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ANO 11 / NÚMERO 131 R$ 14,90

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MOÇAMBIQUE ESTADOS UNIDOS ENTREVISTA ESPECIAL
CAMPONESES ENFRENTAM COMO PAPAI ME OS DESEJOS E ANSEIOS
AGRONEGÓCIO BRASILEIRO COLOCOU EM HARVARD DE ELZA SOARES
POR STEFANO LIBERTI POR RICHARD D. KAHLENBERG POR GUILHERME HENRIQUE

LE MONDE
BRASIL
diplomatique
2 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

TRUMP HUMILHA PARIS, LONDRES E BERLIM

Capachos europeus
POR SERGE HALIMI*

s súplicas e as manifestações de

A afeto de três dirigentes euro-


peus – Emmanuel Macron, An-
gela Merkel e Boris Johnson –
que foram adular Donald Trump não
serviram para nada: o presidente dos
Estados Unidos respondeu humilhan-
do-os. Ele os ameaça com represálias
comerciais e financeiras se não viola-
rem o acordo que eles mesmos fecha-
ram há três anos com o Irã. Como os
Estados Unidos mudaram radicalmen-
te de posição sobre o assunto, seus
aliados são obrigados a se alinhar. Aos
seus olhos, Paris, Londres e Berlim são
coisa pequena, muito menor, em todo
caso, que Riad ou TelAviv.
“Sempre temos vontade de bater
em um homem que condena a si mes-
mo para quebrar em mil pedaços o
pouco de dignidade que lhe resta”, es-
creveu Jean-Paul Sartre em Les Che-
mins de la liberté [“Os caminhos da li-
berdade”]. Sua observação também Assim que foi anunciada a exigên- seria preciso haver mais da Europa.2 onze invadiram o Iraque ao lado das
vale para os Estados – os da União Eu- cia de Trump, a Total – ex-Companhia Mas, quanto mais esta se expande e se tropas norte-americanas.
ropeia, por exemplo. Macron procla- Francesa de Petróleo – anulou seus institucionaliza, menos resiste às or- A União Europeia não para de difi-
ma sua recusa em falar “com uma ar- projetos de investimento na República dens norte-americanas. Em 1980, os cultar seus critérios de convergência.
ma apontada para a cabeça” e Merkel Islâmica do Irã. O presidente Macron nove membros da Comunidade Eco- Ela se esquece sempre de um, que
lamenta que Washington torne as coi- tentava no mesmo momento preser- nômica Europeia tomavam posição a Trump acaba de lembrar: a necessida-
sas “ainda mais difíceis” no Oriente var o acordo com Teerã, mas deixava respeito do Oriente Médio em acordo de, para seus aderentes, de serem in-
Médio. Mas nem um nem outro pare- claro: “Digo com todas as letras: não com as aspirações nacionais do povo dependentes e soberanos.
cem dispostos a responder de outra vamos sancionar ou contrassancionar palestino; em 14 de maio passado, por
maneira a não ser com lamentos. E as as empresas americanas. [...] E não va- outro lado, quatro Estados da União *Serge Halimi é diretor do Le Monde
grandes empresas europeias entende- mos obrigar as empresas [francesas] a (Áustria, Hungria, República Tcheca e Diplomatique.
ram a quem deveriam obedecer, a par- ficar [no Irã]; isso é a realidade da vida Romênia) estavam representados na
tir do momento em que até mesmo o no mundo dos negócios. O presidente inauguração da Embaixada dos Esta-
envio de um e-mail transitando por da República francesa não é o CEO da dos Unidos em Jerusalém, no momen-
um provedor norte-americano ou o re- Total”.1 Que obedece, por consequên- to em que as Forças Armadas israelen- 1 Conferência de imprensa, Sofia, 17 maio 2018.
2 Um credo que o comentarista da rádio France In-
curso ao dólar em uma transação com cia, às ordens da Casa Branca. ses executavam dezenas de civis em
ter, Bernard Guetta, repete todas as manhãs há
o Irã as expõem a multas extravagan- Nossos infindáveis moinhos de ora- Gaza. Mais – se podemos dizer: dos 28 mais de vinte anos, não importa qual seja o assunto
tes (ler artigo na p. 30). ções concluíram desse episódio que membros atuais da União Europeia, de sua crônica.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

Enfrentar
a barbárie
POR SILVIO CACCIA BAVA

© Claudius
governo Temer não mede con- A aposta de que podem fazer tudo A disputa pela apropriação da ri- são buscas coletivas de defesa dos bens

O sequências e impõe o aumento


dos preços dos combustíveis
acompanhando a evolução dos
preços internacionais, buscando ele-
var a rentabilidade da Petrobras e das
sem reação por parte dos que são es-
poliados, de todos aqueles que vivem
do próprio trabalho, é uma aposta pe-
rigosa. A história nos mostra que as
multidões se mobilizam não por ra-
queza produzida na sociedade, por
parte dos trabalhadores, não se limita
ao valor da remuneração do salário e
da previdência, ainda que essas ques-
tões continuem centrais. Essa disputa
comuns e de formas democráticas no-
vas de expressão do povo.2
E é essa convergência de distintas
lutas, contra a espoliação, o racismo,
as discriminações de todo tipo e o co-
companhias internacionais que ope- zões ideológicas, mas para responder envolve também, e cada vez mais, o lapso das políticas públicas, que dá a
ram nesse setor à custa da sociedade aos problemas concretos postos como que veio a se definir como o acesso a liga para a expressão conjunta. As mo-
brasileira. um desafio para sua vida na socieda- bens públicos comuns, isto é, a oferta bilizações deixam de expressar inte-
É evidente que se trata de uma es- de. Não estão longe as mobilizações de pelo poder público, financiado com di- resses específicos e individuais e assu-
colha entre aumentar os lucros desse 2013, cujo estopim foram os aumentos nheiro dos impostos, de serviços e mem reivindicações comuns, mudam
setor empresarial e manter os preços nas tarifas de transporte coletivo. equipamentos que se tornaram indis- de natureza, seus atores se convertem
controlados para não castigar as maio- A contradição maior é entre um ca- pensáveis para a vida moderna, espe- em atores políticos.
rias. A Petrobras não precisa seguir os pitalismo financeirizado, que busca cialmente para a vida nas cidades. Em todo o mundo a ascensão de no-
preços internacionais; o Brasil tem pe- maximizar seus lucros a qualquer cus- Educação, saúde, transporte, moradia, vos líderes de esquerda se dá pela defe-
tróleo suficiente para não depender to, ignora as consequências sociais de saneamento básico, segurança, lazer, sa da qualidade de vida dos cidadãos e
dessas oscilações do mercado interna- suas práticas e promove a barbárie na cultura e segurança alimentar são po- cidadãs. Eles partem de uma análise da
cional, pode fazer sua própria política. vida em sociedade, e a defesa da quali- líticas públicas que se incluem na com- realidade de degradação das políticas
O impacto na sociedade dos au- dade de vida por parte de todos que vi- posição dos recursos que são indispen- públicas e propõem aberta e publica-
mentos sucessivos nos preços dos vem do próprio trabalho. sáveis para atender às necessidades mente que a riqueza produzida pela so-
combustíveis é, hoje, a melhor expres- A imposição pelo assim chamado das maiorias. ciedade não vá mais para os banquei-
são da lógica dos ataques que esse go- “mercado” – isto é, pelos grandes gru- O princípio político da luta em defe- ros, mas seja redirecionada e investida
verno ilegítimo e o grande capital pra- pos econômicos e financeiros que sa dos bens públicos comuns, enraiza- na melhoria e criação dos bens públi-
ticam contra o povo brasileiro. A controlam o governo – de uma lógica da nas preocupações cotidianas da cos comuns, dos salários, de uma renda
emenda constitucional que congela devastadora na tentativa de colocar existência concreta, articula inúmeras básica para todo cidadão e cidadã.
por vinte anos os gastos públicos, a re- toda a vida social, em suas várias e demandas específicas e dá sentido aos São tempos de ruptura, de recupe-
forma trabalhista, a reforma da previ- múltiplas dimensões, a serviço da movimentos, às lutas e aos discursos rar a democracia e radicalizá-la. E para
dência e outras medidas que provo- maximização de seus lucros submete que nos últimos anos se opuseram à ra- isso é preciso disputar as interpreta-
cam o empobrecimento da população, a vida e a rotina da população pela cionalidade neoliberal em várias partes ções da realidade, enfrentar as narrati-
o desemprego e o colapso das políticas coerção, uma vez que não há margem do mundo.1 vas que imobilizam, resgatar o sonho,
públicas, tudo isso aumenta o fosso da de negociação. É o que está aconte- As lutas atuais contra a universida- as utopias, a coragem e o entusiasmo.
desigualdade que envergonha o país. cendo com os preços do petróleo, de capitalista (nos Estados Unidos e no Como disse uma militante dos direitos
Vamos ser claros: são eles – esse go- mas não é demais referir a sucessão Chile), a favor do controle popular da humanos do Recife, se não há demo-
verno e as grandes empresas – os res- recente de reintegrações de posse distribuição de água (em Cochabamba cracia, não há espaço para apresentar-
ponsáveis pela promoção da barbárie, que afeta populações urbanas, qui- e na retomada da gestão privada das mos nossas demandas...
do sofrimento das massas, do deses- lombolas, ribeirinhos, indígenas. Fei- águas pelos governos municipais em
pero de quem tem de garantir o prato tas a ferro e a fogo, elas só levam à várias partes do mundo), os movimen- 1 Jean-Luc Mélenchon, L’Ère du peuple [A era do
de comida para sua família, de um agudização dos conflitos, propician- tos de ocupação de terras e imóveis ur- povo], Fayard/Pluriel, Paris, 2017.
2 Pierre Dardot e Christian Laval, Comum: ensaio
sentimento coletivo de insegurança, do a articulação de distintos atores banos, a ocupação das praças, as novas sobre a revolução no século XXI, Boitempo, São
da crescente insatisfação popular. espoliados de seus direitos. primaveras, todas essas manifestações Paulo, 2017.
4 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

CAPA

O fracasso da agenda econômica


Este artigo busca analisar a atual crise econômica e o significado da agenda econômica golpista.
Ademais, apresenta uma agenda alternativa para o desenvolvimento econômico, em que o crescimento
é movido pela redução das desigualdades e pelo aumento e melhoria da infraestrutura social
POR PEDRO ROSSI E GUILHERME MELLO*

golpe fracassou em construir mento das desigualdades, tampouco Outra faceta negativa da recupera- transportes que desabasteceu o país

O uma agenda econômica capaz


de retomar a trilha do desenvol-
vimento. Seus ideólogos espe-
ravam que, ao promoverem austerida-
de fiscal e reformas liberalizantes que
foi capaz de aplacar o crescimento do
desemprego e da precarização. A taxa
de desocupação foi a maior da série his-
tórica: a média anual de desocupados
cresceu de 6,7 milhões em 2014 para
ção está estampada no aumento da
pobreza e da miséria. Entre 2016 e
2017, 444 mil pessoas entraram na
condição de pobreza (pessoas cuja
renda familiar per capita é menor que
no fim de maio. A opção por orientar a
política de preços dos combustíveis
pelos preços internacionais e pelas va-
riações da taxa de câmbio agradou for-
temente os acionistas da empresa,
reduzem o papel do Estado e enfra- 13,2 milhões em 2017. A pobreza seguiu US$ 5,5 por dia). A pobreza extrema muitos deles estrangeiros, mas preju-
quecem os trabalhadores, emitiriam se ampliando, com as desigualdades de (pessoas cuja renda familiar per capi- dicou diretamente os setores produti-
sinais para o mercado, que por sua vez renda e regionais ampliando seu qua- ta é menor que US$ 1,9 por dia) au- vos dependentes da cadeia produtiva
melhorariam as expectativas e promo- dro já bastante deteriorado com a re- mentou 11,2%, o que representa quase do petróleo. A Petrobras perdeu espa-
veriam o crescimento do investimen- cessão de 2015/2016. 1,5 milhão de pessoas a mais nessa ço no mercado de combustíveis, le-
to. Com o crescimento em marcha, se- No mercado de trabalho, mesmo condição. No mercado de trabalho, se vando a uma redução no ritmo de refi-
ria criado o ambiente necessário para com a virtual zeragem do saldo de olharmos para a massa real de rendi- no e no crescimento da importação de
a legitimação do golpe e sua agenda contratados e demitidos com carteira mentos de todos os trabalhos dos 10% derivados de petróleo, dado o elevado
econômica neoliberal nas urnas. Esse assinada, o desemprego cresceu e ve- com maior renda e dos 10% com menor preço dos produtos no mercado do-
plano fracassou e lançou o Brasil em rificou-se o aumento da precarização renda, veremos que, enquanto a massa méstico. A lógica privatista aplicada na
uma crise econômica, social e institu- e dos vínculos informais. É verdade de rendimentos entre os de maior ren- administração da Petrobras é apenas
cional sem precedentes. que o número de desocupados tem da reverteu sua trajetória em 2017 um exemplo de como a agenda neoli-
A crise econômica brasileira pros- caído nos últimos trimestres e com (crescendo aproximadamente 10%), o beral, quando posta em prática, pode
segue e as reformas neoliberais já re- ele também a taxa de desocupação, mesmo não ocorreu com a massa de gerar enormes perdas sociais e criar o
velam seu viés recessivo e antitraba- porém o número de pessoas que de- rendimentos dos trabalhadores de me- caos, em vez da ordem.
lhador. Mais grave do que os impactos sistiram de procurar trabalho (desa- nor renda, que seguiu em queda. Dado o fracasso da agenda golpis-
negativos da crise no presente são as lento) continua aumentando, bem Se juntarmos a queda na renda do ta, é preciso debater outra agenda eco-
perspectivas negativas para o futuro: como aqueles ocupados que gosta- trabalho dos mais pobres com a redu- nômica, que se contraponha frontal-
com a reforma trabalhista e a limita- riam de trabalhar mais horas, mas ção de seu “salário indireto”, recebido mente aos retrocessos sociais e busque
ção do crescimento dos gastos públi- não conseguiram. por meio da prestação cada vez mais a redução das desigualdades, o cresci-
cos, os direitos sociais, trabalhistas e o Ademais, as mudanças na composi- precária dos serviços públicos sociais, mento econômico e a melhora efetiva
financiamento da Previdência Social ção entre os ocupados indicam que as o quadro se torna ainda mais dramáti- no mercado de trabalho.
ficam ameaçados. transições de desocupados para ocu- co. A Emenda Constitucional 95 (ler
pados se concentram na informalida- mais nas págs. 6 e 7), que pretende re- O SOCIAL É O CAMINHO PARA O
A AGENDA ECONÔMICA GOLPISTA: CRISE, de, isto é, assalariados sem carteira as- duzir os gastos públicos federais – per DESENVOLVIMENTO
PRECARIZAÇÃO E DESIGUALDADE sinada, trabalhadores por conta própria capita e em proporção do PIB – por O Brasil terá um enorme potencial
A economia brasileira cresceu 1% e empregadores que não contribuem vinte anos e atinge diretamente o fi- de crescimento econômico e desen-
em 2017, registrando quatro trimestres para a seguridade social. Até o início de nanciamento de áreas como saúde, volvimento produtivo quando enfren-
consecutivos de expansão, o que mar- 2017, observou-se uma queda no núme- educação e segurança, sinaliza para tar suas duas principais mazelas: a
cou o fim do período de queda do PIB ro de ocupados informais, na esteira da uma deterioração social progressiva, concentração de renda e a carência na
no país. Apesar disso, o ritmo lento da destruição de todos os tipos de ocupa- uma vez que afeta a oferta de serviços oferta pública de bens e serviços so-
recuperação do PIB e do emprego faz ção. A partir de 2017, quando algumas públicos essenciais. ciais. Isso porque a distribuição de
que se projete que apenas em 2022 o novas vagas começaram a ser criadas, o Em suma, o ano de 2017 registrou renda e o investimento social são ex-
Brasil retomará o nível de produção de número de informais cresceu, alcan- um tímido crescimento positivo, mas tremamente funcionais ao crescimen-
2014 – o mais longo período de recupe- çando 34 milhões de pessoas no último está longe de tirar o país do cenário de to econômico e à diversificação produ-
ração de nossa história. trimestre do ano. Ou seja, quase a tota- crise e prostração em que ainda se en- tiva e tecnológica, como já mostrado
Se a taxa de crescimento foi positiva lidade das novas vagas criadas no pe- contra. O baixo dinamismo do PIB, o no artigo “Desenvolvimento social e
no ano, sua aceleração foi diminuindo ríodo foram informais, assalariados volume recorde de desemprego, a cres- estrutura produtiva”, publicado pela
ao longo dos trimestres de 2017. Na sem carteira, empregadores e trabalha- cente precarização, assim como o au- Frente Brasil Popular e de autoria dos
comparação entre trimestre contra o dores por conta própria sem contribui- mento da pobreza e da desigualdade economistas Eduardo Fagnani, Esther
trimestre imediatamente anterior, os ção, como mostra a Figura 1. regional apontam para uma recupera- Dweck, Marco Antonio Rocha e Rodri-
valores do ano foram de crescimento Depois de anos de queda, obser- ção lenta e de baixa qualidade, sem go Teixeira, além dos dois economistas
de 1,3%, 0,6%, 0,2% e 0,1%. Essa desa- vou-se um aumento da desigualdade perspectivas sustentáveis de reversão autores deste texto.
celeração ganhou ares de estagnação na renda familiar do trabalho em 2017, da crise social e econômica que se ins- A distribuição da renda é o primeiro
nos últimos dois trimestres do ano, jo- ano da “recuperação” do crescimento. talou no país. “motor” do crescimento, uma vez que a
gando dúvidas acerca da sustentabili- O índice de Gini desse tipo de rendi- Talvez o exemplo mais bem acaba- ampliação da renda das famílias fo-
dade do crescimento em 2018. mento, medida usual para calcular a do do fracasso da estratégia neoliberal menta o mercado interno de consumo,
No entanto, mais grave que a lenti- desigualdade, saltou de 0,614 no pri- adotada pelo governo golpista e seus induzindo os investimentos privados
dão e a fragilidade da retomada é sua meiro trimestre de 2016 para 0,635 no apoiadores seja a política de preços da na ampliação da produção, proporcio-
baixa qualidade. Do ponto de vista so- final de 2017, demonstrando a piora Petrobras, que desencadeou um au- nando aumento de escala e ganhos de
cial, o baixo crescimento não se tradu- acentuada na distribuição de renda mento no preço dos combustíveis e produtividade para as empresas do-
ziu em reversão do quadro de agrava- num curto período de tempo. engendrou a paralisação no setor de mésticas e impulsionando a geração de
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 5

emprego e renda, o que se reverte em complexo industrial da saúde, no qual FIGURA 1. NÚMERO DE OCUPADOS INFORMAIS E CONTRIBUIÇÃO PARA A VARIAÇÃO DO NÚMERO DE
mais consumo, investimento e renda. setores prestadores de serviço, como OCUPADOS INFORMAIS (MÉDIA MÓVEL 4 TRIMESTRES)
O investimento social, como segun- hospitais, ambulatórios, serviços de
do “motor” do crescimento, tem um diagnósticos e tratamentos, articu-
enorme efeito dinâmico a curto prazo lam-se com dois principais setores in-
por meio dos multiplicadores de gasto e dustriais: 1) a indústria de base quími-
da geração de empregos, sendo, portan- ca e biotecnológica, que fornece
to, um vetor de saída para a atual crise fármacos, medicamentos, vacinas, he-
econômica. Mas também tem amplos moderivados, reagentes para diagnós-
efeitos positivos sobre o crescimento ticos e equipamentos; e 2) as indús-
econômico a longo prazo, por meio da trias de base mecânica, eletrônica e de
melhora da qualidade de vida das pes- materiais, que fornecem equipamen-
soas e da produtividade do sistema e de tos mecânicos e eletrônicos, próteses e
uma redistribuição de renda e riqueza. órteses e materiais de consumo.
São trabalhadores que demoram No eixo de saneamento também
menos tempo para ir e voltar do traba- ocorrem encadeamentos produtivos
lho, com serviços de transporte de importantes por meio dos investimen-
maior qualidade. Trata-se de uma for- tos sociais. Além de consideráveis efei-
ça de trabalho com mais saúde, educa- tos multiplicadores de emprego, o in-
ção, lazer e cultura, decorrentes de vestimento em saneamento possui
uma maior oferta de serviços sociais. fortes encadeamentos diretos e indire- Fonte: Elaboração própria com base na Pnad Contínua.
Por meio da expansão da infraes- tos com materiais elétricos, química e
trutura social pode-se ainda diversifi- serviços de informação.
car a estrutura produtiva e repensar a Considerando o fornecimento de FIGURA 2. PRINCIPAIS MOTORES DO DESENVOLVIMENTO PARA UM PROJETO SOCIAL
tradicional concepção de política in- água e esgoto, temos grupos tecnológi-
dustrial como política voltada à promo- cos que envolvem o fornecimento de
ção de setores, empresas e tecnologias bens e serviços em torno de bombea-
tidas como chave para a modernização mento, processos físicos e químicos de
das forças produtivas e para a aproxi- tratamento, recuperação e reúso da
mação da fronteira tecnológica. Uma água, controle de odores e disposição de
nova política para a estrutura produti- lodos, todos com forte potencial deman-
va pode se basear na formação de eixos dante de novas tecnologias. A tendência
voltados para “missões orientadas à so- tecnológica é que a médio prazo tenha-
lução de problemas históricos da socie- mos cada vez mais estações de trata-
dade brasileira”. mento que contarão com sistemas auto-
Não se trata de reinventar a política matizados, bioprocessos e biofiltros,
industrial e outras políticas para o se- biorreatores com membranas e tecnolo-
tor produtivo, e sim de utilizar a imen- gias voltadas à reutilização dos lodos.
Fonte: FAGNANI, E. et al. Desenvolvimento social e estrutura produtiva. Disponível em: <http://pedrorossi.org/
sa carência de infraestrutura social Portanto, não se trata de reinven-
wp-content/uploads/2018/03/DesenvolvimentoSocialeEstruturaProdutiva.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
para garantir maior apoio político, tar setores prioritários nem trajetó-
ampliação da escala produtiva de par- rias e paradigmas tecnológicos. Pelo
te da indústria nacional e aumento do contrário, defende-se que é possível FIGURA 3. ARTICULAÇÃO ENTRE DEMANDAS SOCIAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIVERSIFICAÇÃO PRODUTIVA
encadeamento de importantes setores criar condições para a promoção de
industriais no Brasil. empresas nacionais em setores dinâ-
Colocando em exemplos práticos, micos do ponto de vista tecnológico,
podem-se sugerir eixos das políticas porém com diferenças significativas
públicas em torno dos seguintes seto- sobre a forma de execução das políti-
res: mobilidade urbana, saneamento cas e cobrança dos atores envolvidos.
básico, tecnologia verde, habitação A proposta se dirige para a mudança
popular, saúde – em particular a ca- da lógica das políticas pelo lado da
deia produtiva em torno do SUS – e demanda, sobretudo no sentido de
educação, além de outros eixos volta- fornecer maior legitimidade às políti-
dos para as especificidades regionais, cas para o setor produtivo.
como desenvolvimento das atividades Por fim, a agenda econômica neoli-
agropecuárias do Semiárido e desen- beral institucionalizada pelo golpe
volvimento sustentável da Amazônia apresenta resultados desastrosos. Em
(incluindo a expansão do mapeamen- pouco tempo perdeu credibilidade e
to do genoma da região amazônica), viabilidade eleitoral. O momento pede
entre outros a serem elencados. o debate de uma agenda alternativa
Nesse sentido, a ideia básica das que legitime a redução da desigualda-
políticas produtivas e tecnológicas de e a infraestrutura social como car-
orientadas por missões é promover a ros-chefe do desenvolvimento. Essa
diversificação do setor produtivo por agenda tem muito mais aderência en- Fonte: FAGNANI, E. et al. Desenvolvimento social e estrutura produtiva. Disponível em: <http://pedrorossi.org/
meio das demandas sociais específi- tre a população brasileira do que a wp-content/uploads/2018/03/DesenvolvimentoSocialeEstruturaProdutiva.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
cas, conforme ilustra a Figura 3. Ou agenda neoliberal, a julgar pelas pes-
seja, a articulação de uma ampla po- quisas que mostram que 80% dos bra-
lítica orientada pela demanda possi- sileiros preferem melhores serviços redução da desigualdade, o provimen- beral para além de trágico aumenta a
bilita reconstruir a estrutura de ofer- públicos à redução de impostos; sete to de saúde, educação... Portanto, o possibilidade histórica de construir e
ta brasileira e fornecer meios para em cada dez brasileiros são contra as Brasil tem todas as condições de reto- colocar em prática esse projeto.
sua modernização. privatizações; a maioria dos brasilei- mar o desenvolvimento e radicalizar
Por exemplo, a saúde movimenta o ros acha que o Estado deve ter respon- seu caráter social e distributivo. Já o *Pedro Rossi e Guilherme Mello são profes-
que Carlos Gadelha conceitua como sabilidades como o bem-estar social, a fracasso da alternativa golpista/neoli- sores do Instituto de Economia da Unicamp.
6 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

EMENDA CONSTITUCIONAL 95

O “teto” não pode cair


sobre nossa cabeça
Estudo do Inesc, CESR e Oxfam Brasil demonstra como a EC 95 colocou em risco os direitos sociais e econômicos
básicos de milhões de brasileiros, com destaque para os direitos à alimentação, à saúde, à assistência social e à educação,
ao mesmo tempo em que exacerbou as desigualdades de classe, geração, gênero e raça/etnia e entre as regiões do país
POR GRAZIELLE DAVID*

O
número de pessoas em situação
de extrema pobreza no país
passou de 13,34 milhões em
2016 para 14,83 milhões em
2017, o que signiica um aumento de
11,2%, de acordo com levantamento
da LCA Consultores, com base em mi-
crodados da Pnad Contínua, divulga-
da pelo IBGE. O estudo considerou co-
mo pessoas em extrema pobreza
aquelas com renda familiar de até R$
136 mensais em 2017, linha de corte
adotada pelo Banco Mundial para paí-
ses de desenvolvimento médio e alto.
O avanço da pobreza é um dos
grandes efeitos tanto da recessão eco-
nômica quanto das medidas de auste-
ridade adotadas para lidar com ela.
© Tulipa Ruiz

Contudo, enquanto a expressão “crise


econômica” estampa capas de jornais

© Alpino
que alardeiam suas consequências
mais óbvias – redução do emprego, da
renda e do consumo –, as tais “medi-
das de austeridade” não aparecem co-
mo agravantes dessa situação de crise,
e sim como solução. lhista, a reforma previdenciária, as pri- sileiros chegou a R$ 549 bilhões em de um ganho de um setor econômico
Ora, além dos problemas econô- vatizações e a reforma administrativa. 2017, um crescimento de 13% em rela- especíico ou da classe mais rica, man-
micos e da queda do emprego, impac- Assim, ainda que o Brasil esteja so- ção ao ano anterior. Ao mesmo tempo, tendo o restante da população no mes-
tam a pobreza os signiicativos cortes frendo com a recessão econômica os 50% mais pobres do país viram sua mo patamar de pobreza ou em situa-
orçamentários de políticas públicas desde 2015, as decisões políticas que fatia da renda nacional ser reduzida ção pior. Foi isso que ocorreu em 2017
essenciais para a proteção social. Ao seguiram a cartilha da austeridade – ainda mais: de 2,7% para 2%, segundo no Brasil, com o aumento do PIB ad-
contrário do que vendem os governos sendo a Emenda Constitucional 95 relatório da Oxfam Brasil.1 Em 2017, a vindo da expansão do setor agrope-
neoliberais que sustentam o “mito da (Teto dos Gastos) sua medida-símbolo parcela dos 5% mais pobres da popu- cuário, extremamente mecanizado,
austeridade”, segundo o qual um con- – aprofundaram a situação de crise e lação brasileira teve um rendimento concentrado, com pouco impacto no
trole maior dos gastos do governo por conduziram ao atual cenário de: médio real de R$ 40 por mês, queda de emprego e na renda. Já a queda da in-
si só solucionaria crises, o que obser- • Aumento da taxa de desemprego: a 18% em relação ao ano anterior. No ca- lação foi decorrente da atividade eco-
vamos é um aprofundamento da desi- desocupação média em 2017 icou so da parcela 1% mais rica da popula- nômica em baixa, com redução do
gualdade e da vulnerabilidade social. em 12,7%, a maior taxa registrada ção, esse rendimento encolheu menos, consumo das famílias, pressionadas
Isso porque o “corte de gastos” só desde 2012. São mais de 13 milhões com queda de apenas 2,3% e um ga- com endividamento e desemprego.
acontece no lado mais fraco. Não ve- de trabalhadoras e trabalhadores nho médio mensal de R$ 15.504, ainda
mos, por exemplo, o governo cortando sem emprego; segundo dados da Pnad Contínua tra- TETO DOS GASTOS
despesas inanceiras – que para 2018 • Fechamento de postos de trabalho balhados pela LCA Consultores. O estudo “Direitos humanos em
têm dotação orçamentária autorizada com carteira assinada: as ocupações A priori, essas informações pare- tempos de austeridade”, elaborado pe-
de 54% do orçamento da União, supe- criadas no período foram informais, de cem contrastar com os indicadores lo Instituto de Estudos Socioeconômi-
rando o montante destinado às políti- baixa remuneração e ganho instável. O macroeconômicos que estão sendo cos (Inesc), pelo Centro para Direitos
cas sociais e aos investimentos. país perde, em média, 1 milhão de pos- utilizados pelo governo de Michel Te- Econômicos e Sociais (CESR, na sigla
As tais medidas de austeridade têm tos com carteira assinada por ano, ain- mer para indicar um cenário artiicial- em inglês) e pela Oxfam Brasil, mostra
implicações na proteção social em de- da segundo a Pnad Contínua do IBGE; mente otimista, com o crescimento de os efeitos perceptíveis depois de ape-
corrência de cortes orçamentários de • Queda real do salário mínimo: uma 1% do PIB em 2017, após dois anos de nas um ano em vigor da Emenda Cons-
políticas públicas essenciais. Impactam vez que seu reajuste foi realizado abai- retração, e inlação em 2,95%. titucional 95, completado em dezem-
ainda o emprego, a renda e o consumo, xo da variação da inlação; Entretanto, o aumento do PIB não bro de 2017. Conhecida como Teto dos
por causa da adoção de políticas restri- • Ampliação das desigualdades: o pa- necessariamente implica redução da Gastos, a emenda é considerada a mais
tivas de direitos, como a reforma traba- trimônio somado dos bilionários bra- pobreza, uma vez que ele pode resultar grave das medidas de austeridade ado-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7

tadas no país e no mundo, congelando nos próximos anos e ultrapassam os que volte a tributar lucros e dividen- Juan Pablo Bohoslavsky – especialista
em termos reais os gastos primários setores abordados no mencionado es- dos a 35% nas rendas mais altas. Tal independente da ONU para dívida ex-
do governo federal por um período de tudo. Outras pesquisas e reportagens medida poderia gerar outros US$ 5,6 terna, finanças públicas e direitos hu-
vinte anos. também revelam dramáticas conse- bilhões e reduzir a desigualdade em manos –, que estava agendada há qua-
Desde que anunciou as medidas de quências da austera EC 95. 4,3%. Isso porque a atual composição se um ano e teria como um de seus
austeridade, que conformariam o “no- A mortalidade infantil, por exem- da carga tributária brasileira faz que a objetivos avaliar os primeiros impac-
vo regime fiscal”, o governo brasileiro plo, cresceu 11% para crianças entre 1 desigualdade no Brasil mude muito tos nos direitos humanos da Emenda
vem desmantelando as instituições mês e 4 anos de idade, atingindo o pa- pouco com o atual sistema de impos- Constitucional 95. O especialista está
que asseguram a igualdade de gênero. tamar de 12,7 mortes por mil nascidos tos e transferências sociais. Em outras desenvolvendo um documento com
Entre 2014 e 2017 houve um corte de vivos em 2016, segundo dados do Mi- palavras, a capacidade redistributiva “princípios orientadores para avaliar
58% do orçamento destinado ao pro- nistério da Saúde, consolidados pela da política fiscal brasileira é muito os impactos nos direitos humanos das
grama de enfrentamento da violência Fundação Abrinq. baixa – não apenas em comparação políticas de reforma econômica”. O
de gênero e de promoção da autono- Mais de 170 mil brasileiros, com aos países da OCDE, mas também em governo brasileiro insiste em dizer
mia econômica das mulheres. E mais: idade entre 19 e 25 anos, abandona- relação a alguns países latino-ameri- que não foi cancelamento, mas mero
o estudo mostra que, para cada R$ 10 ram a graduação em 2017. A saída da canos, como mostrado no Fiscal Mo- adiamento em razão da mudança do
cortados do orçamento das políticas graduação passou de 5% entre 2013 e nitor 2017 do FMI. ministro dos Direitos Humanos. En-
para as mulheres entre 2015 e 2016, os 2016 para 47,8% em 2017. Essa queda tretanto, três meses depois, ainda não
pagamentos do serviço da dívida au- brutal deve-se, em grande parte, à di- ofereceu nova data para a vinda de
mentaram em R$ 1.350. minuição da renda dos estudantes em Bohoslavsky ao Brasil.
Em 2016 já eram 28% menos servi- decorrência do desemprego – deles e A previsão de crescimento As limitações do modelo e os efei-
ços disponíveis para atender as mulhe- de seus pais – e da redução do finan- do PIB é menor com tos adversos da austeridade fizeram o
res em situação de violência, deixando ciamento estudantil pelo governo. Em ela do que sem ela, e a próprio FMI, famoso pela defesa que
sem assistência muitas mulheres vio- 2017, foram apenas 98,9 mil contratos fazia dessas medidas, rever seu posi-
lentadas. Por exemplo, o governo pro- do Fundo de Financiamento Estudan-
previsão de resultado cionamento e, no documento Fiscal
meteu construir unidades do projeto til (Fies) contra 732,7 mil em 2014, co- fiscal com ou Monitor de 2018, convocar os países a
Casa das Mulheres Brasileiras – que vi- mo informou reportagem do Valor sem a EC 95 é evitar políticas pró-cíclicas, como é o
sa à construção de um espaço físico pa- Econômico (11 abr. 2017). praticamente igual caso da EC 95, durante períodos de cri-
ra o fornecimento combinado de servi- se fiscal. O fundo argumenta que polí-
ços especializados para vítimas de MEDIDAS ALTERNATIVAS ticas contracíclicas poderiam produ-
violência – em 25 capitais brasileiras até A EC 95 é ainda ineficiente, isto é, zir melhores resultados, por meio do
2019. Porém, apenas três dessas casas não cumpre sequer os propósitos pro- Ao desconsiderar alternativas às investimento público em proteção so-
estão abertas e nenhuma nova foi cons- metidos para sua aprovação. A previ- medidas de austeridade, o Brasil des- cial e infraestrutura, que poderiam ser
truída em 2017, com a execução do pro- são de crescimento do PIB é menor respeitou normas internacionais de financiados com tributação progressi-
grama ficando bem abaixo da meta. com ela do que sem ela, e a previsão de direitos humanos, posto que, de acor- va e pelo crescimento decorrente dos
Já o Programa Farmácia Popular, resultado fiscal com ou sem a EC 95 é do com o direito internacional, a investimentos feitos, por causa dos
que chegou a 80% dos municípios bra- praticamente igual, conforme estudo margem de autonomia dos Estados efeitos multiplicadores dos investi-
sileiros e atendeu mais de 38 milhões de Antônio Albano.2 para responder a crises econômicas mentos sociais e da redistribuição de
de pessoas, também está ameaçado Também se calcula que com a EC não é absoluta. Para estarem de acor- renda na economia nacional.
pela Emenda do Teto dos Gastos. Uma 95 o gasto primário cairá de 20% para do com essas normas, as medidas de Definitivamente não é o que ocorre
importante política social do Brasil 12% do PIB3 entre 2016 e 2026. Isso afe- consolidação fiscal devem: ser tem- no Brasil nos dias de hoje. O cenário
para promover o direito de acesso a tará principalmente o orçamento de porárias, estritamente necessárias e projetado é de piora social, ambiental
medicamentos vem sofrendo cortes programas sociais essenciais para o proporcionais; ser não discriminató- e climática. A pobreza extrema, por
desde 2016, que levaram ao fechamen- combate à pobreza, a exemplo do Bol- rias; levar em consideração todas as exemplo, que diminuiu expressivos
to de 314 farmácias públicas, deixando sa Família e do PAA, e orçamento de alternativas possíveis, inclusive me- 75% entre 2005 e 2015, com conse-
somente 53 em operação. A medida investimentos, importante para a re- didas tributárias; proteger o conteú- quente saída do Brasil do Mapa da Fo-
afetou de modo desproporcional os cuperação econômica e o combate à do mínimo dos direitos humanos; e me em 2015, aumentou nos três anos
municípios mais pobres das regiões pobreza, ao ampliar vagas de emprego ser adotadas após cuidadosa consi- de austeridade.
Norte e Nordeste, que por falta de inte- e renda. Ambos passariam de 8% para deração e genuína participação dos De fato, o estudo do Inesc, CESR e
resse de mercado não contam com far- 3% do PIB. grupos e indivíduos afetados nos Oxfam Brasil demonstra como essa
mácias privadas em seus territórios. Além da celeridade no processo de processos de tomada de decisão. decisão de “novo regime fiscal” da EC
O “novo regime fiscal” do Brasil aprovação da emenda, que não contou Na realidade, com a EC 95, o Brasil 95 colocou em risco os direitos sociais
também pode aumentar significativa- com uma ampla discussão e consulta descumpriu todos os princípios elen- e econômicos básicos de milhões de
mente o número de pessoas em situa- da população, foram desconsideradas cados: em vez de ser temporária, a brasileiros, com destaque para os di-
ção de insegurança alimentar e nutri- medidas alternativas menos restritivas, emenda tem previsão de vinte anos de reitos à alimentação, à saúde, à assis-
cional. Cortes de 69% no orçamento algumas delas apontadas no referido duração; é desproporcional, por limi- tência social e à educação, ao mesmo
do Programa de Aquisição de Alimen- estudo “Direitos humanos em tempos tar apenas as despesas primárias e tempo em que exacerbou as desigual-
tos, com redução de 75% no número de austeridade”. O combate à evasão fis- deixar livres as financeiras; é discri- dades de classe, geração, gênero e ra-
de beneficiários, ameaçam anular os cal, por exemplo, poderia arrecadar o minatória, por atingir mais intensa- ça/etnia e entre as regiões do país.
avanços no campo que contribuíram equivalente a US$ 160,4 bilhões, o que mente os grupos mais vulneráveis da
para tirar o Brasil do Mapa da Fome da representa quase quatro vezes o déficit população brasileira e mais depen- *Grazielle David é assessora política do Ins-
ONU. Os agricultores familiares estão federal de 2016. Uma revisão dos incen- dentes das políticas públicas; não per- tituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
entre os mais afetados, assim como os tivos fiscais ou benefícios que o governo mite a proteção do conteúdo mínimo
povos e comunidades tradicionais e federal concede para empresas, os cha- dos direitos humanos por causa dos
os assentados beneficiados pela refor- mados gastos tributários, também po- excessivos cortes orçamentários e as 1 Esses e outros dados fazem parte do relatório “Re-
compensem o trabalho, não a riqueza”, lançado
ma agrária. deria ampliar o espaço fiscal. Eles são reformas liberalizantes propostas, co- pela Oxfam às vésperas da reunião do Fórum Eco-
No primeiro aniversário da EC 95, o ofertados sem transparência, monito- mo a trabalhista e a previdenciária; e, nômico Mundial 2018.
estudo do Inesc, CESR e Oxfam Brasil ramento e comprovação de seus efeitos, por fim, foi adotada sem avaliação pré- 2 “Uma crítica heterodoxa à proposta do Novo Regi-
me Fiscal”, Indicadores Econômicos FEE, Porto
mostra que a austeridade no Brasil, e seu montante gira em torno de R$ 250 via dos impactos que teria nos direitos Alegre, 2017.
além de seletiva, desrespeita a Consti- bilhões anuais, o equivalente a cerca de humanos e sem participação dos afe- 3 “Austeridade e retrocesso: finanças públicas e po-
tuição e coloca em risco décadas de 5% do PIB. tados na tomada de decisão. lítica fiscal no Brasil”, elaborado por iniciativa do
Fórum 21, Fundação Friedrich Ebert, GT de Macro
progresso social. É certo que os efeitos Outra opção seria colocar em prá- Como se não bastasse, o Brasil da Sociedade Brasileira de Economia Política
serão sentidos com maior intensidade tica uma reforma fiscal progressiva, cancelou de última hora a visita de (SEP) e Plataforma Política Social.
8 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

CORTES DOS GASTOS SOCIAIS, RECESSÃO E DESEMPREGO

Democracia atrofiada x mercado


financeiro hipertrofiado”
Esta é a maior recessão pela qual passa o Brasil, aprofundada por um governo ilegítimo mediante a intensificação
das políticas de austeridade e seguida do mais lento ciclo de retomada da história
POR CARLOS EDUARDO SANTOS PINHO*

O
Brasil vem passando por um in-
tenso processo de desmonte do
Estado por meio de cortes nas
políticas públicas de proteção
social. Somam-se a isso a queda signi-
ficativa do investimento e o desempre-
go em massa. Ainda que os cortes te-
nham se iniciado no governo Dilma
Rousseff, no limiar de 2015, quando a
presidenta sucumbiu às pressões do
mercado financeiro e colocou um eco-
nomista ortodoxo no Ministério da Fa-
zenda, essa agenda é capitaneada e
aprofundada por um governo imerso

© Alpino
em escândalos de corrupção e que
chegou ao mais alto cargo da institu-
cionalidade política por meio de um
golpe parlamentar revestido de uma
faceta democrática. As medidas em
curso jamais passariam pelo crivo da
soberania popular, que se consubs- mais lenta nas últimas duas décadas. A pagos a mais nos benefícios previden- mero de famílias beneficiárias pagas
tancia no sufrágio universal e, portan- margem fiscal deverá atingir seu valor ciários. Entre as rubricas com queda foi de 14.165.038. Esse é o segundo
to, no voto. Elas acentuam o divórcio mínimo para efeito de funcionamento mais intensa está o PAC. O pacote de maior corte da história do programa.
entre a democracia representativa de dos ministérios e/ou operacionaliza- investimentos criado ainda no gover- O maior tinha ocorrido também na
massas e os interesses articulados e ção de políticas públicas já em 2019, no de Luiz Inácio Lula da Silva regis- gestão Temer, quando 543 mil famílias
politicamente organizados do capital quando devem ocorrer problemas para trou queda de 32,2% nos gastos em foram cortadas entre junho e julho de
financeiro. Os mecanismos do rentis- o cumprimento do Teto dos Gastos. Os 2017 – ou R$ 14,2 bilhões. Nessa rubri- 2017 (UOL Notícias, 1º maio 2018).
mo público e da dívida pública trans- resultados projetados apontam certa ca estão também as despesas relativas Entre as políticas de seguridade so-
formaram o Estado brasileiro em mais estabilidade das receitas líquidas em ao Minha Casa Minha Vida. O progra- cial (saúde, previdência e assistência
um vetor do aumento do patrimônio relação ao PIB, enquanto as despesas ma habitacional teve redução de 56,1% social), a saúde aparece como a princi-
dos mais aquinhoados.1 precisarão ajustar-se de 19,45% do PIB no ano, ou R$ 4,7 bilhões (Valor Econô- pal preocupação dos brasileiros, em
Para a burocracia econômica do em 2017 para 15,03% do PIB em 2030. mico, 2 fev. 2018). União, estados e mu- todas as pesquisas sobre insatisfação
governo parlamentar, blindada e insu- Caso o ajuste pelo lado dos gastos não nicípios restringiram tanto seus orça- da população, inclusive com os planos
lada das pressões democráticas, a via- ocorra, medidas alternativas com mes- mentos que o investimento público privados. Entre os motivos estão restri-
bilidade de curto prazo do Teto dos mo efeito fiscal terão de ser adotadas. A chegou a um dos menores patamares ções orçamentárias, falta de prioridade
Gastos Públicos (Emenda Constitucio- dívida bruta deve ainda avançar até da história. Nos doze meses encerra- política, grandes e pequenos proble-
nal 95, ou Novo Regime Fiscal), que li- 86,6% do PIB, em 2023, no cenário ba- dos em março, o investimento federal mas de gestão, questões legais e de
mitou os gastos sociais pelos próximos se-1 (básico), para então começar a totalizou R$ 30,2 bilhões – queda de agências reguladoras. Embora a saúde
vinte anos e instituiu a austeridade pe- cair paulatinamente (considerando-se 54% apenas na gestão de Michel Temer seja um problema crônico, o Teto dos
rene, depende não apenas da reforma que o ajuste fiscal seja mantido e apri- (Folha de S.Paulo, 20 maio 2018). Gastos Públicos e a incapacidade de
da Previdência, mas também de medi- morado), ainda segundo a Instituição O Ministério do Desenvolvimento estados e municípios ampliarem seus
das como limitar os reajustes dos salá- Fiscal Independente. Social (MDS) desligou 392 mil famílias investimentos na área criaram um ce-
rios dos servidores públicos e revisitar O corte total no grupo de despesas do programa Bolsa Família em abril, nário crítico em 2018. Mesmo com o fa-
as regras que corrigem o salário míni- incluindo o Programa de Aceleração um mês antes do reajuste de 5,67% to de terem sido antecipados 15% da
mo. Nesse sentido, segundo o Relatório do Crescimento (PAC), Minha Casa concedido a todos os beneficiários do receita corrente líquida da União para
de Acompanhamento Fiscal (RAF) de Minha Vida, subsídios e Fies foi de programa e anunciado em cadeia de a saúde, já neste ano o sistema “entrará
2018 da Instituição Fiscal Independen- 30,3% em relação a 2016. O valor da re- rádio e TV pelo presidente na noite do em colapso”, com a diminuição na ca-
te do Senado, publicado em maio, a dução é de R$ 25,6 bilhões, superior a dia 30 de abril. Segundo o MDS, o Bol- pacidade de atendimento e de leitos,
economia brasileira operou cerca de todo o aumento de R$ 17,7 bilhões da sa Família atingiu, em abril, 13.772.904 pois não há melhoria de gestão que re-
7,2 pontos percentuais abaixo de seu despesa com pessoal, a segunda maior famílias, que receberam benefícios solva um problema tão profundo e es-
potencial, no quarto trimestre de 2017. fonte de gastos federais verificados no com valor médio de R$ 177,71. O valor trutural. O valor gasto pelo país com
A recessão de 2014-2016 foi a mais in- ano passado. O montante cortado total transferido pelo governo federal saúde, porém, não é pequeno. Apesar
tensa, duradoura e com recuperação também é próximo aos R$ 32,6 bilhões foi de R$ 2,44 bilhões. Em março, o nú- de o desembolso público com o setor
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9

chegar a pouco mais de 3,9% do PIB, gados no país. O número de pessoas GRÁFICO 1. EVOLUÇÃO DA MARGEM FISCAL, PROXY DO GRAU DE LIBERDADE
quando se somam nessa conta os gas- desalentadas em relação ao emprego é DA POLÍTICA FISCAL PARA CORTES DE DESPESA A CURTO PRAZO (2018-2030)
tos privados, o financiamento sobe pa- de 4,6 milhões; 6,1 milhões de traba-
ra 9%. O percentual é idêntico ao da lhadores estão empregados, mas gos-
Itália e do Reino Unido e pouco abaixo tariam de trabalhar mais horas; e 5,3
do gasto por Alemanha e França, de milhões de pessoas estão em busca de
11% e 12%, respectivamente. Com um emprego há um ano ou mais.
PIB menor, é claro.2 Em quatro das cinco regiões, o per-
De acordo com a professora da UFRJ centual de empregados com carteira
Lígia Bahia, falta uma política de Esta- assinada está menor que no primeiro
do no tocante às prioridades da saúde, trimestre de 2017. No primeiro trimes-
uma vez que não estão sendo dadas res- tre de 2018, 75,4% dos empregados no
postas aos problemas de saúde dos bra- setor privado tinham carteira de traba-
sileiros, que têm péssimos indicadores lho assinada, 1,2 ponto percentual a
e tendência de piora por conta do perfil menos que um ano antes. As mulheres
demográfico e epidemiológico. Segun- permanecem minoria na população
do ela, toda a contribuição da Previdên- ocupada, uma vez que o nível de ocu-
cia Social foi retirada da saúde pelo mi- pação dos homens foi estimado em
nistro da Previdência Social, Antonio 63,6% e o das mulheres, em 44,5%, no
Britto, durante o governo Itamar primeiro trimestre de 2018. No primei-
Franco (1992-1995). Isso levou depois ro trimestre de 2012, o contingente dos
o ministro Adib Jatene a pedir recur- desocupados era de 7,6 milhões de pes- Fonte: Instituição Fiscal Independente (IFI)/Senado Federal.
sos do Fundo de Amparo ao Trabalha- soas, quando os pardos representavam
dor (FAT) para a área e a inventar a 48,9% dessa população, com brancos
Contribuição Provisória sobre Movi- (40,2%) e pretos (10,2%) a seguir. No GRÁFICO 2. TRAJETÓRIAS ATUALIZADAS PARA
mentação Financeira (CPMF). Na ver- primeiro trimestre de 2018, esse con- A DÍVIDA BRUTA DO GOVERNO GERAL (DBGG/PIB) – 2006/2030
dade, por decisão política sempre fo- tingente subiu para 13,7 milhões de
ram retirados recursos da saúde, seja pessoas e a participação dos pardos
no governo Sarney, Itamar, Collor, passou a ser de 52,6%; a dos brancos re-
FHC, Lula e Dilma.3 duziu para 35,2% e a dos pretos subiu
Ainda ligada aos números, outra para 11,6%. O número de desemprega-
distorção está no fato de que, apesar dos de 14 a 24 anos de idade cresceu
de receber a maior parte do financia- para 5,6 milhões de janeiro a fevereiro,
mento, o sistema privado atende me- 600 mil pessoas a mais em relação ao
nos de 25% da população. O que pode- fim do ano passado (+11,9%), ainda se-
ria refletir apenas privilégio revela gundo a Pnad Contínua.
também uma enorme ineficiência, Além do desemprego generaliza-
pois se estima que o desperdício de re- do, dados da Pnad/IBGE, compilados
cursos em todo o sistema varie de 15% pela Fundação João Pinheiro, indi-
a 30%. Apesar de render votos e algum cam que o déficit habitacional é de
auxílio à população, a maior parte dos pelo menos 6,3 milhões de moradias
hospitais espalhados por pequenas ci- em todo o país, sobretudo nas maio-
dades do país também é insustentável, res regiões metropolitanas: São Pau-
já que, com menos de setenta leitos, os lo e Rio (O Globo, 13 maio 2018). Mais
hospitais ficam inviáveis do ponto de de 11 milhões de brasileiros moram
vista econômico. Um grande desafio é em favelas, cerca de 34 milhões não Fonte: Instituição Fiscal Independente (IFI)/Senado Federal.

redimensionar essa malha ineficiente, têm acesso a água potável e 96% das
porque ter acesso a um posto de saúde cidades não contam com um plano passa o Brasil, aprofundada por um tor pelo Programa de Pós-Graduação em
não implica ter acesso à saúde.4 de transporte: essas são algumas das governo ilegítimo mediante a intensi- Sociologia Política da Universidade Estadual
O aprofundamento da austeridade estatísticas que mostram o tamanho ficação das políticas de austeridade e do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (PPGSP-
fiscal vem surtindo impactos funestos da distância entre a realidade do país seguida do mais lento ciclo de retoma- -UENF) e mestre e doutor em Ciência Políti-
sobre o tecido social da debilitada de- e as metas que se comprometeu a al- da da história. Na linha de reflexão do ca pelo Iesp/Uerj.
mocracia brasileira. Segundo dados cançar ao se tornar signatário, em sociólogo Wolfgang Streeck, o Brasil de
da Pnad Contínua do IBGE, no primei- 2015, juntamente com outros 192 Es- hoje vive uma antinomia entre o povo 1 Ver Ladislau Dowbor, A era do capital improdutivo:
ro trimestre de 2018 a taxa de subutili- tados, da Agenda 2030 da ONU. Com do mercado (capital financeiro/inves- a nova arquitetura do poder. Dominação financei-
ra, sequestro da democracia e destruição do pla-
zação5 da força de trabalho subiu para dezessete Objetivos de Desenvolvi- tidores) e o povo do Estado (cidadãos neta, Autonomia Literária, São Paulo, 2017; e Wan-
24,7%, o que representa 27,7 milhões mento Sustentável (ODS), desdobra- eleitores), na qual o capital deixou de derley Guilherme dos Santos, A democracia
de pessoas. Essa é a maior taxa de su- dos em 169 metas, a agenda estabele- influenciar a política apenas indireta- impedida: o Brasil no século XXI, FGV Editora, Rio
de Janeiro, 2017.
butilização na série histórica da Pnad ce avanços que os países devem fazer mente e passou a influenciá-la direta- 2 “Saúde na encruzilhada”, Valor Econômico, 16 mar.
Contínua, iniciada em 2012. O contin- em temas como erradicação da po- mente por meio do financiamento ou 2018.
gente de subutilizados também é o breza, desenvolvimento sustentável não do próprio Estado.6 Verifica-se, 3 Idem.
4 Idem.
maior da série histórica. Bahia de cidades, acesso a água limpa e sa- pois, um processo sem precedentes de 5 O conceito de subutilização – também conhecido
(40,5%), Piauí (39,7%), Alagoas (38,2%) neamento. De forma geral, o Brasil depreciação das políticas sociais em como desemprego ampliado – abrange trabalha-
e Maranhão (37,4%) apresentaram as está bem distante do cumprimento nome da austeridade fiscal e da redu- dores desempregados, subocupados por insufi-
ciência de horas (trabalham menos de quarenta
maiores taxas de subutilização; as das metas por diversas razões, entre ção da dívida pública, que acentua a horas semanais, mas gostariam de trabalhar mais)
menores taxas foram em Santa Cata- elas questões fiscais. Assim, o país contradição entre o capitalismo finan- e pela força de trabalho potencial (pessoas que
rina (10,8%), Rio Grande do Sul corre o risco de voltar ao Mapa da Fo- ceiro e a expansão da cidadania.7 não buscam emprego, mas estão disponíveis para
trabalhar).
(15,5%), Mato Grosso (16%) e Paraná me da Organização das Nações Uni- 6 Wofgang Streeck, Tempo comprado: a crise adia-
(17,6%). A taxa de desocupação do pri- das para a Alimentação e a Agricultu- *Carlos Eduardo Santos Pinho é pós-dou- da do capitalismo democrático, Actual, Coimbra,
meiro trimestre de 2018 no Brasil, di- ra (FAO), do qual havia saído em 2014 torando do Instituto Nacional de Ciência e 2013.
7 Sonia Fleury e Carlos E. S. Pinho, “Liquefação da
vulgada em 27 de abril, foi de 13,1%. (Valor Econômico, 15 mar. 2018). Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias rede de proteção social no Brasil autoritário”, Re-
Assim, há 13,7 milhões de desempre- Esta é a maior recessão pela qual e Desenvolvimento (INCT/PPED), pós-dou- vista Katálysis, v.21, n.1, p.14-42, jan./abr. 2018.
10 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

DITADURA

O ovo
da serpente
Essa nova avalanche de informações
torna necessário reabrir a polêmica
questão da anistia. Não se trata de

© Daniel Kondo
revanchismo, mas de um esforço para
reconstituir a história na medida em
que novos dados provenientes de
fontes norte-americanas permitem
uma revisão de qual foi realmente
o papel desempenhado pela cúpula
da ditadura militar
POR LÚCIO KOWARICK*

olsonaro é deputado federal por reitos humanos: tratava-se de uma po- das; mil músicas que tiveram o mesmo As declarações do deputado federal

B vários mandatos, com vasto


apoio de algumas parcelas da
população, inclusive de alguns
expoentes da elite econômica. Não se
trata de qualquer pessoa, mas de um
lítica de Estado.
Não são poucos os jovens que des-
conhecem as atrocidades que marca-
ram o período ditatorial: mesmo al-
guns alunos de Ciências Sociais têm
destino; intervenção em 536 sindica-
tos, federações e confederações operá-
rias, e assim por diante.1
também representam um acinte a to-
dos aqueles que foram perseguidos,
torturados ou mortos e a suas respecti-
vas famílias. Defensor da ditadura mi-
litar, Bolsonaro é também discípulo
pré-candidato à Presidência da Repú- uma vaga noção do que ocorreu du- do major Brilhante Ustra, chefe da
blica: sem a presença de Lula, os jor- rante a ditadura, conforme eu e alguns O que está em jogo Obam, centro de interrogatórios, tor-
nais apontam que Bolsonaro recebe colegas verificamos no decorrer da dé- é a ascensão de um turas e assassinatos.
apoio de 20% da população, o que lhe cada de 2000. Quanto à USP, foi com- conservadorismo político O que está em jogo é a ascensão de
dá amplas possibilidades de chegar ao pulsoriamente aposentado o que ha- um conservadorismo político e social
segundo turno nas próximas eleições. via de mais primoroso na universidade, e social de extrema de extrema direita, que veste um novo
O ilustre deputado, diante das no- inclusive, entre outros, o sociólogo, direita, que veste um uniforme civil de cunho ditatorial. O
tícias amplamente divulgadas pela mestre de todos nós, Florestan Fer- novo uniforme civil de ovo da serpente constitui uma metáfo-
imprensa acerca da tortura e dos as- nandes e o então professor titular da cunho ditatorial ra de um filme de Ingmar Bergman
sassinatos dos opositores da ditadura cadeira de Ciência Política, Fernando que representa o lento envenenamen-
militar, afirmou tratar-se de algo que Henrique Cardoso. Nos primeiros to da sociedade pelo nazismo na Ale-
se assemelha a um “tapa no bumbum anos da década de 1970 não era rara a manha dos anos 1920. Creio que não é
dos filhos”. Desfaçatez, cinismo, des- prisão de alunos, alguns torturados e Essa nova avalanche de informa- exagero dizer que abaixo do Equador
caramento: eis alguns sinônimos que mortos, cuja expressão síntese é o as- ções torna necessário reabrir a polê- está se gestando um réptil que destila
me parecem adequados para seme- sassinato de Alexandre Vannucchi, mica questão da anistia. Não se trata um conteúdo fascista que pode enve-
lhante afirmação. presidente do Diretório Central dos de revanchismo, mas de um esforço nenar parte considerável de nossa so-
As informações disponibilizadas Estudantes. para reconstituir a história na medi- ciedade.
pela CIA e divulgadas em diversos jor- Nesse sentido, vale apontar alguns da em que novos dados provenientes
nais mostram com clareza que os presi- dados que foi possível colher entre de fontes norte-americanas permi- *Lúcio Kowarick é professor titular do De-
dentes militares Médici, Geisel e Figuei- 1964 e 1979. Os referentes aos mortos, tem uma revisão de qual foi realmen- partamento de Ciência Política da USP. Pu-
redo não só sabiam do que acontecia desaparecidos e assassinados durante te o papel desempenhado pela cúpu- blicou cinco livros – o último, Viver em risco,
nos chamados “porões da ditadura”, os interrogatórios são bastante conhe- la da ditadura militar. Contudo, não recebeu o Prêmio Jabuti de 2010 como me-
como também deram aval às atrocida- cidos. Em relação às violências que de- são apenas investigações levadas lhor livro de Ciências Humanas – e recebeu
des cometidas, que nada mais eram do sabaram sobre a sociedade civil, as in- adiante por historiadores e cientistas o Prêmio Florestan Fernandes pelo conjunto
que execuções sumárias dos adversá- formações são menos conhecidas e, sociais, e sim informações que, so- da obra outorgado pela Associação Brasilei-
rios do governo. desse modo, é importante assinalá- bretudo, a Comissão da Verdade não ra de Sociologia em 2013.
A abertura “lenta e gradual” pro- -las: 500 mil pessoas condenadas, pro- pôde investigar e que atualmente
clamada pelo general Ernesto Geisel cessadas, indiciadas ou presas; 4.877 permitem averiguar com mais deta-
estava contaminada por arbítrio e vio- cassados em seus direitos políticos; 10 lhe o que foi a política de Estado em
lência de toda ordem, em desrespeito mil exilados; 270 assuntos censura- relação àqueles que se opuseram ao 1 Lúcio Kowarick, A espoliação urbana, Paz e Terra,
ao essencial no que concerne aos di- dos; seiscentas peças teatrais proibi- regime militar. Rio de Janeiro, 1979, p.193.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11

UM PROJETO DE GRILAGEM DISFARÇADO DE DESENVOLVIMENTO

Camponeses moçambicanos
derrotam o agronegócio
Os empresários do agronegócio do sul se parecem com os do norte: eles sonham com lucros fáceis cultivando culturas
comerciais em detrimento da agricultura familiar. Assim nasceu o projeto ProSavana, que une o Japão e o Brasil a Moçambique.
Entretanto, a inédita resistência de camponeses dos três Estados conseguiu interromper a operação
POR STEFANO LIBERTI*, ENVIADO ESPECIAL

akarari, aldeia perdida no meio

N do mato no distrito de Mutuali,


2 mil quilômetros ao norte de
Maputo. Sob uma mangueira,
sentados no chão ou em bancos de
madeira cambaleantes, uns quarenta
homens e mulheres recebem os visi-
tantes. Em volta deles, crianças saltam
como molas cada vez que cai uma
manga do galho. O secretário da aldeia
toma a palavra. O rosto marcado pelo
sol e as mãos calejadas de quem traba-
lha a terra há muito tempo. Agostinho
Mocernea é rigoroso: “Não devemos
acreditar no que diz o governo. Temos
de continuar dizendo não”. Em segui-
da, ele passa a palavra para os repre-
sentantes de organizações campone-
sas recém-chegadas dos povoados
vizinhos. “O governo está diante de
um impasse”, afirma Dionisio Mepo-
teia, da União Nacional de Campone-
ses (Unac). E prossegue: “Nossa luta
permitiu obtermos uma primeira vitó-
ria histórica. Impedimos a pilhagem e
reafirmamos que a terra nos pertence,
que a cultivamos há muitas gerações”.
E o quadragenário com voz aguda
© Cau Gomez

acrescenta: “Foi simplesmente graças


à nossa unidade que pudemos alcan-
çar esse resultado. É preciso conti-
nuarmos unidos”.
A mobilização popular cujo centro
nevrálgico é Nakarari deu uma bor- ciais no corredor de Nacala, uma aventureiros em busca de rendimen- para o direito à alimentação da ONU.4
doada que, aqui, se espera que seja fa- região que compreende três provín- tos fáceis. Investem nesse setor não só Imenso (801 mil quilômetros qua-
tal no maior projeto agroindustrial de cias e dezenove distritos no norte do os grupos alimentícios, mas também drados) e pouco povoado (29 milhões
toda a África: o ProSavana. O encontro país. Com uma superfície de 14 mi- atores originários das altas finanças: de habitantes), Moçambique se impôs
sob a mangueira é simplesmente o úl- lhões de hectares, ou seja, um quarto corretoras, fundos especulativos, fun- como um destino fulcral nessa corrida
timo de uma longa série. Mepoteia faz da França continental, a zona ambi- dos de investimento de todas as espé- nefasta. Já em 2010, por ocasião de
a peregrinação, com frequência, para cionada é considerada propícia às cies, operados por indivíduos que tra- uma conferência internacional em
informar as comunidades rurais sobre “culturas de exportação” (soja, algo- balhavam até então para bancos Riad, na Arábia Saudita, o ministro da
o que se passa “na cidade”. Na realida- dão, milho) destinadas ao mercado comerciais, tais como Goldman Sachs, Agricultura, José Pacheco, colocava
de, a internet ainda é uma miragem mundial. O Porto de Nacala, no Ocea- Merrill Lynch e outros.2 Da Etiópia à seu país em promoção ao fazer uma li-
nessa área de Moçambique, e os celu- no Índico, ligado à região por ferrovia, República Democrática do Congo, do quidação de suas terras oferecendo
lares só têm sinal de vez em quando. oferece vias de escoamento das mer- Senegal ao Sudão, centenas de mi- contratos de cinquenta anos pelo pre-
cadorias para a China. lhões de hectares foram vendidos não ço de US$ 1 por hectare: “Esse é nosso
UMA “PARCERIA INOVADORA” O ProSavana se inscreve na grande para produções destinadas ao merca- preço, pois acreditamos no desenvol-
Resultado de uma cooperação corrida pelas terras agrícolas que, des- do interno, mas para o mercado exter- vimento compartilhado. Devemos
triangular entre o governo de Moçam- de 2008, devasta o Hemisfério Sul, par- no, mais rentável.3 Pouco integrado à lançar simultaneamente uma nova re-
bique, a Agência Japonesa de Coopera- ticularmente a África subsaariana.1 economia local, um projeto como o volução verde”.5
ção Internacional (Jica, em inglês) e a Desde a crise mundial de alimentos ProSavana “reduz a terra a um simples Por trás da “modernidade” de uma
Agência Brasileira de Cooperação que dobrou, e até mesmo triplicou, o bem mercantil e não leva em conta sua cooperação Sul-Sul “a serviço do de-
(ABC – órgão do Ministério das Rela- preço dos produtos básicos, a aquisi- importância para os pequenos produ- senvolvimento”, o ProSavana altera as
ções Exteriores), o ProSavana visa in- ção de áreas para a produção em gran- tores rurais”, explica Olivier De Schut- relações de produção no campo, trans-
troduzir explorações agrícolas comer- de escala seduz os investidores e os ter, já há muitos anos relator especial forma os pequenos camponeses em
12 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

trabalhadores, com contrato por tem- fundo ad hoc batizado Nacala, que su- ra os dois territórios se encontrem na fiam o governo. “Funcionários nos
po determinado ou indeterminado, postamente vai atrair US$ 2 bilhões de mesma latitude, a zona circunscrita convocaram para a sede do distrito
das grandes empresas e faz de Moçam- investimentos privados. O objetivo de- pelo ProSavana é muito mais fértil e, para falar de desenvolvimento. Eles fi-
bique uma plataforma central de pro- clarado do fundo é “gerar rendimentos portanto, mais importante para o zeram uma bela apresentação com
dutos agroindustriais a serem exporta- a longo prazo para seus investidores, campesinato local do que seu suposto projeções de imagens. Nós fizemos
dos para o mundo inteiro. Concebido estimulando o desenvolvimento eco- equivalente brasileiro. E, sobretudo, perguntas sobre a Agromoz, mas eles
em 2009 na cúpula do G8 em L’Aquila, nômico local e regional”. Paralela- ao contrário de Mato Grosso, que na não nos responderam. Então, não
Itália, durante as reuniões privadas en- mente, Maputo e Tóquio criam um década de 1970 não era muito povoa- abandonamos a área”, relata Mepo-
tre o primeiro-ministro japonês, Taro Fundo para a Iniciativa de Desenvolvi- do, ela é habitada por 5 milhões de teia. O distrito de Mutuali tornou-se,
Aso, e o presidente brasileiro, Luiz Iná- mento ProSavana a fim de “sustentar pessoas, em sua maioria pequenos desde então, o símbolo de uma contes-
cio Lula da Silva, o projeto pretende re- diferentes modelos de integração de agricultores que produzem boa parte tação que, ao longo dos meses, ganha
produzir uma experiência lendária: a pequenos agricultores”. dos alimentos consumidos no país. todo o país e ultrapassa rapidamente
da transformação, entre os anos 1970 e Em Moçambique, como em muitos as fronteiras nacionais.
1990, da savana tropical úmida de Ma- outros países da África, a terra perten-
to Grosso na principal região produto- ce ao Estado e não pode ser vendida. CAMPANHA INTERNACIONAL
ra de soja do planeta. Na época, a meta- “Eles se aproveitaram Essa prerrogativa, conferida na inde- “Tudo começou com uma viagem
morfose do Cerrado brasileiro, “a mais do fato de grande pendência, em 1975, é garantida pela ao Brasil”, conta Vunjane. Ao tomarem
importante zona de expansão agrícola Constituição de 1990. De acordo com a conhecimento do programa e de suas
do mundo”, segundo o pai da revolu-
parte da população lei, o governo concede às comunidades semelhanças com o que se passou em
ção verde, Norman Borlaug, foi realiza- aqui ser analfabeta ou aos indivíduos um “direito de uso e Mato Grosso trinta anos antes, as or-
da com a ajuda de engenheiros japone- e não entender exploração da terra”, ou Duat (“Direito ganizações moçambicanas decidiram
ses e um financiamento importante de muito o de uso e aproveitamento das terras”), se inteirar da questão por si mesmas.
Tóquio. A cooperação triangular do para cultivar suas machambas, peque- Em novembro de 2013, uma delegação
ProSavana se inspira nela, com o obje-
português.” nos lotes agrícolas. Nas zonas rurais, de cinco pessoas partiu para o interior
tivo de desenvolver o norte do país com porém, ninguém possui o Duat, um brasileiro. Os participantes voltaram
a ajuda de tecnologias brasileiras, con- documento cuja importância é às ve- em estado de choque. “Percorremos
fiando às empresas japonesas a comer- Esses planos de transformação e de zes subestimada pelos camponeses. centenas de quilômetros e só vimos
cialização dos produtos, principal- desenvolvimento rural são elaborados Portanto, pode acontecer de a terra megaextensões de soja. Nem um úni-
mente nos mercados asiáticos. bem longe dos pequenos agricultores mudar de mãos insidiosamente. co camponês, tampouco uma comu-
Desde seu lançamento, o projeto que vivem na região. “A primeira vez A comunidade de Wuacua, em tor- nidade rural”, lembra Abel Saída, da
recebeu os cumprimentos de influen- que ouvimos falar do programa foi em no de 15 minutos da estrada de Naka- Associação Rural de Ajuda Mútua
tes dirigentes mundiais. Em novem- agosto de 2011, por meio de uma entre- rari, por sua vez, tem muita consciên- (Oram). “Todo o território está desar-
bro de 2011, por ocasião do 4º Fórum vista dada pelo ministro da Agricultu- cia disso. Um dia, em 2012, funcionários borizado. Não há nenhuma forma de
de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda ra, Pacheco, a um jornal brasileiro”,8 do distrito vieram pedir aos habitantes vida, pois a utilização intensa de pesti-
em Busan, na Coreia do Sul, a secretá- lembra Jeremiah Vunjane, diretor da que assinassem documentos. Em tro- cidas e fertilizantes criou um deserto.
ria de Estado norte-americana, Hillary Acção Académica para o Desenvolvi- ca, eles lhes prometeram uma soma de A perspectiva de ver nossa terra trans-
Clinton, elogiou o esforço “dessas eco- mento das Comunidades Rurais (Ade- dinheiro e a realização de “projetos so- formada em uma paisagem vazia tam-
nomias emergentes que trabalham cru), uma associação de Maputo que ciais”. Mas tratava-se de outra coisa: a bém nos pareceu um pesadelo.” Um
juntas em busca de soluções para os dá suporte ao campesinato familiar. renúncia explícita ao Duat. “Eles foram documentário elaborado com base na
desafios comuns”. O magnata Bill Ga- “Foi um choque. Nosso governo ven- enganados. Disseram-lhes que iriam viagem e traduzido nas línguas locais
tes, que comanda diversos programas dia para o exterior alguma coisa sobre participar de um programa de desen- circula em Moçambique.9
de desenvolvimento na África por a qual eles nunca tinham falado no volvimento rural e os fizeram assinar “Decidimos passar para a ação,
meio da Fundação Bill e Melinda Ga- país!”, diz com indignação esse antigo documentos que eles não compreen- pois continuavam a não nos dar infor-
tes, o exalta como “exemplo de parce- jornalista com uma longa barba negra diam. Receberam uma recompensa mações”, explica o presidente da Unac
ria inovadora”.6 e eloquência de orador: “Essa entrevis- entre 4.500 e 6.000 meticais [de R$ 265 de Nampula, Costa Estêvão. Usando
Nos bastidores da “parceria inova- ta nos fez abrir os olhos. Fizemos pes- a 350] e foram forçados a se mudar”, diz com orgulho os símbolos de sua orga-
dora” atua a GV Agro, uma empresa de quisas e percebemos que se tratava de Mepoteia, indignado. Pouco depois, a nização, uma camiseta amarela e um
consultoria ligada à Fundação Getulio um programa de infraestrutura visan- Agromoz, uma empresa de capital mis- boné de beisebol, ele ataca violenta-
Vargas, think tank e escola de ensino do abrir as portas de nosso país para as to brasileiro e português, obteve uma mente o governo. “Não somos contra o
superior renomada no Brasil. A GV multinacionais do agronegócio”. Fazer concessão de 9 mil hectares, nos quais desenvolvimento, mas acreditamos
Agro é dirigida pelo ex-ministro da as pesquisas não foi muito complica- ela cultiva principalmente soja. “Eles que os agricultores devem ser envolvi-
Agricultura Roberto Rodrigues, que se do: no mesmo artigo, empresários se aproveitaram do fato de grande par- dos e consultados”, declara. “Em vez
considera o campeão do desenvolvi- brasileiros se declaravam entusiasma- te da população aqui ser analfabeta e disso, em primeiro lugar, eles arquite-
mento agroindustrial de toda a faixa dos com a ideia de emigrar para o país não entender muito o português.” Ho- taram o plano sem nos informar. Em
situada entre os dois trópicos na Áfri- africano, onde lhes prometiam a con- je, Wuacua é um povoado fantasma, seguida, tentaram impô-lo a nós, fa-
ca. Por outro lado, consultor da com- cessão de terras por preços irrisórios. rodeado de plantações da Agromoz. lando de desenvolvimento rural, mas
panhia de mineração Vale, que extrai “Moçambique é um Mato Grosso no Seguranças recrutados pela empresa tirando a terra daqueles que a cultiva-
carvão na região da província de Tete, meio da África, com terras gratuitas, não deixam ninguém se aproximar. A vam havia anos.” Sem perder o fio do
o ex-ministro parece eminência parda poucos obstáculos ambientais e cus- terra é nua, à espera de ser semeada. É discurso, ele cava buracos na terra
do ProSavana: é a ele que se deve o pa- tos de transporte de mercadorias para impressionante o contraste com a pai- com uma enxada e semeia milho em
ralelo entre Mato Grosso e o norte de a China muito mais baixos”, afirmou sagem de Nakarari, onde se estendem sua pequena machamba, a meia hora
Moçambique, assim como a lenda de Carlos Ernesto Augustin, presidente pequenas roças de feijão e mandioca, da estrada de Nampula, dizendo:
um desenvolvimento das monocultu- da Associação Mato-Grossense dos crescem mangueiras e por todos os la- “Quando finalmente vimos o plano di-
ras nessas “terras inexploradas”.7 É ele Produtores de Algodão (Ampa). dos bandos de crianças correm. retor, compreendemos que o que nos
também que organiza visitas à área Sem ligação direta com o ProSava- propunham era um verdadeiro conto
para possíveis investidores brasileiros. TERRA VIRGEM... HABITADA POR na, os negócios da Agromoz deixam do vigário”. Revelado por um vaza-
Deve-se ainda à GV Agro o plano dire- 5 MILHÕES DE PESSOAS claras, todavia, as intenções dos que os mento, o documento elaborado pela
tor do ProSavana e seu mecanismo de Por mais que o diga o discurso for- promovem. Em toda a região, a histó- GV Agro e por dois escritórios do Ja-
financiamento. Lançado com um in- jado pela GV Agro e repetido como um ria de Wuacua e da expropriação das pão, Oriental Consulting e NTC Inter-
vestimento inicial de US$ 38 milhões mantra pelos encarregados em pro- terras se espalha de boca em boca. national, confirma as inquietações
pelos governos brasileiro e japonês, o mover o projeto, o corredor Nacala Instruídos por essa experiência, os re- das organizações camponesas. Nele se
projeto deve ser sustentado por um tem pouco a ver com o Cerrado. Embo- presentantes dos camponeses desa- fala em “empurrar os agricultores das
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13

práticas tradicionais de cultivo e de De fato, os que promovem o gran- sonhava transformar o país em plata- ria histórica”, no entanto, mostra-se
gestão das terras para práticas agríco- dioso projeto de transformação do forma central do agronegócio africa- prudente: “O governo mudou o discur-
las intensivas baseadas em sementes corredor de Nacala em um novo Mato no, está gerando um simples plano de so. Mas continuamos atentos, pois ele
comerciais, insumos químicos e títu- Grosso começam a perder força. Preo- cooperação, ainda no papel, no qual voltará ao ataque”.
los fundiários privados”.10 cupados em não parecerem agentes de parece não acreditar mais...
Inicialmente um simples movi- um novo colonialismo agrário, os ja- Basta ir ao Ministério da Agricultu- *Stefano Liberti é jornalista e cineasta. Esta
mento local, a mobilização ganhou poneses foram os primeiros a levantar ra para observar esse rebaixamento. A reportagem contou com uma bolsa do Pulit-
amplitude rapidamente. No Brasil, no dúvidas sobre sua pertinência. Os em- sede do que havia sido concebido como zer Center on Crisis Reporting. Ela está liga-
Japão e em Moçambique, os movi- presários brasileiros que visitaram o o maior projeto de desenvolvimento da a um documentário sobre a indústria glo-
mentos camponeses e as associações país a convite da GV Agro anunciaram agrícola da África foi relegada ao fundo bal da carne e da monocultura de soja,
compartilham as informações e coor- que não estão mais interessados. Os de uma ala secundária do prédio. Em realizado pelo autor e por Enrico Parenti, e
denam suas ações. Vinte e três organi- técnicos da Agência Brasileira de Coo- uma sala vazia, sem computador nem cuja estreia está prevista para o segundo se-
zações moçambicanas escreveram peração retornaram para o país. E o telefone, atrás de uma mesa sobre a mestre de 2018 (www.soyalism.com).
uma carta aberta para os governos ja- Fundo Nacala, que supunha levantar qual se distinguem minibandeiras de
ponês, brasileiro e moçambicano na US$ 2 bilhões, discretamente fechou. Moçambique e do Japão, encontra-se o
1 Ler Joan Baxter, “Ruée sur les terres africaines”
qual denunciam “a ausência total de O ProSavana foi suspenso. coordenador nacional do ProSavana. [Corrida pelas terras africanas], Le Monde Diplo-
um debate público amplo, transpa- Antonio Limbau se viu encarregado da matique, jan. 2010.
rente e democrático” sobre uma ques- “O PROGRAMA É BOM, NÃO FOI COMPREENDIDO” penosa tarefa de negar a evidência: “Ja- 2 Ler Ward Anseeuw, Liz Alden Wily, Lorenzo Cotula
e Michael Taylor, Land rights and the rush for land.
tão “de grande importância social, “Cometemos um erro de avalia- mais tivemos a intenção de importar o Findings of the global commercial pressures on
econômica e ambiental, que tem im- ção”, reconhece Hiroshi Yokoyama, modelo brasileiro do Cerrado. Sempre land research project [Direitos à terra e a corrida
pacto direto em nossa vida”.11 Umas responsável pelo ProSavana na Jica. Na quisemos promover um desenvolvi- para obtê-la. Conclusões do projeto de pesquisa
pressões comerciais mundiais sobre a terra], Inter-
quarenta organizações internacionais sede da agência, em um prédio moder- mento rural adaptado a nosso país, fa- national Land Coalition, Roma, 2012.
coassinaram o documento e o fazem no no centro de Maputo, o funcionário vorecendo as pequenas, médias e gran- 3 Cf. o banco de dados Land Matrix em: <www.land-
circular. O mesmo Estêvão se viu, en- admite francamente que nenhum es- des empresas. A soberania alimentar matrix.org>.
4 Olivier De Schutter, “How not to think of land-grab-
tão, catapultado da mata moçambica- tudo de viabilidade foi realizado. “No de nosso povo é nossa prioridade”, afir- bing: three critiques of large-scale investments in
na para os corredores luxuosos da Câ- início pensamos que seria possível re- ma de modo peremptório. Segundo ele, farmland” [Como não pensar sobre a questão da
mara dos Deputados de Tóquio. “Fui produzir a experiência de Mato Grosso. o projeto vai avançar, “apesar dos atra- apropriação de grandes extensões de terra: três
críticas a investimentos de grande escala em terras
convidado para me encontrar com par- Em seguida, percebemos que os dois sos e mal-entendidos”. cultiváveis], The Journal of Peasant Studies, v.38,
lamentares japoneses. Eu lhes disse que contextos eram bem diferentes e que No corredor de Nacala, porém, o n.2, Routledge, Abingdon (Reino Unido), 2011.
criticamos o ProSavana porque ele co- não era adequado executar o modelo ProSavana parece um fantasma. Solitá- 5 Cf. Main basse sur la terre. Land grabbing et nou-
veau colonialisme [Expropriação da terra. Apro-
loca em questão nosso modo de vida.” de desenvolvimento brasileiro aqui.” rio como uma catedral deslocada no priação de grandes extensões de terra e novo colo-
As manifestações, as missões no Yokoyama se refere, hoje, a um neces- meio da savana, na periferia de Nampu- nialismo], Rue de l’Échiquier, Paris, 2013.
exterior, a carta aberta, um movimento sário “apoio aos pequenos produtores” la encontra-se um laboratório de análi- 6 ODA transforming Mozambique [A ODA contribui
para a transformação de Moçambique], Japan Ti-
de opinião pública que une as organi- e rejeita qualquer agricultura de gran- se dos solos, uma das raras entidades do mes, Tóquio, 6 jan. 2012.
zações camponesas moçambicanas às de escala, que, no entanto, era o cerne plano concretizadas. No prédio vazio e 7 Cf. Alex Shankland e Euclides Gonçalves, “Imagi-
do Brasil, aos universitários e às orga- do projeto. “Estamos reescrevendo o desolado, alguns estudantes e um agrô- ning agricultural development in South-South Coo-
peration: The contestation and transformation of
nizações da sociedade civil japonesa e plano diretor com um mecanismo de nomo propõem sem entusiasmo a de- ProSavana” [Pensando o desenvolvimento agríco-
europeia: tudo isso fragilizou o projeto. consulta às comunidades rurais rela- monstração de seus aparelhos. Americo la na cooperação Sul-Sul: a contestação e a trans-
“O protesto alcançou todas as provín- cionadas”. A GV Agro não faz mais par- Uaciquete, responsável pelo ProSavana formação do ProSavana], World Development,
v.81, Amsterdã, maio 2016.
cias. Nós organizamos caravanas para te do processo. Os responsáveis por ele na província, recita a tese oficial: “O 8 Patrícia Campos Mello, “Moçambique oferece terra
informar as comunidades e estimulá- afirmam ter aprendido a lição e pro- programa é bom, mas não foi com- à soja brasileira”, Folha de S.Paulo, 14 ago. 2011.
-las a não aceitar propostas vazias de põem uma volta ao ponto de partida. preendido. Tudo está congelado agora”. 9 Face oculta do ProSavana, Youtube.com, 7 out. 2013.
10 Leaked ProSavana master plan confirms worst
funcionários”, conta Vunjane. E conti- Cerca de dez anos depois de seu A poucas horas da estrada, sob a fears [Vazado, o plano básico do ProSavana confir-
nua: “Foi duro. Percorremos distâncias lançamento oficial no G8 de L’Aquila, mangueira de Nakarari, basta pronun- ma piores medos], 30 abr. 2013. Disponível em:
enormes, mas conseguimos um resul- o ProSavana faz referência a um casa- ciar a palavra “ProSavana” para ver as <www.grain.org>.
11 Open Letter from Mozambican civil society organisa-
tado extraordinário: pela primeira vez, mento naufragado antes mesmo da fisionomias se entristecerem de raiva. tions and movements to the presidents of Mozambi-
o governo moçambicano teve de ouvir cerimônia. Se os japoneses investiram “Eles podem vir mil vezes, jamais nos que and Brazil and the Prime Minister of Japan [Carta
o povo, que lhe disse alto e bom som uma grande quantidade de dinheiro e convencerão”, martela Mocernea. Per- aberta de organizações e movimentos da sociedade
civil moçambicana aos presidentes de Moçambique
que não aceitaria um modelo de desen- de prestígio para abandoná-lo, os bra- to dele, Vunjane, que proclama sua sa- e do Brasil e ao primeiro-ministro do Japão], 3 jun.
volvimento imposto de cima”. sileiros já caíram fora. E Maputo, que tisfação por ter conseguido uma “vitó- 2013. Disponível em: <www.grain.org>.
14 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

LÓPEZ OBRADOR CONTRA A “MÁFIA DO PODER”

México: a tentação de ter esperança


No dia 1º de julho, os mexicanos elegerão 500 deputados, 128 senadores, nove governadores
e um novo presidente. Favorito, o candidato de esquerda López Obrador oferece uma resposta moderada
ao coquetel explosivo que assola o país: violência, corrupção e miséria. Mas a elite – cujas parcelas econômica,
política e mafiosa se fundem cada vez mais – aceitará o jogo democrático?
POR RENAUD LAMBERT*

m estúdio de televisão como zes em que se candidatou, Amlo liderou

U qualquer outro. Como acontece


em todo o mundo, jornalistas
mexicanos reuniram os candi-
datos à presidência para um debate. As
roupas, os cortes de cabelo, os sorrisos
as pesquisas de intenção de voto”, lem-
bra o historiador Massimo Modonesi.
“Ainda assim, o candidato do sistema
sai sempre vencedor.” E isso é anterior à
primeira candidatura de Obrador.
treinados: nada distingue a cena de Em 1988, quem perturbava a ordem
outras análogas francesas, alemãs ou era Cuauhtémoc Cárdenas. Dissidente
norte-americanas. Até que um dos interno do partido no poder, ele rejeita-
candidatos começa a procurar algo va a linha direitista da agremiação. Na
atrás de seu palanque. Assim que se noite do pleito, quando ele estava à
recompõe, José Antonio Meade, can- frente, o sistema de contagem “entrou
didato do Partido Revolucionário Ins- em pane”. Quando os resultados foram
titucional (PRI, direita), exibe um papel finalmente anunciados, seu adversá-
pouco legível que apresenta à câmera: rio, Carlos Salinas de Gortari, estava no
com grifos e flechas apontando nomes, topo. Em 1994: o candidato do PRI, Luis
o documento demonstrava o enriqueci- Donaldo Colosio Murrieta, ameaçou
mento ilícito daquele que havia acaba- romper com a linha de seu predeces-
do de interpelá-lo, Ricardo Anaya Cor- sor. Foi assassinado. Em 2000: dessa
tés, candidato de uma coalizão liderada vez, a normalidade institucional não
© Daniel Kondo

pelo Partido de Ação Nacional (PAN, di- sofreu nenhuma investida. A “transi-
reita) e o Partido da Revolução Demo- ção democrática”, cuja irrupção foi ce-
crática (PRD, centro-esquerda). Sem se lebrada pelo poder após 71 anos de rei-
desfazer do sorriso, este último procura nado sem interrupção do PRI, trocou
algo em suas pastas e tira um punhado um representante do sistema por seu
de papéis datilografados: eles provam sósia político, encarnado no PAN: o ex-
manipulações fraudulentas orquestra- ção passou, há tempos, de hobby de que é preciso um número suficiente de -diretor da Coca-Cola Vicente Fox.
das pelo homem que acabava de acusá- dirigentes políticos sem escrúpulos a assinaturas”, justificou um dos magis- 2006: em sua primeira campanha, Ló-
-lo. Reunidos na imagem, os cinco can- atividade econômica em tempo inte- trados. “Não indicam, contudo, que as pez Obrador propõe sair do emaranha-
didatos se agitam atrás dos palanques, gral. Em 2015, o Banco Mundial esti- assinaturas precisam ser validadas” do neoliberal em que o México se enre-
mexem em papéis e fichas, pedem a pa- mava sua participação no PIB em 9%,1 (El País, 12 abr. 2018). dou. Uma fraude maciça priva-o da
lavra... Durante toda a transmissão, ou seja, mais que o turismo. De acordo com certas estimativas, vitória. 2012: Amlo tenta a sorte mais
acusações de infração são atiradas para os lares mexicanos consagram cerca de uma vez. As manobras do PRI e o apoio
todos os lados, sem abalar seus alvos. O PROPINA PARA TER ÁGUA CORRENTE 14% de seus salários para satisfazer as dos grandes meios de comunicação le-
principal tema em torno do qual os can- Para alguns, a situação apresenta exigências de funcionários corruptos – vam Peña Nieto à presidência.
didatos combinaram debater nesse 22 algumas vantagens. Depois de agra- número que sobe para 33% nas famílias López Obrador não ignora esse
de abril de 2018? As medidas que toma- ciar a empresa espanhola Iberdrola que recebem um salário mínimo.2 Do contexto. “Para mudar as coisas, há
riam, uma vez no poder, para lutar con- (notadamente especializada na explo- lado das empresas, mais de um terço duas opções: a luta armada ou a via
tra a corrupção. ração de gás) durante sua passagem declara ter pago propina para obter um eleitoral”, declarou durante um pro-
Do ponto de vista dos dirigentes pela presidência, Felipe Calderón contrato público e 36,7% para obter grama de televisão do grupo Milenio,
políticos, o México parece uma imen- (2006-2012) agora goza de uma partici- uma simples ligação de água corrente no dia 21 de março de 2018. “Acredito
sa piñata, essas figuras de papelão re- pação no conselho administrativo da (contra médias de 15,8% e 8,5%, respec- que é possível transformar o México
cheadas de doces e brinquedos que as companhia. Preocupada com uma in- tivamente, na América Latina).3 Alguns de forma pacífica. [...] E, embora as
crianças rompem a golpes de bastão vestigação sobre casos de corrupção esvaziam a piñata; outros a recheiam. cartas já estejam marcadas, me lanço
em festas de aniversário. Uma piñata ligados à empresa brasileira Ode- Esse contexto, sem dúvida, explica na batalha eleitoral. Não é uma con-
que a cada eleição é novamente re- brecht, a maioria dos deputados mexi- o avanço do candidato Andrés Manuel tradição, é apenas porque não tenho
cheada. Durante o mandato do atual canos votou, em março passado, con- López Obrador, chamado de “Amlo”, escolha. [...] Às vezes, é um caminho
presidente, Enrique Peña Nieto (PRI), tra a perseguição de altos funcionários nas pesquisas de opinião.4 Desde sem- mais difícil que a via armada. Porque
uma enxurrada de escândalos condu- culpados de enriquecimento pessoal. pre Amlo se gaba por seu combate à nos sujeitamos ao Estado: um Estado
ziu dezesseis governadores, ou ex-go- Mais recentemente, o tribunal eleito- “máfia que se apropriou do México” – antidemocrático e autoritário. Não te-
vernadores, a responder perante a jus- ral validou a candidatura à presidên- título de um de seus muitos livros, pu- nho ilusão, já vivi fraude eleitoral. Mas
tiça e, em alguns casos, a ir para trás cia do governador do estado de Nuevo blicado em 2010. Essa constância ter- não renunciei à esperança.”
das grades. Um deles, Javier Duarte, León, Jaime Heliódoro Rodríguez Cal- minou por convencer que ele traduz Pessimismo da razão e otimismo
destacou-se por desviar US$ 3 bilhões derón, mesmo com 58% das assinatu- uma convicção. da vontade? Não apenas. “O México
em sua passagem pelo estado de Vera- ras necessárias terem sido considera- Mas os mexicanos realmente deci- atravessa uma crise de extrema violên-
cruz. Ao contar tantos zeros, a corrup- das fraudulentas. “As normas indicam dem o destino do México? “Todas as ve- cia”, analisa o sociólogo Mateo Crossa.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15

“Essa situação evidentemente toca as para ganhar as elites brasileiras em para facilitar o investimento privado Pinos [residência do chefe de Estado]
populações mais pobres, mas passou a 2002. “Dada a gravidade da situação e a por meio de benefícios fiscais” (El Uni- no dia seguinte de sua posse. Ele rece-
afetar igualmente a burguesia, que es- profundidade da crise, prevemos uma versal, 6 mar. 2017). “Nada de confis- be uma comissão de grandes empre-
tá se desfazendo. Pela primeira vez, ela espécie de trégua, [...] para fazer que as cos, expropriações ou nacionalizações. sários que dizem: ‘Cuidado, Andrés,
multiplica os candidatos, o que é bom coisas se mantenham em ordem”, ex- Nada de corrupção. Nada de proble- porque, se continuar assim, deslocare-
para Amlo.” Nem o PAN nem o PRI plicou durante a transmissão organi- mas”, resumiu o candidato diante dos mos nossas empresas para a Costa Ri-
conseguiram firmar aliança. No inte- zada pela Milenio – o que suscitou uma banqueiros do país reunidos em sua ca’. [...] E, se isso acontecer, é preciso
rior do primeiro, a candidatura de Ana- reação entusiasmada do editorialista conferência anual.7 López Obrador que sejamos 2 milhões ou 3 milhões
ya não convenceu os próximos do ex- Jesús Silva Herzog: “Tenho a impressão permanece, ainda assim, muito à es- nas ruas dizendo: ‘Se eles estão te
-presidente Calderón, cuja esposa, de que você está assumindo plena- querda para muitos donos de empre- chantageando, Andrés, exproprie-os.
Margarita Ester Zavala Gómez del mente, e com certo orgulho, uma posi- sas, que tentam desacreditá-lo compa- Que se danem!’. [...] A pressão que es-
Campo, se apresenta como candidata ção abertamente conservadora”. rando-o com outro populista: o sas pessoas podem exercer sobre um
independente. No interior do PRI, a Se por um lado Amlo permanece o presidente norte-americano, Donald dirigente – radical, competente, ho-
nomeação de Meade pelo atual presi- único candidato a evocar a soberania Trump, que os mexicanos execram. nesto – é imensa. É preciso um movi-
dente, Peña Nieto – desacreditado e alimentar do país, a querer mergulhar Acusação inversa parte do outro la- mento social que leve à mudança.”8
suspeito de enriquecimento ilícito –, nas raízes sociais da violência, a de- do do tabuleiro político: “Morena, a di- A capacidade de mobilização da
provocou uma fuga de quadros para a nunciar os baixos salários e a prome- reita disfarçada de esquerda”, resume Morena existe: foi minuciosamente
Morena, formação de Obrador. ter melhorar a universidade, por outro uma caricatura que circula nas redes construída para responder às solicita-
ele tranquilizou os setores mais con- sociais. Alguns sem dúvida prefeririam ções de seu dirigente. Uma vez no po-
“SE ESTÃO TE CHANTAGEANDO, EXPROPRIE-OS” servadores da sociedade ao se aliar ao ver outro Hugo Chávez chegando ao der, ele incentivaria seus militantes a
Apesar dos desacordos (e da troca Partido Encuentro Social (PES), evan- poder. Evidentemente, López Obrador pressionar as trincheiras do sistema?
de amabilidades de seus candidatos gélico e contrário ao aborto5 – assim não o é. Mas o México de 2018 também
no debate de abril), um pacto entre o como grande parte da população e a não se parece com a Venezuela em *Renaud Lambert é jornalista do Le Monde
PRI e o PAN não está totalmente des- maioria das formações políticas. meados dos anos 2000, quando o preço Diplomatique.
cartado. Mas Crossa acrescenta um Amansou o Exército prometendo não das matérias-primas decolou. No po-
segundo fator que joga a favor de Ló- intervir na Lei de Segurança Interna, der, Amlo deverá pilotar um Estado en-
pez Obrador. “O país nunca teve tanto votada em dezembro de 2017, que en- fraquecido. Milícias e cartéis contes- 1 “Corrupción representa 9% del PIB: Banco Mun-
dial” [Corrupção representa 9% do PIB: Banco
descrédito na classe política e nunca dossa a presença de militares nas ruas tam o monopólio legítimo da violência Mundial], El Financiero, México, 5 nov. 2015.
sofreu tanto com a corrupção. A situa- e amplia as prerrogativas a ponto de (estatal) em algumas regiões. O Exérci- 2 “La corrupción costó 1,600 mdp a las empresas en
ção atual não pode durar. Ora, Amlo provocar inquietude na ONU e em or- to e os serviços de informação de seu 2016: INEGI; 65% de las mordidas son para trámi-
tes” [A corrupção custou 1.600 mdp às empresas
dispõe de algo que falta na elite: legiti- ganizações de defesa dos direitos hu- poderoso vizinho do norte adminis- em 2016: 65% das mordidas são para trâmites], 3
midade.” Em uma notícia publicada manos.6 Seu programa também sedu- tram, financiam e às vezes supervisio- jul. 2017. Disponível em: <sinembargo.mx>.
no dia 27 de março último, Valeriano ziu alguns atores do setor privado, que nam seus próprios serviços de seguran- 3 Pesquisa “Business environment in Mexico” [Am-
biente de negócios no México], Enterprise Sur-
Suárez, vice-presidente da Coparmex, consideram atualmente, com o Finan- ça. As instituições administrativas, veys, Banco Mundial, Washington, DC, 2010.
um dos principais organismos patro- cial Times, que López Obrador “não é eleitorais e fiscais sofrem de um pro- 4 41,2% de intenção de voto, contra 28,2% para
nais, dizia a mesma coisa: “É verdade tão perigoso como muitos imaginam” fundo descrédito. E, desde os anos Anaya e 21,9% para Meade, de acordo com pes-
quisa do El País, Madri, 31 mar. 2018.
que o exemplo de um presidente deter- (24 jan. 2018). 1980, a economia foi reestruturada com 5 A legislação varia de um estado para outro no seio
minado a se mostrar não corrompível A hostilidade, contudo, permanece o único objetivo de fornecer mão de da federação: alguns autorizam, em geral com al-
seria ideal para impulsionar a trans- viva no interior de um patronato pouco obra barata às transnacionais norte-a- gumas condições; outros punem severamente.
6 Paulina Villegas, “Missing Mexicans’ case shines
formação do sistema que rege nosso habituado a receber provocações. “Por mericanas. Com ou sem Chávez, a mar- light on military’s role in drug war” [Caso de desa-
mundo político e seus apêndices do mais paradoxal que possa parecer, a gem de manobra se mostra limitada... parecidos mexicanos joga luz sobre o papel militar
setor privado” (El Sol de México). Morena representa a melhor opção pa- “Imagine se ganharmos as elei- na guerra contra as drogas], The New York Times,
30 abr. 2018.
Daí a apoiar um dirigente político ra os empresários”, reafirma Martí Ba- ções”, lançou o romancista Paco Igna- 7 Citado por Jude Webber em “Mexico leftist Amlo
de esquerda é outra coisa: uma parte tres, um dos dirigentes do partido, an- cio Taibo II aos militantes da Morena, vows no nationalisation, no expropriations” [O es-
do eleitorado se recusa a dar esse pas- tes de referir-se efetivamente aos da qual ele é membro. “O Congresso querdista Amlo diz que não haverá nacionalização
nem expropriação], Financial Times, Londres, 9
so. López Obrador se deu por missão pontos do programa: “Acabar com ex- será contra nós, porque seremos um mar. 2018.
encorajar essas pessoas multiplicando torsões e propinas que entravam os ne- grupo minoritário, 35% no máximo. A 8 “Deben expropiarse las empresas que no coope-
os discursos moderados. Seu slogan gócios”, “não aumentar os impostos”, maioria dos governadores? É do PRI e ren con AMLO: Paco Ignacio Taibo II” [As empre-
sas que não cooperarem com Amlo devem ser ex-
preferido? “Amor e paz”, o mesmo es- “conservar os grandes equilíbrios ma- do PAN, ou ainda pior, do PRD. [...] En- propriadas: Paco Ignacio Taibo II], 28 abr. 2018.
colhido por Luiz Inácio Lula da Silva croeconômicos” e “criar zonas francas tão veja: Andrés Manuel está em Los Disponível em: <sdpnoticias.com>.

SELEÇÃO OFICIAL
FESTIVAL DE CANNES

HOJE NOS CINEMAS


16 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

DISCRIMINAÇÃO POSITIVA PARA OS NORTE-AMERICANOS RICOS

Como papai me
colocou em Harvard
Para selecionar seus alunos, as universidades norte-americanas levam em conta vários critérios: resultados escolares, origem
étnica, local de residência e até mesmo sexo. As instituições de maior prestígio consideram também a linhagem familiar do
candidato. Elas favorecem os filhos de ex-alunos, praticando assim uma forma de discriminação positiva... para os ricos
POR RICHARD D. KAHLENBERG*

s norte-americanos aprendem quanto “caráter”, “diversidade geográ-

O isto desde a mais tenra infân-


cia: a partir da Guerra da Inde-
pendência (1775-1783), os Esta-
dos Unidos rejeitaram a ordem
hereditária em favor da lei estabeleci-
fica” ou “ascendência familiar”.
Um século depois, os critérios de
hereditariedade continuam a agir co-
mo uma arma de discriminação em
massa. Segundo os advogados John
da “pelo povo e para o povo”. Thomas Brittain e Eric Bloom, os estudantes
Jefferson, um dos pais fundadores, es- pertencentes às minorias sub-repre-
creveu que seus concidadãos aspira- sentadas (negros, hispânicos, nativos
vam a uma “aristocracia natural” ba- americanos) respondem por 12,5%
seada em “virtude e talento”, em vez de das candidaturas às universidades se-
a uma “aristocracia artificial” baseada letivas, mas constam em apenas 6,7%
na fortuna e no nascimento, como no das candidaturas aprovadas, em bene-
Reino Unido. fício daqueles que podem fazer valer
De todas as violações desse princí- sua linhagem.5
pio cardeal, a consequência mais gra- Os defensores, por vezes, argumen-
ve foi certamente o sistema de discri- tam que o filtro hereditário é apenas
minação racial infligido à população uma forma, entre outras, de desempa-
negra. Mais discreta, outra transgres- tar a disputa entre candidatos igual-
são decisiva foi posta em prática no mente qualificados. Na realidade, ele
início do século XX: a inclusão da li- não se reduz a uma simples ajuda do
nhagem nos critérios de admissão das destino. Um estudo realizado por pes-
principais universidades do país. No quisadores da Universidade de Prince-
momento da inscrição, jovens candi- ton demonstra, com base em uma
datos recebem de fato tratamento pre- amostra de dez dos estabelecimentos
ferencial quando um de seus progeni- brepõe a uma falta de diversidade so- “Agora, papai suborna o juiz.”3 mais exclusivos do país, que ser “filho
tores – geralmente o pai – frequentou a cioeconômica que se torna cada vez Solidamente estabelecido nos Es- de” equivale a um bônus de 160 pontos
escola. “Ao reservar lugares para mem- mais gritante nos estabelecimentos de tados Unidos, esse direito de sucessão (de um total de 1.600 pontos possíveis)
bros da pseudoaristocracia ‘de fortuna alto padrão. Embora a Universidade universitária é “praticamente desco- no teste de avaliação escolar (Scholas-
e de nascimento’”, escreve o ensaísta Harvard se orgulhe de que no início do nhecido em qualquer outro lugar”, ob- tic Assessment Test, SAT), a prova-pa-
Michael Lind, “o direito de sucessão próximo ano letivo seus novos alunos serva o jornalista Daniel Golden, que o drão a que a maioria dos postulantes
universitária introduziu a serpente serão na maior parte não brancos, um vê como “quase exclusivamente norte- deve se submeter para entrar em uma
aristocrática no jardim do Éden da re- estudo publicado em 2017 indica que -americano”.4 Como um país nascido universidade norte-americana.6 Em
pública democrática.”1 mais da metade dos estudantes per- de uma revolução contra a aristocracia 2011, uma pesquisa realizada em trinta
Hoje, esses critérios de seleção he- tence aos 10% das famílias mais ricas pôde se mostrar um terreno tão fértil instituições de elite constatou que, em
reditária (legacy preferences) estão em do país. Aqueles procedentes do 1% para a seleção pela filiação? Que justi- igualdade de qualificações, os filhos de
vigor em três quartos das cem univer- das famílias mais ricas são quase tão ficativas permitem a esta impor-se ex-alunos tinham 45 pontos percen-
sidades norte-americanas mais bem numerosos quanto seus pares dos 60% com o conhecimento de todos e com tuais a mais de chances de admissão
cotadas, públicas e privadas. Eles tam- mais pobres. uma aparente racionalidade? do que os candidatos não herdeiros.7
bém reinam nas cem melhores escolas Em um ambiente já marcado pela A seleção hereditária foi introduzi- Em outras palavras, um estudante que
de “artes liberais” do país. Além dos preponderância das desigualdades da no rescaldo da Primeira Guerra tem 40% de chance de ser admitido
resultados escolares, da cor da pele, do sociais, o privilégio dinástico repre- Mundial, com o objetivo de conter a com base em seus méritos e em seu
sexo e da origem geográfica, essas ins- senta um nível ainda mais elevado de afluência de estudantes imigrantes – perfil (resultados do SAT, qualidades
tituições levam em consideração a fa- favoritismo. Como ressalta o autor especialmente judeus – nos estabeleci- esportivas, gênero etc.) vê esse percen-
mília dos candidatos, sem revelar o britânico Richard Reeves, pesquisa- mentos abastados da Costa Leste. Des- tual subir para 85% no caso de heredi-
peso que atribuem a cada um desses dor da Brookings Institution, a classe contentes de ver os recém-chegados tariedade favorável.
critérios. A concentração dos filhos de média alta não se contenta mais em humilharem a fina flor das elites an- “Em universidades seletivas, os fi-
ex-alunos cresce em proporção ao beneficiar sua descendência com- glo-saxãs no campo da meritocracia, lhos de ex-alunos geralmente repre-
prestígio da instituição. De acordo prando casas nos bairros chiques on- os reitores de início adotaram cotas de sentam de 10% a 25% da população es-
com uma pesquisa recente do Harvard de as melhores escolas estão concen- judeus. Quando esses dispositivos se tudantil”, diz Daniel Golden. “O fato de
Crimson, 29% dos novos estudantes de tradas: eles usam seus nomes como tornaram indefensáveis, as universida- essas proporções variarem pouco ano
primeiro ano têm pais que fizeram um privilégio. “Papai não nos ajuda des começaram a usar meios indiretos a ano sugere que existe um sistema in-
© Adão

seus estudos em Harvard.2 Essa repro- mais apenas brincando de luta livre para excluir os judeus, sobretudo a in- formal de cotas internas.” Em contras-
dução das elites pela via familiar se so- conosco no jardim”, ele escreveu. trodução de critérios tão absurdos te, uma escola grande como o Califor-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17

nia Institute of Technology [Instituto Fora dos campi, a mobilização rece- O Congresso também poderia ter afirmativa para os ricos: preferências lega-
de Tecnologia da Califórnia], que se re- be apoios às vezes inesperados. Em ou- uma palavra a dizer. Com pesquisas das em admissões em faculdades], Cen-
cusa a favorecer os herdeiros, tem ape- tubro de 2017, o presidente do Federal que indicam que três entre quatro tury Foundation, Nova York, 2010.
nas 1,5% de filhos de ex-alunos. Reserve de Nova York, William Dudley, norte-americanos lhe são hostis, o di-
Às vezes, ouve-se dizer que o privi- declarou em um discurso que as prer- reito de sucessão universitária tor-
légio dinástico reforça o apego dos ex- rogativas familiares eram “perfeita- nou-se politicamente embaraçoso,
1 Michael Lind, “Legacy preferences in a democratic
-alunos à sua instituição, o que os en- mente injustas” e que “colocar no lixo em especial pelo fato de a justificativa Republic” [Preferências legadas em uma república
coraja a lhe oferecer doações mais esse tipo de política só pode promover defendida por seus advogados – o efei- democrática]. In: Richard D. Kahlenberg (org.), Af-
generosas. Mas nenhum dado empíri- a mobilidade social”. E é de se pergun- to supostamente de incentivo sobre os firmative Action for the Rich: Legacy Preferences
in College Admissions [Ação afirmativa para os ri-
co valida essa afirmação. Uma equipe tar: “Nós realmente queremos encora- doadores – se revelar uma faca de dois cos: preferências legadas em admissões em facul-
de pesquisadores liderada por Chad jar em nossas grandes universidades gumes: a receita poderia ver nisso dades], The Century Foundation, Nova York, 2010.
Coffman, do instituto Winnemac Con- algo que nada mais é do que uma polí- uma razão para suspender os cortes 2 Jessica M. Wang e Brian P. Yu, “Meet the class of
2021” [Conheça a turma de 2021], The Harvard
sulting, examinou as doações feitas tica de ‘admissão por doação’?”. de impostos concedidos a esses mes- Crimson, 2017. Disponível em: <www.thecrimson.
por ex-alunos para as cem universida- Pode ser que a justiça, mais cedo mos doadores. De fato, se se reconhe- com>.
des mais conceituadas entre 1998 e ou mais tarde, resolva o problema. ce que eles recebem um benefício em 3 Richard Reeves, Dream Hoarders: How the Ame-
rican Upper Middle Class Is Leaving Everyone
2007. Disso se depreende que as insti- Curiosamente, até o momento o direi- troca de sua doação, seu acordo com Else in the Dust, Why That Is a Problem, and What
tuições que reconhecem um direito de to de sucessão universitária só foi ob- as universidades vai contra as regras to Do About [Açambarcadores de sonho: como a
sucessão universitária com certeza re- jeto de um litígio perante um tribunal sobre deduções fiscais que regem as classe média alta norte-americana está deixando
todos os outros na poeira, por que isso é um pro-
cebem, em média, um valor maior por federal, em 1975, por iniciativa de uma obras de caridade: uma doação não blema e o que fazer a respeito?], Brookings Institu-
ex-aluno (US$ 317 contra US$ 201), mas infeliz postulante da Universidade de deve enriquecer o doador. tion Press, Washington, DC, 2017. Ler também
essa diferença se deve ao fato de seus Chapel Hill, na Carolina do Norte. Ja- Enquanto isso, o absurdo desse “Classe sans risque” [Classe sem risco], Le Mon-
de Diplomatique, out. 2017.
doadores serem mais ricos que os ou- ne Cheryl Rosenstock achava que seus modo de seleção ilustra o desafio cru- 4 Cf. Daniel Golden, The Price of Admission: How
tros. Os autores do estudo não encon- direitos constitucionais haviam sido cial representado pelo acesso às gran- America’s Ruling Class Buys Its Way into Elite
traram “nenhuma evidência de que as ultrajados por favores concedidos a des universidades. Os benefícios de es- Colleges – and Who Gets Left Outside the Gates
[O preço da admissão: como a classe dominante
políticas de favoritismo familiar afe- outros candidatos – entre eles filhos tudar em uma dessas instituições dos Estados Unidos compra sua entrada nas fa-
tem o comportamento dos doadores”. de ex-alunos, mas também pessoas de douradas são surpreendentes. Primei- culdades de elite – e quem fica de fora dos por-
Eles também analisaram em detalhe condição modesta ou oriundas de mi- ro, no nível da educação: uma univer- tões], Three Rivers Press, Nova York, 2006.
5 John Brittain e Eric Bloom, “Admitting the truth: the
as contribuições feitas às sete institui- norias. Sua queixa foi rejeitada. Os re- sidade média gasta US$ 12 mil por ano effect of affirmative action, legacy preferences and
ções que abandonaram esse método sultados medianos obtidos pela quei- na formação de um de seus alunos, the meritocratic ideal on students of color in college
de seleção durante a pesquisa. Mais xosa no SAT (850 pontos de 1.600) contra US$ 92 mil nas mais seletivas. E admissions” [Admitindo a verdade: o efeito da
ação afirmativa, preferências legadas e o ideal me-
uma vez, não encontraram “nenhum certamente não funcionaram a seu em termos de renda: em qualificações ritocrático nos estudantes não brancos nas admis-
traço significativo de declínio após a favor, mas o juiz também não apre- iguais, esses graduados ganham um sões em faculdades]. In: Affirmative Action for the
abolição do privilégio familiar”. ciou o questionamento desses privilé- salário 45% maior em média do que Rich, op. cit.
6 Thomas Espenshade, Chang Chung e Joan Wal-
gios, retomando a ideia segundo a seus pares que estudaram em institui- ling, “Admission preferences for minority stu-
UM ATAQUE À CONSTITUIÇÃO qual eles eram indispensáveis para o ções menos conhecidas – uma lacuna dents, athletes and legacies at elite universities”
Instalado nos Estados Unidos há financiamento das universidades. que explode se considerarmos apenas [Preferências de admissão para estudantes de
minorias, atletas e herdeiros nas universidades
um século, o bônus concedido aos Como Steve Shadowen e Sozi Tu- os alunos de origem modesta. De acor- de elite], Social Science Quarterly, v.85, n.5, Ho-
herdeiros enfrenta, no entanto, ques- lante,8 muitos advogados argumen- do com um livro de Thomas Dye que boken, dez. 2004.
tionamentos que põem em dúvida ho- tam, no entanto, que essa discrimina- se tornou um clássico, mais da metade 7 Michael Hurwitz, “The impact of legacy status on
undergraduate admissions at elite colleges and
je sua viabilidade a longo prazo. Em ção universitária atenta contra a dos grandes donos de empresas e cer- universities” [O impacto do status de legado em
fevereiro de 2018, grupos de estudan- Constituição, em particular contra a ca de 40% dos líderes governamentais admissões de graduação em faculdades e univer-
tes de uma dúzia de universidades de 14ª Emenda. Originalmente concebida estudaram em uma das doze universi- sidades de elite], Economics of Education Review,
v.30, n.3, Amsterdã, jun.2011.
prestígio começaram a se mobilizar como um freio às discriminações con- dades mais cotadas.9 A história não diz 8 Steve Shadowen e Sozi Tulante, “No distinctions
contra os privilégios hereditários. Em tra os afro-americanos, essa emenda quantos foram admitidos por causa do except those which merit originates: the unlawful-
Princeton, Yale, Cornell, Brown, Co- estende-se mais geralmente às “prefe- sobrenome... ness of legacy preferences in public and private
university” [Nenhuma distinção exceto as que o
lumbia e Chicago, organizações estão rências baseadas na linhagem”, segun- mérito origina: a ilegalidade das preferências lega-
exigindo – sem sucesso – a realização do a fórmula do ex-juiz da Suprema *Richard D. Kahlenberg é pesquisador da das na universidade pública e privada], Santa Cla-
na primavera de um referendo para Corte Potter Stewart. Ele argumenta Century Foundation, especialista em ques- ra Law Review, v.49, n.1, 2009.
9 Thomas Dye, Who’s Running America? The Oba-
perguntar aos alunos se eles acham que os indivíduos devem ser julgados tões educacionais. Coordenador da obra ma Reign [Quem está tomando conta da América?
justo o sistema de bonificação para por seus próprios méritos, e não em Affirmative Action for the Rich: Legacy O reinado de Obama], Paradigm Publishers, Boul-
“os filhinhos de papai”. função de sua ascendência. Preferences in College Admissions [Ação der, 2014.

A trama da natureza A gramática do português Reforma e crise


A época da Ilustração foi fértil na investigação revelada em textos política no Brasil
da natureza e dos conceitos Resultado de 10 anos de Para entender a crise política que
de organismo, finalidade, trabalho, Maria Helena de redundou no impeachment de
sistema e vida. Pedro Paulo Moura Neves lança esta Dilma Rousseff, Armando Boito
Pimenta aborda esses temas notável gramática Jr analisa uma dimensão da vida
a partir do exame de alguns inspirada nos usos reais social cuja importância é
pontos encontrados em duas da língua, nos diferentes ignorada ou descurada na
tradições filosóficas gêneros discursivos e nos maioria das análises disponíveis:
geralmente consideradas diferentes tipos (ou os conflitos distributivos de
opostas, mas que aqui são sequências) de texto. Para classe que atravessaram e
aproximadas e por vezes o renomado linguista José atravessam a sociedade
conciliadas: o Empirismo, Luiz Fiorin, “é uma obra brasileira.
em suas vertentes britânica e absolutamente necessária
francesa, e a Filosofia Produzir conteúdo
para todos os estudiosos
Transcendental kantiana. Compartilhar conhecimento.
da língua, avançados ou
Desde 1987.
iniciantes”.
www.editoraunesp.com.br
18 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

NACIONALISMO DEMOGRÁFICO NA HUNGRIA

O medo de desaparecer
Iniciada no começo da década de 1980, a queda da taxa de fecundidade da Hungria conduziu o país a uma redução
no tamanho de sua população, agravada por uma forte emigração para o exterior. Com 1 milhão de habitantes a menos
que há trinta anos, o despovoamento alimenta todo tipo de fantasmas e demagogias
POR CORENTIN LÉOTARD E LUDOVIC LEPELTIER-KUTASI*

© Reuters / Bernadett Szabo


Protesto contra o presidente húngaro Viktor Orbán em Budapeste

“C
omo é possível que depois de Todo ano as comemorações da Re- Guerra Mundial; a valorização da fa- claro sinal endereçado aos 5 milhões
mil anos ainda estejamos aqui? volução de 1848 representam um mo- mília tradicional por políticos a favor de falantes de húngaro que viviam fora
Talvez porque sempre soube- mento paroxístico na vida política do da natalidade, visando frear uma an- das fronteiras foi amplificado pelo Fi-
mos que nossa existência tem país. Três semanas antes das eleições tiga queda da fecundidade; e, enfim, desz, partido liberal conservador que
um sentido, que havia uma cultura legislativas de 8 de abril, o tom empre- uma postura paranoica em relação chegou ao poder em 1998. Seu chefe,
aqui, um espírito e uma alma que ele- gado pelo chefe de governo impressio- aos “outros”, quer se trate das mino- Viktor Orbán, apresentou-se como
varam nosso coração durante séculos. nava pela radicalidade, mas fazia par- rias do interior (roma [ciganos], ju- protetor dos húngaros da Sérvia du-
Conservamos nosso ideal de unidade te de uma antiga obsessão: o medo de deus) ou, mais recentemente, de imi- rante o conflito do Kosovo de 1999. De-
e unificação, como também nosso or- desaparecer enquanto nação. Desde o grantes extraeuropeus. pois, voltando para a oposição, ele
gulho nacional.” Neste dia nacional de Tratado de Trianon, em 1920, e do des- A escalada do irredentismo marcou apoiou, em 2004, a iniciativa de conce-
15 de março de 2018, diante de dezenas membramento do Reino da Hungria,1 o período entre guerras e conduziu o der a cidadania aos residentes de lín-
de milhares de seus partidários, Viktor a direita desenvolveu uma retórica regente Miklós Horthy aos braços da gua húngara da Romênia, Eslováquia,
Orbán critica as “forças globalistas”. O poderosa em torno de uma “magiari- Alemanha nazista. A amnésia imposta Sérvia, Ucrânia, Áustria e Eslovênia.
primeiro-ministro húngaro profetiza dade” (magyarság) vulnerável em to- a seguir pelo poder comunista se dissi- No entanto, o referendo imposto pela
o desaparecimento da Europa ociden- da a Bacia dos Cárpatos, em razão de pou após sua queda, e a questão dos Federação Mundial dos Húngaros de
tal e convoca a juventude emigrada a uma história turbulenta e de um forte magiares ressurgiu. Em 2 de junho de maioria socialista liberal na época foi
defender a pátria, que tem sua sobrevi- sentimento de isolamento linguístico 1990, o novo chefe do governo, o con- invalidado por falta de participação.
vência ameaçada pelos fluxos migra- e cultural.2 De longa data, ela deu cor- servador József Antall, declarou “se Após oito anos de social-liberalis-
tórios: “Temos direito à existência. [...] po a um nacionalismo demográfico sentir afetiva e espiritualmente pri- mo, a volta ao poder de Viktor Orbán,
Se o dique ceder, haverá uma inunda- baseado em três pontos: a “reunião da meiro-ministro de 15 milhões de hún- em maio de 2010, marcou uma revira-
ção e a invasão cultural não poderá nação” para além das fronteiras im- garos”... enquanto o país contava ape- volta. Desde que assumiu sua função,
mais ser afastada”. postas à Hungria após a Primeira nas com 10 milhões de habitantes. Esse ele colocou em votação – em um Parla-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19

mento no qual tem o apoio de dois ter- trazer a questão das famílias e da ma- A questão migratória fez uma pri- rostat contou, no dia 1º de janeiro de
ços dos membros – um procedimento ternidade exclusivamente para a esfe- meira irrupção no debate público no 2018, 460 mil cidadãos húngaros insta-
simplificado de naturalização dos fa- ra pessoal”, afirmava em seu Progra- início dos anos 2000, quando se tra- lados em outro país da União Europeia
lantes de húngaro no exterior. O suces- ma de Cooperação Nacional.5 Diversas tava de estreitar as ligações entre a – e esse número é muito subavaliado,
so foi imediato na Romênia, na Sérvia medidas foram consideradas – sem ser “pátria-mãe” e os húngaros do “além- pois não leva em consideração as pes-
(dois países que também praticam introduzidas – para estimular a natali- -fronteira”. Em oposição ao referendo soas registradas em seu país de acolhi-
uma política de concessão de passa- dade: conceder descontos nos finan- de 2004 sobre a concessão da cidada- mento – um problema importante pa-
portes para suas próprias minorias ex- ciamentos estudantis para recompen- nia aos falantes de húngaro no exte- ra a direita no poder, tanto em razão
traterritoriais) e na Ucrânia. Em sete sar os formados que tiveram filhos rior, os socialistas liberais no poder do déficit de mão de obra que ele im-
anos, a Hungria naturalizou mais de 1 durante seus estudos, atribuir vanta- acenaram para a ameaça de uma in- plica como do alcance simbólico dessa
milhão de pessoas. Para o Fidesz, o gens na aposentadoria em função do vasão de trabalhadores estrangeiros. “fuga de cérebros”. Ironia do destino, o
golpe é duplamente vencedor: permite número de filhos e até conceder um Mas foi a passagem pela Hungria de partido radical Jobbik, superado pelo
aumentar o número de cidadãos hún- direito de voto estendido a famílias meio milhão de imigrantes em dire- Fidesz, objeta que a questão hoje não é
garos e garantir um sólido viveiro elei- numerosas. O governo finalmente op- ção à Alemanha no decorrer de 2015 saber se a Hungria se tornará ou não
toral.3 Nas eleições de 8 de abril, 378 tou por uma política de subvenções fa- que provocou um terremoto. Com um país de imigração, mas se real-
mil húngaros que vivem no exterior miliares mais clássica e inspirada no um índice de popularidade em baixa mente ela permanecerá um país de
estavam inscritos e podiam votar na sistema francês, para os abatimentos no início daquele ano, Orbán apro- emigração... Três dias após sua vitória
lista nacional. Apenas os residentes fiscais e uma série de medidas para veitou a situação para apresentar es- nas eleições de abril, Viktor Orbán
dispunham de um segundo boletim melhor conciliar a vida familiar e a ses refugiados como um novo perigo apresentou a luta contra o declínio de-
de voto previsto pelo sistema eleitoral profissional. Sua medida-guia: a atri- para a nação. Propagar a ideia de uma mográfico como a grande obra de seu
para votar em sua circunscrição. En- buição de um capital de 10 milhões de Hungria lutando sozinha por sua so- novo mandato de quatro anos.
fim, 225 mil tomaram parte do escru- forintes (um pouco mais de R$ 130 brevivência não era tarefa impossí-
tínio e 96% deles votaram no Fidesz. mil) para a compra de uma habitação vel, na medida em que existia no país *Corentin Léotard é jornalista e redator-che-
No entanto, essa política de natu- nova para casais com três filhos e para um terreno fértil para esse tipo de fe do Courrier d’Europe Centrale; Ludovic Le-
ralização não tem nenhum impacto aqueles com intenção de tê-los nos discurso, com um romance nacional peltier-Kutasi é doutorando em Geografia e
no declínio demográfico – uma forte próximos dez anos. que consagra seus principais capítu- diretor desse mesmo site de informação.
tendência. Após atingir um pico de O indicador conjuntural de fecun- los às ocupações sucessivas: tártara,
10,7 milhões de habitantes em 1980, a didade caiu para menos de dois filhos otomana e soviética.6
Hungria contava com menos de 9,8 por mulher no início dos anos 1980. No “O mundo tal como existe há mi-
milhões em 2017. De acordo com a pro- auge das crises econômicas e sociais lhares de anos, baseado em valores
jeção média das Nações Unidas, a po- dos anos 1990 – quando 1,5 milhão de tradicionais, está a ponto de desmoro-
pulação será inferior a 8 milhões até empregos foram destruídos – e 2000, nar. [...] Cedo ou tarde, isso conduzirá
2060.4 Em setembro de 2010, quatro chegou a ficar abaixo de 1,3, antes de a uma invasão. [...] Esse declínio está 1 Ver a cartografia “Des frontières mouvantes” [Fron-
teiras móveis], Le Monde Diplomatique, nov. 2016.
meses após a tomada do poder do Fi- subir um pouco, para atingir 1,5 crian- ligado à ‘teoria de gênero’ e ao ataque 2 Anne-Marie Losonczy e András Zempléni, “Anthro-
desz, a Associação Nacional das Famí- ça por mulher no decorrer dos dois últi- ao nosso ‘espaço de vida’ por outras ci- pologie de la ‘patrie’: le patriotisme hongrois” [An-
lias Numerosas encenou a passagem mos anos. “É em parte graças à mensa- vilizações”, declarou o presidente do tropologia da “pátria”: o patriotismo húngaro], Ter-
rain, n.17, Paris, out. 1991.
do país sob a barra simbólica dos 10 gem de Orbán: ‘Façam filhos’. Sabemos Parlamento, László Kövér, confirman- 3 Léotard Corentin, “La Hongrie a naturalisé un mil-
milhões de habitantes, com uma con- que as mensagens contam”, analisa At- do a virada nacionalista da direita lion de personnes en sept ans!” [A Hungria natura-
tagem regressiva em um placar gigan- tilla Melegh, demógrafa da Universida- húngara.7 Modelo para um amplo se- lizou 1 milhão de pessoas em sete anos!], Le Cour-
rier d’Europe Centrale, 18 dez. 2017.
te instalado em uma grande artéria do de Corvinus de Budapeste. “Mas é so- tor da extrema direita europeia, que o 4 O Eurostat e o Departamento Húngaro de Estatís-
centro da cidade de Budapeste. bretudo em razão do estado do mercado felicitou calorosamente por sua vitória ticas, Kirchberg (Luxemburgo) e Budapeste, 2017.
Nas eleições de 2010, a profissão de de trabalho, que está bem melhor hoje: nas últimas eleições, Viktor Orbán fez 5 Bureau da Assembleia Nacional, Budapeste, 22
maio 2010.
fé do Fidesz concedia um lugar de des- contamos com aproximadamente 4,5 sua a retórica da “grande substitui- 6 Catherine Horel, “L’histoire en Hongrie aujourd’hui
taque à família: “A saúde intelectual e milhões de empregos, contra apenas ção”, no rastro das identidades france- à travers l’interprétation du régime Horthy” [A histó-
mental da Hungria e da Europa depen- 3,8 milhões em 2010.” No entanto, isso sas e de Renaud Camus.8 ria na Hungria hoje por meio da interpretação do
regime Horthy], Histoire@Politique, n.31, Paris,
derá da nossa capacidade de restaurar não é suficiente para frear o declínio: o Esse discurso ganha corpo no mo- jan.-abr. 2017.
e preservar a saúde das famílias tanto número de nascimentos permanece mento em que a Hungria é diretamen- 7 Entrevista para a InfoRádió, 15 dez. 2015.
em nossa pátria como em uma Europa inferior ao de mortes, principalmente te atingida, após as mudanças dos 8 Ludovic Lepeltier-Kutasi, “Viktor Orbán, et l’obses-
sion du ‘grand remplacement’” [Viktor Orbán e a
comum. [...] Devemos ultrapassar a porque as mulheres com idade de pro- anos 2010, por outro fenômeno: uma obsessão pela “grande substituição”], Le Courrier
abordagem limitada que consiste em criar são pouco numerosas. imigração maciça para o oeste. O Eu- d’Europe Centrale, 20 jul. 2016.
20 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

SEM AUTOCRÍTICA

Para os socialistas franceses,


o fracasso é sempre culpa dos outros
Diante de um desastre eleitoral, a maioria dos dirigentes políticos coloca em questão as escolhas que os levaram
à derrota. Entretanto, as lideranças do Partido Socialista (PS) francês parecem ser completamente incapazes de imaginar
uma estratégia diferente daquela que as condenou
POR SERGE HALIMI*

á doze anos, François Hollande, ginar que deveria ficar mais feliz com a relle, revela a esse respeito que “desde

H então primeiro secretário do


Partido Socialista (PS), tirava li-
ções da saída de Lionel Jospin
no primeiro turno da eleição presiden-
cial de 2002. E suplicava a todos os ele-
eliminação da extrema direita. Na du-
pla executiva, a aversão pelo que cha-
mam de “esquerda radical” foi a tônica
dominante. Para o ex-presidente, esta
“não forja nenhum sistema alternati-
fevereiro de 2012, logo após seu dis-
curso de Bourget, Hollande enviava,
no maior segredo, Emmanuel Macron
para Berlim, para encontrar-se com
Nikolaus Meyer-Landrut, conselheiro
mentos situados à esquerda do PS para vo, não tem propostas críveis nem de Merkel para os negócios europeus,
“não deixarem a social-democracia so- aliados. Ela é o adversário sonhado pe- e tranquilizar a chanceler sobre a rea-
zinha consigo mesma”. Caso contrário, lo capitalismo”. lidade de suas intenções”.6 Ela nunca
ele temia que os “dois rios” da esquer- Mas opor-se ao capitalismo tem al- teve motivos para se preocupar.
da, o seu e o mais radical, “não se en- gum sentido quando se é social-de-
contrariam mais, incluindo no mo- mocrata? Ler as obras de Hollande e A CHANTAGEM DE BERNARD ARNAULT
mento das confluências eleitorais”.1 Cazeneuve – ou a de Pierre Moscovici, Também sobre esse plano, Hollan-
Não estava tão enganado... Durante que, no quinquênio passado, prece- de não se arrepende de nada: “Até en-
cinco anos, Hollande, eleito presidente deu Macron no Ministério da Econo- tão, refugiávamo-nos atrás da ideia de
da República em 2012 graças à rejeição mia5 – dissipa qualquer dúvida, ao me- uma ‘outra Europa’ que satisfaria os
suscitada por seu predecessor, Nicolas nos sobre esse ponto. Os três autores critérios do socialismo. Mas como
© Flavia Bonfim

Sarkozy, governou sozinho e dispôs de nunca veem em seu resultado eleitoral construí-la? [...] Minha experiência
todas as suas alavancas políticas. Ao fi- – ou social – a sanção de sua adesão ao confirmou esta certeza: não se trata
nal, ele “decepcionou” tanto que, em neoliberalismo. Eles mal concedem ter mais de sonhar com uma nova Europa.
abril de 2017, Benoît Hamon, o candi- cometido erros de método, ritmo ou Trata-se de saber se devemos sair ou fi-
dato oficial de seu partido, recebeu um defeito de “pedagogia”. As objeções car. Não há mais meio-termo”. Atual
apenas – com o apoio dos ecologistas – de fundo à sua “política da oferta” ou à comissário europeu dos negócios eco-
6,3% dos votos. A maioria dos eleitores sua submissão às preferências de An- nômicos, Moscovici apoia essa teoriza-
de Hollande em 2012 preferiu Emma- gela Merkel são tratadas com desprezo ção da impotência: “Correndo o risco
nuel Macron ou Jean-Luc Mélenchon.2
Na época, os socialistas (“discursos”, “encantamentos”, “injú- de decepcionar, não quero acalentar a
Fazia cinquenta anos que a distância identificavam seu rias”), em vez de serem discutidas. ilusão de ninguém [...]. A Europa social
entre os “dois rios” não era tão grande. inimigo em outro lugar, Moscovici revela até implicitamente o – outra serpente marinha – continuará
Quando alguns dos principais agen- não em suas fileiras. encerramento intelectual – a esclero- sendo uma bela intenção enquanto
tes do quinquênio que se passou escre- se? – de seus amigos políticos: “Alguns não se romper com a regra da unani-
veram para fazer a crônica do período –
À sua esquerda, nos recriminavam, mas nós nem se- midade”. Mas, para isso, seria preciso
o ex-primeiro-ministro Bernard para sermos quer tivemos esse debate [sobre a renegociar os tratados, uma opção que
Cazeneuve3 – ou para tirar “as lições” – o mais precisos prioridade concedida à redução dos ele decididamente descarta...
antigo presidente Hollande4 –, podería- déficits] e optamos sem discutir pela E esse não é o único empecilho, ou
mos esperar de suas obras algumas au- escolha da Europa”. A situação o cons- pretexto, autorizando a não se fazer
tocríticas profundas. Procuramos em bem, o que foi muitas vezes o caso, ele trange, mas não pela razão que pode- nada. “A dominação dos mercados
vão. Em suas memórias, Cazeneuve não atribui sua impopularidade à divisão de ríamos imaginar: “Ninguém nos dá com a qual tivemos de conviver”, para
revela nada de seus “150 dias sob tensão seus “amigos”, a seus “pequenos ódios crédito por isso, e é uma injustiça”. retomar os termos do ex-presidente,
em Matignon”, exceto observações so- macerados”, ao “esquerdismo” dos agi- Terrível injustiça com certeza, a de também encontrou ressonância insis-
bre os “resultados espetaculares do re- tadores do PS. não ser “creditado” por uma escolha tente no coração do aparelho do Esta-
gime alimentar” de Martin Schulz, en- Na época, os socialistas identifica- estratégica efetuada sem debate. E no do. A descrição gelada que Moscovici
tão presidente do Parlamento Europeu, vam seu inimigo em outro lugar, não sentido contrário dos compromissos apresenta da administração que ele di-
ou o detalhe de suas sensações olfativas em suas fileiras. À sua esquerda, para eleitorais feitos ao país. rigiu permite compreender isso. Deta-
quando, em uma floresta, sentiu “os sermos mais precisos. Assim, Caze- Em seu discurso de Bourget (22 jan. lhando o poder de Bercy (o Ministério
perfumes da terra molhada que são co- neuve nos conta que, onze dias antes 2012), Hollande anunciou: “No plano da Economia e das Finanças), seus
mo promessas para os jovens brotos da do primeiro turno das eleições presi- europeu, se os franceses me derem “160 mil funcionários, mais de cinco
próxima primavera”. Nenhum rastro denciais de 2017, “François Hollande mandato, minha primeira viagem será vezes mais que os efetivos da Comissão
em seu testemunho de uma esperança se mostrava preocupado com o au- para encontrar a chanceler da Alema- Europeia, ou o equivalente a uma cida-
(além da botânica), de uma grande am- mento nas pesquisas de Jean-Luc Mé- nha e dizer a ela que devemos juntos de como Nîmes”, o ex-ministro revela
bição, nem, falando francamente, de lenchon”. “Não tive nenhuma dificul- mudar a orientação da Europa para o logo (em um estilo certamente aperfei-
um projeto qualquer. Cazeneuve gover- dade em conceber que era preciso crescimento e o lançamento de gran- çoável): “Esta administração é a mais
na, é tudo. Ele preside reuniões, inaugu- combatê-lo”, opinou então seu primei- des obras”. Balanço: nada. Em livro, convencida de que a França tem mais a
ra locais, discursa. E quando nada vai ro-ministro, o qual poderíamos ima- seu antigo conselheiro Aquilino Mo- ganhar com a integração europeia”.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 21

mais convencidos da vitória quando


diante deles se encontram socialistas
“ARMADO COM UM LÁPIS E UMA BORRACHA”
muito suaves...
Em suas memórias, o ex-presidente François Hollande, fraco ou impotente
diante dos grandes projetos europeus, conta como, quando foi necessário DISPENSADOS POR QUEM SERVIRAM
realizar a redivisão das regiões francesas, ele decidiu com majestade... Hollande intitulou suas memórias
As lições do poder. Podemos tirar ou- O olhar da cidadania
“Procedo às consultas indispensáveis, associo o primeiro-ministro e os principais tras lições além das suas.8 Em sua his-
ministros nesse exercício. Mas, no fim das contas, devo ser eu a dar a última pa- tória, os socialistas raramente acata-
lavra. Abro o mapa da França sobre a grande mesa de meu escritório e, armado ram tanto as exigências dos industriais
com um lápis e uma borracha, depois de ter escutado as opiniões mais divergen- e das finanças do que no quinquênio
tes, proponho ao Parlamento uma nova divisão administrativa da nação. A Breta- passado. Eles acumularam ruinosos
nha não queria se fundir com os Pays de la Loire; o Languedoc-Roussillon se
recusava a se juntar com Midi-Pyrénées; a Alsácia queria ficar sozinha; a Picardia
preferia se juntar com o Nord-Pas-de-Calais. Levei em consideração alguns pe-
abatimentos fiscais em proveito dos
empresários (“pacto de responsabili- Na luta
didos. Deixei outros de lado. A oposição fustigou ‘a arbitrariedade’, a ‘lógica obs- dade”), com uma reforma trabalhista
cura’ de algumas fusões, a restrição das responsabilidades do departamento e o que acabaria com os direitos dos assa-
questionamento da comuna. Mas muito rapidamente o debate terminou por si só.
[...] Foi assim que a maior reforma territorial desde as leis de descentralização de
lariados. Nenhuma dessas duas medi-
das essenciais figurava no programa pela
1982 foi decidida e executada.” do candidato eleito. Apesar desses ajoe-
lhamentos, as classes superiores, que o
François Hollande, Les Leçons du pouvoir [As lições do poder], Stock, 2018. PS esperava seduzir dessa maneira, o
deixaram de lado e se alinharam com
Macron, que por sua vez não dissimula
construção
seu jogo nem a clientela a que serve.
Tal convicção é acompanhada de çado por Mélenchon, Hollande deci- Sentimos que, em algumas circunstân-
algumas outras, ao menos tão proble-
máticas quanto para um eventual go-
diu “esquerdificar” sua atitude. Para
dar consistência à denúncia de seu
cias, tal ingratidão esmaga os dirigen-
tes socialistas. “Não me lembro, depois
de uma
verno realmente de esquerda: “A admi- “verdadeiro adversário, a finança”, ele das decisões que, no entanto, foram ex-
nistração das finanças pode parecer ratificou a proposta, feita por um de cepcionalmente favoráveis, de um úni-
arrogante, dura, rígida, até mesmo
hostil aos projetos políticos progressis-
seus conselheiros,7 de uma tarifação
excepcional dos salários superiores a 1
co comunicado, uma única expressão
positiva, sem reservas, por parte do
sociedade
tas. Sua inclinação espontânea a leva milhão de euros por ano. Moscovici Medef ou da CGPME.”9 lamenta Mosco-
mais ao conservadorismo. Dessa mes- decifrou a manobra: “François Hol- vici. “Essa hostilidade dos meios eco-
ma forma funcionam as arbitragens
orçamentárias, que têm a tendência de
lande, um bom estrategista, quis evi-
tar que acontecesse em 2012 o que
nômicos continuará constante e sem
reserva durante todo o quinquênio. Es-
mais justa,
visar prioritariamente a todas as políti- aconteceu em 2017. Quer dizer, a parti- ses meios nunca deram sequer uma
cas públicas de finalidade social, am- da de uma esquerda nacionalista, com chance para o novo governo!”
biental ou educativa, e muitas das no-
tas do Tesouro, que vão sempre, em
tônica populista”.
A eleição foi ganha e ele começou a
Ainda que certamente não seja es-
sa a intenção dos autores das obras, solidária e
nome da exigência das reformas estru- colocar em ação uma ideia que pres- eles confirmarão aos olhos de diversos
turais, no sentido do liberalismo eco- sentia que, no entanto, “seria um pou- leitores a necessidade de identificar os
nômico e da desregulamentação”.
Um Estado confiado a tais mãos
co radioativa”. E dessa vez não foi Mit-
tal, mas Bernard Arnault que se ergueu
verdadeiros adversários de uma políti-
ca de esquerda. Não para convencê- sustentável.
não é inclinado, podemos conceber, a contra. O homem mais rico da França -los, mas para vencê-los.
impor as escolhas do sufrágio univer- repreendeu o novo ministro da Econo-
sal aos grandes industriais estrangei- mia. “O dono da LVMH”, conta Mosco- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
ros. Inclusive, será que ele teria os vici, “me disse claramente: ‘Se vocês Diplomatique.
meios para isso? O relato no qual Hol- taxarem em 75% todos os salários de
lande se exonera de não ter mantido mais de 1 milhão de euros, eu desloco
1 Ler “Quand la gauche de gouvernement raconte
sua promessa eleitoral de reabrir as si- todos os meus executivos. Por que, se son histoire” [Quando a esquerda de governo con- Quartas, às 17h,
derúrgicas da Lorena fechadas pela eu quero atrair pessoas qualificadas ta sua história], Le Monde Diplomatique, abr. 2007. Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
ArcelorMittal permite que se tenham para a França, não posso remunerá-los 2 Segundo Jérôme Fourquet, Hamon teve apenas
16% dos eleitores de Hollande do primeiro turno Ribeirão Preto: 107,9 FM)
dúvidas: “Acho necessário estabelecer corretamente com os seus 75%. Todo de 2012; Macron teve 48%; Mélenchon, 26%
com ele [Lakshmi Mittal, presidente mundo vai embora. Então é absoluta- (“Sur la gauche radicale: le vote Mélenchon” [So-
bre a esquerda radical: o voto Mélenchon], Com-
da empresa] uma relação de firmeza. mente necessário que essa medida
mentaire, Paris, outono 2017).
Quartas, à meia-noite
Peço que ele procure um comprador e, não seja aplicada’.” Moscovici comen- 3 Bernard Cazeneuve, Chaque jour compte. Cent TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
em caso de fracasso, dou a entender ta: “Renunciar a mando de Bernard cinquante jours sous tension à Matignon [Cada
dia conta. Cento e cinquenta dias sob tensão em Vivo Fibra e 186 da Vivo.
que o Estado está disposto a naciona- Arnault? Inimaginável! Foi uma das
Matignon], Stock, Paris, 2017.
lizar as atividades da siderúrgica de medidas – havia poucas – de impacto 4 François Hollande, Les Leçons du pouvoir [As li-
Florange, obrigando assim Mittal a se na campanha e sem dúvida necessária ções do poder], Stock, 2018.
separar dela. Com voz suave, Lakshmi para... ganhar a eleição”. Inimaginá- 5 Pierre Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent
les monstres. Choses vues au cœur du pouvoir
Mittal responde que deveríamos, nesse vel? Não completamente, já que o ex- [Neste claro-escuro surgem os monstros. Coisas
caso, adquirir também o conjunto de -ministro acrescenta logo em seguida: vistas no coração do poder], Plon, Paris, 2018.
instalações francesas do grupo, nas “Tínhamos pressa em enterrar esse 6 Aquilino Morelle, L’Abdication [A abdicação],
Grasset, Paris, 2017. observatorio3setor
quais estão empregados cerca de 20 mil vínculo eleitoralista. Basta dizer que 7 Aquilino Morelle, que confirma inclusive em sua
trabalhadores. Depois, ele se retiraria não ficamos bravos com o fato de que o obra que ela foi inspirada por um artigo do Le Mon-
do país.” A suavidade ganhou da “fir- Conselho Constitucional o censurou”. de Diplomatique sobre o teto das fortunas.
meza”: Florange não foi nacionalizada. A Comissão Europeia, a Alemanha, o
8 Cf. Quand la gauche essayait. Les leçons du pou- observatorio3setor
voir (1924, 1936, 1944, 1981) [Quando a esquer-
O episódio da taxa a 75% para os al- Ministério das Finanças, o Conselho da tentava. As lições do poder (1924, 1936, 1944,
tos salários é ainda mais esclarecedor. Constitucional: os interesses do capi- 1981)], Agone, Marseille, 2018 (1. ed.: 2000).
9 Duas organizações patronais, o Movimento das www. observatorio3setor.org.br
No início de 2012, enquanto sua cam- tal não parecem nunca sofrer com a Empresas da França e a Confederação Geral das
panha patinava e ele temia ser alcan- falta de advogados poderosos, ainda Pequenas e Médias Empresas.
22 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

AUTODISSOLUÇÃO DO ETA, SURDEZ DO GOVERNO ESPANHOL

No País Basco, a luta pela paz


Após meio século de luta armada marcado por numerosos atentados e diversas tentativas de resolução pacífica do conflito,
no início de maio a organização basca ETA anunciou sua dissolução. O governo conservador espanhol aposta em uma derrota
total dos separatistas, mas sua recusa de qualquer gesto conciliatório pode impedir que as feridas cicatrizem
POR LAURENT PERPIGNA IBAN*

© Daniel Kondo
oi um momento solene. Em 4 de zação socialista revolucionária basca política no Parlamento Basco da Espa- Mariano Rajoy, e seu Partido Popular

F maio de 2018, personalidades do


mundo inteiro reuniram-se na
Villa Arnaga, em Cambo-les-
-Bains, França, para uma conferência
internacional dedicada a promover a
de libertação nacional” havia reconhe-
cido sua “responsabilidade direta” no
“sofrimento excessivo” e os “danos irre-
paráveis” causados durante o conflito.
“Creio que essa afirmação surpreendeu
nha. Ao mesmo tempo, várias organi-
zações pacifistas, como o Centro Henri
Dunant para o Diálogo Humanitário
(Suíça) e a Fundação Berghof (Alema-
nha), fizeram o papel de intermediário
(PP) não pretendiam negociar nada: no
momento em que o ETA parecia mais
enfraquecido do que nunca, a Espanha
concentrou seus esforços na repressão,
proclamando a “vitória sobre o terro-
paz no País Basco.1 Os participantes muita gente, pois vai além do esperado. entre os protagonistas do conflito. rismo”. A delegação basca deixou a No-
foram recebidos nesse cenário de car- Sobre a questão das vítimas e seus fa- Em 17 de outubro de 2011, seis per- ruega e voltou à clandestinidade.
tão-postal por Jean-René Etchegaray, miliares, o reconhecimento de respon- sonalidades renomadas se reuniram Apesar de tudo, a Comissão Inter-
presidente (pela União dos Democra- sabilidade e as desculpas foram um em San Sebastián para dissecar meto- nacional de Verificação (CIV) do ces-
tas e Independentes, UDI) da comuni- passo indispensável”, explica Iñaki dicamente os fracassos anteriores, a sar-fogo no País Basco, fundada em se-
dade de aglomeração do País Basco, e Egaña, historiador basco.3 fim de propor um novo cenário. Essa tembro de 2011 por iniciativa de Brian
pelo advogado sul-africano Brian Cur- conferência de Aiete (nome de um an- Currin, anunciou, na primavera de
rin.2 Gerry Adams, ex-líder do partido MÚLTIPLOS MEDIADORES tigo palácio do ditador espanhol Fran- 2012, a firme vontade de o ETA se de-
nacionalista irlandês Sinn Féin, estava “O caminho da paz é longo”, disse cisco Franco) reuniu o ex-secretário- sarmar. Ranger de dentes por parte do
ao lado de Jonathan Powell, chefe de Gerry Adams na Villa Arnaga. Por qua- -geral da ONU e Prêmio Nobel da Paz governo espanhol, que em maio de
gabinete do primeiro-ministro britâ- se trinta anos, diversas tentativas de Kofi Annan, Gerry Adams, Jonathan 2012 declarou, por meio de seu minis-
nico, Tony Blair, durante as negocia- conciliação fracassaram: negociações Powell, os ex-primeiros-ministros Ber- tro do Interior, Jorge Fernández Díaz,
ções com o Exército Republicano Ir- bilaterais entre emissários do governo tie Ahern (Irlanda) e Gro Harlem “não precisar de verificadores interna-
landês (IRA) no final da década de de Felipe González e membros do ETA Brundtland (Noruega), além do fran- cionais”. A luta contra o ETA provou
1990, e de Michel Camdessus, ex-dire- em Argel, em 1989; Acordos de Lizarra- cês Pierre Joxe. Eles apresentaram uma ser um precioso instrumento para
tor-geral do FMI. Todos vieram reno- -Garazi em 1998, envolvendo numero- lista de cinco recomendações para unir o país por trás de suas institui-
var seu apoio ao processo de abando- sos sindicatos, partidos e associações “conduzir um processo de paz” e ofere- ções. Do lado francês, a posse de Ma-
no da luta armada iniciado em outubro de ambos os lados da fronteira; e, por ceram sua mediação. A primeira reco- nuel Valls no Ministério do Interior,
de 2011 no Palácio de Aiete, em San Se- fim, as negociações iniciadas em 2005 mendação, negociada previamente, em 2012, e, em 2014, sua nomeação co-
bastián. Eles avaliam o avanço do Eu- entre o ETA e o governo de José Luis convidava o ETA “a declarar publica- mo primeiro-ministro confortaram a
skadi Ta Askatasuna (ETA – “País Bas- Rodríguez Zapatero (ver cronologia). mente a suspensão definitiva de qual- Espanha em sua intransigência.
co e Liberdade”, em basco), que Embora o contexto de cada um desses quer ação armada e a buscar o diálogo Diante da recusa, por parte de am-
acabava de anunciar sua dissolução fracassos seja diferente, em todos eles com os governos da Espanha e da bos os Estados, em organizar ou facili-
final pela voz do esquivo e histórico o ETA abrigou-se no imobilismo das França”. Três dias depois, o ETA anun- tar essa iniciativa, atores da sociedade
militante Josu Urrutikoetxea. autoridades espanholas para justificar ciou o fim de suas ações armadas. civil tomaram as rédeas na França.
A decisão foi tomada após um longo a retomada dos atentados. No maior sigilo, uma delegação da Uma cena de comédia se passou em 16
debate interno. Dos 1.077 militantes Em um contexto internacional de organização foi para Oslo. Lá, aguar- de dezembro de 2016, em Louhossoa,
que participaram da consulta, 997 vo- abandono da luta armada, particular- dou por dezoito meses um diálogo com França. Após uma vasta operação po-
taram a favor da dissolução: “O ETA de- mente na Irlanda do Norte, a esquerda os emissários espanhóis. O Estado no- licial franco-espanhola, o ministro do
seja encerrar um ciclo no conflito entre abertzale (patriótica) vem empreen- rueguês, que teve papel crucial no pro- Interior, Bruno Le Roux, falou em um
o País Basco e os Estados, caracterizado dendo uma profunda reflexão estraté- cesso, entendeu que o novo governo comunicado sobre “um novo golpe
pelo uso de violência política [...]. O ETA gica desde os anos 1980. Ao envolver-se espanhol, formado depois das eleições duro contra o ETA”. Cinco pessoas fo-
nasceu do povo e agora se dissolve ne- plenamente no jogo democrático e re- legislativas antecipadas de 20 de no- ram presas: um viticultor, um jorna-
le”, diz seu último comunicado, do dia 3 cusar a violência, o Euskal Herria Bildu vembro de 2011, não seguiria adiante. lista, um presidente da Câmara de
de maio de 2018. Dias antes, a “organi- (EH Bildu) tornou-se a segunda força O novo chefe do governo conservador, Agricultura, um cinegrafista e um ati-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23

vista ambiental – todos eram, na ver- delitos continuarão a ser julgados; e as


dade, “pacificadores” que tinham vin- sentenças, executadas”, declarou o
do colaborar para a neutralização e chefe do governo espanhol durante a UM INTERMINÁVEL ADEUS ÀS ARMAS
entrega de parte do estoque de armas reunião de Cambo-les-Bains.
do ETA. O presidente de honra da Liga Na Villa Arnaga, os participantes Julho de 1959. Sob o regime ditatorial Julho de 1997. O sequestro e assassi-
do general Francisco Franco, estudantes nato de Miguel Ángel Blanco, jovem
dos Direitos Humanos, Michel Tubia- da reunião insistiram no destino das
inspirados pelos movimentos de liberta- conselheiro municipal do Partido Popu-
na – que devia estar com eles –, de- dezenas de pessoas ainda foragidas e ção revolucionários fundam o Euskadi lar, provoca uma onda de indignação.
nunciou “uma grande farsa”: “Clara- dos 279 presos sujeitos a uma política Ta Askatasuna (ETA).
mente, nem as autoridades francesas penitenciária de exceção: “A dispersão Setembro de 1998. Acordos de
nem as espanholas querem que as coi- e o afastamento complicam as visitas. Junho de 1968. O ETA faz sua primeira Lizarra-Garazi. O ETA decreta cessar-fo-
sas apareçam como são”. É uma maneira de cortar os laços dos vítima, um guarda civil assassinado perto go total e ilimitado, mas o processo vai
No dia seguinte, milhares de pes- prisioneiros, o que viola o direito ao de San Sebastián. pelos ares em novembro de 1999.
soas – incluindo centenas de eleitos de respeito pela vida privada e familiar”,
todos os contornos – foram às ruas em declara Maritxu Paulus-Basurco. A ad- Dezembro de 1973. O ETA ataca pela 30 de dezembro de 2006. Atentado
Bayonne. O governo francês estava na vogada defende há anos prisioneiros primeira vez em Madri e mata o almirante de Madri marca o fracasso das últimas
mira dos críticos. “O que fizemos foi gravemente doentes, que, segundo ela, Carrero Blanco, sucessor de Franco. negociações com o governo de José
Luis Rodríguez Zapatero.
tão legítimo que esta situação absurda “dificilmente serão libertados”.
Novembro de 1975. Morte de Franco,
virou um problema para o Estado fran- Com 24 anos, Unaí Arkauz nunca democratização da Espanha. Os prisio- 17-20 de outubro de 2011. Três dias
cês: uma organização armada queria viu o pai a não ser atrás das grades: “O neiros do ETA são anistiados, mas a após a conferência internacional pela
se desarmar e dois Estados a estavam custo humano e financeiro é enorme organização continua com os atentados. paz em Aiete, o ETA anuncia o fim da
impedindo de fazer isso”, comentou para minha família. Sem falar dos luta armada e pede o diálogo com a
um dos cinco militantes, o altermun- obstáculos encontrados, como quan- Março de 1980. Os nacionalistas França e a Espanha.
dialista basco Jean-Noël “Txetx” Et- do soubemos, depois de percorrer mil moderados vencem as primeiras elei-
cheverry. Mas a neutralização do arse- quilômetros, que meu pai havia sido ções para o Parlamento Basco, criadas 8 de abril de 2017. Diante da
nal era essencial, em um contexto de transferido para o outro lado da Espa- pelo novo estatuto de autonomia. imobilidade dos Estados francês e
ameaça jihadista: havia toneladas de nha”. O Movimento pela Anistia e con- espanhol, atores da sociedade civil
armas e munições ainda escondidas tra a Repressão (Amnistia Ta Askata- Dezembro 1983. Criação dos Grupos organizam o desarmamento do ETA.
Antiterroristas de Libertação (GAL).
no sudoeste da França. suna, ATA), criado em 2014, nasceu
20 de abril de 2018. Em comunicado,
nesse contexto. Embora minoritário, o Janeiro de 1989. O ETA anuncia sua o ETA reconhece sua responsabilidade
UMA ATITUDE REVANCHISTA ATA considera difícil “construir a paz primeira trégua e negocia em Argel com direta e pede perdão.
Foi o início de uma discórdia entre enquanto prisioneiros de guerra mor- emissários do governo de Felipe Gonzá-
Paris e Madri, que estourou discreta- rem na prisão”, como explica um de lez, mas o diálogo emperra e o ETA 3 de maio de 2018. Dissolução da
mente na cúpula dos dois países em seus porta-vozes, Sendoa Jurado. “Se o rompe a trégua. organização.
Málaga, no dia 20 de fevereiro de 2017. problema de fundo da Espanha não for
“O governo francês passou a mensa- resolvido, essa situação se repetirá. O
gem de que, a partir daquela data, a exemplo catalão é revelador: as pes-
França não colocaria mais obstáculos soas ainda são presas por delito de opi- traz grande risco de complicar o tra- ção da juventude e da população basca
à entrega de armas pelo ETA”, resume nião. Diante de qualquer resistência, balho necessário de verdade e recon- é bastante excepcional na Europa. Ela
Iñaki Egaña. A credibilidade do desar- violenta ou pacífica, o Estado espa- ciliação. O ETA matou 837 pessoas, pode constituir, amanhã, uma força de
mamento unilateral do ETA foi então nhol responde com repressão.” Atual- sendo 358 delas em circunstâncias ruptura municipalista, solidária e fe-
assegurada por diversas instituições, mente considerado o movimento mais ainda não explicadas, segundo o Covi- minista de primeiro nível”.
entre elas o grupo de resolução de radical, o ATA é muito crítico a respei- te. São famílias à espera de esclareci- “Construir a paz é muito mais difí-
conflitos do Vaticano, culminando, to dos partidos abertzale, que teriam mento. Os separatistas também têm cil do que fazer a guerra”, disse Gerry
em 8 de abril de 2017, na entrega de 3,5 “abandonado a reivindicação históri- muitas perguntas que continuam sem Adams na Villa Arnaga. E o caminho
toneladas de armas às autoridades ca da anistia dos prisioneiros em favor resposta, em particular sobre os 4.113 será ainda mais longo, considerando
francesas, no final de um dia histórico da reaproximação”. casos de tortura registrados desde que persistem muitas das razões que
e singular: civis vieram realizar o de- Embora fale pouco sobre o assun- 1960,4 bem como sobre os assassinatos levaram parte do povo basco a se en-
sarmamento do ETA. Sem querer, Ma- to, o Estado francês relaxou ligeira- não resolvidos durante o período da volver na luta pelo direito à autodeter-
riano Rajoy deu à organização uma mente sua política, transferindo uma repressão praticada pelos Grupos An- minação. Ao adotar uma atitude re-
saída simbólica diretamente inscrita dúzia de prisioneiros para instituições titerroristas de Libertação (GAL). De vanchista, o Estado espanhol, que por
em seu ideal revolucionário original: o nas quais podem ficar mais perto da 1983 a 1987, os comandos paramilita- muito tempo utilizou a rejeição ao ter-
ETA devolveu ao povo as armas que ti- família. A senadora Frédérique Espag- res do governo espanhol eliminaram rorismo para despolitizar o conflito e
nha tomado para defendê-lo. nac insiste: “O trabalho de negociação dezenas de militantes bascos, espe- já enfrenta as reivindicações de auto-
Desde então, o fim da organização quanto à aproximação começou sob o cialmente em solo francês. Eles cessa- nomia da Catalunha, corre o risco de
se transformou em uma questão polí- governo socialista, dois anos antes da ram suas atividades em troca da cola- se ver diante de um segundo processo
tica. As feridas abertas da sociedade saída de Christiane Taubira [ministra boração antiterrorista entre os dois soberanista.
espanhola polarizada complicam a re- da Justiça entre 2012 e 2016], e estou países criada por Charles Pasqua, en-
conciliação, especialmente quando contente que o atual governo tenha tão ministro do Interior da França. O *Laurent Perpigna Iban é jornalista.
associações como o Coletivo de Víti- dado continuidade a ele”. Já Rajoy se caso mais recente – do militante do
mas do Terrorismo no País Basco (Co- mantém inflexível, declarando no iní- ETA Jon Anza, cujo corpo foi encontra-
vite) e a Associação Francesa de Víti- cio de maio: “Os terroristas não conse- do em 2010 no necrotério de um hospi-
mas do Terrorismo (AFVT) exercem guiram nada matando nem parando tal de Toulouse, depois de ficar lá por
pressão contínua sobre o governo es- de matar há alguns anos, e não conse- dez meses, o que tornava impossível 1 Organizada pelo Grupo Internacional de Contato
panhol. Uma grande parte da socieda- guirão nada anunciando sua dissolu- identificar a causa da morte – ainda es- (GIC), pelo Fórum Social Permanente e pela plata-
forma Bake Bidea (Caminho da Paz).
de espanhola acusa o ETA de reescre- ção. [...] Não haverá impunidade”. tá na memória de todo mundo. 2 Iniciador das comissões Verdade e Reconciliação
ver a história e encenar sua retirada. “Qualquer lado que pretenda al- Figura histórica da esquerda abert- em seu país. Ler Brian Currin, “Choisir la paix au
Para Rajoy, foi a pressão da polícia, e cançar a vitória total corre o risco de zale, Arnaldo Otegi adverte: “O conflito Pays basque” [Escolhendo a paz no País Basco],
Le Monde Diplomatique, jun. 2011.
não o processo de paz, que precipitou ver o conflito reaparecer, como temos político basco é anterior à criação do 3 Cf. Iñaki Egaña, Le Désarmement. La voie basque
o fim da organização: “Hoje, os prota- testemunhado em muitas outras si- ETA e não vai se resolver com a dissolu- [Desarmamento. O caminho basco], Mediabask,
gonistas não devem ser os assassinos, tuações”, diz a declaração final de ção deste. Nosso país tem direito à paz Gara e Txalaparta, Urrugne, San Sebastián e Tafal-
la, 2018.
mas as vítimas. As investigações sobre Cambo-les-Bains. Na ausência de jus- e à liberdade”. Etcheverry concorda: “A 4 Segundo o Departamento de Direitos Humanos e
os crimes do ETA continuarão; seus tiça transicional, a posição espanhola capacidade de mobilização e organiza- Convivência do governo basco.
24 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

A UCRÂNIA DISTANTE DO FERVOR PÓS-REVOLUCIONÁRIO

A reforma policial de Kiev


Apresentada como uma resposta às aspirações da revolta de 2014, a reforma da polícia ucraniana focou a corrupção
dos agentes de campo, deixando intacta a instrumentalização do Estado por clãs políticos. Para compensar, os financiadores
internacionais exigem a criação de órgãos judiciais ad hoc, uma solução que ameaça a soberania do país
POR SÉBASTIEN GOBERT*

m 31 de outubro de 2017, Olek- sua determinação de levá-la a termo.1 tinham prestado juramento, o que va- cia selfie refletem um esfriamento geral

E sandr Avakov, de 29 anos, foi


preso em Kiev por investigado-
res do Departamento de Com-
bate à Corrupção da Ucrânia (Nabu).
Ele era suspeito de cumplicidade em
Para seus detratores, como Denys
Kobzin, diretor do Instituto de Pesqui-
sa Social de Kharkiv, não é nada disso:
“A reforma, como a esperávamos em
2014, ainda não começou”. Ele denun-
leria para o novo corpo o apelido mi-
diático de “polícia selfie”. “Havia um
sentimento de euforia”, lembra Kob-
zin. “Mas ele não foi usado para mudar
as coisas com profundidade.”
sobre o fervor reformista do período
pós-revolução. Enquanto o regime de
Poroshenko é acusado de demonstrar
crescente autoritarismo, a maioria dos
reformistas radicais, ucranianos e es-
um caso de fraude relacionado à entre- cia um fracasso escondido por trás de Na origem do crescente desencan- trangeiros, foi apagada do cenário polí-
ga de mochilas às Forças Armadas, en- uma série de “elementos decorativos”, to da população, um clima de confu- tico, desencorajada pelos obstáculos
volvendo uma quantia de cerca de 450 como a nova “polícia de patrulha”, são: os antigos membros da DAI per- que enfrentava. Zguladze-Glucksmann
mil euros. A operação foi inédita: o jo- unidades encarregadas da manuten- maneceram por muito tempo ativos renunciou em maio de 2016, seguida em
vem é simplesmente filho único de Ar- ção da ordem em vias públicas, a pé ou para ajudar os 12 mil novos recrutas, novembro por sua compatriota Khatia
sen Avakov, o poderoso ministro do In- em veículos motorizados. perpetuando um sistema que se acre- Dekanoidze. Esta última, após um ano
terior. Nos minutos que se seguiram à ditava abolido. Para muitos, os poli- à frente da polícia nacional, explicou
operação, unidades da polícia e da ciais de patrulha pareceram se diluir sua decisão pela “ingerência” do mi-
Guarda Nacional foram enviadas para na massa dos 128 mil funcionários da nistério, do Parlamento e da presidên-
impedir a busca nos escritórios e difi-
A multidão se engajou polícia nacional. Concentrada nos cia em seu trabalho.
cultar o trabalho dos investigadores do em abraços e fotos com agentes diretamente em contato com a A ex-chefe da polícia continua con-
Nabu – uma organização nascida em os jovens que tinham população, essa reforma quase não te- vencida de que apenas mudanças ra-
abril de 2015 de uma campanha anti- prestado juramento, ve efeito sobre a corrupção das elites. dicais podem transformar a Ucrânia:
corrupção liderada por ONGs e pelos Pelo contrário, permitiu que o governo “Temos de nos livrar da equipe e do
ocidentais, e considerada a instituição
o que valeria para o novo exibisse certo voluntarismo sem real- modo de funcionamento do sistema
mais independente do setor. Os impe- corpo o apelido de mente tocar no sistema preexistente. antigo, na linha do que foi feito para a
dimentos a essa investigação demons- “polícia selfie” Em um contexto de crise econômica, ‘polícia de patrulha’”. E isso tanto em
traram abertamente que, quatro anos guerra não tradicional no leste do país outros departamentos das forças da lei
após a derrubada do presidente Viktor e alta consecutiva na circulação de ar- como no escritório do procurador-ge-
Yanukovich, “o poder político ainda mas de fogo, a criminalidade aumen- ral ou nos tribunais. “Precisamos per-
usa nossas forças da ordem como um CLIMA DE CONFUSÃO tou cerca de 15% ao ano entre 2014 e mitir o surgimento de uma nova gera-
braço armado para defender seus inte- Foi sob sol forte, na Praça Santa So- 2017.2 Mas os “novos policiais” acaba- ção, com uma nova mentalidade,
resses”, lamenta o deputado Mustafa fia, em Kiev, em 4 de julho de 2015, que ram tendo de dedicar boa parte de seu como fizemos na Geórgia.”
Nayyem, instigador das primeiras ma- as autoridades revelaram a “nova cara tempo “para lidar com infrações me- A partir do verão de 2015, comis-
nifestações, em novembro de 2013. da polícia”, de acordo com a expressão nores, reguladas por um velho código sões mistas de “recertificação” com-
Alguns dias depois, um tribunal li- usada em seu comunicado. Centenas soviético de 1984, em vez de se ater a postas por representantes da socieda-
berou Avakov sem fiança. Em seguida, de jovens agentes, 30% deles mulhe- delitos mais importantes”, explica Ye- de civil e membros da hierarquia
em 7 de novembro, seu pai sobreviveu res, foram empossados, alinhados vhen Krapyvin, especialista da ONG avaliaram a capacidade dos oficiais de
sem se abalar a um voto de descon- junto a seus Toyota Prius novinhos em Pacote de Reabilitação das Reformas. permanecer na nova força policial. Fo-
fiança na Rada, o Parlamento ucrania- folha. Um grupo de dignitários ucra- A insatisfação com a polícia selfie ram 68.135 funcionários a passar por
no. Criticado por seu fracasso em re- nianos e internacionais demonstrava agravou-se ao longo do tempo entre os esse procedimento, destinado a testar
formar a polícia nacional – uma das seu entusiasmo, sob o olhar da vice- cidadãos, mas também entre os pró- sua lealdade e seu conhecimento da
prioridades do programa pós-revolu- -ministra do Interior, Ekaterina Zgula- prios agentes, de modo que 20% dos lei, e a estabelecer seus antecedentes
cionário –, ele assegurou não ter “ne- dze-Glucksmann, uma reformadora postos da polícia de patrulha atual- em matéria de corrupção ou violência
nhuma razão para deixar o cargo”. da Geórgia apresentada como alguém mente estão vagos. Muitos se queixam – aí incluída a análise dos vestígios que
Desde sua nomeação, em fevereiro de que conseguiu depurar e modernizar de excesso de trabalho, bem como de eles pudessem ter deixado em redes
2014, esse empresário com reputação uma polícia notoriamente corrupta uma fraca coesão com os outros de- sociais. No final, 5.257 foram demiti-
de cáustico, há muito tempo ativo na em seu país. Como seu ex-presidente partamentos das forças da ordem. dos, ou seja, 7,7% deles – um resultado
política, se impôs como a segunda fi- Mikheil Saakashvili, muitos georgia- “Eles não nos deram os instrumentos não desprezível em comparação com
gura mais importante do Estado, de- nos se envolveram na política ucrania- legislativos para sermos eficazes”, outras experiências históricas, mas
pois do presidente Petro Poroshenko, na a partir de 2014. acusa Andriy Kobylinsky. Como mui- que pouco convenceu na Ucrânia. Pa-
ele próprio um bilionário que chegou Jovens recrutas deveriam substi- tos de seus colegas, esse ex-policial de ra Kobylinsky, “foi um dos sinais cla-
ao poder logo após as manifestações. tuir os oficiais da altamente contro- Kiev desejara acreditar na boa vontade ros de que Arsen Avakov escolhera se
Evasivo a respeito dos policiais que versa Administração de Inspeção de dos pilotos da reforma, em 2015, mas apoiar na velha guarda em vez de tra-
voaram para o resgate de seu filho, Estradas (DAI) e soar a sentença de ele pediu demissão em outubro de zer sangue novo”, o que poderia ter
Avakov gosta de atribuir a si mesmo a morte do antigo sistema, desacredita- 2016. A constante desvalorização do ameaçado seu controle sobre o Minis-
imagem de um reformador esclareci- do por décadas de má gestão, corrup- salário em relação à alta inflação o faz tério do Interior.
do. “Hoje, conseguimos realizar de ção e violência. Naquele dia, a multi- temer que seus ex-colegas “retomem Nem Dekanoidze nem Zguladze-
25% a 30% da reforma da polícia”, ele dão reunida na praça havia se engajado rapidamente” práticas passadas. -Glucksmann desejam comentar os
disse em 11 de novembro, reiterando em abraços e fotos com os jovens que As desilusões suscitadas pela polí- méritos de sua abordagem de reforma
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25

ou assegurar seu prosseguimento. No


entanto, na Geórgia, sua política tem
sido criticada: ela foi reprovada por ter
fortalecido os ministérios do Interior e
da Justiça a ponto de torná-los instru-
mentos nas mãos de Saakashvili, per-
mitindo-lhe lutar eficazmente contra
adversários e manifestantes. Na Ucrâ-
nia, o “grupo dos georgianos”, forte-
mente apoiado pela embaixada dos
Estados Unidos, tem, contudo, lutado
para impor seu projeto de lei à polícia
nacional.
Se a tentação georgiana da Ucrâ-
nia pós-revolucionária parece hoje se
resumir às aventuras rocambolescas
de Saakashvili, expulso para a Polônia
em fevereiro passado e hoje instalado
na Holanda, os ocidentais, por sua
vez, persistem em seu apoio à trans-

© Reuters / Valentyn Ogirenko


formação do país. Sua ajuda financei-
ra, em associação com o FMI, chega a
mais de 35 bilhões de euros; a isso se
acrescenta uma infinidade de projetos
de cooperação.
Longe da pressa georgiana, a Mis-
são de Aconselhamento da União Eu-
ropeia para a Reforma do Setor de Se-
gurança Civil (Euam) quer acreditar Policiais ucranianos tiram selfie diante de estádio em Kiev, palco da final da Champions League entre Real Madrid e Liverpool
nos efeitos de mudanças a longo pra-
zo. “A criação de uma nova polícia de
patrulha não foi apenas uma estraté- sistência à reforma da polícia ocorrem desacelerar a perseguição aos aliados Em ano de eleição presidencial,
gia de comunicação: ela era necessá- há anos, demonstram que, na ausên- de Poroshenko, como o deputado e “Arsen Avakov controla hoje um dos
ria”, explica Udo Moeller, seu diretor cia de uma real vontade política de empresário Ihor Kononenko e o ex- mais poderosos ministérios do Inte-
de operações, observando que o méto- chegar a um resultado, essa situação -chefe da administração tributária Ro- rior desde a independência da Ucrâ-
do adotado “anunciava que haveria de “improviso” pode continuar indefi- man Nasirov, suspenso por corrupção, nia”, constatou o deputado Serhiy Le-
complicações”. Ele prefere evocar ou- nidamente. Por seu lado, o governo in- mas cujo julgamento não sai do lugar. shchenko, eleito de uma lista do bloco
tros “avanços consequentes” e verda- voca a prioridade da luta contra o ini- Poroshenko, mas agora muito crítico
deiros canteiros de obras, que ainda migo externo, bem como a necessidade REDES PARALELAS do presidente. “Ele se impõe como
estão por vir, como a modernização da de não desestabilizar o aparato estatal Em um esforço para garantir segu- uma das figuras essenciais da vertical
ciberpolícia ou o redesenho da polícia com reformas inoportunas. rança jurídica para seus investimen- do poder, aliado, mas também poten-
criminal. Herança da era soviética, a tos, os Estados Unidos e seus aliados cial rival [do presidente].” Porque, pa-
estrutura desta última “coloca proble- colocaram Kiev à prova. “A luta da ra se diferenciar, Avakov engendraria
mas óbvios”, de acordo com ele, “mas Ucrânia contra a corrupção não é me- também, segundo ele, uma “horizon-
está tão profundamente gravada na Poroshenko nos essencial do que o combate à tal do poder”,4 coordenando demons-
mentalidade de nossos colegas ucra- respondeu: “Imaginar agressão russa”, declarou John Sulli- trações de força dos batalhões nacio-
nianos que não podemos esperar mu- que doadores van, então secretário adjunto de Esta- nalistas – como aqueles de pelotões
danças imediatas”. do, durante sua última visita à capital nacionais oriundos do batalhão Azov,
Para fazer as coisas evoluírem, o
estrangeiros formem ucraniana, em 21 de fevereiro, antes de unidade paramilitar de extrema direi-
diretor das operações diz tratar com tribunais ucranianos é defender a criação de um tribunal es- ta ativa na frente de batalha do Don-
“aqueles que estão do outro lado da algo que vai contra a pecial de combate à corrupção – medi- bass – ou violentas provocações de
mesa”. Ele não acredita no cenário Constituição” da que também está sendo apoiada por grupos radicais, como o ataque contra
georgiano da renovação radical dos associações locais. O projeto de lei, a rede de televisão da oposição Inter,
efetivos “em um país tão grande quan- agora em discussão no Parlamento, em setembro de 2016; ou seja, por meio
to a Ucrânia, ainda mais em estado de não garante a independência desse tri- do apoio a redes paralelas às forças da
guerra”. A Euam, por conseguinte, Considerada uma das vitrines da bunal, de acordo com o FMI, que sus- ordem com fins políticos. Grupos que
confia mais nos cursos, nos seminá- luta contra a corrupção, a reforma da pendeu o pagamento da próxima par- podem contar com a passividade, ou
rios, na formação ou ainda em proje- polícia não ataca as bases do sistema cela de ajuda. O papel dos especialistas mesmo com a benevolência, da “polí-
tos-piloto que ela oferece aos repre- oligárquico. O Estado continua a ser internacionais, acredita a instituição cia selfie”.
sentantes ucranianos das forças da palco de um confronto entre clãs polí- financeira, deve ser “fundamental e
ordem, antigos ou novos – mecanis- tico-econômicos que buscam contro- não apenas consultivo”. Poroshenko *Sébastien Gobert é jornalista, cofundador
mos que permitam o surgimento gra- lar as principais instituições, das quais respondeu no início de março, em uma do coletivo Daleko-Blisko.
dual de uma nova cultura policial. se destaca na primeira fila o Ministério entrevista ao Financial Times: “Imagi-
Para o pesquisador Cornelius Frie- Público (Prokuratura). Iniciada em nar que doadores estrangeiros formem
1 Site do Ministério do Interior da Ucrânia, 11 nov.
densdorf, a Euam é apenas um dos 2015, a reforma que visava principal- tribunais ucranianos é algo que vai 2017.
muitos atores internacionais que pro- mente desvinculá-lo do Poder Execu- contra a Constituição, porque só o po- 2 Viktor Betchatniy, “Analyse criminologique du ni-
movem “diferentes prioridades e mo- tivo está longe de se completar. O Na- vo ucraniano pode desempenhar um veau de criminalité en Ukraine” [Análise criminoló-
gica do nível de criminalidade na Ucrânia], État et
delos”. Segundo ele, essa competição é bu, a instituição ad hoc, não cancelou papel decisivo em relação a isso”.3 A Droit, 2017.
uma das fontes da “improvisação ins- o poder do procurador-geral. O atual pressão ocidental certamente não che- 3 “Transcript of interview with Petro Poroshenko”
titucional” ucraniana. Os exemplos da titular do cargo, Yuriy Lutsenko, está gará a desestabilizar um governo ao [Transcrição de entrevista com Petro Poroshenko],
6 mar. 2018. Disponível em: <www.ft.com>.
Moldávia, da Armênia, do Quirguistão sendo criticado pela pressão que exer- qual Washington prometeu entregar 4 Segundo a expressão do editorialista Serhiy
e do Tadjiquistão, onde missões de as- ce sobre adversários políticos, ou por armas em dezembro passado. Lyamets.
26 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

MORADIA

Uma cidade que transforma


migrantes em sem-teto
A crise veio à tona de forma trágica com o incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida. As ocupações
são onipresentes no centro de São Paulo, e talvez a da “torre de vidro” fosse a mais evidente. Com o desabamento,
ficamos sabendo que o prédio estava ocupado havia quinze anos e que nele moravam 450 pessoas. Cerca de 25%
de seus moradores eram migrantes internacionais
POR DIANA THOMAZ*

ina e César1 nunca haviam ouvi- de acolhida da prefeitura, porém estas

T do falar em gente morando em


casa abandonada dos outros.
Eles chegaram a São Paulo após
terem tido parentes assassinados pe-
las forças do presidente Joseph Kabila
não dão conta da demanda e se limi-
tam a seis meses de estadia em média.
Para o padre Paolo Parise, coordena-
dor da Missão Paz, “esse momento é o
mais delicado, quando eles saem das
numa guerra que se arrasta no Congo casas de acolhida e não têm condições
há mais de três décadas e depois de vi- ainda para alugar uma casa, como
verem as consequências de uma crise muitos brasileiros, obedecendo a to-
econômica aguda em Angola, onde dos os parâmetros que são colocados:
perderam um filho em decorrência de três aluguéis, o fiador, tudo isso”. Além
uma doença para a qual não conse- desses entraves, muitos carregam um
guiram tratamento. Eles ouviram di- protocolo de solicitação de refúgio,
zer que São Paulo era uma cidade rica, um documento que lhes garante ple-
de oportunidades, e também que o nos direitos, mas que é frequentemen-
visto para o Brasil era relativamente te recusado por seu aspecto precário
acessível. Juntando suas forças e par- – uma folha A4 impressa com a foto do
cas economias para recomeçar, parti- migrante colada. Por fim, há o precon-
ram. Depararam, porém, com uma ci- ceito de agentes imobiliários e pro-
dade extremamente desigual, em que, prietários que se recusam a alugar pa-
como enfatiza César, “o salário é mui- ra “estrangeiros”, sobretudo negros e
to, muito ruim”, e foram morar em mulheres com crianças.
uma ocupação do Movimento dos Migrantes internacionais e brasi-
Sem-Teto do Centro (MSTC). Hoje, Escombros do incêndio no centro da capital paulista leiros convivem em ocupações no cen-
eles buscam se situar em meio à luta tro de São Paulo desde que essa estra-
por moradia na cidade e questionam ligião, partido político. Todos são bem- recepção” – e se preocupa com rumo- tégia de moradia surgiu, no fim da
sua decisão migratória. -vindos”, esclarece a líder. Eles conse- res de um despejo iminente. década de 1990. À época, já havia mui-
A ocupação foi o terceiro endereço guiram um espaço para morar após A trajetória dessas famílias se repete tos prédios abandonados na região,
do casal. Inicialmente, Tina ficou por algumas semanas sendo introduzidos na de muitos migrantes internacionais pois, a partir dos anos 1970, as classes
alguns meses em um centro de acolhi- ao movimento e suas regras. “Essa casa e refugiados que chegam a São Paulo médias e as elites passaram a migrar
da para mulheres e crianças migrantes ajudou muito, a gente já não tinha para presumindo que na cidade encontra- para outros eixos de expansão da cida-
na Penha, enquanto César se hospedou onde ir”, conta Tina. rão segurança, uma vida melhor, talvez de, inicialmente rumo à Avenida Pau-
em outro centro, no Belém. Após três Kendra, angolana, também foi um futuro para seus filhos. Eles têm en- lista e aos Jardins, deixando muitos
meses, César conseguiu um emprego morar em uma ocupação do centro frentado um desafio que tantos brasi- imóveis ociosos para especulação
de auxiliar de cozinha e Tina de cabe- da cidade, mas que não é organizada leiros trabalhadores de baixa renda co- imobiliária na região. A iniciativa de
leireira em um salão afro no centro da por um movimento de moradia, bas- nhecem bem: conseguir pagar os altos ocupar esses imóveis partiu de movi-
cidade. Somando seus pagamentos, ta pagar para morar lá. “Se tiver um aluguéis cobrados até mesmo nas peri- mentos de moradia dos cortiços, que
passaram a alugar um quarto no Be- quarto, você fala com a recepção e ferias da cidade e garantir o sustento rechaçavam a exploração dos traba-
lém, porém, depois de dois meses, de- eles já te encaminham.” Grávida e com salários baixos ou com a renda in- lhadores pobres nesses locais, onde
sistiram. “Só o salário pode comprar com uma filha de 2 anos, ela não con- certa do trabalho informal. A princípio, pagavam altos preços por espaços pe-
roupa, pode comprar comida, mas, se seguiu vaga em um centro de acolhi- assim como muitos brasileiros, esses quenos e precários. Eles reivindica-
vai pagar a casa, acabou, é só isso”, re- da e passou seus primeiros meses no migrantes receiam participar de algo vam o direito da população de baixa
sume César. Tina então ficou sabendo, quarto de um amigo na ocupação em que pensam ser ilegal e que poderia co- renda de morar dignamente no centro
por uma amiga do salão, de um prédio que vive atualmente. Assim que con- locá-los em confronto com a polícia, e criticavam os poucos programas ha-
próximo a seu trabalho que fazia parte seguiu um emprego como faxineira, porém temem ainda mais a rua e os al- bitacionais que construíam (e ainda
de um tal “movimento” e que cobrava passou a pagar R$ 400 por mês por bergues da prefeitura. A necessidade constroem) conjuntos de baixa quali-
apenas R$ 200 por mês de aluguel. Re- seu próprio quarto no prédio. Dife- empurra brasileiros e migrantes para dade na “periferia da periferia”, locais
ceosos, mas vendo na ocupação a única rentemente das ocupações do MSTC, as ocupações, e os migrantes acabam sem empregos, escolas, hospitais, cre-
© Romerito Pontes

opção, o casal foi participar das reu- nesse edifício a maioria dos morado- entrando em uma batalha pelo direito à ches etc. Luiz Kohara, do Centro Gas-
niões de base do MSTC, liderado por res é migrante, sobretudo de Angola. moradia numa cidade pela qual não sa- par Garcia de Direitos Humanos, ex-
Carmen Silva. “Um dos principais itens Ela não sabe quem é responsável pela bem se vale a pena lutar. plica que nesse momento “começou
do estatuto do movimento é que a gente ocupação – “desde que mudamos, Há cerca de 540 vagas voltadas para toda uma reflexão sobre o direito à ci-
não exclui ninguém: nacionalidade, re- nunca vimos o chefe, só quem tá lá na migrantes internacionais nos centros dade. Por que a população pobre, na
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 27

hora de produzir a cidade, pode e, na o problema, como as recentes remo- dia, de R$ 400 a 500. Por ainda ser um nos de sair de São Paulo e sejam gratos
hora de usufruir, não pode?”. ções forçadas de moradores na região preço acessível, muitas famílias de ao movimento por acolhê-los, se pu-
Migrantes latino-americanos cos- conhecida como Cracolândia, na Luz. baixa renda, inclusive de migrantes, dessem, já teriam ido para um lugar
tumavam ser o grupo mais represen- Enquanto isso, o governo de Michel Te- como Kendra, vão morar nesse tipo de “onde a vida é menos difícil”, confessa
tativo nessas ocupações, mas nos últi- mer (MDB), com sua agenda de cortes, ocupação – e esse era o caso da torre de César, que anda irritado com o trata-
mos quatro anos a presença de interrompeu o programa Minha Casa vidro. Os movimentos de moradia cri- mento racista de colegas do trabalho.
africanos (sobretudo angolanos e con- Minha Vida (MCMV), que foi o princi- ticam os grupos que fazem essas ocu- Premidos pela busca de um teto,
goleses) e de haitianos vem crescendo. pal instrumento de política pública ha- pações por explorarem as famílias nem todos os migrantes de fato se com-
Esse aumento não se deve tanto a um bitacional para as cidades brasileiras sem-teto e, como no caso do desaba- prometem com a luta por moradia e se
incremento migratório à cidade em si nos últimos anos. Mesmo após a tragé- mento, difamarem as ocupações em engajam nas atividades políticas, so-
– migrantes internacionais represen- dia recente, não há indicação de uma geral. É o que lamenta Ivaneti Araújo, bretudo se não vislumbram um futuro
tam cerca de 5% da população de São mudança de postura por parte do po- coordenadora do Movimento de Mo- na cidade. Alguns, mesmo consideran-
Paulo –, mas à precarização das condi- der público. O governador Márcio Fran- radia na Luta por Justiça. “Tem mo- do ficar em São Paulo, são céticos
ções salariais e ao aumento do desem- ça (PSB), por exemplo, em entrevista no mentos em que a gente é colocado tu- quanto à possibilidade de conseguir
prego numa cidade em que os terrenos dia e local do desabamento, concluiu do no mesmo saco. Mas essas pessoas, uma moradia por meio de um progra-
se valorizaram vertiginosamente na que “o que temos que fazer é convencer elas fazem a ocupação, negociam com ma habitacional. “Se a gente não pode
última década. Grande parte desses as pessoas a não morar desse jeito”, co- o proprietário, cobram um valor X, votar, por que vão dar uma casa pra
migrantes chegou a São Paulo nos últi- mo se ele não entendesse que as pes- saem e deixam as famílias.” Mesmo gente?”, questiona Roseline, migrante
mos dois a quatro anos, atraídos pela soas – migrantes, brasileiros – moram sendo uma situação de exploração, a haitiana que mora em outra ocupação.
imagem de um país seguro e emergen- assim por falta de alternativa. lucratividade desse negócio só é possí- Para Carmen, outro fator que torna o
te, sede da Copa e das Olimpíadas. vel pela falta de moradia na cidade. engajamento dos migrantes mais com-
Descobriram, porém, uma cidade ex- plicado é “um problema de cultura,
tremamente desigual, que passa por LUTAS EM MOVIMENTO porque no país deles não aconteciam
uma grave crise habitacional. Grande parte desses Carmen considera a moradia uma esses movimentos sociais”.
migrantes chegou nos condição fundamental para que mi- Kendra conta que boa parte dos vi-
MORADIA, TRAGÉDIA E RESISTÊNCIA últimos anos, atraídos grantes possam reconstruir a própria zinhos migrantes está planejando sair
Recentemente, a realidade dessa vida na cidade. Ela enfatiza que “A ca- do país ou já saiu. É o que pretende
crise veio à tona de forma trágica com
pela imagem de um país sa é que faz ele [o migrante] pertencer, também: “Viemos aqui para o Brasil
o incêndio e desabamento do Edifício seguro e emergente, independentemente da origem. Se ele procurar uma vida melhor, mas nós
Wilton Paes de Almeida, no Largo do sede da Copa e das não tiver pertencimento no local, na não estamos a achar. Temos que sair!”.
Paissandu, na madrugada do dia 1º de Olimpíadas cidade, nunca vai se adaptar”. É uma Seu marido veio de Angola há um ano,
maio. As ocupações são onipresentes constatação que faz com base na pró- e eles querem migrar com as duas fi-
no centro da cidade, e talvez a da “tor- pria experiência como uma baiana lhas para a Europa, onde têm parentes.
re de vidro” fosse a mais evidente, des- que migrou para São Paulo nos anos “Não posso ficar a viver com as crian-
pontando na esquina com a suntuosi- Diante dessa falência de políticas 1990 fugindo de um marido abusivo e ças neste prédio da ocupação, não. Aí
dade deteriorada de um outrora marco públicas, entram em cena os movi- em busca de uma vida digna para si e vem uma cobrança e amanhã vão me
da arquitetura modernista brasileira. mentos de moradia. “A falta do Estado, seus então sete filhos. Depois de morar tirar da ocupação. Vou tentar alugar
Com o desabamento, ficamos sabendo o movimento supre”, resume Carmen. de favor com amigos e em albergues, uma casa fora, e o salário que eu ga-
que o prédio estava ocupado havia Alguns movimentos, como o MSTC, Carmen conseguiu se reerguer na ci- nho, R$ 800 e pouco, não dá.” Diferen-
quinze anos e que nele moravam 450 recolhem uma contribuição mensal dade quando foi morar em uma ocu- temente da maioria dos brasileiros
pessoas. Cerca de 25% de seus mora- de seus membros para reformar os es- pação do Fórum dos Cortiços. “Na sem-teto, esses migrantes têm em seu
dores eram migrantes internacionais, paços e garantir condições seguras de ocupação, além de eu me fortalecer imaginário a possibilidade de migrar
a maioria de Angola. habitabilidade, pagar pelos materiais social, política e financeiramente, pu- para um país do Norte global, pois
Esse era apenas um dos cerca de de limpeza e manutenção, além da as- de dar uma guinada na minha vida. E possuem redes de contatos no exterior
250 imóveis ocupados por famílias sessoria técnica e jurídica para o mo- aí eu comecei a participar efetivamen- e a experiência de cruzar fronteiras, e
sem-teto na cidade de São Paulo, que vimento. Outros movimentos não co- te da vida de São Paulo; participar de não se sentem pertencentes a São Pau-
se somam às inúmeras ocupações de bram contribuição, mas rateiam os várias conferências, dos conselhos, lo ou ao Brasil. Chegaram à cidade
terrenos ociosos nas periferias. Os mo- custos comuns. De qualquer forma, das reuniões políticas, dos planos, das projetando uma vida próspera, mas
radores dessas ocupações fazem parte nessas ocupações o critério central é a operações, de tudo que a cidade tinha. encontraram desigualdade, falta de
do total de 1,2 milhão de famílias vi- participação de todos nas atividades Eu participava e aí comecei a ter outra moradia, racismo. Diante da inação do
vendo em situação precária na cidade, do movimento, seus mutirões, reu- visão, a visão de pertencimento.” poder público, recorrem às ocupações
estimativa da Secretaria Municipal de niões, assembleias, seus atos e mani- Mas, enquanto Carmen vê a expe- por necessidade. Alguns, como Tina e
Habitação (Sehab). Os movimentos de festações pelo direito à moradia. E, riência numa ocupação como cons- César, se resignam a essa realidade por
moradia do centro defendem que não ainda que essas ocupações sejam fre- trutora de cidadãos mobilizados por enquanto; outros, como a família de
é necessário construir habitações no- quentemente chamadas de “ilegais”, seus direitos, essa não é necessaria- Kendra, juntam o conhecimento e os
vas para todas essas pessoas, já que so- “irregulares” e de “invasões”, elas es- mente a expectativa dos migrantes rendimentos de uma família transna-
mente nos distritos centrais da cidade tão respaldadas pela lei brasileira. A que vão morar nas ocupações, nem de cional para tentar escapar das priva-
há mais de 30 mil imóveis que pode- Constituição estipula, no artigo 5º, que muitos brasileiros. Um engajamento ções de São Paulo. A cidade fica, e a lu-
riam ser destinados à habitação social, toda “propriedade atenderá à sua fun- comprometido com a luta por moradia ta dos trabalhadores de baixa renda
segundo o Censo 2010. Com relação a ção social” e, no artigo 6º, que todos em São Paulo exige, no mínimo, que as pela moradia digna também.
migrantes internacionais e refugia- têm direito à moradia. Ao ocuparem famílias tenham uma “perspectiva de
dos, a Lei Municipal n. 16.478, de 2016, um imóvel abandonado há anos (sem permanência”, como explica Evaniza *Diana Thomaz é doutoranda em Gover-
estipula que a Sehab deve adaptar os função social), esses movimentos fa- Rodrigues, que trabalha com a União nança Global na Wilfrid Laurier University, no
programas habitacionais à realidade zem cumprir essas determinações, dos Movimentos de Moradia. “Alguns Canadá. Esta pesquisa foi feita com o apoio
deles, flexibilizando as exigências do- além de assegurarem uma moradia migrantes não têm ideia se vão ficar de uma bolsa do International Development
cumentais e promovendo programas provisória para famílias sem-teto. aqui ou não: ‘se a situação melhorar, Research Centre (IDRC), de Ottawa, Canadá.
de moradia transitória, por exemplo. Além das ocupações administra- eu quero voltar, mas, se a situação de- As visões aqui expressas não representam
No entanto, a cidade de São Paulo das por movimentos de moradia no morar para melhorar, eu vou pra outro necessariamente aquelas do IDRC ou de seu
carece de uma política pública de habi- centro de São Paulo, surgiram outras lugar’.” As ocupações acabam sendo quadro de diretores.
tação social preventiva e ampla que dê que não têm esse caráter político, mas uma solução emergencial para muitos.
conta do problema. Na falta dessa polí- são geridas por grupos que apenas co- Tina e César vão ter um filho brasileiro 1 O nome de todos os migrantes internacionais foi
tica, temos visto medidas que agravam bram aluguel dos moradores – em mé- em breve e, ainda que não tenham pla- alterado para garantir sua confidencialidade.
28 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

O SÚBITO ENTENDIMENTO ENTRE AS COREIAS

O céu de repente volta a brilhar


No dia 24 de maio, Donald Trump anunciou a anulação de seu encontro com Kim Jong-un, marcado para 12 de junho. Para
além das artimanhas retóricas destinadas a arrancar concessões da outra parte, os dois divergem a respeito do método para
desnuclearizar a península. Já o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, não poupa esforços para fechar um acordo de paz
POR SUNG IL-KWON E MARTINE BULARD*

da administração dos Estados Unidos. entre as Coreias. Dizer que ele teve de
Como explica Jeong Se-hyun, ex-mi- enfrentar muitos obstáculos é pouco.
nistro sul-coreano da Unificação: “Is- Apenas um mês após assumir o
so não era uma política. Ninguém po- cargo, Moon anunciou claramente:
deria esperar que a Coreia do Norte “Estamos determinados a entrar em
abandonasse voluntariamente a arma um diálogo incondicional se a Coreia
atômica sem nenhuma compensa- do Norte suspender as provocações”.6
ção”. E acrescenta: “Ironicamente, a Em vão. Ele tentou novamente, e por
demora deu ao país tempo para refi- mais tempo, em 6 de julho, durante
nar sua tecnologia nuclear”.1 uma conferência em Berlim. A capital
Mais do que as ameaças, foi a rup- alemã, dividida durante a Guerra Fria,
tura com essa estratégia de “tudo ou não foi escolhida ao acaso: dezessete
nada” que levou o líder norte-coreano anos antes, Kim Dae-jung – presidente
à mesa de negociações. Embora habi- da Coreia do Sul entre 1998 e 2003 – de-
tuado à hostilidade, Trump, felicíssi- finiu ali a Doutrina de Berlim, que le-
mo em poder dar as costas à política de vou a um aperto de mão histórico com
seu antecessor, não desdenha a políti- o então dirigente do Norte, Kim Jong-
ca dos pequenos passos. “Cada etapa é -il, em junho de 2000, dando início a
importante”, garante seu secretário de quase uma década de diálogo e inter-
Estado, Mike Pompeo. “O objetivo câmbio. Essa “política do raio de sol”
continua o mesmo: desarmamento (sunshine policy), contudo, chocou-se
completo, verificável, irreversível. Esse contra a intransigência dos Estados
Moon Jae-in recebe Kim Jong-un em Panmunjeom
é o propósito desta administração”2 – Unidos, naufragando, em seguida,
propósito, não condição prévia. Ele es- com o retorno dos conservadores ao

O
mundo inteiro o via como um gança, e o Conselho de Segurança da clarece, com um toque de ênfase, que poder na Coreia do Sul, em 2008.7
ditador aterrorizante, fraco e ONU apertava as sanções contra seu se trata de uma “oportunidade sem Colaborador próximo de dois ex-
perverso; ele apareceu sorri- país. Como explicar essa virada? precedentes de mudar o curso da his- -presidentes democratas – Kim Dae-
dente, amável e aberto. Em pou- Trump e seus seguidores não estão tória”. Obviamente, e mesmo que pos- -jung e Roh Moo-hyun –, Moon reto-
cos dias, o líder da República Popular surpresos, vendo nisso o sucesso de samos lamentar o fato, essa reviravolta mou a tocha, portanto, em Berlim, dois
Democrática da Coreia, a Coreia do seus métodos robustos (incluindo as (esperada) não seria iniciada sem o ar- dias após o lançamento de um novo
Norte, passou de little rocket man [pe- tuitadas) e a prova da sensatez de seu senal nuclear da Coreia do Norte. míssil balístico norte-coreano. Ele dis-
queno homem-foguete], nas palavras slogan favorito: impor “a paz à força”. Seja como for, a ideia de inscrever se querer “embarcar em uma jornada
pouco delicadas do presidente dos Es- Sozinhas, as ameaças de um dilúvio de seu nome na história, destacando-se audaciosa para estabelecer um regime
tados Unidos, Donald Trump, a chefe fogo sobre a Coreia do Norte teriam do- de Obama, certamente contou muito de paz na Península da Coreia, com
de Estado responsável, à altura de seu brado o senhor de Pyongyang. O caso é para a mudança de Trump, sobretudo um papel proeminente do governo co-
colega sul-coreano. A ofensiva de divertido, mas, se fosse verdade, a di- porque ele espera obter rapidamente a reano”. Palavras cuidadosamente es-
charme de Kim Jong-un, cruzando a nastia Kim já teria entrado na linha há destruição dos mísseis balísticos ca- colhidas: a “jornada” pressupõe várias
fronteira num aperto de mão com muito tempo. A história, porém, mostra pazes de atingir o território dos Esta- etapas e uma autonomia em relação
Moon Jae-in, rindo e brincando, no dia o inverso: o primeiro lançamento de dos Unidos: “Temos a obrigação de aos Estados Unidos. E esclareceu:
27 de abril, foi um sucesso. Parte da eli- um míssil norte-coreano, em 1993, nas- abrir discussões para tentar encontrar “Não desejamos a ruína da Coreia do
te sul-coreana está à beira da “Kim- ceu da recusa por parte dos Estados uma solução pacífica para garantir Norte e não trabalharemos por uma
-mania”, e o líder do Norte já não é vis- Unidos em discutir com o avô de Kim que os norte-americanos não corram reunificação para que o Sul absorva o
to como um pária – o que é sempre Jong-un, Kim Il-sung. A decisão do ex- mais perigo”, explicou Pompeo.3 Norte”.8 Isso tranquiliza simultanea-
melhor quando se quer negociar. -presidente George W. Bush de tratar a Sem subestimar a importância do mente o governo norte-coreano e a po-
Desde os Jogos Olímpicos de Inver- Coreia do Norte como “Estado vilão” e encontro entre os líderes da Coreia do pulação sul-coreana, pouco favorável
no em Pyeongchang, em fevereiro, te- fortalecer o embargo, em 2002-2003, le- Norte e dos Estados Unidos – o primei- a uma fusão, que seria bastante cara.
ve início um balé diplomático: após o vou o pai de Kim Jong-un, Kim Jong-il, a ro desde 1953 –, a mudança de atitude
encontro no paralelo 38, em Panmun- fortalecer o programa nuclear do país. dos dois lados do Pacífico deve-se POR TRÁS DA GUERRA DOS BOTÕES
jeom, uma cúpula histórica, anulada O filho aprofundou a disputa, en- principalmente à tenacidade do presi- Claro que o presidente sul-coreano
até o fechamento desta edição, deveria quanto na Coreia do Sul o governo dente da Coreia do Sul, que levou bron- não ignora o peso decisivo dos Estados
© Inter-Korean Summit Press Corps

ser realizada entre os líderes norte-co- conservador (Lee Myung-bak, depois ca, no verão passado, em um tuíte de Unidos, aos quais acaba de conceder a
reano e norte-americano em Cingapu- Park Geun-hye, atualmente presa por Trump: “A estratégia de apaziguamen- instalação do sistema antimísseis Ter-
ra, no dia 12 de junho. corrupção) fechava todas as portas ao to não leva a nada” (3 set. 2017).4 Já na minal High Altitude Area Defense
Para medir a extensão da reviravol- vizinho do Norte, com a bênção do primavera anterior, durante a campa- (Thaad), suspensa um mês antes. No
ta, vale lembrar que há menos de um presidente dos Estados Unidos, Ba- nha para a eleição presidencial após a entanto, ele teme intervenções intem-
ano Kim disparava mísseis no Pacífico rack Obama, que considerava o aban- Revolução das Velas – enormes mani- pestivas, como as que derrubaram a
e fazia testes de armas atômicas, en- dono do programa nuclear um pré-re- festações que terminaram com a des- abertura dos anos 2000. Moon se lem-
quanto o presidente dos Estados Uni- quisito – o que foi equivocadamente tituição de Park5 –, Moon comprome- bra muito bem disso, pois ocupou vá-
dos o bombardeava com tuítes de vin- chamado de “paciência estratégica” teu-se a apoiar a retomada do diálogo rios cargos no gabinete do presidente
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 29

Kim Dae-jung e participou das nego- querem a “desnuclearização” da pe- redução e depois fim dos exercícios Kim abra o caminho para verdadeiras
ciações com o Norte. Sem esperar sinal nínsula, mas nenhum dos protagonis- militares conjuntos entre a Coreia do negociações a fim de estabelecer um
verde, convidou a Coreia do Norte para tas concorda sobre o que isso significa, Sul e os Estados Unidos. É quase a roteiro, cuja elaboração será, de qual-
participar das Olimpíadas de Inverno. a começar pelos Estados Unidos. Pom- mesma posição sul-coreana. quer forma, muito difícil, deixando es-
No entanto, ele destacou em Ber- peo acredita na possível assinatura de Sem desejar romper sua aliança paço para possíveis provocações em
lim que “são precisos dois para dançar um tratado de paz no lugar do armistí- histórica com os Estados Unidos, o ambos os lados do Pacífico...
o tango”. Nada teria sido possível, de cio em vigor desde 1953 e em uma “real presidente da Coreia do Sul espera ser
fato, sem a mudança de Kim Jong-un. chance de desnuclearização” graças a capaz de conter o ardor autoritário dos *Sung Il-kwon é responsável pela edição
É verdade que, em seus votos para “ações concretas da Coreia do Norte” negociadores norte-americanos, com sul-coreana do Le Monde Diplomatique;
2018, este último lançou-se em um dis- que poderiam permitir considerar o apoio chinês. “O papel da China é vi- Martine Bulard é jornalista do Le Monde
curso clássico contra os Estados Uni- uma suspensão parcial do embargo.12 tal para estabelecer a paz na penínsu- Diplomatique.
dos, lembrando: “O botão nuclear está Já o conselheiro da Segurança Nacio- la”, considerou adequado reafirmar
à mão, na minha mesa, permanente- nal, John Bolton, que também é ouvido um membro do gabinete presidencial 1 Entrevista com Lee Jeong-ho e Minnie Chan, “Ko-
rea summit could help clarify denuclearisation pro-
mente” – declaração que provocou um pelo presidente, imagina mais um “ce- sul-coreano.14 Esclarecimento ainda cess ahead of Kim-Trump talks, says South’s ex-u-
tuíte antológico de Trump: “Eu tam- nário líbio” – em referência ao ex-pre- mais útil quando se sabe que o comu- nification minister” [Cúpula da Coreia pode ajudar
bém tenho um botão nuclear, e ele é sidente Muamar Kadafi, que em 2003 nicado de Panmunjeom indicou que a esclarecer processo de desnuclearização antes
das negociações entre Kim e Trump, diz ex-ministro
muito maior e muito mais poderoso abriu mão de todo o arsenal nuclear e as negociações para alcançar o tratado da Unificação da Coreia do Sul], South China
que o dele” (3 jan. 2018). químico. Seu destino, morto pelos oci- de paz seriam feitas “a três – as duas Morning Post, Hong Kong, 25 abr. 2018.
No entanto, por trás da guerra dos dentais dez anos depois, não anima Coreias e os Estados Unidos – ou qua- 2 Entrevista para a rede ABC News, 29 abr. 2018.
3 Hamish Macdonald, “A bad deal with North Korea
botões se organizava a mudança. Kim Kim a seguir o mesmo caminho, em- tro – com a China”. Em Seul, dizem is not an option, Pompeo says” [Um mau acordo
Jong-un não chama mais a Coreia do bora este, ao contrário do líder líbio, que essa ambiguidade foi mantida pe- com a Coreia do Norte não é uma opção, diz Pom-
Sul de “fantoche” de Washington e possua a tecnologia que lhe permiti- los “pró-norte-americanos de Pyong- peo], NK News, 2 maio 2018.
4 Ler Martine Bulard, “Négocier sans préalable avec
anunciou: “2017 foi um ano de grande ria, se necessário, retornar à corrida yang”, que esperam emancipar-se (um Pyongyang” [Negociar com Pyongyang sem exigên-
vitória, um ano em que estabelecemos atômica. Claro que ambos os negocia- pouco) da tutela econômica chinesa cias prévias], Le Monde Diplomatique, out. 2017.
um marco indestrutível”,9 remetendo dores norte-americanos concordam apostando em Washington, como seus 5 Ler Sung Il-kwon, “‘Révolution des bougies’ à
Séoul” [“Revolução das Velas” em Seul], Le Mon-
ao fato de que seu país tem armas nu- com o objetivo final: uma Coreia do antepassados jogaram com a Rússia e de Diplomatique, jan. 2017.
cleares e agora pode brincar junto com Norte completamente livre de bombas a China, então irmãos inimigos, para 6 JH Ahn, “Following in Kim Dae-jung’s footsteps?
os grandes. Depois aceitou o convite atômicas, mísseis e armas químicas. manter sua independência. Esse é pelo Moon’s June 15 speech, in summary” [Seguindo
os passos de Kim Dae-jung? Resumo do discurso
para as Olimpíadas, enviando uma de- menos um ponto de acordo com os lí- de Moon em 15 de junho], NK News, 16 jun. 2017.
legação liderada por sua irmã mais ve- deres de Washington, que tentam con- 7 Cf. Philippe Pons, Corée du Nord. Un État-guérilla
lha, Kim Sul-song. Em 27 de abril, cru- ter o poder chinês na região. Alarma- en mutation [Coreia do Norte. Um Estado-guerri-
zou a linha de fronteira, também ciente O presidente da dos, os chineses lembraram, em um
lha em transformação], Gallimard, Paris, 2016.
8 “Discours du président Moon à la Fondation Kör-
de seu lugar no mundo: “Uma nova Coreia do Sul espera editorial contundente do oficial Global ber” [Discurso do presidente Moon na Fundação
história começa hoje, um período de Times: “A China é indispensável para a Körber], Berlim, 16 jul. 2017. Disponível em:
ser capaz de conter <http://overseas.mofa.go.kr>.
paz”, escreveu ele no Livro de Ouro da desnuclearização da península”.15 Kim
Casa da Paz. Um mês depois, anunciou
o ardor autoritário foi pessoalmente tranquilizar Xi
9 Cf. Park Jong-hee, “Six things you should know
about Kim Jong-un’s 2018 new year address” [Seis
com grande pompa a destruição do sí- dos negociadores Jinping alguns dias depois. coisas que você precisa saber sobre o discurso de
ano-novo de Kim Jong-un para 2018], East Asia
tio de Punggye-ri, onde seis testes nu- norte-americanos Já o presidente Moon não espera Institute, 7 fev. 2018.
cleares foram realizados desde 2006 e o com o apoio chinês apenas o apoio político da China, mas 10 Embora os especialistas discordem quanto ao nú-
qual desapareceu, sob o olhar atento também sua ajuda em espécie. Os dois mero de ogivas nucleares detido pela Coreia do
Norte (de vinte a sessenta), todos acreditam que o
de jornalistas estrangeiros, entre os países já concordaram em desenvolver país sabe produzir a bomba e passará a realizar
dias 23 e 25 de maio. Especialistas in- a linha férrea ligando Seul ao porto testes por simulação em computador. Cf. “State-
ternacionais não foram convidados, o Trata-se de desarmar somente a chinês de Dandong, passando por ment for the record: Worldwide threats assess-
ment” [Declaração para registro: avaliação das
que impede de verificar a real ativida- Coreia do Norte, quando esta, assim Pyongyang e Sinuiju, cidade portuária ameaças no mundo], Agência de Inteligência de
de abrigada nesses túneis. como a Coreia do Sul, fala sobre a norte-coreana no Rio Yalu. Em busca Defesa, 6 mar. 2018. Disponível em: <www.dia.
Está claro que a Coreia do Norte não desnuclearização de toda a penínsu- de novos motores de crescimento para mil>; e “IAEA director general provides update on
North Korea at board of governors meeting” [Dire-
precisa mais de testes subterrâneos e la. A declaração conjunta adotada em gerar emprego (o desemprego entre os tor-geral da Agência Internacional de Energia Atô-
domina a tecnologia.10 O senhor de 27 de abril em Panmunjeom afirma jovens é superior a 11,5%), o presidente mica faz atualização sobre a Coreia do Norte em
Pyongyang pode, portanto, esperar inequivocamente: “O Sul e o Norte sul-coreano aposta no que chama de reunião do Conselho de Governadores], Agência
Internacional de Energia Atômica, Viena, 11 set.
uma relação de igual para igual com os confirmam seu objetivo comum de “novo cinturão econômico da penín- 2017. Cf. “SIPRI Year Book: Armaments, disarma-
Estados Unidos – o grande sonho da di- chegar a uma península sem armas sula”. Ele inclui tanto a pesquisa ener- ment, and international security” [Anuário do Sipri:
nastia Kim – e passar para o segundo nucleares” – portanto, sem o guarda- gética no Mar do Leste (onde haveria armamentos, desarmamento e segurança interna-
cional], Stockholm International Peace Research
pilar de sua política, o desenvolvimen- -chuva norte-americano. O caso não petróleo) como projetos de grandes in- Institute (Sipri), 2018.
to econômico, para que “o povo nunca está ganho, porque não se vê como a fraestruturas e desenvolvimento de 11 Ler Patrick Maurus, “La Corée du Nord se rêve en
mais precise apertar o cinto”, como Coreia do Norte poderia abrir mão vastas áreas turísticas em ambos os la- futur dragon” [Coreia do Norte sonha ser o futuro
dragão], e Martine Bulard, “Voyage sous bonne
prometeu quando chegou ao poder. Por das armas atômicas. O país as consi- dos da fronteira. garde en Corée du Nord” [Viagem supervisionada
enquanto, todo mundo está com ele, in- dera um seguro de vida contra uma Internamente, Moon reforçou sua à Coreia do Norte], Le Monde Diplomatique, res-
clusive o Exército, que Kim “mandou de Coreia do Sul que possui o sexto posição. Na véspera das Olimpíadas, pectivamente fev. 2014 e ago. 2015.
12 Yi Yong-in, “Pompeo and Bolton offer different
volta para o quartel”, nas palavras de maior Exército do mundo e pode con- 70% dos sul-coreanos entrevistados stances regarding North Korea’s denuclearization”
um dos grandes especialistas franceses tar com 28 mil soldados norte-ameri- expressaram sua insatisfação após a [Pompeo e Bolton oferecem diferentes posições
sobre a Península da Coreia, Patrick canos instalados no país, com suas montagem de uma equipe unificada sobre a desnuclearização da Coreia do Norte],
The Hankyoreh, Seul, 1º maio 2018.
Maurus – sob o regime de Kim Jong-il, armas de última geração.13 de hóquei no gelo, imposta pelo presi- 13 Cf. Rémy Hémez, “Corée du Sud: une puissance
as Forças Armadas eram onipotentes. A visão norte-coreana baseia-se dente. Após a cúpula de Panmunjeom, militaire entravée” [Coréia do Sul: uma potência mili-
Já a nova classe abastada, que se benefi- em uma série de “etapas progressivas e 82% aprovavam sua ação e 65% decla- tar travada], Monde Chinois, n.53, Paris, abr. 2018.
14 Ock Hyun-ju, “Complex calculations over signing
ciou da flexibilização da política econô- sincronizadas”. As concessões do Nor- raram confiar na Coreia do Norte para peace treaty” [Cálculos complexos sobre a assina-
mica,11 sem dúvida impulsionou essa te – desmantelamento de instalações, manter a paz, contra apenas 14,7% an- tura do tratado de paz], The Korea Herald, Seul, 2
virada estratégica, vendo com muito aceitação de controle internacional tes de sua abertura.16 maio 2018.
15 “China’s role indispensable in resolving North Ko-
maus olhos a perspectiva de um recuo etc. – seriam seguidas de concessões Seriam eles otimistas demais, co- rea nuclear crisis” [O papel indispensável da China
em função do fortalecimento das me- norte-americanas e sul-coreanas: as- mo julgam alguns especialistas sul- na resolução da crise nuclear da Coreia do Norte],
didas de embargo. sinatura de um tratado de paz formal, -coreanos? Para além das declarações Global Times, Pequim, 14 maio 2018.
16 Pesquisas realizadas pela Realmeter e publicadas
O caminho rumo à paz não parece normalização das relações com os Es- de boas intenções, não é certo que um em especial pela agência de notícias Yonhap, Seul,
menos cheio de armadilhas. Todos tados Unidos, suspensão das sanções, hipotético encontro entre Trump e 30 abr. e 3 maio 2018.
30 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

DESPREZO PELO DIREITO INTERNACIONAL

Irã: Trump dita as regras


Em 8 de maio de 2018, o presidente dos Estados Unidos decidiu, conforme os desejos de Israel e da Arábia Saudita, rasgar a
assinatura de seu país e lançar uma disputa de poder com o Irã. O ex-empreiteiro nova-iorquino está acostumado a fazer apostas
perigosas, a desdenhar da lei e a trair parceiros de negócios. Mas, desta vez, é a paz de toda uma região que está ameaçada
POR IBRAHIM WARDE*

carreira de Donald Trump foi nimidade. Em troca da suspensão do

A
EM 1982, A RESPOSTA DE THATCHER
construída com base na premis- programa de pesquisa nuclear militar A questão da aplicação extraterrito-
sa de que tudo é renegociável. e dos controles internacionais que se rial das leis dos Estados Unidos remon-
Quando um edifício era concluí- estenderiam até 2025, as sanções im- ta à Guerra Fria. Após a imposição da
do, esse incorporador imobiliário in- postas pelo Conselho de Segurança à lei marcial na Polônia, em 13 de de-
vocava a baixa qualidade do trabalho República Islâmica desde 1995 deve- zembro de 1981, o presidente Ronald
(ou outros pretextos) para não honrar riam ser gradualmente levantadas. Reagan proibiu num primeiro momen-
seus compromissos. Ele então impu- Os desdobramentos econômicos to as empresas norte-americanas de
nha novas condições às empresas en- esperados constituíam um compo- participar da construção de um gaso-
volvidas, declarando, por exemplo, que nente essencial do acordo. Mas, embo- duto que abasteceria países europeus a
só ia pagar “75% do valor combinado”. ra o comércio exterior do Irã tenha partir da Sibéria. Em junho de 1982, o
Era pegar ou largar. Os que recusavam crescido bem, ele ficou longe do boom embargo foi estendido às suas subsi-
a proposta não tinham alternativa se- esperado há três anos, principalmente diárias, bem como às empresas estran-
não recorrer aos tribunais, assumindo por causa da manutenção de sanções geiras que trabalhassem sob licença
o risco de processos judiciais dispen- anteriores, adotadas pelo Congresso norte-americana, com o argumento de
diosos e o resultado incerto diante de logo em seguida à Revolução Islâmica que a União Soviética poderia tirar
advogados que eram tão desleais quan- de 1979. Para muitos iranianos, a má- proveito das tecnologias domésticas.
to durões. Em seu livro Trump: Think -fé dos Estados Unidos saltava aos Essa decisão provocou protestos;
Like a Billionaire [lançado no Brasil co- olhos: as autoridades de Washington as medidas de retaliação dos Estados
mo Trump: como chegar lá, Elsevier, mantinham a ambiguidade sobre a europeus envolvidos forçaram os Es-
2005], de 2004, ele aconselhou seus lei- questão das transações em dólar para tados Unidos a se retratar. Porque, se
tores a “sempre contestar as faturas”. desencorajar os investidores e os po- por um lado Washington detinha a ar-
Seus procedimentos de mau pagador tenciais exportadores. Para os países ma da extraterritorialidade, os países
eram bem conhecidos por fornecedo- exportadores, no entanto, os progres- da Europa podiam retaliar com leis de
res e banqueiros, muitos dos quais se gociador da história” a serviço da Amé- sos não foram negligenciáveis. A quan- bloqueio que proíbem suas empresas
recusavam a negociar com ele.1 rica. Ele anunciou que, uma vez eleito, tidade de exportações francesas para de se submeter a leis estrangeiras. Em-
Em Think Big and Kick Ass in Busi- trabalharia para “rasgar o horrível o Irã, por exemplo, triplicou, passando bora grande aliada do presidente Rea-
ness and Life [lançado no Brasil como acordo” de Viena sobre a energia nu- de 500 milhões de euros no momento gan, Margaret Thatcher, a primeira-
Pense grande nos negócios e na vida, clear iraniana, assim como o acordo do acordo para 1,5 bilhão em 2017. -ministra britânica, se mostrou
Ediouro, 2008], de 2007, ele diz que gos- sobre o clima de Paris. O fato de que es- Embora muitas vezes descrito co- inflexível. Ela afirmou que, por razões
ta de “esmagar o outro lado e embolsar sas decisões fossem tomadas despre- mo um “Estado bandido”, o Irã honrou de princípio, as empresas do Reino
os lucros” e zombar dos banqueiros que zando-se o direito internacional ou seus compromissos, como atestado Unido deveriam honrar seus compro-
perderam as quantias que tinham que outros signatários se mostrassem pela Agência Internacional de Energia missos comerciais. Invocou uma lei de
adiantado para ele. “É problema deles, contrários a elas pouco importava para Atômica, assim como pelas certifica- proteção [Protection of Trading Inte-
não meu. Eu disse a eles que não deve- ele. Seus métodos de empresário de di- ções periódicas do governo norte-a- rests Act, “Lei de Proteção de Interes-
riam ter emprestado para mim.” O reito divino, assim como sua ignorân- mericano. Isso explica, aliás, por que o ses Comerciais”], aprovada em 1980,
Deutsche Bank, única grande institui- cia da história e da diplomacia, uniam- presidente Trump, que assumiu o car- que as impedia de se submeter a injun-
ção que continua a lidar com a empresa -se a seu desejo de desfazer o legado go em 20 de janeiro de 2017, denunciou ções dos Estados Unidos quando o in-
de Trump, teve uma experiência edifi- deixado por seu antecessor. Preocupa- o acordo apenas em 8 de maio de 2018. teresse nacional estivesse em jogo. Na
cante. Em 2008, no auge da crise finan- do com o rompimento das convenções, Tanto o secretário de Estado, Rex Til- França, Jean-Pierre Chevènement, en-
ceira, o banco processou o incorpora- ele confiaria em seus instintos e se con- lerson, como o general Herbert Ray- tão ministro da Pesquisa e da Indús-
dor por uma conta não paga de US$ 40 tentaria em transpor para o campo das mond McMaster, assessor de seguran- tria, apoiou-se em um decreto de 1959
milhões. Este último contra-atacou, rei- relações internacionais as práticas ça nacional, reconheciam os méritos emitido pelo general De Gaulle e orde-
vindicando em troca a notável soma de aprimoradas durante sua carreira de do texto e se opunham a uma retirada. nou à empresa Dresser-France, subsi-
US$ 3 bilhões. Seu argumento: seus incorporador imobiliário e astro de Foi só depois de dispensá-los e substi- diária de um grupo norte-americano
problemas de liquidez eram decorren- reality show. tuí-los por “falcões”, respectivamente de mecânica, que anulasse as injun-
tes da crise financeira; ora, o Deutsche O Plano Global de Ação Conjunta Michael Pompeo e John Bolton, que ções de sua empresa-mãe. Washing-
Bank estava entre os responsáveis pela foi assinado em Viena, em 14 de julho Trump finalmente se viu livre para ton finalmente cedeu, e as sanções fo-
crise... O banco concedeu-lhe um adia- de 2015, pelo Irã e pelos cinco membros agir. Mesmo que nenhum dos outros ram suspensas em novembro de 1982.
mento de cinco anos.2 O futuro presi- permanentes do Conselho de Seguran- países signatários tenha seguido os Depois da Guerra Fria, no entanto,
dente não demorou a entender que a ça da ONU (Estados Unidos, Rússia, Estados Unidos em sua retirada, a de- assistiu-se a uma intensificação das
ameaça de um recurso judicial poderia China, França e Reino Unido), bem co- cisão de Washington terá sérias conse- reivindicações extraterritoriais, sob o
ter efeitos dissuasivos. Estima-se que te- mo pela Alemanha, após vários anos quências para suas relações com a Eu- pretexto de que a globalização deveria
nha participado, como queixoso ou de ásperas negociações. Ele também ropa, por causa do restabelecimento ser acompanhada de regras comuns.
acusado, em mais de 3,5 mil processos. foi avalizado em 20 de julho de 2015 pe- das sanções contra as empresas norte- Somente em 1996 os Estados Unidos
© Mello

Novato na política, Trump prome- la Resolução n. 2.231, do mesmo Con- -americanas ou estrangeiras que con- aprovaram duas leis baseadas nesse
teu colocar seus talentos de “maior ne- selho de Segurança, adotada por una- tinuem a comercializar com o Irã. princípio. A Lei Helms-Burton tem co-
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 31

mo alvo empresas estrangeiras que in- trate de lavagem de dinheiro, do finan- que se parecem com uma capitulação posições de Israel e da maioria dos Es-
vestem em território cubano, enquan- ciamento do terrorismo ou de campa- em campo aberto. Em uma circular de tados do Golfo em tudo que se refere
to a Lei Amato-Kennedy se aplica ao nhas anticorrupção, as leis adotadas dez páginas, o Departamento de Con- ao Irã faziam prever um grande con-
Irã e à Líbia. A União Europeia respon- em todo o mundo são calcadas nas de- trole de Ativos Estrangeiros (Office of fronto com seus aliados transatlânti-
deu com um dispositivo de bloqueio les.3 E é frequentemente a justiça desse Foreign Assets Control, Ofac) do Te- cos. Mas as lições da história mostram
que proíbe qualquer pessoa europeia país que desencadeia processos e san- souro publicou a lista de regulamentos bem os riscos do unilateralismo para a
física ou jurídica de se submeter a atos ciona entidades estrangeiras por in- que devem reger o restabelecimento hegemonia norte-americana. Há pou-
administrativos, legislativos ou judi- frações cometidas fora do território de sanções. Aquelas que foram classi- co mais de vinte anos, em 1997, três
ciais decididos por uma potência es- nacional. Dessa forma, em junho de ficadas como “secundárias”, suspen- conselheiros diplomáticos próximos
trangeira. Além disso, deu início a um 2014, o banco BNP Paribas foi conde- sas pelo Acordo de Viena, serão resta- aos presidentes Jimmy Carter, George
litígio perante o Órgão de Solução de nado a pagar US$ 8,9 bilhões ao Tesou- belecidas no prazo de noventa dias (ou H. W. Bush e Bill Clinton, respectiva-
Controvérsias da Organização Mun- ro norte-americano por violar, por seja, a partir de 6 de agosto) para o se- mente Zbigniew Brzezinski, Brent
dial do Comércio (OMC) com o objeti- meio de sua filial suíça, os embargos tor automotivo e 180 dias (4 de novem- Scowcroft e Richard Murphy, adver-
vo de contestar a aplicação extraterri- impostos pelos Estados Unidos a bro) para o setor petrolífero. As empre- tiam: “A política de sanções unilate-
torial dessas leis. A Comissão Europeia Cuba, Irã e Sudão.4 Nos últimos anos, sas que se recusarem a se submeter à rais dos Estados Unidos contra o Irã se
chegou a estabelecer uma lista de em- várias multinacionais europeias tam- nova regulamentação poderão, por mostrou ineficaz, e a tentativa de for-
presas norte-americanas que pode- bém caíram na malha do Foreign Cor- decisão de Trump, acabar em uma lis- çar os outros a seguir o exemplo dos
riam ser atingidas por sanções espe- rupt Practices Act (FCPA – Lei de Práti- ta (Specially Designated Nationals Estados Unidos foi um erro. A intimi-
lhadas. Essa determinação funcionou: cas de Corrupção no Exterior), de 1977, List, “Lista de Nacionais Especialmen- dação extraterritorial gerou tensões
os Estados Unidos aceitaram a sus- que proíbe subornar líderes de países te Designadas”) cujos ativos poderão desnecessárias entre a América e seus
pensão de seus dispositivos de sanção terceiros para obter contratos. Várias ser bloqueados e com os quais entida- principais aliados e ameaçou a ordem
no caso dos europeus, que então reti- empresas tiveram de pagar multas ele- des e cidadãos norte-americanos não internacional de livre-comércio que os
raram a queixa feita à OMC. vadas, entre elas a francesa Alstom podem negociar. Estados Unidos vêm promovendo há
Que aconteceu desde então? É ver- (US$ 772 milhões em 2014) e a alemã No Conselho de Sófia de 16 e 17 de tantas décadas”.5
dade, houve o efeito 11 de Setembro. A Siemens (US$ 800 milhões em 2008). maio, os líderes europeus declararam
natureza global do terrorismo pareceu Basta uma ligação, mesmo tênue, para sua vontade unânime de permanecer *Ibrahim Warde é professor associado da
justificar, por exemplo, a vigilância a justiça norte-americana se conside- no acordo – um desejo difícil de reali- Fletcher School of Law and Diplomacy, em
dos fluxos financeiros em âmbito glo- rar competente: no caso do BNP Pari- zar – sem nem sequer apresentar um Medford, Estados Unidos.
bal. Aprovado após os ataques, o USA bas, as transações ilegais eram deno- recurso à OMC. Único anúncio concre-
Patriot Act (Uniting and Strengthe- minadas em dólares. Ter uma conta to: a aplicação de uma lei de bloqueio
ning America by Providing Appropria- nos Estados Unidos ou mesmo trocar (aprovada em 1996) que visa neutrali- 1 Alexandra Berzon, “Donald Trump’s business plan
te Tools Required to Intercept and e-mails que passam por um servidor zar os efeitos extraterritoriais das san- left a trail of unpaid bills” [O plano de negócios de
Obstruct Terrorism, “Unindo e Forta- baseado naquele país também abre a ções norte-americanas. O ministro da Donald Trump deixou um rastro de contas não pa-
gas], The Wall Street Journal, Nova York, 9 jun.
lecendo a América por Meio do Forne- porta para processos. Economia francês, Bruno Lemaire, es- 2016. Leia também “Triomphe du style paranoïa-
cimento de Ferramentas Apropriadas tá propondo mecanismos de financia- que” [Triunfo do estilo paranoico], Le Monde Di-
Necessárias para Interceptar e Obs- UMA ESTRATÉGIA CONTRAPRODUTIVA mento independentes para investi- plomatique, dez. 2016.
2 Richard Cohen, “Why Trump’s handling of a Deuts-
truir o Terrorismo”) concedeu ao Exe- O caso das sanções contra o Irã não mentos no Irã e indenização pela che Bank loan is so foreboding” [Por que a manipu-
cutivo prerrogativas adicionais. Novo deixa de ser uma ruptura. No mesmo União Europeia para empresas que lação de um empréstimo do Deutsche Bank por
aspecto do “privilégio exorbitante” da dia da denúncia do acordo nuclear, o possam ser vítimas do mecanismo de Trump é tão agourenta], The New York Times, 20
jul. 2017.
moeda norte-americana de que falava novo embaixador norte-americano sanções secundárias reativado pelos 3 Cf. Ibrahim Warde, “L’internationalisation de la
outrora o general De Gaulle, todas as em Berlim, Richard Grenell, publicou Estados Unidos. Mas nada indica que compliance à l’américaine” [A internacionalização
transações em dólares ficaram sujei- um tuíte em forma de decreto: “As em- ele vai convencer seus colegas euro- da compliance no estilo norte-americano], Audit,
Risques et Contrôle, Paris, 4º trimestre de 2015.
tas à lei dos Estados Unidos, mesmo presas alemãs que fazem negócios no peus, enquanto, para uma empresa, 4 Ler “Les États-Unis mettent les banques à l’amen-
quando não intervinham em seu terri- Irã devem se retirar imediatamente!”. todas essas medidas não pesam quase de” [Os Estados Unidos multam os bancos] e
tório. Falou-se então de uma era de Mais tarde, ele argumentaria que a seu nada diante da ameaça de serem corta- Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la loi… amé-
ricaine” [Em nome da lei... norte-americana], Le
globalização da compliance no estilo ver isso era uma obrigação moral. das do mercado norte-americano. Monde Diplomatique, respectivamente jul. 2014 e
norte-americano. O novo secretário de Estado, Pom- Desde sua eleição, Trump não dei- jan. 2017.
Entre imposição e mimetismo, as peo, prometeu colocar de joelhos os xou de manter distância em relação à 5 Zbigniew Brzezinski, Brent Scowcroft e Richard
Murphy, “Differentiated containment” [Contenção
leis e práticas dos Estados Unidos es- Estados que ajudem o Irã, a menos que Europa. Sua afinidade com os regimes diferenciada], Foreign Affairs, Nova York, maio-jun.
tão se internacionalizando. Quer se Teerã concorde com doze condições autoritários e seu alinhamento com as 1997.

MINISTÉRIO DA CULTURA, GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA, LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À
CULTURA DO RIO DE JANEIRO, PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO E SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA APRESENTAM

7 — 20 JUN
EM TODO O BRASIL

variluxcinefrances.com
32 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

LIBERTAÇÃO CALCULADA

Na Arábia Saudita, a emancipação


feminina vem de cima para baixo
Empenhada na guerra no Iêmen e querendo empurrar para o Irã a carapuça de obscurantista, a Arábia Saudita redobra
os esforços para melhorar as condições das mulheres do reino. Entretanto, as reformas propostas ou realizadas são lentas,
frágeis e respondem apenas parcialmente às expectativas de mudanças
POR FLORENCE BEAUGÉ*, ENVIADA ESPECIAL

“E
stamos finalmente virando um As mulheres sauditas estão felizes 2017. As mulheres podem finalmente nua agarrada a seu passado, em nome
país normal”, exclama Najat M., com essas mudanças? É difícil saber. prescindir do endosso de seu mahrâm de costumes ancestrais? Não existe res-
estudante de Arquitetura em Não existe liberdade de expressão, e a (marido, pai, irmão ou até o filho ou posta única. Muito utilizadas (93% da
Riad. A opinião se ouve em toda sociedade (30 milhões de pessoas, um qualquer outro homem da família) pa- população têm acesso à internet), as re-
parte. No reino saudita, tantas vezes terço delas estrangeiras) é muito ato- ra fazer procedimentos administrati- des sociais – principalmente o Twitter,
criticado, entre outros motivos, pela mizada. As jovens parecem satisfeitas vos, trabalhar ou abrir uma empresa, mas também Instagram, Snapchat e
dureza da condição feminina, multi- – e 70% da população tem menos de 35 mas ainda precisam de autorização Facebook – funcionam como institutos
plicam-se os indícios de mudança. anos –, mas muitas mulheres dizem para tirar passaporte, viajar e, princi- de pesquisa, na falta de um melhor: em
Uma mulher nomeada para um cargo que estão cansadas de ver a Arábia palmente, casar, como na maioria dos 2016, segundo a Global Media Insight, a
de responsabilidade; uma sala de ci- Saudita ser julgada apenas pela condi- países muçulmanos. Arábia Saudita detinha o recorde mun-
nema reaberta após trinta anos de ção das mulheres. “Ter esse olhar su- dial de participação nessas platafor-
proibição, com público misto. O Exér- perior sobre nós me irrita muito. Nós mas. Mas esses espaços de liberdade
cito e a polícia passaram a recrutar queremos ditar nossa conduta, mas são vigiados, e a população desconfia.
mulheres, e as autoridades estudam somos um país de tribos e tradições. Embora se declare “Muitas pessoas aqui consideram as
abolir a proibição do convívio misto Temos o direito de evoluir em nosso “confiante no futuro”, um mudanças atuais anti-islâmicas. Agora,
em lugares públicos e o fechamento próprio ritmo!”, exclama a universitá- porém, outras vozes podem se expres-
fato a preocupa: essas
compulsório do comércio nos horários ria Hoda al-Helaissi, uma das trinta sar. Até então, não podíamos ouvi-las
de oração.1 mulheres integrantes da Majliss al- mudanças se devem a ou elas eram demonizadas”, explica
Toda semana cai um tabu. O que -Shura, assembleia consultiva encar- “uma só pessoa”, Hatoon al-Fassi.
mais fez barulho foi provavelmente o regada de apresentar propostas legis- o que não parece Embora se declare “confiante no
fim da proibição de a mulheres dirigi- lativas ao governo (seus 150 membros, futuro”, um fato a preocupa: essas mu-
“muito saudável”
rem: a partir de junho, elas poderão todos não eleitos, são nomeados pelo danças se devem a “uma só pessoa”, o
ser habilitadas sem necessitar do con- rei, e as mulheres passaram a ser acei- que não parece “muito saudável”. Ela
sentimento de seu “tutor” masculino. tas em 2013). faz alusão ao príncipe herdeiro, que
A medida foi anunciada em setembro, “Em dois anos conseguimos o que Embora Hatoon al-Fassi, feminista decide soberanamente – e muitas ve-
como parte do vasto programa de re- estávamos pedindo havia mais de trin- de longa data e professora de História zes brutalmente – as reformas que de-
formas econômicas e sociais imposto ta. As mudanças são enormes. É preci- das Mulheres da Universidade Rei vem ser feitas, sem dar a menor espe-
pelo príncipe herdeiro Mohammed so vir aqui ver para acreditar”, avalia Saud considere que a atmosfera atual é rança de abertura no plano político.
bin Salman (conhecido como “MBS”), Fawziah Albakr. A professora de Socio- “positiva” para as mulheres, cada dia é Ao contrário de seus vizinhos irania-
de 32 anos, filho do rei Salman, de 81. logia da Educação da Universidade Rei uma batalha. “Os homens estão sob nos, que elegem o presidente e o Parla-
Até o uso da abaya, longa vestimenta Saud é uma das 47 pioneiras que, em 6 pressão. Eles não sabem qual é sua mento, os sauditas e as sauditas não
preta com a qual as mulheres sauditas de novembro de 1990, pegaram no vo- margem de manobra”, diz. Ela tem a votam para definir seus deputados. A
se vestem da cabeça aos pés nos espa- lante e dirigiram pela capital, a fim de dimensão disso toda semana, quando monarquia concentra todos os pode-
ços públicos, está sendo questionado. chamar a atenção para a proibição de envia sua coluna ao jornal governista res, ou quase. O regime chegou a en-
Em fevereiro, um clérigo anunciou no dirigir, anacronismo único no mundo. Al-Riyad. Às vezes, a colunista precisa durecer, e o medo é palpável. Para es-
rádio que se vestir “modestamente” Mas, para as mulheres, a verdadeira re- esperar três semanas para ver seu arti- tabelecer seu poder, MBS não hesita
pode ser suficiente. Algumas semanas viravolta veio com certeza há dois anos, go publicado, porque o assunto é deli- em colocar seus adversários atrás das
depois, durante viagem oficial aos Es- com a retirada dos poderes do Comitê cado, e a direção – exclusivamente grades, sejam eles conservadores ou
tados Unidos, MBS declarou, em uma para Promoção da Virtude e Combate masculina – teme desagradar ao po- progressistas. Várias ondas de deten-
entrevista, que uma muçulmana sem ao Vício, cuja polícia religiosa – a Mout- der. A reação dos religiosos também é ções ocorreram entre junho e novem-
abaya é uma muçulmana “como as tawa – as perseguia em todos os luga- temida. Apesar de estarem sob contro- bro de 2017, às vezes por uma simples
outras”. Em um momento no qual o res públicos. “Isso mudou nossa vida. le do poder político desde o advento de mensagem de caráter político no Twit-
reino procura a todo custo se diferen- Antes, todas ficavam de olho para ver MBS, eles continuam sendo um par- ter, e muita gente ainda está chocada
ciar de seu rival iraniano, cultivando se a outra estava ‘andando na linha’. ceiro-chave da monarquia e poderiam com o caso Ritz-Carlton, nome do ho-
boas relações com o Ocidente, o status Nós nos sentíamos assediadas na rua. agir, se necessário.3 “Seguimos tatean- tel em Riad onde diversas personalida-
das mulheres é um elemento essencial Nossa vida melhorou muito”, acres- do, mas cada passo à frente é uma vitó- des ficaram presas.
da comunicação do príncipe herdeiro. centa Fawziah Albakr. ria”, diz Hatoon al-Fassi, antes de lan-
As maiores agências ocidentais (Publi- Para as mulheres mais instruídas, çar algumas frases contundentes BEDUÍNAS DIRIGEM HÁ TRINTA ANOS
cis, Image 7, Edile Consulting) foram o próximo objetivo é abolir a tutela contra “esses homens covardes que No popular souk de Swakah, no sul
chamadas para o resgate. Sua missão: masculina. Essa disposição da xaria, não tomam a iniciativa nem dizem o de Riad, as mulheres estão preocupa-
tentar melhorar a péssima imagem do em vigor no país, que trata as mulhe- que pensam”. das com as mudanças. Todas estão
reino no mundo e, de passagem, tam- res sauditas como menores de idade A maioria dos sauditas está pronta hermeticamente cobertas com aba-
bém a de Bin Salman.2 por toda a vida, foi aliviada apenas em para aceitar essas mudanças ou conti- yas, hijabs e niqabs pretos. Nenhuma
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33

fala seu verdadeiro nome. Aqui, a mu- Reema, prima de Nurah, lançou-se
dança é percebida como uma ameaça. na confecção e venda de abayas na in-
“Eu sou contra o comportamento das ternet. Modernas e coloridas, suas
mulheres e tudo o que tem havido nos criações parecem vestidos de prince-
últimos tempos”, diz uma mulher de sas ou de noivas. Muito rapidamente,
seus 60 anos, cujos olhos, único ele- graças às redes sociais, os pedidos
mento visível através do niqab, se en- cresceram. Muitas de suas amigas
chem de lágrimas. Ela vende roupas há também optaram pelo comércio on-li-
22 anos. “O trabalho para as mulheres ne, setor em franca expansão, espe-
não é contrário ao islã, mas todo o res- cialmente entre as mulheres. Outra
to vai contra a castidade que devemos vende pratos prontos, e outra, joias.
guardar.” Enquanto fala, ela olha furti- Outra, ainda, é maquiadora profissio-
vamente em torno de si e acrescenta nal. A maioria vai bem. Nos fins de se-
em voz alta: “Mas vida longa ao prínci- mana, elas se encontram em lugares
pe herdeiro!”. que recentemente se tornaram mistos,
A poucos passos dali, Nurah L., de como o Café Bateel, e descobrem o ros-
25 anos, de quem só podemos ver os to. É a oportunidade – raríssima – de
olhos maquiados e as unhas pintadas conhecer rapazes.
de branco, também se diz “contra o di- A 750 quilômetros de distância,

© Laura Erber
reito de dirigir” concedido às mulhe- mais a oeste, Taif quase faz Riad pare-
res. Seu marido garante seu desloca- cer uma cidade liberal. Meca está a
mento, pela manhã e à noite. “Nossa apenas 65 quilômetros dali. Mas, ao
vida é boa assim. Não somos ociden- contrário de Jidá, que está aberta ao
tais”, argumenta. Ela gosta de poder contato de peregrinos vindos do mun-
trabalhar: “Meu marido me deu per- Ambiciosas as sauditas são, e não táveis shopping centers, onde as mu- do todo, Taif, com 987 mil habitantes,
missão sem problemas. Eu levo dinhei- escondem isso. “Elas aproveitam to- lheres passeiam. permanece muito conservadora. Lá, a
ro para casa e não fico entediada”. das as oportunidades. São mais dinâ- Os Mansour, uma antiga família segregação dos sexos é rigorosa. Ne-
Não longe dali, no souk Hijab, as micas que os homens, como se tives- burguesa e rica, são bastante conser- nhum restaurante, nenhum café que-
reações das mulheres pouco diferem. sem uma vingança a realizar!”, vadores. “Eu desconfio das mudanças bra as regras. E o preto é onipresente...
Mas temos algumas surpresas. Diri- observa um jovem empresário. Entre atuais. ‘Eles’ querem que a gente vire “Aqui não se pode fazer nada. Há
gir? Ibtissam S. e Norr K., ambas com as meninas, 97% são escolarizadas. Dubai. Eu me apego a nossos valores e sempre um homem te controlando.
50 e poucos anos, desatam a rir sob o Na universidade, as mulheres são 60% não vou abrir mão do meu niqab”, diz Nunca nos deixam em paz!”, lamenta
niqab: “Nós dirigimos há trinta anos! da força de trabalho. Na realidade, a uma mulher de cerca de 50 anos. “Sou Salwa M., de 26 anos, estudante de
Entre os beduínos, as mulheres se sen- libertação – muito relativa – das mu- muçulmana, essa é minha identida- Ciências Islâmicas, alegre e divertida.
tem nesse direito. Aliás, como poderia lheres começou sob o reinado do rei de.” Dirigir? Elas são a favor, “desde “Eu tenho sorte, meu pai confia em
ser de outro jeito, longe de tudo?”. Elas Abdullah (2005-2015). Foi ele quem as que não nos obriguem!”. Para elas, o mim, mas não é assim com as minhas
vivem em aldeias ou acampamentos autorizou a trabalhar no comércio. importante é “ter escolha”, e isso em amigas. Toda vez que elas imploram
50 quilômetros ao norte da capital. Empregos normalmente modestos, de todas as áreas. Uma delas, que viveu ao tutor: ‘Me deixe sair’, a resposta é:
“Eu trabalho porque preciso de di- caixa e vendedora, mas que abriram o seis anos nos Estados Unidos, prefere ‘Não’, e muitas vezes elas apanham.”
nheiro. O trabalho é um dom de Deus. caminho para todas as áreas, com ex- manter o motorista: “É caro, mas me- Ela conta que muitas têm namorado.
O profeta, aliás, nos encorajou a isso”, ceção da magistratura – já que o wah- nos cansativo”. Como ela, milhares de Enquanto seus pais pensam que estão
declara uma viúva, mãe de oito filhos. abismo considera, assim como outras mulheres sauditas têm um motorista na aula, elas chamam um motorista
Sua amiga acrescenta: “Desde que não correntes no islã, que a função de juiz paquistanês, indiano ou bengali. Mão para deixá-las na casa de alguém. Em-
seja contra o islã e não convivamos é proibida para as mulheres pela xa- de obra muçulmana pronta para ser bora condenadas, as relações sexuais
com homens, podemos fazer o que ria. Ao mesmo tempo, Abdullah distri- extremamente explorada. E a tutela? antes do casamento são comuns. Em-
quisermos!”. Quatro mulheres confes- buiu bolsas de estudo no exterior para “A partir de certa idade, 21 anos, por bora o aborto seja estritamente proibi-
sam – com cautela –, em torno de uma centenas de milhares de jovens, 30% exemplo, devemos poder prescindir do, exceto no caso de risco de vida pa-
banca de roupas íntimas: “Se até agora deles mulheres. “Tudo isso contribuiu dela”, avaliam. As moças ouvem suas ra a mãe, qualquer mulher consegue
as mulheres eram proibidas de dirigir, para a abertura das mentes. Os jovens mães e tias, mas às vezes dão sua opi- uma pílula anticoncepcional na far-
era para protegê-las. O homem deve estão conectados ao mundo exterior nião. Estudantes, a maioria diz que mácia, mesmo sem receita médica.
assumir suas responsabilidades”, re- com as redes sociais”, ressalta a uni- quer “morar dois ou três anos no exte- Segundo Salwa, se as moças se ca-
pete uma delas. As outras aprovam versitária Hoda al-Helaissi. “Com a rior, mas depois voltar”. Todas preten- sam em Taif – sempre casamentos ar-
vigorosamente. crise econômica, não podemos mais dem trabalhar e se casar, “mas não an- ranjados –, é por despeito, “para conse-
viver com apenas um salário, e as mu- tes dos 30 anos, e sem ter mais de dois guir liberdade”. Casada e mãe, a mulher
EM TAIF, UMA SEGREGAÇÃO RIGOROSA lheres querem uma carreira. Muitas ou três filhos”. A abaya? “É prática e tem autoridade em casa. A educação
Jasmeen D. e Mariam N., estudan- vezes, elas são apoiadas pelo marido, elegante, como um casaco”, dizem. das crianças e as despesas são de sua
tes de Economia, trabalham meio pe- irmão ou pai.” Nurah lamenta não ter conseguido responsabilidade. Quanto à poligamia
ríodo como vendedoras no souk Hijab. Na verdade, tudo depende da famí- estudar Veterinária, curso ainda ina- (entre 8% e 10%), ela tem se tornado ra-
Elas passam o dia teclando no celular. lia, do ambiente, do lugar... Todo fim cessível às mulheres. Para compensar, ra na geração mais jovem, embora de
A segunda é noiva de um estudante de de semana, as mulheres da família estuda Ciências e, principalmente, vez em quando vozes se levantem para
Medicina que ela conheceu numa festa Mansour se reúnem para jantar com a monta a cavalo. Um dia, tem certeza, pleiteá-la em seu favor, a fim de “reme-
de casamento. Ele a viu de longe, quan- avó, sob uma gigantesca tenda beduí- representará seu país nos Jogos Olím- diar” o celibato das mulheres.
do ela tirou o niqab, e pediu sua mão a na plantada no jardim da casa da fa- picos. “Meu irmão me disse: ‘Você po- Quando não está na aula, Salwa
seus pais. “As mudanças atuais vão na mília. O barulho dos carros que atra- de competir, mas está fora de questão passa a vida em frente à televisão. Ela
direção certa. E, graças à permissão vancam Riad se ouve muito ao longe. A aparecer na TV ou falar com os jor- adora as novelas turcas e indianas. So-
para dirigir, em breve seremos autôno- capital (6 milhões de habitantes) é nais!’. E eu respondi: ‘É a minha vida. bre os homens sauditas, não tem ilu-
mas!”, diz sua amiga, sorrindo e fazen- uma cidade enorme e plana, construí- Cuide do que é da sua conta’.” E a desi- sões. “Eles não sabem o que é o amor.
do o V da vitória. No entanto, as moças da no deserto. Não há prédios residen- gualdade entre homens e mulheres na Só querem sexo...”
mantêm o princípio da tutela: “Senti- ciais, mas casas cor de areia que se es- Arábia Saudita? “Elas têm a ver com as Arranjados ou não, “quase metade
mo-nos protegidas”. O futuro? “Eu tendem ao infinito, avenidas ladeadas tradições, não com a religião”, avalia, dos casamentos hoje termina em di-
quero acima de tudo me sentir impor- por palmeiras robustas e empoeira- estabelecendo uma distinção clara en- vórcio”, diz Mohammed al-Amri. Re-
tante na sociedade!”, declara Mariam. das, arranha-céus futuristas e incon- tre os dois termos. centemente, o cientista social lançou
34 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

um alerta na imprensa, tratando desse cultos que não o islã é proibida na Ará-
problema “que traz sérias consequên- bia Saudita]. Nesse momento, um ra-
cias para a sociedade”. Khadija S., de 28 paz de 20 e poucos anos se levantou e O IMPERATIVO DA DIVERSIFICAÇÃO ECONÔMICA
anos, amiga de Salwa, é divorciada. O disse: ‘No fundo, seu filme fala sobre a
marido batia nela. Agora ela vive com o
irmão, que se tornou seu tutor. Ela tra-
aceitação do outro, e é disso que senti-
mos falta aqui’”, lembra.
P assar de uma economia rentista para
uma economia produtiva: esse é o ob-
jetivo do Visão 2030, plano de desenvolvi-
menos de 30 anos está desocupado.
Quase dois terços das mulheres esta-
riam em busca de emprego. Em feverei-
balha em um salão de cabeleireiro. “O Primeira guia turística do reino, mento promulgado pelo rei Mohammed ro, o departamento dos passaportes nos
que preocupa meu irmão é o olhar dos Abir Abusulayman apresenta Al-Balad bin Salman (MBS). Totalmente dependen- aeroportos e nas fronteiras recebeu 107
vizinhos. Aqui, a única coisa que im- como ninguém, embora os turistas não te dos hidrocarbonetos, a economia saudi- mil mulheres se candidatando a 140 car-
porta é o que as pessoas vão dizer!” estejam se acotovelando pelas ruas. Ela ta passa por dificuldades. Entre o fim de gos oferecidos com prioridade para elas.
Suas duas amigas têm saudade da épo- lamenta os “estereótipos” construídos 2014 e o início de 2015, o preço do pe- Elevar a participação das mulheres na
ca da polícia religiosa: “Pelo menos não sobre as sauditas, segundo ela, pela im- tróleo passou de US$ 100 o barril para população ativa para 30% até 2030 –
éramos assediadas na rua. Agora so- prensa ocidental. “Quando me dizem: menos de US$ 45. Resultado: o reino hoje em 15% (40% no resto do Golfo)
viu sua taxa de crescimento cair para – permitiria aumentar a renda familiar,
mos! Os homens nos perseguem para ‘Vocês finalmente serão livres, vão po-
1,4% em 2016, contra 7% dois anos melhorar o crescimento e substituir os
pegar nosso número de telefone!”. Elas der dirigir’, eu fico chocada! Sim, meu
antes. Em 2017, o país chegou a entrar 11 milhões de estrangeiros que ocupam
sonham ir embora para um país “onde país está evoluindo em etapas. Dez em recessão. o lugar dos sauditas no setor privado.
as mulheres têm direitos”. Em Taif, anos atrás, ninguém poderia imaginar Em 2015, as autoridades reagiram: “MBS tem o mérito da coerência. Ele
acham que ainda vão ter de aguardar que chegaríamos lá”. fim das subvenções, repetidos aumen- não fala de religião, mas de economia. A
“pelo menos mais uma geração”. Em 2006, é verdade, a publicação tos das tarifas públicas e introdução de mudança econômica só pode vir com
do romance Les Filles de Riyad [As mo- uma taxa sobre o valor agregado (TVA mudança social, e essa mudança preci-
REPRESSÃO NUNCA FOI TÃO FEROZ ças de Riad],4 de Rajaa Alsanea, causou – imposto sobre o consumo) de 5% a sa envolver a mão de obra feminina”, en-
Com sua orla, sua cidade velha – Al- escândalo. Sob a forma de blog, quatro partir de janeiro de 2018. Preocupada fatiza Stéphane Lacroix, pesquisador e
-Balad, classificada como patrimônio amigas contam sua vida e seus amo- em manter o contrato social que a liga à professor do Instituto de Estudos Políti-
mundial pela Organização das Nações res. Nada muito chocante, só o coti- população, a família real criou paralela- cos de Paris.
mente uma conta-cidadão. Assim, 11 Anunciada há anos, a “saudização”
Unidas para a Educação, a Ciência e a diano das mulheres limado pelas tra-
milhões de sauditas recebem um bene- passou a ser feita na marra. Os estran-
Cultura (Unesco) –, suas esculturas ao dições. Originalmente publicado no
fício mensal (entre US$ 80 e 240). O geiros e suas famílias pagam impostos
ar livre e seus restaurantes de todas as Líbano, o livro logo começou a circu- PIB por habitante está em US$ 21 mil cada vez mais pesados. Os imigrantes
nacionalidades, Jidá, com 4 milhões de lar discretamente no reino. Em 2015, por ano, enquanto nos Emirados Árabes paquistaneses e indianos têm maciça-
habitantes (sendo 840 mil estrangei- Deux femmes de Djeddah [Duas mu- Unidos é de US$ 37 mil e, no Catar, de mente deixado o país.
ros), cidade mercantil situada às mar- lheres de Jidá], da romancista e médi- US$ 61 mil. Investidores e empresários continuam
gens do Mar Vermelho e passagem ca Hanaa Hijazi,5 também abalou a so- Ao mesmo tempo, o Estado, até então traumatizados pelo caso Ritz-Carlton:
obrigatória para Meca, portanto sujeita ciedade, mas não foi censurado. No responsável por 70% dos empregos, bus- durante três meses, no último inverno, o
a inúmeras influências, é sem dúvida a romance, duas amigas, esmagadas pe- ca mais aceleradamente desencarregar- hotel de luxo de Riad foi transformado
cidade mais sedutora – e menos con- las proibições, acabam cometendo -se de certas responsabilidades, amplian- em um cárcere dourado para a elite eco-
servadora – da Arábia Saudita. Além suicídio. O livro foi lido e bem recebido do a atuação do setor privado. Para nômica e política do reino, pega no que
diversificar sua economia, a Arábia Saudi- foi anunciado como uma vasta campa-
disso, segundo a lenda, foi ali que Eva, no geral, “inclusive pelos homens”, diz
ta aposta nas minas (potássio, cobre, urâ- nha anticorrupção. Os detentos (entre
mãe da humanidade, foi enterrada. a autora. Muitas leitoras, porém, criti-
nio, ouro), no setor petroquímico, nas eles o bilionário Al-Walid ben Talal) fo-
Lá também as avenidas são des- caram o final trágico. “Eles queriam energias renováveis e no turismo. O reino ram libertados após um acordo financei-
proporcionais e o número de shopping outro fim para as duas heroínas, e isso espera passar dos 8 milhões de peregri- ro com as autoridades, ou absolvidos.
centers é inacreditável. Mas as mulhe- me confortou. Elas imaginaram, por- nos que chegam a Meca todo ano para A juventude e as classes populares
res são menos sufocadas do que em tanto, perspectivas para as mulheres.” 30 milhões até 2030 e, principalmente, aplaudiram essa operação “mãos lim-
qualquer outra parte do reino. As aba- Na possibilidade de dirigir, Lina deseja se abrir ao turismo não religioso. pas”, mas a alta burguesia de Riad e Jidá
yas muitas vezes são beges, azuis, cin- al-Maeena vê acima de tudo um sím- Sítios arqueológicos como Madain Saleh, a interpretou como uma chantagem do
za-pálido, enfeitadas com pérolas, bolo: “Dirigir nossa vida e – por que equivalente a Petra, na Jordânia, pode- príncipe herdeiro para forçar grandes
equipadas com zíperes... A vaidade é a não? –, um dia, o país!”, imagina. Na- riam se tornar destinos de primeira gran- fortunas a se juntarem a seus caros pro-
norma, e as cirurgias estéticas, muito da resiste a essa mulher de 40 e pou- deza. Ilhas do Mar Vermelho poderiam ser jetos. Balanço do caso: US$ 106 bi-
preparadas para receber turistas ociden- lhões “recuperados”, ao preço de uma
frequentes. A sociedade, dá para sen- cos anos, que acredita na emancipa-
tais. Por fim, o projeto Neom (US$ 500 crescente desconfiança dos investido-
tir, está em ebulição. Faz muito tempo ção por meio do esporte. Há doze
bilhões), no norte, planeja construir a ci- res, num momento em que mesmo a
que ali, mais que em outros lugares, os anos, ela criou a primeira equipe na- dade do futuro, equipada com todas as abertura do capital da gigante do petró-
sauditas encontraram na arte – cine- cional de basquete feminino, quando tecnologias mais avançadas. leo saudita Aramco – se isso acontecer
ma, pintura, literatura – um meio de o esporte era proibido para as mulhe- Oficialmente, o desemprego está em – não será suficiente para financiar to-
expressão ou evasão. res. Hoje, ela é membro da Assem- 12,8%. Um em cada três jovens com das as necessidades do reino. (F.B.)
Três meses antes da reabertura ofi- bleia Consultiva. Há um ano, o espor-
cial de um cinema em Riad, Mariam, te passou a ser obrigatório para as
filme de Faiza Ambah que celebra uma meninas nas escolas públicas. Aber-
adolescente francesa ansiosa para tura social ou emergência médica? jornalista de cerca de 40 anos. “Sim, eu *Florence Beaugé é jornalista.
usar o véu na escola, apesar da proibi- Segundo a Organização Mundial da tenho mais liberdade como mulher,
ção legal, já havia sido exibido em Jidá, Saúde (OMS), quase 70% das mulhe- mas nosso espaço de expressão de mo-
1 Vivian Nereim, “Saudi program calls for gender-mi-
no Arbab al-Heraf. Nesse espaço cul- res sauditas têm excesso de peso e do geral foi reduzido. Não tenho medo xing, no prayer closure” [Programa saudita estabe-
tural único, inaugurado em 2017 por 40% sofrem de obesidade. de andar na rua, mas tenho medo de lece mistura de gênero e fim do fechamento com-
um rapaz que voltou da Austrália, cer- O processo de modernização do falar com você de rosto descoberto. pulsório para oração], Bloomberg, Nova York, 4
maio 2018.
ca de sessenta jovens de ambos os se- país é irreversível? A entrada maciça Acho que a arbitrariedade hoje reina 2 Ler Gilbert Achcar, “Au Proche-Orient, la stratégie
xos assistiram ao filme. A diretora ad- de mulheres no mercado de trabalho é como nunca.” saoudienne dans l’impasse” [No Oriente Médio, a
mite ter ficado “chocada” com as um imperativo econômico. Nesse Aí estão os limites da aposta no fu- estratégia saudita sob impasse], Le Monde Diplo-
matique, mar. 2018.
reflexões dos jovens durante o debate campo, não tem volta. E o fato é que, turo. Seria a menor subordinação das 3 Ler Nabil Mouline, “Petits arrangements avec le
que se seguiu. “Eles ousaram falar so- nas declarações do príncipe herdeiro, mulheres a desculpa para um exercí- wahhabisme” [Pequenos arranjos com o wahabis-
bre sua vida para estranhos. ‘Meu na- não se fala em democratização. As cio de poder despótico? Ou uma refor- mo], Le Monde Diplomatique, jan. 2018.
4 Rajaa Alsanea, Les Filles de Riyad [As moças de
morado me deixou porque eu não usa- eleições municipais são as únicas do ma indispensável para um regime que Riad], Plon, Paris, 2007.
va o hijab’, contou uma adolescente. reino.6 “No exterior, MBS é apresenta- deseja se tornar palatável na cena in- 5 Hanaa Hijazi, Deux femmes de Djeddah [Duas
Outra contou a experiência inversa: o do como um jovem príncipe reforma- ternacional, a fim de manter seu posto mulheres de Jidá], L’Harmattan, Paris, 2017.
6 Nas eleições de 2015, abertas pela primeira vez
namorado a proibia de usar. Outra dis- dor que luta contra a corrupção. Mas a ao lado de Washington e Tel Aviv no às mulheres, catorze foram eleitas, entre 2.106
se: ‘Eu sou cristã’ [a prática de outros repressão nunca foi tão feroz”, diz uma caso de uma guerra contra o Irã? assentos.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 35

SUICÍDIO NA ADOLESCÊNCIA

A morte evitável
Detectar precocemente que uma pessoa está em risco de suicídio – ou seja,
quando ela apresenta ainda “somente” ideias suicidas, mas nenhum plano concreto
de executá-lo – é a principal “janela de oportunidade” para preveni-lo

© Lucia Brandão
POR MARIO LOUZÃ*

egundo a Organização Mundial dos e alto desempenho escolar pare- porta”, “a vida não vale a pena”. Nem soas com pensamentos suicidas se

S da Saúde, a cada quarenta se-


gundos morre uma pessoa por
suicídio, uma das principais
causas de mortalidade no mundo, es-
pecialmente entre os jovens. Outro da-
cem ter um impacto importante no ris-
co de suicídio entre adolescentes.
A adolescência é um período de
transformações significativas do pon-
to de vista biológico, psicológico e so-
sempre os sinais são claros; frequente-
mente o adolescente busca o isolamen-
to, reduz o contato com os familiares,
busca a privacidade de seu quarto e
substitui o contato com amigos e cole-
sentem constrangidas em falar sobre
isso, pois receiam ser estigmatizadas
por familiares ou amigos. Nesse con-
texto estão inseridas as campanhas do
Setembro Amarelo e mesmo a divulga-
do preocupante é o aumento significa- cial. O adolescente é particularmente gas “reais” por contatos “virtuais”. Esse ção do Centro de Valorização da Vida
tivo, cerca de 35% a 40%, das taxas de vulnerável às avaliações e aos julga- isolamento muitas vezes pode ser con- (CVV), que tem um papel importante
mortalidade por suicídio, especial- mentos de seus pares, algo que se mul- fundido com a “crise da adolescência”, no auxílio a pessoas com risco suicida.
mente na adolescência e idade adulta tiplicou com a internet e as mídias so- sendo relevado pelos familiares. Do mesmo modo que há sites que abor-
jovem nos últimos dez anos. ciais. O cyberbullying tornou-se um Em geral, familiares e amigos são dam o suicídio de modo negativo, “en-
Enquadram-se no conceito de sui- fator a mais de risco para o jovem; em os primeiros a perceber que a pessoa sinando” métodos e criando “jogos”
cídio três situações de risco progressi- poucos minutos, mensagens, fotos ou não está bem e tem pensamentos sui- que podem levar seus participantes à
vo: o pensamento suicida, a intenção vídeos “viralizam” e expõem o adoles- cidas. Nessa situação, devem conver- morte, estudos mostram que sites ou
suicida (quando já há planos mais ou cente mais fragilizado de forma devas- sar com ela e levá-la a um médico psi- fóruns que promovem a prevenção do
menos detalhados de como cometer o tadora. Muitos se veem sem saída, hu- quiatra para uma avaliação mais suicídio têm um papel importante no
suicídio) e o ato suicida em si (resul- milhados e expostos, e reagem com detalhada. O risco de suicídio é uma auxílio a pessoas em risco. Especial-
tando ou não em morte). Incluem-se um ato suicida. indicação formal para internação psi- mente os jovens procuram apoio e
também nesse conceito os atos de au- O suicídio é a morte evitável. Detec- quiátrica. No hospital psiquiátrico, a aconselhamento com maior frequên-
toferimento [self-harm], com ou sem tar precocemente que uma pessoa está pessoa é acompanhada 24 horas por cia entre seus pares do que com profis-
intenção suicida. em risco de suicídio – ou seja, quando dia, seus atos são monitorados e intro- sionais especializados.
Embora muitos fatores biológicos, ela apresenta ainda “somente” ideias duz-se o tratamento necessário para O suicídio é um problema médico-
emocionais e sociais possam influen- suicidas, mas nenhum plano concreto alívio do sofrimento psíquico. Em ca- -social complexo e uma grande preo-
ciar o risco de suicídio, o principal de- de executá-lo – é a principal “janela de sa é muito difícil conseguir vigiar a cupação na atualidade. É importante
les é a depressão. Depressão aqui deve oportunidade” para preveni-lo. Esse é pessoa o tempo todo; em contraparti- estar atento e antever essa possibilida-
ser entendida como algo muito dife- o momento ideal. Na situação já de da, é muito fácil o acesso a potenciais de diante de uma pessoa que apresen-
rente da tristeza normal. Trata-se de planejamento suicida, é importante métodos de suicídio, que pode ser co- te depressão e esboce pensamentos
um transtorno mental caracterizado estar atento aos indícios de que a pes- metido de forma abrupta, sem que ha- negativos, desesperança e outros. Agir
por tristeza profunda e contínua, difi- soa começa a procurar saber como co- ja tempo de evitá-lo. nesse momento pode ser a diferença
culdade de sentir prazer nas ativida- meter o suicídio, qual método usar. Ela Vivemos numa época de grande in- entre a vida e a morte.
des cotidianas, pensamento negativo, pode ir em busca de armas de fogo ou fluência das redes sociais na vida das
ansiedade e falta de esperança, além começa a estudar quais são os venenos pessoas. Muitos questionam sobre os *Mario Louzã é médico psiquiatra e psicana-
de sintomas físicos como insônia e di- ou os medicamentos mais perigosos. prós e contras de falar ou não sobre lista, doutor em Medicina pela Universidade
minuição do apetite e da libido. Nos Há nessa situação um aumento da im- suicídio. Alguns acham que isso enco- de Würzburg, Alemanha. CRMSP 34.330. Si-
casos graves, o pensamento negativo pulsividade da pessoa, em parte pelo raja o ato, outros dizem que é um meio te: <www.saudemental.net>.
e de culpa e a falta de esperança de- fato de que ela vê no suicídio a única de prevenção. A questão principal é a
sembocam no pensamento suicida; saída para si, o que a leva a ter “forças” forma como o assunto é tratado. Mui-
este pode evoluir para o planejamento para o ato. tas vezes a mídia aborda o tema com
Referências
e o ato em si. Alguns sinais de que a pessoa tem certo “glamour”, dando a impressão de
Além da depressão, fatores de risco pensamentos suicidas são: falta de es- algo parecido com um ato de heroísmo Gustavo Turecki e David A. Brent, “Suicide and suici-
para suicídio incluem: tentativas pré- perança, angústia, sentimentos de ver- ou de conquista, que fará os outros ad- dal behavior” [Suicídio e comportamento suicida],
Lancet, n.387, p.1227-1239, 2016.
vias de suicídio, ser do sexo masculino, gonha, humilhação e culpa, falta de mirarem a pessoa que se suicidou. Essa Keith Hawton, Kate E. A. Saunders e Rory C. O’Con-
condições desfavoráveis do ponto de perspectiva futura e sofrimento inten- abordagem evidentemente é negativa e nor, “Self-harm and suicide in adolescents” [Autoferi-
vista pessoal, familiar, social e econô- so (muitas vezes por algum fato mar- muitas vezes “incentiva” o suicídio (o mento e suicídio em adolescentes], Lancet, n.379,
p.2373-2382, 2012.
mico (separação dos pais, experiências cante da vida, recentemente aconteci- chamado “contágio social”, ou “efeito Jo Robinson et al., “Social media and suicide preven-
adversas na infância, como abuso físi- do). Eventualmente a pessoa verbaliza Werther”, em referência ao persona- tion: a systematic review” [Mídia social e prevenção de
co ou sexual, transtorno mental ou his- “gostaria de dormir e não acordar gem do romance Os sofrimentos do jo- suicídio: uma análise sistemática], Early Intervention in
Psychiatry, n.10, p.103-121, 2016.
tória de suicídio na família, bullying, mais”, “não vejo mais sentido em vi- vem Werther, de Johann Wolfgang von Magid Calixto Filho e Talita Zerbini, “Epidemiologia do
dificuldades interpessoais, baixa au- ver”, “a vida está muito difícil, insupor- Goethe). O tema deve ser tratado com suicídio no Brasil entre os anos de 2000 e 2010”, Saú-
toestima, impulsividade, abuso de ál- tável”, “sou um peso para as pessoas, um enfoque de prevenção, visando au- de, Ética & Justiça, v.21, n.2, p.45-51, 2016.
World Health Organization, “Suicide prevention” [Pre-
cool e drogas, entre outros). Estresse, não quero mais isso”, “quero me livrar xiliar o reconhecimento do risco de al- venção de suicídio]. Disponível em: <www.who.int/
competitividade e pressão por resulta- deste sofrimento todo”, “nada mais im- guém cometer suicídio. Muitas pes- mental_health/suicide-prevention/en/>.
36 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

ENTREVISTA

“Eu gozo com as músicas desse


disco”, afirma Elza Soares
Intitulado Deus é mulher, álbum mostra os desejos e anseios da intérprete carioca:
“A gente ainda esconde muito nossa cara, então esse trabalho é um pedido: venham, saiam, busquem, gritem”
POR GUILHERME HENRIQUE*

lza Soares, 87 anos, canta em cheio de respostas, como a própria de- demos falar mais, porque no passado de que faria algo importante no mun-

E busca da natureza que melhor


lhe caia. Uma que seja sua cara,
cuspida e escarrada, na qual a
verdade apareça garimpada até não
sobrar nada. Para dizer o que pensa e
finiu em um quarto de hotel na região
central de São Paulo. Desprendida de
qualquer amarra social e moral, Elza
Soares proclama a liberdade para en-
carar este tempo e os perigos deriva-
falávamos muito pouco. O negro se
pronunciava muito pouco. Até hoje,
nos shows que eu faço, fico me per-
guntando: “Cadê o negro, meu Deus?”.
É preciso que ele saia de casa, pelo
do. Você também tinha isso?
Lógico. Eu não tinha tanta espe-
rança. Trilhei um caminho bem dife-
rente do feito pelo Caetano. Mulher,
negra, pobre... Sempre sonhei muito,
fazer do Brasil seu lugar de fala mais dos dele. Como ela diz em uma de suas amor de Deus, e bote a sua cara. Faz tentando sair disso, buscando algo
uma vez, ela abandonou o caminho músicas: “Quero voz e [...] ar/ quero como o Cazuza disse: “Brasil, mostra a melhor, buscando Deus nos meus pe-
que a levou ao fim do mundo. O objeti- mesmo é incomodar”. tua cara”. A gente ainda esconde muito didos. Nunca esqueci de pedir que me
vo agora é consagrar as mil nações que nossa cara, então esse trabalho é um iluminasse, que me mostrasse qual
formam sua cara: “Deixem as mulhe- LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL pedido: por favor, venham, saiam, seria o caminho. Esse Deus que eu ti-
res e o povo gay em paz”, ela pede. Deus é mulher é uma continuação de busquem, gritem. nha era o meu pai. Meu pai sempre foi
A mulher que habita Elza Soares A mulher do fim do mundo, mas pa- o meu Deus, a vida toda. Perguntava:
não quer ser preservada em um corpo rece buscar um novo caminho para A canção “Dentro de cada um” mostra “Pai, como paro de carregar água?”,
só. Há uma súplica: “Não tranquem a falar do mundo, do futuro. Que cami- que mulheres diferentes estão prontas “como deixo de andar descalça?”, “co-
boca da nega”, como se a verborragia nho é esse? para ocupar os espaços, saindo das mo posso chegar em um lugar sem
despejada nas onze faixas do novo dis- ELZA SOARES – Tem que correr tanto, jaulas, das malas. Nossa sociedade es- que ninguém ria do meu cabelo, da
co fosse um guia. Se Deus é mulher, El- cara. É preciso correr muito. Não é que tá preparada para discutir e aceitar as minha cor?”. Perguntava muito ao
za é a filha primogênita, com linha- esse trabalho foi feito para dar conti- demandas dessas mulheres? meu pai, seu Avelino. Mas nunca dei-
gem finita. “Gostaria de ter mais Elzas, nuidade ao A mulher do fim do mundo. Mas a sociedade precisa estar pre- xei de ter esse sonho de ser grande. Eu
cantoras, buscando uma vida melhor, É um álbum que nós queríamos que parada. Se não estiver, a gente prepara. era grandiosa! Mesmo sem saber qual
comer melhor, amar melhor.” fosse mais claro, saindo daquela coisa Somos nós. Está dentro de cada um de era o caminho, tinha esperança em
Ao apresentar fragmentos de um dark, fechada, que foi o disco anterior. nós. Precisamos fazer, sem esperar por um mundo melhor. É o que eu digo:
mundo possível para ela e seus pares, a Ele foi importantíssimo, muito forte, ninguém. caminho de pobre e negro é difícil.
carioca deixa claro que sexo, política e questionando: “Será que o mundo vai Mas eu sempre soube que ia encontrar
religião se misturam. Sem ser doutrina- acabar?”. O Deus é mulher chega com Você costuma dizer que ser livre anti- o caminho para dizer: “Estou livre”.
da em nenhum dos temas, desnuda algumas respostas, mais iluminado, gamente era muito complicado, por
com franqueza os próprios desejos. sol. É isso que nós buscamos para as causa do machismo, do preconceito. Você sempre fala que acredita em
“Uma vontade comum/ na tua geogra- mulheres, para o mundo gay. O meu Você se considera livre hoje, ainda que Deus. Na música “Credo”, ressalta que
fia/ a linha dura em mim/ suor na pele trabalho é tudo isso. esses problemas continuem em nossa esse amor não cabe em nenhuma reli-
marrom/ o arrepio no pelo/ a veia da sociedade? gião e complementa: “Sai pra lá com
tua mão/ eu quero dar pra você”. A mú- Certa vez você disse que “tem gente Isso tudo está aí vivo, latente. Muita essa doutrinação”. Como a religião
sica, intitulada “Eu quero comer você”, que fala, mas não abre a boca”. Essa repressão. É muito estranho tudo isso. aparece em sua vida?
sugere uma mudança de paradigma. “O leveza ressaltada há pouco faz parte Vejo um mundo com muito medo. As Estou falando sobre isso ao Zeca
homem ditou a moda por tanto tempo... desse pensamento? pessoas estão medrosas, porque elas [Camargo], que está fazendo o meu li-
Antigamente era assim: ‘Hoje eu te que- Sim. Continuar falando, mas abrin- não sabem qual é o caminho certo. vro. Fui criada com grandes médicos,
ro e, se você não quiser, eu te bato’. E a do a boca, pelo amor de Deus. Quero Elas ficam nessa de “para qual lado eu os pais de santo. Pobre que não tinha
gente respondia: ‘Tá bem’”, comenta. ver as pessoas falando. Não se pode fa- vou?”. Eu digo que o momento é o se- médico, mas tinha os terreiros, suas er-
Os estímulos impregnados ao lon- lar com medo. Quando falamos com guinte: o caminho está aqui, você que vas, banhos, e que hoje as pessoas fi-
go do álbum, o 35º da carreira de Elza medo, deixamos a boca meio fechada, não está enxergando. Vamos nós. cam negando. Negam essa erva para
Soares, fazem seu grito ecoar de ma- sem certeza do que se está dizendo. É nós, brasileiros, enquanto ela é vendi-
neira contundente em um país “cala- por isso que eu digo: “O meu país é meu Isso de abrir os caminhos, interiori- da para o exterior. Essas ervas que eu
do e amedrontado”. O que Elza propõe lugar de fala” [“O que se cala”]. Uso a zando essa responsabilidade, é recor- usava quando criança e que hoje nin-
em 2018 vai além da música. “Nós es- minha voz para dizer o que cala, como rente em sua trajetória. Isso pesa em guém fala nada. Os pais de santo que
tamos em um momento em que pode- uma maneira de me expressar, gritar. algum momento? me criaram foram grandes médicos, e
mos falar mais, porque no passado fa- Não sei dizer. Está tudo dentro de eu não posso dizer que eles não exis-
lávamos muito pouco. O negro se Ainda sobre esse trecho, ele aparece nós, cara. Se você busca o certo, está tem. Eu sou a prova disso e essa é a mi-
pronunciava muito pouco. Até hoje, em “Exu nas escolas”, sobre quebrar a tranquilo. A gente que dificulta. Fi- nha religião.
nos shows que eu faço, fico me per- hegemonia dos discursos vencedores. camos no “será”. Esse “será”... Tira
guntando: ‘Cadê o negro, meu Deus?’. O lugar de fala é uma maneira de isso fora, porra! Não existe, bane es- Ainda sobre o tema, as religiões de
É preciso que ele saia de casa, pelo romper com isso, trazendo uma pers- se tal de “será”. matriz africana ainda sofrem com
amor de Deus, e bote a sua cara”, diz. pectiva dos negros, das mulheres? muito preconceito, não?
Em entrevista ao Le Monde Diplo- Lógico, a intenção é essa. Dar essa No livro Verdade tropical, Caetano E elas foram as primeiras, meu
matique Brasil, a cantora despiu as ca- abertura aos negros, às mulheres. Nós Veloso afirma que ele, desde a infân- bem. A maioria do povo brasileiro está
madas de um disco leve, ensolarado e estamos em um momento em que po- cia, tem um sentimento de grandeza, vivo por causa delas.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 37

não é nosso. Sei lá, cara, eu queria um


mundo livre. Será que custa muito?
Olha aí o “será”... Vai demorar muito
para termos um mundo livre?

Ainda sobre nosso país, você diz que o


Brasil lhe deve muito...
Deve muito. Não só a mim, mas ao
seu Garrincha, à Elza. Mas estamos
recuperando.

O que gostaria de receber do Brasil?


Mais liberdade para o povo. Para
mim, não sei. Um país mais livre, leve,
para todo mundo. Não adianta só a
minha felicidade. Todo mundo precisa
ser feliz. Não adianta ter uma mesa
farta e saber que lá fora tem gente pas-
sando fome. Vi esta frase hoje e gostei:

© Cristiano Navarro
“Menos dízimo e mais cesta básica”.
Deus não quer dinheiro.

Sua música seria diferente se vivêsse-


mos em outra sociedade?
Acredito que sim, cara. Acho que é
Aproveitando que falamos do passa- la a todo momento. De onde veio essa mundo quanto no Deus é mulher, a isso que eu busco. E gostaria de ter
do, certa vez vi uma declaração sua consciência? sexualidade aparece com muita for- mais Elzas, cantoras, buscando isso
dizendo que ouvia muita música nor- Cara, você não precisa dizer “eu ça, em músicas como “Pra fuder” e também. Mais gente falando, gritan-
te-americana no rádio. Nós ainda vi- sou uma estrela”. Você é um ser huma- “Eu quero comer você”... do, porque eu não sou a única a querer
vemos isso? no, gente, porra. Não é por aí. Quero É isso mesmo. As mulheres vão di- isso. Uma vida melhor, comer melhor,
Cara, eu até agradeço, porque eu ser a essência, a verdade. Não quero zer: “Quem quer comer você sou eu”. amar melhor.
vejo negro americano diferente de ser uma mentira. “Eu estou falando Pá, lindo!
nós. Quando a escravidão acabou lá, porque sou a Elza Soares.” Não, estou Qual é sua avaliação da atual música
eles ficaram com um pedacinho de falando porque sou um ser humano, Mas o homem precisa saber ler, não é? popular brasileira?
terra, um boi, podendo plantar e co- uma mulher negra. Não preciso ser Meu amor, o homem ditou a moda Ela precisa crescer mais. Dizem
mer. Os negros dos Estados Unidos uma grande estrela, mas um ser hu- por tanto tempo... Antigamente era: que um bom país é um país de boas
fizeram aquele país forte, musical- mano respeitado. Só isso que eu quero. “Hoje eu te quero e, se você não qui- músicas. Acho que devemos pensar
mente inclusive. Nós deixamos a es- Tenho muito cuidado com isso de “oh, ser, eu te bato”. “Não diz que está com nisso. Vamos fazer nosso país grande,
cravidão sem recurso nenhum, sem estrela!”, “oh, magnífica!”. Não gosto. dor de cabeça, meu bem, porque eu com boa música? Estão acordando e se
terra, trabalho, o último a ser liberta- quero comer você”, e a gente respon- empenhando nisso também. Letras
do, e mesmo assim ainda sentíamos o Recentemente você disse que tem visto o dia: “Tá bem”. que ganhem o exterior. Lá fora tam-
chicote atrás. Não tivemos a chance povo brasileiro calado, submisso... bém tem porcaria, tá? Mas precisamos
de ter grandes músicas. Na minha Completamente. Calado, ame- Seus desejos físicos aparecem nessas engrandecer nossa pátria.
época ouviam-se as serestas e a músi- drontado. Estamos passando por um canções?
ca americana. Até que apareceram momento de ódio, o que é muito triste. Completamente. Eu gozo nessas Tem um trecho de “Olho aberto” que
Tom Jobim e outros compositores, Um país desse, tão lindo, claro, ensola- músicas. diz: “Cada um inventa a natureza que
que foram banalizando a MPB. Era rado, com um povo tão bonito. Que so- melhor lhe caia”. Qual é a sua?
muito difícil a canção brasileira tocar fre, mas é lindo. De repente, esse povo Sobre Deus é mulher enquanto ál- Preciso inventar a minha natureza.
em outros lugares do mundo. Ainda está ficando assustado, coagido. Pelo bum, como foi sua participação? “Ora, cara, não me venha com esse pa-
hoje não temos portões abertos para amor de Deus, gente, não se entristeça Você acompanhou tudo de perto ou po sobre a natureza”. Muito bom, não?
nossa música no exterior. tanto, esquece o ódio e vamos partir deixou que os músicos trabalhas- A gente inventa. Acho que a minha na-
para o amor. Já atravessei momentos sem livremente? tureza é essa de brigar. Não digo bri-
Há um show seu recente, em Buenos do Brasil, da ditadura, por exemplo, Eles ficaram livres na criação. Re- gar, mas reivindicar. De buscar, pedir
Aires, que ficou bem famoso. Como é a quando tive que fugir com o Garrin- cebemos sessenta músicas e escolhe- socorro. Não peço só para mim, mas
receptividade de seu trabalho no exte- cha, ir embora, porque me expulsa- mos onze. Olha a dificuldade! A única para nós. Deixe o povo gay em paz, as
rior? Sempre foi boa ou mudou nos úl- ram. Mas passou e eu estou aqui, e es- coisa que eu pedi nesse álbum foi a mulheres em paz.
timos anos? pero nunca mais sair do país. presença de mais mulheres. No traba-
Comecei minha carreira em Bue- lho anterior, não tivemos muitas com- Você falou de liberdade, e há sempre
nos Aires, depois daquela coisa toda Algo te dá medo ou receio no Brasil de posições femininas. O [produtor] Gui- uma catarse em seus shows, com pes-
com o Ary Barroso. Tive a felicidade de hoje? lherme Kastrup foi a minha casa, soas gritando. Por que isso acontece?
cantar com o [Astor] Piazzolla, por Medo, não. Não tenho medo de na- colocamos todas as músicas no chão e É só darmos espaço para o que está
exemplo. Lá que surgiu a Elza Soares da. Receio, sim. Tenho receio do povo escolhemos. Veio a Tulipa, a Maíra em nós. Vamos supor: se eu quiser pu-
mesmo. A minha volta foi triunfal. se calar, não mostrar a força que tem, Portugal, lindas mulheres. lar da janela, o que você vai fazer? Serei
Passei pelo mesmo teatro onde cantei, porque temos uma força muito gran- a louca, claro. Mas eu não quero isso,
lembrei de mim garotinha, no palco de. Neste momento de medo, de se Recentemente, vi um comentário seu quero ficar aqui dentro. Eu quero isso.
grande, imenso. Foi muito bonito re- questionar o que fazer, o povo não po- afirmando que muitas mulheres têm O querer, a força, está dentro de nós.
ver tudo isso. de se recolher. É agora que eu preciso posições machistas, ainda que não Na música “Credo”, eu digo: “Não que-
gritar, impedir que fechem a minha percebam. Sua música tem esse papel ro o medo me dando sermão”. Não é
Elza, percebo que sempre há um cui- boca. Não tranquem a boca da nega. O de alerta? você que vai dizer o que posso ou não
dado para se autodenominar uma es- meu país é o meu lugar de fala. Claro, para que elas saiam disso. fazer. Eu sei e pronto.
trela. Em outra oportunidade, você Estamos brigando contra isso. É uma
afirmou que é preciso polir essa estre- Elza, tanto no A mulher do fim do maneira de dizer que esse caminho *Guilherme Henrique é jornalista.
38 Le Monde Diplomatique Brasil JUNHO 2018

MISCELÂNEA

livro filme internet


NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Sites e projetos que merecem o seu tempo

DE OLHO NOS RURALISTAS


“O agro não é pop. O agro não é tudo.” Assim co-
meça o vídeo da campanha de assinaturas dos
MEU CRESPO jornalistas que acompanham a bancada ruralista
É DE RAINHA no Brasil para seus trabalhos em 2018/2019.
bell hooks, Boitatá Observatório sobre o agronegócio no Brasil, o
projeto depende da contribuição dos leitores para
se manter no ar. Uma das recompensas para os

H á muitos motivos para um livro existir: con-


tar histórias, dizer o indizível e apresentar
mundos distantes. No caso dos infantis, um mo-
OPERAÇÕES DE GARANTIA
DA LEI E DA ORDEM
assinantes será um e-book sobre os retrocessos
do governo Temer em relação à questão agrá-
ria. O livro mostrará os tentáculos da bancada
tivo extra é permitido: ajudar a crescer. Por isso Julia Murat, Esquina Filmes ruralista no Legislativo e no Executivo. Em 2017,
é que muitos deles têm prazo de validade que o site descobriu que a Frente Parlamentar da
nunca termina e encantam leitores do berço até Agropecuária compôs 50% dos votos do impe-
o fim da vida. Porque “nascer é muito comprido”,
como dizia Murilo Mendes.
A teórica feminista e ativista norte-americana
O filme de Julia Murat, codirigido por Miguel
Ramos e produzido pela Esquina Filmes, foi
construído na ilha de montagem com imagens
achment e 51% dos votos para manter Temer.
<https://deolhonosruralistas.com.br>

bell hooks (a grafia é assim mesmo, em minús- de arquivo veiculadas tanto pela mídia inde- ONDE ESTÁ MEU CELULAR?
culas, por opção da autora) não pensou que um pendente quanto por grandes meios de comu- Um curta-metragem de 20 minutos, feito pelo
dia escreveria um livro infantil até se deparar nicação, em particular a Rede Globo. O foco é aluno holandês Antony van der Meer como pro-
com este motivo: depois de presenciar um ges- junho de 2013 e seus desdobramentos, e como jeto de graduação, tem mais de 7 milhões de vi-
to de racismo dentro da escola, ela precisava a mídia ajudou a construir justificativas para a sualizações no YouTube. Isso porque ele deixou
ajudar as crianças a crescer. A crescer saben- repressão brutal contra as manifestações e os seu celular ser roubado depois de ter instalado
do se defender de quem diz que cabelo afro protestos populares daquele momento. um programa que não poderia ser removido e
é “ruim” – mesmo quando esse alguém é sua Em janeiro deste ano, Operações foi se- enviava para ele imagens da câmera, além de
professora. A crescer em um mundo sem repre- lecionado para a Mostra de Cinema de Tira- outras informações, como a localização do apa-
sentatividade. Surgiu assim Happy to be nappy, dentes, cujo tema da curadoria foi o chamado relho. Assim, ele acompanha a vida do recepta-
lançado originalmente em 1999 e que chega ao “cinema urgente” – filmes que retratam temas dor, do ponto de vista de um espião dentro do
mercado literário pelas mãos da Boitatá, com sociais candentes e na ordem do dia, em ple- celular, descobre que este vai parar nas mãos
o título Meu crespo é de rainha, ilustrado por no calor dos acontecimentos. Se por um lado de um imigrante ilegal e levanta várias questões
Chris Raschka e traduzido por Nina Rizzi. os acontecimentos em questão não parecem éticas, como denunciá-lo ou não, o que levaria
Escrito em forma de versos rimados, o livro é tão próximos e já foram exaustivamente de- provavelmente à sua deportação.
um poema que celebra a beleza das estéticas batidos, por outro Operações refresca e traz <http://bit.do/vandermeer>
negras. Dos cachos, birotes e coquinhos que caminhos de reflexão sobre um tema funda-
enfeitam a cabeça das meninas, mesmo que mental em ano de eleição: como a construção MAPA DA EXPULSÃO DE
não apareçam nas capas das revistas vendendo da notícia se torna um poder de fato na deter- FAMÍLIAS DE SUAS CASAS
o padrão a ser seguido; versos que inspiram re- minação da opinião pública e na criminaliza- Desde 2017, ao menos 14 mil famílias foram
presentatividade. É lírico, é poético, mas é tam- ção de movimentos sociais. Esse é um grande removidas de sua moradia na Região Metro-
bém absolutamente político, afinal, em um país mérito do documentário. politana de São Paulo. Após a saída forçada, e
em que crianças negras têm 2,88 vezes mais Por meio da análise de discursos publicados mesmo quando recebem por alguns meses o
chance de sofrer homicídio do que brancas (se- em diversas fontes – mídia tradicional, mídia chamado bolsa-aluguel que o governo entrega,
gundo o Índice de Homicídios na Adolescência, livre, redes sociais e canais de internet – são de R$ 400 por família, a única saída tem sido
do Unicef, 3,65 em cada mil adolescentes que narrados sete eventos, desde o surgimento das viver em favelas ou novas ocupações, uma vez
completam 12 anos morrem vítima de homicídio manifestações de junho de 2013 até a prisão que a verba não é suficiente para alugar mora-
antes de chegar aos 19), afirmar a liberdade de preventiva de 23 pessoas. Essas prisões foram dias pelo valor de mercado. A política de desalo-
ser é um gesto fundamental, urgente de come- acompanhadas de repressão brutal à manifes- jamento, assim, tem provocado mais ocupações.
çar cedo. Pesquisas não faltam para nos mos- tação ocorrida no fim da Copa do Mundo, em O Observatório de Remoções da Faculdade de
trar qual é a cor e o gênero das maiores vítimas 2014, com a utilização de um aparato militar, Arquitetura e Urbanismo da USP fez um mapa
de violência no Brasil, seja ela física, emocional policial, judicial e midiático inédito. colaborativo em que mostra a situação de cada
ou simbólica. Sorte das crianças quando conhe- O filme está disponível na plataforma Tatura- remoção ocorrida na cidade. Uma das mais re-
cem livros que oferecem caminhos de se reco- na Mobilização Social para qualquer pessoa que centes foi na região da Luz – e há registros de
nhecer, afirmar e subverter essa realidade. queira organizar uma exibição coletiva e gratui- que pelo menos uma família expulsa de lá foi
Como diz Ana Paula Xongani na contraca- ta em seu espaço – uma escola, universidade, morar na ocupação do edifício que, incendiado,
pa da edição, um livro pode ser muitas coisas, centro acadêmico, ambiente de trabalho, centro desabou no dia 1º de maio no centro da cidade.
inclusive ferramenta. “Com este livro em mãos, cultural, cineclube. Mais informação: <http:// <www.observatorioderemocoes.fau.usp.br/ma-
nossas crianças terão – muito mais cedo que taturanamobi.com.br/film/operacoes-de-ga- pa-denuncias/>
as da minha geração – mais ferramentas para rantia-da-lei-e-da-ordem>.
reverter o processo histórico de invisibilidade.” [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
[Livia Chede Almendary] Sócia fundadora da professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
[Renata Penzani] Jornalista, escritora e pes- Taturana Mobilização Social e mestranda em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
quisadora do livro para a infância. Antropologia na PUC-SP. torando em Design na FAU-USP.
JUNHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE
BRASIL

Nossos sonhos não cabem nas vossas urnas diplomatique


Que título fantástico! Ele é uma chave interpretativa Ano 11 – Número 131 – Junho 2018
do atual momento político. Parabéns pela escolha. www.diplomatique.org.br

Ayla Kataoka
DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Entre intenção e gesto há, de fato, um profundo abis- PARIS, LONDRES E BERLIM
2 Capachos europeus
Silvio Caccia Bava
Diretores
mo. E, como sempre, estamos a transitar no mero Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Por Serge Halimi
nível das constatações. O problema crucial, ou me- Rubens Naves

lhor, o grande desafio que se impõe, para o estabele- EDITORIAL Editor


cimento de todas essas realidades aqui pretendidas, 3 Enfrentar a barbárie Luís Brasilino

por processos de transformação da forma de pensar Por Silvio Caccia Bava Editor-web
e estar no mundo, é exatamente o de como fazê-lo, Cristiano Navarro
CAPA
como engendrá-lo, em um mundo de tantas com- 4 O fracasso da agenda econômica
Editores de Arte
plexidades, de uma espécie de visão individualista Adriana Fernandes e Daniel Kondo
Por Pedro Rossi e Guilherme Mello
que se sobrepõe (do tipo salve-se quem puder, por- O “teto” não pode cair sobre nossa cabeça Estagiária
que não há botes para todos), de controle quase ab- Por Grazielle David Taís Ilhéu

soluto do poder econômico instalado e consolidado, Democracia atrofiada X mercado Revisão


de grande dependência da lógica de funcionamento financeiro hipertrofiado Lara Milani e Maitê Ribeiro

do mercado, diga-se, do consumo em grande escala, Por Carlos Eduardo Santos Pinho
Gestão Administrativa e Financeira
das desilusões políticas acumuladas e por aí poder- Arlete Martins
DITADURA
-se-ia aprofundar, aprofundar e, infelizmente, esta- 10 O ovo da serpente Assinaturas
ríamos no mesmo ponto: o de uma certa inércia no Por Lúcio Kowarick Viviane Alves

que se refere ao início desta longa caminhada. Não Tradutores desta edição
se trata exatamente de uma descrença, mas de algo UM PROJETO DE GRILAGEM Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,

ainda não totalmente compreendido, que a história


11 Camponeses moçambicanos derrotam o agronegócio Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Por Stefano Liberti, enviado especial
está aí a nos mostrar, talvez sem grandes chances de Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
prosperar neste embate tão desigual, como em nos- LÓPEZ OBRADOR CONTRA A “MÁFIA DO PODER” Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
sa vida concreta, diária, cotidiana, com inserções 14 México: a tentação de ter esperança Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
diferenciadas, visões diferenciadas sobre a mesma e Por Renaud Lambert Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
única realidade. Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
DISCRIMINAÇÃO POSITIVA PARA OS RICOS Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
Roberto Melo 16 Como papai me colocou em Harvard
Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.

Por Richard D. Kahlenberg Apoiadores da campanha de financiamento coletivo


Capa Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino,
Parabéns, mais uma vez, pela capa, e certamente a NACIONALISMO DEMOGRÁFICO NA HUNGRIA Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini

matéria será também primorosa. 18 O medo de desaparecer Assessoria Jurídica


Evandro Carvalho Por Corentin Léotard e Ludovic Lepeltier-Kutasi Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

Escritório Comercial Brasília


SEM AUTOCRÍTICA
Revista maravilhosa! Sempre uso quando posso as 20 Para os socialistas franceses,
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
matérias em minhas aulas. Mais uma capa belíssima! o fracasso é sempre culpa dos outros
Vinicius Caverna Por Serge Halimi Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria com o
Instituto Pólis.
Tem distopia maior do que essa? AUTODISSOLUÇÃO DO ETA,
Rafael Ramos
22 SURDEZ DO GOVERNO ESPANHOL Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
No País Basco, a luta pela paz Tel.: 55 11 2174-2005
Por Laurent Perpigna Iban diplomatique@diplomatique.org.br
Genial, como sempre. www.diplomatique.org.br
Marco Borges Papp A UCRÂNIA DISTANTE DO FERVOR PÓS-REVOLUCIONÁRIO
24 A reforma policial de Kiev
Assinaturas
assinaturas@diplomatique.org.br
Marcha dos entorpecidos pelo vírus midiático. Por Sébastien Gobert Tel.: 55 11 2174-2015

Gilberto Lima Impressão


MORADIA
26 Uma cidade que transforma migrantes em sem-teto
Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Democracia e barbárie Por Diana Thomaz Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
Quando se tenta tirar a venda dos olhos da ignorân-
Distribuição nacional
cia, a pessoa é chamada de canalha. O Brasil é for- SÚBITO ENTENDIMENTO ENTRE AS COREIAS
mado por uma população perversa que pede a volta
28 O céu de repente volta a brilhar
DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
Por Sung Il-Kwon e Martine Bulard Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
da ditadura militar, que odeia qualquer movimento
que busque melhorias para os desprivilegiados. LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
DESPREZO PELO DIREITO INTERNACIONAL
Auxiliadora Farias 30 Irã: Trump dita as regras Fundador
Hubert BEUVE-MÉRY
Por Ibrahim Warde
Lindo comentário, Marcelo Freixo! O que incomo- Presidente, Diretor da Publicação
da os analfabetos políticos é a inteligência e os co- LIBERTAÇÃO CALCULADA Serge HALIMI

nhecimentos que você tem.


32 Na Arábia Saudita, a emancipação feminina
Redator-Chefe
vem de cima para baixo Philippe DESCAMPS
Alice Monteiro
Por Florence Beaugé, enviada especial
Diretora de Relações e das
Edições Internacionais
SUICÍDIO NA ADOLESCÊNCIA
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas 35 A morte evitável
Anne-Cécile ROBERT
críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, Por Mario Louzã Le Monde diplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
se necessário, resumidas para a publicação. secretariat@monde-diplomatique.fr
ENTREVISTA
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus 36 “Eu gozo com as músicas desse disco”, afirma Elza Soares
www.monde-diplomatique.fr

autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação


Por Guilherme Henrique Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
do periódico.
edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5
eletrônicas.
MISCELÂNEA
Capa: © Alpino
38 ISSN: 1981-7525
Como um país mais justo
traz melhores resultados para
os negócios?

Isso é o que demonstramos nessa trajetória de


20 anos de diálogos com empresas, especialistas
e lideranças. Formamos uma rede que busca soluções
para os desaios de uma economia que demanda para
além do crescimento e tecnologia, mudanças radicais para
um desenvolvimento inclusivo e sustentável.

Com edições no Rio de Janeiro, São Paulo e Belém, as Conferências


Ethos compartilham as oportunidades para as empresas e para uma
sociedade que enfrenta os desaios de uma era de transformações profundas.

Estamos diante de uma sequência de importantes mudanças para a inclusão, integridade


e diversidade e quando a gente compartilha, faz toda a diferença! É nisso que acreditamos.
É essa a nossa jornada.

Rio de Janeiro São Paulo Belém do Pará


12 de junho 25 e 26 de setembro 9 de novembro

Acesse: www.conferenciaethos.org Fale com a gente: 11 3897.2400 Realização

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