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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Social e Institucional

Professor Responsável: LUIS ARTUR COSTA


Disciplina: PSICOLOGIA SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS

Aluno: Rael Lopes Alves

Trabalho Final de Disciplina

Ano: 2016/01
Nunca pensei que um conselho dito no início do estágio seria de
extrema importância para o transcurso deste relato. “– Comprem uma
agenda!”, exclamou a supervisora, como que antevendo os acontecimentos
que seguiriam. “Com a aparição do alfabeto, da caligrafia, e por fim da
impressão, o tempo torna-se cada vez mais linear e histórico.” (PELBART,
1998, P. 61). Sendo assim, organizar o tempo é uma tarefa, ou melhor, uma
obrigação na modernidade.
Minhas atividades se desenvolvem na Unidade Básica de Saúde Santa
Cecília, mais conhecida como UBS Santa Cecília. Voltadas para a atenção
básica em saúde, as UBS’s possuem em seu quadro conformativo os médicos
de saúde da família e pediatras, enfermeiros, técnicos de enfermagem,
nutricionistas, a assistente social e os agentes comunitários; profissionais
esses que constituem a equipe de Estratégia de Saúde da Família (ESF).

Na situação específica do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil,


as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) funcionam como
equipes de referência interdisciplinares, atuando com uma
responsabilidade sanitária que inclui o cuidado longitudinal, além do
atendimento especializado que realizam concomitantemente.
(CHIAVERINI et al., p.14).

O psicólogo não está previsto na formação da equipe de ESF, sendo


uma das principais tarefas a ser realizada durante o estágio procurar
cartografar quais seriam as atividades em que o olhar psi poderia contribuir
dentro de uma unidade de atenção básica em saúde, ou seja, “no sentido em
que a cartografia é componente integrante do processo de territorialização”.
(MARLON, 2015, p.60). Foi com esse objetivo que eu e mais dois estagiários
de psicologia iniciamos nossas atividades no inicio do ano.
A UBS Santa Cecília, dentro da lógica territorial em que se estrutura a
atenção básica, pertence ao Distrito Central da cidade de Porto Alegre, sendo
responsável por um amplo território que vai desde as redondezas do Hospital
de Clínicas, no bairro Santa Cecília, até as áreas em bairros mais distantes,
como Petrópolis, Santana, etc.

A nova lógica assistencial que nascia com o SUS propunha um


conceito mais abrangente de saúde, que engloba fatores
condicionantes do meio físico (geográfico, territorial, saneamento
básico, alimentação e habitação), do meio socioeconômico e cultural
(renda, educação, profissão), assim como oportuniza o acesso aos
serviços prestados, visando à promoção, à proteção e à recuperação
da saúde. É organizado a partir de uma rede de serviços
regionalizados, hierarquizados e descentralizados com direção única
de gestão em cada esfera de governo, municipal, estadual e federal,
contando ainda com o controle e a participação da população.
(Ministério da Saúde, 2013, p.438).

Essa distribuição territorial dos serviços de saúde serve tanto para


assegurar uma maior capacidade de atendimento da população, conforme
preconiza o conceito de universalidade do SUS, como também para pensar a
lógica de controle e segurança.

[...] para asegurar concretamente esa seguridad, es necesario


recurrir, por ejemplo – y es solo un ejemplo -, a toda una serie de
técnicas de vigilancia, vigilancia de los individuos, diagnóstico de lo
que estos son, clasificación de su estructura mental, de su patología
propia, etc., todo un conjunto que prolifera bajo los mecanismos de
seguridad y para hacerlos funcionar. (FOUCAULT, 2006, p.23).

A UBS divide essas áreas conforme equipes de saúde, sendo que na


Santa Cecília existem atualmente quatro equipes responsáveis por atender os
usuários do território. Por simples conveniência de horários, eu e meus colegas
escolhemos uma das equipes para atuar, sendo a minha a equipe 1. Eis que a
agenda começou a ter a sua primeira serventia: ajudar no registro de horários
de reunião de equipe, matriciamento, grupos, supervisões, reunião do conselho
local, distrital, municipal, número da sala, número da rua, do prédio, dia da
semana, período do mês, tudo que era necessário para esquadrinhar um
tempo, enquadrar-se a uma lógica de trabalho serializada e linear.
Entretanto, prontamente descobri que tantos horários, locais e pessoas
combinavam-se de maneiras pouco ortodoxas. Vou iniciar meu relato pela
reunião de equipe, não que esta tenha sido realmente o começo de tudo o que
se seguiu, mas porque foi a atividade em que a trajetória de Roberto se cruzou
com a minha.

A Reunião de Equipe

As reuniões da equipe 1 ocorrem todas as quintas-feiras, das 13h às


14h, o que me faz, por exemplo, chegar atrasado à aula de Políticas Públicas
na faculdade. Das reuniões, além de mim, é claro, participam toda equipe de
ESF, o médico de SF responsável, aqui chamado de “J.”; a enfermeira chefe da
equipe, “M.”; a enfermeira, “S.”; a estagiária de enfermagem, “Z”.; a
nutricionista “MI.” e sua equipe de estagiários; as técnicas de enfermagem, “F.”
e “S.”; os médicos residentes de primeiro ano designados, como “A.” e “R.”; a
residente de segundo ano, “P.”, e de terceiro ano, “MA.”; a assistente social,
“JO.”; os agentes comunitários “AA.”, “JJ.”, “C.”, e “MG”.
Cada reunião normalmente inicia com a designação de algumas pautas,
normalmente relacionadas às ações que a equipe realizou ao longo da semana
que se passou, como visitas domiciliares (VD) da equipe médica, de
enfermagem ou da equipe de nutrição, ações dos agentes comunitários, e
discussão de casos quando necessário.
Na semana em que iniciou a campanha de vacinação contra a gripe
H1N1 no Estado, a equipe estava totalmente imersa nessa atividade, nas
discussões que envolviam o público-alvo, a quantidade de vacinas, o horário de
atendimento, os usuários prioritários, etc., ou seja, discussões que reafirmavam
a segurança como uma forma de controle sobre o território.

El problema fundamental va a ser saber cuántas personas son


víctimas de […], a qué edad, con qué efectos, qué mortalidad, qué
lesiones o secuelas, qué riesgos se corren al inocularse, cuál es la
probabilidad de que un individuo muera o se contagie la enfermedad
a pesar de la inoculación, cuales son los efectos estadísticos sobre la
población en general […] sino que será en cambio el problema de las
epidemias y las campaña médicas por cuyo conducto se intenta
erradicar los fenómenos, sea epidémicos, sea endémicos.
(FOUCAULT, 2006. p.26).

Quando a reunião estava se dirigindo ao fim, o nome de Roberto foi


trazido pela agente comunitária de saúde MG.; ela contou à equipe que a irmã
de Roberto, moradora do bairro onde a agente atua, havia solicitado sua ajuda
para tentar entrar em contato com o irmão, também morador do bairro, pois
estava muito preocupada com ele, que se encontrava vivendo em completo
isolamento em casa. Nesse sentido, destaco que a agente comunitária é
residente da comunidade que a ESF atua, facilitando o contato da unidade de
saúde com os usuários.
A agente comunitária MG. conhecia Roberto e esteve durante aquela
semana no domicilio dele, mas foi recebida de forma pouco amistosa por ele,
não tendo acesso ao apartamento do morador que conversou com ela pelo
interfone do prédio.
O zelador do edifício contou a MG. que alguns moradores do
condomínio estavam descontentes com algumas atitudes de Roberto, barulhos
estranhos durante a noite e madrugada, descargas elétricas que atingiam o
edifício, além de um forte cheiro de queimado que vinha do apartamento de vez
em quando. O zelador relatou que sempre quando bate à porta não é atendido
e que o apartamento parece estar vazio.
A equipe começa, então, a discutir o caso de Roberto procurando
estabelecer que ações poderia realizar a fim de dar conta da demanda trazida
pela agente comunitária. O médico J. já havia atendido Roberto na UBS
algumas vezes. Nas consultas, relatava uma crise de ansiedade relacionada ao
excesso de estresse que afastou o paciente do trabalho. A assistente social
perguntou sobre a rede familiar de Roberto para MG.. Segundo ela, fora a irmã
que mora numa casa próxima, o usuário não possuía nenhum outro vínculo
que ela conhecesse, pois ele era solteiro e não tinha filhos. Com isso, é
possível vislumbrar o processo de construção do Projeto Terapêutico Singular
por parte da equipe 1.

O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é um recurso de clínica


ampliada e da humanização em saúde. ... o uso do termo “singular”
em substituição a individual”, outrora mais utilizado, baseia-se na
premissa de que nas práticas de saúde coletiva – e em especial na
atenção primária – é fundamental levar em consideração não só o
indivíduo, mas todo o seu contexto social. (CHIAVERINI et al., p.21)

O médico de família propôs à equipe realizar uma visita domiciliar para


conseguir mapear melhor o caso de Roberto em sua totalidade. Ele designou a
residente A. para acompanhar a assistente social e a agente comunitária de
saúde. A fiscalização por parte da equipe, como salienta Foucault (2006, p.26),

Se trata del surgimiento de tecnologías de seguridad ya sea dentro


de mecanismos que son efectivamente de control social, como en el
caso de la penalidad, ya sea de mecanismos cuya función es
provocar alguna modificación en el destino biológico de la especie.

Foi nesse instante que, levantando a mão, perguntei se poderia


acompanhar o grupo na VD, pois o caso havia me despertado o interesse.
Como Roberto já havia padecido em seu histórico de um sofrimento psíquico,
talvez isso estaria novamente acontecendo agora. “Quanto mais diferentes
sejam as fontes de informação e as diferentes visões presentes, maior a
possibilidade de se obter uma visão abrangente e de se construir um projeto
terapêutico realmente ampliado e singular”. (CHIAVERINI, p. 28).
Antes de finalizar a discussão do caso, o médico de família J.
determinou que, conforme observado na VD, o caso de Roberto seria levado
para o matriciamento de saúde mental que ocorre todas as terceiras sextas-
feiras do mês, ou seja, na semana seguinte. Anotei na agenda os dois eventos.

A Visita Domiciliar

No dia combinado, eu, a assistente social e a residente de medicina de


família acompanhamos a agente comunitária até a casa de Roberto. Tomamos
um taxi desde a UBS Santa Cecília e nos dirigimos até a localidade onde ele
morava. Chegamos ao prédio e fomos recebidos pela irmã de Roberto que
estava ali aguardando, pois havia sido convidada pela agente comunitária a
acompanhar-nos, para que pudesse convencer Roberto a nos receber.
A irmã de Roberto nos passou algumas novas informações sobre o
caso. Ambos haviam nascido em Porto Alegre. Ele tinha 45 anos, era professor
de Física e Matemática e trabalhara numa escola pública anos atrás, quando
foi afastado por problemas de saúde. Ele era o irmão mais velho da família de
imigrantes chineses e seus pais já haviam falecido. A irmã de Roberto havia se
casado e tinha uma filha adolescente. Segundo ela, o comportamento estranho
e o isolamento social começaram alguns anos antes de ele sair do trabalho.
Tocamos o interfone. Ninguém respondeu. Tocamos novamente e nada.
Chamamos o zelador que reconhecendo a irmã de Roberto abriu o portão do
prédio e nos deixou entrar depois de nos apresentarmos. Ele comentou que
não havia visto o Roberto naquele dia, mas que desconfiava que deveria estar
em casa, pois na noite anterior os barulhos estranhos haviam acontecido
novamente e a moto dele encontrava-se na garagem, estacionada.
Entramos em um pequeno elevador e nos dirigimos ao quarto e último
andar do prédio. Caminhamos por um corredor, eram quatro apartamentos por
andar, tocamos a campainha. Ninguém atendeu. A irmã de Roberto bateu à
porta e chamou por ele. Nada. Ficamos um pouco sem saber o que fazer ali. A
agente comunitária estava inquieta, pois na última vez havia sido insultada e
não queria passar por essa situação novamente. Muitas vezes, a comunidade
acaba tendo a impressão de que o agente comunitário é um informante da
Unidade de Saúde que observa tudo e a todos no território. Foucault (2006,
p.132) destaca como a população age sobre si mesma de forma a controlar os
seus fluxos.

[…] será la población misma, sobre la que actuará de manera directa


a través de campañas o de manera indirecta mediante técnicas que
van a permitir, por ejemplo estimular, sin que la gente lo advierta
demasiado, el índice de natalidad, o dirigir hacia tal o cual región o tal
o cual actividad los flujos poblacionales.

A irmã de Roberto bateu mais uma vez na porta, dessa vez chamando-o
de forma veemente. Eu e a médica residente comentamos que parecia não
haver ninguém, que talvez ele houvesse saído e voltaria mais tarde. Pensamos
em talvez realizar uma visita outro dia. Nesse instante, ouvimos o barulho da
porta abrindo-se lentamente. Foi quando vi Roberto pela primeira vez, pelo
menos naquele momento acreditava nisso.
Era um homem alto e corpulento, de traços asiáticos, cabelo comprido
até os ombros. Ele estava usando uma jaqueta marrom de couro envelhecida.
Seu olhar transitou por todos nós até que parou em sua irmã.
- Olá irmão! Como está?
- Bem! Bem! – respondeu abrindo um sorriso. Olá! Olá! – falou ele, dirigindo-se
a nós.
A irmã, então, explicou quem éramos e que nossa intenção era fazer
uma visita para saber como ele se encontrava de forma que ele permitiu que
entrássemos. A agente comunitária MG. preferiu não entrar.
No centro da sala do apartamento, encontrava-se um sofá tendo ao
fundo uma mesa sobre a qual se encontravam alguns livros. A assistente social
e a médica residente conversavam com a irmã de Roberto. Enquanto isso,
aproximei-me do quadro de um monge budista na parede.
– Esse é o Lama Padma! Mestre budista! – completou.
Respondi que não o conhecia, apesar de achar muito interessante o
mundo oriental.
– Você é psicólogo? – perguntou. Respondi que ainda estava em formação.
– Então você sabe esse negócio do ego, de como a meditação ajuda a superar
o ego... Nesse momento, a sua fala ficou mais confusa. Roberto começou a
falar um turbilhão de nomes de mestres indianos, tibetanos, de tipos de
meditação, ao mesmo tempo fazia movimentos estranhos com os braços,
tiques.
A assistente social e a residente em medicina se aproximaram enquanto
Roberto seguia pronunciando palavras indecifráveis. A irmã tentou intervir, mas
Roberto a interrompeu e seguiu a proferir nomes que ninguém entendia.
Passados alguns minutos, Roberto conseguiu se conter e então a médica
residente começou a falar com ele procurando convencê-lo de realizar uma
consulta no ambulatório da UBS.
Enquanto isso, me dirigi até a mesa onde se encontravam alguns livros,
a maioria de meditação e dentre eles o livro A Filosofia da Viagem no Tempo,
de Roberta Sparrow. Comecei a folhear algumas páginas até ser surpreendido
pela presença repentina de Roberto ao meu lado a proferir as seguintes
palavras:
– Quando nos virmos da próxima vez ainda não terei te conhecido. E sorriu.
Sinceramente, não entendi naquele momento o que Roberto queria dizer
com aquilo. Após terminar a VD, voltamos para a UBS.

O matriciamento

“Matriciamento ou apoio matricial é um novo modo de produzir saúde em


que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada, criam
uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica.” (CHIAVERINI, P.13). A
equipe 1 estipulou que o matriciamento de saúde mental adulto ocorreria na
terceira sexta-feira de cada mês, pela manhã.
No dia referido, estavam presentes na reunião o médico de família J.,
como coordenador da ESF da equipe 1; a enfermeira M. e uma representante
do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).

Os Nasfs são constituídos por equipes compostas por profissionais


de diferentes áreas de conhecimento, que devem atuar de maneira
integrada e apoiando os profissionais das equipes de Saúde da
Família, das equipes de Atenção Básica para populações específicas
(consultórios na rua, equipes ribeirinhas e fluviais etc.) e Academia da
Saúde, compartilhando as práticas e saberes em saúde nos territórios
sob a responsabilidade destas equipes, atuando diretamente no apoio
matricial às equipes da(s) unidade(s) na(s) qual(is) o Nasf está
vinculado. (Ministério da Saúde, 2013, p.20).

Além da equipe do NASF também estavam presentes uma médica


psiquiatra do Centro de Saúde Modelo, referência em saúde mental da UBS
Santa Cecília, os residentes de medicina de SF da equipe 1 e eu.
O caso do Roberto foi trazido como uma das pautas para o
matriciamento daquela manhã. A residente A. falou da sua impressão sobre o
Roberto após a VD. Ele se encontrava num estado muito confuso e ansioso,
sua fala não parecia coerente, apresentando tiques e espasmos. Além disso, a
residente comentou sobre o histórico familiar do paciente de acordo com o
relato da irmã dele.
A psiquiatra do centro de referência, a partir dos dados trazidos pela
residente, comentou que o usuário parecia estar apresentando um
comportamento psicótico, corroborados pelos sintomas apresentados:
alterações da consciência e da atenção, desorientação tempo-espacial,
alterações da sensopercepção, movimentos desorganizados,
apatia, irritabilidade, ansiedade, insônia e fala desconexa ou pouco coerente,
como mencionado. Como destaca Foucault (2006, P.155-156), o poder pastoral
tem como finalidade salvar a ovelha desgarrada do rebanho. O usuário
desgarrado deve ser reconduzido ao sistema de saúde.

El poder pastoral es un poder de cuidados. Cuida el rebaño, cuida a


los individuos del rebaño, vela por que las ovejas no sufran, va a
buscar a las extraviadas, cura a las heridas.

No final daquela manhã, Roberto tinha marcada uma consulta conjunta


com a residente e a psiquiatra, pois juntas iriam realizar um diagnóstico mais
preciso sobre o caso.

Consulta conjunta

A consulta conjunta é definida da seguinte forma por Mello Filho (2005):


É uma técnica de aprendizagem em serviço voltada a dar respostas
resolutivas a demandas da assistência à saúde que reúne, na mesma
cena, profissionais de saúde de diferentes categorias, o paciente e,
se necessário, a família deste. A ação se faz a partir da solicitação de
um dos profissionais para complementar e/ou elucidar aspectos da
situação de cuidado em andamento que fujam ao entendimento do
solicitante para traçar um plano terapêutico.

Terminado o matriciamento, me dirigi para a saída da UBS, pois iria


almoçar antes de iniciar o grupo de apoio emocional no inicio da tarde. Eis que
encontro Roberto sentado em um dos bancos da recepção, esperando para ser
chamado à consulta. Ao vê-lo, acenei e perguntei:
– Olá, Roberto! Como vai? Roberto me olhou de forma estranha.
– Não se lembra de mim? Sou estagiário de psicologia. Estive com a equipe de
saúde na tua casa uns dias atrás, acompanhamos a tua irmã. Tu me mostrou o
quadro de um Lama e conversamos sobre meditação. O olhar dele expressava
perplexidade, parecia não me reconhecer de nenhuma forma. Não dirigiu
qualquer palavra a mim.
– Você está se sentindo bem? Alguém o está acompanhando? Olhei para os
lados, mas não havia ninguém por perto. Foi então que notei em suas mãos o
mesmo livro que havia observado em sua casa. Roberto notou o meu interesse
e me perguntou:
– Você já o leu? – indicando o livro.
– Não! Apenas folheei algumas páginas enquanto estava na tua casa.
Nesse instante, a residente A. chamou Roberto para entrar em uma das
salas do ambulatório da UBS. Ao ver que estava conversando com ele, me
convidou a participar da consulta conjunta, o que aceitei prontamente.
No consultório, Roberto seguia agindo de maneira estranha, parecia não
reconhecer a residente assim como também não me havia reconhecido. A
residente realizou algumas perguntas referentes ao seu estado de saúde física
atual. Na sequência, ela comentou sobre a visita que havíamos realizado a sua
casa e de como a irmã dele estava preocupada devido o seu comportamento
atual, seu isolamento.
Roberto ouviu atentamente. Após, a psiquiatra perguntou se havia algum
problema atual na vida dele que o estaria preocupando de alguma forma, se a
questão do afastamento do trabalho o estaria incomodando. Roberto
respondeu prontamente que estava tudo bem com ele. Esse questionamento
reflete que não basta reconduzir os usuários ao serviço de saúde, é necessário
rastreá-lo, conhecer os seus movimentos, como um bom pastor faria.

El poder del pastor es un poder que no se ejerce sobre un territorio;


por definición, se ejerce sobre un rebaño y, más exactamente, sobre
el rebaño en su desplazamiento, el movimiento que lo hace ir de un
punto a otro. (FOUCAULT, 2006, p.154).

A psiquiatra, então, perguntou se ele já havia realizado algum tratamento


anteriormente, se já havia tomado algum tipo de medicamento. A conversa
seguiu por mais um longo tempo. Roberto parecia distante e um tanto inquieto;
às vezes, aconteciam alguns de seus espasmos com o braço. A residente e a
psiquiatra saíram da sala. Enquanto estávamos a sós, ele me perguntou:
– Você é psicólogo, né?
– Sou estudante, ainda.
– Mas tu estuda esse negócio do ego, né. O Lama Padma aqui no Brasil, o
Dalai Lama no Tibet, todos falam que o cérebro humano é um
supercomputador biológico. Mas isso não é nenhuma novidade, os grandes
mestres budistas, os Lamas mais sábios já sabiam disso há muito tempo atrás.
O mundo ocidental descobriu isso faz uns cem anos. Os orientais já sabem
disso faz cinco mil anos. Você é psicólogo, né? Para vocês existem dois
estados apenas, consciente e inconsciente. Os mestres indianos descobriram
sete. Freud era um homem muito inteligente, talvez o mais inteligente do último
século, mas ele só descobriu dois níveis. Os Lamas budistas descobriram
sete. Para alcançar os sete níveis, temos que exercitar a meditação e assim
vencermos o ego. Isso é o que os Lamas já fizeram, eles venceram o seu ego.
Tornaram-se imortais. Não precisam mais nascer e renascer como nós.
– Uau! Que legal! – Respondi. Tu praticas meditação?
Ele acenou positivamente com a cabeça.
– Isso te ajuda a relaxar, ficar mais tranquilo...
– Não! Vocês aqui acham que meditação é para relaxamento, para a pessoa
diminuir o estresse. Meditar serve para muitas coisas. O cérebro humano é um
supercomputador biológico, ele é capaz de processa milhões de informações
por segundo, ele capta tudo que está acontecendo. Milhares de frequências
superpostas umas sobre as outras sendo transmitidas e captadas pelo nosso
supercomputador na cabeça. Mas na meditação você diminui a quantidade de
informação, foca na respiração, num ponto, numa imagem e assim a frequência
diminui e o tempo aumenta. A meditação serve para curar doenças, para ver as
vidas passadas e para ver as futuras também.
Nesse instante, A. voltou à sala com um formulário para Roberto. Ela
pretendia marcar uma nova consulta com a psiquiatra num outro dia. Enquanto
isso, saí da sala e me aproximei da psiquiatra, que comentou brevemente
comigo:
– Tudo leva a crer que é um transtorno psicótico, a perda de contato com a
realidade, os delírios, os comportamentos bizarros e o isolamento social. Essa
prescrição, que é parte do sistema para se normatizar os comportamentos dos
sujeitos, demonstra como o saber biomédico assume o papel de redentor das
mazelas do ser humano. Conforme Foucault (2006, p.235), a racionalidade
médica herdará o poder pastoral na modernidade.

El pastorado, es sus formas modernas, se desplegó en gran parte a


través del saber, las instituciones y las prácticas médicas. Podemos
decir que la medicina fue una de las grandes potencias herederas del
pastorado. Y en ese aspecto también ella suscitó toda una serie de
rebeliones de conducta […] que va del rechazo de ciertas
medicaciones, ciertas medidas preventivas como la vacunación, a la
impugnación de un tipo determinado de racionalidad médica: el
esfuerzo por construir algo similar a herejías médicas en torno de
prácticas de medicación que utilizan la electricidad, el magnetismo,
las hierbas, la medicina tradicional […]

Conversei com A. e decidimos fazer uma interconsulta para definir o


PTS do Roberto. Oportunamente,

A interconsulta caracteriza-se por uma ação colaborativa entre


profissionais de diferentes áreas. Existem diversas modalidades de
interconsulta,que vão desde uma discussão de caso por parte da
equipe ou por toda ela até as intervenções, como consultas conjuntas
e visitas domiciliares conjuntas. Esse encontro de profissionais de
distintas áreas, saberes e visões permite que se construa uma
compreensão integral do processo de saúde e doença, ampliando e
estruturando a abordagem psicossocial e a construção de projetos
terapêuticos, além de facilitar a troca de conhecimentos, sendo assim
um instrumento potente de educação permanente. (Ministério da
Saúde, 2013, p.25-26).

Antes de sair para o almoço, volto até a sala para me despedir. Roberto
me olha e sorri. Aperto a sua mão e ele me diz:
– É estranho, mas quando me encontrou ali no corredor me comentou que
havia visto esse livro na minha casa.
– Sim! Estava sobre a tua mesa na sala com outros livros de meditação.
– É impossível, pois eu acabei de comprá-lo no sebo antes de vir para cá hoje
pela manhã. E o mais esquisito é o que está escrito na contracapa: “Entregue
para o estagiário de psicologia!”.

A Viagem no Tempo

Cheguei em casa após aqueles estranhos acontecimentos. O livro


estava dentro da minha mochila e foi somente à noite que tive coragem de
tomá-lo para ler. Abri o livro e comecei a leitura. Devorei cada página como se
estivesse tragando os almoços e jantares do RU. Ao terminá-lo, estava
atordoado com o seu conteúdo, maravilhado com as possibilidades que ele
abria para a existência, para a experiência “[...] o tempo não existe. Isto é, não
existe o tempo enquanto tal, ou uma essência do tempo, e sim operadores de
tempo, tecnologias que produzem tal ou qual experiência do tempo, vivência do
tempo, ideia do tempo, forma do tempo”. (PELBART, 1998, P.61).
Decidi então “experimentar essa viagem”. Peguei uma almofada e
procurei acomodar-me. Lembrei das palavras de Roberto: focar num ponto, na
respiração, numa imagem. Inicialmente uma quantidade infindável de imagens
e sons perambularam pela minha mente, parecia uma tarefa impossível de
conseguir realizar tamanha façanha. Lentamente coloquei a minha mente na
respiração. Inspirar, expirar. Inspirar, expirar. Inspirar, expirar...
De repente, algo começou a surgir, meio embaçado no início, mas logo
estava eu numa das salas do Instituto de Psicologia. A voz do professor e de
todos os meus colegas, companheiros nesta jornada de curso. Percebi que se
não houvesse trocado de turno e assistido as aulas no diurno nada do que aqui
trago haveria acontecido. Eu não teria aceitado o estágio na UBS, não teria
conhecido meus colegas de estágio que em imagens aparecem agora em
minha mente, os membros da equipe de que faço parte, não teria participado
das reuniões, discutido casos, participado de grupos, realizado visitas
domiciliares, escutado tantas histórias que me ajudaram a compor este relato.
Eu não teria compreendido que foi sentado em uma das classes durante a
aula, olhando para os meus colegas em algum debate ao longo do semestre,
que “Roberto” surgiu como um flash na minha mente.
Pelbart diz que “O desenvolvimento da história assemelha-se ao que
descreve a teoria do caos. Coisas que na linha do tempo seriam distantes,
estão intimamente ligadas, coisas que numa suposta linha do tempo estão
próximas, são muito distantes.” (1998, P. 62). Logo, “Roberto”, como uma
narrativa, é responsável por unir tantas pessoas e lugares que compuseram
este trabalho, ou melhor, pessoas e lugares que me constituem e se
materializaram nele.
Como Deleuze e Guattari (1995, p.17) expressam: “Um rizoma não
começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-
ser, intermezzo.” Assim, este relato é uma viagem no tempo que busca articular
pessoas, lugares, sentimentos e situações cuja localização no tempo e no
espaço não sei como precisar, só sei que se entrecruzaram ao longo deste
semestre, compondo a história que continuará se articulando num sem fim de
conexões.
A “viagem no tempo” já havia iniciado e pensei, de sobressalto, aonde
iria me levar. Abro os olhos. Onde estou agora?

P.S.: Quanto a Roberto, parece que está cursando uma cadeira de psicologia,
sextas-feiras, à noite.
Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento


de Atenção Básica. Saúde mental / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção
à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas. – Brasília: Ministério da Saúde, 2013. 176 p.: il.
(Cadernos de Atenção Básica, n. 34)

CASTRO, C. L. F.; GONTIJO, C. R. B.; AMABILE, A. E. N. (Org.). Dicionário de


políticas públicas. Barbacena: EdUEMG, 2012. 242 p.

CHIAVERINI, D. H. et al. (Org.). Guia prático de matriciamento em saúde


mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em
Saúde Coletiva, 2011.

DELEUZE, G. GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: Mil Platôs: Capitalismo e


Esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Editora
34, 1995. V.1.

FOUCAULT, Michel. Seguridad, território, población: Curso em El Collège de


France: 1977-1978. Tradução de Horácio Pons.Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2006. 488p.

MARLON, M. Guerrilha e resistência em Cévennes. A cartografia de Fernand


Deligny e a busca por novas semióticas deleuzo-guattarianas. Revista Trágica:
estudos de filosofia da imanência. v.8, n.1, jan/abr.2015.

PELBART. Peter P. Rizoma temporal. Educação, Subjetividade e Poder. Porto


Alegre, v.5, n.5, p.60-63, jul.1998.

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