempo em que exacerbou as desigual-
tos, com redução de 75% no número de austeridade”. O combate à evasão fis- deixar livres as financeiras; é discri- dades de classe, geração, gênero e ra-
de beneficiários, ameaçam anular os cal, por exemplo, poderia arrecadar o minatória, por atingir mais intensa- ça/etnia e entre as regiões do país.
avanços no campo que contribuíram equivalente a US$ 160,4 bilhões, o que mente os grupos mais vulneráveis da
para tirar o Brasil do Mapa da Fome da representa quase quatro vezes o déficit população brasileira e mais depen- *Grazielle David é assessora política do Ins-
ONU. Os agricultores familiares estão federal de 2016. Uma revisão dos incen- dentes das políticas públicas; não per- tituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
entre os mais afetados, assim como os tivos fiscais ou benefícios que o governo mite a proteção do conteúdo mínimo
povos e comunidades tradicionais e federal concede para empresas, os cha- dos direitos humanos por causa dos
os assentados beneficiados pela refor- mados gastos tributários, também po- excessivos cortes orçamentários e as 1 Esses e outros dados fazem parte do relatório “Re-
compensem o trabalho, não a riqueza”, lançado
ma agrária. deria ampliar o espaço fiscal. Eles são reformas liberalizantes propostas, co- pela Oxfam às vésperas da reunião do Fórum Eco-
No primeiro aniversário da EC 95, o ofertados sem transparência, monito- mo a trabalhista e a previdenciária; e, nômico Mundial 2018.
estudo do Inesc, CESR e Oxfam Brasil ramento e comprovação de seus efeitos, por fim, foi adotada sem avaliação pré- 2 “Uma crítica heterodoxa à proposta do Novo Regi-
me Fiscal”, Indicadores Econômicos FEE, Porto
mostra que a austeridade no Brasil, e seu montante gira em torno de R$ 250 via dos impactos que teria nos direitos Alegre, 2017.
além de seletiva, desrespeita a Consti- bilhões anuais, o equivalente a cerca de humanos e sem participação dos afe- 3 “Austeridade e retrocesso: finanças públicas e po-
tuição e coloca em risco décadas de 5% do PIB. tados na tomada de decisão. lítica fiscal no Brasil”, elaborado por iniciativa do
Fórum 21, Fundação Friedrich Ebert, GT de Macro
progresso social. É certo que os efeitos Outra opção seria colocar em prá- Como se não bastasse, o Brasil da Sociedade Brasileira de Economia Política
serão sentidos com maior intensidade tica uma reforma fiscal progressiva, cancelou de última hora a visita de (SEP) e Plataforma Política Social.
8 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
O
Brasil vem passando por um in-
tenso processo de desmonte do
Estado por meio de cortes nas
políticas públicas de proteção
social. Somam-se a isso a queda signi-
ficativa do investimento e o desempre-
go em massa. Ainda que os cortes te-
nham se iniciado no governo Dilma
Rousseff, no limiar de 2015, quando a
presidenta sucumbiu às pressões do
mercado financeiro e colocou um eco-
nomista ortodoxo no Ministério da Fa-
zenda, essa agenda é capitaneada e
aprofundada por um governo imerso
© Alpino
em escândalos de corrupção e que
chegou ao mais alto cargo da institu-
cionalidade política por meio de um
golpe parlamentar revestido de uma
faceta democrática. As medidas em
curso jamais passariam pelo crivo da
soberania popular, que se consubs- mais lenta nas últimas duas décadas. A pagos a mais nos benefícios previden- mero de famílias beneficiárias pagas
tancia no sufrágio universal e, portan- margem fiscal deverá atingir seu valor ciários. Entre as rubricas com queda foi de 14.165.038. Esse é o segundo
to, no voto. Elas acentuam o divórcio mínimo para efeito de funcionamento mais intensa está o PAC. O pacote de maior corte da história do programa.
entre a democracia representativa de dos ministérios e/ou operacionaliza- investimentos criado ainda no gover- O maior tinha ocorrido também na
massas e os interesses articulados e ção de políticas públicas já em 2019, no de Luiz Inácio Lula da Silva regis- gestão Temer, quando 543 mil famílias
politicamente organizados do capital quando devem ocorrer problemas para trou queda de 32,2% nos gastos em foram cortadas entre junho e julho de
financeiro. Os mecanismos do rentis- o cumprimento do Teto dos Gastos. Os 2017 – ou R$ 14,2 bilhões. Nessa rubri- 2017 (UOL Notícias, 1º maio 2018).
mo público e da dívida pública trans- resultados projetados apontam certa ca estão também as despesas relativas Entre as políticas de seguridade so-
formaram o Estado brasileiro em mais estabilidade das receitas líquidas em ao Minha Casa Minha Vida. O progra- cial (saúde, previdência e assistência
um vetor do aumento do patrimônio relação ao PIB, enquanto as despesas ma habitacional teve redução de 56,1% social), a saúde aparece como a princi-
dos mais aquinhoados.1 precisarão ajustar-se de 19,45% do PIB no ano, ou R$ 4,7 bilhões (Valor Econô- pal preocupação dos brasileiros, em
Para a burocracia econômica do em 2017 para 15,03% do PIB em 2030. mico, 2 fev. 2018). União, estados e mu- todas as pesquisas sobre insatisfação
governo parlamentar, blindada e insu- Caso o ajuste pelo lado dos gastos não nicípios restringiram tanto seus orça- da população, inclusive com os planos
lada das pressões democráticas, a via- ocorra, medidas alternativas com mes- mentos que o investimento público privados. Entre os motivos estão restri-
bilidade de curto prazo do Teto dos mo efeito fiscal terão de ser adotadas. A chegou a um dos menores patamares ções orçamentárias, falta de prioridade
Gastos Públicos (Emenda Constitucio- dívida bruta deve ainda avançar até da história. Nos doze meses encerra- política, grandes e pequenos proble-
nal 95, ou Novo Regime Fiscal), que li- 86,6% do PIB, em 2023, no cenário ba- dos em março, o investimento federal mas de gestão, questões legais e de
mitou os gastos sociais pelos próximos se-1 (básico), para então começar a totalizou R$ 30,2 bilhões – queda de agências reguladoras. Embora a saúde
vinte anos e instituiu a austeridade pe- cair paulatinamente (considerando-se 54% apenas na gestão de Michel Temer seja um problema crônico, o Teto dos
rene, depende não apenas da reforma que o ajuste fiscal seja mantido e apri- (Folha de S.Paulo, 20 maio 2018). Gastos Públicos e a incapacidade de
da Previdência, mas também de medi- morado), ainda segundo a Instituição O Ministério do Desenvolvimento estados e municípios ampliarem seus
das como limitar os reajustes dos salá- Fiscal Independente. Social (MDS) desligou 392 mil famílias investimentos na área criaram um ce-
rios dos servidores públicos e revisitar O corte total no grupo de despesas do programa Bolsa Família em abril, nário crítico em 2018. Mesmo com o fa-
as regras que corrigem o salário míni- incluindo o Programa de Aceleração um mês antes do reajuste de 5,67% to de terem sido antecipados 15% da
mo. Nesse sentido, segundo o Relatório do Crescimento (PAC), Minha Casa concedido a todos os beneficiários do receita corrente líquida da União para
de Acompanhamento Fiscal (RAF) de Minha Vida, subsídios e Fies foi de programa e anunciado em cadeia de a saúde, já neste ano o sistema “entrará
2018 da Instituição Fiscal Independen- 30,3% em relação a 2016. O valor da re- rádio e TV pelo presidente na noite do em colapso”, com a diminuição na ca-
te do Senado, publicado em maio, a dução é de R$ 25,6 bilhões, superior a dia 30 de abril. Segundo o MDS, o Bol- pacidade de atendimento e de leitos,
economia brasileira operou cerca de todo o aumento de R$ 17,7 bilhões da sa Família atingiu, em abril, 13.772.904 pois não há melhoria de gestão que re-
7,2 pontos percentuais abaixo de seu despesa com pessoal, a segunda maior famílias, que receberam benefícios solva um problema tão profundo e es-
potencial, no quarto trimestre de 2017. fonte de gastos federais verificados no com valor médio de R$ 177,71. O valor trutural. O valor gasto pelo país com
A recessão de 2014-2016 foi a mais in- ano passado. O montante cortado total transferido pelo governo federal saúde, porém, não é pequeno. Apesar
tensa, duradoura e com recuperação também é próximo aos R$ 32,6 bilhões foi de R$ 2,44 bilhões. Em março, o nú- de o desembolso público com o setor
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9
chegar a pouco mais de 3,9% do PIB, gados no país. O número de pessoas GRÁFICO 1. EVOLUÇÃO DA MARGEM FISCAL, PROXY DO GRAU DE LIBERDADE
quando se somam nessa conta os gas- desalentadas em relação ao emprego é DA POLÍTICA FISCAL PARA CORTES DE DESPESA A CURTO PRAZO (2018-2030)
tos privados, o financiamento sobe pa- de 4,6 milhões; 6,1 milhões de traba-
ra 9%. O percentual é idêntico ao da lhadores estão empregados, mas gos-
Itália e do Reino Unido e pouco abaixo tariam de trabalhar mais horas; e 5,3
do gasto por Alemanha e França, de milhões de pessoas estão em busca de
11% e 12%, respectivamente. Com um emprego há um ano ou mais.
PIB menor, é claro.2 Em quatro das cinco regiões, o per-
De acordo com a professora da UFRJ centual de empregados com carteira
Lígia Bahia, falta uma política de Esta- assinada está menor que no primeiro
do no tocante às prioridades da saúde, trimestre de 2017. No primeiro trimes-
uma vez que não estão sendo dadas res- tre de 2018, 75,4% dos empregados no
postas aos problemas de saúde dos bra- setor privado tinham carteira de traba-
sileiros, que têm péssimos indicadores lho assinada, 1,2 ponto percentual a
e tendência de piora por conta do perfil menos que um ano antes. As mulheres
demográfico e epidemiológico. Segun- permanecem minoria na população
do ela, toda a contribuição da Previdên- ocupada, uma vez que o nível de ocu-
cia Social foi retirada da saúde pelo mi- pação dos homens foi estimado em
nistro da Previdência Social, Antonio 63,6% e o das mulheres, em 44,5%, no
Britto, durante o governo Itamar primeiro trimestre de 2018. No primei-
Franco (1992-1995). Isso levou depois ro trimestre de 2012, o contingente dos
o ministro Adib Jatene a pedir recur- desocupados era de 7,6 milhões de pes- Fonte: Instituição Fiscal Independente (IFI)/Senado Federal.
sos do Fundo de Amparo ao Trabalha- soas, quando os pardos representavam
dor (FAT) para a área e a inventar a 48,9% dessa população, com brancos
Contribuição Provisória sobre Movi- (40,2%) e pretos (10,2%) a seguir. No GRÁFICO 2. TRAJETÓRIAS ATUALIZADAS PARA
mentação Financeira (CPMF). Na ver- primeiro trimestre de 2018, esse con- A DÍVIDA BRUTA DO GOVERNO GERAL (DBGG/PIB) – 2006/2030
dade, por decisão política sempre fo- tingente subiu para 13,7 milhões de
ram retirados recursos da saúde, seja pessoas e a participação dos pardos
no governo Sarney, Itamar, Collor, passou a ser de 52,6%; a dos brancos re-
FHC, Lula e Dilma.3 duziu para 35,2% e a dos pretos subiu
Ainda ligada aos números, outra para 11,6%. O número de desemprega-
distorção está no fato de que, apesar dos de 14 a 24 anos de idade cresceu
de receber a maior parte do financia- para 5,6 milhões de janeiro a fevereiro,
mento, o sistema privado atende me- 600 mil pessoas a mais em relação ao
nos de 25% da população. O que pode- fim do ano passado (+11,9%), ainda se-
ria refletir apenas privilégio revela gundo a Pnad Contínua.
também uma enorme ineficiência, Além do desemprego generaliza-
pois se estima que o desperdício de re- do, dados da Pnad/IBGE, compilados
cursos em todo o sistema varie de 15% pela Fundação João Pinheiro, indi-
a 30%. Apesar de render votos e algum cam que o déficit habitacional é de
auxílio à população, a maior parte dos pelo menos 6,3 milhões de moradias
hospitais espalhados por pequenas ci- em todo o país, sobretudo nas maio-
dades do país também é insustentável, res regiões metropolitanas: São Pau-
já que, com menos de setenta leitos, os lo e Rio (O Globo, 13 maio 2018). Mais
hospitais ficam inviáveis do ponto de de 11 milhões de brasileiros moram
vista econômico. Um grande desafio é em favelas, cerca de 34 milhões não Fonte: Instituição Fiscal Independente (IFI)/Senado Federal.
redimensionar essa malha ineficiente, têm acesso a água potável e 96% das
porque ter acesso a um posto de saúde cidades não contam com um plano passa o Brasil, aprofundada por um tor pelo Programa de Pós-Graduação em
não implica ter acesso à saúde.4 de transporte: essas são algumas das governo ilegítimo mediante a intensi- Sociologia Política da Universidade Estadual
O aprofundamento da austeridade estatísticas que mostram o tamanho ficação das políticas de austeridade e do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (PPGSP-
fiscal vem surtindo impactos funestos da distância entre a realidade do país seguida do mais lento ciclo de retoma- -UENF) e mestre e doutor em Ciência Políti-
sobre o tecido social da debilitada de- e as metas que se comprometeu a al- da da história. Na linha de reflexão do ca pelo Iesp/Uerj.
mocracia brasileira. Segundo dados cançar ao se tornar signatário, em sociólogo Wolfgang Streeck, o Brasil de
da Pnad Contínua do IBGE, no primei- 2015, juntamente com outros 192 Es- hoje vive uma antinomia entre o povo 1 Ver Ladislau Dowbor, A era do capital improdutivo:
ro trimestre de 2018 a taxa de subutili- tados, da Agenda 2030 da ONU. Com do mercado (capital financeiro/inves- a nova arquitetura do poder. Dominação financei-
ra, sequestro da democracia e destruição do pla-
zação5 da força de trabalho subiu para dezessete Objetivos de Desenvolvi- tidores) e o povo do Estado (cidadãos neta, Autonomia Literária, São Paulo, 2017; e Wan-
24,7%, o que representa 27,7 milhões mento Sustentável (ODS), desdobra- eleitores), na qual o capital deixou de derley Guilherme dos Santos, A democracia
de pessoas. Essa é a maior taxa de su- dos em 169 metas, a agenda estabele- influenciar a política apenas indireta- impedida: o Brasil no século XXI, FGV Editora, Rio
de Janeiro, 2017.
butilização na série histórica da Pnad ce avanços que os países devem fazer mente e passou a influenciá-la direta- 2 “Saúde na encruzilhada”, Valor Econômico, 16 mar.
Contínua, iniciada em 2012. O contin- em temas como erradicação da po- mente por meio do financiamento ou 2018.
gente de subutilizados também é o breza, desenvolvimento sustentável não do próprio Estado.6 Verifica-se, 3 Idem.
4 Idem.
maior da série histórica. Bahia de cidades, acesso a água limpa e sa- pois, um processo sem precedentes de 5 O conceito de subutilização – também conhecido
(40,5%), Piauí (39,7%), Alagoas (38,2%) neamento. De forma geral, o Brasil depreciação das políticas sociais em como desemprego ampliado – abrange trabalha-
e Maranhão (37,4%) apresentaram as está bem distante do cumprimento nome da austeridade fiscal e da redu- dores desempregados, subocupados por insufi-
ciência de horas (trabalham menos de quarenta
maiores taxas de subutilização; as das metas por diversas razões, entre ção da dívida pública, que acentua a horas semanais, mas gostariam de trabalhar mais)
menores taxas foram em Santa Cata- elas questões fiscais. Assim, o país contradição entre o capitalismo finan- e pela força de trabalho potencial (pessoas que
rina (10,8%), Rio Grande do Sul corre o risco de voltar ao Mapa da Fo- ceiro e a expansão da cidadania.7 não buscam emprego, mas estão disponíveis para
trabalhar).
(15,5%), Mato Grosso (16%) e Paraná me da Organização das Nações Uni- 6 Wofgang Streeck, Tempo comprado: a crise adia-
(17,6%). A taxa de desocupação do pri- das para a Alimentação e a Agricultu- *Carlos Eduardo Santos Pinho é pós-dou- da do capitalismo democrático, Actual, Coimbra,
meiro trimestre de 2018 no Brasil, di- ra (FAO), do qual havia saído em 2014 torando do Instituto Nacional de Ciência e 2013.
7 Sonia Fleury e Carlos E. S. Pinho, “Liquefação da
vulgada em 27 de abril, foi de 13,1%. (Valor Econômico, 15 mar. 2018). Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias rede de proteção social no Brasil autoritário”, Re-
Assim, há 13,7 milhões de desempre- Esta é a maior recessão pela qual e Desenvolvimento (INCT/PPED), pós-dou- vista Katálysis, v.21, n.1, p.14-42, jan./abr. 2018.
10 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
DITADURA
O ovo
da serpente
Essa nova avalanche de informações
torna necessário reabrir a polêmica
questão da anistia. Não se trata de
© Daniel Kondo
revanchismo, mas de um esforço para
reconstituir a história na medida em
que novos dados provenientes de
fontes norte-americanas permitem
uma revisão de qual foi realmente
o papel desempenhado pela cúpula
da ditadura militar
POR LÚCIO KOWARICK*
olsonaro é deputado federal por reitos humanos: tratava-se de uma po- das; mil músicas que tiveram o mesmo As declarações do deputado federal
Camponeses moçambicanos
derrotam o agronegócio
Os empresários do agronegócio do sul se parecem com os do norte: eles sonham com lucros fáceis cultivando culturas
comerciais em detrimento da agricultura familiar. Assim nasceu o projeto ProSavana, que une o Japão e o Brasil a Moçambique.
Entretanto, a inédita resistência de camponeses dos três Estados conseguiu interromper a operação
POR STEFANO LIBERTI*, ENVIADO ESPECIAL
trabalhadores, com contrato por tem- fundo ad hoc batizado Nacala, que su- ra os dois territórios se encontrem na fiam o governo. “Funcionários nos
po determinado ou indeterminado, postamente vai atrair US$ 2 bilhões de mesma latitude, a zona circunscrita convocaram para a sede do distrito
das grandes empresas e faz de Moçam- investimentos privados. O objetivo de- pelo ProSavana é muito mais fértil e, para falar de desenvolvimento. Eles fi-
bique uma plataforma central de pro- clarado do fundo é “gerar rendimentos portanto, mais importante para o zeram uma bela apresentação com
dutos agroindustriais a serem exporta- a longo prazo para seus investidores, campesinato local do que seu suposto projeções de imagens. Nós fizemos
dos para o mundo inteiro. Concebido estimulando o desenvolvimento eco- equivalente brasileiro. E, sobretudo, perguntas sobre a Agromoz, mas eles
em 2009 na cúpula do G8 em L’Aquila, nômico local e regional”. Paralela- ao contrário de Mato Grosso, que na não nos responderam. Então, não
Itália, durante as reuniões privadas en- mente, Maputo e Tóquio criam um década de 1970 não era muito povoa- abandonamos a área”, relata Mepo-
tre o primeiro-ministro japonês, Taro Fundo para a Iniciativa de Desenvolvi- do, ela é habitada por 5 milhões de teia. O distrito de Mutuali tornou-se,
Aso, e o presidente brasileiro, Luiz Iná- mento ProSavana a fim de “sustentar pessoas, em sua maioria pequenos desde então, o símbolo de uma contes-
cio Lula da Silva, o projeto pretende re- diferentes modelos de integração de agricultores que produzem boa parte tação que, ao longo dos meses, ganha
produzir uma experiência lendária: a pequenos agricultores”. dos alimentos consumidos no país. todo o país e ultrapassa rapidamente
da transformação, entre os anos 1970 e Em Moçambique, como em muitos as fronteiras nacionais.
1990, da savana tropical úmida de Ma- outros países da África, a terra perten-
to Grosso na principal região produto- ce ao Estado e não pode ser vendida. CAMPANHA INTERNACIONAL
ra de soja do planeta. Na época, a meta- “Eles se aproveitaram Essa prerrogativa, conferida na inde- “Tudo começou com uma viagem
morfose do Cerrado brasileiro, “a mais do fato de grande pendência, em 1975, é garantida pela ao Brasil”, conta Vunjane. Ao tomarem
importante zona de expansão agrícola Constituição de 1990. De acordo com a conhecimento do programa e de suas
do mundo”, segundo o pai da revolu-
parte da população lei, o governo concede às comunidades semelhanças com o que se passou em
ção verde, Norman Borlaug, foi realiza- aqui ser analfabeta ou aos indivíduos um “direito de uso e Mato Grosso trinta anos antes, as or-
da com a ajuda de engenheiros japone- e não entender exploração da terra”, ou Duat (“Direito ganizações moçambicanas decidiram
ses e um financiamento importante de muito o de uso e aproveitamento das terras”), se inteirar da questão por si mesmas.
Tóquio. A cooperação triangular do para cultivar suas machambas, peque- Em novembro de 2013, uma delegação
ProSavana se inspira nela, com o obje-
português.” nos lotes agrícolas. Nas zonas rurais, de cinco pessoas partiu para o interior
tivo de desenvolver o norte do país com porém, ninguém possui o Duat, um brasileiro. Os participantes voltaram
a ajuda de tecnologias brasileiras, con- documento cuja importância é às ve- em estado de choque. “Percorremos
fiando às empresas japonesas a comer- Esses planos de transformação e de zes subestimada pelos camponeses. centenas de quilômetros e só vimos
cialização dos produtos, principal- desenvolvimento rural são elaborados Portanto, pode acontecer de a terra megaextensões de soja. Nem um úni-
mente nos mercados asiáticos. bem longe dos pequenos agricultores mudar de mãos insidiosamente. co camponês, tampouco uma comu-
Desde seu lançamento, o projeto que vivem na região. “A primeira vez A comunidade de Wuacua, em tor- nidade rural”, lembra Abel Saída, da
recebeu os cumprimentos de influen- que ouvimos falar do programa foi em no de 15 minutos da estrada de Naka- Associação Rural de Ajuda Mútua
tes dirigentes mundiais. Em novem- agosto de 2011, por meio de uma entre- rari, por sua vez, tem muita consciên- (Oram). “Todo o território está desar-
bro de 2011, por ocasião do 4º Fórum vista dada pelo ministro da Agricultu- cia disso. Um dia, em 2012, funcionários borizado. Não há nenhuma forma de
de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda ra, Pacheco, a um jornal brasileiro”,8 do distrito vieram pedir aos habitantes vida, pois a utilização intensa de pesti-
em Busan, na Coreia do Sul, a secretá- lembra Jeremiah Vunjane, diretor da que assinassem documentos. Em tro- cidas e fertilizantes criou um deserto.
ria de Estado norte-americana, Hillary Acção Académica para o Desenvolvi- ca, eles lhes prometeram uma soma de A perspectiva de ver nossa terra trans-
Clinton, elogiou o esforço “dessas eco- mento das Comunidades Rurais (Ade- dinheiro e a realização de “projetos so- formada em uma paisagem vazia tam-
nomias emergentes que trabalham cru), uma associação de Maputo que ciais”. Mas tratava-se de outra coisa: a bém nos pareceu um pesadelo.” Um
juntas em busca de soluções para os dá suporte ao campesinato familiar. renúncia explícita ao Duat. “Eles foram documentário elaborado com base na
desafios comuns”. O magnata Bill Ga- “Foi um choque. Nosso governo ven- enganados. Disseram-lhes que iriam viagem e traduzido nas línguas locais
tes, que comanda diversos programas dia para o exterior alguma coisa sobre participar de um programa de desen- circula em Moçambique.9
de desenvolvimento na África por a qual eles nunca tinham falado no volvimento rural e os fizeram assinar “Decidimos passar para a ação,
meio da Fundação Bill e Melinda Ga- país!”, diz com indignação esse antigo documentos que eles não compreen- pois continuavam a não nos dar infor-
tes, o exalta como “exemplo de parce- jornalista com uma longa barba negra diam. Receberam uma recompensa mações”, explica o presidente da Unac
ria inovadora”.6 e eloquência de orador: “Essa entrevis- entre 4.500 e 6.000 meticais [de R$ 265 de Nampula, Costa Estêvão. Usando
Nos bastidores da “parceria inova- ta nos fez abrir os olhos. Fizemos pes- a 350] e foram forçados a se mudar”, diz com orgulho os símbolos de sua orga-
dora” atua a GV Agro, uma empresa de quisas e percebemos que se tratava de Mepoteia, indignado. Pouco depois, a nização, uma camiseta amarela e um
consultoria ligada à Fundação Getulio um programa de infraestrutura visan- Agromoz, uma empresa de capital mis- boné de beisebol, ele ataca violenta-
Vargas, think tank e escola de ensino do abrir as portas de nosso país para as to brasileiro e português, obteve uma mente o governo. “Não somos contra o
superior renomada no Brasil. A GV multinacionais do agronegócio”. Fazer concessão de 9 mil hectares, nos quais desenvolvimento, mas acreditamos
Agro é dirigida pelo ex-ministro da as pesquisas não foi muito complica- ela cultiva principalmente soja. “Eles que os agricultores devem ser envolvi-
Agricultura Roberto Rodrigues, que se do: no mesmo artigo, empresários se aproveitaram do fato de grande par- dos e consultados”, declara. “Em vez
considera o campeão do desenvolvi- brasileiros se declaravam entusiasma- te da população aqui ser analfabeta e disso, em primeiro lugar, eles arquite-
mento agroindustrial de toda a faixa dos com a ideia de emigrar para o país não entender muito o português.” Ho- taram o plano sem nos informar. Em
situada entre os dois trópicos na Áfri- africano, onde lhes prometiam a con- je, Wuacua é um povoado fantasma, seguida, tentaram impô-lo a nós, fa-
ca. Por outro lado, consultor da com- cessão de terras por preços irrisórios. rodeado de plantações da Agromoz. lando de desenvolvimento rural, mas
panhia de mineração Vale, que extrai “Moçambique é um Mato Grosso no Seguranças recrutados pela empresa tirando a terra daqueles que a cultiva-
carvão na região da província de Tete, meio da África, com terras gratuitas, não deixam ninguém se aproximar. A vam havia anos.” Sem perder o fio do
o ex-ministro parece eminência parda poucos obstáculos ambientais e cus- terra é nua, à espera de ser semeada. É discurso, ele cava buracos na terra
do ProSavana: é a ele que se deve o pa- tos de transporte de mercadorias para impressionante o contraste com a pai- com uma enxada e semeia milho em
ralelo entre Mato Grosso e o norte de a China muito mais baixos”, afirmou sagem de Nakarari, onde se estendem sua pequena machamba, a meia hora
Moçambique, assim como a lenda de Carlos Ernesto Augustin, presidente pequenas roças de feijão e mandioca, da estrada de Nampula, dizendo:
um desenvolvimento das monocultu- da Associação Mato-Grossense dos crescem mangueiras e por todos os la- “Quando finalmente vimos o plano di-
ras nessas “terras inexploradas”.7 É ele Produtores de Algodão (Ampa). dos bandos de crianças correm. retor, compreendemos que o que nos
também que organiza visitas à área Sem ligação direta com o ProSava- propunham era um verdadeiro conto
para possíveis investidores brasileiros. TERRA VIRGEM... HABITADA POR na, os negócios da Agromoz deixam do vigário”. Revelado por um vaza-
Deve-se ainda à GV Agro o plano dire- 5 MILHÕES DE PESSOAS claras, todavia, as intenções dos que os mento, o documento elaborado pela
tor do ProSavana e seu mecanismo de Por mais que o diga o discurso for- promovem. Em toda a região, a histó- GV Agro e por dois escritórios do Ja-
financiamento. Lançado com um in- jado pela GV Agro e repetido como um ria de Wuacua e da expropriação das pão, Oriental Consulting e NTC Inter-
vestimento inicial de US$ 38 milhões mantra pelos encarregados em pro- terras se espalha de boca em boca. national, confirma as inquietações
pelos governos brasileiro e japonês, o mover o projeto, o corredor Nacala Instruídos por essa experiência, os re- das organizações camponesas. Nele se
projeto deve ser sustentado por um tem pouco a ver com o Cerrado. Embo- presentantes dos camponeses desa- fala em “empurrar os agricultores das
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13
práticas tradicionais de cultivo e de De fato, os que promovem o gran- sonhava transformar o país em plata- ria histórica”, no entanto, mostra-se
gestão das terras para práticas agríco- dioso projeto de transformação do forma central do agronegócio africa- prudente: “O governo mudou o discur-
las intensivas baseadas em sementes corredor de Nacala em um novo Mato no, está gerando um simples plano de so. Mas continuamos atentos, pois ele
comerciais, insumos químicos e títu- Grosso começam a perder força. Preo- cooperação, ainda no papel, no qual voltará ao ataque”.
los fundiários privados”.10 cupados em não parecerem agentes de parece não acreditar mais...
Inicialmente um simples movi- um novo colonialismo agrário, os ja- Basta ir ao Ministério da Agricultu- *Stefano Liberti é jornalista e cineasta. Esta
mento local, a mobilização ganhou poneses foram os primeiros a levantar ra para observar esse rebaixamento. A reportagem contou com uma bolsa do Pulit-
amplitude rapidamente. No Brasil, no dúvidas sobre sua pertinência. Os em- sede do que havia sido concebido como zer Center on Crisis Reporting. Ela está liga-
Japão e em Moçambique, os movi- presários brasileiros que visitaram o o maior projeto de desenvolvimento da a um documentário sobre a indústria glo-
mentos camponeses e as associações país a convite da GV Agro anunciaram agrícola da África foi relegada ao fundo bal da carne e da monocultura de soja,
compartilham as informações e coor- que não estão mais interessados. Os de uma ala secundária do prédio. Em realizado pelo autor e por Enrico Parenti, e
denam suas ações. Vinte e três organi- técnicos da Agência Brasileira de Coo- uma sala vazia, sem computador nem cuja estreia está prevista para o segundo se-
zações moçambicanas escreveram peração retornaram para o país. E o telefone, atrás de uma mesa sobre a mestre de 2018 (www.soyalism.com).
uma carta aberta para os governos ja- Fundo Nacala, que supunha levantar qual se distinguem minibandeiras de
ponês, brasileiro e moçambicano na US$ 2 bilhões, discretamente fechou. Moçambique e do Japão, encontra-se o
1 Ler Joan Baxter, “Ruée sur les terres africaines”
qual denunciam “a ausência total de O ProSavana foi suspenso. coordenador nacional do ProSavana. [Corrida pelas terras africanas], Le Monde Diplo-
um debate público amplo, transpa- Antonio Limbau se viu encarregado da matique, jan. 2010.
rente e democrático” sobre uma ques- “O PROGRAMA É BOM, NÃO FOI COMPREENDIDO” penosa tarefa de negar a evidência: “Ja- 2 Ler Ward Anseeuw, Liz Alden Wily, Lorenzo Cotula
e Michael Taylor, Land rights and the rush for land.
tão “de grande importância social, “Cometemos um erro de avalia- mais tivemos a intenção de importar o Findings of the global commercial pressures on
econômica e ambiental, que tem im- ção”, reconhece Hiroshi Yokoyama, modelo brasileiro do Cerrado. Sempre land research project [Direitos à terra e a corrida
pacto direto em nossa vida”.11 Umas responsável pelo ProSavana na Jica. Na quisemos promover um desenvolvi- para obtê-la. Conclusões do projeto de pesquisa
pressões comerciais mundiais sobre a terra], Inter-
quarenta organizações internacionais sede da agência, em um prédio moder- mento rural adaptado a nosso país, fa- national Land Coalition, Roma, 2012.
coassinaram o documento e o fazem no no centro de Maputo, o funcionário vorecendo as pequenas, médias e gran- 3 Cf. o banco de dados Land Matrix em: <www.land-
circular. O mesmo Estêvão se viu, en- admite francamente que nenhum es- des empresas. A soberania alimentar matrix.org>.
4 Olivier De Schutter, “How not to think of land-grab-
tão, catapultado da mata moçambica- tudo de viabilidade foi realizado. “No de nosso povo é nossa prioridade”, afir- bing: three critiques of large-scale investments in
na para os corredores luxuosos da Câ- início pensamos que seria possível re- ma de modo peremptório. Segundo ele, farmland” [Como não pensar sobre a questão da
mara dos Deputados de Tóquio. “Fui produzir a experiência de Mato Grosso. o projeto vai avançar, “apesar dos atra- apropriação de grandes extensões de terra: três
críticas a investimentos de grande escala em terras
convidado para me encontrar com par- Em seguida, percebemos que os dois sos e mal-entendidos”. cultiváveis], The Journal of Peasant Studies, v.38,
lamentares japoneses. Eu lhes disse que contextos eram bem diferentes e que No corredor de Nacala, porém, o n.2, Routledge, Abingdon (Reino Unido), 2011.
criticamos o ProSavana porque ele co- não era adequado executar o modelo ProSavana parece um fantasma. Solitá- 5 Cf. Main basse sur la terre. Land grabbing et nou-
veau colonialisme [Expropriação da terra. Apro-
loca em questão nosso modo de vida.” de desenvolvimento brasileiro aqui.” rio como uma catedral deslocada no priação de grandes extensões de terra e novo colo-
As manifestações, as missões no Yokoyama se refere, hoje, a um neces- meio da savana, na periferia de Nampu- nialismo], Rue de l’Échiquier, Paris, 2013.
exterior, a carta aberta, um movimento sário “apoio aos pequenos produtores” la encontra-se um laboratório de análi- 6 ODA transforming Mozambique [A ODA contribui
para a transformação de Moçambique], Japan Ti-
de opinião pública que une as organi- e rejeita qualquer agricultura de gran- se dos solos, uma das raras entidades do mes, Tóquio, 6 jan. 2012.
zações camponesas moçambicanas às de escala, que, no entanto, era o cerne plano concretizadas. No prédio vazio e 7 Cf. Alex Shankland e Euclides Gonçalves, “Imagi-
do Brasil, aos universitários e às orga- do projeto. “Estamos reescrevendo o desolado, alguns estudantes e um agrô- ning agricultural development in South-South Coo-
peration: The contestation and transformation of
nizações da sociedade civil japonesa e plano diretor com um mecanismo de nomo propõem sem entusiasmo a de- ProSavana” [Pensando o desenvolvimento agríco-
europeia: tudo isso fragilizou o projeto. consulta às comunidades rurais rela- monstração de seus aparelhos. Americo la na cooperação Sul-Sul: a contestação e a trans-
“O protesto alcançou todas as provín- cionadas”. A GV Agro não faz mais par- Uaciquete, responsável pelo ProSavana formação do ProSavana], World Development,
v.81, Amsterdã, maio 2016.
cias. Nós organizamos caravanas para te do processo. Os responsáveis por ele na província, recita a tese oficial: “O 8 Patrícia Campos Mello, “Moçambique oferece terra
informar as comunidades e estimulá- afirmam ter aprendido a lição e pro- programa é bom, mas não foi com- à soja brasileira”, Folha de S.Paulo, 14 ago. 2011.
-las a não aceitar propostas vazias de põem uma volta ao ponto de partida. preendido. Tudo está congelado agora”. 9 Face oculta do ProSavana, Youtube.com, 7 out. 2013.
10 Leaked ProSavana master plan confirms worst
funcionários”, conta Vunjane. E conti- Cerca de dez anos depois de seu A poucas horas da estrada, sob a fears [Vazado, o plano básico do ProSavana confir-
nua: “Foi duro. Percorremos distâncias lançamento oficial no G8 de L’Aquila, mangueira de Nakarari, basta pronun- ma piores medos], 30 abr. 2013. Disponível em:
enormes, mas conseguimos um resul- o ProSavana faz referência a um casa- ciar a palavra “ProSavana” para ver as <www.grain.org>.
11 Open Letter from Mozambican civil society organisa-
tado extraordinário: pela primeira vez, mento naufragado antes mesmo da fisionomias se entristecerem de raiva. tions and movements to the presidents of Mozambi-
o governo moçambicano teve de ouvir cerimônia. Se os japoneses investiram “Eles podem vir mil vezes, jamais nos que and Brazil and the Prime Minister of Japan [Carta
o povo, que lhe disse alto e bom som uma grande quantidade de dinheiro e convencerão”, martela Mocernea. Per- aberta de organizações e movimentos da sociedade
civil moçambicana aos presidentes de Moçambique
que não aceitaria um modelo de desen- de prestígio para abandoná-lo, os bra- to dele, Vunjane, que proclama sua sa- e do Brasil e ao primeiro-ministro do Japão], 3 jun.
volvimento imposto de cima”. sileiros já caíram fora. E Maputo, que tisfação por ter conseguido uma “vitó- 2013. Disponível em: <www.grain.org>.
14 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
pelo Partido de Ação Nacional (PAN, di- sofreu nenhuma investida. A “transi-
reita) e o Partido da Revolução Demo- ção democrática”, cuja irrupção foi ce-
crática (PRD, centro-esquerda). Sem se lebrada pelo poder após 71 anos de rei-
desfazer do sorriso, este último procura nado sem interrupção do PRI, trocou
algo em suas pastas e tira um punhado um representante do sistema por seu
de papéis datilografados: eles provam sósia político, encarnado no PAN: o ex-
manipulações fraudulentas orquestra- ção passou, há tempos, de hobby de que é preciso um número suficiente de -diretor da Coca-Cola Vicente Fox.
das pelo homem que acabava de acusá- dirigentes políticos sem escrúpulos a assinaturas”, justificou um dos magis- 2006: em sua primeira campanha, Ló-
-lo. Reunidos na imagem, os cinco can- atividade econômica em tempo inte- trados. “Não indicam, contudo, que as pez Obrador propõe sair do emaranha-
didatos se agitam atrás dos palanques, gral. Em 2015, o Banco Mundial esti- assinaturas precisam ser validadas” do neoliberal em que o México se enre-
mexem em papéis e fichas, pedem a pa- mava sua participação no PIB em 9%,1 (El País, 12 abr. 2018). dou. Uma fraude maciça priva-o da
lavra... Durante toda a transmissão, ou seja, mais que o turismo. De acordo com certas estimativas, vitória. 2012: Amlo tenta a sorte mais
acusações de infração são atiradas para os lares mexicanos consagram cerca de uma vez. As manobras do PRI e o apoio
todos os lados, sem abalar seus alvos. O PROPINA PARA TER ÁGUA CORRENTE 14% de seus salários para satisfazer as dos grandes meios de comunicação le-
principal tema em torno do qual os can- Para alguns, a situação apresenta exigências de funcionários corruptos – vam Peña Nieto à presidência.
didatos combinaram debater nesse 22 algumas vantagens. Depois de agra- número que sobe para 33% nas famílias López Obrador não ignora esse
de abril de 2018? As medidas que toma- ciar a empresa espanhola Iberdrola que recebem um salário mínimo.2 Do contexto. “Para mudar as coisas, há
riam, uma vez no poder, para lutar con- (notadamente especializada na explo- lado das empresas, mais de um terço duas opções: a luta armada ou a via
tra a corrupção. ração de gás) durante sua passagem declara ter pago propina para obter um eleitoral”, declarou durante um pro-
Do ponto de vista dos dirigentes pela presidência, Felipe Calderón contrato público e 36,7% para obter grama de televisão do grupo Milenio,
políticos, o México parece uma imen- (2006-2012) agora goza de uma partici- uma simples ligação de água corrente no dia 21 de março de 2018. “Acredito
sa piñata, essas figuras de papelão re- pação no conselho administrativo da (contra médias de 15,8% e 8,5%, respec- que é possível transformar o México
cheadas de doces e brinquedos que as companhia. Preocupada com uma in- tivamente, na América Latina).3 Alguns de forma pacífica. [...] E, embora as
crianças rompem a golpes de bastão vestigação sobre casos de corrupção esvaziam a piñata; outros a recheiam. cartas já estejam marcadas, me lanço
em festas de aniversário. Uma piñata ligados à empresa brasileira Ode- Esse contexto, sem dúvida, explica na batalha eleitoral. Não é uma con-
que a cada eleição é novamente re- brecht, a maioria dos deputados mexi- o avanço do candidato Andrés Manuel tradição, é apenas porque não tenho
cheada. Durante o mandato do atual canos votou, em março passado, con- López Obrador, chamado de “Amlo”, escolha. [...] Às vezes, é um caminho
presidente, Enrique Peña Nieto (PRI), tra a perseguição de altos funcionários nas pesquisas de opinião.4 Desde sem- mais difícil que a via armada. Porque
uma enxurrada de escândalos condu- culpados de enriquecimento pessoal. pre Amlo se gaba por seu combate à nos sujeitamos ao Estado: um Estado
ziu dezesseis governadores, ou ex-go- Mais recentemente, o tribunal eleito- “máfia que se apropriou do México” – antidemocrático e autoritário. Não te-
vernadores, a responder perante a jus- ral validou a candidatura à presidên- título de um de seus muitos livros, pu- nho ilusão, já vivi fraude eleitoral. Mas
tiça e, em alguns casos, a ir para trás cia do governador do estado de Nuevo blicado em 2010. Essa constância ter- não renunciei à esperança.”
das grades. Um deles, Javier Duarte, León, Jaime Heliódoro Rodríguez Cal- minou por convencer que ele traduz Pessimismo da razão e otimismo
destacou-se por desviar US$ 3 bilhões derón, mesmo com 58% das assinatu- uma convicção. da vontade? Não apenas. “O México
em sua passagem pelo estado de Vera- ras necessárias terem sido considera- Mas os mexicanos realmente deci- atravessa uma crise de extrema violên-
cruz. Ao contar tantos zeros, a corrup- das fraudulentas. “As normas indicam dem o destino do México? “Todas as ve- cia”, analisa o sociólogo Mateo Crossa.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15
“Essa situação evidentemente toca as para ganhar as elites brasileiras em para facilitar o investimento privado Pinos [residência do chefe de Estado]
populações mais pobres, mas passou a 2002. “Dada a gravidade da situação e a por meio de benefícios fiscais” (El Uni- no dia seguinte de sua posse. Ele rece-
afetar igualmente a burguesia, que es- profundidade da crise, prevemos uma versal, 6 mar. 2017). “Nada de confis- be uma comissão de grandes empre-
tá se desfazendo. Pela primeira vez, ela espécie de trégua, [...] para fazer que as cos, expropriações ou nacionalizações. sários que dizem: ‘Cuidado, Andrés,
multiplica os candidatos, o que é bom coisas se mantenham em ordem”, ex- Nada de corrupção. Nada de proble- porque, se continuar assim, deslocare-
para Amlo.” Nem o PAN nem o PRI plicou durante a transmissão organi- mas”, resumiu o candidato diante dos mos nossas empresas para a Costa Ri-
conseguiram firmar aliança. No inte- zada pela Milenio – o que suscitou uma banqueiros do país reunidos em sua ca’. [...] E, se isso acontecer, é preciso
rior do primeiro, a candidatura de Ana- reação entusiasmada do editorialista conferência anual.7 López Obrador que sejamos 2 milhões ou 3 milhões
ya não convenceu os próximos do ex- Jesús Silva Herzog: “Tenho a impressão permanece, ainda assim, muito à es- nas ruas dizendo: ‘Se eles estão te
-presidente Calderón, cuja esposa, de que você está assumindo plena- querda para muitos donos de empre- chantageando, Andrés, exproprie-os.
Margarita Ester Zavala Gómez del mente, e com certo orgulho, uma posi- sas, que tentam desacreditá-lo compa- Que se danem!’. [...] A pressão que es-
Campo, se apresenta como candidata ção abertamente conservadora”. rando-o com outro populista: o sas pessoas podem exercer sobre um
independente. No interior do PRI, a Se por um lado Amlo permanece o presidente norte-americano, Donald dirigente – radical, competente, ho-
nomeação de Meade pelo atual presi- único candidato a evocar a soberania Trump, que os mexicanos execram. nesto – é imensa. É preciso um movi-
dente, Peña Nieto – desacreditado e alimentar do país, a querer mergulhar Acusação inversa parte do outro la- mento social que leve à mudança.”8
suspeito de enriquecimento ilícito –, nas raízes sociais da violência, a de- do do tabuleiro político: “Morena, a di- A capacidade de mobilização da
provocou uma fuga de quadros para a nunciar os baixos salários e a prome- reita disfarçada de esquerda”, resume Morena existe: foi minuciosamente
Morena, formação de Obrador. ter melhorar a universidade, por outro uma caricatura que circula nas redes construída para responder às solicita-
ele tranquilizou os setores mais con- sociais. Alguns sem dúvida prefeririam ções de seu dirigente. Uma vez no po-
“SE ESTÃO TE CHANTAGEANDO, EXPROPRIE-OS” servadores da sociedade ao se aliar ao ver outro Hugo Chávez chegando ao der, ele incentivaria seus militantes a
Apesar dos desacordos (e da troca Partido Encuentro Social (PES), evan- poder. Evidentemente, López Obrador pressionar as trincheiras do sistema?
de amabilidades de seus candidatos gélico e contrário ao aborto5 – assim não o é. Mas o México de 2018 também
no debate de abril), um pacto entre o como grande parte da população e a não se parece com a Venezuela em *Renaud Lambert é jornalista do Le Monde
PRI e o PAN não está totalmente des- maioria das formações políticas. meados dos anos 2000, quando o preço Diplomatique.
cartado. Mas Crossa acrescenta um Amansou o Exército prometendo não das matérias-primas decolou. No po-
segundo fator que joga a favor de Ló- intervir na Lei de Segurança Interna, der, Amlo deverá pilotar um Estado en-
pez Obrador. “O país nunca teve tanto votada em dezembro de 2017, que en- fraquecido. Milícias e cartéis contes- 1 “Corrupción representa 9% del PIB: Banco Mun-
dial” [Corrupção representa 9% do PIB: Banco
descrédito na classe política e nunca dossa a presença de militares nas ruas tam o monopólio legítimo da violência Mundial], El Financiero, México, 5 nov. 2015.
sofreu tanto com a corrupção. A situa- e amplia as prerrogativas a ponto de (estatal) em algumas regiões. O Exérci- 2 “La corrupción costó 1,600 mdp a las empresas en
ção atual não pode durar. Ora, Amlo provocar inquietude na ONU e em or- to e os serviços de informação de seu 2016: INEGI; 65% de las mordidas son para trámi-
tes” [A corrupção custou 1.600 mdp às empresas
dispõe de algo que falta na elite: legiti- ganizações de defesa dos direitos hu- poderoso vizinho do norte adminis- em 2016: 65% das mordidas são para trâmites], 3
midade.” Em uma notícia publicada manos.6 Seu programa também sedu- tram, financiam e às vezes supervisio- jul. 2017. Disponível em: <sinembargo.mx>.
no dia 27 de março último, Valeriano ziu alguns atores do setor privado, que nam seus próprios serviços de seguran- 3 Pesquisa “Business environment in Mexico” [Am-
biente de negócios no México], Enterprise Sur-
Suárez, vice-presidente da Coparmex, consideram atualmente, com o Finan- ça. As instituições administrativas, veys, Banco Mundial, Washington, DC, 2010.
um dos principais organismos patro- cial Times, que López Obrador “não é eleitorais e fiscais sofrem de um pro- 4 41,2% de intenção de voto, contra 28,2% para
nais, dizia a mesma coisa: “É verdade tão perigoso como muitos imaginam” fundo descrédito. E, desde os anos Anaya e 21,9% para Meade, de acordo com pes-
quisa do El País, Madri, 31 mar. 2018.
que o exemplo de um presidente deter- (24 jan. 2018). 1980, a economia foi reestruturada com 5 A legislação varia de um estado para outro no seio
minado a se mostrar não corrompível A hostilidade, contudo, permanece o único objetivo de fornecer mão de da federação: alguns autorizam, em geral com al-
seria ideal para impulsionar a trans- viva no interior de um patronato pouco obra barata às transnacionais norte-a- gumas condições; outros punem severamente.
6 Paulina Villegas, “Missing Mexicans’ case shines
formação do sistema que rege nosso habituado a receber provocações. “Por mericanas. Com ou sem Chávez, a mar- light on military’s role in drug war” [Caso de desa-
mundo político e seus apêndices do mais paradoxal que possa parecer, a gem de manobra se mostra limitada... parecidos mexicanos joga luz sobre o papel militar
setor privado” (El Sol de México). Morena representa a melhor opção pa- “Imagine se ganharmos as elei- na guerra contra as drogas], The New York Times,
30 abr. 2018.
Daí a apoiar um dirigente político ra os empresários”, reafirma Martí Ba- ções”, lançou o romancista Paco Igna- 7 Citado por Jude Webber em “Mexico leftist Amlo
de esquerda é outra coisa: uma parte tres, um dos dirigentes do partido, an- cio Taibo II aos militantes da Morena, vows no nationalisation, no expropriations” [O es-
do eleitorado se recusa a dar esse pas- tes de referir-se efetivamente aos da qual ele é membro. “O Congresso querdista Amlo diz que não haverá nacionalização
nem expropriação], Financial Times, Londres, 9
so. López Obrador se deu por missão pontos do programa: “Acabar com ex- será contra nós, porque seremos um mar. 2018.
encorajar essas pessoas multiplicando torsões e propinas que entravam os ne- grupo minoritário, 35% no máximo. A 8 “Deben expropiarse las empresas que no coope-
os discursos moderados. Seu slogan gócios”, “não aumentar os impostos”, maioria dos governadores? É do PRI e ren con AMLO: Paco Ignacio Taibo II” [As empre-
sas que não cooperarem com Amlo devem ser ex-
preferido? “Amor e paz”, o mesmo es- “conservar os grandes equilíbrios ma- do PAN, ou ainda pior, do PRD. [...] En- propriadas: Paco Ignacio Taibo II], 28 abr. 2018.
colhido por Luiz Inácio Lula da Silva croeconômicos” e “criar zonas francas tão veja: Andrés Manuel está em Los Disponível em: <sdpnoticias.com>.
SELEÇÃO OFICIAL
FESTIVAL DE CANNES
Como papai me
colocou em Harvard
Para selecionar seus alunos, as universidades norte-americanas levam em conta vários critérios: resultados escolares, origem
étnica, local de residência e até mesmo sexo. As instituições de maior prestígio consideram também a linhagem familiar do
candidato. Elas favorecem os filhos de ex-alunos, praticando assim uma forma de discriminação positiva... para os ricos
POR RICHARD D. KAHLENBERG*
seus estudos em Harvard.2 Essa repro- mais apenas brincando de luta livre para excluir os judeus, sobretudo a in- formal de cotas internas.” Em contras-
dução das elites pela via familiar se so- conosco no jardim”, ele escreveu. trodução de critérios tão absurdos te, uma escola grande como o Califor-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17
nia Institute of Technology [Instituto Fora dos campi, a mobilização rece- O Congresso também poderia ter afirmativa para os ricos: preferências lega-
de Tecnologia da Califórnia], que se re- be apoios às vezes inesperados. Em ou- uma palavra a dizer. Com pesquisas das em admissões em faculdades], Cen-
cusa a favorecer os herdeiros, tem ape- tubro de 2017, o presidente do Federal que indicam que três entre quatro tury Foundation, Nova York, 2010.
nas 1,5% de filhos de ex-alunos. Reserve de Nova York, William Dudley, norte-americanos lhe são hostis, o di-
Às vezes, ouve-se dizer que o privi- declarou em um discurso que as prer- reito de sucessão universitária tor-
légio dinástico reforça o apego dos ex- rogativas familiares eram “perfeita- nou-se politicamente embaraçoso,
1 Michael Lind, “Legacy preferences in a democratic
-alunos à sua instituição, o que os en- mente injustas” e que “colocar no lixo em especial pelo fato de a justificativa Republic” [Preferências legadas em uma república
coraja a lhe oferecer doações mais esse tipo de política só pode promover defendida por seus advogados – o efei- democrática]. In: Richard D. Kahlenberg (org.), Af-
generosas. Mas nenhum dado empíri- a mobilidade social”. E é de se pergun- to supostamente de incentivo sobre os firmative Action for the Rich: Legacy Preferences
in College Admissions [Ação afirmativa para os ri-
co valida essa afirmação. Uma equipe tar: “Nós realmente queremos encora- doadores – se revelar uma faca de dois cos: preferências legadas em admissões em facul-
de pesquisadores liderada por Chad jar em nossas grandes universidades gumes: a receita poderia ver nisso dades], The Century Foundation, Nova York, 2010.
Coffman, do instituto Winnemac Con- algo que nada mais é do que uma polí- uma razão para suspender os cortes 2 Jessica M. Wang e Brian P. Yu, “Meet the class of
2021” [Conheça a turma de 2021], The Harvard
sulting, examinou as doações feitas tica de ‘admissão por doação’?”. de impostos concedidos a esses mes- Crimson, 2017. Disponível em: <www.thecrimson.
por ex-alunos para as cem universida- Pode ser que a justiça, mais cedo mos doadores. De fato, se se reconhe- com>.
des mais conceituadas entre 1998 e ou mais tarde, resolva o problema. ce que eles recebem um benefício em 3 Richard Reeves, Dream Hoarders: How the Ame-
rican Upper Middle Class Is Leaving Everyone
2007. Disso se depreende que as insti- Curiosamente, até o momento o direi- troca de sua doação, seu acordo com Else in the Dust, Why That Is a Problem, and What
tuições que reconhecem um direito de to de sucessão universitária só foi ob- as universidades vai contra as regras to Do About [Açambarcadores de sonho: como a
sucessão universitária com certeza re- jeto de um litígio perante um tribunal sobre deduções fiscais que regem as classe média alta norte-americana está deixando
todos os outros na poeira, por que isso é um pro-
cebem, em média, um valor maior por federal, em 1975, por iniciativa de uma obras de caridade: uma doação não blema e o que fazer a respeito?], Brookings Institu-
ex-aluno (US$ 317 contra US$ 201), mas infeliz postulante da Universidade de deve enriquecer o doador. tion Press, Washington, DC, 2017. Ler também
essa diferença se deve ao fato de seus Chapel Hill, na Carolina do Norte. Ja- Enquanto isso, o absurdo desse “Classe sans risque” [Classe sem risco], Le Mon-
de Diplomatique, out. 2017.
doadores serem mais ricos que os ou- ne Cheryl Rosenstock achava que seus modo de seleção ilustra o desafio cru- 4 Cf. Daniel Golden, The Price of Admission: How
tros. Os autores do estudo não encon- direitos constitucionais haviam sido cial representado pelo acesso às gran- America’s Ruling Class Buys Its Way into Elite
traram “nenhuma evidência de que as ultrajados por favores concedidos a des universidades. Os benefícios de es- Colleges – and Who Gets Left Outside the Gates
[O preço da admissão: como a classe dominante
políticas de favoritismo familiar afe- outros candidatos – entre eles filhos tudar em uma dessas instituições dos Estados Unidos compra sua entrada nas fa-
tem o comportamento dos doadores”. de ex-alunos, mas também pessoas de douradas são surpreendentes. Primei- culdades de elite – e quem fica de fora dos por-
Eles também analisaram em detalhe condição modesta ou oriundas de mi- ro, no nível da educação: uma univer- tões], Three Rivers Press, Nova York, 2006.
5 John Brittain e Eric Bloom, “Admitting the truth: the
as contribuições feitas às sete institui- norias. Sua queixa foi rejeitada. Os re- sidade média gasta US$ 12 mil por ano effect of affirmative action, legacy preferences and
ções que abandonaram esse método sultados medianos obtidos pela quei- na formação de um de seus alunos, the meritocratic ideal on students of color in college
de seleção durante a pesquisa. Mais xosa no SAT (850 pontos de 1.600) contra US$ 92 mil nas mais seletivas. E admissions” [Admitindo a verdade: o efeito da
ação afirmativa, preferências legadas e o ideal me-
uma vez, não encontraram “nenhum certamente não funcionaram a seu em termos de renda: em qualificações ritocrático nos estudantes não brancos nas admis-
traço significativo de declínio após a favor, mas o juiz também não apre- iguais, esses graduados ganham um sões em faculdades]. In: Affirmative Action for the
abolição do privilégio familiar”. ciou o questionamento desses privilé- salário 45% maior em média do que Rich, op. cit.
6 Thomas Espenshade, Chang Chung e Joan Wal-
gios, retomando a ideia segundo a seus pares que estudaram em institui- ling, “Admission preferences for minority stu-
UM ATAQUE À CONSTITUIÇÃO qual eles eram indispensáveis para o ções menos conhecidas – uma lacuna dents, athletes and legacies at elite universities”
Instalado nos Estados Unidos há financiamento das universidades. que explode se considerarmos apenas [Preferências de admissão para estudantes de
minorias, atletas e herdeiros nas universidades
um século, o bônus concedido aos Como Steve Shadowen e Sozi Tu- os alunos de origem modesta. De acor- de elite], Social Science Quarterly, v.85, n.5, Ho-
herdeiros enfrenta, no entanto, ques- lante,8 muitos advogados argumen- do com um livro de Thomas Dye que boken, dez. 2004.
tionamentos que põem em dúvida ho- tam, no entanto, que essa discrimina- se tornou um clássico, mais da metade 7 Michael Hurwitz, “The impact of legacy status on
undergraduate admissions at elite colleges and
je sua viabilidade a longo prazo. Em ção universitária atenta contra a dos grandes donos de empresas e cer- universities” [O impacto do status de legado em
fevereiro de 2018, grupos de estudan- Constituição, em particular contra a ca de 40% dos líderes governamentais admissões de graduação em faculdades e univer-
tes de uma dúzia de universidades de 14ª Emenda. Originalmente concebida estudaram em uma das doze universi- sidades de elite], Economics of Education Review,
v.30, n.3, Amsterdã, jun.2011.
prestígio começaram a se mobilizar como um freio às discriminações con- dades mais cotadas.9 A história não diz 8 Steve Shadowen e Sozi Tulante, “No distinctions
contra os privilégios hereditários. Em tra os afro-americanos, essa emenda quantos foram admitidos por causa do except those which merit originates: the unlawful-
Princeton, Yale, Cornell, Brown, Co- estende-se mais geralmente às “prefe- sobrenome... ness of legacy preferences in public and private
university” [Nenhuma distinção exceto as que o
lumbia e Chicago, organizações estão rências baseadas na linhagem”, segun- mérito origina: a ilegalidade das preferências lega-
exigindo – sem sucesso – a realização do a fórmula do ex-juiz da Suprema *Richard D. Kahlenberg é pesquisador da das na universidade pública e privada], Santa Cla-
na primavera de um referendo para Corte Potter Stewart. Ele argumenta Century Foundation, especialista em ques- ra Law Review, v.49, n.1, 2009.
9 Thomas Dye, Who’s Running America? The Oba-
perguntar aos alunos se eles acham que os indivíduos devem ser julgados tões educacionais. Coordenador da obra ma Reign [Quem está tomando conta da América?
justo o sistema de bonificação para por seus próprios méritos, e não em Affirmative Action for the Rich: Legacy O reinado de Obama], Paradigm Publishers, Boul-
“os filhinhos de papai”. função de sua ascendência. Preferences in College Admissions [Ação der, 2014.
O medo de desaparecer
Iniciada no começo da década de 1980, a queda da taxa de fecundidade da Hungria conduziu o país a uma redução
no tamanho de sua população, agravada por uma forte emigração para o exterior. Com 1 milhão de habitantes a menos
que há trinta anos, o despovoamento alimenta todo tipo de fantasmas e demagogias
POR CORENTIN LÉOTARD E LUDOVIC LEPELTIER-KUTASI*
“C
omo é possível que depois de Todo ano as comemorações da Re- Guerra Mundial; a valorização da fa- claro sinal endereçado aos 5 milhões
mil anos ainda estejamos aqui? volução de 1848 representam um mo- mília tradicional por políticos a favor de falantes de húngaro que viviam fora
Talvez porque sempre soube- mento paroxístico na vida política do da natalidade, visando frear uma an- das fronteiras foi amplificado pelo Fi-
mos que nossa existência tem país. Três semanas antes das eleições tiga queda da fecundidade; e, enfim, desz, partido liberal conservador que
um sentido, que havia uma cultura legislativas de 8 de abril, o tom empre- uma postura paranoica em relação chegou ao poder em 1998. Seu chefe,
aqui, um espírito e uma alma que ele- gado pelo chefe de governo impressio- aos “outros”, quer se trate das mino- Viktor Orbán, apresentou-se como
varam nosso coração durante séculos. nava pela radicalidade, mas fazia par- rias do interior (roma [ciganos], ju- protetor dos húngaros da Sérvia du-
Conservamos nosso ideal de unidade te de uma antiga obsessão: o medo de deus) ou, mais recentemente, de imi- rante o conflito do Kosovo de 1999. De-
e unificação, como também nosso or- desaparecer enquanto nação. Desde o grantes extraeuropeus. pois, voltando para a oposição, ele
gulho nacional.” Neste dia nacional de Tratado de Trianon, em 1920, e do des- A escalada do irredentismo marcou apoiou, em 2004, a iniciativa de conce-
15 de março de 2018, diante de dezenas membramento do Reino da Hungria,1 o período entre guerras e conduziu o der a cidadania aos residentes de lín-
de milhares de seus partidários, Viktor a direita desenvolveu uma retórica regente Miklós Horthy aos braços da gua húngara da Romênia, Eslováquia,
Orbán critica as “forças globalistas”. O poderosa em torno de uma “magiari- Alemanha nazista. A amnésia imposta Sérvia, Ucrânia, Áustria e Eslovênia.
primeiro-ministro húngaro profetiza dade” (magyarság) vulnerável em to- a seguir pelo poder comunista se dissi- No entanto, o referendo imposto pela
o desaparecimento da Europa ociden- da a Bacia dos Cárpatos, em razão de pou após sua queda, e a questão dos Federação Mundial dos Húngaros de
tal e convoca a juventude emigrada a uma história turbulenta e de um forte magiares ressurgiu. Em 2 de junho de maioria socialista liberal na época foi
defender a pátria, que tem sua sobrevi- sentimento de isolamento linguístico 1990, o novo chefe do governo, o con- invalidado por falta de participação.
vência ameaçada pelos fluxos migra- e cultural.2 De longa data, ela deu cor- servador József Antall, declarou “se Após oito anos de social-liberalis-
tórios: “Temos direito à existência. [...] po a um nacionalismo demográfico sentir afetiva e espiritualmente pri- mo, a volta ao poder de Viktor Orbán,
Se o dique ceder, haverá uma inunda- baseado em três pontos: a “reunião da meiro-ministro de 15 milhões de hún- em maio de 2010, marcou uma revira-
ção e a invasão cultural não poderá nação” para além das fronteiras im- garos”... enquanto o país contava ape- volta. Desde que assumiu sua função,
mais ser afastada”. postas à Hungria após a Primeira nas com 10 milhões de habitantes. Esse ele colocou em votação – em um Parla-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19
mento no qual tem o apoio de dois ter- trazer a questão das famílias e da ma- A questão migratória fez uma pri- rostat contou, no dia 1º de janeiro de
ços dos membros – um procedimento ternidade exclusivamente para a esfe- meira irrupção no debate público no 2018, 460 mil cidadãos húngaros insta-
simplificado de naturalização dos fa- ra pessoal”, afirmava em seu Progra- início dos anos 2000, quando se tra- lados em outro país da União Europeia
lantes de húngaro no exterior. O suces- ma de Cooperação Nacional.5 Diversas tava de estreitar as ligações entre a – e esse número é muito subavaliado,
so foi imediato na Romênia, na Sérvia medidas foram consideradas – sem ser “pátria-mãe” e os húngaros do “além- pois não leva em consideração as pes-
(dois países que também praticam introduzidas – para estimular a natali- -fronteira”. Em oposição ao referendo soas registradas em seu país de acolhi-
uma política de concessão de passa- dade: conceder descontos nos finan- de 2004 sobre a concessão da cidada- mento – um problema importante pa-
portes para suas próprias minorias ex- ciamentos estudantis para recompen- nia aos falantes de húngaro no exte- ra a direita no poder, tanto em razão
traterritoriais) e na Ucrânia. Em sete sar os formados que tiveram filhos rior, os socialistas liberais no poder do déficit de mão de obra que ele im-
anos, a Hungria naturalizou mais de 1 durante seus estudos, atribuir vanta- acenaram para a ameaça de uma in- plica como do alcance simbólico dessa
milhão de pessoas. Para o Fidesz, o gens na aposentadoria em função do vasão de trabalhadores estrangeiros. “fuga de cérebros”. Ironia do destino, o
golpe é duplamente vencedor: permite número de filhos e até conceder um Mas foi a passagem pela Hungria de partido radical Jobbik, superado pelo
aumentar o número de cidadãos hún- direito de voto estendido a famílias meio milhão de imigrantes em dire- Fidesz, objeta que a questão hoje não é
garos e garantir um sólido viveiro elei- numerosas. O governo finalmente op- ção à Alemanha no decorrer de 2015 saber se a Hungria se tornará ou não
toral.3 Nas eleições de 8 de abril, 378 tou por uma política de subvenções fa- que provocou um terremoto. Com um país de imigração, mas se real-
mil húngaros que vivem no exterior miliares mais clássica e inspirada no um índice de popularidade em baixa mente ela permanecerá um país de
estavam inscritos e podiam votar na sistema francês, para os abatimentos no início daquele ano, Orbán apro- emigração... Três dias após sua vitória
lista nacional. Apenas os residentes fiscais e uma série de medidas para veitou a situação para apresentar es- nas eleições de abril, Viktor Orbán
dispunham de um segundo boletim melhor conciliar a vida familiar e a ses refugiados como um novo perigo apresentou a luta contra o declínio de-
de voto previsto pelo sistema eleitoral profissional. Sua medida-guia: a atri- para a nação. Propagar a ideia de uma mográfico como a grande obra de seu
para votar em sua circunscrição. En- buição de um capital de 10 milhões de Hungria lutando sozinha por sua so- novo mandato de quatro anos.
fim, 225 mil tomaram parte do escru- forintes (um pouco mais de R$ 130 brevivência não era tarefa impossí-
tínio e 96% deles votaram no Fidesz. mil) para a compra de uma habitação vel, na medida em que existia no país *Corentin Léotard é jornalista e redator-che-
No entanto, essa política de natu- nova para casais com três filhos e para um terreno fértil para esse tipo de fe do Courrier d’Europe Centrale; Ludovic Le-
ralização não tem nenhum impacto aqueles com intenção de tê-los nos discurso, com um romance nacional peltier-Kutasi é doutorando em Geografia e
no declínio demográfico – uma forte próximos dez anos. que consagra seus principais capítu- diretor desse mesmo site de informação.
tendência. Após atingir um pico de O indicador conjuntural de fecun- los às ocupações sucessivas: tártara,
10,7 milhões de habitantes em 1980, a didade caiu para menos de dois filhos otomana e soviética.6
Hungria contava com menos de 9,8 por mulher no início dos anos 1980. No “O mundo tal como existe há mi-
milhões em 2017. De acordo com a pro- auge das crises econômicas e sociais lhares de anos, baseado em valores
jeção média das Nações Unidas, a po- dos anos 1990 – quando 1,5 milhão de tradicionais, está a ponto de desmoro-
pulação será inferior a 8 milhões até empregos foram destruídos – e 2000, nar. [...] Cedo ou tarde, isso conduzirá
2060.4 Em setembro de 2010, quatro chegou a ficar abaixo de 1,3, antes de a uma invasão. [...] Esse declínio está 1 Ver a cartografia “Des frontières mouvantes” [Fron-
teiras móveis], Le Monde Diplomatique, nov. 2016.
meses após a tomada do poder do Fi- subir um pouco, para atingir 1,5 crian- ligado à ‘teoria de gênero’ e ao ataque 2 Anne-Marie Losonczy e András Zempléni, “Anthro-
desz, a Associação Nacional das Famí- ça por mulher no decorrer dos dois últi- ao nosso ‘espaço de vida’ por outras ci- pologie de la ‘patrie’: le patriotisme hongrois” [An-
lias Numerosas encenou a passagem mos anos. “É em parte graças à mensa- vilizações”, declarou o presidente do tropologia da “pátria”: o patriotismo húngaro], Ter-
rain, n.17, Paris, out. 1991.
do país sob a barra simbólica dos 10 gem de Orbán: ‘Façam filhos’. Sabemos Parlamento, László Kövér, confirman- 3 Léotard Corentin, “La Hongrie a naturalisé un mil-
milhões de habitantes, com uma con- que as mensagens contam”, analisa At- do a virada nacionalista da direita lion de personnes en sept ans!” [A Hungria natura-
tagem regressiva em um placar gigan- tilla Melegh, demógrafa da Universida- húngara.7 Modelo para um amplo se- lizou 1 milhão de pessoas em sete anos!], Le Cour-
rier d’Europe Centrale, 18 dez. 2017.
te instalado em uma grande artéria do de Corvinus de Budapeste. “Mas é so- tor da extrema direita europeia, que o 4 O Eurostat e o Departamento Húngaro de Estatís-
centro da cidade de Budapeste. bretudo em razão do estado do mercado felicitou calorosamente por sua vitória ticas, Kirchberg (Luxemburgo) e Budapeste, 2017.
Nas eleições de 2010, a profissão de de trabalho, que está bem melhor hoje: nas últimas eleições, Viktor Orbán fez 5 Bureau da Assembleia Nacional, Budapeste, 22
maio 2010.
fé do Fidesz concedia um lugar de des- contamos com aproximadamente 4,5 sua a retórica da “grande substitui- 6 Catherine Horel, “L’histoire en Hongrie aujourd’hui
taque à família: “A saúde intelectual e milhões de empregos, contra apenas ção”, no rastro das identidades france- à travers l’interprétation du régime Horthy” [A histó-
mental da Hungria e da Europa depen- 3,8 milhões em 2010.” No entanto, isso sas e de Renaud Camus.8 ria na Hungria hoje por meio da interpretação do
regime Horthy], Histoire@Politique, n.31, Paris,
derá da nossa capacidade de restaurar não é suficiente para frear o declínio: o Esse discurso ganha corpo no mo- jan.-abr. 2017.
e preservar a saúde das famílias tanto número de nascimentos permanece mento em que a Hungria é diretamen- 7 Entrevista para a InfoRádió, 15 dez. 2015.
em nossa pátria como em uma Europa inferior ao de mortes, principalmente te atingida, após as mudanças dos 8 Ludovic Lepeltier-Kutasi, “Viktor Orbán, et l’obses-
sion du ‘grand remplacement’” [Viktor Orbán e a
comum. [...] Devemos ultrapassar a porque as mulheres com idade de pro- anos 2010, por outro fenômeno: uma obsessão pela “grande substituição”], Le Courrier
abordagem limitada que consiste em criar são pouco numerosas. imigração maciça para o oeste. O Eu- d’Europe Centrale, 20 jul. 2016.
20 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
SEM AUTOCRÍTICA
á doze anos, François Hollande, ginar que deveria ficar mais feliz com a relle, revela a esse respeito que “desde
Sarkozy, governou sozinho e dispôs de nunca veem em seu resultado eleitoral construí-la? [...] Minha experiência
todas as suas alavancas políticas. Ao fi- – ou social – a sanção de sua adesão ao confirmou esta certeza: não se trata
nal, ele “decepcionou” tanto que, em neoliberalismo. Eles mal concedem ter mais de sonhar com uma nova Europa.
abril de 2017, Benoît Hamon, o candi- cometido erros de método, ritmo ou Trata-se de saber se devemos sair ou fi-
dato oficial de seu partido, recebeu um defeito de “pedagogia”. As objeções car. Não há mais meio-termo”. Atual
apenas – com o apoio dos ecologistas – de fundo à sua “política da oferta” ou à comissário europeu dos negócios eco-
6,3% dos votos. A maioria dos eleitores sua submissão às preferências de An- nômicos, Moscovici apoia essa teoriza-
de Hollande em 2012 preferiu Emma- gela Merkel são tratadas com desprezo ção da impotência: “Correndo o risco
nuel Macron ou Jean-Luc Mélenchon.2
Na época, os socialistas (“discursos”, “encantamentos”, “injú- de decepcionar, não quero acalentar a
Fazia cinquenta anos que a distância identificavam seu rias”), em vez de serem discutidas. ilusão de ninguém [...]. A Europa social
entre os “dois rios” não era tão grande. inimigo em outro lugar, Moscovici revela até implicitamente o – outra serpente marinha – continuará
Quando alguns dos principais agen- não em suas fileiras. encerramento intelectual – a esclero- sendo uma bela intenção enquanto
tes do quinquênio que se passou escre- se? – de seus amigos políticos: “Alguns não se romper com a regra da unani-
veram para fazer a crônica do período –
À sua esquerda, nos recriminavam, mas nós nem se- midade”. Mas, para isso, seria preciso
o ex-primeiro-ministro Bernard para sermos quer tivemos esse debate [sobre a renegociar os tratados, uma opção que
Cazeneuve3 – ou para tirar “as lições” – o mais precisos prioridade concedida à redução dos ele decididamente descarta...
antigo presidente Hollande4 –, podería- déficits] e optamos sem discutir pela E esse não é o único empecilho, ou
mos esperar de suas obras algumas au- escolha da Europa”. A situação o cons- pretexto, autorizando a não se fazer
tocríticas profundas. Procuramos em bem, o que foi muitas vezes o caso, ele trange, mas não pela razão que pode- nada. “A dominação dos mercados
vão. Em suas memórias, Cazeneuve não atribui sua impopularidade à divisão de ríamos imaginar: “Ninguém nos dá com a qual tivemos de conviver”, para
revela nada de seus “150 dias sob tensão seus “amigos”, a seus “pequenos ódios crédito por isso, e é uma injustiça”. retomar os termos do ex-presidente,
em Matignon”, exceto observações so- macerados”, ao “esquerdismo” dos agi- Terrível injustiça com certeza, a de também encontrou ressonância insis-
bre os “resultados espetaculares do re- tadores do PS. não ser “creditado” por uma escolha tente no coração do aparelho do Esta-
gime alimentar” de Martin Schulz, en- Na época, os socialistas identifica- estratégica efetuada sem debate. E no do. A descrição gelada que Moscovici
tão presidente do Parlamento Europeu, vam seu inimigo em outro lugar, não sentido contrário dos compromissos apresenta da administração que ele di-
ou o detalhe de suas sensações olfativas em suas fileiras. À sua esquerda, para eleitorais feitos ao país. rigiu permite compreender isso. Deta-
quando, em uma floresta, sentiu “os sermos mais precisos. Assim, Caze- Em seu discurso de Bourget (22 jan. lhando o poder de Bercy (o Ministério
perfumes da terra molhada que são co- neuve nos conta que, onze dias antes 2012), Hollande anunciou: “No plano da Economia e das Finanças), seus
mo promessas para os jovens brotos da do primeiro turno das eleições presi- europeu, se os franceses me derem “160 mil funcionários, mais de cinco
próxima primavera”. Nenhum rastro denciais de 2017, “François Hollande mandato, minha primeira viagem será vezes mais que os efetivos da Comissão
em seu testemunho de uma esperança se mostrava preocupado com o au- para encontrar a chanceler da Alema- Europeia, ou o equivalente a uma cida-
(além da botânica), de uma grande am- mento nas pesquisas de Jean-Luc Mé- nha e dizer a ela que devemos juntos de como Nîmes”, o ex-ministro revela
bição, nem, falando francamente, de lenchon”. “Não tive nenhuma dificul- mudar a orientação da Europa para o logo (em um estilo certamente aperfei-
um projeto qualquer. Cazeneuve gover- dade em conceber que era preciso crescimento e o lançamento de gran- çoável): “Esta administração é a mais
na, é tudo. Ele preside reuniões, inaugu- combatê-lo”, opinou então seu primei- des obras”. Balanço: nada. Em livro, convencida de que a França tem mais a
ra locais, discursa. E quando nada vai ro-ministro, o qual poderíamos ima- seu antigo conselheiro Aquilino Mo- ganhar com a integração europeia”.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 21
© Daniel Kondo
oi um momento solene. Em 4 de zação socialista revolucionária basca política no Parlamento Basco da Espa- Mariano Rajoy, e seu Partido Popular
m 31 de outubro de 2017, Olek- sua determinação de levá-la a termo.1 tinham prestado juramento, o que va- cia selfie refletem um esfriamento geral
MORADIA
opção, o casal foi participar das reu- nesse edifício a maioria dos morado- entrando em uma batalha pelo direito à ches etc. Luiz Kohara, do Centro Gas-
niões de base do MSTC, liderado por res é migrante, sobretudo de Angola. moradia numa cidade pela qual não sa- par Garcia de Direitos Humanos, ex-
Carmen Silva. “Um dos principais itens Ela não sabe quem é responsável pela bem se vale a pena lutar. plica que nesse momento “começou
do estatuto do movimento é que a gente ocupação – “desde que mudamos, Há cerca de 540 vagas voltadas para toda uma reflexão sobre o direito à ci-
não exclui ninguém: nacionalidade, re- nunca vimos o chefe, só quem tá lá na migrantes internacionais nos centros dade. Por que a população pobre, na
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 27
hora de produzir a cidade, pode e, na o problema, como as recentes remo- dia, de R$ 400 a 500. Por ainda ser um nos de sair de São Paulo e sejam gratos
hora de usufruir, não pode?”. ções forçadas de moradores na região preço acessível, muitas famílias de ao movimento por acolhê-los, se pu-
Migrantes latino-americanos cos- conhecida como Cracolândia, na Luz. baixa renda, inclusive de migrantes, dessem, já teriam ido para um lugar
tumavam ser o grupo mais represen- Enquanto isso, o governo de Michel Te- como Kendra, vão morar nesse tipo de “onde a vida é menos difícil”, confessa
tativo nessas ocupações, mas nos últi- mer (MDB), com sua agenda de cortes, ocupação – e esse era o caso da torre de César, que anda irritado com o trata-
mos quatro anos a presença de interrompeu o programa Minha Casa vidro. Os movimentos de moradia cri- mento racista de colegas do trabalho.
africanos (sobretudo angolanos e con- Minha Vida (MCMV), que foi o princi- ticam os grupos que fazem essas ocu- Premidos pela busca de um teto,
goleses) e de haitianos vem crescendo. pal instrumento de política pública ha- pações por explorarem as famílias nem todos os migrantes de fato se com-
Esse aumento não se deve tanto a um bitacional para as cidades brasileiras sem-teto e, como no caso do desaba- prometem com a luta por moradia e se
incremento migratório à cidade em si nos últimos anos. Mesmo após a tragé- mento, difamarem as ocupações em engajam nas atividades políticas, so-
– migrantes internacionais represen- dia recente, não há indicação de uma geral. É o que lamenta Ivaneti Araújo, bretudo se não vislumbram um futuro
tam cerca de 5% da população de São mudança de postura por parte do po- coordenadora do Movimento de Mo- na cidade. Alguns, mesmo consideran-
Paulo –, mas à precarização das condi- der público. O governador Márcio Fran- radia na Luta por Justiça. “Tem mo- do ficar em São Paulo, são céticos
ções salariais e ao aumento do desem- ça (PSB), por exemplo, em entrevista no mentos em que a gente é colocado tu- quanto à possibilidade de conseguir
prego numa cidade em que os terrenos dia e local do desabamento, concluiu do no mesmo saco. Mas essas pessoas, uma moradia por meio de um progra-
se valorizaram vertiginosamente na que “o que temos que fazer é convencer elas fazem a ocupação, negociam com ma habitacional. “Se a gente não pode
última década. Grande parte desses as pessoas a não morar desse jeito”, co- o proprietário, cobram um valor X, votar, por que vão dar uma casa pra
migrantes chegou a São Paulo nos últi- mo se ele não entendesse que as pes- saem e deixam as famílias.” Mesmo gente?”, questiona Roseline, migrante
mos dois a quatro anos, atraídos pela soas – migrantes, brasileiros – moram sendo uma situação de exploração, a haitiana que mora em outra ocupação.
imagem de um país seguro e emergen- assim por falta de alternativa. lucratividade desse negócio só é possí- Para Carmen, outro fator que torna o
te, sede da Copa e das Olimpíadas. vel pela falta de moradia na cidade. engajamento dos migrantes mais com-
Descobriram, porém, uma cidade ex- plicado é “um problema de cultura,
tremamente desigual, que passa por LUTAS EM MOVIMENTO porque no país deles não aconteciam
uma grave crise habitacional. Grande parte desses Carmen considera a moradia uma esses movimentos sociais”.
migrantes chegou nos condição fundamental para que mi- Kendra conta que boa parte dos vi-
MORADIA, TRAGÉDIA E RESISTÊNCIA últimos anos, atraídos grantes possam reconstruir a própria zinhos migrantes está planejando sair
Recentemente, a realidade dessa vida na cidade. Ela enfatiza que “A ca- do país ou já saiu. É o que pretende
crise veio à tona de forma trágica com
pela imagem de um país sa é que faz ele [o migrante] pertencer, também: “Viemos aqui para o Brasil
o incêndio e desabamento do Edifício seguro e emergente, independentemente da origem. Se ele procurar uma vida melhor, mas nós
Wilton Paes de Almeida, no Largo do sede da Copa e das não tiver pertencimento no local, na não estamos a achar. Temos que sair!”.
Paissandu, na madrugada do dia 1º de Olimpíadas cidade, nunca vai se adaptar”. É uma Seu marido veio de Angola há um ano,
maio. As ocupações são onipresentes constatação que faz com base na pró- e eles querem migrar com as duas fi-
no centro da cidade, e talvez a da “tor- pria experiência como uma baiana lhas para a Europa, onde têm parentes.
re de vidro” fosse a mais evidente, des- que migrou para São Paulo nos anos “Não posso ficar a viver com as crian-
pontando na esquina com a suntuosi- Diante dessa falência de políticas 1990 fugindo de um marido abusivo e ças neste prédio da ocupação, não. Aí
dade deteriorada de um outrora marco públicas, entram em cena os movi- em busca de uma vida digna para si e vem uma cobrança e amanhã vão me
da arquitetura modernista brasileira. mentos de moradia. “A falta do Estado, seus então sete filhos. Depois de morar tirar da ocupação. Vou tentar alugar
Com o desabamento, ficamos sabendo o movimento supre”, resume Carmen. de favor com amigos e em albergues, uma casa fora, e o salário que eu ga-
que o prédio estava ocupado havia Alguns movimentos, como o MSTC, Carmen conseguiu se reerguer na ci- nho, R$ 800 e pouco, não dá.” Diferen-
quinze anos e que nele moravam 450 recolhem uma contribuição mensal dade quando foi morar em uma ocu- temente da maioria dos brasileiros
pessoas. Cerca de 25% de seus mora- de seus membros para reformar os es- pação do Fórum dos Cortiços. “Na sem-teto, esses migrantes têm em seu
dores eram migrantes internacionais, paços e garantir condições seguras de ocupação, além de eu me fortalecer imaginário a possibilidade de migrar
a maioria de Angola. habitabilidade, pagar pelos materiais social, política e financeiramente, pu- para um país do Norte global, pois
Esse era apenas um dos cerca de de limpeza e manutenção, além da as- de dar uma guinada na minha vida. E possuem redes de contatos no exterior
250 imóveis ocupados por famílias sessoria técnica e jurídica para o mo- aí eu comecei a participar efetivamen- e a experiência de cruzar fronteiras, e
sem-teto na cidade de São Paulo, que vimento. Outros movimentos não co- te da vida de São Paulo; participar de não se sentem pertencentes a São Pau-
se somam às inúmeras ocupações de bram contribuição, mas rateiam os várias conferências, dos conselhos, lo ou ao Brasil. Chegaram à cidade
terrenos ociosos nas periferias. Os mo- custos comuns. De qualquer forma, das reuniões políticas, dos planos, das projetando uma vida próspera, mas
radores dessas ocupações fazem parte nessas ocupações o critério central é a operações, de tudo que a cidade tinha. encontraram desigualdade, falta de
do total de 1,2 milhão de famílias vi- participação de todos nas atividades Eu participava e aí comecei a ter outra moradia, racismo. Diante da inação do
vendo em situação precária na cidade, do movimento, seus mutirões, reu- visão, a visão de pertencimento.” poder público, recorrem às ocupações
estimativa da Secretaria Municipal de niões, assembleias, seus atos e mani- Mas, enquanto Carmen vê a expe- por necessidade. Alguns, como Tina e
Habitação (Sehab). Os movimentos de festações pelo direito à moradia. E, riência numa ocupação como cons- César, se resignam a essa realidade por
moradia do centro defendem que não ainda que essas ocupações sejam fre- trutora de cidadãos mobilizados por enquanto; outros, como a família de
é necessário construir habitações no- quentemente chamadas de “ilegais”, seus direitos, essa não é necessaria- Kendra, juntam o conhecimento e os
vas para todas essas pessoas, já que so- “irregulares” e de “invasões”, elas es- mente a expectativa dos migrantes rendimentos de uma família transna-
mente nos distritos centrais da cidade tão respaldadas pela lei brasileira. A que vão morar nas ocupações, nem de cional para tentar escapar das priva-
há mais de 30 mil imóveis que pode- Constituição estipula, no artigo 5º, que muitos brasileiros. Um engajamento ções de São Paulo. A cidade fica, e a lu-
riam ser destinados à habitação social, toda “propriedade atenderá à sua fun- comprometido com a luta por moradia ta dos trabalhadores de baixa renda
segundo o Censo 2010. Com relação a ção social” e, no artigo 6º, que todos em São Paulo exige, no mínimo, que as pela moradia digna também.
migrantes internacionais e refugia- têm direito à moradia. Ao ocuparem famílias tenham uma “perspectiva de
dos, a Lei Municipal n. 16.478, de 2016, um imóvel abandonado há anos (sem permanência”, como explica Evaniza *Diana Thomaz é doutoranda em Gover-
estipula que a Sehab deve adaptar os função social), esses movimentos fa- Rodrigues, que trabalha com a União nança Global na Wilfrid Laurier University, no
programas habitacionais à realidade zem cumprir essas determinações, dos Movimentos de Moradia. “Alguns Canadá. Esta pesquisa foi feita com o apoio
deles, flexibilizando as exigências do- além de assegurarem uma moradia migrantes não têm ideia se vão ficar de uma bolsa do International Development
cumentais e promovendo programas provisória para famílias sem-teto. aqui ou não: ‘se a situação melhorar, Research Centre (IDRC), de Ottawa, Canadá.
de moradia transitória, por exemplo. Além das ocupações administra- eu quero voltar, mas, se a situação de- As visões aqui expressas não representam
No entanto, a cidade de São Paulo das por movimentos de moradia no morar para melhorar, eu vou pra outro necessariamente aquelas do IDRC ou de seu
carece de uma política pública de habi- centro de São Paulo, surgiram outras lugar’.” As ocupações acabam sendo quadro de diretores.
tação social preventiva e ampla que dê que não têm esse caráter político, mas uma solução emergencial para muitos.
conta do problema. Na falta dessa polí- são geridas por grupos que apenas co- Tina e César vão ter um filho brasileiro 1 O nome de todos os migrantes internacionais foi
tica, temos visto medidas que agravam bram aluguel dos moradores – em mé- em breve e, ainda que não tenham pla- alterado para garantir sua confidencialidade.
28 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
da administração dos Estados Unidos. entre as Coreias. Dizer que ele teve de
Como explica Jeong Se-hyun, ex-mi- enfrentar muitos obstáculos é pouco.
nistro sul-coreano da Unificação: “Is- Apenas um mês após assumir o
so não era uma política. Ninguém po- cargo, Moon anunciou claramente:
deria esperar que a Coreia do Norte “Estamos determinados a entrar em
abandonasse voluntariamente a arma um diálogo incondicional se a Coreia
atômica sem nenhuma compensa- do Norte suspender as provocações”.6
ção”. E acrescenta: “Ironicamente, a Em vão. Ele tentou novamente, e por
demora deu ao país tempo para refi- mais tempo, em 6 de julho, durante
nar sua tecnologia nuclear”.1 uma conferência em Berlim. A capital
Mais do que as ameaças, foi a rup- alemã, dividida durante a Guerra Fria,
tura com essa estratégia de “tudo ou não foi escolhida ao acaso: dezessete
nada” que levou o líder norte-coreano anos antes, Kim Dae-jung – presidente
à mesa de negociações. Embora habi- da Coreia do Sul entre 1998 e 2003 – de-
tuado à hostilidade, Trump, felicíssi- finiu ali a Doutrina de Berlim, que le-
mo em poder dar as costas à política de vou a um aperto de mão histórico com
seu antecessor, não desdenha a políti- o então dirigente do Norte, Kim Jong-
ca dos pequenos passos. “Cada etapa é -il, em junho de 2000, dando início a
importante”, garante seu secretário de quase uma década de diálogo e inter-
Estado, Mike Pompeo. “O objetivo câmbio. Essa “política do raio de sol”
continua o mesmo: desarmamento (sunshine policy), contudo, chocou-se
completo, verificável, irreversível. Esse contra a intransigência dos Estados
Moon Jae-in recebe Kim Jong-un em Panmunjeom
é o propósito desta administração”2 – Unidos, naufragando, em seguida,
propósito, não condição prévia. Ele es- com o retorno dos conservadores ao
O
mundo inteiro o via como um gança, e o Conselho de Segurança da clarece, com um toque de ênfase, que poder na Coreia do Sul, em 2008.7
ditador aterrorizante, fraco e ONU apertava as sanções contra seu se trata de uma “oportunidade sem Colaborador próximo de dois ex-
perverso; ele apareceu sorri- país. Como explicar essa virada? precedentes de mudar o curso da his- -presidentes democratas – Kim Dae-
dente, amável e aberto. Em pou- Trump e seus seguidores não estão tória”. Obviamente, e mesmo que pos- -jung e Roh Moo-hyun –, Moon reto-
cos dias, o líder da República Popular surpresos, vendo nisso o sucesso de samos lamentar o fato, essa reviravolta mou a tocha, portanto, em Berlim, dois
Democrática da Coreia, a Coreia do seus métodos robustos (incluindo as (esperada) não seria iniciada sem o ar- dias após o lançamento de um novo
Norte, passou de little rocket man [pe- tuitadas) e a prova da sensatez de seu senal nuclear da Coreia do Norte. míssil balístico norte-coreano. Ele dis-
queno homem-foguete], nas palavras slogan favorito: impor “a paz à força”. Seja como for, a ideia de inscrever se querer “embarcar em uma jornada
pouco delicadas do presidente dos Es- Sozinhas, as ameaças de um dilúvio de seu nome na história, destacando-se audaciosa para estabelecer um regime
tados Unidos, Donald Trump, a chefe fogo sobre a Coreia do Norte teriam do- de Obama, certamente contou muito de paz na Península da Coreia, com
de Estado responsável, à altura de seu brado o senhor de Pyongyang. O caso é para a mudança de Trump, sobretudo um papel proeminente do governo co-
colega sul-coreano. A ofensiva de divertido, mas, se fosse verdade, a di- porque ele espera obter rapidamente a reano”. Palavras cuidadosamente es-
charme de Kim Jong-un, cruzando a nastia Kim já teria entrado na linha há destruição dos mísseis balísticos ca- colhidas: a “jornada” pressupõe várias
fronteira num aperto de mão com muito tempo. A história, porém, mostra pazes de atingir o território dos Esta- etapas e uma autonomia em relação
Moon Jae-in, rindo e brincando, no dia o inverso: o primeiro lançamento de dos Unidos: “Temos a obrigação de aos Estados Unidos. E esclareceu:
27 de abril, foi um sucesso. Parte da eli- um míssil norte-coreano, em 1993, nas- abrir discussões para tentar encontrar “Não desejamos a ruína da Coreia do
te sul-coreana está à beira da “Kim- ceu da recusa por parte dos Estados uma solução pacífica para garantir Norte e não trabalharemos por uma
-mania”, e o líder do Norte já não é vis- Unidos em discutir com o avô de Kim que os norte-americanos não corram reunificação para que o Sul absorva o
to como um pária – o que é sempre Jong-un, Kim Il-sung. A decisão do ex- mais perigo”, explicou Pompeo.3 Norte”.8 Isso tranquiliza simultanea-
melhor quando se quer negociar. -presidente George W. Bush de tratar a Sem subestimar a importância do mente o governo norte-coreano e a po-
Desde os Jogos Olímpicos de Inver- Coreia do Norte como “Estado vilão” e encontro entre os líderes da Coreia do pulação sul-coreana, pouco favorável
no em Pyeongchang, em fevereiro, te- fortalecer o embargo, em 2002-2003, le- Norte e dos Estados Unidos – o primei- a uma fusão, que seria bastante cara.
ve início um balé diplomático: após o vou o pai de Kim Jong-un, Kim Jong-il, a ro desde 1953 –, a mudança de atitude
encontro no paralelo 38, em Panmun- fortalecer o programa nuclear do país. dos dois lados do Pacífico deve-se POR TRÁS DA GUERRA DOS BOTÕES
jeom, uma cúpula histórica, anulada O filho aprofundou a disputa, en- principalmente à tenacidade do presi- Claro que o presidente sul-coreano
até o fechamento desta edição, deveria quanto na Coreia do Sul o governo dente da Coreia do Sul, que levou bron- não ignora o peso decisivo dos Estados
© Inter-Korean Summit Press Corps
ser realizada entre os líderes norte-co- conservador (Lee Myung-bak, depois ca, no verão passado, em um tuíte de Unidos, aos quais acaba de conceder a
reano e norte-americano em Cingapu- Park Geun-hye, atualmente presa por Trump: “A estratégia de apaziguamen- instalação do sistema antimísseis Ter-
ra, no dia 12 de junho. corrupção) fechava todas as portas ao to não leva a nada” (3 set. 2017).4 Já na minal High Altitude Area Defense
Para medir a extensão da reviravol- vizinho do Norte, com a bênção do primavera anterior, durante a campa- (Thaad), suspensa um mês antes. No
ta, vale lembrar que há menos de um presidente dos Estados Unidos, Ba- nha para a eleição presidencial após a entanto, ele teme intervenções intem-
ano Kim disparava mísseis no Pacífico rack Obama, que considerava o aban- Revolução das Velas – enormes mani- pestivas, como as que derrubaram a
e fazia testes de armas atômicas, en- dono do programa nuclear um pré-re- festações que terminaram com a des- abertura dos anos 2000. Moon se lem-
quanto o presidente dos Estados Uni- quisito – o que foi equivocadamente tituição de Park5 –, Moon comprome- bra muito bem disso, pois ocupou vá-
dos o bombardeava com tuítes de vin- chamado de “paciência estratégica” teu-se a apoiar a retomada do diálogo rios cargos no gabinete do presidente
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 29
Kim Dae-jung e participou das nego- querem a “desnuclearização” da pe- redução e depois fim dos exercícios Kim abra o caminho para verdadeiras
ciações com o Norte. Sem esperar sinal nínsula, mas nenhum dos protagonis- militares conjuntos entre a Coreia do negociações a fim de estabelecer um
verde, convidou a Coreia do Norte para tas concorda sobre o que isso significa, Sul e os Estados Unidos. É quase a roteiro, cuja elaboração será, de qual-
participar das Olimpíadas de Inverno. a começar pelos Estados Unidos. Pom- mesma posição sul-coreana. quer forma, muito difícil, deixando es-
No entanto, ele destacou em Ber- peo acredita na possível assinatura de Sem desejar romper sua aliança paço para possíveis provocações em
lim que “são precisos dois para dançar um tratado de paz no lugar do armistí- histórica com os Estados Unidos, o ambos os lados do Pacífico...
o tango”. Nada teria sido possível, de cio em vigor desde 1953 e em uma “real presidente da Coreia do Sul espera ser
fato, sem a mudança de Kim Jong-un. chance de desnuclearização” graças a capaz de conter o ardor autoritário dos *Sung Il-kwon é responsável pela edição
É verdade que, em seus votos para “ações concretas da Coreia do Norte” negociadores norte-americanos, com sul-coreana do Le Monde Diplomatique;
2018, este último lançou-se em um dis- que poderiam permitir considerar o apoio chinês. “O papel da China é vi- Martine Bulard é jornalista do Le Monde
curso clássico contra os Estados Uni- uma suspensão parcial do embargo.12 tal para estabelecer a paz na penínsu- Diplomatique.
dos, lembrando: “O botão nuclear está Já o conselheiro da Segurança Nacio- la”, considerou adequado reafirmar
à mão, na minha mesa, permanente- nal, John Bolton, que também é ouvido um membro do gabinete presidencial 1 Entrevista com Lee Jeong-ho e Minnie Chan, “Ko-
rea summit could help clarify denuclearisation pro-
mente” – declaração que provocou um pelo presidente, imagina mais um “ce- sul-coreano.14 Esclarecimento ainda cess ahead of Kim-Trump talks, says South’s ex-u-
tuíte antológico de Trump: “Eu tam- nário líbio” – em referência ao ex-pre- mais útil quando se sabe que o comu- nification minister” [Cúpula da Coreia pode ajudar
bém tenho um botão nuclear, e ele é sidente Muamar Kadafi, que em 2003 nicado de Panmunjeom indicou que a esclarecer processo de desnuclearização antes
das negociações entre Kim e Trump, diz ex-ministro
muito maior e muito mais poderoso abriu mão de todo o arsenal nuclear e as negociações para alcançar o tratado da Unificação da Coreia do Sul], South China
que o dele” (3 jan. 2018). químico. Seu destino, morto pelos oci- de paz seriam feitas “a três – as duas Morning Post, Hong Kong, 25 abr. 2018.
No entanto, por trás da guerra dos dentais dez anos depois, não anima Coreias e os Estados Unidos – ou qua- 2 Entrevista para a rede ABC News, 29 abr. 2018.
3 Hamish Macdonald, “A bad deal with North Korea
botões se organizava a mudança. Kim Kim a seguir o mesmo caminho, em- tro – com a China”. Em Seul, dizem is not an option, Pompeo says” [Um mau acordo
Jong-un não chama mais a Coreia do bora este, ao contrário do líder líbio, que essa ambiguidade foi mantida pe- com a Coreia do Norte não é uma opção, diz Pom-
Sul de “fantoche” de Washington e possua a tecnologia que lhe permiti- los “pró-norte-americanos de Pyong- peo], NK News, 2 maio 2018.
4 Ler Martine Bulard, “Négocier sans préalable avec
anunciou: “2017 foi um ano de grande ria, se necessário, retornar à corrida yang”, que esperam emancipar-se (um Pyongyang” [Negociar com Pyongyang sem exigên-
vitória, um ano em que estabelecemos atômica. Claro que ambos os negocia- pouco) da tutela econômica chinesa cias prévias], Le Monde Diplomatique, out. 2017.
um marco indestrutível”,9 remetendo dores norte-americanos concordam apostando em Washington, como seus 5 Ler Sung Il-kwon, “‘Révolution des bougies’ à
Séoul” [“Revolução das Velas” em Seul], Le Mon-
ao fato de que seu país tem armas nu- com o objetivo final: uma Coreia do antepassados jogaram com a Rússia e de Diplomatique, jan. 2017.
cleares e agora pode brincar junto com Norte completamente livre de bombas a China, então irmãos inimigos, para 6 JH Ahn, “Following in Kim Dae-jung’s footsteps?
os grandes. Depois aceitou o convite atômicas, mísseis e armas químicas. manter sua independência. Esse é pelo Moon’s June 15 speech, in summary” [Seguindo
os passos de Kim Dae-jung? Resumo do discurso
para as Olimpíadas, enviando uma de- menos um ponto de acordo com os lí- de Moon em 15 de junho], NK News, 16 jun. 2017.
legação liderada por sua irmã mais ve- deres de Washington, que tentam con- 7 Cf. Philippe Pons, Corée du Nord. Un État-guérilla
lha, Kim Sul-song. Em 27 de abril, cru- ter o poder chinês na região. Alarma- en mutation [Coreia do Norte. Um Estado-guerri-
zou a linha de fronteira, também ciente O presidente da dos, os chineses lembraram, em um
lha em transformação], Gallimard, Paris, 2016.
8 “Discours du président Moon à la Fondation Kör-
de seu lugar no mundo: “Uma nova Coreia do Sul espera editorial contundente do oficial Global ber” [Discurso do presidente Moon na Fundação
história começa hoje, um período de Times: “A China é indispensável para a Körber], Berlim, 16 jul. 2017. Disponível em:
ser capaz de conter <http://overseas.mofa.go.kr>.
paz”, escreveu ele no Livro de Ouro da desnuclearização da península”.15 Kim
Casa da Paz. Um mês depois, anunciou
o ardor autoritário foi pessoalmente tranquilizar Xi
9 Cf. Park Jong-hee, “Six things you should know
about Kim Jong-un’s 2018 new year address” [Seis
com grande pompa a destruição do sí- dos negociadores Jinping alguns dias depois. coisas que você precisa saber sobre o discurso de
ano-novo de Kim Jong-un para 2018], East Asia
tio de Punggye-ri, onde seis testes nu- norte-americanos Já o presidente Moon não espera Institute, 7 fev. 2018.
cleares foram realizados desde 2006 e o com o apoio chinês apenas o apoio político da China, mas 10 Embora os especialistas discordem quanto ao nú-
qual desapareceu, sob o olhar atento também sua ajuda em espécie. Os dois mero de ogivas nucleares detido pela Coreia do
Norte (de vinte a sessenta), todos acreditam que o
de jornalistas estrangeiros, entre os países já concordaram em desenvolver país sabe produzir a bomba e passará a realizar
dias 23 e 25 de maio. Especialistas in- a linha férrea ligando Seul ao porto testes por simulação em computador. Cf. “State-
ternacionais não foram convidados, o Trata-se de desarmar somente a chinês de Dandong, passando por ment for the record: Worldwide threats assess-
ment” [Declaração para registro: avaliação das
que impede de verificar a real ativida- Coreia do Norte, quando esta, assim Pyongyang e Sinuiju, cidade portuária ameaças no mundo], Agência de Inteligência de
de abrigada nesses túneis. como a Coreia do Sul, fala sobre a norte-coreana no Rio Yalu. Em busca Defesa, 6 mar. 2018. Disponível em: <www.dia.
Está claro que a Coreia do Norte não desnuclearização de toda a penínsu- de novos motores de crescimento para mil>; e “IAEA director general provides update on
North Korea at board of governors meeting” [Dire-
precisa mais de testes subterrâneos e la. A declaração conjunta adotada em gerar emprego (o desemprego entre os tor-geral da Agência Internacional de Energia Atô-
domina a tecnologia.10 O senhor de 27 de abril em Panmunjeom afirma jovens é superior a 11,5%), o presidente mica faz atualização sobre a Coreia do Norte em
Pyongyang pode, portanto, esperar inequivocamente: “O Sul e o Norte sul-coreano aposta no que chama de reunião do Conselho de Governadores], Agência
Internacional de Energia Atômica, Viena, 11 set.
uma relação de igual para igual com os confirmam seu objetivo comum de “novo cinturão econômico da penín- 2017. Cf. “SIPRI Year Book: Armaments, disarma-
Estados Unidos – o grande sonho da di- chegar a uma península sem armas sula”. Ele inclui tanto a pesquisa ener- ment, and international security” [Anuário do Sipri:
nastia Kim – e passar para o segundo nucleares” – portanto, sem o guarda- gética no Mar do Leste (onde haveria armamentos, desarmamento e segurança interna-
cional], Stockholm International Peace Research
pilar de sua política, o desenvolvimen- -chuva norte-americano. O caso não petróleo) como projetos de grandes in- Institute (Sipri), 2018.
to econômico, para que “o povo nunca está ganho, porque não se vê como a fraestruturas e desenvolvimento de 11 Ler Patrick Maurus, “La Corée du Nord se rêve en
mais precise apertar o cinto”, como Coreia do Norte poderia abrir mão vastas áreas turísticas em ambos os la- futur dragon” [Coreia do Norte sonha ser o futuro
dragão], e Martine Bulard, “Voyage sous bonne
prometeu quando chegou ao poder. Por das armas atômicas. O país as consi- dos da fronteira. garde en Corée du Nord” [Viagem supervisionada
enquanto, todo mundo está com ele, in- dera um seguro de vida contra uma Internamente, Moon reforçou sua à Coreia do Norte], Le Monde Diplomatique, res-
clusive o Exército, que Kim “mandou de Coreia do Sul que possui o sexto posição. Na véspera das Olimpíadas, pectivamente fev. 2014 e ago. 2015.
12 Yi Yong-in, “Pompeo and Bolton offer different
volta para o quartel”, nas palavras de maior Exército do mundo e pode con- 70% dos sul-coreanos entrevistados stances regarding North Korea’s denuclearization”
um dos grandes especialistas franceses tar com 28 mil soldados norte-ameri- expressaram sua insatisfação após a [Pompeo e Bolton oferecem diferentes posições
sobre a Península da Coreia, Patrick canos instalados no país, com suas montagem de uma equipe unificada sobre a desnuclearização da Coreia do Norte],
The Hankyoreh, Seul, 1º maio 2018.
Maurus – sob o regime de Kim Jong-il, armas de última geração.13 de hóquei no gelo, imposta pelo presi- 13 Cf. Rémy Hémez, “Corée du Sud: une puissance
as Forças Armadas eram onipotentes. A visão norte-coreana baseia-se dente. Após a cúpula de Panmunjeom, militaire entravée” [Coréia do Sul: uma potência mili-
Já a nova classe abastada, que se benefi- em uma série de “etapas progressivas e 82% aprovavam sua ação e 65% decla- tar travada], Monde Chinois, n.53, Paris, abr. 2018.
14 Ock Hyun-ju, “Complex calculations over signing
ciou da flexibilização da política econô- sincronizadas”. As concessões do Nor- raram confiar na Coreia do Norte para peace treaty” [Cálculos complexos sobre a assina-
mica,11 sem dúvida impulsionou essa te – desmantelamento de instalações, manter a paz, contra apenas 14,7% an- tura do tratado de paz], The Korea Herald, Seul, 2
virada estratégica, vendo com muito aceitação de controle internacional tes de sua abertura.16 maio 2018.
15 “China’s role indispensable in resolving North Ko-
maus olhos a perspectiva de um recuo etc. – seriam seguidas de concessões Seriam eles otimistas demais, co- rea nuclear crisis” [O papel indispensável da China
em função do fortalecimento das me- norte-americanas e sul-coreanas: as- mo julgam alguns especialistas sul- na resolução da crise nuclear da Coreia do Norte],
didas de embargo. sinatura de um tratado de paz formal, -coreanos? Para além das declarações Global Times, Pequim, 14 maio 2018.
16 Pesquisas realizadas pela Realmeter e publicadas
O caminho rumo à paz não parece normalização das relações com os Es- de boas intenções, não é certo que um em especial pela agência de notícias Yonhap, Seul,
menos cheio de armadilhas. Todos tados Unidos, suspensão das sanções, hipotético encontro entre Trump e 30 abr. e 3 maio 2018.
30 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
A
EM 1982, A RESPOSTA DE THATCHER
construída com base na premis- programa de pesquisa nuclear militar A questão da aplicação extraterrito-
sa de que tudo é renegociável. e dos controles internacionais que se rial das leis dos Estados Unidos remon-
Quando um edifício era concluí- estenderiam até 2025, as sanções im- ta à Guerra Fria. Após a imposição da
do, esse incorporador imobiliário in- postas pelo Conselho de Segurança à lei marcial na Polônia, em 13 de de-
vocava a baixa qualidade do trabalho República Islâmica desde 1995 deve- zembro de 1981, o presidente Ronald
(ou outros pretextos) para não honrar riam ser gradualmente levantadas. Reagan proibiu num primeiro momen-
seus compromissos. Ele então impu- Os desdobramentos econômicos to as empresas norte-americanas de
nha novas condições às empresas en- esperados constituíam um compo- participar da construção de um gaso-
volvidas, declarando, por exemplo, que nente essencial do acordo. Mas, embo- duto que abasteceria países europeus a
só ia pagar “75% do valor combinado”. ra o comércio exterior do Irã tenha partir da Sibéria. Em junho de 1982, o
Era pegar ou largar. Os que recusavam crescido bem, ele ficou longe do boom embargo foi estendido às suas subsi-
a proposta não tinham alternativa se- esperado há três anos, principalmente diárias, bem como às empresas estran-
não recorrer aos tribunais, assumindo por causa da manutenção de sanções geiras que trabalhassem sob licença
o risco de processos judiciais dispen- anteriores, adotadas pelo Congresso norte-americana, com o argumento de
diosos e o resultado incerto diante de logo em seguida à Revolução Islâmica que a União Soviética poderia tirar
advogados que eram tão desleais quan- de 1979. Para muitos iranianos, a má- proveito das tecnologias domésticas.
to durões. Em seu livro Trump: Think -fé dos Estados Unidos saltava aos Essa decisão provocou protestos;
Like a Billionaire [lançado no Brasil co- olhos: as autoridades de Washington as medidas de retaliação dos Estados
mo Trump: como chegar lá, Elsevier, mantinham a ambiguidade sobre a europeus envolvidos forçaram os Es-
2005], de 2004, ele aconselhou seus lei- questão das transações em dólar para tados Unidos a se retratar. Porque, se
tores a “sempre contestar as faturas”. desencorajar os investidores e os po- por um lado Washington detinha a ar-
Seus procedimentos de mau pagador tenciais exportadores. Para os países ma da extraterritorialidade, os países
eram bem conhecidos por fornecedo- exportadores, no entanto, os progres- da Europa podiam retaliar com leis de
res e banqueiros, muitos dos quais se gociador da história” a serviço da Amé- sos não foram negligenciáveis. A quan- bloqueio que proíbem suas empresas
recusavam a negociar com ele.1 rica. Ele anunciou que, uma vez eleito, tidade de exportações francesas para de se submeter a leis estrangeiras. Em-
Em Think Big and Kick Ass in Busi- trabalharia para “rasgar o horrível o Irã, por exemplo, triplicou, passando bora grande aliada do presidente Rea-
ness and Life [lançado no Brasil como acordo” de Viena sobre a energia nu- de 500 milhões de euros no momento gan, Margaret Thatcher, a primeira-
Pense grande nos negócios e na vida, clear iraniana, assim como o acordo do acordo para 1,5 bilhão em 2017. -ministra britânica, se mostrou
Ediouro, 2008], de 2007, ele diz que gos- sobre o clima de Paris. O fato de que es- Embora muitas vezes descrito co- inflexível. Ela afirmou que, por razões
ta de “esmagar o outro lado e embolsar sas decisões fossem tomadas despre- mo um “Estado bandido”, o Irã honrou de princípio, as empresas do Reino
os lucros” e zombar dos banqueiros que zando-se o direito internacional ou seus compromissos, como atestado Unido deveriam honrar seus compro-
perderam as quantias que tinham que outros signatários se mostrassem pela Agência Internacional de Energia missos comerciais. Invocou uma lei de
adiantado para ele. “É problema deles, contrários a elas pouco importava para Atômica, assim como pelas certifica- proteção [Protection of Trading Inte-
não meu. Eu disse a eles que não deve- ele. Seus métodos de empresário de di- ções periódicas do governo norte-a- rests Act, “Lei de Proteção de Interes-
riam ter emprestado para mim.” O reito divino, assim como sua ignorân- mericano. Isso explica, aliás, por que o ses Comerciais”], aprovada em 1980,
Deutsche Bank, única grande institui- cia da história e da diplomacia, uniam- presidente Trump, que assumiu o car- que as impedia de se submeter a injun-
ção que continua a lidar com a empresa -se a seu desejo de desfazer o legado go em 20 de janeiro de 2017, denunciou ções dos Estados Unidos quando o in-
de Trump, teve uma experiência edifi- deixado por seu antecessor. Preocupa- o acordo apenas em 8 de maio de 2018. teresse nacional estivesse em jogo. Na
cante. Em 2008, no auge da crise finan- do com o rompimento das convenções, Tanto o secretário de Estado, Rex Til- França, Jean-Pierre Chevènement, en-
ceira, o banco processou o incorpora- ele confiaria em seus instintos e se con- lerson, como o general Herbert Ray- tão ministro da Pesquisa e da Indús-
dor por uma conta não paga de US$ 40 tentaria em transpor para o campo das mond McMaster, assessor de seguran- tria, apoiou-se em um decreto de 1959
milhões. Este último contra-atacou, rei- relações internacionais as práticas ça nacional, reconheciam os méritos emitido pelo general De Gaulle e orde-
vindicando em troca a notável soma de aprimoradas durante sua carreira de do texto e se opunham a uma retirada. nou à empresa Dresser-France, subsi-
US$ 3 bilhões. Seu argumento: seus incorporador imobiliário e astro de Foi só depois de dispensá-los e substi- diária de um grupo norte-americano
problemas de liquidez eram decorren- reality show. tuí-los por “falcões”, respectivamente de mecânica, que anulasse as injun-
tes da crise financeira; ora, o Deutsche O Plano Global de Ação Conjunta Michael Pompeo e John Bolton, que ções de sua empresa-mãe. Washing-
Bank estava entre os responsáveis pela foi assinado em Viena, em 14 de julho Trump finalmente se viu livre para ton finalmente cedeu, e as sanções fo-
crise... O banco concedeu-lhe um adia- de 2015, pelo Irã e pelos cinco membros agir. Mesmo que nenhum dos outros ram suspensas em novembro de 1982.
mento de cinco anos.2 O futuro presi- permanentes do Conselho de Seguran- países signatários tenha seguido os Depois da Guerra Fria, no entanto,
dente não demorou a entender que a ça da ONU (Estados Unidos, Rússia, Estados Unidos em sua retirada, a de- assistiu-se a uma intensificação das
ameaça de um recurso judicial poderia China, França e Reino Unido), bem co- cisão de Washington terá sérias conse- reivindicações extraterritoriais, sob o
ter efeitos dissuasivos. Estima-se que te- mo pela Alemanha, após vários anos quências para suas relações com a Eu- pretexto de que a globalização deveria
nha participado, como queixoso ou de ásperas negociações. Ele também ropa, por causa do restabelecimento ser acompanhada de regras comuns.
acusado, em mais de 3,5 mil processos. foi avalizado em 20 de julho de 2015 pe- das sanções contra as empresas norte- Somente em 1996 os Estados Unidos
© Mello
Novato na política, Trump prome- la Resolução n. 2.231, do mesmo Con- -americanas ou estrangeiras que con- aprovaram duas leis baseadas nesse
teu colocar seus talentos de “maior ne- selho de Segurança, adotada por una- tinuem a comercializar com o Irã. princípio. A Lei Helms-Burton tem co-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 31
mo alvo empresas estrangeiras que in- trate de lavagem de dinheiro, do finan- que se parecem com uma capitulação posições de Israel e da maioria dos Es-
vestem em território cubano, enquan- ciamento do terrorismo ou de campa- em campo aberto. Em uma circular de tados do Golfo em tudo que se refere
to a Lei Amato-Kennedy se aplica ao nhas anticorrupção, as leis adotadas dez páginas, o Departamento de Con- ao Irã faziam prever um grande con-
Irã e à Líbia. A União Europeia respon- em todo o mundo são calcadas nas de- trole de Ativos Estrangeiros (Office of fronto com seus aliados transatlânti-
deu com um dispositivo de bloqueio les.3 E é frequentemente a justiça desse Foreign Assets Control, Ofac) do Te- cos. Mas as lições da história mostram
que proíbe qualquer pessoa europeia país que desencadeia processos e san- souro publicou a lista de regulamentos bem os riscos do unilateralismo para a
física ou jurídica de se submeter a atos ciona entidades estrangeiras por in- que devem reger o restabelecimento hegemonia norte-americana. Há pou-
administrativos, legislativos ou judi- frações cometidas fora do território de sanções. Aquelas que foram classi- co mais de vinte anos, em 1997, três
ciais decididos por uma potência es- nacional. Dessa forma, em junho de ficadas como “secundárias”, suspen- conselheiros diplomáticos próximos
trangeira. Além disso, deu início a um 2014, o banco BNP Paribas foi conde- sas pelo Acordo de Viena, serão resta- aos presidentes Jimmy Carter, George
litígio perante o Órgão de Solução de nado a pagar US$ 8,9 bilhões ao Tesou- belecidas no prazo de noventa dias (ou H. W. Bush e Bill Clinton, respectiva-
Controvérsias da Organização Mun- ro norte-americano por violar, por seja, a partir de 6 de agosto) para o se- mente Zbigniew Brzezinski, Brent
dial do Comércio (OMC) com o objeti- meio de sua filial suíça, os embargos tor automotivo e 180 dias (4 de novem- Scowcroft e Richard Murphy, adver-
vo de contestar a aplicação extraterri- impostos pelos Estados Unidos a bro) para o setor petrolífero. As empre- tiam: “A política de sanções unilate-
torial dessas leis. A Comissão Europeia Cuba, Irã e Sudão.4 Nos últimos anos, sas que se recusarem a se submeter à rais dos Estados Unidos contra o Irã se
chegou a estabelecer uma lista de em- várias multinacionais europeias tam- nova regulamentação poderão, por mostrou ineficaz, e a tentativa de for-
presas norte-americanas que pode- bém caíram na malha do Foreign Cor- decisão de Trump, acabar em uma lis- çar os outros a seguir o exemplo dos
riam ser atingidas por sanções espe- rupt Practices Act (FCPA – Lei de Práti- ta (Specially Designated Nationals Estados Unidos foi um erro. A intimi-
lhadas. Essa determinação funcionou: cas de Corrupção no Exterior), de 1977, List, “Lista de Nacionais Especialmen- dação extraterritorial gerou tensões
os Estados Unidos aceitaram a sus- que proíbe subornar líderes de países te Designadas”) cujos ativos poderão desnecessárias entre a América e seus
pensão de seus dispositivos de sanção terceiros para obter contratos. Várias ser bloqueados e com os quais entida- principais aliados e ameaçou a ordem
no caso dos europeus, que então reti- empresas tiveram de pagar multas ele- des e cidadãos norte-americanos não internacional de livre-comércio que os
raram a queixa feita à OMC. vadas, entre elas a francesa Alstom podem negociar. Estados Unidos vêm promovendo há
Que aconteceu desde então? É ver- (US$ 772 milhões em 2014) e a alemã No Conselho de Sófia de 16 e 17 de tantas décadas”.5
dade, houve o efeito 11 de Setembro. A Siemens (US$ 800 milhões em 2008). maio, os líderes europeus declararam
natureza global do terrorismo pareceu Basta uma ligação, mesmo tênue, para sua vontade unânime de permanecer *Ibrahim Warde é professor associado da
justificar, por exemplo, a vigilância a justiça norte-americana se conside- no acordo – um desejo difícil de reali- Fletcher School of Law and Diplomacy, em
dos fluxos financeiros em âmbito glo- rar competente: no caso do BNP Pari- zar – sem nem sequer apresentar um Medford, Estados Unidos.
bal. Aprovado após os ataques, o USA bas, as transações ilegais eram deno- recurso à OMC. Único anúncio concre-
Patriot Act (Uniting and Strengthe- minadas em dólares. Ter uma conta to: a aplicação de uma lei de bloqueio
ning America by Providing Appropria- nos Estados Unidos ou mesmo trocar (aprovada em 1996) que visa neutrali- 1 Alexandra Berzon, “Donald Trump’s business plan
te Tools Required to Intercept and e-mails que passam por um servidor zar os efeitos extraterritoriais das san- left a trail of unpaid bills” [O plano de negócios de
Obstruct Terrorism, “Unindo e Forta- baseado naquele país também abre a ções norte-americanas. O ministro da Donald Trump deixou um rastro de contas não pa-
gas], The Wall Street Journal, Nova York, 9 jun.
lecendo a América por Meio do Forne- porta para processos. Economia francês, Bruno Lemaire, es- 2016. Leia também “Triomphe du style paranoïa-
cimento de Ferramentas Apropriadas tá propondo mecanismos de financia- que” [Triunfo do estilo paranoico], Le Monde Di-
Necessárias para Interceptar e Obs- UMA ESTRATÉGIA CONTRAPRODUTIVA mento independentes para investi- plomatique, dez. 2016.
2 Richard Cohen, “Why Trump’s handling of a Deuts-
truir o Terrorismo”) concedeu ao Exe- O caso das sanções contra o Irã não mentos no Irã e indenização pela che Bank loan is so foreboding” [Por que a manipu-
cutivo prerrogativas adicionais. Novo deixa de ser uma ruptura. No mesmo União Europeia para empresas que lação de um empréstimo do Deutsche Bank por
aspecto do “privilégio exorbitante” da dia da denúncia do acordo nuclear, o possam ser vítimas do mecanismo de Trump é tão agourenta], The New York Times, 20
jul. 2017.
moeda norte-americana de que falava novo embaixador norte-americano sanções secundárias reativado pelos 3 Cf. Ibrahim Warde, “L’internationalisation de la
outrora o general De Gaulle, todas as em Berlim, Richard Grenell, publicou Estados Unidos. Mas nada indica que compliance à l’américaine” [A internacionalização
transações em dólares ficaram sujei- um tuíte em forma de decreto: “As em- ele vai convencer seus colegas euro- da compliance no estilo norte-americano], Audit,
Risques et Contrôle, Paris, 4º trimestre de 2015.
tas à lei dos Estados Unidos, mesmo presas alemãs que fazem negócios no peus, enquanto, para uma empresa, 4 Ler “Les États-Unis mettent les banques à l’amen-
quando não intervinham em seu terri- Irã devem se retirar imediatamente!”. todas essas medidas não pesam quase de” [Os Estados Unidos multam os bancos] e
tório. Falou-se então de uma era de Mais tarde, ele argumentaria que a seu nada diante da ameaça de serem corta- Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la loi… amé-
ricaine” [Em nome da lei... norte-americana], Le
globalização da compliance no estilo ver isso era uma obrigação moral. das do mercado norte-americano. Monde Diplomatique, respectivamente jul. 2014 e
norte-americano. O novo secretário de Estado, Pom- Desde sua eleição, Trump não dei- jan. 2017.
Entre imposição e mimetismo, as peo, prometeu colocar de joelhos os xou de manter distância em relação à 5 Zbigniew Brzezinski, Brent Scowcroft e Richard
Murphy, “Differentiated containment” [Contenção
leis e práticas dos Estados Unidos es- Estados que ajudem o Irã, a menos que Europa. Sua afinidade com os regimes diferenciada], Foreign Affairs, Nova York, maio-jun.
tão se internacionalizando. Quer se Teerã concorde com doze condições autoritários e seu alinhamento com as 1997.
MINISTÉRIO DA CULTURA, GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA, LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À
CULTURA DO RIO DE JANEIRO, PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO E SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA APRESENTAM
7 — 20 JUN
EM TODO O BRASIL
variluxcinefrances.com
32 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
LIBERTAÇÃO CALCULADA
“E
stamos finalmente virando um As mulheres sauditas estão felizes 2017. As mulheres podem finalmente nua agarrada a seu passado, em nome
país normal”, exclama Najat M., com essas mudanças? É difícil saber. prescindir do endosso de seu mahrâm de costumes ancestrais? Não existe res-
estudante de Arquitetura em Não existe liberdade de expressão, e a (marido, pai, irmão ou até o filho ou posta única. Muito utilizadas (93% da
Riad. A opinião se ouve em toda sociedade (30 milhões de pessoas, um qualquer outro homem da família) pa- população têm acesso à internet), as re-
parte. No reino saudita, tantas vezes terço delas estrangeiras) é muito ato- ra fazer procedimentos administrati- des sociais – principalmente o Twitter,
criticado, entre outros motivos, pela mizada. As jovens parecem satisfeitas vos, trabalhar ou abrir uma empresa, mas também Instagram, Snapchat e
dureza da condição feminina, multi- – e 70% da população tem menos de 35 mas ainda precisam de autorização Facebook – funcionam como institutos
plicam-se os indícios de mudança. anos –, mas muitas mulheres dizem para tirar passaporte, viajar e, princi- de pesquisa, na falta de um melhor: em
Uma mulher nomeada para um cargo que estão cansadas de ver a Arábia palmente, casar, como na maioria dos 2016, segundo a Global Media Insight, a
de responsabilidade; uma sala de ci- Saudita ser julgada apenas pela condi- países muçulmanos. Arábia Saudita detinha o recorde mun-
nema reaberta após trinta anos de ção das mulheres. “Ter esse olhar su- dial de participação nessas platafor-
proibição, com público misto. O Exér- perior sobre nós me irrita muito. Nós mas. Mas esses espaços de liberdade
cito e a polícia passaram a recrutar queremos ditar nossa conduta, mas são vigiados, e a população desconfia.
mulheres, e as autoridades estudam somos um país de tribos e tradições. Embora se declare “Muitas pessoas aqui consideram as
abolir a proibição do convívio misto Temos o direito de evoluir em nosso “confiante no futuro”, um mudanças atuais anti-islâmicas. Agora,
em lugares públicos e o fechamento próprio ritmo!”, exclama a universitá- porém, outras vozes podem se expres-
fato a preocupa: essas
compulsório do comércio nos horários ria Hoda al-Helaissi, uma das trinta sar. Até então, não podíamos ouvi-las
de oração.1 mulheres integrantes da Majliss al- mudanças se devem a ou elas eram demonizadas”, explica
Toda semana cai um tabu. O que -Shura, assembleia consultiva encar- “uma só pessoa”, Hatoon al-Fassi.
mais fez barulho foi provavelmente o regada de apresentar propostas legis- o que não parece Embora se declare “confiante no
fim da proibição de a mulheres dirigi- lativas ao governo (seus 150 membros, futuro”, um fato a preocupa: essas mu-
“muito saudável”
rem: a partir de junho, elas poderão todos não eleitos, são nomeados pelo danças se devem a “uma só pessoa”, o
ser habilitadas sem necessitar do con- rei, e as mulheres passaram a ser acei- que não parece “muito saudável”. Ela
sentimento de seu “tutor” masculino. tas em 2013). faz alusão ao príncipe herdeiro, que
A medida foi anunciada em setembro, “Em dois anos conseguimos o que Embora Hatoon al-Fassi, feminista decide soberanamente – e muitas ve-
como parte do vasto programa de re- estávamos pedindo havia mais de trin- de longa data e professora de História zes brutalmente – as reformas que de-
formas econômicas e sociais imposto ta. As mudanças são enormes. É preci- das Mulheres da Universidade Rei vem ser feitas, sem dar a menor espe-
pelo príncipe herdeiro Mohammed so vir aqui ver para acreditar”, avalia Saud considere que a atmosfera atual é rança de abertura no plano político.
bin Salman (conhecido como “MBS”), Fawziah Albakr. A professora de Socio- “positiva” para as mulheres, cada dia é Ao contrário de seus vizinhos irania-
de 32 anos, filho do rei Salman, de 81. logia da Educação da Universidade Rei uma batalha. “Os homens estão sob nos, que elegem o presidente e o Parla-
Até o uso da abaya, longa vestimenta Saud é uma das 47 pioneiras que, em 6 pressão. Eles não sabem qual é sua mento, os sauditas e as sauditas não
preta com a qual as mulheres sauditas de novembro de 1990, pegaram no vo- margem de manobra”, diz. Ela tem a votam para definir seus deputados. A
se vestem da cabeça aos pés nos espa- lante e dirigiram pela capital, a fim de dimensão disso toda semana, quando monarquia concentra todos os pode-
ços públicos, está sendo questionado. chamar a atenção para a proibição de envia sua coluna ao jornal governista res, ou quase. O regime chegou a en-
Em fevereiro, um clérigo anunciou no dirigir, anacronismo único no mundo. Al-Riyad. Às vezes, a colunista precisa durecer, e o medo é palpável. Para es-
rádio que se vestir “modestamente” Mas, para as mulheres, a verdadeira re- esperar três semanas para ver seu arti- tabelecer seu poder, MBS não hesita
pode ser suficiente. Algumas semanas viravolta veio com certeza há dois anos, go publicado, porque o assunto é deli- em colocar seus adversários atrás das
depois, durante viagem oficial aos Es- com a retirada dos poderes do Comitê cado, e a direção – exclusivamente grades, sejam eles conservadores ou
tados Unidos, MBS declarou, em uma para Promoção da Virtude e Combate masculina – teme desagradar ao po- progressistas. Várias ondas de deten-
entrevista, que uma muçulmana sem ao Vício, cuja polícia religiosa – a Mout- der. A reação dos religiosos também é ções ocorreram entre junho e novem-
abaya é uma muçulmana “como as tawa – as perseguia em todos os luga- temida. Apesar de estarem sob contro- bro de 2017, às vezes por uma simples
outras”. Em um momento no qual o res públicos. “Isso mudou nossa vida. le do poder político desde o advento de mensagem de caráter político no Twit-
reino procura a todo custo se diferen- Antes, todas ficavam de olho para ver MBS, eles continuam sendo um par- ter, e muita gente ainda está chocada
ciar de seu rival iraniano, cultivando se a outra estava ‘andando na linha’. ceiro-chave da monarquia e poderiam com o caso Ritz-Carlton, nome do ho-
boas relações com o Ocidente, o status Nós nos sentíamos assediadas na rua. agir, se necessário.3 “Seguimos tatean- tel em Riad onde diversas personalida-
das mulheres é um elemento essencial Nossa vida melhorou muito”, acres- do, mas cada passo à frente é uma vitó- des ficaram presas.
da comunicação do príncipe herdeiro. centa Fawziah Albakr. ria”, diz Hatoon al-Fassi, antes de lan-
As maiores agências ocidentais (Publi- Para as mulheres mais instruídas, çar algumas frases contundentes BEDUÍNAS DIRIGEM HÁ TRINTA ANOS
cis, Image 7, Edile Consulting) foram o próximo objetivo é abolir a tutela contra “esses homens covardes que No popular souk de Swakah, no sul
chamadas para o resgate. Sua missão: masculina. Essa disposição da xaria, não tomam a iniciativa nem dizem o de Riad, as mulheres estão preocupa-
tentar melhorar a péssima imagem do em vigor no país, que trata as mulhe- que pensam”. das com as mudanças. Todas estão
reino no mundo e, de passagem, tam- res sauditas como menores de idade A maioria dos sauditas está pronta hermeticamente cobertas com aba-
bém a de Bin Salman.2 por toda a vida, foi aliviada apenas em para aceitar essas mudanças ou conti- yas, hijabs e niqabs pretos. Nenhuma
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33
fala seu verdadeiro nome. Aqui, a mu- Reema, prima de Nurah, lançou-se
dança é percebida como uma ameaça. na confecção e venda de abayas na in-
“Eu sou contra o comportamento das ternet. Modernas e coloridas, suas
mulheres e tudo o que tem havido nos criações parecem vestidos de prince-
últimos tempos”, diz uma mulher de sas ou de noivas. Muito rapidamente,
seus 60 anos, cujos olhos, único ele- graças às redes sociais, os pedidos
mento visível através do niqab, se en- cresceram. Muitas de suas amigas
chem de lágrimas. Ela vende roupas há também optaram pelo comércio on-li-
22 anos. “O trabalho para as mulheres ne, setor em franca expansão, espe-
não é contrário ao islã, mas todo o res- cialmente entre as mulheres. Outra
to vai contra a castidade que devemos vende pratos prontos, e outra, joias.
guardar.” Enquanto fala, ela olha furti- Outra, ainda, é maquiadora profissio-
vamente em torno de si e acrescenta nal. A maioria vai bem. Nos fins de se-
em voz alta: “Mas vida longa ao prínci- mana, elas se encontram em lugares
pe herdeiro!”. que recentemente se tornaram mistos,
A poucos passos dali, Nurah L., de como o Café Bateel, e descobrem o ros-
25 anos, de quem só podemos ver os to. É a oportunidade – raríssima – de
olhos maquiados e as unhas pintadas conhecer rapazes.
de branco, também se diz “contra o di- A 750 quilômetros de distância,
© Laura Erber
reito de dirigir” concedido às mulhe- mais a oeste, Taif quase faz Riad pare-
res. Seu marido garante seu desloca- cer uma cidade liberal. Meca está a
mento, pela manhã e à noite. “Nossa apenas 65 quilômetros dali. Mas, ao
vida é boa assim. Não somos ociden- contrário de Jidá, que está aberta ao
tais”, argumenta. Ela gosta de poder contato de peregrinos vindos do mun-
trabalhar: “Meu marido me deu per- Ambiciosas as sauditas são, e não táveis shopping centers, onde as mu- do todo, Taif, com 987 mil habitantes,
missão sem problemas. Eu levo dinhei- escondem isso. “Elas aproveitam to- lheres passeiam. permanece muito conservadora. Lá, a
ro para casa e não fico entediada”. das as oportunidades. São mais dinâ- Os Mansour, uma antiga família segregação dos sexos é rigorosa. Ne-
Não longe dali, no souk Hijab, as micas que os homens, como se tives- burguesa e rica, são bastante conser- nhum restaurante, nenhum café que-
reações das mulheres pouco diferem. sem uma vingança a realizar!”, vadores. “Eu desconfio das mudanças bra as regras. E o preto é onipresente...
Mas temos algumas surpresas. Diri- observa um jovem empresário. Entre atuais. ‘Eles’ querem que a gente vire “Aqui não se pode fazer nada. Há
gir? Ibtissam S. e Norr K., ambas com as meninas, 97% são escolarizadas. Dubai. Eu me apego a nossos valores e sempre um homem te controlando.
50 e poucos anos, desatam a rir sob o Na universidade, as mulheres são 60% não vou abrir mão do meu niqab”, diz Nunca nos deixam em paz!”, lamenta
niqab: “Nós dirigimos há trinta anos! da força de trabalho. Na realidade, a uma mulher de cerca de 50 anos. “Sou Salwa M., de 26 anos, estudante de
Entre os beduínos, as mulheres se sen- libertação – muito relativa – das mu- muçulmana, essa é minha identida- Ciências Islâmicas, alegre e divertida.
tem nesse direito. Aliás, como poderia lheres começou sob o reinado do rei de.” Dirigir? Elas são a favor, “desde “Eu tenho sorte, meu pai confia em
ser de outro jeito, longe de tudo?”. Elas Abdullah (2005-2015). Foi ele quem as que não nos obriguem!”. Para elas, o mim, mas não é assim com as minhas
vivem em aldeias ou acampamentos autorizou a trabalhar no comércio. importante é “ter escolha”, e isso em amigas. Toda vez que elas imploram
50 quilômetros ao norte da capital. Empregos normalmente modestos, de todas as áreas. Uma delas, que viveu ao tutor: ‘Me deixe sair’, a resposta é:
“Eu trabalho porque preciso de di- caixa e vendedora, mas que abriram o seis anos nos Estados Unidos, prefere ‘Não’, e muitas vezes elas apanham.”
nheiro. O trabalho é um dom de Deus. caminho para todas as áreas, com ex- manter o motorista: “É caro, mas me- Ela conta que muitas têm namorado.
O profeta, aliás, nos encorajou a isso”, ceção da magistratura – já que o wah- nos cansativo”. Como ela, milhares de Enquanto seus pais pensam que estão
declara uma viúva, mãe de oito filhos. abismo considera, assim como outras mulheres sauditas têm um motorista na aula, elas chamam um motorista
Sua amiga acrescenta: “Desde que não correntes no islã, que a função de juiz paquistanês, indiano ou bengali. Mão para deixá-las na casa de alguém. Em-
seja contra o islã e não convivamos é proibida para as mulheres pela xa- de obra muçulmana pronta para ser bora condenadas, as relações sexuais
com homens, podemos fazer o que ria. Ao mesmo tempo, Abdullah distri- extremamente explorada. E a tutela? antes do casamento são comuns. Em-
quisermos!”. Quatro mulheres confes- buiu bolsas de estudo no exterior para “A partir de certa idade, 21 anos, por bora o aborto seja estritamente proibi-
sam – com cautela –, em torno de uma centenas de milhares de jovens, 30% exemplo, devemos poder prescindir do, exceto no caso de risco de vida pa-
banca de roupas íntimas: “Se até agora deles mulheres. “Tudo isso contribuiu dela”, avaliam. As moças ouvem suas ra a mãe, qualquer mulher consegue
as mulheres eram proibidas de dirigir, para a abertura das mentes. Os jovens mães e tias, mas às vezes dão sua opi- uma pílula anticoncepcional na far-
era para protegê-las. O homem deve estão conectados ao mundo exterior nião. Estudantes, a maioria diz que mácia, mesmo sem receita médica.
assumir suas responsabilidades”, re- com as redes sociais”, ressalta a uni- quer “morar dois ou três anos no exte- Segundo Salwa, se as moças se ca-
pete uma delas. As outras aprovam versitária Hoda al-Helaissi. “Com a rior, mas depois voltar”. Todas preten- sam em Taif – sempre casamentos ar-
vigorosamente. crise econômica, não podemos mais dem trabalhar e se casar, “mas não an- ranjados –, é por despeito, “para conse-
viver com apenas um salário, e as mu- tes dos 30 anos, e sem ter mais de dois guir liberdade”. Casada e mãe, a mulher
EM TAIF, UMA SEGREGAÇÃO RIGOROSA lheres querem uma carreira. Muitas ou três filhos”. A abaya? “É prática e tem autoridade em casa. A educação
Jasmeen D. e Mariam N., estudan- vezes, elas são apoiadas pelo marido, elegante, como um casaco”, dizem. das crianças e as despesas são de sua
tes de Economia, trabalham meio pe- irmão ou pai.” Nurah lamenta não ter conseguido responsabilidade. Quanto à poligamia
ríodo como vendedoras no souk Hijab. Na verdade, tudo depende da famí- estudar Veterinária, curso ainda ina- (entre 8% e 10%), ela tem se tornado ra-
Elas passam o dia teclando no celular. lia, do ambiente, do lugar... Todo fim cessível às mulheres. Para compensar, ra na geração mais jovem, embora de
A segunda é noiva de um estudante de de semana, as mulheres da família estuda Ciências e, principalmente, vez em quando vozes se levantem para
Medicina que ela conheceu numa festa Mansour se reúnem para jantar com a monta a cavalo. Um dia, tem certeza, pleiteá-la em seu favor, a fim de “reme-
de casamento. Ele a viu de longe, quan- avó, sob uma gigantesca tenda beduí- representará seu país nos Jogos Olím- diar” o celibato das mulheres.
do ela tirou o niqab, e pediu sua mão a na plantada no jardim da casa da fa- picos. “Meu irmão me disse: ‘Você po- Quando não está na aula, Salwa
seus pais. “As mudanças atuais vão na mília. O barulho dos carros que atra- de competir, mas está fora de questão passa a vida em frente à televisão. Ela
direção certa. E, graças à permissão vancam Riad se ouve muito ao longe. A aparecer na TV ou falar com os jor- adora as novelas turcas e indianas. So-
para dirigir, em breve seremos autôno- capital (6 milhões de habitantes) é nais!’. E eu respondi: ‘É a minha vida. bre os homens sauditas, não tem ilu-
mas!”, diz sua amiga, sorrindo e fazen- uma cidade enorme e plana, construí- Cuide do que é da sua conta’.” E a desi- sões. “Eles não sabem o que é o amor.
do o V da vitória. No entanto, as moças da no deserto. Não há prédios residen- gualdade entre homens e mulheres na Só querem sexo...”
mantêm o princípio da tutela: “Senti- ciais, mas casas cor de areia que se es- Arábia Saudita? “Elas têm a ver com as Arranjados ou não, “quase metade
mo-nos protegidas”. O futuro? “Eu tendem ao infinito, avenidas ladeadas tradições, não com a religião”, avalia, dos casamentos hoje termina em di-
quero acima de tudo me sentir impor- por palmeiras robustas e empoeira- estabelecendo uma distinção clara en- vórcio”, diz Mohammed al-Amri. Re-
tante na sociedade!”, declara Mariam. das, arranha-céus futuristas e incon- tre os dois termos. centemente, o cientista social lançou
34 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018
um alerta na imprensa, tratando desse cultos que não o islã é proibida na Ará-
problema “que traz sérias consequên- bia Saudita]. Nesse momento, um ra-
cias para a sociedade”. Khadija S., de 28 paz de 20 e poucos anos se levantou e O IMPERATIVO DA DIVERSIFICAÇÃO ECONÔMICA
anos, amiga de Salwa, é divorciada. O disse: ‘No fundo, seu filme fala sobre a
marido batia nela. Agora ela vive com o
irmão, que se tornou seu tutor. Ela tra-
aceitação do outro, e é disso que senti-
mos falta aqui’”, lembra.
P assar de uma economia rentista para
uma economia produtiva: esse é o ob-
jetivo do Visão 2030, plano de desenvolvi-
menos de 30 anos está desocupado.
Quase dois terços das mulheres esta-
riam em busca de emprego. Em feverei-
balha em um salão de cabeleireiro. “O Primeira guia turística do reino, mento promulgado pelo rei Mohammed ro, o departamento dos passaportes nos
que preocupa meu irmão é o olhar dos Abir Abusulayman apresenta Al-Balad bin Salman (MBS). Totalmente dependen- aeroportos e nas fronteiras recebeu 107
vizinhos. Aqui, a única coisa que im- como ninguém, embora os turistas não te dos hidrocarbonetos, a economia saudi- mil mulheres se candidatando a 140 car-
porta é o que as pessoas vão dizer!” estejam se acotovelando pelas ruas. Ela ta passa por dificuldades. Entre o fim de gos oferecidos com prioridade para elas.
Suas duas amigas têm saudade da épo- lamenta os “estereótipos” construídos 2014 e o início de 2015, o preço do pe- Elevar a participação das mulheres na
ca da polícia religiosa: “Pelo menos não sobre as sauditas, segundo ela, pela im- tróleo passou de US$ 100 o barril para população ativa para 30% até 2030 –
éramos assediadas na rua. Agora so- prensa ocidental. “Quando me dizem: menos de US$ 45. Resultado: o reino hoje em 15% (40% no resto do Golfo)
viu sua taxa de crescimento cair para – permitiria aumentar a renda familiar,
mos! Os homens nos perseguem para ‘Vocês finalmente serão livres, vão po-
1,4% em 2016, contra 7% dois anos melhorar o crescimento e substituir os
pegar nosso número de telefone!”. Elas der dirigir’, eu fico chocada! Sim, meu
antes. Em 2017, o país chegou a entrar 11 milhões de estrangeiros que ocupam
sonham ir embora para um país “onde país está evoluindo em etapas. Dez em recessão. o lugar dos sauditas no setor privado.
as mulheres têm direitos”. Em Taif, anos atrás, ninguém poderia imaginar Em 2015, as autoridades reagiram: “MBS tem o mérito da coerência. Ele
acham que ainda vão ter de aguardar que chegaríamos lá”. fim das subvenções, repetidos aumen- não fala de religião, mas de economia. A
“pelo menos mais uma geração”. Em 2006, é verdade, a publicação tos das tarifas públicas e introdução de mudança econômica só pode vir com
do romance Les Filles de Riyad [As mo- uma taxa sobre o valor agregado (TVA mudança social, e essa mudança preci-
REPRESSÃO NUNCA FOI TÃO FEROZ ças de Riad],4 de Rajaa Alsanea, causou – imposto sobre o consumo) de 5% a sa envolver a mão de obra feminina”, en-
Com sua orla, sua cidade velha – Al- escândalo. Sob a forma de blog, quatro partir de janeiro de 2018. Preocupada fatiza Stéphane Lacroix, pesquisador e
-Balad, classificada como patrimônio amigas contam sua vida e seus amo- em manter o contrato social que a liga à professor do Instituto de Estudos Políti-
mundial pela Organização das Nações res. Nada muito chocante, só o coti- população, a família real criou paralela- cos de Paris.
mente uma conta-cidadão. Assim, 11 Anunciada há anos, a “saudização”
Unidas para a Educação, a Ciência e a diano das mulheres limado pelas tra-
milhões de sauditas recebem um bene- passou a ser feita na marra. Os estran-
Cultura (Unesco) –, suas esculturas ao dições. Originalmente publicado no
fício mensal (entre US$ 80 e 240). O geiros e suas famílias pagam impostos
ar livre e seus restaurantes de todas as Líbano, o livro logo começou a circu- PIB por habitante está em US$ 21 mil cada vez mais pesados. Os imigrantes
nacionalidades, Jidá, com 4 milhões de lar discretamente no reino. Em 2015, por ano, enquanto nos Emirados Árabes paquistaneses e indianos têm maciça-
habitantes (sendo 840 mil estrangei- Deux femmes de Djeddah [Duas mu- Unidos é de US$ 37 mil e, no Catar, de mente deixado o país.
ros), cidade mercantil situada às mar- lheres de Jidá], da romancista e médi- US$ 61 mil. Investidores e empresários continuam
gens do Mar Vermelho e passagem ca Hanaa Hijazi,5 também abalou a so- Ao mesmo tempo, o Estado, até então traumatizados pelo caso Ritz-Carlton:
obrigatória para Meca, portanto sujeita ciedade, mas não foi censurado. No responsável por 70% dos empregos, bus- durante três meses, no último inverno, o
a inúmeras influências, é sem dúvida a romance, duas amigas, esmagadas pe- ca mais aceleradamente desencarregar- hotel de luxo de Riad foi transformado
cidade mais sedutora – e menos con- las proibições, acabam cometendo -se de certas responsabilidades, amplian- em um cárcere dourado para a elite eco-
servadora – da Arábia Saudita. Além suicídio. O livro foi lido e bem recebido do a atuação do setor privado. Para nômica e política do reino, pega no que
diversificar sua economia, a Arábia Saudi- foi anunciado como uma vasta campa-
disso, segundo a lenda, foi ali que Eva, no geral, “inclusive pelos homens”, diz
ta aposta nas minas (potássio, cobre, urâ- nha anticorrupção. Os detentos (entre
mãe da humanidade, foi enterrada. a autora. Muitas leitoras, porém, criti-
nio, ouro), no setor petroquímico, nas eles o bilionário Al-Walid ben Talal) fo-
Lá também as avenidas são des- caram o final trágico. “Eles queriam energias renováveis e no turismo. O reino ram libertados após um acordo financei-
proporcionais e o número de shopping outro fim para as duas heroínas, e isso espera passar dos 8 milhões de peregri- ro com as autoridades, ou absolvidos.
centers é inacreditável. Mas as mulhe- me confortou. Elas imaginaram, por- nos que chegam a Meca todo ano para A juventude e as classes populares
res são menos sufocadas do que em tanto, perspectivas para as mulheres.” 30 milhões até 2030 e, principalmente, aplaudiram essa operação “mãos lim-
qualquer outra parte do reino. As aba- Na possibilidade de dirigir, Lina deseja se abrir ao turismo não religioso. pas”, mas a alta burguesia de Riad e Jidá
yas muitas vezes são beges, azuis, cin- al-Maeena vê acima de tudo um sím- Sítios arqueológicos como Madain Saleh, a interpretou como uma chantagem do
za-pálido, enfeitadas com pérolas, bolo: “Dirigir nossa vida e – por que equivalente a Petra, na Jordânia, pode- príncipe herdeiro para forçar grandes
equipadas com zíperes... A vaidade é a não? –, um dia, o país!”, imagina. Na- riam se tornar destinos de primeira gran- fortunas a se juntarem a seus caros pro-
norma, e as cirurgias estéticas, muito da resiste a essa mulher de 40 e pou- deza. Ilhas do Mar Vermelho poderiam ser jetos. Balanço do caso: US$ 106 bi-
preparadas para receber turistas ociden- lhões “recuperados”, ao preço de uma
frequentes. A sociedade, dá para sen- cos anos, que acredita na emancipa-
tais. Por fim, o projeto Neom (US$ 500 crescente desconfiança dos investido-
tir, está em ebulição. Faz muito tempo ção por meio do esporte. Há doze
bilhões), no norte, planeja construir a ci- res, num momento em que mesmo a
que ali, mais que em outros lugares, os anos, ela criou a primeira equipe na- dade do futuro, equipada com todas as abertura do capital da gigante do petró-
sauditas encontraram na arte – cine- cional de basquete feminino, quando tecnologias mais avançadas. leo saudita Aramco – se isso acontecer
ma, pintura, literatura – um meio de o esporte era proibido para as mulhe- Oficialmente, o desemprego está em – não será suficiente para financiar to-
expressão ou evasão. res. Hoje, ela é membro da Assem- 12,8%. Um em cada três jovens com das as necessidades do reino. (F.B.)
Três meses antes da reabertura ofi- bleia Consultiva. Há um ano, o espor-
cial de um cinema em Riad, Mariam, te passou a ser obrigatório para as
filme de Faiza Ambah que celebra uma meninas nas escolas públicas. Aber-
adolescente francesa ansiosa para tura social ou emergência médica? jornalista de cerca de 40 anos. “Sim, eu *Florence Beaugé é jornalista.
usar o véu na escola, apesar da proibi- Segundo a Organização Mundial da tenho mais liberdade como mulher,
ção legal, já havia sido exibido em Jidá, Saúde (OMS), quase 70% das mulhe- mas nosso espaço de expressão de mo-
1 Vivian Nereim, “Saudi program calls for gender-mi-
no Arbab al-Heraf. Nesse espaço cul- res sauditas têm excesso de peso e do geral foi reduzido. Não tenho medo xing, no prayer closure” [Programa saudita estabe-
tural único, inaugurado em 2017 por 40% sofrem de obesidade. de andar na rua, mas tenho medo de lece mistura de gênero e fim do fechamento com-
um rapaz que voltou da Austrália, cer- O processo de modernização do falar com você de rosto descoberto. pulsório para oração], Bloomberg, Nova York, 4
maio 2018.
ca de sessenta jovens de ambos os se- país é irreversível? A entrada maciça Acho que a arbitrariedade hoje reina 2 Ler Gilbert Achcar, “Au Proche-Orient, la stratégie
xos assistiram ao filme. A diretora ad- de mulheres no mercado de trabalho é como nunca.” saoudienne dans l’impasse” [No Oriente Médio, a
mite ter ficado “chocada” com as um imperativo econômico. Nesse Aí estão os limites da aposta no fu- estratégia saudita sob impasse], Le Monde Diplo-
matique, mar. 2018.
reflexões dos jovens durante o debate campo, não tem volta. E o fato é que, turo. Seria a menor subordinação das 3 Ler Nabil Mouline, “Petits arrangements avec le
que se seguiu. “Eles ousaram falar so- nas declarações do príncipe herdeiro, mulheres a desculpa para um exercí- wahhabisme” [Pequenos arranjos com o wahabis-
bre sua vida para estranhos. ‘Meu na- não se fala em democratização. As cio de poder despótico? Ou uma refor- mo], Le Monde Diplomatique, jan. 2018.
4 Rajaa Alsanea, Les Filles de Riyad [As moças de
morado me deixou porque eu não usa- eleições municipais são as únicas do ma indispensável para um regime que Riad], Plon, Paris, 2007.
va o hijab’, contou uma adolescente. reino.6 “No exterior, MBS é apresenta- deseja se tornar palatável na cena in- 5 Hanaa Hijazi, Deux femmes de Djeddah [Duas
Outra contou a experiência inversa: o do como um jovem príncipe reforma- ternacional, a fim de manter seu posto mulheres de Jidá], L’Harmattan, Paris, 2017.
6 Nas eleições de 2015, abertas pela primeira vez
namorado a proibia de usar. Outra dis- dor que luta contra a corrupção. Mas a ao lado de Washington e Tel Aviv no às mulheres, catorze foram eleitas, entre 2.106
se: ‘Eu sou cristã’ [a prática de outros repressão nunca foi tão feroz”, diz uma caso de uma guerra contra o Irã? assentos.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 35
SUICÍDIO NA ADOLESCÊNCIA
A morte evitável
Detectar precocemente que uma pessoa está em risco de suicídio – ou seja,
quando ela apresenta ainda “somente” ideias suicidas, mas nenhum plano concreto
de executá-lo – é a principal “janela de oportunidade” para preveni-lo
© Lucia Brandão
POR MARIO LOUZÃ*
egundo a Organização Mundial dos e alto desempenho escolar pare- porta”, “a vida não vale a pena”. Nem soas com pensamentos suicidas se
ENTREVISTA
lza Soares, 87 anos, canta em cheio de respostas, como a própria de- demos falar mais, porque no passado de que faria algo importante no mun-
© Cristiano Navarro
“Menos dízimo e mais cesta básica”.
Deus não quer dinheiro.
MISCELÂNEA
bell hooks (a grafia é assim mesmo, em minús- de arquivo veiculadas tanto pela mídia inde- ONDE ESTÁ MEU CELULAR?
culas, por opção da autora) não pensou que um pendente quanto por grandes meios de comu- Um curta-metragem de 20 minutos, feito pelo
dia escreveria um livro infantil até se deparar nicação, em particular a Rede Globo. O foco é aluno holandês Antony van der Meer como pro-
com este motivo: depois de presenciar um ges- junho de 2013 e seus desdobramentos, e como jeto de graduação, tem mais de 7 milhões de vi-
to de racismo dentro da escola, ela precisava a mídia ajudou a construir justificativas para a sualizações no YouTube. Isso porque ele deixou
ajudar as crianças a crescer. A crescer saben- repressão brutal contra as manifestações e os seu celular ser roubado depois de ter instalado
do se defender de quem diz que cabelo afro protestos populares daquele momento. um programa que não poderia ser removido e
é “ruim” – mesmo quando esse alguém é sua Em janeiro deste ano, Operações foi se- enviava para ele imagens da câmera, além de
professora. A crescer em um mundo sem repre- lecionado para a Mostra de Cinema de Tira- outras informações, como a localização do apa-
sentatividade. Surgiu assim Happy to be nappy, dentes, cujo tema da curadoria foi o chamado relho. Assim, ele acompanha a vida do recepta-
lançado originalmente em 1999 e que chega ao “cinema urgente” – filmes que retratam temas dor, do ponto de vista de um espião dentro do
mercado literário pelas mãos da Boitatá, com sociais candentes e na ordem do dia, em ple- celular, descobre que este vai parar nas mãos
o título Meu crespo é de rainha, ilustrado por no calor dos acontecimentos. Se por um lado de um imigrante ilegal e levanta várias questões
Chris Raschka e traduzido por Nina Rizzi. os acontecimentos em questão não parecem éticas, como denunciá-lo ou não, o que levaria
Escrito em forma de versos rimados, o livro é tão próximos e já foram exaustivamente de- provavelmente à sua deportação.
um poema que celebra a beleza das estéticas batidos, por outro Operações refresca e traz <http://bit.do/vandermeer>
negras. Dos cachos, birotes e coquinhos que caminhos de reflexão sobre um tema funda-
enfeitam a cabeça das meninas, mesmo que mental em ano de eleição: como a construção MAPA DA EXPULSÃO DE
não apareçam nas capas das revistas vendendo da notícia se torna um poder de fato na deter- FAMÍLIAS DE SUAS CASAS
o padrão a ser seguido; versos que inspiram re- minação da opinião pública e na criminaliza- Desde 2017, ao menos 14 mil famílias foram
presentatividade. É lírico, é poético, mas é tam- ção de movimentos sociais. Esse é um grande removidas de sua moradia na Região Metro-
bém absolutamente político, afinal, em um país mérito do documentário. politana de São Paulo. Após a saída forçada, e
em que crianças negras têm 2,88 vezes mais Por meio da análise de discursos publicados mesmo quando recebem por alguns meses o
chance de sofrer homicídio do que brancas (se- em diversas fontes – mídia tradicional, mídia chamado bolsa-aluguel que o governo entrega,
gundo o Índice de Homicídios na Adolescência, livre, redes sociais e canais de internet – são de R$ 400 por família, a única saída tem sido
do Unicef, 3,65 em cada mil adolescentes que narrados sete eventos, desde o surgimento das viver em favelas ou novas ocupações, uma vez
completam 12 anos morrem vítima de homicídio manifestações de junho de 2013 até a prisão que a verba não é suficiente para alugar mora-
antes de chegar aos 19), afirmar a liberdade de preventiva de 23 pessoas. Essas prisões foram dias pelo valor de mercado. A política de desalo-
ser é um gesto fundamental, urgente de come- acompanhadas de repressão brutal à manifes- jamento, assim, tem provocado mais ocupações.
çar cedo. Pesquisas não faltam para nos mos- tação ocorrida no fim da Copa do Mundo, em O Observatório de Remoções da Faculdade de
trar qual é a cor e o gênero das maiores vítimas 2014, com a utilização de um aparato militar, Arquitetura e Urbanismo da USP fez um mapa
de violência no Brasil, seja ela física, emocional policial, judicial e midiático inédito. colaborativo em que mostra a situação de cada
ou simbólica. Sorte das crianças quando conhe- O filme está disponível na plataforma Tatura- remoção ocorrida na cidade. Uma das mais re-
cem livros que oferecem caminhos de se reco- na Mobilização Social para qualquer pessoa que centes foi na região da Luz – e há registros de
nhecer, afirmar e subverter essa realidade. queira organizar uma exibição coletiva e gratui- que pelo menos uma família expulsa de lá foi
Como diz Ana Paula Xongani na contraca- ta em seu espaço – uma escola, universidade, morar na ocupação do edifício que, incendiado,
pa da edição, um livro pode ser muitas coisas, centro acadêmico, ambiente de trabalho, centro desabou no dia 1º de maio no centro da cidade.
inclusive ferramenta. “Com este livro em mãos, cultural, cineclube. Mais informação: <http:// <www.observatorioderemocoes.fau.usp.br/ma-
nossas crianças terão – muito mais cedo que taturanamobi.com.br/film/operacoes-de-ga- pa-denuncias/>
as da minha geração – mais ferramentas para rantia-da-lei-e-da-ordem>.
reverter o processo histórico de invisibilidade.” [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
[Livia Chede Almendary] Sócia fundadora da professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
[Renata Penzani] Jornalista, escritora e pes- Taturana Mobilização Social e mestranda em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
quisadora do livro para a infância. Antropologia na PUC-SP. torando em Design na FAU-USP.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 39
Ayla Kataoka
DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Entre intenção e gesto há, de fato, um profundo abis- PARIS, LONDRES E BERLIM
2 Capachos europeus
Silvio Caccia Bava
Diretores
mo. E, como sempre, estamos a transitar no mero Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Por Serge Halimi
nível das constatações. O problema crucial, ou me- Rubens Naves
por processos de transformação da forma de pensar Por Silvio Caccia Bava Editor-web
e estar no mundo, é exatamente o de como fazê-lo, Cristiano Navarro
CAPA
como engendrá-lo, em um mundo de tantas com- 4 O fracasso da agenda econômica
Editores de Arte
plexidades, de uma espécie de visão individualista Adriana Fernandes e Daniel Kondo
Por Pedro Rossi e Guilherme Mello
que se sobrepõe (do tipo salve-se quem puder, por- O “teto” não pode cair sobre nossa cabeça Estagiária
que não há botes para todos), de controle quase ab- Por Grazielle David Taís Ilhéu
do mercado, diga-se, do consumo em grande escala, Por Carlos Eduardo Santos Pinho
Gestão Administrativa e Financeira
das desilusões políticas acumuladas e por aí poder- Arlete Martins
DITADURA
-se-ia aprofundar, aprofundar e, infelizmente, esta- 10 O ovo da serpente Assinaturas
ríamos no mesmo ponto: o de uma certa inércia no Por Lúcio Kowarick Viviane Alves
que se refere ao início desta longa caminhada. Não Tradutores desta edição
se trata exatamente de uma descrença, mas de algo UM PROJETO DE GRILAGEM Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,