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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


N° 20 – Junho– 2001

A CLÍNICA
DA MELANCOLIA E AS DEPRESSÕES
Design Gráfico: Cristiane Löff
Sobre instalação de Louise Bourgeois, “Líquidos preciosos”, 1992.

R454

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / Associação


Psicanalítica de Porto Alegre. – n° 20, 2001. – Porto Alegre: APPOA, 1995, ----.
Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise – Periódicos. | Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU: 159.964.2(05)
616.89.072.87(05)
CDU: 616.891.7

Bibliotecária Responsável: Ivone Terezinha Eugênio


CRB 10/1108
A CLÍNICA DA
MELANCOLIA E AS DEPRESSÕES
ISSN 1516-9162 Comissão de Biblioteca
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO Coordenação: Maria Auxiliadora Pastor
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Sudbrack
EXPEDIENTE Ana Marta Goelzer Meira, Fernada Breda
Publicação Interna Leyen, Luciane Loss, Gladys Wechsler Carnos,
Ano X – Número 20 – junho de 2001 Maria N. Folberg, Mercês S. Ghazzi
Comissão de Ensino
Coordenação: Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes
Comissão Editorial deste número:
Ramos e Mário Corso
Analice Palombini, Edson Luiz André de
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria
Sousa, Henriete Karam, Marianne Stolzmann,
Medeiros da Costa, Eda E. Tavares, Liliane
Marieta Rodrigues, Otávio Augusto W. Nunes,
Seide Fröemming, Lúcia Alves Mees, Lucia
Valéria Machado Rilho
Serrano Pereira, Maria Ângela Cardaci Bra-
Colaboradores: Esthér Trevisan, Ligia Víctora,
sil, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Robson
Lúcia Mees, Maria Rosane Pereira Pinto, Maria
de Freitas Pereira, Rosane Monteiro Ramalho
Lucia Müller Stein, Marta Pedó, Nilson Sibemberg
Comissão de Eventos
Coordenação: Ana Maria Gageiro e Maria
Título deste número:
Elisabeth Tubino
A CLÍNICA DA MELANCOLIA E AS DEPRES-
Eloísa Santos de Oliveira, Grasiela Kraemer, Li-
SÕES
gia Gomes Víctora, Maria Beatriz de A. Kallfelz,
Regina de Souza Silva
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA
Serviço de Atendimento Clínico
DE PORTO ALEGRE
Coordenação: Ângela Lângaro Becker e Liz
Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis
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90670-150 – Porto Alegre / RS
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Carlos Henrique
Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922
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Augusto W. Nunes
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Coordenação: Edson Luiz André de Sousa e
(GESTÃO 2001/2002)
Valéria Machado Rilho
Presidência: Maria Ângela Cardaci Brasil
Comissão de Aperiódicos
1a Vice-Presidência: Lucia Serrano Pereira
Coordenação: Carmen Backes e Luis Fernando
2a Vice-Presidência: Jaime Alberto Betts
Lofrano de Oliveira
Secretaria: Carmen Backes
Conceição de Fátima Beltrão, Clara Maria
Gerson Smiech Pinho
Hohendorff, Liz Nunes Ramos, Magda Rejane M.
Tesouraria: Grasiela Kraemer
Sparenberger, Maria Luiza Raminelli de
Simone Moschen Rickes
Almeida, Marianne Stolzmann, Ubirajara Car-
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Analice Palombini,
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Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Cos-
Comissão do Correio
ta, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de
Coordenação: Maria Ângela Cardaci Brasil e
Sousa, Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates
Robson de Freitas Pereira
da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liliane Seide
Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri,
Fröemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,
Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz
Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira
COMISSÕES nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar
Comissão de Acolhimento Stricher, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,
Diana Myrian Liechtenstein Corso, Lucia Maria Lúcia Müller Stein
Serrano Pereira, Maria Ângela Cardaci Bra- Comissão da Home-Page
sil, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack Coordenação: Robson de Freitas Pereira
Comissão de Analistas-Membros Charles Lang, Gerson Smiech Pinho, Henriete
Coordenação: Maria Auxiliadora Pastor Karam, Marta Pedó
Sudbrack Comissão da Revista
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Coordenação: Marieta Rodrigues
Medeiros da Costa, Lucia Serrano Pereira, Analice Palombini, Edson Luiz André de Sousa,
Maria Ângela Cardaci Brasil, Robson de Henriete Karam, Marianne Stolzmann, Otávio
Freitas Pereira Augusto W. Nunes, Valéria Machado Rilho
A CLÍNICA DA
MELANCOLIA E AS DEPRESSÕES
SUMÁRIO

EDITORIAL ..........................09 ENTREVISTA


A deserção do Outro ... ............ 84
TEXTOS Marie-Claude Lambotte
As várias cenas da melancolia e da
depressão ............................... 11 RECORDAR, REPETIR,
Lúcia Alves Mees ELABORAR
Conceito de melancolia..............102
A melancolia no texto freudiano..19 Jaime Ginzburg
Rodolpho Ruffino
VARIAÇÕES
Uma melancolia tipicamente O provisório como modo de
feminina ................................... 37 existência ................................ 117
Rosane Monteiro Ramalho Luis Roberto Benia

Uma falha súbita na lógica do Tecnociência e subjetividade......124


universo .................................. 57 João Guilherme Biehl
Maria Rosane Pereira Pinto

Líquidos preciosos de Louise


Bourgeois ................................ 65
Elida Tessler

Depressões da criança ............ 73


Jean Bergès e Gabriel Balbo

Do Deus decaído ao homen ..... 78


Houchang Guilyardi
EDITORIAL

O tema desta Revista, “A clínica da melancolia e as depressões”, constitui o eixo em


torno do qual se desenvolvem os trabalhos na APPOA ao longo deste ano e que
são aqui tomados em consideração a partir dos dois pólos que o organizam.
De uma parte, em se tratando das depressões, observa-se a utilização deste
termo para designar os mais variados quadros clínicos. Atrelada às novas formações da
cultura, a depressão nos convoca a pesquisá-la à luz de algumas dessas mudanças. A
intolerância moderna ao sofrimento, a crença no triunfo da ciência sobre os males
psíquicos, a aspiração de controle das oscilações nos estados de humor, são algumas
dessas alterações contemporâneas. Além disso, definir a pertinência ou não de um
estatuto para a depressão no interior da psicanálise, leva-nos ao estudo desse sintoma
como sinal da relação do sujeito ao Outro.
Através dos estudos da melancolia, de outra parte, um modo particular de cons-
tituição de um sujeito pode ser apreendido. Junto a outras patologias limites – a anorexia,
bulimia, algumas toxicomanias e distúrbios psicossomáticos –, ela permite questionar a
problemática dos laços primordiais de um sujeito.
Essas duas vertentes em que se desdobra o tema por si só justificam a proprie-
dade da sua escolha e representam um volume considerável de trabalho. Mas “A clínica
das depressões e a melancolia” faz-nos pensar, ainda, nas intersecções que se podem
dar entre elas; e também em conceitos igualmente cruciais como os de sublimação e
angústia. E mais: qual a importância do seu estudo na infância e na adolescência e o que
esses momentos subjetivos peculiares podem nos ensinar a seu respeito?
A presente revista pretende contribuir para esses debates, revelando sua
pertinência e sua pluralidade, com o rigor que os temas requerem, mas sem a pretensão
9
EDITORIAL

de finalizá-los. Ao contrário, o que se espera é que novas questões possam daí surgir,
convidando a um trabalho produtor de novas elaborações.

10
TEXTOS AS VÁRIAS CENAS DA
MELANCOLIA E DA
DEPRESSÃO
Lúcia Alves Mees*

RESUMO
O texto apresenta cinco cenas sobre a melancolia e a depressão. As primeiras
cenas buscam revelar o cenário moderno circundante à depressão e propõem
uma discussão sobre a depressão associada às neuroses. A quinta cena trata
da melancolia como quadro clínico específico, sua etiologia e clínica.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; depressão; modernidade; clínica

ABSTRACT
The text presents five scenes about melancholy and depression. The first scenes
seek to reveal the modern scenery surrounding depression and pose a discussion
about depression associated to neurosis. The fifth scene deals with melancholy
as specific clinical picture, its etiology and clinics.
KEYWORDS: melancholy; depression; modernity; clinic

*
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Mestre em Psicologia Social
e da Personalidade PUC/RS. Professora do curso de extensão “Adolescência e experiências de
borda”- UFRGS.
11
TEXTOS

C ena 1: O parceiro pede a sua companheira que passe a usar psicofármacos, afinal
ela está sempre se queixando do que, para ele, vai muito bem. Ela se deixa medicar
– é prescrito um antidepressivo – e ela se descobre “louca”; não o tipo de loucura que
ele lhe imputava, mas uma outra, fruto do desaparecimento temporário do sujeito de
desejo.
Cena 2: O DSMIII retira de sua codificação das doenças o termo histeria e
confere grande espaço à depressão.
Cena 3: O século XX consagra o termo depressão a partir da Economia, que o
marca com o conceito de baixa e alta do Mercado Financeiro e o ideário de que a alta
deve prevalecer.
Cena 4: As pesquisas são unânimes em apresentar as mulheres como mais sus-
ceptíveis à depressão.
As quatro cenas, aparentemente tão díspares, compartilham o cenário moderno
circundante da dita depressão: feminina, imperativamente rechaçada, substituta da his-
teria e definidora da demanda social acerca da mulher. Desde o prescrito no DSM III, até
alguns ramos da medicina, a mídia e as próprias mulheres e, às vezes, o parceiro, a
demanda parece ser a mesma: atenuar ou apagar o que a histeria põe em cena, a saber,
o desafio ao mestre, a inconstância, a insatisfação, o desejo de mudar, a queixa, o
enfrentamento da verdade, a fragilidade das garantias e a recusa aos semblantes. Se a
histeria caracterizou o início do século XX (e na sua trilha surgiu a psicanálise), a
depressão é supostamente sua substituta no final do século XX e, talvez, do XXI. Essa
dita mudança, proponho, expressa um desejo de que assim seja, ou seja, padeça a
mulher de tristeza, de desamparo, de mau humor, de insatisfação, de ciclotimia, seu
diagnóstico moderno será (nos âmbitos antes citados) o de depressão. Sua cura? O
mesmo remédio, com diferentes substâncias, mas a mesma doença. A pluralidade femi-
nina se vê reduzida a um só mal. A causa? Seu corpo, é claro. Seus neurotransmissores
não são adequados à vida em alta que se espera dela (e ela anseia também ! O problema
é quando ela acha que encontrou!!!). O corpo falante da histérica, enigmático, avesso a
qualquer manual de definição, assinalador dos limites da ciência, vem cedendo lugar a
um corpo bioquímico, controlável, pois objetivável. O corpo, antes revelador do
psiquismo, é agora o da neurobiologia. O inconsciente escancarado na histeria tende a
ser apagado nesse corpo de constituição doente, com o qual o sujeito não está implica-
do.
O corpo em desarmonia com o desejo histérico vem sendo suplantado por um
corpo que deve calar. Se antes o silêncio sobre o feminino era respondido pela histérica
com um corpo aos gritos, nas conversões, cegueiras, paraplegias, etc., aos poucos, ao
longo do século XX, ele vem sendo sedado da fome, da dor, dos desconfortos, enfim,
de seus clamores (observe-se que os antidepressivos são receitados, além do controle
do afeto, também para dietas alimentares, tensão pré-menstrual, dores de cabeça e
12
AS VÁRIAS CENAS...

dores crônicas, fadiga crônica e sintomas gástricos). Os novos tempos buscam apagar
aquilo que no corpo da mulher é índice do feminino: sua castração revivida a cada
menstruação, sua relação a um corpo que dói em nome de um psiquismo que sofre, sua
relação oral reveladora de um laço com a mãe que se reatualiza no excesso alimentar, etc.
Quanto mais o intuito de acomodar o corpo à felicidade ganha lugar, mais a vida
parece potencialmente romper o equilíbrio, logo, o “stress”, o sofrimento, as inquieta-
ções, que, no passado, pareciam engrandecer o sujeito, hoje são vistas como passíveis
de quebrar a “adequação”. O passo seguinte é o de ter de sedar o que pode trazer um
tipo de pane ou falência do sujeito; enfraquecido, é claro, por aquilo mesmo que quer
combater.A dose maciça de recalque, com o intuito de pretensamente fortalecer, fragiliza
o sujeito a ponto de fazê-lo temer desesperadamente a perda de tal defesa. Assim, o
sofrimento hoje não é visto como algo que amadurece o sujeito, ou que lhe é próprio, ele
anuncia uma falência de “tudo”, se o tudo for seu afeto de contentamento associado a
um corpo mudo.
Além disso, observa-se que o termo “depressão”, há séculos presente na lín-
gua, só entrou na linguagem da psiquiatria e psicologia no século XX a partir de um
deslizamento a partir do campo da economia (Andrè, 1995). Quer dizer, um capital de
energia (quer seja energia monetária, nervosa, humoral ou moral) deve ser mantido em
alta, como na Bolsa de Valores, senão não tem lugar. Para os em baixa, ou a expulsão do
mercado, ou ejeção do mundo cada vez mais mercantil, ou tentar voltar à alta para gozar
de um lugar junto aos vivos. Os da alta são os que controlaram o próprio humor, o
corpo, as fraquezas e a histeria naquilo que ela tem de reveladora de uma falta que não
deixa nunca de existir.
A promessa – advinda do Outro – de encontro com as alturas cobra um preço: o
de não saber lidar mais com o próprio desejo, com suas nuances entre baixo e alto, com
sua expressão singular. Com dificuldades de desejar, o sujeito está ainda mais só. A
alegria de conquistar um (transitório que seja) objeto de desejo se esmaece. A orienta-
ção que o desejo traz (simplesmente por não ceder do desejo) (Lacan, 1988) se obscu-
rece e o lugar do sujeito parece mais e mais estranho. Não seria esse o sujeito deprimi-
do? Então, qual seria o estatuto da depressão em psicanálise – se é que há um – na
medida em que não compartilha com o imperativo de alta?
Considerando que se possa tomar a depressão restrita à neurose, sugiro que a
pensemos dentro de algumas modalidades neuróticas de relação à instância paterna,
isto é, na oscilação entre um triunfo sobre o pai e entre um apagamento por ele. Na
primeira hipótese, o afeto associado é o da alegria e júbilo; na segunda o da tristeza.
Mania e depressão que podem alternar-se, expressam essa oscilação na relação ao pai.
A mania é índice de um triunfo sobre o paterno, o que torna o objeto possível de ser
alcançado e, conseqüentemente, burla a castração e quita a dívida. O afeto presente em
tal posição subjetiva é de alegria e inquietação, visto que mescla uma felicidade intensa
de supostamente alcançar todas metas, e de agitação por ter de transitar por todas as
13
TEXTOS

palavras e todos os objetos que não mais estão sob interdito.


Na depressão, a outra face da mesma moeda se revela: uma subserviência à
instância paterna. Esse excesso de submissão se mostra, a meu ver, de dois modos: em
um primeiro, o pai está tão engrandecido que supostamente não há lugar para o sujeito.
A queixa depressiva, então, será da ordem de que nada dá certo, a não ser para os
outros (o Outro) e que ele não ganhou o dom necessário para se dar bem na vida, logo,
o que faz dá sempre errado. Os objetos não estão a seu alcance, sendo todos governa-
dos por uma instância Outra, da qual ele se vê apartado.
A outra forma neurótica de revelar a “depressão” é na relação a um pai desvalo-
rizado e que, por sê-lo, não seria dotado do necessário para viver alegremente. O pranto
da insuficiência se mostra aqui em toda a sua força: a do pai, a própria, a do objeto. Nada
aplaca a carência do ser e do ter.
Mais do que a anterior, essa última descrição de relação ao pai parece ser mais
utilizada modernamente como modelo da depressão, isto é, a forma histérica de se referir
ao pai e ao objeto.
Até aqui retomei a neurose em sua expressões mais características para mostrar
quanto dita depressão é outro nome para os velhos sintomas da neurose, porém acho
que podemos também pensar uma particularidade. Esta segue dentro do campo da
neurose, mas talvez permita destacar que se trata de uma conjução particular do pai. O
pai, na expressão depressiva, está realizado, ou seja, materializado em dita realidade.
Esta é que é reconhecida pelo analisante depressivo como definidora de seu estado: é
por que aconteceu tal coisa, ou por que deixou de ocorrer tal outra, ou é devido a algo
vivido em seu próprio corpo, etc. Não se trata portanto, na maioria das vezes, de um
sentimento vago de estar entristecido sem saber por quê. A tristeza, em geral, é justificada
por eventos externos ao sujeito, aos quais ele se vê submetido e sem saída. Quer dizer
que o pai “realizado”– não reconhecido enquanto instância simbólica – teria marcado o
sujeito com a desgraça e por ser materializado não deixou qualquer alternativa de mu-
dança, qualquer deslizamento, ao contrário, só faz inscrever o mesmo. Além disso, se é
alheio ao sujeito o que lhe ocorre, não estaria em suas mãos mudar o “destino”. Vê-se
quanto a expressão depressiva se pretende inanalisável, o que talvez faça entender a
procura às medicações como alteradoras da realidade.
Se é verdade que há um aumento na incidência da sintomatologia depressiva, ou
seja, que este aumento não é só devido ao fato de se agruparem vários quadros clínicos
na mesma nomenclatura, acho que seria devido a essa modalidade moderna de pai
“realizado”, menos simbólico e mais real. Tendo este, por conseqüência, a falta de
implicação do sujeito em seu destino, a fixação no traçado delimitado pela realidade e
uma tristeza fruto de quem acha que não pode mudar.
Ainda sobre a depressão e a neurose, Freud (1974b) deu os indícios de como
escutar a perda do objeto: um luto a ser realizado que pode redundar em uma melancolia.
Embora Freud não descreva a melancolia como estrutura (conforme abordaremos mais
14
AS VÁRIAS CENAS...

adiante), a meu ver, ele interpreta a relação do sujeito com o objeto na neurose. É nesta
que o objeto é perdido e passível de patologia, enquanto na melancolia propriamente
dita o objeto perdido não é constituído a não ser comoquase-nada (vide a seguir: cena
5). Dito de outra forma: o objeto só pode ser perdido se tiver sido constituído, como o
é na neurose.
Lacan (s/d) retoma a relação do sujeito com o objeto através de Hamlet para dizer
que, com a perda do objeto, funda-se um desejo insatisfeito, ou impossível. O acento
nessas características intrínsecas ao desejo funda a patologia. Ou seja, o sujeito neuró-
tico privilegia apenas o negativo do desejar, ficando preso àquilo que não pode realizar,
ou ao que é insatisfatório na realização. A neurose, portanto, reduz o desejo a
insatisfatório e impossível. Considerado isto, será que modernamente não se vê a inclu-
são e privilégio a um desejo – mais do que insatisfatório e impossível – deprimido?
Provavelmente a cultura atual interpretaria Hamlet como um depressivo. Prostrado,
entristecido, sem forças para perseguir seu objeto de desejo, atraído pela morte e ani-
quilação; Hamlet caberia bem em uma descrição de depressão. Resta saber se interessa
incluir um viés a mais nas modalidades de desejo (além de impossível e insatisfeito)... Se
essa inclusão for necessariamente negadora de alguma(s) modalidade do desejo, pare-
ce que só se tem a perder; todavia, se somar uma outra descrição às já consagradas pela
psicanálise, abrindo uma via a mais de interpretação, por que não? Se assim for, acho
que a leitura será, de qualquer forma, sobre a dificuldade do sujeito para lidar com a
perda do objeto imposta por um pai total ou impotente e com um desejo advindo daí que
não é jamais integralmente satisfeito. Se, a partir disso, o sujeito se deprime e esmorece
diante do projeto de desejar, mas anseia em fazer algo mais do que gozar disso, seja lá o
nome que se dê a seu sofrimento, esse sujeito interessa à psicanálise.
Cena 5: A outra cena. A melancolia.
A melancolia, mesmo que sintomatologicamente se assemelhe à depressão, não
guarda com esta nenhuma outra similaridade. Portanto, a parecença aparente só con-
funde quando o modelo médico/científico/moderno dita a leitura do adoecimento. Quan-
do os afetos e sintomas ganham o centro do diagnóstico e o sentir-se em alta resume
todo o imperativo social de satisfação, é que a melancolia e depressão se amalgamam.
A melancolia requer que nos reportemos a outros elementos: ao início da vida de
um sujeito, pois se situa nos esboços das primeiras relações com o Outro o ponto de
fixação do melancólico. O sujeito melancólico padece de um excesso de falta nesse
tempo da constituição, ou seja, carência de presença do primeiro Outro, sua mãe, no
que se refere aos cuidados que essa presta ao bebê. Cuidados maternos que, sabemos
desde Freud (1974), ultrapassam a simples higiene e alimentação e sim dizem respeito a
tomar o corpo da criança como falo, revesti-lo de erogeneidade, marcando-o de desejo
e fornecendo uma imagem com a qual se identificar. Que os cuidados primários ao nenê
sirvam de apoio à função simbólica desencadeada pela mãe, permite destacar que essa
marcação do corpo se vale do alimentar e cuidar para inscrever ali algo mais. O corpo,
15
TEXTOS

esvaziado de naturalismo, ganha contornos simbólicos (o a mais na boca, por exemplo,


que alude a um desejo que não se refere ao objeto comida) e imaginários – através da
imagem antecipada pelo Outro. O olhar voltado para a criança, a doação de um tanto de
si para seu fruto e um cuidado que pretende mais que prover de comida e asseio, são
condições indispensáveis para a constituição no filho de uma imagem própria, com
conseqüente sentimento de ser amado e possuir existência, bem como a possibilidade
de revestir a vida de imagens (ilusões/ficções) possíveis. Pois é isso que o sujeito
melancólico diz sem cessar que não teve, que não fez. Diz que não sabe quem é, chegan-
do a estranhar a própria imagem; que não entende as ilusórias certezas que as outras
pessoas apresentam sobre si mesmas, que seu corpo é um estranho não decodificado,
portanto impossível fazer muito com ele e por ele (o que pode chegar a inviabilizar a vida
sexual, por exemplo), que sente falta de um toque, de algo que deveria ter sido feito em
seu corpo e que o teria transformado. Mas acha que não tem mais remédio, tudo está
dado. Sua falta de ilusão reverte em um pessimismo quanto à mutabilidade do que o
paralisa. Isso tudo somado a seu peculiar e perspicaz modo de se relacionar com suas
escassas imagens: estas não mascaram o acesso ao “âmago das coisas”, às suas verda-
des. Os objetos estão expostos com sua real face e o discurso sobre a verdade que
constrói a partir disso, mais do que lhe dar alento, aumenta a solidão na relação com o
outro (e o Outro). Tal discurso é defensivo à falta de imagem, ao mesmo tempo que
sustenta uma grande porção do sujeito melancólico. Este tudo sabe das feridas do
mundo e acredita que, por isso, talvez não seja susceptível à análise. À psicanálise falta
preocupação com verdades universais, à filosofia falta inconsciente e, assim por diante,
vai dizendo o melancólico, dando a escutar que a falta é para ele tão devastadora que
quase impede qualquer desejar. A sua saída, acredita, estaria em tecer um discurso que
de tão verdadeiro recobrisse a falta que seu corpo lhe faz.
O Outro tem quase nenhum lugar: ninguém pode demovê-lo do que diz de si –
que não tem valor – , talvez seu discurso bem delineado o pudesse, mas ainda falta...Falta
a circunscrição da falta, pois se o primeiro objeto, que orienta os outros, é o próprio eu,
o melancólico não se viu objeto do Outro a ponto de tomar-se narcisicamente como
objeto. O desejo se fez sentir por um quase nada, nem o nada que faz desejar, nem o
nada que aniquila o sujeito, a melancolia se situa nesse esboço de constituição do
objeto, em relação ao qual ele compõe alguma coisa , embora sua patologia sempre
afirme que é coisa nenhuma. É nessa oscilação entre o pouco e o nada que o melancó-
lico vem falar, aproximando-se da morte quando o nada se avantaja e da constituição de
uma saída quando o pouco tenta achar lugar. Isto se torna possível quando esse pouco
não vem revestido de desvalorização, o que, aliás, é raro.
Uma direção na análise do sujeito melancólico, pondero, seria poder interrogar o
que dá para fazer com um pouco de imagem e quanto é possível tornar pouco (no
sentido de apequenar) o revestimento discursivo a essa imagem. Tal propósito
freqüentemente esbarra no característico misto de grandiosidade (discursiva) e insigni-
16
AS VÁRIAS CENAS...

ficância (das imagens) do melancólico: ou bem ele se fala em uma falta intransponível,
ou bem se fala em uma especial exceção a tudo e todos. Em um movimento de báscula,
o melancólico oscila entre esses opostos radicais, sem poder transitar pela parcialidade
do um pouco isso e um pouco aquilo. De acordo com sua patologia narcísica, revela sua
extrema dificuldade de revestir sua imagem com “bons olhos” e tece sua resposta com
um pretendido desdém ao imaginário. Seu discurso sobre a verdade prima pela grande
lucidez com a qual interpreta o mundo e traz consigo a dor de quem nunca se engana e
o alijamento do mundo de quem está radicalmente afastado do Outro. Mesmo assim,
não se pode pensar em destituí-lo desse discurso, pois ele circunda o vazio do Outro e
protege o sujeito melancólico de lançar-se nesse mortífero nada. Como já disse, uma
relativa parcialização nesse dircurso acredito que a análise pode compor, ao mesmo
tempo que uma transformação discursiva, penso eu, pode ser trabalhada. Ou seja,
diferentemente de pretender privar o sujeito melancólico de sua defesa à queda no
vazio, a interpretação analítica com o melancólico, o meu ver, tenta incidir sobre a
qualidade da defesa, sobre a possibilidade de se utilizar da sua relação peculiar com a
verdade para produzir algo próximo da sublimação. Pois, se a “verdade” está presente,
no sentido de um modo de relação ao simbólico que é pouco perpassado pelo recalque
– a chaga da castração está sempre cruamente exposta na melancolia, e o imaginário não
está agindo no incremento do recalque – será que potencialmente isso abre caminho à
relação a um destino pulsional outro, a saber, a sublimação? Na melhor das hipóteses
então, o melancólico pode valer-se de sua lucidez para construir, sim, algo reparatório à
sua imagem pouco inscrita, e que não redunde em necessária idealização e em ainda
maior afastamento do outro. Como potencial artista das palavras, o melancólico pode
vir a produzir, a partir do vazio, algo que se dirija a um outro, um público, a leitores etc.,
que eventualmente podem dirigir-lhe um olhar de reconhecimento interessante... Tra-
tar-se-ia de inventar um objeto que a cultura valorizasse, partir de um real que produzis-
se uma inserção simbólica e de um gozo que desse acesso ao desejo.
Apontar para essa direção sublimatória é idealizar a análise do melancólico? É
indicar sua dificuldade? É traçar uma esperança? Pois são os ideais e as desistências
que o melancólico põe em pauta para o analista e questiona quanto a psicanálise cons-
trói um ideal (se for um discurso somado ao discurso das verdades universais) e quanto
não serve para nada (se reduzida ao que parece ser). Portanto, o melancólico requer do
analista um lugar que não seja nem de quem esmorece diante da difícil direção da cura
do melancólico, nem de quem a idealiza a ponto de desmerecer seus vários limites...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 ANDRÉ,Serge.A impostura perversa . Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
2 FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo:uma introdução. In: _____.Edição Standard Brasileira
da Obras Psicológicas Completas de Sigmundo Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 14.
3 _____. Luto e melancolia. Edição Standard Brasileira da Obras Psicológicas Completas de
17
TEXTOS

Sigmundo Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1974b.


4 LACAN, Jacques. O seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988.
5 _____. O desejo e sua interpretação . (Seminário inédito).
6 LAMBOTTE, Marie-Claude. O discurso melancólico : da fenomenologia à metapsicologia.
Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 1997.

18
TEXTOS
A MELANCOLIA NO
TEXTO FREUDIANO
Rodolpho Ruffino*

RESUMO
O texto é constituído de um subsídio capaz de contribuir para a pesquisa da
melancolia, abordando três requisitos prévios à investigação: a questão
metodológica, a relevância clínica na atualidade e a apresentação da bibliogra-
fia.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; método; clínica; estrutura; neurose narcísica

ABSTRACT
The text is a subsidy able to contribute to the research of melancholia. It
approaches three previous requirements to investigation: the methodological
aspect; the clinical importance nowadays and the presentation of bibliography.
KEYWORDS: melancholia; method; clinic; structure; narcissic neurosis

*
Psicanalista (SP), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Um dos autores do livro
“Adolescência – um enfoque psicanalítico”, organizado por Clara Rappaport, SP, ed. EPU, 1993.
Autor de vários artigos publicados sobre o tema da adolescência.
19
TEXTOS

Q ueremos apresentar, com este texto, um pequeno subsídio capaz de contribuir para
o trabalho de todos os que hoje estão envolvidos com a pesquisa em torno deste
eixo que denominamos a clínica das depressões e da melancolia. Na verdade, busca-
mos aqui apenas contribuir com três dos requisitos prévios da investigação a que o
tema convoca: (1) aquele que perscruta a questão metodológica prévia ao exame do
movimento de surgimento do próprio tema no interior do texto freudiano – obra inaugu-
ral da disciplina psicanalítica; (2) a apreciação do que entendemos ser hoje a relevância
clínica do exame dessa questão eminentemente controversa, da posição da melancolia
frente às psicoses; e (3) a apresentação de uma bibliografia que indica onde se situam,
em meio à obra de Freud, os momentos fundantes da construção propriamente freudiana
do conceito de melancolia.
O presente estudo buscará apresentar-se, então, como o inicial, o ponto de
partida do que virá a ser nossa contribuição pessoal a um trabalho que se quer coletivo
e articulado em torno do eixo temático da melancolia1 .

A QUESTÃO DO MÉTODO
1. O tema da melancolia em Freud aparece em sua obra, desde o início, já
articulado a uma específica constelação temática, constelação esta que circunscreve-
mos enquanto uma e também enquanto específica, na medida mesma em que a pode-
mos definir como um dado conjunto finito e articulado de conceitos no qual cada um
deles, quando tomado em relação ao conceito freudiano de melancolia – conceito
este que aqui escolhemos como o eixo organizador em torno do qual o conjunto mesmo
veio a ser concebido –, apresentar-se-á articulado a todos os demais dos implicados
no mesmo conjunto, como deles se separando pela menor distância possível, distân-
cia esta que chamaremos, enquanto a menor possível, de distância em grau um.
Distância em grau um, lembremo-nos, é sinônimo de grande proximidade entre
dois ou mais conceitos; a vizinhança mais imediata possível entre eles; uma distância
muito próxima de contato entre dois ou mais conceitos tendo apenas como mediação
entre eles, em lugar de terceiro, a presença do conceito-eixo em função do qual a
vizinhança mesma se constituiu. Portanto, uma distância em grau um entre dois con-
ceitos equivale à menor distância entre os mesmos, estando eles separados por somen-
te um elemento mediador. Uma distância em grau zero, em contrapartida, seria uma
não-distância e também um não-contato: seria ou a imediaticidade de uma colagem, na
qual dois passam, por engano do estudioso, por um, ou seria a “relação” – se é que
esta palavra aqui tem algum cabimento – do mesmo consigo próprio. No máximo, pode-

1
A Associação Psicanalítica de Porto Alegre escolheu como tema-eixo de seus trabalhos deste
ano de 2001 A clínica da melancolia e dos estados depressivose, em torno dele, convocou seus
associados ao trabalho. O presente trabalho é o início de nossa resposta a essa convocatória.
20
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

ríamos situar, no ponto preciso do grau zero, não uma distância ou uma relação, mas
sim o lugar onde está posto o termo que nomeia o eixo mesmo em torno do qual se
constitui a constelação conceitual da pesquisa – em nosso caso, o grau zero é o lugar
de nada mais do que o do termo melancolia. Do lado oposto, relativamente à distância
de grau um, uma distância em grau n, estimando que n fosse concebido como um
número igual ou maior do que dois, indicaria uma maior distância entre dois elementos,
tão maior quanto maior fosse o valor numérico de n, uma distância na qual os elementos
em relação só se relacionariam separados/articulados através de um número n de medi-
ações. Neste último caso, entre os elementos enumerados entre essas n mediações,
para além de um entre esses que seria o elemento mediador primeiro – portanto o
elemento mediador já presente na distância em grau um entre dois conceitos, o ele-
mento-eixo da constelação conceitual – os demais seriam os próprios conceitos impli-
cados na constelação mais imediata possível ao eixo (que já é mediata, lembremo-nos,
em grau um), mediando, por sua vez, o próprio eixo e os conceitos primeiros a esse
eixo, articulados a outros de maior distância.
Se levarmos em conta que, em Freud, a melancolia enquanto conceito só nos
diz alguma coisa se a tomarmos em sua articulação com um certo número de outros
conceitos em relação aos quais a sua significância se apresenta, então, nada poderá
ser dito de significante sobre o nosso tema se não o considerarmos em relação à sua
vizinhança conceitual. Por outro lado, como amiúde encontramos na obra freudiana, a
larga extensão do campo de vizinhança de um conceito, se devesse ser inteiramente
percorrido para uma investigação conceitual qualquer, já estilhaçaria, de saída, a possi-
bilidade de qualquer empreendimento, tornando qualquer trabalho algo estéril porque
não delimitado. A idéia de constelação temática finita de conceitos articulados numa
distância de grau um, constituída ao redor do tema da pesquisa tomado em posição
de eixo, entretanto, evita-nos o duplo escolho do isolamento conceitual que distorceria
o valor do lugar de um conceito na teoria e o da não-delimitação do que importaria no
campo das relações estabelecíveis a partir de um conceito, que, por visar ingenuamente
resgatar, pela somatória em ordem aleatória, as múltiplas articulações conceituais de
um tema, a maioria das quais, aliás, necessariamente desprovida de relevância, estilha-
çaria de saída, pela ilimitabilidade que imporia à empresa, a possibilidade de se produzir
qualquer produto articulado na pesquisa.
Nossa pesquisa, portanto, pensa em poder percorrer, inicialmente, no texto
freudiano, a constelação temática finita dos conceitos que estiverem articulados
numa distância de grau um, constituída ao redor do tema da melancolia. Fixaremos
em breve quais conceitos supomos estarem aí inclusos. Antes de fixá-los para o leitor,
entretanto, considerando que, com esta pesquisa da melancolia em Freud, queremos
não apenas realizar um boa exegese do texto, mas também dar conta do que é um
enigma contemporâneo da clínica psicanalítica, reflitamos sob que condições have-

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TEXTOS

remos de alcançar efetivamente nosso objetivo. Uma exegese dos fundamentos teóri-
cos damelancolia em Freud pode ser alcançada com apenas o exame da constelação
conceitual de grau um dos conceitos freudianos que se articulam imediatamente ao
redor do conceito de melancolia. Percorrendo apenas essa distância, teremos tocado
no enigma clínico contemporâneo que faz nossa geração de analistas voltar-se para
aquela re-exegese? Supomos que não. Se trabalhássemos com um conceito diretamente
nomeador do que se maneja na clínica, como a transferência, o acting out ou a resistên-
cia, talvez o exame da constelação em grau um que se constitua imediatamente ao redor
desses eixos, fosse suficiente para nos confrontarmo com o que, na clínica, pode fazer
enigma para nós hoje. Mas um conceito metapsicológico e psicopatológico, como é o
caso da melancolia, só se articula com a questão do manejo na direção da cura por uma
via mais longa de mediações. Sendo assim, isso nos obriga a percorrer constelações
conceituais outras, para além da de grau um – mas passando antes por esta –, se
quisermos que nossa pesquisa tenha alguma relevância no debate com as questões
clínicas atuais, estas que, se enfrentadas, fariam nossa disciplina seguir adiante na
marcha da história.
Retomando, a exegese é para nós, aqui, um passo necessário, mas não suficien-
te. Investigaremos a noção de melancolia em Freud a partir da exegese dos funda-
mentos freudianos do conceito em seu texto, delimitando-o ao situá-lo como este
eixo que articula toda a constelação conceitual que ao seu redor é convocada no
texto, desde a constelação em grau um até aquela, mais distante, pela qual a noção
freudiana de melancolia venha a tocar pelo menos em um dos enigmas clínicos pelos
quais somos provocados em nossa geração, para fazermos avançar a ação da psica-
nálise.

2. Isso posto, comecemos por situar o lugar do conceito freudiano de melanco-


lia inicialmente no interior da constelação temática finita de conceitos mutuamente
articulados em distância de grau um da qual ele é o eixo e, em seguida, no interior de
constelações mais distantes até alcançarmos o primeiro elemento conceitual, em al-
gum círculo concêntrico mais externo, que nomeie algo articulado ao manejo do ana-
lista na direção da cura.
A melancolia se articula em grau um com os estados depressivos por metonímia ;
com o trabalho de luto, por oposição; com as identificações por ser dela, enquanto
posição subjetiva primária, que estas derivam a existência; com o de narcisismo, por ser
a constituição ou reconstituição deste o alvo da sua ação no sujeito; e, com o de
neuroses narcísicas por ser no interior destas que ela se situa como psicopathia.
Em grau dois, a melancolia enquanto conceito-eixo apresentará, a partir do
tronco que a articula com qualquer um dos demais conceitos com os quais ela se
relaciona em distância de grau um, a possibilidade de constituir uma outra constela-

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A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

ção conceitual de ordem secundária. Ou seja, aqui se trata de, em relação ao primeiro
círculo (o de distância em grau um), um segundo círculo concêntrico, traçado numa
distância em um grau mais longínquo, rumo ao exterior, do ponto central onde se situa
o lugar do eixo.
A condição de pertencer a uma ordem secundária nem sempre implica necessa-
riamente a degradação da importância conceitual de uma constelação temática. Signi-
fica que com essa ordem secundária adentramos a uma constelação conceitual de
grau dois a partir do nosso eixo. Como vimos, se, para um trabalho com este tema, o
grau um, poderia dar-nos um saber de certa relevância para a pesquisa exegética da
teoria, permanecermos aí, por outro lado, seria mantermo-nos aquém de atingir o enigma
clínico pelo enfrentamento do qual nossa investigação pudesse ousar contribuir para o
avanço da psicanálise diante dos problemas cruciais que a contemporaneidade lhe (ou
melhor, nos) impõe resolver.
Nem todas as constelações secundárias a partir da melancolia teriam, para os
objetivos de nosso trabalho, a mesma relevância, mas a relevância clínica do conceito
só nos será revelada se, após termos passado pela investigação da constelação primá-
ria, adentrarmos e esgotarmos, na obra freudiana, o que se acoberta sob a constelação
secundária articulada pelo eixo constituído pelo tronco conceitual [melancolia >
neuroses narcísicas]. Pelo menos é por esta via que arriscamos a nossa própria leitura
daquilo que hoje faz enigma à nossa prática e daquilo por onde devemos enfrentar a
questão que relançará a psicanálise à frente em nossa geração.
Nessa segunda constelação surgem – nomeemos os seus elementos
constitutivos –, de um lado, alucinações, amência de Meynert, anorexia, bulimia,
confusão alucinatória, delírio alucinatório, estupor alucinatório e hipocondria, como
companheiros de condomínio da melancolia no endereço das neuroses narcísicas,
alguns deles sendo possuidores do mesmo nível estrutural que ela, outros com ela se
aparentando apenas por traços metonímicos; de outro lado, neuroses e psicoses, frente
às quais, ao menos segundo a última e, portanto, a definitiva psicopatologia elaborada
por Freud – aquela assumida por ele a partir de 19242 –, o campo das neuroses narcísicas,
finalmente, se distingue.
(Antes, em Freud, neurose narcísica era sinônimo de psicose e o antônimo de
neurose de transferência – sendo que este último conceito atravessava duas defini-
ções: em uma era sinônimo de neurose sexual de defesa; em outra, era a repetição, em
análise, constituída artificialmente pelo dispositivo analítico, da neurose infantil do
analisando e o meio para que o manejo do analista, pelo simulacro repetido, tivesse um

2
S. Freud, Neurosis y psicosis (1924[1923]), inSigmund Freud Obras Completas, v. 19, Amorrortu,
Buenos Aires, 1996, pp. 67-106.
23
TEXTOS

acesso indireto ao original. Neste sentido, supunha Freud antes de 1924, as neuroses
narcísicas – aqui ainda pensadas como o nome freudiano das psicoses – opunham-se
ao que se chamava, segundo a definição um, neuroses de transferência, na medida
mesma em que as primeiras, tal como eram então pensadas, não possibilitavam o acon-
tecimento, em análise, da transferência e, conseqüentemente, não franqueavam o cami-
nho à reconstrução artificial, em análise, do que, segundo a definição dois, se entendia
por neurose de transferência).
Em nosso caso, buscando prosseguir até o ponto em que possamos atingir, com
o produto de nossa investigação, algo que o perfaça com uma configuração mínima
capaz de alcançar a relevância clínica que o tema “clínica das depressões e da melanco-
lia” pede, haveremos de avançar, ao menos até certo ponto, até uma específica conste-
lação temática terciária que nos leve, no mínimo, a um dos temas no qual o texto
freudiano veio a confrontar-se, entre outras coisas, com um problema de manejo clínico
que, indiretamente pelo menos, esteja articulado ao tema da melancolia. Em nossa
leitura, nós a encontramos naquela constelação que se constitui pelo que, partindo do
tronco conceitual composto que articula {[melancolia>neurose narcísicas]-[neuroses
narcísicas>confusão alucinatória]}, leve-nos ao ponto onde a dificuldade de manejo
clínico de Freud se devia, assim o percebemos, às confusões teóricas pelas quais, à
época, pouco era possível distinguir-se o campo das neuroses narcísicas do das psico-
ses. Este ponto, nós o localizamos num texto bastante extenso que é anterior ao peque-
no e lacunar de 1924 que efetuou a distinção entre as neuroses narcísicas frente ao
campo das psicoses. Localizamos num texto de 1914, que só foi publicado e revisto em
1918, o texto freudiano intitulado De la historia de una neurosis infantil, onde se trata
não de um caso de melancolia, posto que de casos de melancolia Freud não nos
deixou registro escrito, mas de um caso de ocorrência de confusão alucinatória ( uma
outra neurose narcísica, no sentido pós 1924) e de seus efeitos permanentes e catas-
tróficos sobre um sujeito já organizado psiquicamente por uma neurose infantil. Ora, na
época (1914-1918, portanto, seis ou dez anos antes de 1924), o caso já testemunhava,
entre outras coisas, uma indecidibilidade diagnóstica, indecidibilidade bem fundada no
estado incompleto da teoria da clínica desses anos em relação a tudo o que não fosse
relativo à histeria ou à neurose obsessiva. Por isso, esse caso nos chegou sob a sombra
de algo que, sem se confundir com a idéia nada freudiana de borderline, poderia ser
concebido como se situando, de forma nublada, não exatamente na borda entre a
neurose e a psicose, mas sim como que revelando um psiquismo enigmaticamente
construído com elementos que margeariam as bordas do que, com freqüência,
fenomenicamente, caracterizariam as manifestações tanto neuróticas quanto psicóticas.
Trata-se do texto do tratamento do “Homem dos Lobos”, sobre o qual nos pergunta-
mos: o que uma releitura do caso do “Homem dos Lobos” a partir da revisão das
neuroses narcísicas do Freud de 1924 e do avanço que essa revisão proporcionou à

24
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

retomada da interrogação freudiana da melancolia, poderia, ao re-iluminar o estatuto


das neuroses narcísicas, re-iluminar a questão da precisão diagnóstica do caso, e
quanto essa questão, uma vez re-iluminada, poderia em seguida, por sua vez, ao escla-
recer a questão das neuroses narcísicas, esclarecer-nos a questão da própria melan-
colia? E aqui, com o “Homem dos Lobos”, então, situaremos a nossa constelação con-
ceitual terciária ({[melancolia>neuroses narcísicas]- [neuroses narcísi-cas>confusão
alucinatória]}>>{[Homem dos Lobos]}) e o ponto até onde haveremos de seguir para
que, tendo partido do tema da melancolia, virmos a atingir esse ponto onde nossa
pesquisa conceitual se encontra com uma questão crucial para um dos impasses clíni-
cos que devemos enfrentar para o avanço da psicanálise.
Só depois, estando este percurso realizado seremos capazes de expor uma teoria
freudiana da melancolia. Uma teoria que é, em si mesma, freudiana, mas que será, de
ponta a ponta, produto da nossa reconstrução como leitor. Um leitor que, tendo avan-
çado na leitura da constelação conceitual relevante (tal como definimos acima, relati-
vamente aos nossos objetivos, a relevância de uma constelação) de 18883 a pelo menos
1924, primeiramente como se o texto publicado em 1918 não tivesse existido e que, após
considerar o texto de 1924, virá a retrovisitar o de 1918, já munido do material novo de
1924 que neste não está considerado. Esse leitor, a essa altura munido também do
ensino de Lacan para habilitar-se na prática da retrovisitação, poderá estar em condi-
ções de se arriscar numa reconstrução do conceito que o capacite a, finalmente, fazer
face ao próprio enigma clínico que ele abriga.
Retrovisitar um texto anterior à luz do que veio a estar estabelecido apenas em
um ulterior, se isto já exige uma operação especial, mais habilidosa ainda haverá de ser
a operação que procurará reconstruir um livro tão clássico e, à época de sua publicação,
avançado como o De la historia de una neurosis infantil4 com a sua ulterior nota,
pequena e marginal, intitulada Neurosis y psicosis5 . E habilidosa ainda em segunda
potência haverá de ser essa operação se, como o é em nosso caso, a retrovisitação que

3
S. Freud, Histeria (1888), in Sigmund Freud Obras Completas,v. 1, Amorrortu, Buenos Aires,
1996, pp. 41-66.
4
Nesse texto, além de Freud nos apresentar um dos casos que perfaz o número daqueles cinco
que se constituíram em grandes relatos publicados, ele ainda (1) reatualiza e harmoniza sua teoria
com as considerações sobre o seu conceito de narcisismo e com a última sistematização de sua
metapsicologia, (2) reelabora teórica e clinicamente, já com distância e serenidade, a sua diferença
com C. G. Jung e (3) pôde, fazendo um bom uso do longo tempo livre forçado que lhe trouxe o
acontecimento da Grande Guerra, elaborar teórica e estilisticamente o material apresentado
5
Ocorre que a pequena nota marginal não é insignificante e, por sobre trinta e seis anos de
trabalho (de 1888 a 1924), resolve, infelizmente numa redação sumária, uma questão de diagnós-
tico diferencial cuja relevância haveremos de mostrar.
25
TEXTOS

ela implica visar reconstruir o conceito de melancolia, na medida em que esta, definida
enquanto neurose narcísica no sentido de 1924, puder-se deixar ser por nós entrevista
ao negativo pela via do impasse resultante do que não estava estabelecido como defi-
nição de neurose narcísica em 1918 para a consideração da confusão alucinatória.
Se pensamos em trabalhar a temática freudiana da melancolia nessa via que
conduz do conceito em grau um à sua articulação com o que Freud nos trouxe em seu
trabalho acerca do Homem dos Lobos, conforme vimos que essa articulação se faz
possível no grau três da constelação temática do conceito de melancolia em Freud,
considerando que (a) do grau um da articulação temática de um conceito , se quiser-
mos investigá-lo efetivamente, nada pode ser deixado fora e que (b) do grau três, ponto
final deste nosso percurso, só elegemos essa temática relacionada ao tronco não-
imediato melancolia-Homem dos Lobos, passando pela mediação da confusão
alucinatória, então nos é facultado só tomarmos do grau dois, aqui o grau intermedi-
ário da constelação temática do conceito – logo, que só vale para o nosso objetivo
como caminho entre o grau um e o grau dois– aquilo que lá está posto exatamente a
meio do caminho da melancolia, no grau um ao Homem dos Lobos, no grau três. Logo,
é facultado eliminar de nossa investigação, ao menos nesta nossa primeira investiga-
ção desse percurso, tudo o que, da constelação temática de grau dois, conduzir-nos-ia
para alhures. Isto quer dizer que, para este trabalho podemos, a princípio, subtrair
(deixando em reserva a possibilidade de virmos a resgatar alguns deles para o nosso
estudo apenas na medida em que eles vierem a ser requeridos por algum dos elementos
que permanecerão em nosso campo de interesse) os seguintes conceitos já antes enu-
merados: alucinações, amência de Meynert, anorexia, bulimia, delírio alucinatório,
estupor alucinatório e hipocondria (mesmo que possamos prever que, por conta do
conceito de confusão alucinatória – que reteremos – enhamos que resgatar, dentre
estes, num segundo momento, todos aqueles cujo nome está composto pela raiz do
termo alucinação).

SOBRE A RELEVÂNCIA CLÍNICA DA INVESTIGAÇÃO


1. Se o situar da melancolia em meio às constelações conceituais que ela articu-
la, delimitadas pelo que delas é conceitualmente relevante em nossa investigação, nós
já fizemos, resta agora explicitarmos os critérios pelos quais isolamos, conforme o já
exposto pelo nosso roteiro, o que afirmamos ser, a partir do conceito de melancolia,
relevante e enigmático para a nossa clínica atual – a atualidade da questão indicando a
relevância da mesma pela sua enigmaticidade; enigmaticidade que o mundo, em seu
presente, nos põe; posição a qual nós, os analistas desta geração, estamos simultane-
amente tão sensíveis para percebê-la quanto não inteiramente preparados para resolvê-
la.
O que é que dizemos de algo quando supomos que a sua elucidação portaria

26
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

algum saber que seria possuidor de relevância clínica? Dizemos que esse algo, para nós
que nos situamos nesta geração que é a nossa na história da psicanálise, no estado
atual em que as coisas clínicas se nos revelam em função do grau de avanço a que
pudemos conduzir a nossa práxis, que esse algo, apesar de todo o avanço de que a
nossa ação inovadora, e a das gerações que nos precederam, veio hoje a nos capacitar
e, apesar de toda a revelação da verdade das coisas que hoje se nos fez possível, esse
algo ainda nos faz enigma. Mas é do desvelamento, desvelamento mesmo que parcial,
desse enigma que a nossa clínica hoje depende para avançar naquilo que o nosso
tempo dela exige. Um enigma, neste sentido, é algo que pressupõe o avanço já alcança-
do. Ele é o subproduto do já alcançado que impele para o ainda a alcançar. Testemunha,
ao mesmo tempo, o saber consolidado em um tempo e o não-saber que se apresenta
nesse mesmo tempo. Ele é a voz do mundo e a testemunha de um tempo demandando
um novo avanço para uma disciplina e é, simultaneamente, o guia interno à disciplina a
disciplinar o movimento de sua práxis, disciplinando-a ao apontar-lhe a direção para
onde se insinua sua urgência e o que é, para ele, o relevante a fazer.
O reconhecimento da enigmaticidade teórica e da relevância prática do tema da
clínica das depressões e da melancolia para o nosso tempo, parece-nos, já está pre-
sente no espírito do proponente6 quando nos propõe exatamente este tema como eixo
temático para os seus/nossos trabalhos do ano. Está, portanto, ali (em quem nos con-
voca) e aqui (nos que se deixaram tocar pela convocação), presente em nossos espíri-
tos, que se visa com o tema a algo cuja relevância clínica se situa nisso que o tema,
ainda guardando muito de si como estando enigmático à nossa geração, solicita de
decifração urgente para os nossos dias, mas de uma decifração que se estima hoje já
disponibilizada a se efetivar, ainda que só parcialmente, no tempo de um ano – um
enigma é algo cuja enigmaticidade só se explicita nesse instante-limiar em que o tema
nele é, simultaneamente, ainda quase não-pensável e já quase passível de alguma con-
sideração pelo pensamento, ao menos pelo pensamento que não tema se arriscar, por
algum instante que seja, a tentar habitar esse mesmo instante-limiar onde o ainda não
coexiste com o já sim.
E de que urgência de decifração – decifração cujo resultado se nos revelaria
como algo de relevância para a clínica psicanalítica na atualidade – é essa que se trata
nesse enigma (e antes, qual é ele?) contido na idéia freudiana de melancolia? Em quê a
melancolia seria para nós hoje algo mais enigmático do que, por exemplo, a histeria, a
neurose obsessiva ou a paranóia? Frente ao quê, por exemplo, decifrarmos o que está

6
Referímo-nos ao convite à pesquisa do tema, feito pela APPOA, que o escolheu como seu eixo
temático para este ano de 2001.
27
TEXTOS

em jogo na melancolia poderia ser mais relevante para o avanço atual da práxis analítica
do que o seria a decifração, por exemplo, da alegria? O que é isso que uma determinada
época nos pede para que ela, conforme a nossa resposta, venha a nos permitir continu-
armos avançando em nossa marcha? E como não nos paralisarmos em demasia diante
do pedido?
A relevância clínica da decifração do que há de enigmático na melancolia, em
nosso entender, se situa nisso em que ela, como a mais páthica, no sentido de ser a mais
psicoticoforme, ou psicoticóide, das neuroses narcísicas, vem a interrogar hoje, tanto
quanto já inquietava nos tempos de Freud, o estatuto disso que são as formações
estruturais clínicas, retificando nossas suposições anteriores em uma direção que é,
simultaneamente, por um lado, muito pouco suspeitada pelos leitores de Freud e de
Lacan e, por outra, já prevista, em meio às frases menos freqüentemente sublinhadas
nos textos de Freud, como nos de Lacan.
Tomando rigorosamente a via da explicitação desses pontos, presentes em Freud
e em Lacan, não haveremos de abandonar a categoria da estruturalidade, mas havere-
mos de abandonar a falsa suposição, que nunca foi um pressuposto estruturalista,
segundo a qual tudo o que é relevante será estrutura ou de que tudo que não for
estrutura será mero epifenômeno ilusório.
Já explicitamos ao leitor até onde queremos chegar com o trabalho que será o
nosso para este ano: a uma pesquisa teórico-textual do tema da melancolia em Freud
que caminhe até alcançar uma configurabilidade tal de si mesma pela qual ela possa
dotar-se a si mesma de uma relevância clínica mínima que capacite o seu resultado a
nos ter feito avançar no entendimento das neuroses narcísicas até elucidarmos o se-
gredo de sua especificidade frente às formações estruturais clínicas.
E isso nós o desejamos na medida em que pensamos que é só por essa elucidação
que se poderá dar conta, nos dias de hoje, de uma parte considerável disso que se
chama, entre os lacanianos hoje, as novas formas do sintoma na contemporaneidade,
ou os estados limites, e que os outros chamavam de distúrbios borderline.

2. Essas novas formas do sintoma que parecem, à primeira vista, mesmo aos
lacanianos formados pelo estruturalismo, chegar ao sujeito como que por de fora das
estruturas... ; essas novas formas do sintoma que até conduzem alguns que ainda se
pensam lacanianos – os mais apressados a quererem chegar, mal um problema a eles se
tenha posto, o mais rapidamente possível, mesmo cedendo a algumas ligeirezas, à sua
solução, esquecendo que o seu ofício é feito antes para ser constituído pelo gosto no
apreciar dos enigmas de um problema e pela disposição a trabalhar pacientemente com
os mesmos e não pelo imediatismo de deles virem a querer livrar-se tão logo surjam – a
considerar que a era da suposição da idéia de estruturas clínicas, como se isso tivesse
sido apenas uma hipótese equivocada, já se tenha esgotado... ; ...ora, essas novas

28
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

formas do sintoma, longe de anularem o que se veio a captar do mundo ou da subjeti-


vidade a partir da categoria da estrutura, situam essas captações que nos advêm em
meio à realidade na qual é a própria estrutura que se reatualiza de um outro modo
enquanto organiza essa mesma realidade por seus efeitos – a estrutura mesma, que, da
realidade, não faz parte. Em meio à realidade das contingências (no caso da
presentificação do traumático nas neuroses traumáticas), dos habitus (no caso da
produção das neuroses atuais) e, finalmente, em meio à realidade de uma inesperada
reconfiguração da falta no Outro que desestabiliza o efeito de dique que a formação
estrutural clínica sob a qual um sujeito está organizado lhe oferece, devolvendo-o a
uma instabilidade narcísica já outrora superada (no caso do que vem a provocar as
neuroses narcísicas), em meio a esses acontecimentos realísticos, é a estrutura mesma,
que da realidade não faz parte, que ali se põe como o não-acontecimento que, ao legislar
sobre os acontecimentos, permite-nos entrever um lugar ao sujeito que os suporta.
Afora essas emergências circunstanciais, às bordas da estruturação clínica
que por onde elas se situam, venham elas a se tornar duradouras ou passageiras,
venham elas a produzir sofrimento intenso ou superficial, venham elas a determinar
riscos efetivos ou apenas a dar uma lição de aviso (segundo a medida do registro
simultaneamente realístico e imaginário de quem as sofre ou as vê no outro) àquele que
as vive, o sujeito, desde a reatualização dramática na novela familiar da estrutura
edipiana que o constituiu, está organizado segundo uma, e apenas uma – não havendo
aqui espaço para se pensar numa personalidade borderline – das formações estrutu-
rais clínicas, conforme as conceituamos a partir de Lacan, ou das psiconeuroses sexu-
ais infantis de defesa, conforme Freud as nomeou em seu “Minhas teses sobre o papel
da sexualidade na etiologia das neuroses” (1906 [1905])7 . Em ambos os casos, essas
formações estruturais seriam, para cada sujeito, conforme a sua posição no Édipo que
o instituiu como humano e segundo o entendimento atual mais aceito da questão, uma
entre as seguintes: ou fobia, ou histeria, ou neurose obsessiva, para a possibilidade de
se estar organizado sob a modalidade da neurose, ou, para a possibilidade de se estar

7
Esse artigo tem para nós uma importância dupla. Nele, publicado um ano após os seus Três
ensaios, Freud, pela primeira vez, nove anos após ter disso assumido a convicção em correspon-
dência privada à Fliess, põe a público o seu abandono da teoria da sedução. Nele ainda as
neuropsicoses são apresentadas não apenas como distúrbiosclínicos ou quadro páthico , mas
também como a organização defensiva do indivíduo que nele se instaura para responder à
sexualidade infantil , ao seu incômodo e ao seu encantamento, como onegativo da perversão–
consideração que antecipa e fundamenta, para o campo da psicanálise não apenas lacaniana, a tese
lacaniana das formações estruturais.
29
TEXTOS

organizado sob a psicose, ou paranóia ou a esquizofrenia.8 Acrescentemos que o fato


de se estar organizado conforme uma ou outra das formações estruturais clínicas que
isolamos, se esse estar do sujeito o toma por toda a vida, isto, por sua vez não implica
sua condenação a uma psicopathia, pois entre uma formação estrutural que lhe define
a posição subjetiva e o pathos que nele pode instituir-se, se há um enlaçamento causal,
há também uma distância diferenciadora: estar situado sob uma formação estrutural
clínica e sofrer, como também ultrapassar, o desencadeamento páthico que aquela for-
mação franqueia, são possibilidades distintas que dizem respeito mais àquilo que na
estrutura se rompe do que àquilo que, desde ela, impõe-se.
Será sempre, portanto, em meio aos sujeitos já organizados por uma das possi-
bilidades de estruturações clínicas aqui nomeadas que, para alguns, constituídos por
algumas dessas estruturações haverá ou não a possibilidade de nele emergir, por acrés-
cimo, uma ou mais disso que definimos como neurose traumática, neurose atual ou
neurose narcísica. Essas outras neuroses, outras que não as neuroses estruturais,
portanto, só se estabelecerão quando o acontecimento que as condiciona for tomado
sob a determinação da organização da neurose individual de ordem estrutural sob a
qual o sujeito está constituído.
Um sujeito estará aberto ou não à emergência desses estados limites conforme
uma “seleção” cuja determinação parte do efeito de presentificação nele de algo que foi
um encontro com algo da ordem do contingencial. Mas essa presentificação dessas
marcas do contingencial é uma operação que só pode efetivar-se na medida mesma em
que essa contingência, para ser presentificada no aparato psíquico do sujeito, curvar-
se à modalidade que se impõe pelas leis que comandam o conjunto das possibilidades
e dos limites definidos pela própria formação estrutural sob a qual o sujeito estiver
organizado. Ou seja, essas possíveis emergências nele não se darão se não tiverem
sido modalizadas segundo a determinação que advém da formação estrutural de fun-
do sob a qual esse sujeito foi e está constituído.
É como eixo articulador dessa constelação, e na sua articulação com essa mes-
ma constelação conceitual, que delimitamos o campo por onde o conceito freudiano de
melancolia, nos níveis primário, secundário e terciário acima definidos, será tomado
por nós como objeto da investigação para o ano .

8
Há divergências entre autores lacanianos quanto à posição estrutural da fobia, pois muitos a
pensam como uma espécie de “placa giratória”, própria da neurose infantil, que antecederia a
“escolha” da neurose propriamente dita. Alguns incluem a perversão como estrutura particular,
outros a pensam como uma possível modalidade de montagem coletiva na sociabilidade entre
neuróticos. Há quem pense que a esquizofrenia não seria uma estrutura psicótica ao lado da
paranóia, mas algo que estaria para a paranóia assim como as neuroses narcísicas, conforme neste
texto as entendemos, estariam para as neuroses. Nesta última compreensão, a paranóia seria a
estruturaúnicadapsicose,seriaapsicoseporexcelência,conformeafórmuladeLacana para-
nóia é a psicose.
30
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

3. O percurso conceitual que parte da melancolia e chega ao Homem dos


Lobos, percurso este que propomos venha a ser o trilhado por nossa pesquisa, então,
será o necessário a ser por nós aqui seguido para nos habilitar a explicitar a chave do
que consideramos ser o enigma clínico atual de que o tema freudiano que investigamos
é o privilegiado portador
Com isso queremos dizer que, para nós, a chave do enigma clínico do conceito
freudiano de melancolia , segundo os nossos critérios, só nos seria revelada quando,
a partir do que da melancolia se descobrisse ulteriormente (1924) no texto freudiano,
fôssemos, com essa descoberta em mãos, re-interrogar o que desde antes (1918) está
contido no ensaio de Freud a respeito do Homem dos Lobos.
Dissemos agora que é em meio ao texto freudiano relativo ao Homem dos Lobos
que está a chave que abre para nós o enigma do que se esconde na noção freudiana de
melancolia. Dizíamos antes que é ao conduzirmos nossa pesquisa do tema freudiano
da melancolia até o que se apresenta no texto sobre o Homem dos Lobos que nossa
investigação alcançaria configurar-se como possuidora de alguma relevância clínica.
Ora, a penúltima frase dá à última a razão disso que ela enuncia.
Nosso parágrafo imediatamente acima parece circular e tautológico. Releiam-no,
pois não é. Mas concordamos, à primeira vista parece. E parece porque nele faz falta a
determinação do conteúdo implicado na noção de melancolia. Faz falta e, aqui, deve
fazer falta mesmo. Preencher essa falta será tarefa das linhas que nos restam traçar neste
texto. Estabeleçamos antes, entretanto, algo que se refere não propriamente ao conteú-
do positivo do nosso tema, mas do opositivo que o singulariza (as neuroses narcísicas)
entre as demais formas não estruturais do sintoma (neuroses atuais, traumáticas,
tóxicas e narcísicas).
Conforme as pensamos e segundo o que se anuncia em Freud desde 1924, as
neuroses narcísicas não são modalidades ou subcategoria das psicoses. Nossa afirma-
ção também se referenda em Lacan, naquilo que para este autor definiria o estatuto
mesmo daquilo que é da ordem do estrutural. Entre alguns autores, entretanto, mesmo
lacanianios e orientados pela categoria da estruturalidade e que, dentre estes, se situem
como nós e já se tenham afastado da confusão da estrutura com a ordem da realidade,
ainda há muitos que insistem em situar o estrutural ao lado da lógica que funciona numa
realidade. Para estes estruturalistas habituados a pensar a estrutura mesmo que afasta-
da, como deve ser, de toda a empiria, como uma lógica implicada na posição do sujeito
frente a seus objetos, para estes, a melancolia – posto que sua lógica é psicoticomórfica
por produzir alterações sobre uma afirmação primordial, fundada na ambivalência, atra-
vés de uma seqüência de intervenções projetivas cujo resultado será, sem alterar, toda-
via, a ordem dos possíveis, dotado de forte credibilidade delirante quanto ao efetivo –
será definida, erroneamente, nós o pensamos, como uma psicose, ainda que menos
louca ou ainda que sua loucura não possa ser classificada, na linguagem dos alienistas
clássicos, como loucura alienada.
31
TEXTOS

Concordamos, uma psicose não se define pelo grau de loucura que ela manifes-
ta e assim pensar seria conceder à manifestação empírica a chave da estrutura e não o
inverso, por mais que só possamos inferir a estrutura a partir da (e não apenas da)
lógica das manifestações que dela se atualiza na realidade, e também reconheçamos,
sua lógica não é a materialidade da sua manifestação. Entretanto, atentemos: uma
formação estrutural clínica é algo pelo que, quando tendo podido ser apresentada
para um analista, antes que ela venha a se desenhar diante de seu olhar, ela se expõe a
ele a partir do seu efeito de o tomar como nela situado, e nela situado em um preciso
lugar. No lugar em que, desde o Édipo, é aguardado este que a transferência visa, para
que a ele o sujeito se dirija segundo o verbo e no ponto de fuga que cada estruturação
clínica, distinguindo-se entre elas, solicitar. É graças a essa possibilidade oferecida pela
teoria que pode o analista afastar-se da semiologia descritiva em sua impressão
diagnóstica para chegar ao diagnóstico estrutural e não só porque ele substituiu a
manifestação pela lógica subjacente – isto já o faria, nós o sabemos, mais estruturalis-
ta, mas ainda não o suficiente. É porque, para além da importância – importância sem
dúvida verdadeira, mas útil para uma outra finalidade – que há no apreciar-se da lógica
que preside no sujeito sua relação a seus objetos, ao diagnóstico estrutural, no sentido
lacaniano do termo, o que importa é que, a partir dessa lógica, seja ela neuroticomórfica
ou psicoticomórfica, se tome o lugar onde, em meio a esses objetos, a presença do
analista é esperada na transferência.
Nas neuroses narcísicas, o lugar do analista, como também o do amado, põe-se
por sobre uma expectativa narcísica elevada à segunda potência – dizemos “e m
segunda potência”, pois esta se redobra em relação à expectativa narcísica neurótica
comum. Para os neuróticos, para cada lugar onde um Outro é esperado, há uma expec-
tativa de reposição narcísica do Eu que advém, como promessa, promessa formulada
em silêncio a si mesmo, àquele mesmo que espera. Logo, para todos os neuróticos, já há
a presença de uma expectativa narcísica em primeira potência dada, e o alimentar de
tal expectativa não se conta entre o que separaria, senão em grau, um neurótico comum
de alguém que está tomado por uma neurose narcísica.. Nem essa expectativa narcísica
em primeira potência do neurótico e nem aquela expectativa narcísica em segunda
potência daquele sujeito que está tomado por alguma das neuroses narcísicas não
fazem do Outro, entretanto, nele mesmo, uma especularidade em segunda pessoa, ou
uma matéria que se prestasse a alguma forma de colagem ao sujeito, ou um ninguém de
quem nada haveria de se esperar – acontecimentos que, virtualmente, podem se verifi-
car na condição narcísica em terceira potência que caracterizará o laço transferencial
na psicose, construída sob a forma da retirada libidinal em direção a um retorno auto-
erótico, condição, esta sim, distinta qualitativamente das duas ordens de expectativas
narcísicas há pouco nomeadas. A reposição narcísica esperada pela via do dirigir-se a
um Outro, nas neuroses narcísicas não se põe como uma exigência que o sujeito poria

32
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

sobre o Outro, ele mesmo, mas sobre a sua própria expectação, e isso não deixa de
confirmar a alteridade em lugar de terceiro que é atribuível ao Outro sob o pacto fálico
da intersubjetividade propriamente neurótica.
Na expectação transferencial, a neurose narcísica se revela como um acrésci-
mo que se sobrepõe à neurose sexual de defesa cujo limite foi desmanchado e, conse-
qüentemente, o sujeito escorregou para o piso do andar de baixo: a organização resul-
tante da reedição dramática familiar da estrutura edipiana, por falta da presença ou da
eficácia do elemento externo simbólico (algo articulado à função social da imago
paterna) que a manteria, deixou de ser um dique eficaz e o sujeito tombou para a
organização narcísica. Como o lugar requerido do Outro nessa organização é um
lugar materno onde ninguém mais pode pôr-se, essa queda ao narcísico é, antes, uma
queda a uma desestabilização do narcisismo primário que, como que “do fundo”,
haveria de garantir minimamente a relativa estabilidade que, em geral, é encontrada nos
humanos neuróticos.

UMA BIBLIOGRAFIA FREUDIANA BÁSICA


CONCERNENTE AO TEMA DA MELANCOLIA
Apresentamos abaixo uma bibliografia freudiana básica para o estudo do con-
ceito de melancolia no texto freudiano.
Utilizamos como referência, para a constituição desta bibliografia, a Sigmund
Freud Obras Completas (SFOC), em vinte e quatro volumes mais um, da Amorrortu
Editores, de Buenos Aires, na sua edição de 1996. Esta referência passará a ser menci-
onada, daqui em diante, como SFOC.96. Serão, então, enumerados e anexados a uma
listagem, listagem esta organizada segundo a ordem de aparecimento dos textos nessa
mencionada edição, todos e cada um dos textos de Freud nos quais se trata ou se faz
alusão a um ou mais dos temas que interessam a esta pesquisa, conforme nomeados no
título acima ou a eles relacionados em primeiro grau (ou ‘melancolia’, ou ‘luto’, ou
‘estados depressivos’). Em cada um dos itens desse conjunto, será apresentado o título
do texto selecionado, acompanhado do ano de sua publicação original, seguido pela
sigla SFOC.96, pelo número do volume em que nela se encontra e pela paginação
correspondente a ele na mesma. Por último, serão acrescentados em negrito, a cada
item, os números do volume – estes, à frente, sublinhados e sucedidos por ‘dois pon-
tos’(:) – e os números das páginas onde a palavra que nomeia qualquer um, ou mais do
que um, dos temas buscados está contida positivamente no texto.

1 Histeria (1888); SFOC.96; v. 1; 41-66. 1: 51.


2 Tratamiento psíquico (1890); SFOC.96; v. 1;111-132. 1: 119 e 122-3.
3 Un caso de curación por hipnosis (1892-3); SFOC.96; v. 1; 147-62. 1: 152 e 155.
33
TEXTOS

4 «Manuscrito B» (08.02.1893); v.1; pp. 217-23; in Fragmentos de la correspondencia con


Fliess(1950 [1892-9]); SFOC.96; v. 1; pp. 211-322. 1: 218 .
5 «Carta 18» (21.05.1894); v.1; pp. 227-8; inFragmentos de la correspondencia con Fliess
(1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 227 .
6 «Manuscrito E» (06.1894); v.1; pp. 228-34; in Fragmentos de la correspondencia con Fliess
(1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 231 .
7 «Manuscrito F» (18 e 20.08.1894); v.1; pp. 235-8; in Fragmentos de la correspondencia con
Fliess (1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 235-8 .
8 «Manuscrito G – ‘Melancolía’» (07.01.1895); v. 1; pp.239-46; in Fragmentos de la
correspondencia con Fliess (1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1:239-46 .
9 «Manuscrito K» (01.01.1896); v.1; pp.260-9; inFragmentos de la correspondencia con Fliess
(1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 260-9.
10 «Carta 50» (02.11.1896); v.1; pp. 273-4; in Fragmentos de la correspondencia con Fliess
(1950 [1892-9]); v.1; SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 273 .
11 «Manuscrito N» (31.05.1897); v. 1; pp. 296-9; inFragmentos de la correspondencia con
Fliess (1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 296-8 .
12 «Carta 102» (16.01.1899); v.1; pp. 319-20; in Fragmentos de la correspondencia con Fliess
(1950 [1892-9]); SFOC.96; v.1; pp. 211-322. 1: 319 .
13 Señora Emmy von N . (Freud); v. 2; pp. 71-123; in Historiales Clínicos; v. 2; pp. 45-194; in
BREUER, J. e FREUD, S., Estudios sobre la histeria(1895 [1893-5]); SFOC.96; v. 2; pp. 1-
342. 2:72, 89,91,98,100 ,106 , 108 ,111 e 113.
14 Miss Lucy R . (Freud); v. 2; pp. 124-40; in Historiales Clínicos; v. 2; pp. 45-194; in BREUER,
J. e FREUD, S., Estudios sobre la histeria(1895 [1893-5]); SFOC.96, v. 2; pp. 1-342. 2: 124,
125 e 137.
15 Señorita Elisabeth von R. (Freud); v. 2; pp.151-94; in Historiales Clínicos; v. 2; pp. 45-194;
in BREUER, J. e FREUD, S., Estudios sobre la histeria (1895 [1893-5]); SFOC.96, v. 2; pp.
1-342. 2:175 e 177.
16 Parte teórica (Breuer); v. 2; pp. 195-260; in BREUER, J. e FREUD, S., Estudios sobre la
histeria (1895 [1893-5]); SFOC.96, v. 2; pp. 1-342. 2: 221 e 237.
17 Las neuropsicosis de defensa (1894); SFOC.96; v. 3; pp. 41-61. 3: 59.
18 Sobre la justificación de separar de la neurastenia un determinado síndrome en calidad de
‘neurosis de angustia’ (1895 [1894]); SFOC.96; v. 3; pp. 85-116. 3: 91 e 112.
19 Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa (1896); SFOC.96; v. 3; pp.
157-184. 3: 172 e 178.
20 La sexualidad en la etiología de las neurosis (1898); SFOC.96; v.3; pp. 256-276. 3: 268 e
274.
21 La interpretación de los sueños (1900 [1899]); SFOC.96; vs. 4 e 5; pp. 1-608. 4: 110, 332 e
336.
22 Psicopatología de la vida cotidiana (1901); SFOC.96; v. 6; pp.1-306. 6: 176, 203 e 210.
23 Fragmentos de la análisis de un caso de histeria (1905 [1901]); SFOC.96; v. 7; pp. 1-108.
7: 22-4, 28 e 49.
24 El método psicoanalítico de Freud (1904 [1903]); SFOC.96; v. 7; pp. 233-42. 7: 241.
25 Sobre psicoterapia (1905 [1904]); SFOC.96; v. 7; pp. 243-58. 7: 253-4.
26 A propósito de un caso de neurosis obsesiva (1909); SFOC.96; v. 10; pp. 119-94. 10: 147.
27 Cinco conferencias sobre psicoanálisis (1910 [1909]); SFOC.96; v. 11; pp. 1-51. 11: 14.
34
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO

28 Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci (1910); SFOC.96; v. 11; pp. 53-129. 11: 98.
29 Contribuiciones para un debate sobre el suicidio (1910); SFOC.96; v. 11; pp. 231-2.
11:232.
30 Puntalizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito
autobiograficamente (1911 [1910]); SFOC.96; v. 12; pp. 1-76. 12: 66.
31 Tótem y tabú. Algunas concordancias en la vida anímica de los salvajes y de los neuróticos
(1913 [1912-3]); SFOC.96; v. 13; pp. 1-164. 13: 45-7, 58-73, 96, 104, 141-3, 147 e 153.
32 Duelo y melancolía (1917 [1915]); SFOC.96; v. 14; pp. 235-58. 14: 237-55.
33 De la guerra y muerte. Temas de actualidad (1915); SFOC.96; v. 14; pp. 273-304. 14: 291,
300 e 310.
34 Algunos tipos de carácter dilucidados por el trabajo psicoanalítico (1916); SFOC.96; v. 14;
pp. 313-40. 14: 324-5.
35 18ª. Conferencia: La fijación al trauma, lo inconsciente (v.16; pp. 277-91); in Conferencias
de introducción al psicoanálisis (1916-7 [1915-7]); SFOC.96; vs. 15 e 16; pp. 1-444. 16:
252-3.
36 26ª. Conferencia: La teoría de la libido y el narcisismo (v.16; pp. 375-91); inConferencias de
introducción al psicoanálisis (1916-7 [1915-7]); SFOC.96; vs. 15 e 16; pp. 1-444. 16: 388-
9.
37 27ª. Conferencia: La transferencia (v. 16; pp. 392-407): in Conferencias de introducción al
psicoanálisis (1916-7 [1915-7]); SFOC.96; vs. 15 e 16; pp. 1-444. 16: 399.
38 De la história de una neurosis infantil (1918 [1914]); SFOC.96; v. 17; pp. 1-112. 17: 6, 10,
17 e 83.
39 Introducción a ‘Zur Psychanalyse der Kriegsneurosen’ (1919); SFOC.96; v. 17; pp. 201-8.
17: 207.
40 Victor Tausk (19xx); SFOC.96; v. 17; pp. 266-8. 17: 268.
41 Más allá del princípio de placer (1920); SFOC.96; v. 18; pp. 1-62. 18: 12 e 35.
42 Psicología de las masas y análisis del yo (1921); SFOC.96; v. 18; pp. 63-136. 18: 103, 124-
6.
43 Sobre la psicogénesis de un caso de homosexualidad femenina (1920); SFOC.96; v. 18; pp.
137-64. 18: 159.
44 ‘Psicoanálisis’ (v. 18; pp. 231-49) in Dos artículos de enciclopedia (1923 [1922]); SFOC.96;
v. 18; pp. 227-54. 18: 245.
45 El yo y el ello (1923); SFOC.96; v. 19; pp. 1-66. 19: 10-1, 30-1, 51-8.
46 Una neurosis demoníaca en el siglo XVII (1923 [1922]); SFOC.96; v. 19; pp. 67-106. 19:
82-9, 91, 103-5.
47 Neurosis y psicosis (1924 [1923]); SFOC.96; v. 19; pp. 151-60. 19: 158.
48 Presentación autobiográfica (1925 [1924]); SFOC.96; v. 20; pp. 1-70. 20: 56-7. 49.
Inhibición, síntoma y angustia (1926 [1925]); SFOC.96; v. 20; pp. 71-164. 20: 74, 86,
124-6, 158 e 160.
49 ?Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez imparcial (1926);
SFOC.96; v. 20; 165-244. 18:173.
50 El humor (1927); SFOC.96; v. 21; pp. 153-62. 21: 161.
51 Dostoievski y el parricidio (1928 [1927]); SFOC.96; v. 21; pp. 171-94. 21: 177, 180
e 184.
35
TEXTOS

52 Sobre la sexualidad feminina (1931); SFOC.96; v. 21; pp. 223-44. 21: 241.
53 31ª Conferencia: La descomposición de la personalidad psíquica (v. 22; pp. 53-
740; in Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis (1933[1932]);
SFOC.96; v. 22; pp. 1-168. 22: 56.
54 32ª. Conferencia: La feminidad (v. 22; pp. 75-103): in Nuevas conferencias de
introducción al psicoanálisis (1933[1932]); SFOC.96; v. 22; pp. 1-168. 22: 92.
55 Análisis terminable y interminable (1937); SFOC.96; v. 23; pp. 211-54. 23:253.

36
TEXTOS
UMA MELANCOLIA
TIPICAMENTE FEMININA
Rosane Monteiro Ramalho*

RESUMO
A partir de casos de pacientes com anorexia e bulimia (e da maior incidência
destas manifestações em mulheres), é analisado o feminino em nossa cultura e
sua problemática identificatória. É pensada a possibilidade de uma forma de
melancolia tipicamente feminina, uma vez que uma mulher, devido suas dificul-
dades identificatórias – decorrentes de suas relações primordiais –, acabe es-
perando do parceiro um desejo que lhe outorgue uma imagem de si, um reco-
nhecimento. E, por isso, uma ruptura nessa relação implicar um desequilíbrio
narcísico, desencadeando, muitas vezes, manifestações psicopatológicas.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; feminilidade; transtornos alimentares;
modernidade; identificações

ABSTRACT
From cases of anorexic and bulimic patients (and of the major incidence of
these pathologies beyond women), its analyzed the feminine in our culture and
its problematic in identification. The possibility of a typical feminine melancholy
is considered, once women, because of its difficulties in identification – originated
from their primordial relationships –,expects from their partners a desire that
would concede her an image of themselves, a recognition. That’s why a rupture
in this relation implicates a narcissist derangement, triggering, many times,
psychopathological manifestations.
KEYWORDS: melancholy, femininity, anorexia and bulimia, identifications

*
Psicanalista, membro da APPOA, mestranda em Psicologia Clínica pela PUC/SP.
37
TEXTOS

N a clínica, atualmente, o número de casos de anorexia e de bulimia tem crescido


significativamente, bem como as discussões sobre o assunto, tanto na área da
saúde, como na mídia e na população em geral. Fala-se, inclusive, em epidemia dessas
manifestações nos últimos vinte anos, passando estas a ser denominadas doenças da
modernidade. Elas consistem numa relação problemática com a alimentação, num medo
de perder o controle em relação à comida, acompanhada de uma perturbação da imagem
de si. Na anorexia, há uma restrição voluntária muito grande da alimentação e, na bulimia,
há ingestão de uma quantidade excessiva de alimentos de forma rápida e compulsiva,
sendo seguida, geralmente, por vômitos, uso de laxantes e diuréticos, jejuns e excesso
de exercícios físicos. É comum essas manifestações estarem associadas.
Geralmente acometem as mulheres – 90 % dos casos1 –, o que leva essas pato-
logias a serem consideradas como “doenças especificamente femininas”2 , ou “patolo-
gia da adolescência feminina”3 . Ao longo da história da humanidade, manifestações
desta ordem há muito são descritas – principalmente de anorexia 4 , bem como as práti-
cas de jejuns5 – embora isso não nos autorize a interpretá-las da mesma forma que
aquelas com que nos deparamos atualmente.
Assim, por que essas manifestações afetam mais as mulheres? Por que aconte-
cem tanto e de forma crescente atualmente? Em que medida a nossa cultura parece
promover tais manifestações?
Evidentemente não podemos pensar o sujeito independente do seu contexto
social e histórico. Quanto à subjetividade contemporânea, tomo a análise que vários
autores fazem do que poderíamos chamar de mal-estar na cultura hoje, ou seja, do
processo social que levou à discussão acerca da existência ou não de uma crise da
modernidade, entre os quais encontramos: Arendt, Dumont, Debord, Giddens, Lasch,
Lipovetsky, Baudrillard, Lyotard, Sennett.
Numa perspectiva sócio-histórica, a modernidade é o produto do processo de
racionalização que ocorreu no Ocidente e que implicou a modernização da sociedade e
da cultura. A crença na razão e na ciência, produtora dos ideais sociais de igualdade e
liberdade, conseqüência do Racionalismo e do Iluminismo – referentes aos séculos
XVII e XVIII, respectivamente – produziu, na sociedade ocidental, uma desvalorização
das determinações históricas e culturais, tendo como conseqüência, o individualismo
enquanto signo distintivo da sociedade moderna.

1
Segundo várias pesquisas e autores, entre eles, Cordás (1993).
2
Herscovici & Bay (1997).
3
Brusset, apud Urribarri (1999).
4
Laségue (1873); Gull (1965).
5
Com fins de purificação.
38
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

A esse respeito, Arendt (1992) afirma:


“nossa herança foi deixada sem testamento algum. O testamento, dizen-
do ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um
futuro. Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que
selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se en-
contram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma
continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando,
nem passado, nem futuro” (p. 31).
É como se a herança, o legado das gerações, mais do que a tradição e as deter-
minações simbólicas, acabasse por ser o imperativo de se fazer por si mesmo, um ideal
de autonomia, caracterizando o sujeito contemporâneo como individualista e narcísico.
Viver no presente, apenas no presente e não em função do passado e do futuro,
ou seja, essa “perda do sentido da continuidade histórica”, essa erosão do sentimento
de pertença a uma “sucessão de gerações enraizadas no passado e prolongando-se no
futuro”, é o que, conforme também afirma Lasch (1983), caracteriza e engendra a socie-
dade narcísica (contemporânea). Nossa sociedade baseia-se na produção em massa e
no consumo em massa, estimulando uma incrível atenção às imagens e impressões
superficiais e tornando as pessoas frágeis e dependentes do olhar do outro.
Há, em nossos dias, assim, uma substituição do predomínio de referenciais
simbólicos pela proliferação de imagens propostas enquanto ideais identificatórios, e,
por isso, fala-se muito em Era da Imagem. Nesse sentido, Debord (1997), em sua impor-
tante obra “A sociedade do espetáculo”, lançada em 1967 – precursora de todo um
conjunto de análises que enfatizam a preponderância da dimensão imaginária nas rela-
ções sociais contemporâneas –, considera que o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. Afirma que, após
ter havido, em nossa vida social, uma evidente degradação do ser para o ter, atualmen-
te, há um deslizamento do ter para o parecer, que torna as pessoas consumidoras de
ilusões.
Em nossa contemporaneidade, segundo Lipovetsky (1983), domina o sentimen-
to de estagnação, de solidão e vazio, no qual o tudo pode conduz a um sentimento de
apatia e depressão. Esta, cada vez mais banalizada, passa a ser considerada a patologia
de massa dos tempos atuais, e, por isso, também é empregada a expressão era do vazio.
Afirma aquele autor serem comuns as perturbações narcísicas, caracterizadas por um
mal-estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior.
“Os sintomas neuróticos que correspondiam ao capitalismo autoritário e
puritano deram lugar, sob impulsão da sociedade permissiva, a desor-
dens narcísicas (...) a patologia mental obedece à lei do tempo cuja ten-
dência é para a redução da rigidez bem como para a diluição dos pontos
de referência estáveis: à crispação neurótica substituiu-se a flutuação
narcísica” (grifos nossos) (p. 72).
39
TEXTOS

E, portanto, diferentemente dos tempos de Freud, em que os sintomas eram


conseqüência do recalque – e seu fracasso –, atualmente, em muitos casos, parece
tratar-se justamente da falta ou precariedade, do recalque (ou simbólico, como efeito da
castração simbólica). Assim, os sintomas parecem também ser outros, ficando, para o
psicanalista, a necessidade ética de acompanhar tais mudanças.

O FEMININO EM NOSSA CULTURA


A condição feminina mudou de forma significativa, principalmente no último
meio século, com a liberação sexual, o divórcio, os anticoncepcionais, o acesso das
mulheres ao mercado de trabalho – com as possibilidades de estudo e profissionalização
–, com o direito ao voto, com as conseqüências dos movimentos feministas no âmbito
social e político. Nesse sentido, além de esposa e mãe – formas identitárias tradicionais,
restritas ao âmbito privado (doméstico) –, a mulher passou a ter uma inserção pública
enquanto profissional. A atividade profissional passou a ser um valor social (também
para a mulher). E, mais, uma exigência individual e identitária.
A maternidade consistia no destino supremo da condição feminina tradicional,
a ponto de uma mulher estéril não ser considerada mulher. O ser mãe e o ser esposa eram
as identidades outorgadas pela cultura para as mulheres.
Hoje, porém, as mulheres optam por ter ou não filhos, por casar ou não, podem
divorciar-se, ou morar junto sem se casar, ou casar-se (manter uma relação amorosa),
mas residirem em casas separadas. Enfim, as formas de conjugalidade são as mais
variadas. No entanto, essas se dão por escolha dos parceiros e, em geral, por amor,
diferentemente das sociedades pré-modernas, em que os casamentos eram decididos
por outros motivos – como riqueza, posição social –, e que eram determinados pelos
pais, não cabendo à moça qualquer opinião. Ou seja, casamento e amor não estavam
associados. Porém o ideal amoroso não deixava de povoar o imaginário feminino, prin-
cipalmente através da literatura e das fantasias e devaneios. No entanto, por mais
transformações que tenham ocorrido, por mais possibilidades identitárias que a cultura
apresente hoje às mulheres, certos aspectos parecem permanecer e, dentre eles, o ideal
amoroso.
Nesse sentido, conforme Lipovetsky (2000), atualmente mulheres e homens são
reconhecidos como donos de seu destino individual, mas isso não equivale a uma
situação de permutabilidade de seus papéis e lugares, apesar dos valores igualitários.
A variável sexo continua a orientar as existências, a produzir diferenças de sensibilida-
des, de itinerários e de aspirações. O novo não reside no advento de um universo
unissex, mas em uma sociedade aberta, em que as normas, sendo plurais e seletivas,
são acompanhadas de estratégias heterogêneas, de margens de liberdade e de
indeterminação. Ambos os sexos encontram-se em uma situação similar no que se
refere à edificação do Si. Antes, os modelos sociais impunham imperativamente papéis
e lugares; agora, já não promovem mais que orientações facultativas e preferências,
40
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

havendo, portanto, lugar para escolhas e arbitragens individuais 6 .


A identidade sexual é, então, uma determinação simbólica da diferença sexual,
tomada da cultura. E daí decorrem as associações da identidade masculina com a ativi-
dade e, da feminina, com a passividade. Marcando essa distinção, temos o azul e o rosa
das roupinhas dos bebês, bem como as diferentes brincadeiras que são geralmente
propostas – por exemplo, de carrinhos e de lutas para os meninos e de bonecas e de
casinha para as meninas – bem como as estórias infantis que são contadas – de heróis
que lutam por uma causa para os meninos e, para as meninas, estórias de mocinhas que
esperam por seus príncipes encantados, para viverem um grande amor e serem felizes
para sempre. Eles lutam e conquistam, e elas esperam e são conquistadas. Dentre estas,
temos: Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida, Rapunzel. Muitas também lutam,
mas se trata de uma luta por amor, como ocorre com a Pequena Sereia e a Princesa
Encantada. Ou, ainda, entram numa luta – por amor ao pai –, mas acabam encontrando
os seus príncipes, o que se torna a questão principal da estória – é o caso de Bela de “A
Bela e a Fera”, de Pocahontas e de Mulan.
Por mais que nas estórias dos heróis dos meninos também seja comum aconte-
cerem relações amorosas, estas não parecem ser o mais importante, diferentemente das
meninas, em que todo o enredo gira em torno da questão amorosa. A partir disso,
vemos quanto o ideal amoroso marca a identidade feminina. Stendhal, em “Do amor”, já
dizia que, para as mulheres: “dezenove vinte avos de seus devaneios habituais são
relacionados ao amor” (Stendhal, 1993, p. 14). E, apesar de o ideal de autonomia, do
fazer-se por si próprio, ser característico de nossa contemporaneidade, ainda se encon-
tra de uma forma significativa o ideal amoroso – ou o amor romântico7 –, influenciando
a subjetividade, particularmente a feminina.
Na história, a literatura dos séculos XVIII e XIX vinha sendo produzida especi-
almente para as mulheres, e, a partir do Século das Luzes – movimento que cresceu na
segunda metade do século XIX em que houve um crescente interesse na literatura pelas
mulheres –, a literatura inventou o amor burguês – principalmente de novelas e roman-
ces escritos por e para mulheres 8 . Entre estes, difundiu-se a escrita de si – estilo
confessional oriundo do costume dos diários íntimos e das cartas, desenvolvido pelas
mulheres em seu isolamento doméstico. Também, após a Segunda Guerra, foi grande o
interesse feminino pela literatura água-com-açúcar, bem como por fotonovelas.

6
Sobre essa questão, ver também Kehl (1996; 1998).
7
Aliás, o ideal amoroso e o de autonomia não se contrapõem, pelo contrário, ambos confluem no
narcisismo.
8
Relativo a isto, ver também Gay (1990), bem como Kehl (1998).
41
TEXTOS

Nas sociedades modernas, o amor se impôs como constitutivo da identidade


feminina, havendo, assim, uma conjunção dos desejos de controle do destino individu-
al e de uma relação amorosa – que consiste num desejo de reconhecimento e valoriza-
ção de si – que viabilizaria a obtenção de satisfações narcísicas.
Nessa direção, percebe-se que, em relação tanto ao ideal amoroso quanto à
sedução, mantém-se a diferença entre o feminino e o masculino, apesar do ideal moder-
no de igualdade. As mulheres, mesmo podendo hoje tomar a iniciativa de uma relação
amorosa, ainda preferem que os homens a tomem.
“No fundo, o lugar das mulheres no jogo galante prossegue porque elas
desejam que seja assim. E isso porque o papel de ‘espera’ que lhes é
atribuído não implica nenhuma forma de abdicação de si, nenhuma forma
de sujeição mas, antes, uma forma de valorização de si mesmas. Passivi-
dade do papel feminino: maneira, para elas, de serem gratificadas e hon-
radas (...) para experimentar uma proximidade emocional (...) assim como
o prazer de ser objeto de solicitude“ (grifos nossos) (Lipovetsky, 2000, p.
66).
Nesse sentido, conforme o autor, a passividade feminina enraíza-se em uma
tradição aceita – atividade ligada à masculinidade; e passividade, à feminilidade –, mas
esta permite que se cumpram os imperativos e as aspirações fundamentais da individu-
alidade feminina livre e soberana. São as próprias paixões individualistas que susten-
tam atualmente a reprodução social da clivagem dos papéis sexuais no manejo amoro-
so. A divisão quanto à sedução se perpetua não por inércia social, mas em razão de sua
compatibilidade com as paixões modernas da valorização e da livre posse de si.
Juntamente ao ideal do amor romântico, existe um outro ideal bastante difundido
na modernidade, chegando muitas vezes a ser um imperativo, principalmente para as
mulheres, que é o ideal de beleza, de juventude – referido à imagem, à aparência de si –
, ideal este que se coloca também como um meio de sedução.
Como vimos, na falta de ideais sociais coletivos, os individuais é que passaram
a valer. Dessa forma, o investimento no corpo, na saúde, no corpo enquanto belo e
jovem tornou-se uma regra. Lembro de um comercial veiculado recentemente que diz ser
o corpo nosso maior patrimônio. Numa cultura em que a filiação, os valores herdados de
nascença pouco ou quase nada valem, e o ter que se fazer por si mesmo torna-se a
norma, em que o valor de alguém é medido pelos seus atos, ou pela imagem que apre-
senta, obviamente, a imagem do corpo passa a ser um valor – um valor socialmente
reconhecido.
Nessa direção ainda, com os modernos, a beleza-destino – ou seja, qualidades
inerentes ao nascimento, recebidas da natureza – cede espaço para a beleza-responsa-
bilidade –, isto é, depende, portanto, de uma conquista individual, uma produção do
indivíduo. Assim, a beleza é pensada tal qual o self-made man, segundo os referenciais
da era democrático-individualista.
42
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

Com a expansão da imprensa, surgiu uma nova maneira de falar da aparência.


Até então, os discursos sobre a beleza feminina eram obra dos poetas, dos romancistas
e dos médicos, ou ainda segredos cochichados entre mulheres. A partir do século XX,
são as revistas femininas os principais vetores da difusão social dos recursos estéti-
cos, principalmente a partir do desenvolvimento da indústria cosmética e da expansão
de seu consumo, entrando num processo de democratização.
Paralelamente, modelo estético passa a ser difundido pela mídia através da ima-
gem das atrizes, das manequins e top models. Há uma promoção do valor da beleza
feminina, que deixa de estar associada à morte ou à depravação (libertinagem), mas à
celebridade, ao sucesso e à felicidade, acedendo a uma condição de fetiche. Emancipa-
dos do domínio médico e higienista, os cuidados de beleza tornaram-se tão sedutores
quanto a bela aparência das modelos e artistas que os recomendam.
No entanto, os critérios de beleza feminina alteraram-se através dos tempos. A
corpulência feminina era valorizada porque era associada à fecundidade – destino su-
premo da condição feminina tradicional. Atualmente ser mãe não constitui o objetivo
exclusivo da existência feminina, isto é, já não é essencialmente através da maternidade
que se constrói a identidade feminina – transformações estas sustentadas pelos pro-
gressos da contraconcepção e pelas novas motivações profissionais, correlativamente
à valorização da mulher ativa, independente. Conseqüentemente, mudou a sua relação
com a aparência, exprimindo através do corpo sua intenção de apropriar-se das qualida-
des da vontade, de autonomia, de eficácia e de poder sobre si.
As formas arredondadas foram substituídas pela estética da magreza – com a
figura emblemática das top models. Segundo Lipovetsky, a beleza-magreza exprime
mais o triunfo da estética mínima da arte democrática do século XX do que uma política
machista – conforme consideravam as feministas. As transformações da arte moderna,
desde há um século, contribuíram para a promoção social da linha. A beleza longilínea
tem cumplicidade com a arte moderna, na qual uma das tendências é a rejeição da
ornamentação, dos empolamentos e de outras ênfases estilísticas. A simplificação das
formas artísticas expressadas através das figuras chapadas, dos ângulos cubistas, das
superfícies abstratas, das arestas construtivistas e do design funcionalista levou à
beleza das formas sem exagero. Assim, à recusa do excesso decorativo corresponde a
aversão do excesso de peso; a estética da linha é para a mulher o que o despojamento
e a abstração são para a arte moderna.
O autor critica, ainda, as análises que associam os cuidados contemporâneos
com a beleza (entre eles, os regimes de emagrecimento, amplamente difundidos pela
mídia) a valores ascéticos milenares – uma expressão de ódio contra a carne, com fins de
purificação, visando à perfeição da alma. Atualmente, então, trata-se da vontade de ser
protagonista com relação ao próprio corpo, de tornar-se seu dono, de corrigir a obra da
natureza, de vencer as devastações ocasionadas pelo tempo, de substituir o corpo
recebido por um construído – um desejo de apropriação do mundo e de si.
43
TEXTOS

O CORPO FEMININO COMO FETICHE


Nas estórias infantis, as mocinhas, além de serem amadas por seus príncipes,
são sempre belas, mesmo sendo pobres, maltratadas e maltrapilhas (como é o caso de
Cinderela ou a Gata Borralheira, Branca de Neve e Pele de Asno, entre outras). Inclusive
algumas acabam assim se chamando – por exemplo: “Bela”, “Bela Adormecida”. Aliás,
não só as mocinhas são sempre belas, mas os príncipes apaixonam-se por elas justa-
mente por serem belas. Portanto, a beleza se encontra como condição para serem ama-
das. Nos heróis, são valorizadas a coragem e a força, enquanto, nas mocinhas, é valo-
rizada especialmente a beleza – porém esta associada à candura.
Em 1959, eis que surgiu uma boneca chamada Barbie – criada por uma mulher
chamada Ruth Handler –, que veio a obter um grande sucesso entre as meninas, suces-
so este que cresce e se estende até hoje, com fortes perspectivas de continuar, visto
atualmente as meninas não se contentarem em possuir uma dessas bonecas, nem duas,
mas várias. A Barbie se caracteriza por ser uma boneca mocinha e não mais criança ou
bebê, como eram as bonecas até então. Tem a imagem de uma mulher jovem e é simbo-
licamente a primeira boneca adulta da modernidade.
Antes da invenção da infância como tempo separado da vida adulta, como
momento específico da vida, segundo Calligaris (1996), as crianças eram só rebentos
que se esperava crescessem logo, e as bonecas oferecidas para as crianças também
eram adultas. Foi somente com a modernidade que a infância se tornou um valor em si,
e que se passou a oferecer bonecas crianças para criança brincar e, brincando, nelas se
espelhar. Barbie torna-se, então, o símbolo de uma contundente mudança na concep-
ção moderna da infância. Progressivamente as crianças do pós-guerra ocidental não
são mais convocadas somente a fazer felizes os adultos, oferecendo-lhes a imagem da
infância feliz que não tiveram. Elas, atualmente, ainda crianças, parecem dever concre-
tizar as imagens dos ideais que os adultos esperam para si.
Nesse sentido, anos depois da Barbie, surge o Ken, seu parceiro romântico.
Formam, então, o par romântico das brincadeiras das meninas – das quais, muitas
vezes, os meninos também participam –, tornando-se os protagonistas das diversas
estórias de amor que as crianças criam (muitas delas a partir das estórias que escutaram
e que ainda escutam) e que povoam os seus devaneios. Logo surgiram Barbies com
vestidos de noiva, com vestidos de gala e até reproduções das estórias infantis (e,
assim, eis, a Barbie-Cinderela, a Barbie-Rapunzel, a Barbie-Bela Adormecida, etc.). Ou-
tras bonecas nesse mesmo estilo foram posteriormente fabricadas no Brasil (também
obtendo muito sucesso), como, por exemplo, a Susi (nos anos 60) e, na década seguin-
te, seu namorado, o Beto.
Um fato interessante é que a Barbie foi inspirada numa boneca alemã – com a
qual é parecidíssima –, Lilli9 (uma espécie de pin-up tridimensional), porém destinada

9
Um interessante estudo sobre a Barbie encontra-se em Lord (1995).
44
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

ao público masculino e adulto, comprada em tabacarias. Então um brinquedo erótico


usado pelos homens passou a ser um dos principais brinquedos das meninas para
encenarem as suas fantasias amorosas. O corpo feminino, o corpo de uma mulher
jovem, objeto de desejo masculino, transformou-se na boneca – mocinha – com que as
meninas, futuras mulheres, ensaiam a concretização de seus sonhos, de seus ideais, em
especial, o amoroso, mas também o sexual, o profissional, entre outros.
Através dos tempos, foram também fabricadas Barbies caracterizadas segundo
diferentes profissões. Assim, existe a médica, a esportista, a professora, a dentista, a
roqueira, etc. Existe também a filha da Barbie – uma boneca menor e com a aparência de
menina, que, aliás, vem acompanhada de um prato de comida, uma colher e uma cadeira
alta. Essa bonequinha apresenta um dispositivo que lhe permite virar a cabeça para o
lado, de modo a recusar a comida (interessante a associação com a anorexia e a bulimia).
Dessa maneira, conforme as diferentes possibilidades identitárias, a menina pode tor-
nar-se a profissional, a mãe, a namorada (a mocinha apaixonada e amada pelo namora-
do) que almeja ser um dia.
No entanto, o fato de esse brinquedo infantil das meninas ter partido do brin-
quedo adulto dos homens, ou seja, esse objeto das fantasias (infantis) femininas ter
origem num objeto das fantasias masculinas aponta interessantes questões. Temos
projetados nesta mesma imagem, de um lado, o ideal amoroso feminino (o desejo de ser
amada), de outro, o desejo sexual masculino. Assim, apesar de os critérios de beleza
serem de caráter subjetivo, para a menina, ser bela é ter essa imagem – da mulher jovem
e magra, muito parecida, por sinal, com muitas das ilustrações das mocinhas das estó-
rias infantis e também com a imagem de inúmeras top models. E, então, associa o ser
bela com o ser amada, ser valorizada.
Nossa sociedade é regulada por cânones, modelos imaginários – cada época
tem seu ícone, e talvez mais de um –, sendo que um dos traços mais obstinados do
modelo contemporâneo de feminilidade é a magreza. Nesse sentido, a figura da Barbie
acabou tornando-se um símbolo do estereótipo dominante de beleza.
Aliás, parecer-se fisicamente com Barbie é inviável, pois as proporções da bone-
ca são impossíveis para uma mulher. Mesmo assim, algumas mulheres buscam parecer-
se com Barbie, como foi o caso de Cindy Jackson, que chegou a fazer mais de 20
cirurgias, sem, porém, ter conseguido o que queria. Basta lembrar as recentes discus-
sões sobre o fato de a miss Brasil ter-se submetido a 19 operações plásticas a fim de
obter o prêmio.
O ideal de beleza também se encontra amplamente difundido nos diversos con-
cursos existentes, entre eles: o de misses, o de Rainha das Piscinas, o de Garota Verão,
bem como nas várias propagandas, filmes e revistas. As revistas femininas – mesmo as
suas capas – mostram belos rostos, ou esculturais corpos de mulheres. Já nas revistas
masculinas, encontram-se imagens de corpos femininos, mas em posições denotando
erotismo e sensualidade, como, por exemplo, na revista “Playboy”.
45
TEXTOS

Então, elas (meninas e também mulheres), através dessa imagem, buscam ser
amadas, enquanto, para os homens, essa mesma imagem é objeto de desejo sexual,
objeto erótico – embora o que provoque o desejo masculino seja, mais do que o corpo
feminino em si, uma parte deste, um traço, por exemplo, um olhar, ligado a uma fantasia.
É interessante a coincidência dessa mesma imagem de um corpo feminino, essa imagem
desejada que vem a recobrir uma falta e, portanto, acaba tornando-se um fetiche. Não
podemos deixar de associar essa palavra ao seu sinônimo, feitiço, e à dimensão de
fascínio que ela remete – do recobrir, porém, justamente pelo fato de fazê-lo, denunciar
uma falta, um desejo (ou seja, a castração).
Nessa direção, Baudrillard (1996) afirma que o privilégio erótico do corpo femini-
no opera tanto para as mulheres como para os homens. Considera que o fascínio que se
verifica com as partes privilegiadas da troca simbólica, como a boca e o olhar, também se
verifica com toda e qualquer parte ou pormenor do corpo entrelaçado nesse processo
de significação erótica, mas que o mais belo objeto é o corpo feminino.
“O corpo desvelado da mulher, nas mil e uma variantes do erotismo, é
evidentemente a emergência do falo, do objecto-feitiço, é um gigantesco
trabalho de simulação fálica e o espetáculo incessantemente renovado
da castração” (Baudrillard, 1996, p. 173).
Nessa direção, ainda, o autor afirma que a mulher é intimada a fazer-se falo com
o seu corpo, sob pena de nunca ser desejável.
“E se as mulheres não são feiticistas é porque executam sobre si próprias
o trabalho contínuo de feiticização, tornam-se bonecas. Sabe-se que a
boneca é feitiço, feita para ser continuamente vestida e despida, enfeita-
da e desenfeitada. É este jogo de cobrir e descobrir que tem valor erótico
para a infância, é neste jogo às avessas que regride toda a relação objectal
e simbólica, quando a mulher se faz boneca, se torna o seu próprio feitiço
e o feitiço do outro” (Baudrillard, 1996, p. 185).
Por vezes, o fascínio é tanto que o “feitiço vira contra o feiticeiro”, visto que a
proximidade com a realização do desejo poder acabar produzindo justamente a inibição,
a evitação.
Há, porém, um equívoco feminino ao associar o fato de ser desejada ao modelo,
ao cânone – embora, atualmente, a estética cabide (tal como Twiggy) esteja cedendo
espaço às formas mais femininas (vide Gisele Bündchen). Esse modelo pode regrar a
vida social, ou seja, os estilos de vida, mas não os desejos sexuais – estes seguem
outros caminhos. Assim, nesse “fazer-se boneca”, mais do que a semelhança ao cânone,
o que provoca o desejo é o jogo de mostrar e esconder, é estar ligado a uma fantasia.
Isso evidencia que amor e desejo não se equivalem, dão-se por vias distintas – o amor,
enquanto admiração, idealização, tem relação, portanto, com os ideais; e o desejo, com
as fantasias sexuais –, podendo, porém, eventualmente se encontrar, confluir num mes-
mo objeto (numa mesma pessoa). Muitas vezes, a busca feminina de ser amada a leva a
46 provocar desejo, ou melhor, a encarnar o objeto do desejo masculino, a ser o receptácu-
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

lo do objeto da fantasia masculina.


Nesse sentido, o modelo, o cânone, é indiferente à preferência sexual, pois sua
abrangência social, mais do que um efeito de preferências sexuais masculinas, é uma
resposta social à carência de uma definição possível do feminino.

O PROBLEMÁTICO RECONHECIMENTO DO FEMININO


Sabemos que não se pode pensar como separados o indivíduo e o social; ele é
social, ou seja, o sujeito só é sujeito porque é social, efeito da cultura, determinado por
esta. Porém hoje a mesma cultura que impõe ao sujeito a injunção de fazer-se por si
mesmo segundo o ideal de autonomia – prescindindo, portanto, das determinações
simbólicas –, também lhe impõe a injunção de se fazer homem ou mulher (apesar das
várias formas de sê-lo, atualmente, incluindo as possibilidades homossexuais, bem
como as transexuais).
Nesta altura, acredito ser necessário estabelecer uma distinção, pois, até então,
o feminino foi empregado como sinônimo de mulher. Porém, o sexo biológico feminino
não é a mesma coisa que a identidade feminina (que tanto mulheres quanto homens
podem apresentar).
A identidade tem relação com os lugares atribuídos pela cultura, com as formas
discursivas, com as produções imaginárias e, por que não, simbólicas, na medida em
que podem produzir efeitos simbólicos. Esses efeitos simbólicos – ou identificações –
consistem em traços que permitem o reconhecimento enquanto sujeito, uma posição
subjetiva, marcas simbólicas a partir das quais cada sujeito adquire não sua identidade,
mas sua singularidade. Assim, a identificação é com um significante, com um traço
diferencial com o qual o sujeito se identifica, ou seja, tem referência.
Embora o ser homem e o ser mulher mudem conforme os tempos e as diferentes
culturas e apesar do ideal moderno de igualdade, ainda hoje, persistem as diferenças
entre os sexos, ficando, comumente, as certezas mais ligadas ao sexo masculino e a
indeterminação, ao feminino. A identificação feminina é, então, problemática, o que se
encontra geralmente na dificuldade das mulheres em se reconhecer como sujeitos, em
poder definir-se.
Nesse sentido, tomando as diferenças das identificações feminina e masculina,
Lacan (1973) propõe que as mulheres não formam um conjunto, isto é, que não é possí-
vel falar das mulheres (ou da Mulher) como se fossem todas membros de um mesmo
conjunto, mas que se deve tomá-las uma a uma. Considerando que, para haver um
conjunto, é preciso haver uma exceção, o autor pensava que os homens, diferente das
mulheres, formam um conjunto, ou seja, todos os homens, por singulares que sejam,
apresentam algo em comum – todos parecem acreditar em um outro superior (não ne-
cessariamente um Deus), que lhes seja uma referência e com a qual costumam medir-se.
As mulheres, ao contrário, consideram que o tal outro superior é um engodo. Assim,
para Lacan, as mulheres não constituem conjunto, tendo, porém, em comum, somente
47
TEXTOS

uma espécie de pergunta, de dúvida a respeito de qualquer outro – de sua garantia –,


bem como a incerteza quanto ao seu próprio ser.
Isso encontra relação com a dificuldade que, geralmente, uma mulher apresenta
de se sentir fundada sobre sua existência, sentindo-se sempre tão incerta do lugar que
ocupa. E daí, a necessidade feminina de ser confirmada como mulher, isto é, de precisar
de alguém que a reconheça enquanto tal.
Assim, na dificuldade de se obter um reconhecimento simbólico, uma identifica-
ção, é comum o lançar mão de recursos imaginários. Decorre disso a prevalência das
imagens socialmente valorizadas – entre elas os cânones – afetarem mais as mulheres.
Assim, um cânone, um modelo da feminilidade, parece ser proposto e se impor às
mulheres, como se, através dele, elas tivessem, então, como ser reconhecidas e se
reconhecerem como mulheres.
Talvez, por isso, apesar de tantas transformações socioculturais, a expressão
mulher-objeto tenha ainda tanta influência em nossa cultura. Aliás, sob o ponto de
vista antropológico, desde tempos imemoriais, coube comumente às mulheres a função
de objeto de trocas. Assim, por exemplo, os homens trocavam suas mulheres, e estas
passavam então a fazer parte de outros clãs – que, por sua vez, possuíam outros
totens 10 .
Enfim, pode-se pensar no homem como sendo uma das formas de inserção de
uma mulher na cultura.

O OLHAR (OU O DESEJO) MASCULINO NO NARCISISMO FEMININO


Na falta ou mesmo na dificuldade de encontrar uma definição para si, uma iden-
tidade, ainda hoje, muitas vezes, uma mulher espera do parceiro, como um espelho,
poder captar uma imagem que possa informar algo sobre a sua identidade. Por essa
razão, no discurso feminino, o ideal amoroso é tão presente: pois, quando amada, sabe
que é algo importante para alguém – o que já é uma certeza. Aliás, como vimos anterior-
mente, o ideal amoroso está presente desde as estórias infantis escutadas pelas meni-
nas, em que as mocinhas vivem felizes para sempre, porém, sob a condição de estarem
junto dos príncipes.
Nesse sentido, é próprio ao feminino o desejar o desejo masculino, espelhar-se
no olhar do parceiro, ou seja, a receptividade, a disponibilidade de encarnar o objeto da
fantasia masculina. Segundo Aulagnier (1990), a via que Freud denomina a feminilida-
de normal implica, para a mulher, a possibilidade de fazer da faísca que o desejo faz
brilhar no olhar do homem a fonte mesma de seu investimento narcísico: “eis o que será
para ela o reasseguramento narcísico: o dom pedido ao parceiro”. Conforme a autora,

10
Sobre isso, ver Lévi-Strauss (1949).
48
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

isto quer dizer que o próprio da feminilidade é não poder ser reconhecida senão por um
outro, ou seja, o enunciado “desejo de desejo” é tomado ao pé da letra.
Paralelamente, Pommier (1987) afirma que o narcisismo feminino assume sua
dimensão trágica porque se trata de fazer existir no olhar do homem uma identidade cuja
consistência se limita a esse reflexo. Para o autor, a imagem do corpo feminino é frágil
porque só subsiste na dependência do desejo masculino.
Como vimos, são clássicas as associações feminilidade/passividade e masculi-
nidade/atividade. Assim a feminilidade se relaciona à passividade, à disponibilidade de
vir a encarnar o objeto do desejo masculino; porém, uma passividade ativamente bus-
cada.
No seu texto “Uma criança é espancada”, Freud (1919) considera que, no caso
tanto de meninos como de meninas, a fantasia de espancamento corresponde a uma
atitude feminina, a uma posição passiva. Além disso, afirma haver, na fantasia, uma
equivalência do ser batida com o ser amada. Ser batida e amada, então, pelo pai.
Freud também fala em masoquismo feminino, diferenciando-o do masoquismo
originário, fundamental para ambos os sexos, que consiste numa posição objetal à
demanda do Outro (a princípio, materna), como fundante da subjetividade. Isto é, trata-
se do desejo materno libidinizando o pequenino corpo gerado.
O masoquismo feminino, como afirma Freud (1924), “(...) baseia-se no masoquis-
mo primário, erógeno, no prazer no sofrimento”. Parece estar relacionado à fantasia de
ser batida, ou seja, ao efeito do investimento, da marca paterna no corpo. E, por isso,
considera-se uma posição feminina – no entanto, não implica exclusivamente a posição
da mulher, mas uma fantasia de feminização que se relaciona também ao homem.
Feminização esta característica de todo processo de subjetivação, independente do
sexo biológico, por remeter ao investimento libidinal do corpo pelo Outro, do revesti-
mento do corpo do sujeito (numa posição passiva, objetal) por uma segunda pele –,
esta simbólica, composta de significantes, marcas inscritas a partir do seio, da voz, das
palavras, do aconchego, etc., fornecidos pela mãe ao bebê. Implica, portanto, uma
segunda pele necessária para a constituição subjetiva, por possibilitar uma imagem,
uma identificação. Podemos também considerar o masoquismo primário como uma de-
fesa, na medida em que defende o sujeito de ser pura carne, só um corpo, constituindo-
o como sujeito, através de uma segunda pele que reveste de significantes esse corpo,
delineando uma imagem, configurando uma silhueta, erotizando-o e, portanto, fazendo
dele algo além do orgânico.
Na literatura, temos a interessante “História de O”, de Pauline Réage. Esse livro
é considerado um dos romances eróticos franceses mais lidos e polêmicos do século.
Havia uma suspeita de que o autor fosse um homem, mas descobriu-se que se tratava
de uma mulher – uma jornalista francesa que se utilizou de um pseudônimo masculino.
O livro versa sobre a clássica fantasia feminina – a mulher que se deixa seduzir e
arrebatar pela dominação violenta de um homem do qual, voluntariamente, torna-se
49
TEXTOS

escrava. Entrega-se a todos os desejos de seu namorado, de forma a obter o seu amor.
O interessante é que “O” poderia desistir a qualquer momento; no entanto, permanecia.
Aceitou, por amor a ele, mas também porque ela mesma acabava obtendo gozo nessa
condição, por mais que se surpreendesse com isso.
Mais do que sentir dor, ela gozava, obtinha prazer nos seus suplícios (por exem-
plo, ao ser chicoteada), pois, dessa forma, sentia-se amada. É interessante que, na
“História de O”, a personagem não tenha um nome, sendo simplesmente chamada de
“O”. Podemos associar com “o” de objeto, pela posição mesma que ela ocupa, num
abandono de si mesma ao seu namorado – aliás, isso é o que também caracteriza o amor,
a paixão –, podendo, inclusive, morrer, caso venha a ser abandonada.
A história de “O” não apresenta um final. A autora sugere, no entanto, dois
destinos possíveis para “O”. No final do livro consta, numa breve notinha, que o último
capítulo fora suprimido, mas que “O” era abandonada pelo namorado. Consta, também,
que existe um segundo fim: vendo-se a ponto de ser abandonada pelo namorado, “O”
preferiu morrer, no que ele consentiu. Ainda, na literatura, encontram-se muitas obras,
nas quais as personagens femininas, ao serem abandonadas pelo homem que amam,
cometem suicídio como forma de aplacar a angústia, o desespero e o vazio em que se
encontram. É o caso, por exemplo, de Anna Karenina (de Tolstói) e Emma Bovary (de
Flaubert).

DEPRESSÃO FEMININA E ABANDONO MASCULINO


Na clínica, na escuta de algumas pessoas com anorexia e bulimia, apesar das
distintas histórias, eu percebia certos aspectos em comum. Eram moças que apresenta-
vam uma problemática imagem de si, sendo frágeis suas sustentações enquanto sujei-
to. As manifestações de anorexia e bulimia, nesses casos, iniciaram após um rompimen-
to amoroso, vivido por elas como experiências de abandono, de desamparo. Ao longo
das análises, puderam também falar da difícil relação que tinham com suas mães, sentin-
do-se abandonadas, ou seja, sentiam não ter encontrado um lugar para si no desejo
materno, embora, na busca de encontrá-lo, acabassem numa posição sacrificial.
A aquisição de uma imagem de si é conseqüência das relações primordiais
estabelecidas, isto é, a constituição subjetiva se dá através de uma primeira imagem,
tomada especularmente, a partir do olhar, do desejo de um outro (no caso a mãe, como
encarnação deste Outro primordial) endereçado ao sujeito, imagem esta que passa a ser
uma matriz simbólica no seu processo de identificação. Ilusão, portanto, necessária à
constituição subjetiva.
Porém, na falta de um olhar, de um desejo que forneça uma imagem, que defina
uma silhueta, é como se este olhar desfalecente materno, dirigindo-se para um além,
atravessasse o corpo do bebê a ponto de torná-lo transparente11 . Trata-se do rosto da
mãe que se interpela e não responde nada. É o que se encontra na melancolia (ou
11
Conforme também considera Lambotte (1997).
50
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

neurose narcísica) – 1 2 uma falha narcísica no nível da constituição da imagem especu-


lar,vistoomodeloidealpermanecersempreinacessível,estrangeiro, fora do alcance do
sujeito; enfim, uma frágil imagem de si (Eu-ideal) diante da potência do Ideal (o modelo
materno enquanto Ideal do eu).
O sentimento de beleza decorre da fascinação do primeiro olhar. Assim, a fealda-
de ou a insuficiência com a qual um sujeito se percebe, fazendo-o vacilar em sua iden-
tidade, é o que se encontra na melancolia. Neste sentido, quanto mais percebe confusa-
mente a estranheza de sua forma, mais se esforça indefinidamente em obter seus contor-
nos.
Penso ser esta também a problemática das pacientes referidas anteriormente,
isto é, uma fragilidade narcísica por sentirem não haver encontrado – ou encontrado de
forma tênue – um lugar para si no desejo materno, um reconhecimento enquanto sujei-
to, uma diferenciação, tal qual o que encontramos na melancolia. Há, em seus sofrimen-
tos, um apelo desesperado de vir a aceder a uma condição subjetiva. Desta forma, essas
moças esperavam dos namorados um desejo, um investimento deles em relação a elas,
que sentiam não ter encontrado em suas relações primordiais. Assim, a partir desses
casos, podemos pensar na possibilidade de uma forma de melancolia tipicamente femi-
nina (ou de uma potencialidade, de uma tendência melancólica), na medida em que uma
mulher, por não ter-se sentido investida em suas relações primordiais, passe a buscar
do seu parceiro um desejo que lhe outorgue, então, uma imagem de si. E, por isso, o
rompimento dessa relação pode implicar uma desestruturação psíquica, podendo levá-
las, inclusive, à eclosão de manifestações de anorexia e bulimia. O fato de o
desencadeamento dessas manifestações, nesses casos, terem acontecido a partir de
uma frustração amorosa, de uma separação vivida, por elas, como abandono – momen-
tos de depressão, apresentando, inclusive, idéias de morte – , parece ter reeditado, num
tempo segundo, uma outra experiência de abandono, de desamparo (mais primordial),
vivida durante o processo de constituição subjetiva, relativo às suas primeiras rela-
ções. Assim, sua origem era outra, mais anterior, mais arcaica.
A angústia do abandono é central nesses casos, nos quais a perda do objeto
remete a um estado de desamparo, ou seja, em que uma separação é vivida como um
abandono. Mais ainda, uma ruptura amorosa é vivida como um aniquilamento do Eu.
Podemos pensar que, apesar das distintas histórias, os namorados haviam sido, para
elas, um suporte narcísico, uma vez que propiciavam o que lhes faltava interiormente no
nível da representação de si, outorgando-lhes uma imagem. O rompimento dessa rela-
ção abalou a frágil consistência subjetiva que, até então, mantinham, como se morres-

12
Distinta da psicose e da neurose de transferência (histeria, neurose obsessiva e fobia), como já
propunha Freud.
51
TEXTOS

sem também na perda de alguém que amam.


Elas pareciam comprovar, na própria pele, a necessidade de – para ser, para
existir – ter que ser a princípio para alguém; ou seja, é fundamental ser desejado para,
espelhando-se nesse desejo do outro em relação a si, vir a ser.
Quanto à questão de a anorexia e de a bulimia acometerem mais sujeitos do sexo
feminino, existem poucos estudos que avancem mais do que a simples constatação, ou
a sua atribuição ao apelo cultural do corpo ideal afetar mais as mulheres. Porém, quanto
à associação dessas manifestações com a feminilidade, acredito ser significativo o fato
de a angústia da separação, de abandono, ser decisiva tanto na bulimia e na anorexia
quanto na feminilidade.
Freud1 3 afirma que, diferentemente do temor de castração característico dos
sujeitos do sexo masculino, o que sucede nos do feminino é o temor à perda do amor.
Este vem a ser um prolongamento posterior da angústia da criança quando constata a
ausência da mãe. Ele relaciona o perigo do desamparo psíquico ao estádio da imaturida-
de inicial do Eu, e o perigo da perda do objeto (ou perda do amor), à falta de auto-
suficiência dos primeiros anos da infância.
A angústia da perda (de amor) do objeto é, para André (1996), central nas
manifestações de anorexia e de bulimia e situada no cerne da feminilidade, sendo o
ponto onde melhor se pode apreender a articulação entre o que remete ao narcisismo e
o que remete à feminilidade. Porém, na anorexia e na bulimia, o objeto (visto este pres-
supor a separação) é vivido não tanto como objeto de amor privilegiado, mas como
objeto cuja perda constitui o perigo psíquico, isto é, implica a desorganização do Eu.
Freud,1 3 em seu texto “Sexualidade feminina”, de 1931, já afirmava haver uma
relação pré-edípica mais intensa e complexa de uma menina com sua mãe. O fato de que
um filho homem pode ser o representante fálico por excelência, por portar o pênis
(conforme a equivalência simbólica, pênis-falo, como apresenta Freud), talvez seja uma
das causas da dificuldade que uma menina tenha em obter um lugar para si no desejo de
sua mãe. Lembremo-nos do filme “A escolha de Sofia”, de Pakula, em que, além do
horror do nazismo, algo que também horroriza é uma mãe ter que escolher, entre os seus
dois filhos, qual deles entregará à morte, e o faz, escolhe sua filha, ficando com seu filho.
As diferenças na constituição psíquica de bebês do sexo feminino e masculino
decorrem das diferentes respostas maternas a eles. Neste sentido, parece existir uma
maior tendência à indiferenciação na relação entre mãe e filha (a um não-reconhecimen-
to da diferença) – indiferenciação esta, por si só, geradora de angústia e agressividade
–, na medida em que a mãe vê a si mesma no lugar de sua filha.
Penso que esse “ver-se a si própria na filha” será tão mais intenso conforme

13
Em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1925) e em “ Ansiedade e vida instintual” (1932).
52
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

remeter a uma repetição do que viveu com sua própria mãe1 4 Aliás, isso talvez apresen-
te relação com os casos referidos, uma vez que, assim como suas mães, estas moças
ocupavam um lugar semelhante na filiação. Além disso, as mães, segundo diziam as
filhas, também possuíam uma história de abandono em suas relações primordiais. Tra-
tar-se-á somente de uma coincidência?
Nesse sentido, a mãe que não olha a filha, devido à sua dificuldade ou impossi-
bilidade de desejá-la, ou a mãe que, ao invés de palavras (significantes, da ordem do
desejo), dá, à filha, somente comida (objeto da necessidade), bem como a mãe que vê a
si mesma na filha (no lugar desta), ou mesmo a mãe fálica, sem falta, que impede ou
problematiza uma diferenciação geram um mesmo impasse: a dificuldade de a filha obter
tanto uma imagem de si quanto um reconhecimento como sujeito, sentindo-se abando-
nada. E, por isso, o vazio e o desamparo. Nessas situações, o modelo materno – como
Ideal do Eu – apresenta-se como inatingível, frente ao qual as tentativas da filha de
obter um reconhecimento tornam-se vãs. Dessa forma, por mais que ela faça, nunca será
suficiente (para ser reconhecida em sua diferença), advindo daí a sensação de eterna
insuficiência e de inconsistência que tem de si mesma. Acerca disso, o filme “Sonata de
outono”, de Bergmann mostra, muito bem, a inacessibilidade de uma mãe pianista,
voltada para si mesma, gerando, na filha, retraimento e inibição.
É possível que essas questões contribuam para explicar o porquê de tanto a
anorexia como a bulimia acontecerem predominantemente em sujeitos do sexo feminino,
bem como as razões para a melancolia acometer mais as mulheres.1 5

FANTASMA DO ABANDONO
Não apenas estas pacientes viveram situações de separações como abandono,
reeditando um abandono anterior – relativo às suas primeiras relações -, assim como
todos os seus relacionamentos (principalmente os amorosos, mas também os profissi-
onais, de amizade, etc.) eram experienciados como estando na iminência de serem rom-
pidos. Viviam, portanto, à espreita do fantasma de abandono. Aliás, mesmo quando se
aproximavam de alguém ou estabeleciam alguma relação, era comum sentirem, a princí-
pio, que não gostavam delas – ou que elas lhes eram indiferentes – até prova ao
contrário, precisando, então, de comprovações (ou testemunhos) de que eram amadas.
E, mesmo quando tais comprovações lhes eram fornecidas, ainda assim as percebiam
como frágeis, pois poderiam, a qualquer momento, ser desfeitas, não lhes sendo, por-
tanto, confiáveis em sua solidez. Elas apresentavam uma constante desconfiança quan-
to ao afeto, ao amor do outro por elas, conforme também foram suas relações primordi-

14
Ramalho (1993).
15
Kristeva (1989).
53
TEXTOS

ais – o fato de não encontrarem (ou obterem de forma tênue) um lugar para si no desejo
do Outro torna-lhes muito difícil obterem uma identificação. E, por isso, o sentimento de
desamparo e de insuficiência – tão semelhante ao do melancólico – era freqüente nes-
sas pacientes.
Neste sentido, essas moças apresentavam também uma tendência “a se fazer
abandonar”, como se a mínima atitude do outro fosse tomada por elas como abandônica,
uma realização de um destino implacável e inevitável, confirmando-o, então. Isto é, seu
fantasma tomava corpo. Assim, em situações de separação, sentiam-se rejeitadas (como
também passaram a fazer com o objeto-alimento, na anorexia), bem como sentiam-se
vomitadas (como também passaram a fazer nas suas crises de bulimia) – um aborto que
não se deu, bebê vomitado por sua mãe.
Esse fazer-se abandonar vai na mesma direção do sentir-se responsável pelo
abandono, ou seja, de que, por ser alguém tão insuficiente e sem valor, a separação se
torna uma conseqüência lógica.
Tal fantasma do abandono apresenta, como vimos, uma estreita ligação com a
angústia princeps feminina – temor da perda do amor, ou seja, do amor-espelho que lhe
fornece uma imagem, uma identidade para si, que considero não só feminina, mas ine-
rente a todo sujeito contemporâneo, uma vez que é o narcisismo que caracteriza nossa
cultura hoje. Nessa direção, esse fantasma de abandono e, conseqüentemente, o de-
samparo, solidão e depressão presentes nessas pacientes são também o que se encon-
tra em nossa cultura atualmente, como sintoma.
No entanto, além do fazer-se abandonar, algumas vezes, elas tomavam o lugar
inverso, embora comandado pelo mesmo fantasma – segundo os dois lugares (ativo e
passivo) do fantasma, resultado da relação estabelecida entre o Outro e o sujeito –, ou
seja, elas precipitavam o temível abandono. Por exemplo, em determinadas situações,
ao temerem ser abandonadas, geralmente numa relação amorosa, elas terminavam a
relação. Como se a angústia frente a uma iminente e inevitável ruptura – que as condu-
ziria a um insuportável estado de desamparo – as levassem a tomar, então, uma medida
de defesa psíquica.
Outra forma de relação – ou de defesa – adotada por elas consistia no tentar
estabelecer um limite nas relações, de maneira a evitar tanto o ser abandonada quanto
o ser engolida. Em ambas as situações, ou seja, no sentir-se abandonada ou no sentir-
se engolida, há a perda do limite e o risco de uma morte psíquica, ou seja, a anulação
subjetiva. Eu diria, ainda, que se trata dos dois lados da mesma questão: a distância
ótima, a justa medida, nem muito perto, que sufoque, nem muito longe, que abandone.
E, assim, na análise, a relação transferencial também lidava com essa delicada demarca-
ção: o transitar nesse estreito e frágil limite entre o abandono e o ingurgitamento.
Através da recusa do objeto, na anorexia, e da sua ingestão e posterior expul-
são, na bulimia, essas moças buscavam estabelecer um limite, inscrever uma separação,
uma falta, até então impossível de ser simbolizada, tal qual o fort-da freudiano. Da
54
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...

mudez materna, as poucas coisas que conseguiam escutar de suas mães endereçadas a
elas foram, em geral, relativas à sua alimentação. E, portanto, através dessas manifesta-
ções é como se elas dissessem – pelo ato, e não pela palavra – que não é do objeto da
necessidade (orgânica) que precisam para viver, mas, fundamentalmente, de desejo –
objeto da necessidade psíquica.
O “ter que se virar por si mesma” manifesto por essas moças (a partir das rela-
ções parentais, em especial, com suas mães) apresenta uma estreita relação com o ideal
de autonomia, como vimos antes, tão presente em nossa cultura – o poder prescindir do
outro. Ou seja, o “façam-se por si mesmas” – como conseqüência do sentimento de
abandono e desamparo – era tomado por elas quase como um imperativo, que, aliás,
mostra-se similar ao que, segundo elas, provavelmente também teria acontecido com as
suas mães em relação às suas próprias mães. E esse parece ter sido um traço identificatório
para essas moças, que, no entanto, se percebiam como insuficientes, incapazes de dar
conta. Tomavam o “fazer-se por si mesmo” como um imperativo e, diria mais, como uma
necessidade vital, porém com um enorme vazio no lugar das ancoragens, das referênci-
as que as pudessem orientar.
Assim, para essas moças, a mesma busca de um olhar materno que desenhasse
seu corpo, que lhe desse uma forma, uma imagem, com a qual elas pudessem identificar-
se, obter um reconhecimento enquanto sujeito, também acontecia em relação aos seus
namorados: a busca de um olhar masculino que as delineassem em um corpo feminino,
que as definissem enquanto mulher.
Então, elas esperavam dos namorados um olhar, um olhar que não receberam de
suas mães ...um olhar como aquele que os príncipes dirigiam às mocinhas – revestindo-
as de um brilho especial – nas estórias que costumavam ler, quando crianças... um olhar
como aquele que os homens apaixonados dirigiam às suas amadas nos vários romances
que leram e que ainda lêem, embora, de certa forma – assim como, desde as suas
brincadeiras com as Barbies, em que encenavam a impossibilidade deste amor –, elas
sempre soubessem que esse príncipe não existe.
Mesmo assim, não cessavam de buscá-lo, ...de buscar este olhar que as permi-
tisse viver, ...que as permitisse existir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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55
TEXTOS

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12 _____. Ansiedade e vida instintual – conferência XXXII (1923). In: Obras Completas. Rio de
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19 HERSCOVICI, C. & BAY, L. Anorexia nervosa e bulimia. Porto Alegre: Artes Médicas,
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20 KEHL, M. R.. A mínima diferença. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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22 KRISTEVA, J. Sol negro : depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
23 LACAN, J. (1972-73) O Seminário. Livro 20. Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1985.
24 LAMBOTTE, M-C. O discurso melancólico . Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 1997.
25 LASCH, C. A cultura do narcisismo . Rio de Janeiro: Imago, 1983.
26 LASÉGUE, C. De l’anoréxie hystérique. Archives Générales de Médicine, Paris, Libraire de
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27 LÉVI-STRAUSS, L. Les s tructures élémentaires de la parenté . Paris: PUF, 1949.
28 LIPOVETSKY, G. A era do vazio: e nsaios sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa:
Relógio D’Água, 1983.
29 _____. A terceira mulher . São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
30 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Avon
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31 POMMIER, G. A exceção feminina. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1987.
32 RAMALHO, R. Loucura feminina. Palestra realizada na Jornada da Clínica Psicanalítica:
Psicose, promovida pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, Porto Alegre,
dez.1993.
33 RÉAGE, P. História de O . São Paulo: Brasiliense, 1985.
34 STENDHAL. Do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

56
TEXTOS
UMA FALHA SÚBITA NA
LÓGICA DO UNIVERSO
Maria Rosane Pereira Pinto *

RESUMO
Partindo da diferença entre amor e paixão amorosa, o texto aborda o luto na
clínica do psicossomático, a partir de uma leitura do corpo como lugar de inscri-
ção da paixão. Principalmente, interessa interrogar os mecanismos do
psicossomático do ponto de vista do inconsciente, do corpo e da paixão, em
suas implicações na clínica do luto. Por fim, o texto também se propõe a avan-
çar e lançar algumas questões sobre o intrincado desdobramento da transfe-
rência no sujeito em sofrimento psicossomático, assim como as dificuldades
na direção da cura.
PALAVRAS-CHAVE: psicossomático; corpo-paixão; amor transferencial

ABSTRACT
The text approaches, from the difference between love and passion, the mourning
in the psychosomatic clinic, from a concept of body as the place of passion’s
inscription. It has the interest of questioning, mainly, the psychosomatic
mechanisms from the point of view of the unconscious, the body ant the passion,
and their implications in the mourning clinic. Finally, the text intends to advance
and to propose some questions about the intricate unfold of transference on the
subject in psychosomatic suffer, as qell as the difficulties in cure’s direction.
KEYWORDS: psychosomatic; body-passion; transference love

*
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e daAssociation Psychanalyse
et Médecine (Paris).
57
TEXTOS

Si vis vitam, para mortem1

A ssim se define o amor no poema que Marguerite Duras (1982) nos deu a ler sob o
título “A Doença da Morte”:“O amor, ele talvez tenha surgido de uma falha súbita
na logica do universo’’.
Sem fazer aqui um comentário da obra, o que mereceria um espaço especial,
retenhamos apenas que este pequeno tratado sobre o amor nos ensina muita coisa
sobre a paixão abismal, sobre o impossível da relação sexual e sobre o desejo e a morte
como condição da vida. Especialmente, guardemos esta noção de “falha súbita’’ da
qual surgiria o amor.
Sabemos que o amor efetivamente supõe uma perda, uma separação, uma falha.
É em conseqüência desta separação que se inscreve enquanto significante que o amor
pode sobreviver, que o sujeito pode fazer laço com o outro. Por sua vez, a paixão
amorosa se desencadeia justamente a partir da ausência do outro, ausência cujo luto o
sujeito não consegue fazer, logo, não significada.
Partindo dessa diferença básica entre amor e paixão amorosa, tentaremos abor-
dar aqui o fenômeno clínico que conhecemos por psicossomático, tomando-o pelo viés
do corpo como lugar de inscrição da paixão. E, na medida em que a paixão supõe o luto
impossível de uma separação, a hipótese sobre a qual se fundam nossas interrogações
é a de que se trataria, em vários casos de sujeitos em sofrimento psicossomático, de
uma paixão que se inscreve de forma melancólica no corpo do sujeito. Não se trata,
porém, de propor o psicossomático como resolução para a melancolia, menos ainda de
sugerir uma estrutura para este fenômeno. Interessa-nos, aqui, interrogar alguns de
seus mecanismos do ponto de vista do inconsciente, do corpo e da paixão em suas
implicações na clínica do luto.
Também cabe salientar que temos bastante presente quanto os temas do corpo
e da paixão restam bastante complexos, por vezes mesmo evitados, nas referências
conceituais da clínica psicanalítica, sobretudo se sucumbimos nós mesmos a uma pai-
xão por nosso corpus teórico. No entanto, uma tal complexidade não impede que a
presença do analista, por exemplo, em um serviço de oncologia, dentro de um hospital
geral2, possa revelar-se fecunda, na exata medida em que noções como corpo e pathos,
para a clínica médica, diferem radicalmente daquelas que interessam à clínica psicanalí-
tica. Mas é importante não perdermos de vista, igualmente, o fato de que não conside-
ramos o câncer como o paradigma do psicossomático. Ao contrário, em nosso entendi-

1
A citação em latim é de autoria desconhecida, pois se trata de um ditado popular. Freud a cita em
Notre rapport à la mort , em Actuelles sur guerre et la mort, Presses Universitaires de France,
1988, Paris, p.155.
2
No caso, o serviço de oncologia doHôpital de la Pitié-Salpêtrière, em Paris, serviço do Professor
R. Khayat, junto ao qual participo do trabalho de groupe de parole (psicoterapia de grupo) com
pacientes, sob a coordenação da psicanalista Josette Olier.
58
UMA FALHA SÚBITA...

mento, uma tal patologia se articula ao psicossomático a partir de condições subjetivas


extremas e certamente específicas de alguns casos, embora estes possam ser relativa-
mente numerosos.
Uma vez colocadas as delimitações de nosso propósito, tomamos aqui como
referência para pensar o tema da paixão em psicanálise os desenvolvimentos de Jacques
Hassoun (2000) em seu trabalho “Les Passions Intraitables”, que nos parecem comple-
tamente pertinentes.
Segundo Hassoun, a paixão amorosa assinala, fundamentalmente, a ausência
do significante, ausência esta que engendra o estado de paixão no sujeito. Decorrente
de um traumatismo das identificações primárias do qual ela vai ser a repetição, a paixão
amorosa se situa em uma articulação traumática da perda do objeto.
Ora, o modelo da perda do objeto pode ser pensado a partir da perda do seio
materno, no sentido de que ‘’a mãe perde o seio’’ em conseqüência da função paterna.
O pai, na articulação mal sucedida dessa perda, não vem ocupar a função de terceiro
entre este primeiro Outro que é a mãe e a criança, ele ali tem apenas o papel de tela de
interposição separadora, e sua representação é apenas uma espécie de rastro, tão
desvanecedor quanto o de um espectro. Daí podermos dizer que, na paixão, uma parte
do simbólico se ausenta, esta mesma parte do pai que escaparia do enlaçamento do Real
ao Simbólico e ao Imaginário.
Logo, a paixão amorosa se sustenta de algo de insubjetivável, que produz um
buraco no imaginário e que vai ser sua fonte de origem. Neste estado de dupla aliena-
ção, o sujeito vive o drama de estar apaixonado por uma imagem que lhe roubou-lhe a
sua e, a este outro essencialmente ausente, ele parece dizer, como nos propõe Hassoun:
‘’minha pele não vale nada, já que nela estás entranhado, e tu, envelope vazio, objeto de
minha dejeção e de meu capricho, eu roubo tua imagem para tornar minha pele e meu
corpo objetos derrisórios, pois eles são apenas os dejetos de tua ausência e de tua
desencarnação[...]’’ (2000, p.21).
Estas breves reflexões sobre o amor e a paixão amorosa nos permitem concluir
que, nesta última, o luto impossível da perda do objeto amoroso primordial arrasta
consigo conseqüências narcísicas importantes, nas quais o corpo se arrisca num
desintricar-se das pulsões de vida e de morte.
Tais conclusões nos interessam particularmente porque nos ajudam a interrogar
o modo como a paixão amorosa pode inscrever-se como tal no corpo do sujeito em
sofrimento psicossomático.
Por exemplo, o trabalho de escuta psicanalítica com pacientes portadores de
câncer, seja individual, seja em grupo, ou mesmo na situação de entrevista quando das
apresentações de pacientes3, coloca-nos diante da evidência das perturbações

3
Seminário de Psicanálise e Psicossomática da Association Psychanalyse et Médecine sob a
coordenação de Houchang Guilyardi no Hopital de la Pitié-Salpêtrière, Paris.
59
TEXTOS

narcísicas em jogo na problemática da lesão de órgão. Em muitos casos, poderíamos


dizer que, do mesmo modo como ali se ancora a pulsão de morte, ali, na lesão de órgão,
uma paixão amorosa parece inscrever-se de forma melancólica. É de uma perda impossí-
vel de assumir para o sujeito que a lesão psicossomática tentaria dar conta. O ideal da
saúde perdida a ser reencontrada pode ser tomado, deste ponto de vista, também como
uma tentativa de reunificação com o objeto primordial, como que para suturar uma falha
impossível de suportar que a separação fundamental operou sem, no entanto, signifi-
car.
‘’Meu pai voltou para mim como um câncer’’, diz uma paciente sofrendo ela
mesma de câncer, doença da qual morreu seu pai quando ela era criança4.
Com efeito, freqüentemente, escutamos enunciados desta ordem, evocando um
reencontro. O discurso do sujeito em sofrimento psicossomático nos leva a considerar
a hipótese de que o órgão atingido, ou mesmo o corpo inteiro, torna-se o lugar do outro
abandonado, do objeto primordial re-tido, re-encontrado, re-perdido. Ali se instala o
Outro arcaico da Mãe fálica, carregado na dor, em sofrimento de identificação primária.
E sabemos que é este universo abismal da Mãe fálica que a triangulação edípica tem a
função de dominar, produzindo uma falha5.
Na medida em que alguma coisa dessa função se desvanece, uma das precárias
alternativas para o sujeito vai ser a de deixar o corpo entregue a um estado de paixão, a
partir do qual ele pode tentar, ainda que de maneira catastrófica, reconstruir os enigmas
maiores do nascimento, da sexualidade e da morte. Todavia, imerso na lógica deste
universo abismal, o sujeito se encontra tomado pelo gozo mortífero da incessante
repetição que a ele se impõe sob a roupagem de um acaso aterrorizante.
A este título, o caso de Madame ‘’A’’ nos parece exemplar. Penúltima filha de
uma família numerosa, ela sofria, quando menina, de ciúmes terríveis da irmã mais nova
de 18 meses. Esta criança gozava, segundo ela, de privilégios junto ao casal parental,
aos quais ela mesma e seus irmãos mais velhos jamais tiveram acesso. A excessiva
rigidez e a frieza com que fora sempre tratada por seus pais contrastava com a
permissividade e o carinho imenso que estes dedicavam à filha mais nova. Ora, um
acidente doméstico, a queda dessa menina de 18 meses em uma bacia com água ferven-

4
Caso clínico apresentado por Denise Sauget sob o título ‘’Paroles de Patients’’ , nas jornadas
clínicas da Association Psychanalyse et Médecine – ‘’Le Corps a Ses Raisons’’ , em novembro
2000, no Hopital de la Pitié-Salpêtrière, Paris.
5
Tais noções sobre o psicossomático se encontram desenvolvidas por Cosimo Trono em‘’Figu-
res de Double’’- Ed. Denoel, Paris, 1986. Aderimos parcialmente às teses deste trabalho, embora
a obra em seu conjunto seja admirável. Sobretudo guardamos reserva quanto à idéia de considerar
o psicossomático como resolução para a melancolia, sugerida pelo autor em várias passagens da
obra.
60
UMA FALHA SÚBITA...

te, vem trazer a esta família o luto de sua morte, morte precedida de longo sofrimento
físico. Hoje, Madame A, depois de anos de errância em servicos de oncologia e de
várias cirurgias para extração de tumores malignos iniciados por um câncer de mama,
sofre de tumores na bacia, a mesma região do corpo que sua pequena irmã teve fatal-
mente queimada. Sua filha, por sua vez, também aos 18 meses de idade, teve as mãos
gravemente queimadas em um acidente doméstico e atualmente, tem ainda sofrimento
decorrente, já que teve seus dedos ‘’colados’’ do mesmo modo que a menina morta por
queimaduras. Além disso, a filha desta filha, logo, a neta de Madame A, hoje adolescen-
te, é obrigada a dormir com um aparelho ortopédico na região da bacia, em razão de uma
anomalia importante, não se sabe se congênita ou adquirida.
Por razões óbvias, não nos aventuraremos aqui a fazer um estudo de caso de
Madame A. Contentamo-nos em acrescentar a esta pequena vinheta o fato de que, em
seu discurso, a paciente enuncia uma enorme angústia de morte, carregada de culpabi-
lidade. Em sua fala desfilam amor, ódio e desejo de morte em relação ao outro, este outro
que ela tenta desesperadamente assimilar de maneira quase canibalística na situação
clínica. E se escutamos uma angústia de morte em suas palavras, escutamos também
uma firme recusa a falar da morte real, aquela que seu corpo lhe anuncia 6.
Aliás, o discurso desses pacientes demonstra claramente o que Freud queria
dizer quando escreveu, em 1915:
‘’…nosso inconsciente não acredita na própria morte, ele se conduz como se
fosse imortal. O que nós chamamos de ‘’inconsciente’’[…] não conhece absolutamente
nada de negativo, nenhuma negação – nele os opostos coincidem – e por isso ele não
conhece também a própria morte, à qual não podemos dar senão um conteúdo negativo.
Assim, nada de pulsional favorece a crença na morte’’ (Freud, 1988, p.151-152).
Neste mesmo trabalho, Freud nos ensina igualmente em que medida o desejo de
morte em relação ao outro engendra angústia para o sujeito em função da culpabilidade.
Somos também ali advertidos para o fato de que não devemos negligenciar dissociando
excessivamente esta realidade psíquica da realidade factual. Se a morte não existe para
nós, nem por isso o inconsciente deixa de lidar com a morte do outro. A morte é mesmo
a única punição que o inconsciente conhece para o outro. De sorte que praticar o
assassinato é mesmo tarefa usual do inconsciente, e qualquer atentado contra nosso
eu todo poderoso e soberano se inscreve como crime de lesa-majestade.
É também entre esta angústia de morte e o irrepresentável da própria morte que
parece debater-se o sujeito em sofrimento psicossomático. Isto de certo modo anula o

6
Tais considerações decorrem de meu trabalho com a paciente em psicoterapia de grupo na
Salpêtrière. Seu caso clínico foi objeto de comunicação de Josette Olier, com quem a paciente teve
atendimento individual, nas jornadas clínicas da A.P.M. já citadas anteriormente, sob o título
‘’Hiéroglyphes du Corps’’.
61
TEXTOS

aspecto delirante dos projetos de vida que alguns destes pacientes fazem, na mais
completa denegação da catástrofe na qual se encontram. Ao mesmo tempo, é nesta
impossibilidade de representação da própria morte que podemos situar, nestes casos, o
que Freud chama de ‘’escolha da doença’’. É justamente porque, inconscientemente, a
idéia da imortalidade é prevalente que o corpo pode ser alterado, como se o sujeito não
fosse suscetível de morrer com ele.
Neste sentido, acidente e intenção se superpõem, ou diríamos mesmo que se
fundem, numa espécie de paradoxo lógico. O acaso tem, na doença orgânica, não rara-
mente, o mesmo papel que no encontro de Édipo com Laio: acidente e intenção se
fusionam no desejo inconsciente, deixando a paixão amorosa expandir-se, ao preço do
real insuportável para o sujeito.
Era talvez neste registro do acaso que pensava Paul Schilder quando em 1935,
em seu tratado sobre “A Imagem do Corpo”, diz, da lesão orgânica que ‘’[...] na maioria
dos casos, ela é completamente acidental e intencional’’, e isto, não sem razão, no
capítulo onde ele propõe uma definição para a ‘’estrutura libidinal da imagem do corpo’’
(1998, p.204).
Assim, o sofrimento psicossomático tem algo deste enfant-roi que arranca os
próprios olhos para não olhar para o real insuportável do desejo cumprido, ‘’realizado’’.
Como Édipo, só resta extrair o órgão no qual estava inscrita a paixão incontrolável, no
qual a Lei não conseguiu imprimir a marca do impossível retorno ao corpo materno. E
este impossível insiste, mais ainda, no gozo mortífero da repetição que a nova lesão ou
a lesão suplementar vêm propiciar, reencontros que só a morte real pode fazer cessar,
esta mesma morte da qual nada se suporta saber.
Aliás, quanto a este insabido da morte, nada mais espantoso, por exemplo, nas
situações psicoterápicas de grupo no hospital, do que o anuncio da morte de um
paciente ausente. Há mesmo os que enunciam o clássico: ‘’Mas como pode? Ainda
ontem encontrei-o, falamos de um livro, ele estava tão bem!’’, quando se tratava de um
paciente dito ‘’terminal’’, situação para a qual vários deles se encaminham. Mas, na
verdade, a maioria prefere nada dizer, a morte sendo-lhes completamente estranha.
Tais reações mostram quanto estamos na presença do inconsciente quando
lidamos com o real do corpo, este mesmo corpo do qual afirmamos aqui, embora de
maneira apenas esboçada, ser o lugar de inscrição da paixão. Quando nos referimos à
‘’inscrição no corpo’’, nos referíamos, evidentemente, a uma inscrição no inconsciente.
Por isso, nos parece importante retomarmos a idéia de que o que Freud definiu como
sendo o psíquico, o inconsciente, não é outra coisa, para o falaser, senão o orgânico.
Idéia extremamente complexa mas de absoluta pertinência, que nos propõe Charles
Melman em seu trabalho ‘’Nouvelles Etudes sur l’Inconscient’’ [(1985)1999).
Neste seminário, Melman argumenta que, na medida em que todas as funções de
nosso corpo tais como situação dos orifícios, entradas e saídas, aparelhos sensoriais,
secreções endócrinas, grau de vigilância, etc., são comandadas pelo inconsciente, não
62
UMA FALHA SÚBITA...

há porque não darmos ao inconsciente seu nome adequado. Assim, “O inconsciente é


o orgânico, é o lugar onde o psíquico se revela como sendo nada mais do que orgâni-
co[…]. Mas isto não quer dizer que o inconsciente seja todo orgânico, pelo simples fato
que o inconsciente se organiza como não-todo, no sentido de que o Outro não é
fechado’’ (p.219-221).
O autor considera que o substrato biológico do corpo é o que nele subiste de
real, é o corpo biológico hereditário. O inconsciente impõe a este corpo biológico
condições antinaturais, uma vez que o organismo biológico é comandado pelo signo e
que o significante nada tem a ver com o signo. De modo que, se o inconsciente é
orgânico, é preciso entretanto concebê-lo como organizando um real do corpo biológi-
co, que está ali para indicar que o significante não é todo-poderoso. Também não há
como delimitarmos a fronteira entre este orgânico e o real do corpo biológico.
Cabe ressaltar, ainda, que, na discussão sobre com o que essa definição do
inconsciente poderia contribuir para o estudo do psicossomático, Melman não hesita
em evocar, a exemplo do alcoolismo, a questão do gozo do corpo próprio, logo, do
corpo materno, em jogo nesta problemática, este mesmo gozo que se organiza a partir de
um lugar tombal, o que aqui chamamos de abismal. E, justamente, consideramos que
patologias como o alcoolismo e a toxicomania podem ser vistas como paradigmas para
o estado de paixão, embora não sejam aqui objeto de nossas reflexões.
Como vimos, tanto a noção de paixão que nos interessa aqui, quanto a noção de
corpo, nada têm de exterior à concepção do sujeito para a psicanálise. Resta a questão
de saber, a partir dos elementos que examinamos, em que medida a presença do psica-
nalista na clínica hospitalar pode produzir efeitos até certo ponto radicais para o sujeito
que se encontra ali, de corpo inteiro, tomado pela paixão.
Há que se ter presente que a paixão amorosa é absolutamente incompatível com
a transferência. Assim, sabemos que a suposição de saber, sobre a qual se funda o amor
de transferência, é da maior dificuldade com o sujeito em sofrimento psicossomático. A
construção da possibilidade da transferência com estes pacientes (o grupo podendo
ser uma transição importante nesta construção), assim como a direção destas curas,
mostram bem quanto a transferência em psicanálise consiste numa aventura difícil e
arriscada para analista e analisante. Se admitimos que a instauração do amor na transfe-
rência é a mola mestra do tratamento psicanalítico, é na medida em que este amor está
ligado à existência do outro, do semelhante. Entretanto, a menor vacilação, o menor
deslizamento em direção à paixão, pode, como nos adverte Jacques Hassoun, arrastar
consigo não apenas a ruptura da análise como também a ruptura do analisante com a
própria vida (no caso, a grave recaída do estado de saúde ou o aparecimento de novas
lesões fulminantes). Por isso, a tomada em tratamento de sujeitos em estado de paixão
significa, para o analista, ‘’o imperativo ético de sustentar, na radicalidade de sua soli-
dão, a possibilidade de introduzir o analisante na dimensão do outro, do semelhan-
te[…]” (Hassoun, 2000, p.68-69), e que a transferência seja manejada no sentido de
63
TEXTOS

viabilizar o acesso ao amor possível de ser vivenciado pelo analisante, um amor que
permita a elaboração do objeto, logo, da separação.
Esta passagem da paixão amorosa ao amor de transferência que encaminha o
sujeito em direção ao outro, apesar de toda a dificuldade que revela, resulta em um
dinamismo psíquico do qual, a despeito dos prognósticos terríveis para o biológico, a
sobrevivência do sujeito, e logo de seu corpo, surpreende estas previsões. Resta sem-
pre, do lado das previsões nestes casos, a questão de saber o que fez com que ainda
não se tenha cumprido o prognóstico, e somos tentados a responder: uma falha súbita
na lógica do universo , do universo abismal da paixão. É dessa falha que sobrevivemos
todos, é a partir dela que podemos suportar a vida, obrigação maior de todo o ser
humano vivo, como nos lembrava Freud.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 DURAS, Marguerite. La Maladie de La Mort. Paris: Editions de Minuit, 1982.
2 FREUD, Sigmund. Actuelles sur La Guerre et la Mort. Notre Rapport à la Mort. In:_____.
Obras Completas. Paris: P.U.F., 1988, p. 151-152.
3 HASSOUN, Jacques. Les Passions Intraitables . Paris: Flammarion, 2000, p. 68-69.
4 MELMAN, Charles. Nouvelles Etudes sur L’Inconscient, lição de 11/06/1985. Paris: Edições
da Association Freudienne Internationale, 1999, p. 219-221.
5 SCHILDER, Paul. L’Image du Corps. Paris: Gallimard, 1998.

64
TEXTOS
LÍQUIDOS PRECIOSOS
DE LOUISE BOURGEOIS
Elida Tessler*

RESUM0
Este texto se propõe a apresentar o trabalho da artista Louise Bourgeois, de
forma a associar suas construções espaciais ao seu pensamento em torno do
ato de criação. A instalação intitulada Precious Liquids, de 1992, foi focalizada
como elemento de análise, no qual a relação entre arte e melancolia se faz
presente. A produção do artista Casper David Friedrich e a do cineasta russo
Andrei Tarkovski foram também convocadas a contribuir para essa.
PALAVRAS-CHAVES: Louise Bourgeois; arte contemporânea; melancolia; ins-
talação

ABSTRACT
This text intends to present the work of the artist Louise Bourgeois, in order to
associate its spacial constructions to her thought around the act of creation.
The installation entitled Precious Liquids, of 1992, was focused as an analysis
instrument, where the relation between art and melancholy is present. The
production of the artist Casper David Friedrich and of the russian motion-picture
director Andrei Tarkovski were also convoked to contribute to this discussion.
KEYWORDS: Louise Bourgeois; contemporary art; melancholy; installation

*
Artista plástica. Professora do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena, ao lado de Jailton
Moreira, o Torreão – espaço de intervenção em arte contemporânea, em Porto Alegre.
65
TEXTOS

Dedico este texto a Edson Sousa,


que muito me ensina sobre as virtudes da melancolia

“Não tenho nenhuma esperança, nenhuma força, nenhum poder, nenhum


interesse, nada, não tenho nada, não possuo nada, nem tempo,
nem pensamentos, nem esperanças, nem emoções, nem desejo, nem necessi-
dades, nem opiniões, nem planos para o futuro, nem reivindicações, queixas,
não tenho. Não possuo nada. Nada a dizer, nada com o que me excitar,
nada a explicar, nada a provar, nada a pedir, nada a defender,
nada a vender, nada a mostrar, nada a esconder, nada a espiar, nada a
imaginar, nada a conservar, nada a guardar, nada a liberar,
nada a antecipar, nada a perder e nada a ganhar. Nada para ser enigmáti-
ca, bancar a misteriosa, a sedutora, a santa do pau oco, a namorada secreta.”
Louise Bourgeois
Escritos de 1995

“Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”
Fernando Pessoa

T odos os sonhos do mundo habitam as células de Louise Bourgeois e escorrem feito


líquidos preciosos pelas paredes das cabines por ela criadas. É de dentro de uma
delas que se originam algumas idéias aqui apresentadas. Que se reverbere a transparên-
cia de seus vidros alquímicos! Que escape o odor das velhas madeiras úmidas! E que se
dilua aqui a densidade gotejante das águas sobre certas placas metálicas dispostas
feito catre. Cama de viagem para sonhos em desconforto. Sonos em leito tosco. Melan-
colia e desamparo.
Louise Bourgeois diz não ter nada, mas tem medo de tudo. A complexidade do
mundo a desafia internamente e faz com que ela acredite nas formas do acaso (cera
derretida derramada em água fria, por exemplo) associadas a processos técnicos evolu-
ídos e calculados milimetricamente, com materiais duráveis como o mármore ou o bron-
ze para confecção de algumas de suas peças. O medo a impulsiona: “Tenho medo de
tudo. É essa a diferença entre homens e mulheres. As mulheres aceitam o fato de que
têm medo. Olhe para o mundo ao seu redor.” (Bourgeois, 2000, p. 246). Assumindo o
medo, a artista o toma como motor de um processo de criação que inclui vários estágios
onde, como em Fernando Pessoa, uma coisa é colocada diante de outra coisa (uma
66
LÍQUIDOS PRECIOSOS...

coisa tão inútil como a outra, diz ele, em seu vertiginoso poema “Tabacaria”), apalpando
o impossível “tão estúpido como o real”, absorvendo tensões que posteriormente
passam a derramar-se em suas instalações. Louise Bourgeois não exclui a improvisação
de seu método nem o lado racional. Ela olha o mundo e se apropria de muitas de suas
formas, singelos acontecimentos e grandes catástrofes subjetivas.
Podemos dizer que a reflexão é uma constante em sua atividade, decorrendo daí
a enorme quantidade de escritos já publicados e outros tantos fora de nosso alcance.
Porém, nada de interpretações antecipadas... Os objetos apresentam-se, e somente uma
visita demorada em suas proposições poderá fazer com que o seu pensamento encontre
um certo rebatimento em nosso corpo.
Louise Bourgeois nasceu em 1911, na França. Em 1938, muda-se para Nova York,
onde vive atualmente, em plena atividade. A artista diz desenhar como quem escreve e
assume seus desenhos como um verdadeiro diário, chamando-os de “pensamentos-
pluma”. São centenas de aquarelas, desenhos a bico-de-pena, gravuras e pinturas a
óleo, em suportes dos mais variados, desde cantos de páginas de agendas a telas
tradicionais de pintura. Tudo isso a nos dizer do olhar da artista diante do mundo.
Muitas esculturas e instalações também redimensionam nossa atenção para os deta-
lhes de um cotidiano. Peças de vestuário, vidros de perfume, carretéis de linha, agulhas,
banquinho de cozinha, espelhos e outras apropriações de objetos ordinários ali estão a
criar lugar de memória. Louise Bourgeois constrói vários ambientes que assumem a
forma de recinto, e que ela denomina Cells. Precious Liquids data de 1992. Antes dele,
uma série numerada de I a IV, e ainda outras com títulos bastante instigantes, como por
exemplo, Arch of hisyery (1993), Choisy (1991, com referências de sua casa de infância
em Choisy-le-Roy), Eyes and mirrors (1993) e Red Room (1994). Diz a artista que cada
cela representa diferentes tipos de dor: a física, a emocional e psicológica, a intelectual.
Para ela, cada cela trata também de um medo e do prazer do voyeur. Ali, há a fricção entre
olhar e estar sendo olhado ao mesmo tempo, provocando excitação. Vidros, lentes e
espelhos em ato.
Acompanhar o pensamento de Louise Bourgeois permite arriscar certos deva-
neios. Ele abre possibilidades para uma auto-análise quase compulsiva. São muitos os
elementos que falam de uma origem: a história familiar, as descrições da casa de infân-
cia, da convivência junto aos pais em um famoso atelier de restauração de tapeçarias
(gobelins), em Aubusson e depois Bièvre, na França. E por este viés, um longo enredo
de fios, de tramas, de tingimentos, de líquidos derramados, de suores, de odores e
outros medos: “Não há nada errado com os medos. Apenas conheça-os melhor do que
eles o conhecem. Sem medo, nada teria sido feito no mundo. Toda precaução nasce do
medo. O medo da fome gerou bons cozinheiros na França do sex XVI.“ (Bourgeois,
2000, p.275).
É preciso freqüentar as suas obras para perceber que há um sentido muito forte
no fazer que ultrapassa o dizer, o escutar, o ver, o ler e todos os outros verbos transiti-
67
TEXTOS

vos aqui implicados. O ato de criação sempre ensaia a sua coreografia e esboça uma
paisagem outra. Busca novas perspectivas e outros pontos de fuga. Bourgeois cria
cabines para entendimentos dispersos. O que quer a artista? E o que pode querer o
freqüentador de seu trabalho, quando este se depara com aqueles tão familiares estra-
nhos objetos colocados estratégicamente e configurando lugares?
Vejamos: Precious Liquids é uma peça que foi elaborada em 1992 e apresentada
na Documenta de Kassel desse mesmo ano. Vista do exterior, esta peça, que é realmente
um compartimento, lembra um grande e velho barril, feito com madeira de cedro, medin-
do 427 cm de altura, com diâmetro de 442 cm1. Uma gigantesca célula! Entrando, temos
um espaço circular, escuro, ôco, fechado, porém com duas portas garantindo-nos uma
entrada e uma saída, uma passagem, um percurso sem pânico. Para que estejamos ainda
mais seguros, a artista incorpora uma inscrição em halo de aço, circundando este
habitáculo: “A arte é uma garantia de sanidade”. Pois se é necessário um excesso de
sentimento melancólico no torpor desta visita, há também a oportunidade de um certo
exorcismo dos nossos fantasmas remanescentes.
Pois para a artista, assim funcionou. “A arte é uma garantia de sanidade – Sim, é
verdade. Em outras palavras: a arte o manterá no nível, certo! A arte o impedirá de ir a
extremos ou de sair do contexto...” (Bourgeois, 2000, p.250). Não se trata apenas de
pensar em úteros ou líquidos amnióticos, em analogias diretas ao corpo feminino. Sabe-
mos que este universo está em jogo, de forma bastante explícita, mas nem por isso
reducionista. São memórias da infância, e para quem já leu os diários de Louise Bourgeois,
mantidos desde os seus treze anos de idade até hoje, sabe que a figura do pai ocupa
lugar importante em seu processo de criação.
Em zona iluminada, no interior da célula, encontramos uma cama com estrado de
ferro com uma superfície irregular, onde repousa uma poça d’água. Em torno dela,
quatro hastes também em ferro, com ramificações feito galhos, que servem de suporte
para várias “bolhas” de vidro incolor. Ânforas em suspensão. Nelas, a pouca luz reflete
e se expande, desenhando na parede os seus contornos, anunciando o poder da trans-
parência. Na zona de sombra, quase atrás da porta, há algo mais de corpo: um casaco
masculino pendurado, um velho manteau, a figura de um homem grávido, talvez, pois

1
Temos a informação de que se trata realmente de um reservatório de água, comum de ser visto
nos tetos dos edifícios de Nova York. O interessante é que a artista o usa como lugar de distribui-
ção de líquidos. A escolha deste objeto, se assim podemos dizer, corresponde a uma lembrança de
LB acerca de seu primeiro atelier, que era uma pequena casinha sobre um telhado. As questões
referentes a esses “lugares de memória” podem ser conferidas na monografia preparada por
Marie-Laure Bernadac, Louise Bourgeios (Paris, Flammarion, 1995). Ver reprodução da instala-
ção na capa desta Revista.
68
LÍQUIDOS PRECIOSOS...

ali dentro está abrigada uma outra veste, desta vez infantil, onde estão bordadas as
palavras Merci / mercy. Francês / inglês. Obrigado / compaixão. Pequena travessia
biográfica de Louise Bourgeois: o vestido pertencia a uma menina de 12 anos. Aos
treze, ela inicia seu diário, relatando tomar conhecimento que o seu pai tem uma amante,
que mora em sua própria casa e que é a sua tutora. E ainda o que é mais forte, que sua
mãe sabe, cala e consente. “Temos o suor, as lágrimas, o muco, a saliva, a cera do
ouvido, a bílis, a urina, o leite, o pus, o sêmen e o sangue. A cela Precious Liquids
(1992) é sobre uma menina que cresce e descobre a paixão em vez do terror. Ela pára de
ter medo e descobre a paixão. O vestidinho que se refugia no casacão representa a
criança que passou por emoções fortes e assustadoras. O casacão é uma metáfora do
inconsciente. Estou em paz com meu inconsciente. Confio nele, posso achá-lo embara-
çoso, mas não posso estar enganada” (Bourgeois, 2000, p.255).
Para completar o “mobiliário” dessa pequena e úmida habitação, algumas gran-
des esferas. Duas em madeira e uma em borracha preta. E nem só de gotejamentos se faz
essa obra. Há também o caráter das evaporações, e o formato redondo não deixa de
estar relacionado ao que há de cíclico nesta associação dos objetos, seus lugares e as
emoções ali impregnadas . “As emoções intensas se tornam líquido – um líquido preci-
oso” (Bourgeois, 2000, p.235).

O FLUXO DOS LÍQUIDOS,


A IMPERMANÊNCIA E O ISOLAMENTO MELANCÓLICO
Caspar David Friedrich. Este sempre foi o primeiro nome que me vinha à mente
quando, por uma razão ou por outra, sentia-me convocada a pensar na relação entre arte
e melancolia. Idéia de imensidão, amplas paisagens, solidão e contemplação. Imagem de
um olhar perdido.
Hoje aprendo que o olhar não se perde. Ele apenas procura o objeto e, este sim,
pode estar perdido. Objeto de amor, por exemplo. Tomo contato, por vias indiretas
ainda, com o texto de Freud: “Luto e melancolia”. Desta forma, sei também que nem
sempre podemos precisar o que, qual objeto foi perdido. Pode não haver nem mesmo
certeza de que foi perdido algo de fato. Porém, há a sensação de perda. Uma perda sem
objeto perdido? Uma perda desconhecida? Foi um estudo de Karl Abraham sobre a
melancolia que serviu de base às investigações de Freud. Este aponta a melancolia
como advinda de uma perda do objeto que escapa à consciência. Na verdade, é um
paradoxo que é apontado: é a intenção enlutada que precede e antecipa a perda do
objeto. Na melancolia, o objeto não é nem apropriado nem perdido, mas apropriado e
perdido simultaneamente.
Friedrich lança o espectador em um espaço vertiginoso, amplo, claro, aéreo,
gasoso. O personagem representado em suas telas é embebido em solidão. Bourgeois
cria celas, salas, células, lugares fechados e muitas vezes úmidos. Em suas instalações,
as paredes têm tanta importância quanto as nuvens para o pintor alemão. Configuração
69
TEXTOS

de lugares onde possam habitar desejos e anseios humanos. A intersecção entre as


paisagens de Friedrich e as cabines de Bourgeois, num lance enigmático de pensamen-
to acerca da criação de lugares, me fez lembrar o filme Stalker, do diretor russo Tarkovski.
Quem não recorda aquela sala em meio a poças, em uma zona desconhecida? E o
percurso por entre estranhos territórios? Mais ainda, é impossível esquecer todo o
esforço de reflexão que fizeram os personagens (o Escritor e o Cientista) em busca de
um autoconhecimento, enquanto eram conduzidos pelo guia (Stalker) rumo ao lugar
onde se realizariam os desejos mais profundos. Faltou um golpe de asa para que os dois
homens ultrapassassem a soleira da porta de acesso à peça e ao interior de si mesmos.
Louise Bourgeois já não nos poupa. Suas cabines exigem nossa presença para
se realizarem. Não há soleiras. Há uma exploração topológica do espaço, embora nada
nos assegure que o lugar seja este espaço fechado, pois ele bem pode configurar-se
como um devaneio.
“Nós devemos nos habituar ainda a pensar o lugar não como alguma coisa de
espacial, mas como algo de mais original que o espaço; talvez, segundo a sugestão de
Platão, como uma pura diferença, dotada entretanto de fazer com que “isto que não é,
em um certo sentido, seja e que, inversamente, o que é, em um certo sentido, não seja”.
(...) Agamben, 1998, p.13).
Não seria esta uma boa definição para arte, ou uma tentativa de resposta para a
pergunta: o que faz o artista?
Stanza era um termo usado pelos poetas do século XIII para determinar o ele-
mento constitutivo de sua poesia, qual seja, as alegrias do amor (joie d’amour), ou o
gozo mesmo (jouissance), apontando, porém, uma fissura entre poesia e filosofia, no
que concerne à posse do objeto de conhecimento em um e outro campo. Pois nessa
fissura, nesse pequeno intervalo, encontra-se a desesperança do melancólico. Como
em Stalker, a soleira da porta representa a grande distância entre o desejo de possuir o
objeto e o desejo de possuir o desejo (onde se instaura, conseqüentemente, a perda do
objeto). Interessa-me aqui esta aproximação entre Stanza e Stalker e ainda os recintos
de Louise Bourgeois.
Stanza, se formos conferir as informações fornecidas por Agamben, tem como
significado uma habitação, uma peça, um lugar de estar, ou mesmo um receptáculo; a
instância poética do termo é que nos conduz às associações acima citadas, e à idéia de
que em arte, a melancolia está ligada ao erotismo. Os poetas daquele período conside-
ravam a joie d’amour enquanto único objeto de sua atividade. Stanza como matriz da
arte. (Agamben, 1998., p.9). Já Louise Bourgeois se interessa pelo corpo. Aponta suas
construções dizendo que sua obras são células. “As células podem ser celas de prisão,
mas também células do corpo”. (Bourgeois, 2000, p.263).
Tarkovski afirma: a arte simboliza o significado de nossa existência. Talvez te-
nhamos a tendência de pensar que este é simplesmente um aforismo do senso comum,
quem sabe? Porém se formos mais adiante em seu pensamento, ele também está falando
70
LÍQUIDOS PRECIOSOS...

de uma certa perda de objeto ou da esperança.


“Estou mencionando isso porque quero enfatizar minha própria crença de que
a arte deve trazer em si a aspiração humana ao ideal, deve ser uma expressão da sua
caminhada em direção a ele, de que a arte deve oferecer esperança e fé ao homem. E,
quando mais desesperançado for o mundo na versão do artista, maior talvez a clareza
com que devemos enxergar o ideal que se opõe a ele – de outro modo seria impossível
viver!” (Tarkovski, 1998,p.231).
O roteiro do filme Stalker inclui em seu foco um lugar tão úmido e gotejante
quanto a cabine de Bourgeois. Algo transpira dali e nos atinge diretamente em nossos
poros. Corpo presente. O estado de desamparo é contagiante. A estranheza quanto ao
que devemos ali fazer nos faz repetir a conhecida proposição da artista Jenny Holzer:
“Proteja-me daquilo que desejo”. Podemos até nos afastar fisicamente do lugar, mas
não creio que seja possível o apagamento da experiência de ali ter estado e de, por
instantes, ali ter transpirado fantasmas.
Stalker é a própria caminhada, percurso, trajeto, movimento circular.
E a “Zona”, o que seria? “As pessoas muitas vezes me perguntam o que signi-
fica a Zona, o que ela simboliza, e fazem conjecturas absurdas a propósito. Esse tipo de
pergunta me deixa desesperado e enfurecido. A Zona não simboliza nada, nada mais do
que qualquer outra coisa em meus filmes: a zona é uma zona, é a vida e, ao longo dela,
um homem pode se destruir ou pode se salvar. Se ele se salva ou não é algo que
depende de seu próprio auto-respeito e da sua capacidade de distinguir entre o que
realmente importa e o que é puramente efêmero” (Tarkovski, 1998,p.241)
Nos espaços de confinamento propostos por Louise Bourgeois, somos também
interpelados por muitos questionamentos, a ponto de querermos adentrar ainda mais
nos segredos de cada material utilizado, nas estratégias de divisão de espaço e no
redimensionamento do caráter simbólico oferecido pelas sombras. Poderíamos lembrar
aqui uma cela em especial, a quarta da série (1991), construída a partir de um biombo azul
de quatro folhas dobradas em ângulos retos, deixando apenas uma fresta para a passa-
gem do corpo. Dentro do reduzido espaço, um banquinho metálico, o mesmo de um
trabalho mais antigo, o Articulated lair (Covil articulado, de 1986). Um círculo, um
ambiente fechado de três metros e meio de altura com duas aberturas. É um covil, diz a
artista. “Parece uma armadilha, mas se você for inteligente, apesar de ser deserta e
terrivelmente solitária, poderá entrar e sair”. Na concepção de Bourgeois,este é um
lugar para encarar o fato de que não há nada – nada a esperar.
Resta-nos agora um diálogo com a sua experiência para que possamos continu-
ar a pensar a beleza das pequenas coisas e manter o suposto olhar perdido e melancó-
lico que ainda nos sustenta.

71
TEXTOS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 AGAMBEN, Giorgio. Stanze – Parole et fantasme dans la culture occidentale . Paris: Payot &
Rivages, 1998.
2 BERNADAC, Marie-Laure. Louise Bourgeois. Paris: Flammarion, 1995.
3 BOURGEOIS, Louise. Destruição do pai – Reconstrução do pai. São Paulo: Cossac & Naify,
2000.
4 TARKOVSKI, Andreaei. Esculpir o tempo . São Paulo: Martins Fontes, 1998.

72
TEXTOS
DEPRESSÕES DA CRIANÇA*
Jean Bergès **
Gabriel Balbo ***

RESUMO
O texto trata das depressões infantis ligadas à morte dos pais na família moder-
na, nas quais a mãe é mantida, em todo seu poder, como aquela de onde
provêm todos os objetos simbólicos. Os autores apontam dois fatores etiológicos
relacionados à modernidade: 1) o declínio da referência a uma vontade divina e
a antecipação de um saber (nas predições genéticas e promessas não cumpri-
das); e 2) as imagens modernas da pulsão de morte (doença fatal ligada ao
gozo do morto e os “acidentes”).
PALAVRAS-CHAVES: depressão infantil; morte dos pais; saber; luto; predições

ABSTRACT
The text is about child depressions connected to the father’s death in the modern
family, in which the mother is kept in her full power as the one where all symbolic
objects come from.The authors point out two ethiologic aspects related to
modernity: 1) the decline of a divine will and the anticipation of a knowledge (in
the genetic predictions and non fulfilled promises); and 2) the modern images of
death instinct (fatal illness linked to the dead’s enjoyment and the “accidents”).
KEYWORDS: child depression; father’s death; knowledge; mourning; predictions

*
Tradução de Maria Rosane Pereira Pinto.
**
Neuropsiquiatra, psicanalista (Paris), membro da Associação Freudiana Internacional. Autor,
juntamente com Gabriel Balbo, de «A criança e a psicanálise», ed. Artes Médicas, 1997; « Jeu de
places de la mère et de l’enfant; essai sur le transitivisme », ed. Erès; « Autisme e défaillance
cognitive chez l’enfant», ed. Erès.
***
Psicanalista (Paris), membro da Associação Freudiana Internacional. Fundador, juntamente
com Jean Bergès e Marika Bounes-Bergès, daEcole de psychanalyse d’enfant à Paris. Diretor da
revista «La psychanalyse de l’enfant», editada pelaAssociation Freudienne Internationale.
73
TEXTOS

U ma questão parece tomar importância particular na família moderna: as depressões


infantis ligadas à morte dos pais, à realidade psíquica da hipótese ou da realidade
dessa morte.
Estas condições da modernidade vêm, ao que parece, constituir um obstáculo à
realização do que Melanie Klein descreve como “a posição depressiva da criança’’ (que
ela situa como secundária em relação à posição esquizo-paranóide, ao passo que vários
de seus alunos a consideram como primeira).
Quanto a Lacan, ele coloca essa questão em relação com o narcisismo e com a
emergência do sujeito no estádio do espelho: a mãe, objeto real, torna-se retroativamen-
te aquela de onde provêm todos os objetos simbólicos. Tal é a causa de seu todo poder,
diante do qual a criança, segundo a expressão de Lacan, é invadida por uma “micro-
mania’’, evocando, para nós, o delírio de pequenez cuja importância Freud sublinha na
melancolia.
Mas para que essa posição da criança tenha um efeito depressivo, é preciso que
o sujeito possa refletir sobre ele mesmo e constate sua impotência. Trata-se efetiva-
mente de refletir, pois, no espelho, ele deixa de fazer parte do corpo da mãe; em sua
jubilação, ele lhe escapa. Quando a criança volta-se para a mãe, ela a toma como teste-
munha deste escapar-se: é o primeiro momento que culminará em depressão, pois, ao
mesmo tempo em que a criança se escapa, ela constata que a mãe não lhe obedece mais.
Neste ponto situa-se, como demonstramos com Gabriel Balbo, o tempo lógico que
corresponde ao que Freud assinala quando escreve que o objeto sexual da pulsão, o
seio, até então exterior ao corpo próprio, somente é perdido no momento em que se
torna possível para a criança formar a representação global da pessoa à qual pertencia
o órgão que lhe propiciava a satisfação.
Podemos aqui indicar brevemente quanto esta proximidade da atividade motora
desordenada e jubilatória com esta depressão refletida é essencial para a apreensão de
um ponto central do que se trata na sintomatologia que nos invade sob o nome de
hipercinesia das crianças. Trata-se de uma patologia da imagem especular, na medida
em que vem perenizar-se, de certo modo, a vertente motora desta primeira depressão
infantil na retroação da perda da mãe enquanto sendo o objeto mesmo e que vem
ocupar integralmente, em seu todo poder, o lugar do Outro.
A persistência desse todo poder é, de certo modo, mantida no caso da morte do
pai ou da mãe. Com efeito, dois fatores etiológicos parecem, neste caso, estar em con-
corrência em nossa sociedade atual. Por um lado, o declínio, senão o desaparecimento,
de toda a referência a uma vontade divina, declínio da função da Providência, que até
então era atribuído ao funcionamento fatal das Parcas; por outro lado, indo na mesma
direção, as crianças lidam com duas imagens modernas da pulsão de morte:
– o acidente de trânsito, de trabalho, de esporte, de overdose: o objeto que a
criança acabou de perder foi ele mesmo agente de sua perda brutal;
– A doença fatal, ligada ao gozo do morto: tabaco, aids, alcoolismo, obesidade,
74
DEPRESSÕES DA CRIANÇA

gravidez…
Assim, isto com que nos deparamos cada vez com maior freqüência nas curas,
não é mais tanto com o trabalho de luto, na medida em que ele está ligado à perda do
objeto amado. Deparamo-nos, bem antes, com a agressividade mortal que retorna em
uma regressão oral contra esse objeto mesmo, agressividade recalcada enquanto tal.
Trata-se de“odiá-lo de morte’’ 1 por estar morto, nisto que vem marcar como
impossível o luto das identificações ao objeto e conduz a regressão à identificação
narcísica.
Resta sublinhar, na nossa opinião, nesta tentativa de articular a modernidade
com a depressão das crianças, alguns aspectos que apresentam uma dificuldade em seu
trabalho. Primeiramente, a importância do saber nas depressões, no luto e na melanco-
lia.
Depois de enunciar os pontos comuns entre o luto e a melancolia, Freud assina-
la que é a falta de estima de si do melancólico que faz traço diferencial. Em seguida,
aplicando a essa doença o que acaba de descrever do luto, ele sublinha: “…em resumo,
isto nos levaria a relacionar, de uma maneira ou de outra, a melancolia a uma perda do
objeto que é subtraída à consciência, diferentemente do luto, no qual nada do que
concerne à pessoa é inconsciente’’. O melancólico pode saber que ele perdeu e não o
que ele perdeu.
Parece-nos que, no que diz respeito à depressão, a problemática é, antes, grama-
tical e traz consigo a negação de um futuro anterior ‘’eu não terei sido tal como eu havia
idealizado’’. Assim, o sujeito vai ser representado junto ao significante mestre, a morte,
por um outro significante, o saber, no caso do luto. O trabalho do luto consiste em fazer
emergir esse saber do desconhecimento, da denegação ou da recusa.
A figuração do sonho e os falsos reconhecimentos vêm confortar o eu nesse
desconhecimento fundamental fornecendo imagens, identificações imaginárias. Note-
mos que numerosos ritos funerários não se endereçam apenas ao corpo enquanto
suporte do imaginário, mas também àquilo no qual ele funciona: alimentação, bebida,
perfume. As funções privadas de todo o funcionamento pela morte são, entretanto,
alimentadas e sustentadas no luto. Existem civilizações que prescrevem, durante o luto,
a tarefa de levar para depositar sobre o tumulo do defunto, o casaco, o guarda-chuva,
o chapéu, os sapatos, necessidades pela mudança das estações. Assim se encontra
preservada a norma fálica das funções que, ao final de um ano, por não ter funcionado,
serão consideradas como perdidas.

1
Em francês:lui en vouloir à mort, equivalente desta expressão em português. Porém, o emprego
do verbo ‘ vouloir (querer, desejar firmemente) na expressão em francês conota com maior força
a implicação do sujeito. Se traduzíssemos literalmente seria: ‘’querê-lo até a morte’’, no sentido
de ‘’até que este querer implique a sua morte’’. N.de T.
75
TEXTOS

O mesmo se passa com o menino que, tendo morrido seu coelho, acomodou-o
no congelador, onde ele o visita, já que se tratava, para ele, de seu filho adotivo, estan-
do sua angústia ligada ao fato de que, neste caso, o filho havia morrido antes do pai.
Estes efeitos, estas colocações em ato daquilo que está em jogo no luto consti-
tuem, de certo modo, a ruína das ilusões, ao mesmo tempo em que se impõe o que Freud
chama de prova da realidade.
Esta problemática do saber em sua relação com o luto, com a melancolia e com o
futuro anterior parece poder ser explorada em duas direções clínicas: a predição das
doenças genéticas e as promessas não cumpridas.
Tornou-se possível a predição das doenças genéticas que levam, seja à morte
do feto ou da criança em um tempo previsível, seja a malformações orgânicas ou meta-
bólicas alterando determinadas funções fisiológicas ou cognitivas. Essa predição se-
gura feita aos pais toca em uma das articulações teóricas essenciais para a formação da
função simbólica, a saber, as relações entre o que provém da antecipação da mãe ou do
pai no momento do estádio do espelho, ou seja, para Lacan, as contingências da emer-
gência do sujeito em sua articulação com o narcisismo e com o eu.
Esta antecipação, que é constituída pela apreensão da imago ligada à imaturação
fundamental da criança (em particular postural e motora), faz da mãe a pessoa em posi-
ção de terceiro. É enquanto tal que a criança vai tomá-la como testemunha de sua
descoberta no momento em que se volta para ela, e que a mãe, por sua motricidade e
com suas palavras de acompanhamento vai ela mesma antecipar algo da maturação que
está por vir. Logo, dupla antecipação, que constitui a mola mestra da articulação ao
simbólico. A mãe, antecipando as atitudes, a gestualidade, interrogando os movimen-
tos e falando deles, dá à criança o crédito daquilo que ela é suscetível de fazer, de olhar,
de dizer e também do que ela sabe. Ora, é essa antecipação simbólica que vai encontrar-
se pervertida pelo anúncio de um saber sobre a doença genética que não se encontra
regida pelo simbólico, mas pelo real do gene em sua malformação. Não apenas a mãe
sabe, como também ela não pode fazer sinal deste saber sem ser aniquilada, sem opor-
se fundamentalmente à possibilidade de a criança ter acesso ao saber: é o saber que ali
faz obstáculo. Não se trata, neste caso, das condições que mostram que o luto da mãe
que sabe se articula com a melancolia da criança que não sabe?
Talvez seja possível, nesta conseqüência da disposição da ciência, em jogo para
o bem de todos e que não deixaria nada para a falta de saber dos pais e da sociedade,
reencontrar o limite funesto, a Até, que Antígona ultrapassa indo em direção ao túmulo
que Creonte lhe preparou, como nos lembra Lacan. Limite no qual ela se detém um
instante justamente para manifestar o luto daquilo que ela teria antecipado, quando,
entretanto, ela se diz como já fazendo parte dos mortos.
O segundo ponto sobre o qual nos permitimos uma interrogação é o que pode-
mos situar do lado da promessa não cumprida. Cada vez com maior freqüência, deparamo-
nos com casos nos quais está em jogo uma palavra comprometida em uma antecipação,
76
DEPRESSÕES DA CRIANÇA

objeto de uma espécie de nota promissória a resgatar no futuro. Por exemplo, o caso de
um menino ao qual, quando ele tinha cinco anos, o pai anunciou que sofria de leucemia
e lhe restavam apenas dois anos de vida. Acontece que esse pai morreu só quando o
menino tinha dezesseis anos. Tal era a conseqüência desta falta de palavra do pai: o luto
impossível, uma vez que já havia sido feito às avessas; efeito devastador do trabalho de
luto que mostra seu avesso, ou seja, o ódio, ainda mais gravemente manifesto na traição
e na luta. Assim, as vicissitudes da promessa têm a mesma estrutura que as falhas da
antecipação forçada das profecias genéticas.
Desde então, é em uma tensão imaginária para responder a isto, que a criança se
situa no estado de ilusão, como ela se coloca na relação de objeto, para evitar confron-
tar-se com sua impotência, sustentando-se no lugar de falo para a mãe. Quando este
destino não acontece, o futuro abolido vai exprimir-se no condicional que abre a voz ao
julgamento, à culpabilidade. A partir daí surge a modalidade do luto no futuro anterior,
marcado pela negação: ‘’eu não terei sido’’, ao mesmo tempo projetado sobre a ilusão e
tomado na falha do passado.
Eram estes os pontos sobre os quais nos interessava intervir.

77
TEXTOS
DO DEUS DECAÍDO
AO HOMEM *
Houchang Guilyardi **

RESUMO
Neste ensaio, o autor discorre sobre o impasse do melancólico diante da exi-
gência de um triunfo e de um ideal de plenitude confrontado a um fracasso
inexorável. Discorre sobre os elementos essenciais da lógica da melancolia
mostrando o quanto esta enuncia traços do laço social contemporâneo. Traz
também reflexões sobre o lugar dos antidepressivos e do álcool na dinâmica
dessas psicopatologias.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; gozo; neurolépticos; álcool

ABSTRACT
In this essay the author discourses about the melancholic stalemate in the
presence of the demanding of a triumph and a plenitude ideal versus a inexorable
failure. Discourses about the essential elements of melancholic logic showing
how it enunciates features of the contemporary social link. It also brings reflections
about the place of antidepressant and of alcohol in this psychopathologies
dynamic.
KEYWORDS: melancholy; enjoyment; neuroleptics; alcohol

*
Tradução de Maria Rosane Pereira Pinto.
**
Psicanalista, Presidente da Association Psychanalyse et Medicinede Paris.
78
DO DEUS DECAÍDO AO HOMEM

“O passado é minha eternidade’’ 1.

T entarei propor aqui uma perspectiva diferente para o que é geralmente considerado
como um desastre. O que aparece pequeno e miserável como uma decadência,
desejo apresentá-lo exatamente ao contrário, como um grande passo e, na realidade,
uma verdadeira coragem. Dito de outro modo, desejo apresentá-lo como o primeiro
passo, ainda que hesitante e inseguro, para uma humanização consciente, inscreven-
do-se no que indica Lacan sob sua fórmula: “Cessar de sê-lo para tê-lo ou não tê-lo’’ 2,
mudança de posição que tratarei de explicar gradualmente.
Não me parece absolutamente deslocado começar pelo que poderia ser chama-
do de Psicanálise lição 1 e dizer algumas palavras sobre o círculo, sobre o objeto a e
sobre o falo, a fim de poder apresentar progressivamente minhas proposições.
Para isso, é necessário considerar, primeiramente, pelo menos duas hipóteses:
A primeira diz respeito à fundação do sujeito da consciência. Admitamos que
um dia o sujeito perceba e, neste momento, imagine-se como o Um, uma sensação de
totalidade, um todo. É isto o que descreve Lacan no Estádio do Espelho e que podemos
esquematizar com ele a partir de um círculo ou de uma esfera. Percorrer as bordas de uma
tal esfera é algo efetivamente sem fim, infinitamente circular, ao passo que duas retas
paralelas, sabemos bem que ao horizonte, etc… Esta ilusão permanece como apelo à
vida, mas ficar ali fixado poderá constituir um estado psicótico, entre outros.
A segunda hipótese é de que todo ser humano comporta em sua estrutura um
corte (ou vários, mas isto veremos mais tarde). Corte constitutivo do ser humano ou
‘’parlêtre’’3, termo que indica a intervenção da linguagem nessa situação; dois elemen-
tos se separam do sujeito ou então digamos que um pedaço se separa do sujeito.
Podemos chamá-lo de falo, deixando na parte restante uma vacuidade na qual poderá
vir alojar-se ulteriormente a imagem de um objeto desejado, nomeado por Lacan de
objeto a, motor de vida.
Apresento estes dois aspectos sob a forma de hipóteses. Para aqueles que as
apreendem, sua verificação é plural e quotidiana. Pode-se constatar que, para todo ser
humano vivo, existe assim uma barra e sua necessidade. Uma barra que deve manter-se
e que se mantém em um lugar. Mas, constatação banal: ainda que estranho, esse lugar
não se superpõe necessariamente aos limites do corpo próprio, mas eventualmente ao
interior mesmo desse corpo ou a um outro corpo físico ou imaginário. As diferentes
modalidades designam objetos diferentes e posições distintas na estrutura, constituin-
do um igual numero de diferentes gozos: avatares da condição humana em sua varieda-
de.

1
Expressão de um paciente, relatado por Henri Ey, em Etudes Psychiatriques, Tomo 3.
2
Em francês: “ Cesser de l’être, pour l’avoir ou pas’’.
3
Em português, termo traduzido por “falasser’’.
79
TEXTOS

Temos, assim, várias letras: “A’’ 4, -ϕ, “a’’ e φ. Cada parlêtre ocupa alternativa ou
sucessivamente estes diferentes lugares e se situa-se de forma mais ou menos estável
preferencialmente em um desses lugares e em relações mais ou menos intensas com os
outros.
Nas tentativas de imaginar-se Todo, ou, em outras palavras, nas tentativas tota-
litárias, o acesso ao infinito, o ponto de entrada no infinito (e cada um peca por onde
deseja), apresenta-se sob diferentes modalidades:
– A Mulher é uma dessas modalidades. Tentativa, digamos, doméstica e familiar.
Seu objeto é privado: seu falo. Histérica bem sucedida?
– Uma tentativa social, habitualmente do lado do homem, nas formas acabadas
do Mestre, do Sábio, do Universitário, do Cientista. Obsessivo que deu certo?
– Pela perfeição das formas, por exemplo, a forma de um corpo perfeito. Do lado
daquelas que o exibem: manequins apaixonadas pelo próprio corpo. Do lado do olhar: o
‘’voyeur’’ correspondente. Nos dois casos, há uma crença nessa perfeição, com toda a
dimensão religiosa contida neste termo.
– A fé, o amor, a perfusão de amor, o gota-a-gota quotidiano, pois sabemos bem
que não se deve perder o contato, que não se deve ficar longe muito tempo. A falta faz
irrupção brutal quando o contato é rompido imaginariamente. Como sabemos, a de-
monstração de fé não muda nada nisto e todas as explicações neste sentido somente
interessam aos ateus, aos descrentes e aos céticos.
– O poder, lugar narcísico se ele existe, uma vez que em ultima análise, a política
toca e se junta (o que aliás é desastroso) à ilusão da infinita mestria imaginária.
– A concepção, no sentido largo ou habitual do termo, ou seja, a gravidez e o
parto, ou ainda a produção de um corpo de teoria, de uma idéia, de uma industria, de um
corpus, mas produto só, segundo uma concepção partogenética, sem ajuda ou com a
ajuda apenas de um terceiro (um vago marido, por vezes apenas um tubo de ensaio
basta, ou então sem ancestrais ou colegas), sem nada dever a ninguém: fundar sozinho.
Todo gozo é parcial, mas nestas visões, ele se imagina total, o que chamaremos
de ‘’Gozo Todo’’.
Estas tentativas podem ser qualificadas de alucinatórias ou de ilusórias, no
sentido forte da psiquiatria, e permitem eliminar todo o real, toda a falta.
Nessa visão, o falo deve ser brilhante, erigido, sempre magnífico. Uma única
possibilidade para ele: o triunfo. De maneira alguma ele deve mostrar sinais de fraqueza.
É neste ponto que constatamos a propensão do ser humano à expansão mega-
lomaníaca, a apoiar-se sobre uma certeza, cada um sobre a sua, excluindo assim a
certeza dos outros. Isto ajuda cada um a agir, a construir, a criar, mas apresenta por
vezes um perigo extremo para os outros, aqueles que estão fora do círculo, do círculo
familiar ou social em questão e que podem, assim, em uma conjuntura particular, ser
submetidos às piores cobranças indevidas puristas, higienistas.
4 Referência à noção lacaniana de “Autre’’ (Outro).
80
DO DEUS DECAÍDO AO HOMEM

Durante a expêriencia de enganchar-se na imagem da perfeição, o que é que se


produz para o sujeito que nos interessa aqui, quer dizer, o melancólico?
Há ideal, plenitude, é o pleno poder com seus desencadeamentos de onisciên-
cia, de onipotência e de perversão, e aparece um evento particular, a irrupção de um
fracasso inexorável, incontornável, a propósito da sexualidade, da morte. Em outras
palavras, um traumatismo que jamais poderá ser apagado e que permanecerá como
referência fundadora para toda a vida. Trata-se do encontro com o que é claudicante, a
tuché: do real incontornável. É um dia (é datado ) em que se instala a evidência radical
da perda, da castração, sem nenhum artifício, sem nenhuma técnica de produção de
completude possível. Logo, instala-se então a impossível mestria do objeto que se
encontra distinto, a impossibilidade de sua substituição por um outro exatamente simi-
lar, na mesma situação, como se nada tivesse acontecido. Dito de outro modo, o sujeito
encontra-se, dessa vez, confrontado com uma incapacidade para a denegação, para a
anulação. Ele se apresenta então como esmagado pelo traço, pelo significante mestre, o
S1. Ele bem que tentou olhar novamente através do Todo e do lugar sem falha. Tarde
demais, a visão do corte não pode mais ser apagada. Disso, ele, o sujeito, jamais vai
conseguir refazer-se.
O apagamento do Outro, visto sem a barra, sob a forma de um terceiro ou dele
mesmo, fornece ao sujeito melancólico, como sabemos, uma sensação de extrema des-
valorização, de indignidade. Ele busca uma retratação, diz Henri Ey, na “pequenez e na
exigüidade’’. Ele não dispõe mais do que de uma “margem precária e quase nula de
existência’’. Sem esperança, com o sentimento de injustiça, imundo, abjeto, despossuído,
nu, o corpo é infectado, ignóbil ou podre (Henri Ey). Idealista decaído diante da falta
radical, brutal, não trabalhada e insuportável, diante de seu ideal sempre presente, o
melancólico vê-se como uma perfeita merda frente a ele mesmo como Outro ideal. Merda,
sim, mas ainda assim perfeita. Neste ponto se situa toda a ambigüidade, todo o trágico,
todo o impasse em que se mantém paralisado o melancólico.
A identificação ao Outro é mantida mas, novidade incompreensível e
desconcertante, o Outro se tornou bruscamente impotente e decaído, destituído. Dian-
te desta decepção que se expande, o melancólico reflete sobre a vacuidade da ação e
não consegue mais acreditar nela. Mesmo assim, consegue eventualmente encontrar
um responsável que lhe permita então reagir e suportar este prejuízo em uma posição
paranóica ou erotomaníaca, reivindicativa, violenta. Com isso, conjuga a manutenção
do ideal e a certeza de reparar em breve esta injustiça através do responsável designa-
do. Esta saída fornece-lhe uma retomada do gozo e da motricidade, pois, na melancolia
e em sua passividade, ele está fechado sobre si mesmo em um curto-circuito.
Diante deste traumatismo, diante do peso da neurose e da barra que cai sobre
ele, o que fazer? Denegá-la novamente? Encontrar um lugar outro e fazer-se dele o
eleito? Ele e o Outro experimentam simultaneamente a falha. Seus sistemas de negação,
de evitação e de denegação são novamente reutilizados de forma repetitiva em
extrapolações passionais, tóxicas, mas deixam persistir um irredutível. Esmagado pelo 81
TEXTOS

traço e, sobretudo, nada querendo saber disso, o sujeito deixa escapar por vezes algu-
mas reflexões retomadas nos sistemas religiosos, místicos, teóricos…
Circunscrito, limitado, todo o melancólico mostra sua borda neurótica, olhando
na direção do lugar sem falhas, mas sem esperança, ou então remetendo a esperança
para mais tarde, quando o futuro lhe sorrirá. A neurose é afirmada, e enfrentar a dor e a
verdade do sujeito assim postas em evidência é problemático, pois a melancolia é a dor
de dever considerar a castração, sem poder, de um lado, uma vez mais denegá-la e de,
outro lado, sem poder encará-la, enfrentá-la. Nenhuma saída naquilo que até ali consti-
tuía sua norma e suas referências. Até mesmo o suicídio, que entretanto, como sabe-
mos, constitui uma saída eventual deste impasse, vem confirmar esta limitação, quer
dizer, a escolha da morte para evitar o inferno. O sujeito se encontra acuado dos dois
lados, o que redobra a inibição e a paralisia. O melancólico está bloqueado na situação
em que necessita verdadeiramente da ajuda de um terceiro, pois o risco é, mais do que
o do luto infinito, – já que o luto é, na realidade, um fenômeno móvel e que evolui em
direção a sua resolução, – o risco é antes o da melancolia infinita, na interdição implacá-
vel, ao mesmo tempo recusada e não-trabalhada.
Não é aqui o lugar de retomar a nosografia, mas consideremos a proposição de
Charles Melman, segundo a qual a melancolia é a norma.
Se a norma é a melancolia, poderia parecer ridículo ou estúpido não utilizar
antidepressivos. E somos obrigados a constatar que o mundo inteiro, ou quase todo,
encontra-se sob antidepressivos. “Populaçoes inteiras reservaram para eles um lugar
permanente na economia de sua libido. A eles não se deve apenas um gozo imediato,
mas também um grau de independência ardentemente desejado em relação ao mundo
exterior” [Freud (1929) 1971]. Freud fala da ação dos estupefacientes, e não se trata de
populacões inteiras, parecendo que isso concerne a uma boa parte de todos os povos,
do mesmo modo que o termo de independência pode estar ligado ao Outro ou à castra-
ção: agir sobre o mundo interior com a ajuda da mestria dos elementos do mundo
exterior.
A utilização dos estupefacientes é efetivamente universal. Existem, muito pro-
vavelmente, pouquíssimos seres humanos que não os consomem quotidianamente, e a
maioria dos habitantes do planeta os consomem em quantidade importante entre o
despertar e o dormir: a ingestão de estimulantes e de antidepressivos é permanente.
Com efeito, a civilização parece apresentar-se como uma longa conquista de drogas, e
se reage contra elas. Ao extremo, toda alimentação, todo açúcar comporta qualidades
antidepressivas, mais ainda certos produtos: o álcool, o tabaco, o café, o chá e, segun-
do os países e seus usos: ópio, haxixe, cocaína. Alguns produtos são mais ou menos
ativos, mas o chá utilizado permanentemente a partir do samovar o dia inteiro, o café, o
bombom ou o cigarro constantemente consumidos são também equivalentes de
perfusões. O antidepressivo de referência no Ocidente não é a clomipramina (Anafranil),
mas evidentemente o álcool.
82 Assim, proponho aqui pensarmos que a ação maior e essencial do álcool em
DO DEUS DECAÍDO AO HOMEM

relação com os outros mecanismos estruturais que acabamos de considerar (rapida-


mente) é antidepressiva na medida em que permite a busca continuada ou a retomada da
ilusão totalizadora, da alucinação vitoriosa. O vinho tinto mistura no álcool produtos
sedativos e hipnóticos e mascara essa ação. Mas quando o álcool (C2H50H) se apre-
senta mais isolado, por exemplo nos destilados ou no vinho branco, ele revela mais
claramente suas capacidades antidepressivas e estimulantes.
Vivemos em um mundo claramente quimio-analéptico. Trata-se de um hábito de
vida. Esses antidepressivos ou essas perfusões permanentes de antidepressivos per-
mitem a saída do estupor e da inércia, permitem recuperar-se das destituições, permitem
não afundar, sobreviver e por vezes viver. Eventualmente, com a ajuda da euforia, após
a saída da passividade “eterna’’ eles instalam definitivamente o eleito em uma vertente
maníaca ou sub-maníaca e lhe permitem fundir-se no grupo, na família, no bando, na
massa…
Em tal modo de vida, encontrar-se em jejum e não medicado constitui, de uma
forma cada vez renovada, o início do acesso à verdade da castração, com toda a sua
dificuldade. Enfim só! O que fazer? Como sair da adicção, da paixão, do impasse?
Convém igualmente colocar-se a questão sobre os tempos em que esses tóxicos, esses
antidepressivos não existiam ou sobre quando eles não são acessíveis: o que é feito de
certos sujeitos nesta posição? É uma questão que não deve ser negligenciada, tão
importantes podem ser seus prolongamentos: guerreiros, delinqüentes, mortos?
Nascimento ou renascimento, neste acesso à verdade, apresenta-se
consequentemente o extremo embaraço e, por vezes, o impasse. Constatamos que a
partir desse momento alguns vão cultivar os fracassos. Fracassos estes com valor de
equivalentes, de renovação do traumatismo, de reencontro de tantas impossibilidades
e limitações, e, para continuar na química, fracassos que deste modo se apresentam
idêntica e proporcionalmente como equivalentes neurolépticos, equivalentes barra,
estabelecendo ou contendo a cada vez o ideal.
O que fazer? Para os profissionais, convém sobretudo não ser induzidos a uma
posição de mestria que implica um desprezo diante daqueles que são marcados como
dejetos, o que eles não são. Eles são apenas, e de forma provisória, os dejetos de um
ideal recentemente alterado. Colocar-se nesta atitude seria justamente participar desta
ilusão de perfeição, perenizá-la e, ao mesmo tempo, arrogar para si mesmo a posição
brilhante: o falo “bem sucedido’’ ou o Outro não-barrado.
Seria mais eficiente considerar este momento como o nascimento extremamente
favorável de um vazio central, de uma humanidade renovada, com suas riquezas que
virão. E, certamente virão não do fim do mundo, mas de uma maneira de início, não do
inelutável trágico e do despojamento de si mesmo, mas de um momento grandioso para
quem consegue apreendê-lo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1929) Malaise dans la civilisation. Paris, France, 1971. 83


ENTREVISTA

A DESERÇÃO DO OUTRO*

Marie-Claude Lambotte**

Tarde gelada e chuvosa, como sempre, no inverno parisiense. Marcamos um


encontro no café da esquina, para repassar as questões que havíamos formula-
do, e também as perguntas levantadas pelo cartel preparatório da jornada de
abertura da APPOA – “A Clínica da melancolia e as depressões”, que acontece-
ria em março em Porto Alegre.
Afinal, além de um trabalho conjunto, envolvendo vários colegas, esta entrevis-
ta marcava também um reencontro: no café, eu me reuniria com Maria Rosane
Pereira Pinto, há quatro anos vivendo em Paris, e com Maria Cristina Poli Felippi,
também em Paris há quase um ano. Bom trabalhar entre amigas que estão em
outros pagos, mas sempre com o coração aqui.
O resultado deste trabalho, na confluência de tantos encontros, foi, não apenas
uma reflexão a respeito da obra de MARIE-CLAUDE LAMBOTTE , mas sobretu-
do uma discussão das questões que atravessam nossas experiências clínicas.
Semanas mais tarde, recebemos de Lambotte uma carta, ressaltando quanto
foi importante para ela ter-nos escutado refletir sobre o seu trabalho – e a reto-
mada de questões a que ela própria se obrigou, a partir dessa conversa. Quanto
a nós, só podemos agradecer-lhe também a oportunidade de, mais uma vez,
praticar isso que chamamos, na APPOA, de “transferência de trabalho”.
Ligia Gomes Víctora

*
Entrevista realizada por Ligia Gomes Víctora, Maria Rosane Pereira Pinto e Maria Cristina Poli
Felippi a pedido da Revista. Tradução de Esthér Trevisan. Revisão da tradução de Maria Rosane
Pereira Pinto.
**
M-C Lambotte é psicanalista, pesquisadora do CNRS ( Centre Nationale de Recherche
Scientifique) em Paris, professora na Universidade de Paris XIII, e autora de “Estética da Melan-
colia” e “O discurso melancólico”, além de vários artigos.
84
A DESERÇÃO DO OUTRO

APPOA: Em fevereiro de 2000, na sua comunicação na jornada “A travessia da


melancolia”, a senhora falava da melancolia a partir de uma releitura da noção freudiana
de neurose narcísica e a senhora fazia também uma crítica ao fato de a melancolia
continuar sendo facilmente confundida com a psicose maníaco-depressiva. Aliás, es-
sas críticas se encontram também em sua tese sobre “O Discurso melancólico”, assim
como em “A Estética da Melancolia”. A melancolia estaria situada na neurose ou na
psicose?

M-C LAMBOTTE: É verdade que eu me inscrevo, se ouso dizê-lo, na última


nosografia freudiana: neurose, psicose e neurose narcísica, conforme aparecem, bem
mencionadas, no artigo de Freud, “Neurose e Psicose”, de 1924. Evidentemente ainda
se trataria de entrever qual era a questão das psicoses para Freud; contudo, nesta
última nosografia psicanalítica, em que Freud menciona bem essas três categorias, é
certo que psicose e neurose narcísica não são confundidas.
Seria preciso fazer toda uma história da nosografia para compreender um pouco
melhor ao que isto correspondia em 1924. Mas, do lado das psicoses, Freud classificava
a demência precoce ou a esquizofrenia e ainda certas formas de paranóia e, do lado das
neuroses narcísicas, a melancolia, que era o paradigma. Assim, eu não quis reduzir a
originalidade desta classificação freudiana. Isto me pareceu extremamente interessante,
porque Freud jamais retomou essa problemática, e, na verdade, a partir de minha expe-
riência clínica, percebi uma certa forma de organização psíquica que me parece ser uma
estrutura, que toma toda a aparência de melancolia, mas que se distingue – quando eu
falo de psicose – da psicose maníaco-depressiva. Quer dizer, eu diferencio a melancolia
da psicose maníaco-depressiva, e a melancolia não é uma neurose, ela não tem nada a
ver com uma neurose de transferência. Por um lado, porque, como evoca Freud, a
relação ao objeto parece perder-se, parece romper-se, contrariamente às neuroses de
transferência, e, por outro, também porque a melancolia, nisto que eu pude perceber na
minha experiência clínica, não está assentada sobre uma representação. Assim, mesmo
a tomada em tratamento do sujeito melancólico difere, parece-me, de uma tomada em
tratamento dos neuróticos, no sentido em que não haveria, neste caso, algo da ordem
de uma supressão da representação como no que concerne à melancolia. Simplesmente
porque – e é um pouco, com efeito, o conteúdo, o objetivo de “O discurso melancólico”
–, se queremos retornar ao que Freud chama a escolha da neurose ou a escolha da
doença, ou seja, por que tal ou tal pessoa cai em tal ou tal tipo de estruturação, parece-
me que a gênese mesma da melancolia se situa em uma espécie de traumatismo, certa-
mente, mas sem representação. Quero dizer que a gênese da melancolia está assentada
sobre um modo de deserção da parte do outro em relação ao sujeito, antes mesmo que
possamos falar de objeto.
Isso me parece muito importante porque não há ali a representação, é antes
mesmo do surgimento do objeto. Na tomada em tratamento de sujeitos melancólicos, há
85
ENTREVISTA

todo este pano de fundo, eu diria, de indiferença, de nivelamento da realidade, de


branco, mas isso não impede um modo de desenvolvimento de aparência neurótica, de
desenvolvimento edípico, que se torna enganador. Mas há algo que, na origem, no
pano de fundo, vem testemunhar verdadeiramente um tipo de desapego do outro e,
efetivamente, uma ruptura na iniciação mesma ao desejo. Uma ruptura cujos efeitos
sempre incidirão sobre o desenvolvimento do indivíduo, enfim, que emergirá, que se
manifestará. Mas essa ruptura pode manifestar-se em paralelo ou de maneira subjacente
a algo que pareceria ter ido mais longe e atravessado o problema edipiano.
Assim, é bastante complicado. Parece-me ser diferente de uma psicose, quando
falamos das psicoses em geral. Digo isto porque há algo que eu segui com Lacan, na
ultima lição do seminário sobre «A Transferência», quando ele diz: ‘’O melancólico, ele
está no simbólico’’. O melancólico diz: «eu não sou nada», e este «nada» torna-se,
neste momento – e nós podemos tratá-lo assim –, um significante mestre, como um
significante que faz manter um discurso. Ou ele diz «eu não tenho nada, eu estou
arruinado». E parece-me muito interessante o que Lacan diz sobre isso. Ele não o diz
mais do que sobre o plano da metapsicologia e da escolha da doença, quando refere –
eu gostaria de retomar a citação exata – que seria necessário imaginar que, em relação ao
sujeito melancólico, não se falaria de suicídio do melancólico. O melancólico é sempre,
com efeito, este perigo de ir juntar-se ao nada, de se colar ao nada porque não há
identificação à imagem, é o encontro direto com o objeto pequeno a que pode ser,
talvez, o nada. Lacan fala, então, do suicídio do objeto, ele fala deste objeto que desa-
pareceu por nunca ter-se exposto a riscos na aventura, deixando o sujeito melancólico
cair, despencar.
Eu acredito que, embora não diga nada além disso, neste ponto Lacan nos indica
pistas. Ou seja, algo da ordem de uma ruptura para o sujeito melancólico, justamente
quando ele ia ali sendo pouco a pouco iniciado no campo do desejo, e o outro desapa-
rece bruscamente. Então, ao quê pôde identificar-se o sujeito melancólico? À marca do
outro, ao nada. Mas o nada, não é pouca coisa! É a marca do outro. Isto me parece
diferir, entretanto, da metapsicologia das psicoses – do que chamamos genericamente
de psicoses, pois seria necessário falar, enfim, das esquizofrenias, das paranóias...

APPOA: Neste debate neurose/psicose, do qual podemos dizer que a senhora


foi uma das iniciadoras, observamos em vários autores, ainda que sejam psicanalistas,
uma certa confusão entre melancolia e psicose maníaco-depressiva. Do ponto de vista
de uma clínica diferencial, poderíamos pensar a melancolia no plural? Quer dizer, do
mesmo modo que dizemos as psicoses, poderíamos dizer as melancolias em função das
múltiplas formas com que ela se apresenta?

M-C LAMBOTTE: Isto seria interessante, eu digo a vocês que não o havia
pensado. Seria interessante porque – e este é um ponto que, a meu ver, ainda traz muitas
86
A DESERÇÃO DO OUTRO

dificuldades – os pacientes podem apresentar-se a nós, no início, com uma mesma


sintomatologia, um mesmo estado depressivo de inibição, de tristeza, etc. . E é neste
ponto que retomo verdadeiramente os dois tipos de discurso que me parecera perceber
com esses pacientes, mas sempre em um efeito de só-depois, certamente. Foi refletindo
sobre minha experiência clínica, analisando-a neste efeito de só-depois, que constatei,
com este mesmo estado, esta mesma sintomatologia, dois discursos diferentes, contu-
do. É um pouco do que eu dizia em fevereiro de 2000, nesta jornada sobre «A travessia
da melancolia».
Assim, há um discurso que eu chamei depois simplesmente de depressivo. A
pessoa fala, evidentemente, de sua inibição, de sua tristeza etc, mas ela tem condições
de contar sua história, ou seja, ela diz : «depois que me aconteceu isso eu estou assim,
eu não consigo fazer mais nada, etc.». Há aí um ponto de registro e há também, parece-
me, um laço com o objeto, um laço com o analista que se manifesta desde o início, «tire-
me deste estado, preciso sair dele», e um laço com esta posição do analista em lugar de
sujeito-suposto-saber. Enfim, isso funciona do lado da neurose. Eu os classifiquei,
então, mais uma vez por exigências teóricas, de sujeitos antes depressivos e do lado da
neurose.
Depois, há outros sujeitos, outras pessoas, que estão em um estado de inibição
total e cujo discurso não é absolutamente o mesmo. É: «..eu sempre fui assim, não tenho
nenhuma história para contar, sempre foi assim, eu nasci sob uma estrela ruim e, de
qualquer modo, a vida é assim, você bem sabe, não existe verdade, não tem sentido,
estamos todos no mesmo barco, etc.». Uma espécie de discurso negativista; senão
niilista, em todo caso, negativista. Um discurso, igualmente, no qual a posição mesma
da pessoa, isto é, o eu, aparece muito pouco, ou mesmo nem aparece. São grandes
idéias gerais: «não existe verdade, não tem sentido, você há de concordar…»; algo
desse modo, idéias um tanto pseudofilosóficas, mas de uma lógica impecável. Ou seja,
o discurso é como que, freqüentemente, destituído de seu estatuto, mas se mantém com
uma lógica completamente válida, e constatamos, nesse discurso, a importância das
conjunções de coordenação, de pontos que sustentam o raciocínio: «logo», «ora», etc.
Isso se mantém firme – as articulações do raciocínio são muito fortes. E há ainda,
igualmente, no discurso sustentado em direção ao analista, a negação mesma da de-
manda: «de qualquer forma, tudo o que você disser vai ser realmente muito certo, mas
eu já sei; isto seria muito bom para os outros, mas para mim…eu já sei».
Este me pareceu um outro estilo, um outro tipo de discurso que qualifiquei de
discurso melancólico, diferenciando-o do discurso depressivo a que me referi primeiro,
mesmo que os pacientes se apresentem em aparência e, no início, de uma mesma manei-
ra, em uma enorme prostração, em uma inibição total, etc.
Na seqüência do tratamento, na seqüência da cura, evidentemente isto não se
desenvolve do mesmo modo. Tanto há, do lado da depressão, uma retomada do inves-
timento nos objetos exteriores, quanto, do lado dos pacientes que qualifiquei de melan-
87
ENTREVISTA

cólicos, parece-me que não é isso que seja necessário visar ou no que seja necessário
pensar – as coisas não se desenrolam da mesma maneira. Assim, nesses dois tipos de
discursos, há um que eu coloco mais do lado das neuroses e outro que eu coloco
verdadeiramente do lado das neuroses narcísicas – não das psicoses, mas das neuro-
ses narcísicas.
No que concerne às psicoses, tenho como que uma dúvida, uma questão sobre
a qual eu trabalho atualmente, que é a seguinte: como é possível que estas grandes
verdades às quais todo o mundo tem acesso – «não tem sentido», «a verdade não
existe», «é preciso reconstruir as coisas nós mesmos», etc. –, isto é, a afirmação da
castração, seja, ao mesmo tempo, para o sujeito melancólico, um evitamento? É eviden-
te, este é o paradoxo. É a afirmação e é uma figura de evitamento, mas, a meu ver, isto não
é a mesma coisa que a foraclusão psicótica. Entretanto, como é possível que estas
frases, «a verdade não existe», etc. – nas quais todos nós pensamos sempre, em um
certo momento de nossa vida ou de vez em quando, mas com as quais fazemos alguma
coisa –, como é possível que, para os melancólicos, essas frases tenham também o peso
das coisas? Quer dizer, elas fazem mergulhar verdadeiramente o melancólico em uma
espécie de desapego, de desvalorização, de nivelamento, de indiferença da realidade,
pois todo objeto reenvia a um outro, todos se equivalem, não é acordado mais valor a
um do que a outro. Assim, poderia ser o caso de trabalhar estas proposições do mesmo
modo que, do lado das psicoses, as palavras têm este peso de coisa. Talvez neste ponto
também haja algo da ordem, justamente, do peso das coisas, de uma confusão palavra-
coisa. Isto não me parece impossível, mas eu deixo o ponto de interrogação.

APPOA: Podemos diferenciar melancolia e estado melancólico?

M-C LAMBOTTE: É difícil, porque podemos observar, nos neuróticos, o que


Freud chama de os estados de melancolização. Em seus «Escritos», no artigo sobre «La
critique du rapport Lagache», de 1960, Lacan sublinha, para explicar seu terceiro tempo
do esquema do buquê invertido, que há um momento em que a referência egóica de
identificação se apaga na análise, quer dizer, cai. É o momento em que se faz o movimen-
to de báscula no espelho plano e onde, aparentemente, não haveria mais imagem virtu-
al. Lacan diz que os momentos de despersonalização no tratamento talvez correspondam
a um momento dessa ordem. Porém, ele acrescenta que, justamente para os neuróticos,
recria-se necessariamente uma imagem virtual sobre o espelho plano, o neurótico es-
tando sempre neste famoso i(a); há sempre a identificação à imagem. Este momento de
despersonalização fez-me refletir, precisamente, sobre o que eram os estados de
melancolização. Eu me pergunto se isso não poderia corresponder a estes momentos de
vacilação das referências egóicas.No entanto, isto vale para o neurótico, que atravessa
esses momentos na cura, enquanto o melancólico já está, a priori, neste não-funciona-
mento, nesta falta das referências egóicas, de identificação egóica.
88
A DESERÇÃO DO OUTRO

APPOA: Lemos no «Le Monde» um artigo que falava das estatísticas sobre o
suicídio dos adolescentes na França. Um menino em cada cinco e duas meninas em
cada cinco tentam o suicídio entre a idade de 14 e 24 anos: é a segunda causa de
morte em adolescentes. A senhora veria nesses dados, de um modo geral, uma incidên-
cia elevada de estados melancólicos graves na adolescência? Fazemos esta pergunta
porque, nesta reportagem, havia, no discurso de certos adolescentes que «sobrevive-
ram», algo da ordem do «tudo ou nada» do qual a senhora fala nos seus escritos,
alguma coisa da posição do equilibrista, jogando com a vida e a morte. Algumas meni-
nas diziam «eu deveria ter sido bem sucedida e eu fracassei em tudo, então, não sou
mais nada».

M-C LAMBOTTE: Não ousaria dizê-lo. Considero a adolescência quase como


um segundo estádio do espelho, no sentido em que o adolescente, com seu corpo que
muda completamente, tem que se identificar novamente a uma outra imagem, Mas,
desta vez, trata-se da imagem de um adulto do mesmo sexo que ele, com o suporte do
estádio do espelho, em que já há o outro, o adulto que carrega a criança. Eu me pergunto
se o adolescente não tem que renegociar uma identificação à imagem especular, sob a
caução, sob a garantia do outro – como o bebê –, mas do outro, aqui, do mesmo sexo,
quer dizer, com a caução de um homem ou de uma mulher. Então, haveria aí, talvez, uma
abertura do lado da melancolia, infelizmente; não sei, mas em todo o caso isto seria, sem
dúvida, através desses modelos. Eu me pergunto se não é preciso trabalhar, para os
adolescentes, a necessária caução do adulto, garantir a possibilidade de que eles se
identifiquem a esta nova imagem do espelho graças à transmissão, a do pai ou da mãe,
a transmissão do mesmo sexo. É neste ponto, parece-me, que o mesmo sexo entra em
jogo para o adolescente; para que ele possa se identificar à sua imagem com relação a
esta transmissão do pai ou da mãe.

APPOA: Certos autores, Jacques Hassoun, por exemplo, consideram a mãe do


sujeito melancólico como alguém que está mergulhado em um luto. Outros autores
vêem-na como extremamente narcísica. Ao seu ver, o que impediria a mãe do sujeito
melancólico de ser, para empregar a expressão de Hassoun, «presença compassiva»?

M-C LAMBOTTE: Devo dizer que eu só escutei falar da mãe do melancólico


através dos próprios pacientes. Parece-me que eles falam de uma mãe, ela também, sem
afetos. Eu pensava em um paciente adulto, mas que se via menininho, esta criança que
quer agradar a sua mãe e que lhe dá um desenho bonito, esperando, por conseqüência,
evidentemente, o prazer da mãe. E então sua mãe lhe responde, dizendo: «Ah! está
muito bem, mas, tu vês, a chaminé da casa não se faz assim, faz-se assim, e aqui a
perspectiva não está muito boa, etc.». Esse paciente insistia sobre o fato de que o dom
do desenho não havia tido o efeito esperado e que a mãe havia respondido, de certa
89
ENTREVISTA

forma, como uma espécie de professora ou de técnica, quando a intenção do menini-


nho, redita, evidentemente, na palavra do adulto, não era aquela. Ele insistia muito
sobre isso. Eu o percebo em outros pacientes, sobretudo mulheres, que insistem, tam-
bém, sobre um olhar desvalorizador. Desvalorizador sempre em relação, com efeito, a
alguém ideal, inacessível – sem dúvida uma criança ideal, inacessível para a mãe. Lem-
bro a paciente que, menina, experimentava roupas em uma loja com sua mãe, e sua mãe
lhe causava vergonha diante das vendedoras dizendo: «mas como tu és magra, olha só,
nada te cai bem, etc.». Um tipo de desvalorização contínua. Além disso, há também a
dificuldade de falar, a dificuldade de colocar em palavras. Inúmeras vezes eu escutei:
«mas, nossa mãe, para ela, o que importava era que tivéssemos o suficiente para comer
e que comêssemos. Então ela preparava as refeições e a gente comia, a gente rangava…
e mais nada».

APPOA: O que a senhora diz nos faz pensar nos trabalhos de Jean Bergès e
Gabriel Balbo que, aliás, mantêm na Associação Freudiana Internacional, este ano, um
seminário sobre os estados depressivos e as melancolias nas crianças. Escutando-a,
não podemos deixar de pensar na noção de transitivismo da qual eles falam em seus
escritos, ou seja, uma hipótese materna sobre o recém-nascido que daria conta de uma
alteridade fundamental na constituição do sujeito. Pareceria que a mãe dos pacientes
melancólicos teria uma séria dificuldade com relação a isso.

M-C LAMBOTTE: Sim, acredito que há vários elementos, uma soma deles.

APPOA : Nós pensamos na implicação destes vividos do recém-nascido, de


tudo o que pode ser da ordem do pré-especular implicado nisto que a senhora chama de
uma passagem pelo estádio do espelho e que teria fracassado, de certo modo, por este
olhar que não teria podido significar a imagem para o sujeito.

M-C LAMBOTTE: Sim, e mesmo que todo este alinhamento teórico,


metapsicológico, que dá conta da escolha da doença, é anterior. Isto de que Lacan fala
no fim do seminário sobre «A transferência», quando fala do suicídio do objeto –
porque ele faz esta hipótese –, tudo isto é bem anterior. É por isso que não há represen-
tação, mas ela se cristaliza na passagem pelo estádio do espelho. Neste ponto parece-
me que você tem toda a razão. As pessoas só podem falar de sua imagem, da maneira
como elas eram valorizadas ou desvalorizadas pelos seus pais, suas mães, entre outros.
Isso, porém, só faz cristalizar, na expressão, o que se passou antes, sem representação
e sem que o sujeito tenha podido exprimi-lo. Com efeito, existe o pré-especular que faz
com que, depois, isso se cristalize no especular. Vemos, então, como o esquema especu-
lar pode nos ajudar a compreender um pouco as coisas.

90
A DESERÇÃO DO OUTRO

APPOA: Se a constituição do imaginário e da ilusão que lhe é decorrente são


dois pontos fundamentais que faltam para o melancólico, como a senhora considera a
direção do tratamento nestes casos? As análises dos sujeitos melancólicos comporta-
riam a construção de uma ilusão imaginária que se sustentaria? Como intervir no ideal,
por compensação inflado na melancolia, visto que é sobre este mesmo ideal que se
sustenta o sujeito melancólico, ainda que ele o impeça de estabelecer relações não
idealizadas?

M-C LAMBOTTE: A meu ver, esta é uma questão chave. É verdadeiramente no


que eu estou trabalhando neste momento, quer dizer, a tomada em tratamento e o modo
eventual de resolução da melancolia.
Com esta falha do imaginário, não creio que possamos pensar em uma compen-
sação, uma restauração, uma reconstrução imaginária. Não há, com efeito, ilusão aí, não
me parece existir, e não vamos nos iludir quanto a isso. Então, penso que a tomada em
tratamento – mais uma vez, tudo isso é um pouco hipotético, porque eu o trabalho, mas
sempre a partir da clínica – é extremamente difícil, sobretudo nas primeiras entrevistas,
por todo este negativismo que o sujeito melancólico lança sobre o analista: «se eu
venho ver a senhora é porque me empurraram, de todo modo isto não serve para nada,
não tem sentido, não vai servir para nada; se não tivessem me empurrado, eu não viria
ver a senhora, etc.». Mesmo assim, ele está ali, e talvez a única coisa que o analista pode
apostar, com a qual, de certo modo o analista pode contar, é que ele retornará. Com
efeito, há alguns que retornam regularmente.
A dificuldade, de certo modo, é a de não apoiar ou caucionar o que o melancó-
lico está dizendo, no sentido em que tudo o que ele diz, «não tem sentido, a verdade não
existe, etc.’’, não podemos nos impedir, no nosso foro íntimo, de também nos dizermos:
«mas sim, é a nossa condição humana! Ele está descrevendo nossa própria condição
humana!» Se concordarmos com ele ou se o confortarmos no que nos está dizendo,
parece-me que bloqueamos, fechamos completamente o único ponto, o único apelo, a
única abertura que ele se permitiria manifestar em presença do analista.
É algo bastante violento, porque o melancólico não cessa de dizer «mas, veja
bem, nós somos iguais, a senhora concorda, enfim». Então, sobretudo neste momento,
é necessário deixar esta abertura, mesmo negativa, mesmo provocadora, e não respon-
der, certamente, mas, ao contrário, contar com o fato de que ele retornará. Quer dizer,
escutá-lo dizer isso, mas na expectativa de que ele retornará. O que qualifiquei de
bastante violento se refere, do lado do sujeito melancólico, ao que me parece ser uma
tentativa de assimilação do analista, como uma devoração canibal. Então, se ele retorna
– e, na minha experiência, enfim, muitos retornam –, há aí algo que pouco a pouco
emerge no tratamento. É, apesar de tudo, uma relação transferencial: o paciente melan-
cólico continua a assimilar o analista, mas em outro nível, no sentido em que ele supõe
– e eu escutei um pouco as coisas assim – que o analista tenha passado pelas mesmas
dificuldades que ele e que o analista se safou delas. Se falamos do imaginário, esta me 91
ENTREVISTA

parece ser a figura de projeção imaginária do sujeito melancólico: o analista passou por
tudo isso e se safou. É novamente uma figura de assimilação, é a mesma coisa, mas em
um outro estágio, e podemos, então, neste momento, apoiar-nos sobre esta relação
transferencial.

APPOA: O analista seria, de certo modo, um espectro, ele teria passado por uma
descida aos infernos e teria retornado. É desse modo que ele seria, na suposição do
sujeito melancólico, depositário de um saber sobre a vida e sobre a morte?

M-C LAMBOTTE: Sim, é exatamente isto. Se, bem no início da tomada em trata-
mento, é o sujeito melancólico que se encontra em uma posição quase de sujeito-
suposto-saber – porque ele diz «eu, eu sei tudo o que a senhora vai dizer» –, na
seqüência do tratamento, justamente, isso muda. É exatamente o que você disse: o
analista retorna daquilo que ele, o sujeito melancólico, viveu; o analista retorna, ele se
safa. Isto se faz progressivamente, com certeza, mas parece-me que há aí um ponto de
báscula que possibilita ao analista continuar verdadeiramente.
Uma outra coisa, ainda com relação à tomada em tratamento: é que eu não sei se
é preciso pensar, como eu dizia antes, em uma restauração do objeto libidinal, enfim, do
laço ao objeto – não sei, deixo um ponto de interrogação. Entretanto, manifesta-se na
cura o insabido, uma espécie de terceiro lugar entre o analista e o paciente. Este terceiro
lugar é, com freqüência, um lugar de contemplação, eu diria, em que o paciente fala ou
parece investir uma organização; bem concretamente, pacientes que organizam o inte-
rior de um apartamento, que o estruturam, ou que passeiam na natureza e acham isto
muito bonito, mas descrevem a natureza como uma paisagem, uma composição. Há,
assim, um terceiro lugar, onde me parece que o paciente investe todas as suas ativida-
des de organização, de composição, de estruturação. Aí, igualmente, neste efeito imagi-
nário, ele pensa que o analista, ele também, está interessado. Isto me parece ser, não sei
se um modo de resolução, mas, em todo o caso, uma abertura possível.

APPOA: Seria um movimento em direção ao outro?

M-C LAMBOTTE: Sim, com este intermediário formal de organização, de com-


posição, etc. Não é diretamente o outro. A meu ver, é um campo completamente estéti-
co, o que me parece muito importante.

APPOA: Segundo seus escritos, na melancolia, mais do que de uma perda de


objeto – noção muito comum entre os analistas –, trata-se de uma falta: falta da imagem
de si, conseqüência da problemática especular. Já que é pela perda que um objeto se
constitui, na melancolia, então, de que objeto se trataria, cuja sombra recairia sobre o eu

92
A DESERÇÃO DO OUTRO

do melancólico?

M-C LAMBOTTE: Na verdade, Freud parou neste ponto em «Luto e melanco-


lia». Ele nos dá muitas pistas, mas fica nisto. Karl Abraham afirma que este objeto
reincorporado não é senão a repetição de um traumatismo anterior. Isso ele diz, em
verdade, muito mais claramente que Freud. Então, esse objeto anterior é este objeto
que, mais do que desaparecido, é o objeto que desistiu dele, do melancólico. Aqui eu
retomo as pistas que Lacan nos deixa no final do seminário sobre «A Transferência» e
no de «A Angústia» – mas é uma interpretação, Lacan também não vai mais longe
nisso. É a referência a este objeto encarregado de iniciar o sujeito no campo do desejo
e que brutalmente desapareceu. Lacan insiste sobre o «brutalmente desaparecido’’,
não é mesmo? E resta dele algo, uma marca. É, no entanto, uma marca altamente simbó-
lica, a marca da identificação ao nada: «eu não sou nada». Este «eu não sou nada»,
porém, é um «eu não sou nada» com relação a alguma coisa que poderia ter sido. Não é
pouca coisa este «eu não sou nada», não é mesmo? E nada 1 vem da palavra res, em
latim, que era, acredito, o acusativo que queria dizer coisa. Logo, francamente, não é
pouca coisa! É justamente isto o que me parece diferenciar, mais uma vez, o sujeito
melancólico de um sujeito psicótico.

APPOA: O enunciado do sujeito melancólico se inscreveria, então, no campo da


denegação?

M-C LAMBOTTE: Sim, exatamente, porque este «eu não sou nada», isso foi
assim também na experiência vivida do sujeito melancólico, esta experiência que muitos
autores descrevem – e nós estamos de acordo – como a da indiferença da realidade, do
seu nivelamento, da falta total de relevo, etc. Simplesmente, neste ponto, há uma figura
que aparece também durante o tratamento, no discurso melancólico. É que, por trás
dessa realidade aparente, deve haver a verdadeira realidade. Quer dizer, justamente,
uma realidade brilhante, uma realidade que seria revestida de todos os afetos, algo de
absoluto, algo necessariamente da ordem do gozo. E a realidade nivelada, a realidade
sem relevo, a nossa realidade, teria a função de véu dessa realidade encoberta. Eu cito,
mas sem entrar em detalhes – é um trabalho que estou retomando –, esta escritora que
escrevia com uma caligrafia muito bela sobre o papel e que forçava a sua escrita até
deixá-lo quase rasgando. Ela dizia em seguida: «veja, a luz vem de trás, ilumina por
trás»; ou seja, é detrás que vem alguma coisa. Há, então, com freqüência, figuras como
esta: «as coisas são iluminadas por trás».
Penso que, com efeito, há algo também que faria com que o sujeito melancólico

1
Em Francês: rien.
93
ENTREVISTA

permanecesse em uma proximidade muito grande com o gozo originário. Sobre este
ponto, seria necessário retomar o trabalho de Lacan, em particular com «A Angústia»,
em torno da questão dos objetos cessíveis, disto que deve cair, despencar: o olhar, a
voz, as fezes, etc. Para o melancólico, há algo que resta verdadeiramente muito próximo,
e que a realidade nivelada encobre; de fato, felizmente, ela encobre este gozo. Então, o
objeto da realidade nivelada é um objeto reduzido ao nada, porque qualquer objeto
envia a um outro, pode ser substituído. Em contrapartida, há por trás disso algo da
ordem do absoluto. Há os que dizem «a verdadeira realidade».
Conseqüentemente, há esta abertura possível, no tratamento, quando o pacien-
te investe em atividades de estruturação, de organização, etc., porque essas são tam-
bém atividades de contemplação. É aí que um modo de resolução pareceria possível, na
direção do que chamamos o objeto estético. A função do objeto estético é a de ser um
objeto de contemplação, ou seja, a de indicar o gozo. Pois o objeto estético, seja uma
organização do interior, seja um objeto de coleção, seja um objeto artístico, ele é
metonímico do gozo que está por detrás. Quer dizer, ele não faz senão indicar o gozo,
mas focalizado sobre um objeto. Isso permite novamente ao sujeito melancólico reinte-
grar a realidade.

APPOA: Como fica a questão do gozo fálico para o melancólico?

M-C LAMBOTTE: Eu não sei se ele é possível. Há um artigo de Eric Laurent –


isto já faz muito tempo, se não me engano nos anos 84, 85 – sobre a lassidão do sujeito
melancólico. Ele dizia que a questão fálica não era negada pelo sujeito melancólico, mas
tornada para sempre inacessível, para sempre ideal. Logo, ela deixaria o sujeito melan-
cólico em um estado de esgotamento. E, a meu ver, ela talvez se mantenha assim,
inacessível, não apropriada em todo caso, mas é preciso que haja um substituto dela. O
objeto estético é um substituto, do mesmo modo que a relação de objeto. Ou seja, no
tratamento, a relação ao outro necessita de um intermediário; o espaço imaginário de
contemplação, o objeto estético, a construção estética constituem esse intermediário
necessário.

APPOA: Desculpe-nos a insistência, vamos voltar um pouco à clínica diferenci-


al. Em certos casos clínicos, encontramos dificuldades para fazer um distingo entre
histeria em crise depressiva, quando uma mulher cessa a reivindicação fálica e se põe
em posição de renúncia ao projeto fálico, e o que seria uma melancolia propriamente
dita. Como, na sua prática, a senhora consegue fazer essa distinção?

M-C LAMBOTTE: Fico muito contente com estas questões porque a clínica das
depressões em geral, ou do estado depressivo, e também a da melancolia, são, com
efeito, extremamente complexas. Simplesmente porque a melancolia toca a castração do
94
A DESERÇÃO DO OUTRO

ser, a falta fundamental. Então, se ouso dizer, estamos todos concernidos. Com efeito,
vemos chegar até nós pacientes que podem apresentar, em um momento ou outro,
estados de melancolização, ou que podem apresentar-se sob um aspecto depressivo,
sem que saibamos efetivamente se se trata de um modo depressivo grave ou de um
modo de descompensação em um dado momento mas que não é necessariamente
psicótico, ou ainda se se trata de uma melancolia já instalada, etc. Penso que os discur-
sos são diferentes. Mas o que é extremamente difícil é que, recebendo esses pacientes,
acredito que não temos, pelo menos no início, que trabalhar com a nosografia. Temos
que escutá-los e trabalhar com o discurso e os mecanismos. A este respeito, penso na
conclusão de Freud a uma conferência de Victor Tausck sobre melancolia. É uma confe-
rência de 1914 que encontramos em «Les minutes de Vienne», em «Les premiers
psychanalystes»2 . Eu a cito sempre porque, em primeiro lugar, Freud desmistifica ali
duas grandes questões que me pareciam mais de ordem médica do que psicanalítica.
Entre outras, como estudar a melancolia com os melancólicos graves, no hospital psi-
quiátrico, os quais se encontram – e, com efeito, eu os vi – prostrados sobre uma
cadeira e totalmente mudos? É verdade que aí, então, não sabemos se são melancólicos
ou se são psicóticos no sentido, eventualmente, da psicose maníaco-depressiva; mas
muito freqüentemente eles são unicamente melancólicos, com aspecto melancólico,
prostrados. Bem, Freud nos diz : «Nós não podemos trabalhar senão com casos benig-
nos». Trabalhar no sentido de teorizar, pois «são os casos benignos que nos aportam
o maior número de coisas». Então, isto me pareceu indicar coisas bastante pertinentes.
Otto Rank, que era o secretário das sessões da Sociedade Psicanalítica de Viena, escre-
ve: «O professor Freud encontra na conferência certas coisas que lhe são novas e
outras que não o são, etc […], o critério essencial segundo o qual é preciso circunscre-
ver os sintomas (que, na prática, não aparecem jamais sob sua forma pura) e as formas
das doenças é o mecanismo». Assim, Freud insiste sobre o mecanismo. Não sobre a
nosografia, mas sobre o fato de clarear os mecanismos: …»a observação de casos
benignos fornece a única possibilidade de delimitar o quadro puro». Ou seja, com o
quadro puro, nós nos deparamos com toda a sintomatologia possível, mas é somente
com os casos benignos que chegamos a delimitar o quadro puro. Não se trata de tomar
isso ao pé da letra, evidentemente, mas é algo bastante interessante clinicamente. Por
isso os estados de melancolização também não devem ser negligenciados, mesmo nos
neuróticos, pois eles nos ajudam a entrever o que poderia ser algo decorrente de um
quadro puro.

2
«Contribution à une exposition psychanalytique de la mélancolie», séance du 30 décembre
1914, «Les premiers psychanalystes, Minutes de la Société Psychanalytique de Vienne», trad.
N. Bakman, t. IV, 1912-1918, Paris Gallimard, 1983, p. 313.
95
ENTREVISTA

APPOA: Vários casos clínicos dos quais a senhora fala em «O Discurso Melan-
cólico» referem-se a mulheres que sofrem de bulimia e anorexia. Qual é a relação entre a
melancolia e esses fenômenos clínicos?

M-C LAMBOTTE: Estes sintomas – anorexia e bulimia – podem ser encontra-


dos tanto entre os neuróticos histéricos, por exemplo, como entre os melancólicos. Isto
me parece já interessante, porque confirma verdadeiramente o que diz Freud: «tomemos
as coisas pelos mecanismos». Para responder mais diretamente à sua questão – embora
eu sustente tudo isto no condicional, eu não afirmo nada –, eu diria que a melancolia,
como eu a defini, seja o fato de uma organização à parte, de uma estrutura psíquica à
parte.

APPOA: A senhora estaria de acordo com a idéia de que, assim como Lacan
formalizou os quatro discursos, haveria um quinto a ser formalizado para a melancolia?

M-C LAMBOTTE: Sim, justamente, eu acho. Não penso em fazê-lo, esse quinto
discurso, mas acredito que seria de se trabalhar, em todo o caso, efetivamente, com os
quatro matemas do discurso. Trata-se, aí também, de uma apresentação, uma maneira
retórica de trabalhar as coisas em um movimento dinâmico, na organização e na estrutu-
ra, sem classificá-las a priori à direita ou à esquerda.

APPOA: A senhora pensa que as mudanças culturais, tais como o


desinvestimento da maternidade, o declínio das figuras representativas da instância
paterna, etc. podem contribuir para uma maior incidência da melancolia em nossa soci-
edade atual?

M-C LAMBOTTE: Eu não sei, pois seria preciso indagar também quais são as
pessoas que se encontram em tratamento psicanalítico atualmente. Talvez não sejam as
mesmas que há dez ou vinte anos. Esta é uma questão muito importante. É verdade que,
falando com outros psicanalistas, atualmente recebemos sujeitos, eu diria, narcísicos,
para ficar em um plano bem geral. Sim, é verdade, mas a que isto corresponde? É, sem
dúvida, dizer rápido demais «à perda de valores paternos» ou outros.

APPOA: Com relação às mutações culturais, Jean-Pierre Lebrun, no seu livro


«Un monde sans limites», salienta que as «novas doenças da alma» se apresentam,
hoje, mais freqüentemente sob a forma, por exemplo, da toxicomania ou da delinqüên-
cia. O que a senhora pensa?

M-C LAMBOTTE: Sim, mas o interesse é saber por que elas mudaram de apre-
sentação. É devido somente às mudanças sociais? É somente o sociológico, por exem-
96
A DESERÇÃO DO OUTRO

plo, que as determinou? Evidentemente, houve mudanças monumentais. E, se este é o


caso, o que as mudanças sociológicas determinaram, justamente, sobre as manifesta-
ções propriamente sintomáticas?

APPOA: Assim como a histeria mudou desde Charcot?

M-C LAMBOTTE: Exatamente. Houve um dado momento em que se tratavam


quase todos os doentes como esquizofrênicos. Existem muitas teses sobre o manejo e
a moda mesmo das nosografias. Há aí algo que se trataria certamente de trabalhar – mas
não somente isso, sem dúvida, eu estou de acordo com J-P Lebrun – que é o fato de que
a função da imagem tornou-se absolutamente preponderante em nossa sociedade atu-
al. Nós não podemos, nesta sociedade, participar de nenhum tipo de projeto, associa-
ções, profissões etc, senão através de algo da ordem da imagem, em detrimento mesmo
do conteúdo. Cada vez mais a forma é privilegiada em detrimento do conteúdo. É uma
análise simplista; contudo, a imagem seria, sem dúvida, uma borda, uma via para traba-
lhar, ao mesmo tempo, o que está em jogo atualmente na sociedade e, eventualmente,
suas incidências do lado da melancolia. Há quem tenha visto isso muito bem: aqueles a
quem chamávamos, nos anos 60, na França, os situacionistas. Entre outros, um dos
seus representantes era Guy Debord, um filósofo, e seu livro mais conhecido era «La
société du spectacle» – o primeiro livro, não o segundo, pois o primeiro, a meu ver, é
bem mais difícil de ler, é bastante filosófico. Esse livro me parece divinatório: é exata-
mente o que se passa atualmente. E isso, sim, considero inteiramente relacionado com
a melancolia.

APPOA: Muitas pesquisas oriundas da sociologia, assim como muitos psicana-


listas, assinalam a existência de uma maior incidência de casos de melancolia entre as
mulheres. Na sua opinião, haveria em tal incidência algo de especificamente feminino,
pelo fato de que a identificação seria mais complexa para a mulher?

M-C. LAMBOTTE: Sim, seria evidentemente em torno do modelo da castração


que se precisaria trabalhar esta questão, mas ela é também, como você diz, bastante
sociológica. Eu falo disso no início de meu livro, «O discurso melancólico», que, com
efeito, já faz algum tempo que escrevi: foi em 1993, e eu via, então, muito mais mulheres
melancólicas que homens. Atualmente, não diria mais a mesma coisa e eu me pergunto
também – é preciso perguntar-se – por que são as mulheres que chegam em maior
número e mais facilmente à análise do que os homens? Há muitos elementos que se
cruzam aí. Talvez a melancolia não se apresente nos homens da mesma maneira que nas
mulheres. É certo que, do lado dos homens, há esta questão do pai fracassado que
retorna verdadeiramente com insistência e que não encontramos dessa forma do lado
feminino.
97
ENTREVISTA

APPOA: Haveria aí algo decorrente da função fálica?

M-C. LAMBOTTE: É o que nós dizíamos antes. Não trabalhei muito isso, mas eu
o menciono, simplesmente. Dizíamos que essa função fálica não era recusada, mas
tornada para sempre inacessível. Penso, com efeito, encontrar, no discurso dos homens
melancólicos, esta figura do pai fracassado como representante real da castração. É o
«veja bem, olhe…». Há algo da ordem da realidade – não do real, mas da realidade
tangível – que conforta o sujeito melancólico na sua afirmação e no seu evitamento,
simultâneos, da castração. Que isto seja do lado da realidade: acontece com freqüência
que o pai real do melancólico tenha atravessado momentos extremamente difíceis e seja
quase sempre representado em momentos de fraqueza, aquém do que deveria ser. Mas,
mesmo que, de certo modo, ele esteja ali totalmente integrado na realidade, o sujeito
melancólico vai dar um jeito para encontrar a falha – e sempre há falha na realidade – e
construir um pai fracassado. Ou seja, isso tem uma função: o pai fracassado vem legiti-
mar de algum modo a melancolia. Não se dá a mesma apresentação do lado feminino,
absolutamente. Mas eu não poderia estender-me sobre isso, porque seria realmente
necessário trabalhar mais essa questão.

APPOA: Em função da problemática especular na constituição do sujeito melan-


cólico, ou seja, da fragilidade do Eu-ideal diante da potência do Ideal do Eu, quais
seriam as conseqüências desta desproporção para a formação do Super-eu – o qual,
sabemos quanto pode ser cruel e sádico?

M-C LAMBOTTE: O Super-eu é verdadeiramente, como diz Freud na «Introdu-


ção ao narcisismo», aquele que tem ao menos esta função de avaliar e de controlar a
distância entre o Eu e o ideal. Ele o diz expressamente nesse texto. O Super-eu teria aí um
papel de aniquilamento. O Ideal do Eu, neste esquema especular, para o melancólico, é
no fundo a questão do quadro: é algo que se sustenta. Ele parece completamente
exterior e freqüentemente ligado a uma espécie de autoridade materna aterrorizante.
Contudo é algo que se sustenta no sentido em que – é o que Freud diz também em «Luto
e melancolia» – é com este Ideal do Eu que recobre o Eu-ideal que o sujeito melancólico
pode, não encontrar o outro, mas entrar em uma espécie de identificação narcísica com
o outro, fazendo dele o portador deste quadro, deste Ideal do Eu. Trata-se de identifica-
ção narcísica, no sentido em que haveria nela quase uma confusão, não entre duas
pessoas, mas, ao fazer do outro o portador do Ideal do Eu – este quadro tão rígido –, ele
faz o outro portar, de certo modo, toda a sua identidade. Freud, em «Luto e melancolia»,
sublinha esta possibilidade para o sujeito melancólico de, repentinamente, ter investi-
mentos que pareceriam massivos e, ao mínimo detalhe, ao menor desapontamento, tudo
se desmoronar. E o melancólico retorna dizendo: «bem, mais uma vez eu fui traído, eu
devia mesmo ter esperado por isso, é sempre assim, etc.». Esse Ideal do Eu, esse qua-
98
A DESERÇÃO DO OUTRO

dro, ao mesmo tempo que o sustenta, ele o deposita sobre o outro. É sua única moeda
de troca. E o Super-eu, é precisamente aí que eu o situaria, neste efeito destrutor
ininterrupto e nesta antecipação, pelo detalhe, da ruptura. Freud sublinha o lado lábil, o
lado massivo dos investimentos do sujeito melancólico: ao mesmo tempo que esse
investimento é enorme, subitamente ele é retirado. O Super-eu, a exemplo do que diz
Freud na «Introdução ao Narcisismo», eu o vejo como que avaliando continuamente a
distância entre o Eu e seu ideal, com uma função, para o sujeito melancólico, de impedi-
mento – dada a questão do objeto reincorporado, é a este objeto, evidentemente, que se
endereça o recobrimento do Eu, em toda a ambivalência do sujeito melancólico.
Mas o que é que faz com que, justamente, em um dado momento, o Super-eu
relaxe um pouco sua vigilância, fazendo com que haja, às vezes – e eu retomo aqui a
afecção maníaco-depressiva –, passagem à mania, passagem ao triunfo? Trabalhamos
bastante sobre a melancolia, um pouco menos sobre a mania e nada sobre isto que faz
passagem. E o que faz passagem, certamente nós podemos retomá-lo de Freud, em
«Psicologia das massas e análise do eu», e em «Luto e melancolia»: é a fusão entre o Eu
e o Ideal do Eu, quando é o Eu que toma o lugar de objeto para o ideal. O Super-eu,
então, não opera mais esta vigilância incessante, mas é exatamente a mesma coisa, uma
vez que o maníaco se interessa por tudo em torno dele, chegando à fuga de idéias, a
ponto que nenhum objeto e nenhuma representação adquira mais interesse que outra,
e tudo desfila. É exatamente a mesma posição do sujeito melancólico, em que todo
objeto envia a um outro. Também para o maníaco, todos os objetos se equivalem. Ele
não pode investir um objeto mais que um outro; imediatamente alguma outra coisa se
apresenta a ele, etc. Isto não é, de maneira nenhuma, um modo de resolução. É exata-
mente – tomemos Karl Abraham, retomemos Freud – é exatamente a mesma estrutura, a
mesma metapsicologia da melancolia. Então, a passagem de uma à outra – não necessa-
riamente há esta passagem – coloca a questão: o que é feito do objeto reincorporado?
Sim, há acordo entre o Eu e o Ideal do Eu, mas o que acontece com o objeto reincorporado?
Eu me pergunto se não se trataria aí disto que eu chamaria uma passagem ao ato intra-
psíquica, quer dizer, um assassinato perpetrado regularmente, mas intrapsíquico. Não é
uma expulsão, porque esse objeto não é depois retomado. É um verdadeiro assassinato,
no sentido em que Freud diz, em «Luto e melancolia», a respeito de quem está em luto,
que o luto comporta também este fato de ter que «matar o objeto uma segunda vez,
afirmar que ele está realmente morto»; e ter que «matá-lo uma segunda vez com o prêmio
narcísico de se manter vivo». Há algo assim na passagem do estado depressivo ao
estado de triunfo, que é como Freud caracteriza a mania.

APPOA: Alguns autores consideram a anorexia, no quadro dos distúrbios da


oralidade, como o modelo do psicossomático por excelência, ao mesmo tempo que ela
seria exemplar da melancolia. O que a senhora pensa a respeito desta sintomatologia,
comum aos dois fenômenos clínicos?
99
ENTREVISTA

M-C LAMBOTTE: Eu não saberia responder. De um lado, no que concerne à


anorexia, existem também formas bastante diferenciadas. Existem as anoréxicas, as
anoréxicas-bulímicas, as anoréxicas que vomitam; a anorexia pura parece-me bastante
diferente da anorexia-bulimia. Eu não poderia responder porque não trabalho com a
psicossomática. É verdade que, tendo escutado muitas jovens mulheres, anoréxicas e
bulímicas, encontramos esta mesma constelação do Eu e do ideal. Encontramos também
a questão da pureza e, ao contrário, logo que se alimentam de novo, pronto, é a sujeira.
Encontramos verdadeiramente esses dois extremos. Isto me faz pensar no que diz Freud
com respeito às neuroses narcísicas, cujo paradigma é a melancolia, mas que não se
restringem a ela, sem dúvida: o fato de que se trata sempre de questões entre estas duas
instâncias, o Eu e seus ideais. Poderíamos, talvez, classificar melancolia, anorexia, etc.,
se bem que não sejam do mesmo nível (a anorexia é mais um sintoma e a melancolia uma
afecção), sob o título, por exemplo, de as doenças do ideal. Isso me pareceria bastante
possível. Porém, é preciso falar dos mecanismos, e será que a melancolia teria a ver com
os mesmos mecanismos que a psicossomática? Eu não estou certa.

APPOA: Todos nós sabemos quantas dificuldades se apresentam na direção do


tratamento dos sujeitos melancólicos. Haveria uma especificidade do lugar do analista
na transferência na direção desses tratamentos?

M-C LAMBOTTE: Do lado do analista, as dificuldades que se apresentam a ele


são a de ser colocado em situação de impotência – porque o sujeito melancólico não
deixa de fazer isto – e o risco, de certo modo, de confusão, quer dizer, de cair nesta
assimilação pela qual o sujeito melancólico se esforça. Para concluir com o sujeito
melancólico particularmente, o analista passa por duras provas em seu próprio Ideal do
Eu – isso é com todos os pacientes, mas mais ainda com o melancólico, porque, com
este, o analista é colocado nesta situação de impotência aparente. Ele não tem que se
deixar levar por isso, certamente, mas eu retomaria Freud em uma pequena nota de «O
Eu e o isso», de 1923, uma pequena nota extremamente importante: é que, de todo modo,
qualquer que seja o caso, o analista não tem que se colocar em lugar e posição de Ideal
do Eu do paciente. Ele não tem, continua Freud, que se colocar no lugar de messias, de
profeta, etc. E Freud, neste momento, fornece também uma das possíveis resoluções da
cura analítica: que o paciente possa dispor de seu próprio sintoma.
É com esta questão do Ideal do Eu que o analista tem verdadeiramente que
trabalhar, na medida em que, com o sujeito melancólico, ele está muito mais confrontado
a ela, podendo aproximar-se demais desse estado de impotência. Mas, justamente, a
questão é, também, sem dúvida – o que me parece igualmente muito rico e muito sensí-
vel em Lacan– de trabalhar a passagem da impotência à impossibilidade. E é isso, talvez,
o que está em jogo no tratamento do sujeito melancólico. Este se encontra nessa impo-
tência e quer assimilar a ela, de certo modo, o analista. Mas, possivelmente, o que entre
100
A DESERÇÃO DO OUTRO

em jogo antes desta questão do investimento de objeto, etc. seja mesmo este trabalho
da impotência à impossibilidade; a impossibilidade sendo a castração, evidentemente.

APPOA: Quando sairá o seu próximo livro?

M-C LAMBOTTE : Sairá em um ano, mais ou menos, e será sobre a tomada em


tratamento do sujeito melancólico, sob o ângulo da resolução estética. Falarei bastante
da filosofia, porque esta questão da organização, do quadro, da paisagem, isto é muito
trabalhado também na filosofia, na estética, e fornece muitos elementos para minha
reflexão.

101
RECORDAR
REPETIR
ELABORAR CONCEITO DE MELANCOLIA*
Jaime Ginzburg**

“A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a


gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade.”
Guimarães Rosa, A terceira margem do rio

“O que eu sou hoje é terem vendido a casa,


É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...”
Fernando Pessoa, Aniversário

*
Uma versão anterior e mais compacta deste trabalho foi publicada na revista Expressão , do
Centro de Artes e Letras da UFSM. Este texto é uma adaptação atualizada de um capítulo teórico
da tese de doutorado Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo, apresentada em 1997 na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, sob orientação de Maria do Carmo Campos.
**
Professor de Literatura da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisador do CNPq. Coor-
denador do Grupo de Trabalho de Teoria do Texto Poético da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). Autor de artigos publicados em livros
coletivos, entre eles Historicidade da poesia lírica: Drummond e o autoritarismo. In: INDURSKY,
Freda & CAMPOS, Maria do Carmo, orgs. Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra
Luzatto, 2000.
102
CONCEITO DE MELANCOLIA

ORIGENS

A criação do conceito de melancolia é atribuída a Hipócrates, que a define, em um


aforismo, como um estado de tristeza e medo de longa duração (Pigeaud, in Aristote,
1988, p.58, e Cordás, 1997, p.15)1. Ele se refere aos melancólicos afirmando que “seu
estado mental é perturbado” (apud Tellenbach, 1979, p.24). Essas formulações tiveram
um desdobramento importante na obra de Constantinus Africanus, autor árabe medie-
val estudado por Klibansky, Panofsky e Saxl (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989 , p.143-
9) e Walter Benjamin (Benjamin, 198484 , 168-9). No início de seu livro “De melancholia”,
lê-se:
“Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem na alma parecem
ser o medo e a tristeza. Ambos são péssimos porque confundem a alma.
Com efeito, a definição de tristeza é a perda do muito intensamente ama-
do.
O medo é a suspeita de que algo ocasionará dano.”
(Constantino El Africano, 1992, p.15)
A noção de tristeza em Constantinus é desenvolvida como uma teoria da perda.
Melancólicos são, entre outros, os “que perderam seus filhos e amigos mais queridos,
ou algo precioso que não puderam restaurar” (Idem, p.21). Como se observa, o melan-
cólico estaria numa espécie de ponto-chave tenso, a partir do qual vê com sofrimento o
passado, em razão das perdas, e se perturba com o futuro, pelo medo de um possível
dano.
A partir dessa base, Constantinus elabora uma série de reflexões de cunho
médico para estabelecer relações de causa e efeito entre problemas físicos e emocio-
nais. O livro tem como propósito identificar as características essenciais do comporta-
mento melancólico, mas o autor relativiza sua própria argumentação, afirmando que
qualquer melancolia é difícil de curar e que nada é pior do que uma mente perturbada
(Idem, p.45). De acordo com Constantinus, apoiado em Rufus de Éfeso, “os acidentes
melancólicos são incompreensíveis” (Idem, p.25)2.
Tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada como
uma doença (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989, p.123). Para o primeiro, a formação da
melancolia, com a bile negra, decorre de uma degradação do sangue (Tellenbach, 1979,
p.24), de uma putrefação, que desordena o funcionamento do corpo (Azouvi, 1985,
p.105). Em sua segunda parte, o livro de Constantinus, apresenta estratégias para sua
cura, fundamentadas na alimentação, na bebida e na música. Para deter as causas,

1
Trata-se do Aforismo 23 do livro VI de seus Aforismos. “Se o medo e a tristeza duram muito
tempo, tal estado é próprio da melancolia”.
2
A idéia de que o homem melancólico é inacessível e fechado em si mesmo é desenvolvida em
Schaller, 1988, p.32.
103
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

entretanto, é preciso mais do que tudo um senso de medida. A bile negra, substância
considerada responsável pela formação da melancolia (Benjamin, 1984, p.169), emite
vapores que causam delírios (Azouvi, 1985, p.104). Ela seria resultado de excessos ou
faltas. Existe um modelo de equilíbrio humano, que supõe a capacidade de dosar, na
vida, o movimento e a quietude, o sono e a vigília, a comida e a bebida, as paixões da
alma. O excesso de algum desses elementos pode gerar no corpo um efeito nocivo
(Constantino El Africano, 1992 , p.17 e 39). Chama a atenção, na argumentação de
Constantinus, a idéia de que o excesso de meditação e a tentativa de investigar o
“incompreensível” provocam melancolia (Idem, p.21).
Além da determinação de que a melancolia seja uma doença, na Grécia também
se elaborou a idéia de que ela seja um “estado de exceção”, responsável por capacida-
des distintivas; essa proposição é atribuída a Aristóteles (Aristote, 1988, p.83 e 97). Ela
levou à compreensão de que existiria uma ligação entre a postura melancólica e o
pensamento contemplativo necessário para a filosofia (Klibansky, Panofsky e Saxl,
1989, p.87)3.
Na argumentação de Aristóteles, um dos pontos principais consiste na defesa
de que a bile negra tem por propriedade a inconstância. O filósofo explica que ela pode
comportar-se de maneira variável, tornando-se muito quente ou muito fria, podendo
causar efeitos diversos (Aristote, 19 , p.95). A multiplicidade de marcas de comporta-
mento da bile negra faria do melancólico um ser “polimorfo”, apto a agir e sentir de
maneiras diversas e contraditórias (Pigeaud, In Aristote, idem, p.15), oscilando entre a
atimia, o desapego à vida, e as manifestações eufóricas (Primerose, apud Azouvi, 19,
p.106). O “polimorfismo” da melancolia seria uma das razões de não haver uma defini-
ção rigorosa para ela 4. Na parte 955a de sua obra, Aristóteles afirma: “(...) para resumir,
pela razão de que a eficácia da bile negra é inconstante, inconstantes são os
melancólicos.”(Aristote, 1988, p.107)
Klibansky, Panofsky e Saxl situam a bile negra entre quatro “humores”, líquidos
presentes no corpo humano. Os outros três são a fleuma, a bile amarela e o sangue. A
teoria da melancolia surge em meio a uma lógica de pensamento que vincula diretamen-

3
Na condição melancólica, dentro dessa avaliação, haveria um vínculo entre capacidade intelec-
tual e loucura. Conforme Benjamin, Walter. 1984, 170). A meditação melancólica não corresponde
a um raciocínio lógico, ordenado e estritamente racional. A partir da associação entre melancolia,
contemplação e capacidade reflexiva, com base no livro de Klibansky, Panofsky e Saxl, Ítalo
Calvino propõe, de maneira difusa, uma teoria de que a literatura resulte, em sua produção e de
maneira geral, de uma condição melancólica. (Calvino, 1990, ps. 32 e 64-5).
4
Azouvi explica que o polimorfismo da bile negra foi associado, na Renascença, às propriedades
plásticas de mutação do diabo.
104
CONCEITO DE MELANCOLIA

te o microcosmo e o macrocosmo, integrando em um campo de correspondências as


estações do ano, as etapas da vida, os planetas conhecidos e os elementos básicos da
natureza. Considerava-se que a “justa medida” entre as substâncias corporais
corresponderia à expectativa de vigor humano (Pot, 1994, p.122-9 e Klibansky, Panofsky
& Saxl, 1989, p.31-2 e 201)5.
Para esse modo de pensar, existiria uma associação entre o planeta Saturno, o
deus Cronos e a condição melancólica. O conhecimento mitológico e astrofísico da
época foi empregado para formular a noção de uma “psicologia saturnal” (Klibansky,
Panofsky & Saxl, 1989 , 206-9 e 219). Para os gregos, Cronos é marcado por uma dualidade.
Por um lado, ele é o deus benéfico da agricultura, que realiza festas das colheitas; por
outro, é um deus sombrio, solitário, vivendo “na extremidade mais recolhida da terra”,
deus da morte e dos mortos. Pai dos deuses e dos homens, ele é capaz de devorar seus
próprios filhos (Benjamin, 1984, 172-3).
O planeta Saturno, considerado entre os antigos o mais elevado no firmamento,
e por isso superior, extremo, foi associado à bile negra, tomada por capaz de desenvol-
ver capacidades incomuns, e à figura poderosa de Cronos, responsável pela constru-
ção e destruição, pelo nascimento e pela morte (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989, p.227
e 234, e Guimarães, s.d., p.116).
Para o pensamento clássico antigo, a condição melancólica se caracterizaria por
uma alteração comportamental, marcada pelo medo, pela misantropia e pelo abatimento
profundo. Entre suas repercussões, estaria uma desordem da inteligência (Klibansky,
Panofsky & Saxl, 1989, p.44). O desenvolvimento de idéias de linhagem hipocrática, que
tomam a melancolia como doença, levou em conta a idéia de desequilíbrio “humoral”;
os problemas estariam ligados a desmedidas de ordem fisiológica (Idem, p.36-7). A bile
negra, associada à melancolia, quando encontrada em excesso, poderia provocar rea-
ções mentais muito variadas, desde a indolência e a apatia, quando mais fria, até esta-
dos agitados e eróticos, quando mais quente. Sua ação está ligada a um desvio da
norma regular, rumo a extremos (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989, p.77-80 e Tellenbach,
1979, p.30-8).

5
Podendo ser encontradas variações de simbologia (como está explicado em POT, 1994, p.122-
9) , de modo geral, as associações cósmicas seriam delimitadas do seguinte modo:

Substância Elemento Estação do ano Período da vida Planetas


sangue ar Primavera infância Júpiter
bile amarela fogo Verão adolescência Marte
bile negra terra Outono maturidade Saturno
fleuma água Inverno velhice Lua

Esse modo de pensamento teve seu cume na elaboração da doutrina dos quatro temperamentos,
atribuída a Galien (Idem, p.123). Conforme também Tellenbach, Hubertus, 1979 , p. 27-9.
105
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Nesse sentido, a posição do planeta Saturno, as atitudes de Cronos – criar e


matar, propiciar a colheita e a morte – e as suscetibilidades da bile negra – oscilando
entre graus intensos de calor e frio – fazem parte, por se caracterizarem como extremos,
de uma articulação que resulta em uma espécie de vocação do melancólico para senti-
mentos extremos. Os desequilíbrios de humores levam-no a afastar-se da “média” equi-
librada. Oscilando entre a ansiedade e o abatimento (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989,
p.45), o melancólico tende constantemente para o excesso (Pigeaud, in Aristote, 1988,
p.20).
O pensamento de Aristóteles levou a condição melancólica a uma certa consa-
gração, pois a melancolia passou a ser considerada um “instrumento de precisão extre-
ma da sensibilidade” (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989, p.92), como se, apesar dos
elementos perturbadores, ela consistisse em um reforço de percepção. Paradoxalmente,
embora provoque desordem no pensamento, ela permite sentir, pensar e contemplar de
modos que, em condições equilibradas, não seriam possíveis.
Hubertus Tellenbach explica que, de acordo com o pensamento grego, a atitude
melancólica está associada à ametria, isto é, a uma desproporção das medidas huma-
nas, uma defasagem (Tellenbach, 1979, p.28-9). Sem conseguir a simetria (suficiência), o
melancólico é jogado na ametria (insuficiência). A ação da bile negra acentua a fragilida-
de do sujeito melancólico, mas, por outro lado, constitui capacidades perceptivas
incomuns. Estas estimulam o sujeito a transcender às limitações da normalidade. Dota-
do de dons que o levariam a se elevar, o sujeito é impedido por suas limitações, motivan-
do-o à resignação e à impotência.
Essa frustração é agravada pelo fato de o melancólico acreditar que “o pensa-
mento ordenado (...) não o permite avançar até o absoluto”. Num mundo em que a
matemática é um saber importante, essa posição é paralisante (Idem, p.34). O melancó-
lico vê o conhecimento inteiramente ordenado como ineficiente para seus propósitos.

CONCEPÇÃO ROMÂNTICA
A presença da melancolia na poesia romântica é constante (Nunes, 19 , p.28/9).
Erich Auerbach, numa definição exemplar, afirmou que “o poeta romântico é um estra-
nho entre os homens; é melancólico, extremamente sensível, ama a solidão e as efusões
do sentimento” (Auerbach, s.d., p.228).
A disseminação da melancolia no romantismo europeu pode ser verificada atra-
vés das reflexões de Mário Praz, que explica que o próprio termo “romântico” designa,
a partir do século XVIII, o “amor pelos aspectos selvagens e melancólicos da natureza”
(Praz, 1996, p.33). Ao caracterizar a produção romântica, Praz aponta constantemente a
presença da melancolia em autores, como Keats, Chateubriand e Byron (Praz, 1996,
p.33), citando passagens exemplares de suas obras.
O fragmento seguinte de Leopardi expressa bem a importância que a melancolia
assumiu no período.
106
CONCEITO DE MELANCOLIA

“A melancolia é, de qualquer maneira, o mais sublime dos sentimentos


humanos. (...) Considerar a imensidão incomensurável do espaço, o nú-
mero e a grandeza maravilhosa dos mundos, e perceber que tudo isso é
pequeno, até minúsculo em comparação com a capacidade de nossa
alma; imaginar o número infinito de mundos e o universo sem fim e sentir
que nosso espírito e nosso desejo é ainda mais vasto que o universo;
proclamar sem cessar a insuficiência e o nada de todas as coisas, sofrer
privações e desejos, e em conseqüência a melancolia, isso é o que me
parece ser a marca mais evidente da grandeza e da nobreza da natureza
humana.”(Leopardi, apud Biedermann, 1972, p.118-120)
O emprego de “sublime” por Leopardi pode ser compreendido à luz do texto
Acerca do sublime, de Schiller. Em sua reflexão, o escritor alemão define o sublime como
“um sentimento misto. Compõe-se do estar-dorido, que, no seu máximo grau, se
exterioriza como um estremecimento, e do estar-alegre, que pode elevar-se até o encan-
to”. O autor entende que, para que possamos vivenciar simultaneamente o estar-dorido
e o estar-alegre, temos de ter em nós mesmos um dualismo: “devem existir duas nature-
zas opostas unidas em nós, as quais, quando da representação do objeto, nele estão
interessadas de maneiras diametralmente antagônicas”(Schiller, 1991, p.118-20).
Para Schiller, a relação do ser humano com o universo envolve uma problemáti-
ca, referente aos limites humanos, pois, “apesar de toda a sua ilimitação, a natureza não
consegue chegar ao grandioso absoluto em nós mesmos” (Idem, p.55). A imensidão do
universo contrasta com a finitude do ser humano. Disso resulta que nossa sensibilida-
de estaria atenta à grandiosidade, por sua demanda de superar suas limitações inevitá-
veis. “A visão de distâncias ilimitadas e de alturas intermináveis, o extenso oceano a
seus pés e o maior oceano acima dele, arrancam o seu espírito à estreita esfera da
realidade e ao opressivo cativeiro da vida física”. A contemplação do grandioso
corresponde a uma recusa da impotente condição em que vive (Idem, 61)6.
No texto de Leopardi, encontramos marcas do “estar-dorido”, pela manifestação
de sofrimento, e também um contentamento com relação à natureza humana. Observa-
mos uma “visão de distâncias ilimitadas e de alturas intermináveis”, que é apresentada
não com um fim em si mesma, mas com o propósito de expor as infinitas possibilidades
humanas - “nosso espírito e nosso desejo é ainda mais vasto que o universo”. Por fim,
reconhecemos um caminho para arrancar o espírito da “estreita” realidade, através da
“grandeza” da natureza humana.

6
Para Schiller, a realidade à nossa volta é essencialmente caótica, e os homens tentam, através do
entendimento, dar conta dela, mas o “turbilhão de fenômenos” que nos cerca carece de “nexo útil”.
Por essa razão, ele acredita que não devamos optar por uma ordenação da realidade que nos traga
bem-estar, mas por uma liberdade dentro do caos (p.63-4). Só essa postura, sem amarras, faz o
homem superar sua precariedade habitual e ter acesso ao sublime. Tal postura, para Schiller,
corresponde ao “demônio puro” que reside no homem (p.68).
107
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Em sua ambigüidade essencial – negativa, envolvendo sofrimento, e positiva,


envolvendo enfrentamento de limites – a melancolia tem no romantismo uma dimensão
sublime, responsável por sua difusão. Em Keats, é feita uma afirmação positiva da
melancolia. Considere-se o seguinte trecho da Ode à melancolia:
“Mas se, inesperado, o acesso da melancolia descer
do céu, como se fosse as lágrimas duma nuvem
que reanima as flores, (...)
Com ela vive a beleza – a beleza que deve morrer,
e a alegria cuja mão se leva aos lábios
para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer
que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o aspiram.
Sim, no interior do próprio templo da alegria
está o altar soberano da melancolia, coberta de véus,
apenas visível para aquele que consegue provar
as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo;
mas o seu espírito depois há-de sentir amargamente o poder que ela tem
ao ficar entre os seus troféus nebulosos...”(Keats, In Guimarães, 1992,
p.69-70)
As expressões de Keats retomam elementos da tradição: o dualismo, em “dolo-
roso prazer” (v.6); o reconhecimento da finitude, em “a beleza que deve morrer” (v.4); a
idéia de intoxicação, ligada ao efeito da bile negra, indicada pelo “veneno” no verso 7;
a imagem de uma percepção que não vê a realidade de maneira normal, sugerida por
“coberta de véus” (v.9) e “nebulosos” (v.13); a presença das uvas (v.11), que remontam
ao vinho, cuja ação fisiológica é associada à melancolia por Aristóteles e Constantinus
(Aristote, 1988, p.91; Constantino El Africano, p.19-21 e 41)7.
No entanto, em Keats, esses elementos não estão servindo ao alerta contra uma
doença ou à descrição de um estado de exceção, mas à valorização de um modelo. A
sacralização da melancolia, colocada em um “altar” (v.9), bem como a abordagem de
Leopardi, que a caracteriza como sublime, indicam a importância que ela assume no
período.
Madame de Stael defendeu que “a poesia melancólica é a que está mais em
consonância com a filosofia” (Stael, 1992: p.58). A idéia de que a melancolia se associa
à disposição para a atividade filosófica (Constantino El Africano, 19, p.58)8 aqui cons-
titui base para uma poética. A lírica melancólica teria em comum com a filosofia propri-
edades meditativas.

7
Aristóteles acredita que o vinho e a bile negra são de natureza semelhante. Aristote (19, 91).
Constantino el Africano.(1988, p.19-21 e 41.)
8
O desdobramento da idéia em outros autores está em Cordás, Táki Athanássios. 1992, p.16.
108
CONCEITO DE MELANCOLIA

A proposta estética de Stael está em afinidade com a de Schlegel, exposta nos


“Fragmentos do Atheneaum”. Em seu fragmento 116, o autor defende que a poesia
romântica deveria reunir poesia, filosofia e retórica, “misturar e fundir poesia e prosa,
inspiração e crítica”. No fragmento 252, defende que uma filosofia da poesia deveria
chegar à união total entre poesia e filosofia, e entre poesia e práxis (Schlegel, In Lobo,
1988 p. 55-6 e 63). Tanto em Stael como em Schlegel, encontramos a compreensão de
uma afinidade e uma possibilidade de interpenetração entre as duas formas de pensa-
mento.
Além do contato com Schlegel, o pensamento de Stael tem afinidade com a
teoria do sublime de Schiller. Em linha de raciocínio semelhante à deste último, Stael
afirma que “tudo o que o homem fez de grande deve-o ao sentimento doloroso de que
o seu destino é incompleto (...) o que existe de sublime no espírito, nos sentimentos e
nas ações nasceu da necessidade de escapar aos limites que cerceiam a imaginação”. A
autora define “almas melancólicas” como “fatigadas (...) de tudo o que significa um
limite” (Stael, 19, p.60). A grandeza surge com a consciência da finitude, e a melancolia
está associada a um interesse em superar limites.
A vocação meditativa da poesia serve como fundamento para a busca de
transcendência de limites. O poeta brasileiro Dutra e Melo, relativamente contemporâ-
neo de Álvares de Azevedo, escreveu um longo texto, intitulado “A melancolia” (Dutra
e Melo, In Bandeira, 1996, p.37-41). Ele consiste em uma obra meditativa, cujo título
sugere que pretende definir um conceito. Os primeiros versos situam a enunciação no
momento do anoitecer. O sujeito lírico está rodeado pelo silêncio, e sua “alma se entris-
tece” (v.24). Ele afirma estar sofrendo “sucessivas mudanças” (v.32) e tendo “fúnebres
idéias” (v.42). E pergunta:
“Que vês tu no passado ou no futuro?
No passado talvez muitos pesares;
No futuro, quem sabe? - infindas mágoas.”
O melancólico não tem tranqüilidade com relação ao passado, nem quanto ao
futuro. Seu presente está marcado pela tristeza. A melancolia “tinge de pena / inda
mesmo o prazer” (v.49/50). Lembrando o “doloroso prazer” em Keats, também aqui
ocorre aquilo que Wordsworth descreve como “sutis combinações” da dor com o
prazer (Wordsworth, in Lobo, 1987, p.178). O sujeito lírico se entrega “à reflexão” (v.63),
imagem exemplar da vocação meditativa do melancólico. Depois, dirigindo-se à própria
alma, diz:
“Tu choras de saudade; ou pressentindo
Um mal com que te acena atro futuro,
Tu te lanças num mar de mil angústias.”
A situação descrita corresponde esquematicamente à proposição de Cons-
tantinus: o melancólico sente tristeza, por causa de uma perda, e medo de algum dano
no futuro (Constantino El Africano, 1992, 15). O encaminhamento que o sujeito lírico
propõe para seu impasse é a autodestruição. Como descreve Guardini, a ausência de 109
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

referenciais de orientação para o sujeito lírico o leva ao desejo de deixar de existir (v.111)
(Guardini, 1953 , p. 15).
O estado descrito por Dutra e Melo, embora caro aos poetas românticos, não era
considerado positivamente pela moralidade burguesa oitocentista. O valor estético da
melancolia não correspondia a uma aceitação social do comportamento melancólico.
Peter Gay, em um livro sobre o ódio e a agressividade no século XIX, explica que a
liberação de impulsos agressivos era considerada, na moral burguesa, sinal de uma
virilidade vigorosa. Lideranças políticas e sociais manifestaram preocupação com rela-
ção ao “declínio da masculinidade” causado pela imposição de regras de comportamen-
to social voltadas para a contenção, e também por ideários pessimistas e niilistas.
Nesse contexto, em uma síntese de Paul Bourget, a melancolia é considerada “a menos
masculina das doenças” (Gay, 1995, p.104). O estudo de Gay é importante por situar a
percepção que a melancolia romântica recebia por parte da moralidade burguesa, que a
considerava algo perturbador para o padrão dominante de organização dos papéis
sexuais na sociedade.
No período romântico, a reflexão sobre religiosidade se associou à tentativa de
explicar a melancolia. Dois escritores franceses, Vitor Hugo e Chateubriand, elaboraram
reflexões dedicadas a compreender o conceito de melancolia à luz de princípios religio-
sos. Ambos acreditam que existe uma associação entre o cristianismo e a condição
melancólica.
Para o primeiro, o surgimento da religião cristã correspondeu a um amadureci-
mento da humanidade. Tendo superado as limitações das sociedades primitivas e da
Antigüidade Clássica, ela passa por grandes transformações, cujo impacto resulta em
descobertas fundamentais, como a da constituição dupla do homem, matéria e espírito,
e de sua distância de Deus. Essas descobertas causam sofrimento, motivando a melan-
colia. No seu prefácio de Cromwell, Hugo afirma:
“(...) o cristianismo separa profundamente o espírito da matéria. Põe um
abismo entre a alma e o corpo, um abismo entre o homem e Deus. (...)
faremos notar que, com o cristianismo e por ele se introduzia no espírito
dos povos um sentimento novo, desconhecido dos Antigos e singular-
mente desenvolvido entre os Modernos, um sentimento que é mais que
a gravidade e menos que a tristeza: a melancolia. (...) no instante em que
veio estabelecer-se a sociedade cristã, o antigo continente estava agita-
do. Tudo estava abalado até a raiz. (...) Fazia-se tanto ruído na terra, que
era impossível que alguma coisa deste tumulto não chegasse até o cora-
ção dos povos. Foi mais que um eco, foi um contragolpe. O homem,
concentrando-se em si mesmo em presença destas profundas vicissitu-
des, começou a sentir dó da humanidade, a meditar sobre as amargas
irrisões da vida. Deste sentimento, que tinha sido para Catão pagão o
desespero, o cristianismo fez a melancolia.” (Hugo, 1988, p.22-5).
110
CONCEITO DE MELANCOLIA

A argumentação carece de referenciais concretos, tendo passagens vagas, mas


é possível caracterizar seu propósito conceitual. Hugo procura definir uma relação de
causa e efeito entre o aparecimento do cristianismo e a motivação para a melancolia. A
duplicidade proposta pelo primeiro para a condição humana – com as oposições entre
alma e corpo, e humanidade e divindade – resultará, através da atitude melancólica, em
um pensamento marcado pela “controvérsia” e em uma estética dedicada à mistura de
opostos – grotesco e sublime, corpo e alma, animal e espírito.
Hugo se afasta deliberadamente da tradição de reflexão teórica sobre melanco-
lia, ao distingui-la da gravidade e da tristeza, e ao afirmar que se trata de fenômeno
moderno, desprezando a contribuição antiga e medieval. Sua argumentação não segue
uma lógica dedutiva rigorosa, e seu conceito de melancolia não está definido de manei-
ra precisa. No entanto, esse texto é muito relevante, e sua proposta fica mais clara à luz
de uma outra obra francesa sobre o mesmo assunto.
No início do século XIX, Chateubriand escreveu um livro intitulado O gênio do
cristianismo. Nele, elabora uma teoria da melancolia. Diz o escritor que “o cristão con-
sidera-se sempre um viajeiro que vai aqui passando por vales de lágrimas, sem outro
repousar que o da sepultura. O mundo não é objeto de seus votos (...)”. Para ele, o
coração do homem cristão sofre, porque a religião oferece um “quadro das tristezas da
terra e das alegrias do céu”; com base nisso “aí se viu nascer essa delinqüente melan-
colia, que se gera no grêmio das paixões (...)” (Chateubriand: s.d., p.275).
Por um lado, Hugo estabelece que o surgimento da sociedade cristã trouxe a
divisão do ser humano em duas partes, e com ela o sofrimento, e este desperta a
melancolia. Por outro, complementarmente, Chateubriand defende que o homem cristão
está dividido entre uma experiência negativa da terra, e uma expectativa positiva do céu.
Sua vida está marcada pela errância e pela infelicidade, e a morte se tornaria por isso um
alívio. Essa condição problemática motiva a melancolia. Os dois autores têm idéias
convergentes a respeito da conexão entre a condição melancólica e o cristianismo. Suas
posições antecipam as reflexões de Guardini, Schaller e Pot, ao associarem a condição
melancólica a uma caracterização do ser humano como duplo.

CAMINHOS
A reflexão moderna sobre a melancolia está profundamente ligada às suas bases
antigas. A conexão entre a experiência da perda e a condição melancólica, explicada em
Constantinus, é fundamental na abordagem do tema desenvolvida pela psicanálise. A
idéia de que o estado melancólico está ligado à vivência de uma perda é apresentada na
correspondência entre Freud e Wilhelm Fliess. Em um texto chamado ‘Rascunho G’,
vinculado a essa documentação, Freud defende que a melancolia corresponde,
afetivamente, ao “anseio por alguma coisa perdida” (Peres, 1992, p.33). O desenvolvi-
mento da reflexão de Freud sobre o assunto se encontra em seu estudo Luto e melan-
colia (Freud, 1992).
111
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Nesse artigo, Freud faz uma distinção entre duas atitudes possíveis diante da
experiência da perda. A primeira consistiria no sentimento de luto. Este supõe a aceita-
ção de que a perda é irreversível; o sofrimento vivido pelo sujeito duraria algum tempo,
e, após esse período, ele procuraria o reequilíbrio afetivo, substituindo o objeto perdido
por outro 9. Contrariamente, no caso da atitude melancólica, o sujeito não aceita a sua
perda. Passa a viver com desânimo, perde o interesse pelo mundo externo, inibe suas
atividades e diminui os sentimentos de auto-estima (Idem, p. 131). O melancólico agride
o próprio ego e encontra satisfação em expor sua própria precariedade (Idem, p. 133). A
mesma linha de reflexão é apresentada por Julia Kristeva, segundo a qual, para o melan-
cólico, a perda do objeto é intolerável e leva a um “estado-limite” (Kristeva, 1989, p.14-
7).
Na filosofia, encontramos também reflexões sobre o tema que apontam para uma
associação direta entre a experiência da perda e a condição melancólica. O trabalho de
Jean-Pierre Schaller tem como ponto de partida a consideração de que o desejo de
recuperar um passado perdido seja a motivação básica para essa condição (Schaller, 19,
p.18). O estudo de Sarah Kofman desenvolve argumento similar (Kofman, 1985, p.20-1).
Uma contribuição importante à teoria da melancolia foi desenvolvida por Walter
Benjamin, em seu estudo sobre o drama barroco alemão. O filósofo fundamenta sua
exposição em elementos referentes a compreensões antigas e medievais da melancolia,
citando Aristóteles e Constantinus Africanus, e discutindo tópicos como o deus Cronos,
o planeta Saturno e a bile negra.
Entre os pontos que interessam a Benjamin, está a disposição do melancólico
para a contemplação. Ele encontra em um pensador do século XV, Marsilius Ficinus, a
idéia de que a bile negra motiva o espírito para a contemplação; encontra na gravura
“Melancolia”, de Dürer, um “símbolo do homem contemplativo” e conduz o raciocínio
à generalização, indicando que a atitude contemplativa é fundamental na condição
melancólica (Benjamin, 1984, 176-8).
A leitura dessa gravura, proposta por Benjamin, apoiada nos estudos de Panofsky
e Saxl, eleva-a a imagem exemplar do melancólico (Lagarde & Michard, 1963, p.161) 10. A
obra de Dürer apresenta uma representação deste estado em que se fundem duas
maneiras de pensar e sentir: o saber técnico e racional, vinculado à geometria e aos
instrumentos de trabalho, é colocado no mundo “do luto e do fracasso humanos”

9
“(...) a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda
a libido seja retirada de suas ligações com este objeto.”(p.132).
10
A esse respeito, cabe registrar a admiração que Dürer despertou entre os românticos europeus,
comentada por André Lagarde e Laurent Michard. Vitor Hugo redigiu um poema em sua homena-
gem, com o título A Albert Dürer, em que se refere ao pintor como “ mon maître”. Conforme
Lagarde, André & Michard, Laurent. XIXe. Siècle, 1963. p. 161.
112
CONCEITO DE MELANCOLIA

(Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989, p.494). Dentro desse plano, ele se torna inútil, alvo
de indiferença. Entre a teoria de Freud e essa reflexão estética, há um ponto comum, a
idéia de perda de interesse pela realidade externa, por parte do melancólico.
Chama a atenção ainda, no estudo de Benjamin, a citação de longos trechos de
Panofsky e Saxl citados a respeito de Cronos. O filósofo alemão se interessa pelo fato
de esse deus ser considerado um “demônio das antíteses”, um “deus dos extremos”.
As citações explicam as ambigüidades fundamentais do deus e levam à idéia de que seu
caráter é “em última análise determinado por um dualismo intenso e fundamental” (Benja-
min, 1984, p.172-3). Tomada como figura matriz do conceito de melancolia, a divindade,
dominando o nascimento e a morte, sendo frágil e poderosa, representa uma espécie de
síntese da condição saturnina.
A idéia de que existe um vínculo direto entre melancolia e dualismo 11 foi elabo-
rada por Romano Guardini, Jean-Pierre Schaller e Olivier Pot. O primeiro caracteriza o
comportamento melancólico do seguinte modo.

“Pour le mélancolique, le monde intérieur et les moyens d`expression


n`ont pas de commune mesure: l’esprit et le corps, l’intention et l’action,
la disposition d’esprit et les résultats, le commencement d`une evolution
et son accomplissement... d`une façon générale ce qui est noble ou bas,
essentiel ou accessoire, capital ou contigent – ce sont là des dualités
entre lesquelles le mélancolique voit se dresser un mur.”(Guardini, 1953,
p.48)

O comportamento dual do melancólico se deve, para Guardini, à coexistência


paradoxal de dois instintos do sujeito - a afirmação de si, em busca de uma ascensão, e
a renúncia à existência (Idem, p.37). Sua argumentação lembra muito o problema da
ametria, explicado por Tellenbach: o melancólico, por viver em uma desmedida, procura
transcender seus próprios limites, mas se frustra, pois é impedido por sua precariedade
(Tellenbach, 1979, p.40). Guardini vai mais longe, no entanto, na reflexão sobre o grau de
frustração, investindo na idéia de que haja um aspecto autodestrutivo na melancolia.
Como o melancólico se vê jogado em um campo de dualismos, ele relativiza seus
valores, de tal modo que suas referências ficam duvidosas e incertas (Guardini, 1953,
p.40). Para Guardini, isso reverte contra ele mesmo, pois “un tel être n’a aucune
confiance en lui-même.” (Idem, p.36). Sem valores seguros em que possa confiar, o

11
A compreensão da melancolia como algo dual remonta a autores como Marsilius Ficinus e
Richard Burton, que descreveram a condição melancólica ponderando que, mesmo marcado pela
fragilidade física que o expõe a doenças, o homem melancólico é dotado de capacidades como
sensibilidade poética e inclinação filosófica. Conforme Cordás, 1997, p.16.
113
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

sujeito se vê desorientado consigo mesmo, perde seus referenciais, e prefere a solidão


e o silêncio ao cotidiano (Idem, p.34-4), “comme si le monde était mort” (Kierkegaard,
apud Guardini, 1953, p.45).
Jean-Pierre Schaller vincula melancolia e dualismo propondo que, entre as ex-
pectativas do melancólico e sua realidade frágil, existe uma oposição que o frustra - “il
fait l’expérience de ses multiples limites; d’autre part, il se sent illimité dans ses désirs
et appelé à une vie supérieure.” (Schaller: 1988, p.44). O melancólico se inquieta com
a finitude (Stein, 1976, p.13-4); sua consciência aspira ao Absoluto, mas se decepciona
com a inevitabilidade dos limites (Guardini, 1953, p.34).
Com relação a esse aspecto, entende-se, de acordo com W. Szilasi, que o melan-
cólico teria como meta enfrentar sua própria ignorância e inércia, e cada etapa desse
percurso o conduz à consciência do que ele não pôde alcançar. Este propósito é, por
natureza, impossível, não tendo fim. A busca de consciência, ao avançar, constitui-se
como reconhecimento dos próprios limites (Szilasi, apud Tellenbach, 19, p.33).
O estudo de Olivier Pot caracteriza a melancolia como um estado “de passa-
gem”. Para o autor, é como se não fosse possível definir de maneira unívoca e bem
contornada uma condição melancólica. Ela se constituiria em uma “passagem” de um
estado a outro. Analogamente ao que os antigos atribuíam a Cronos e à bile negra, Pot
atribui à condição melancólica a instabilidade e flexibilidade de uma transição. O reco-
nhecimento por parte da consciência, por exemplo, do mover-se de uma faixa etária à
outra, da maturidade à velhice, é melancólico. Nesse sentido, a melancolia é dual por se
manifestar em um processo de passagem entre dois estados (Pot, 1994, p.123). A teoria
de Pot se sustenta na idéia, trabalhada por Freud e Schaller, de que a irrecuperabilidade
do passado consiste em motivação para constituição da melancolia.
Há em comum entre as idéias de Guardini, Schaller e Pot a idéia de que o dualismo
do melancólico se deve à impossibilidade de uma experiência do Absoluto. Pela
relativização dos valores, pela frustração de expectativas de superação de limites, pelo
reconhecimento da transitoriedade e da finitude, o sujeito se entrega à melancolia.

PERSPECTIVAS DE TRABALHO
Embora a melancolia seja encontrada em diferentes culturas, nosso estudo tem
por horizonte a especificidade de sua presença na cultura brasileira. Essa presença se
dá em formas e intensidades particulares, distintas de fontes, influências ou referênci-
as, e constitui um sistema ainda não mapeado de relações, passíveis de interpretação,
entre produção cultural e contexto histórico.
Entre outros autores, o poeta romântico Álvares de Azevedo foi um dos respon-
sáveis pelo estabelecimento de fortes conexões entre a melancolia e a reflexão sobre o
Brasil (Azevedo, 1942). Em sua perspectiva de continuidade, este estudo deve procurar
conexões entre traumas históricos coletivos, associados à exploração colonial, ao
escravismo, à violência sistemática no processo de formação social, à opressão de
114
CONCEITO DE MELANCOLIA

regimes autoritários e à insegurança historicamente consolidada, e uma constante


recorrência da presença da melancolia em expressões artísticas e culturais, incluindo
obras de escritores, pintores, músicos e intelectuais, que elaboram representações me-
lancólicas do Brasil. Várias de nossas figuras literárias mais importantes estão forte-
mente caracterizadas pela melancolia, como alguns dos principais narradores de Ma-
chado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Guimarães Rosa e sujeitos líricos
encontrados ao longo da produção de Drummond e Bandeira. Obras de Iberê Camargo,
canções de Chico Buarque, ensaios de Paulo Prado e Mario de Andrade fazem parte
desse campo difuso de representações, em que cada obra deve ser considerada na sua
especificidade histórica. Ao mesmo tempo, as conexões delicadas merecem ser obser-
vadas.
Com base em conceitos como o de traumas constitutivos da sociedade brasilei-
ra, de Renato Janine Ribeiro (Ribeiro, In Costa, 1999), da violência responsável pela
formação da sociedade brasileira (Schwartzman, 1988, Schollhammer, 2000 e Pinheiro,
1991, entre outros) e das repercussões de um processo histórico traumático coletivo
(Seligmann-Silva, 2000), é possível elaborar uma reflexão sobre essa presença e as
condições para a interpretação de sua relevância histórica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 ARISTOTE. L‘homme de génie et la mélancolie. Problème XXX, 1. Paris: Rivages, 1988.
Presentation – PIGEAUD, Jacques.
2 AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. São Paulo: Cultrix, s.d. .
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7 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio . São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
8 CHATEAUBRIAND. O gênio do cristianismo . Rio de Janeiro: Jackson, s.d.. v. 1.
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10 CORDÁS, Táki Athanássios. Do mal-humorado ao mau humor. In: ____ et alii. Distimia.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
11 DUTRA E MELO, Antônio F. A melancolia. In: BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia dos
poetas brasileiros: fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
12 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Novos estudos Cebrap, São Paulo , n. 32, mar. 1992.
13 GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995.
14 GUARDINI, Romano. De la mélancolie. Paris: Seuil, 1953.
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16 GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega . São Paulo: Cultrix, s.d.
17 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime . São Paulo: Perspectiva, 1988.
18 KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturne et la mélancolie . Paris: Gallimard, 1989.
115
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

19 KOFMAN, Sarah. Mélancolie de l‘art . Paris: Galilée, 1985.


20 KRISTEVA, Julia. Sol negro . Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
21 LAGARDE, André; MICHARD, Laurent. XIXe. siècle. Paris: Bordas, 1963.
22 LOBO, Luiza (org.). Teorias poéticas do romantismo . Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
23 NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, Jacó (org).. O romantismo . São
Paulo: Perspectiva, 1978.
24 PERES, Urania Tourinho. Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica. In:
Melancolia . São Paulo: Escuta, 1996.
25 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP, São Paulo, n. 9, 1991.
26 POT, Olivier. Le milieu de la vie ou la mélancolie du passage. Versants, Boudry, Baconnière,
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27 PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas: Unicamp,
1996.
28 RIBEIRO, Renato Janine. A dor e a injustiça. In: COSTA, Jurandir Freire. Razões públicas,
emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
29 SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie: Du bon usage et du mauvais usage de la dépression
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30 SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. In: ____. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU,
1991.
31 SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:
PEREIRA, Carlos Alberto et alii. Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
32 SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus,
1988.
33 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur;
SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação . São Paulo: Escuta, 2000.
34 STAEL, Madame de. A poesia do norte e a poesia do sul. In: GOMES, Álvaro Cardoso;VECHI,
Carlos Alberto. A estética romântica: textos doutrinários. São Paulo: Atlas, 1992.
35 STEIN, Ernildo. Melancolia . Porto Alegre: Movimento, 1976.
36 TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. Paris: PUF, 1979.

116
VARIAÇÕES
O PROVISÓRIO COMO
MODO DE EXISTÊNCIA
Luis Roberto Benia*

N as três décadas que sucederam a 2ª Grande Guerra, o mundo experimentou o que


poderíamos chamar o período da expansão e do esplendor do emprego. Era natural
que uma pessoa nascesse e se educasse, procurasse e achasse um emprego que seria
seu até a aposentadoria. Quando ocorria um acidente de percurso que implicasse na
perda do emprego, o trabalhador certamente o trocaria por outro de igual qualidade e
valor.
A década final do século XX começou com um quadro drasticamente alterado. O
problema do desemprego não somente se tornou mais grave, como também assumiu um
caráter muito mais complexo. Se, em um primeiro momento, era o desemprego aberto o
que aparecia como indicador de fragilidade dos mercados de trabalho nacionais, verifi-
ca-se que, na atualidade, o desemprego se expressa através de situações bastante
distintas. Esta heterogeneidade de situações de desemprego alcança também aqueles
que se mantêm, precariamente ou não, ocupados. Desse modo, a dicotomia entre em-
prego e desemprego foi dando lugar a um caleidoscópio de situações ocupacionais.
Sabemos que hoje em dia há diferentes modos de inserção no mundo do traba-
lho. A relação contratual que costumamos chamar de emprego e que implica
assalariamento está paulatinamente desaparecendo, por diferentes razões. Tendo isso
em mente, podemos dizer que “na realidade, o que necessitamos é de ocupação e não de
emprego. Ocupação compreende toda atividade que proporciona sustento a quem a
exerce” (Singer, 1996). Todavia não se trata unicamente de proporcionar sustento, no

*
Psiquiatra, Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS.
117
VARIAÇÕES

sentido material do termo. Trata-se também de conferir um lugar ao qual está atribuído
um determinado valor subjetivo e social. A precarização do emprego e o aumento do
desemprego são a manifestação de um“déficit de lugares” (Castel, 1998) ocupáveis na
estrutura social, entendendo-se por lugares posições às quais estão associados uma
utilidade social e um reconhecimento público. É comum encontrarmos sujeitos que se
dizem “sem um lugar”, que se sentem à deriva, com relação ao trabalho. Sucumbem,
então, num certo tipo de melancolia, pois o colapso narcísico que enfrentam é muito
grande.1
As mudanças no panorama econômico mundial resultaram em transformações
radicais no processo produtivo. As novas tecnologias ou as novas formas de trabalhar
determinaram um corte sem precedentes no número de postos de trabalho. Com a
automatização das tarefas manuais na indústria, a mão-de-obra humana torna-se cada
vez menos necessária. No setor de serviços, há a substituição do trabalho humano pelo
computador. Assistimos, além da escassez progressiva de empregos, à mudança radical
da sua natureza e das suas fontes e também mudanças culturais que ocorrem numa
velocidade incrível, características da temporalidade contemporânea. Na medida em
que o capitalismo se globaliza, não só pelos desenvolvimentos da nova divisão interna-
cional do trabalho, mas também por sua penetração nas economias dos países que
compreendiam o mundo socialista, podemos dizer que o mundo do trabalho também se
tornou global. Sob as mais diversas formas sociais e técnicas de organização, o proces-
so de trabalho passa a estar submetido aos movimentos do capital em todo o mundo
(Ianni, 1994).
O desemprego estrutural, causado tanto pela globalização quanto pela
tecnologia, se não aumenta necessariamente o número total de pessoas sem trabalho,
contribui para deteriorar o mercado de trabalho para quem precisa vender sua capacida-
de de produzir. Os novos postos de trabalho, em sua maioria não oferecem ao seu
ocupante as compensações usuais que as leis e os contratos coletivos antes garantiam.
Muitos desses postos são ocupações por conta própria. Uma empresa que antes con-
tava em seus quadros funcionais com uma equipe profissional completa (ex.: contabili-
dade, vigilância, alimentação, pesquisa de mercado, etc.), hoje prefere que estes profis-
sionais lhe prestem os seus serviços através de pequenas empresas independentes ou
de maneira autônoma. Para a empresa-cliente a vantagem está na flexibilidade do novo

1
Se pensarmos em todos o desígnios, desejos, investimentos, expectativas, significações de que
o sujeito foi objeto, desde sua concepção e mesmo antes, nesta articulação com o campo do
Outro, campo simbólico que constitui, por introjeção, a instância do Ideal do eu, e estrutura, ao
mesmo tempo, a relação do sujeito com sua imagem especular (Eu-Ideal), vemos que este colapso
se apresenta pois não há possibilidade para o sujeito encontrar algum significante em que possa
contemplar-se sem cair em reprovação, e não há nada narcisicamente tão desvantajoso.
118
O PROVISÓRIO COMO MODO...

relacionamento e também no menor custo do trabalho. Os profissionais que passam a


trabalhar por “conta própria” ganham a possibilidade teórica de atender outros clien-
tes, mas com o risco de que o cliente se volte para outro fornecedor que tenha preços
mais competitivos. Amplia-se o ‘trabalho à disposição”, conforme o volume das enco-
mendas e em turnos variáveis. Na prática, o que vem ocorrendo é o agravamento das
condições de trabalho desses indivíduos, dada a insegurança que é gerada por este
sistema. É a insegurança de manter-se ou não no mercado de trabalho, em conjunto com
a insegurança da renda. Seus ganhos se pautam não pelo tempo de trabalho dado, mas
pelo montante de serviços prestados e, nesta situação, eles tendem a trabalhar cada vez
mais, na ânsia de abarcar maior clientela e de ganhar o suficiente para sustentar o seu
padrão usual de vida. Com esforço sempre maior e à custa de sua saúde, procuram
manter uma fachada de normalidade, ou seja, mais produção e mais estresse por menos
dinheiro.
E, ainda, o efeito sobre o nível de ocupação se torna cumulativo, pois o aumento
do tempo de trabalho dos ocupados reduz a possibilidade dos sem- trabalho encontra-
rem ocupação. A flexibilização e a desregulamentação do trabalho divide o montante de
trabalho economicamente compensador de forma cada vez mais desigual: enquanto
uma parte dos trabalhadores trabalha mais por uma remuneração horária declinante,
outra parte crescente deixa de poder trabalhar.
Contudo, o trabalho não deixou de ser um valor central na vida dos indivíduos,
estruturante de sua subjetividade. Constitui ainda o elo mais forte da corrente de inter-
câmbios sociais que garante aos indivíduos desde a sua sobrevivência até sua identi-
dade como cidadãos. Ou seja, é um valor narcísico que está em causa.
O risco que se apresenta com estas “metamorfoses da questão social” seria a
existência de “inúteis para o mundo” (Castel, 1998) e, em torno deles, de uma nebulosa
de situações marcadas pela instabilidade, pela incerteza, pela vulnerabilidade e deses-
perança. Ou seja, pelo surgimento de um discurso que denominamos de melancólico e
que se constitui num verdadeiro sintoma social.
Paradoxalmente é no momento em que a “civilização do trabalho” chega ao seu
auge, quando o trabalho como um valor se torna hegemônico na sociedade que o
edifício começa a ruir, mostrando a face sintomática da modernidade. Compreendendo
o trabalho como um valor narcísico, e neste sentido, fundamental para a estruturação
subjetiva, compreenderemos a dificuldade do sujeito moderno de confrontar-se com as
metamorfoses do mundo atual.2

2
A figura da metamorfose é uma metáfora ilustrativa, que implica idéias de término e recomeço,
de algo que se transforma, de provisoriedade, de algo que se perde e algo que se eleva das ruínas.
Isso nos permitirá não cair em um discurso totalmente fatalista e pensar que, se há a melancolia,
há também a possibilidade do luto, como veremos adiante.
119
VARIAÇÕES

Também se faz necessário lembrar das dificuldades de o sujeito moderno viver


numa sociedade que tem este caráter paradoxal de ter-se tornado uma “sociedade de
indivíduos” (Elias, 1994): por um lado, a sociedade impõe a cada um uma interdependência
estrita e um conjunto de relações obrigatórias; por outro, exige que o sujeito seja
autodeterminado e autônomo.
Este ideal de sustentar-se nos próprios pés e de buscar a realização pessoal
através de suas próprias qualidades e aptidões é um componente fundamental do
homem contemporâneo. Algo sem o qual ele perderia sua identidade. E o trabalho tem
sido o modo, por excelência, de alcançar-se essa realização. Mas isso, em geral, leva-o
a crer que sua história, seus sucessos e seus fracassos, dependem exclusivamente de si
próprio.
Devemos pensar que, se essa nova forma de autoconsciência abriu caminho
para formas específicas de realização, tanto no campo subjetivo como no social, tam-
bém propicia formas específicas de insatisfação, angústia e incômodo. O avanço das
transformações institucionais, na modernidade, tende a problematizar a posição indivi-
dualista que marca seu surgimento.
O individualismo de mercado, que aparece na figura do indivíduo senhor de
seus empreendimentos, que persegue suas conquistas, parece agora não propiciar a
mesma garantia de realização de algumas décadas atrás. E devemos dizer que esse
mesmo individualista podia, ainda há poucas décadas, dispor de proteções sociais e
convenções coletivas que lhe conferiam uma segurança caso não prosperasse. Hoje,
com a ausência de tais proteções, o indivíduo está só, despossuído, e superexposto. A
organização do trabalho no novo capitalismo facilita o surgimento daquilo que Castel
chama de “individualismo negativo” (Castel, 1998). É negativo porque se define em
termos de falta: a liberdade definida como falta de segurança e falta de vínculos está-
veis, a autonomia, como falta de proteção e falta de referências. São as novas regras do
jogo contratual. Uma estrutura de contrato na qual não há referência a um coletivo nem
a proteções: contratos de trabalho individualizados, por tempo parcial, temporários, por
produtividade, terceirizações, etc. No caso específico dos jovens, que procuramos
salientar neste texto, soma-se a inviabilização da entrada na vida profissional, devido às
exigências cada vez maiores de qualificação. Isso sem falar das precárias condições
para os qualificados.
Com efeito, quando se analisa o conjunto dos dados relativos ao mercado de
trabalho nas economias globalizadas, o que se destaca é o aumento significativo do
emprego precário, a queda generalizada dos salários e a elevação das taxas de desem-
prego. Mais importante ainda é o fato de que essas tendências têm ocorrido simultane-
amente a um importante aumento dos investimentos em educação e formação profissi-
onal, estratégia considerada fundamental para a garantia de empregos gratificantes e
bem pagos (Leite, 1997).
Oriundos em sua maioria das camadas médias da população, esses jovens foram
120
O PROVISÓRIO COMO MODO...

informados nos anos setenta e oitenta que as portas iriam abrir-se para quem tivesse
curso superior, conhecimentos de inglês, etc. Mais recentemente, os conhecimentos de
informática e a pós-graduação entraram na lista dos pré-requisitos que franqueariam a
passagem para a vida profissional. Porém, em grande parte dos casos, só conseguiram
ser admitidos na categoria dos desempregados de luxo.
Uma dimensão que deve ser levada em conta ao analisarmos a experiência do
desemprego é a atitude adotada em relação às atividades que tenham um estatuto
substitutivo do trabalho. É essa atitude, socialmente determinada e estritamente ligada
ao conjunto dos recursos sociais, que explica que o desemprego possa ser vivido
melhor ou pior. São os cursos de especialização, os estágios, as atividades culturais e
artísticas, nos quais os indivíduos se engajam e que se tornam, para eles, uma ocupação
O significado conferido ao trabalho como um valor essencial para a vida, como fonte de
identidade e meio de sobrevivência é o que permite compreender a angústia na qual são
jogados os sujeitos ao deparar-se com as mudanças no mercado de trabalho. Necessi-
tam refazer seus projetos de vida a partir de uma nova temporalidade, na qual a incerte-
za, a provisoriedade, a mudança constante, são a regra.
Dado o valor que o trabalho tem na vida desses sujeitos, a possibilidade de fazer
um luto quando das dificuldades em encontrá-lo nunca passa pela abolição do traba-
lho, mas sim por tomar uma atividade substitutiva, o estudo, por exemplo, como um
trabalho.
A idade aparece como uma variável importante na medida em que traduz rela-
ções diferentes à norma do trabalho. Objetivamente a probabilidade de conseguir um
emprego cresce com a idade, e depois passa a decrescer a partir dos 40 anos, para se
tornar muito pequena após os 50. A experiência subjetiva do desemprego acompanha
esta curva, porque o indivíduo interioriza essas probabilidades objetivas, que são
reatualizadas ao longo da procura por um novo trabalho, gerando uma série de expecta-
tivas. Ou seja, o jovem se instala numa curva crescente de expectativas, que podem
transformar-se em uma frustração crescente à medida que o desemprego se prolonga.
Quaisquer que sejam as análises sobre a conjuntura, o sujeito se sente desvalo-
rizado. Sabemos que, para a maioria, a carreira constitui uma preocupação constante e
é um dos signos mais claros de sucesso profissional e pessoal. Ter uma carreira é a
forma privilegiada de afirmação de si. Assim, não é somente a organização temporal do
cotidiano que é posta em questão mas todo um sistema de projeções de um devir que
está ligado a uma trajetória profissional. É de fato essa trajetória, verdadeiro plano de
vida, que define a sua identidade, mais que sua situação em um momento dado, de
forma que o desemprego, que interrompe o desenrolar previsto ou projetado de uma
carreira, com suas etapas mais ou menos racionalizadas, leva a uma verdadeira crise de
identidade, que se traduz pelos sentimentos de humilhação e culpabilidade. O tempo de
curto prazo, flexível, do novo capitalismo parece impedir que se faça uma narrativa
constante da vida no trabalho e, portanto, de uma carreira.
121
VARIAÇÕES

O sujeito normalmente não se dá conta da complexa rede de dependência na


qual está inserido. Se, por um lado, sente a necessidade e o desejo de decidir sozinho
sobre seu destino, por outro se depara com a impossibilidade de decidir sozinho. Uma
das formas de algumas pessoas interpretarem seu destino é a idéia de uma discrepância
entre sua natureza individual e as condições sociais que lhe são “externas”. A estrutura
mental que a ideologia do individualismo oferece é a de uma antítese entre uma suposta
individualidade inata e uma sociedade que lhe seria exterior. E ela acaba servindo para
explicar fenômenos que são, na realidade, produtos de discrepâncias dentro da própria
sociedade, do “desencontro entre os ideais individuais e as possibilidades sociais de
realizá-los” (Elias, 1994). Na contemporaneidade, a pretensão de autonomia e realização
pessoal, no que diz respeito ao trabalho, se distancia cada vez mais da realidade. Em
função disso, compreende-se a posição melancólica em que fica o sujeito ao conside-
rar-se o único responsável por seu próprio fracasso (Jerusalinsky, 1997).
Mas sabemos que fracasso não é sinônimo de melancolia, ou pelo menos, não
deveria ser. Não é a seqüência de fracassos na vida de um indivíduo que o torna
melancólico. O que aproxima esses dois termos, na atualidade, é o imperativo que vive
o sujeito contemporâneo de atingir ideais sociais, na sua maioria inatingíveis, e a rela-
ção de culpabilidade que aí se estabelece. É quando retorna sempre a mesma frase: “Eu
não sou bom o bastante”. Esta frase revela o tipo de relação do sujeito contemporâneo
com esta instância psíquica que definimos como o Ideal-do-Eu: o imperativo para o
sujeito de ser como uma totalidade à imagem desse ideal. Daí o tom depressivo que
inunda seu discurso.
“O fracasso é o grande tabu moderno”, afirma Sennet, “A literatura popular está
cheia de receitas de como vencer, mas em grande parte calcada sobre como enfrentar o
fracasso” (Sennet, 1999). Aceitar o fracasso destituí-lo de sua aura de culpabilidade,
dar-lhe um lugar na história de nossa vida é o grande desafio que constitui o que
chamamos trabalho de luto. Trabalho cada vez mais importante na medida em que o
fracasso se torna um fato cada vez mais regular. Em um mercado competitivo e totalmen-
te desregulamentado, as realizações são menos prováveis, e a biografia, mais incerta. A
narrativa da vida contemporânea aparece mais como uma colagem de fragmentos, uma
montagem do acidental e do improvisado. Experiências de curto prazo, flexibilidade
econômica, instituições descontínuas definem o perfil do novo mundo do trabalho. A
carreira, como uma estrada bem feita, como uma trajetória profissional bem delimitada,
torna-se uma experiência pouco comum.
Trata-se, então, de compor uma narrativa de vida que faça frente à provisoriedade.
Mas uma narrativa em que o sujeito possa passar da condição de vítima passiva dos
acontecimentos para uma condição mais ativa. Assim, todo trabalho de luto demanda
atos criativos. E que sejam também atos responsáveis, pois, em um sistema que irradia
indiferença e anomia, as saídas perversas se tornam comuns. Portanto, as questões
éticas também estão na ordem do dia.
122
O PROVISÓRIO COMO MODO...

Este é apenas um recorte, pela via do trabalho, de um campo vasto de pesquisa.


Em uma época em que a depressão como um diagnóstico clínico se torna tão comum,
talvez seja importante retomar os conceitos de luto e melancolia para podermos refletir
sobre este discurso que vem colorindo de matizes mais sombrios a vida do sujeito
contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1998..
2 ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994 .
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4 JERUSALINSKY, A. O declínio do valor simbólico do trabalho. Correio da APPOA, Porto
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7 SINGER, P. Desemprego e exclusão social. São Paulo em Perspectiva, 10 (1), p 3-12, 1996.

123
VARIAÇÕES
TECNOCIÊNCIA E
SUBJETIVIDADE
João Biehl*

A vanços médico-científicos e desenvolvimentos político-econômicos estão


reestruturando interações sociais e as dinâmicas através das quais a subjetivida-
de individual é formada, sendo que não existe hoje um sistema explanatório único que
possa dar conta destes processos em termos do seu impacto experiencial e ético. Este
ensaio espelha e endereça transformações no que significa a subjetividade contempo-
rânea desde a perspectiva de homens e mulheres que se valem de ciência e tecnologia
para refazer as suas identidades. Especificamente, o ensaio problematiza a ação gover-
namental e subjetiva que ocorre num centro de aconselhamento e testagem anônima
para o HIV (CTA) no Nordeste do país 1. Estou interessado em como a tecnociência
encontra seu lugar em regularidades institucionais e práticas discursivas locais e em
como ela é articulada sobre o autoconhecimento. Nesse sentido, investigo: 1) como o
saber clínico-epidemiológico e a tecnologia de testagem para o HIV são integrados em
ações biopolíticas dirigidas a populações específicas compostas por indivíduos saudá-
veis e inseridos no mercado de trabalho; 2) como os conceitos de uma administração
técnica da saúde e de uma identidade baseada biologicamente (inerentes a esse saber e

*
Antropólogo, professor do Departamento de Antropologia, Universidade de Princeton, Esta-
dos Unidos.
1
Agradecimentos: Denise Coutinho e Ana Luzia Outeiro ajudaram a pensar e a realizar este
projeto de pesquisa: muito obrigado. Também agradeço os coordenadores, funcionários e clientes
do CTA e o apoio do CNPq, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e
do Departamento de Medicina Social da Universidade de Harvard. Adriana Petryna, Joseph
DumiteM ichaelM .J.Fischer:thank you . Sou o único responsável pelas idéias aqui expressas.
124
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

tecnologia) são reificados e absorvidos. Argumento que as dinâmicas inconscientes de


produção da verdade, de repetição e fantasia são o material e o meio através dos quais
novos mecanismos de autogovernância são articulados e que uma tecnoneurose é
engendrada neste contexto tecnocientífico.

A DEPENDÊNCIA DO SUJEITO E O TRABALHO DA VERDADE


Em Paris, 1969, antes de começar sua conferência “O que é um Autor?”, Michel
Foucault disse à sua audiência que era a posição do neurótico que melhor caracterizava
a ‘abertura’ do que ele estava por apresentar (n/d:30). Este comentário estava alinhado
com o subtítulo da fala, o retorno a a..., e o a era uma referência direta ao trabalho de
Jacques Lacan sobre o objeto pequeno a. Para Lacan, o objeto pequeno a é o objeto
causa de desejo, aquilo que está constantemente refazendo sua inscrição no corpo à
medida em que responde no lugar da verdade impossível do neurótico – ele corresponde
à idéia freudiana de uma ‘representação representativa da pulsão’. Sentindo-se endere-
çado por Foucault, Lacan foi escutá-lo. Este breve encontro entre Foucault e Lacan,
que tem geralmente passado despercebido pelo meio acadêmico, ajuda-nos a
problematizar a interação histórica entre ruptura epistêmica, funcionamento do incons-
ciente e experiência social.
Foucault começou e terminou sua conferência perguntando, “o que importa
quem está falando?” (1998:206). De um modo geral, ele argumentou que a função do
autor tem, de fato, estabelecido a legitimidade e status de alguns discursos nas nossas
culturas e sociedades e tem, em sua produção ideológica, limitado a proliferação de
significados. Foucault também marcou uma diferença importante entre o ato de funda-
ção de uma ciência que “pode sempre ser reintroduzida na maquinaria daquelas trans-
formações que derivam dela” (218) e a ciência dos campos da discursividade fundados,
por exemplo, por Marx e Freud nos quais há uma “necessidade inevitável [...] de um
retorno à origem. Esse retorno, que é parte do próprio campo discursivo, nunca pára de
modificá-lo” (219). Segundo Foucault, há que se investigar os modos de circulação,
apropriação e modificação dos discursos em cada cultura. Análises deste tipo questio-
nam o caráter absoluto e o papel fundante do sujeito e apontam para o sistema de
dependências do sujeito – ou seja, o sujeito se encontra na materialidade de transfor-
mações epistêmicas (1972:186; Fischer, 1999). “Em resumo, é uma questão de privar o
sujeito (ou seu substituto) de seu papel de originário, e de analisar o sujeito como uma
função variável e complexa do discurso” (1998:221).
A seguir, durante a discussão, Lacan alinhou-se com Foucault quando diversos
ouvintes criticaram o trabalho do filósofo por supostamente investir na ‘negação do
homem em geral’. “Desejaria lembrar que, com ou sem estruturalismo”, disse Lacan,
“não se trata absolutamente, no campo vagamente determinado por este rótulo, da
negação do sujeito. Trata-se da dependência do sujeito, o que é extremamente diferen-
te…” (citado por Eribon, 1996:150). Em diversas ocasiões, Foucault comentou a impor-
125
VARIAÇÕES

tância do trabalho de Lacan nessa área: “O sujeito tem uma gênese, o sujeito não é
originário. Ora, quem disse isto? Freud, certamente, mas foi preciso que Lacan o mos-
trasse claramente. Daí a importânica de Lacan” (citado por Eribon, 1996: 147). Lacan
mencionou esse encontro com o trabalho de Foucault em seu próprio seminário naque-
le ano, “De um Outro ao outro” (n/d). Novamente ele argumentou que Foucault apropri-
adamente valorizava a originalidade de uma função interna aos discursos, o que implica
“um efeito de divisão e de laceração que é próprio a todos” (n/d:90). O que está em
funcionamento ao nível do inconsciente é o retorno a a: “há um saber que diz que em
algum lugar há uma verdade que desconhece a si mesma’” (n/d:90). A psicanálise, diz
Lacan, contraria os ideais e práticas da ciência, mostrando que há sempre algo no
sujeito que “sabidamente mente, sem a contribuição da consciência” (1991: 194). O fato
é que a ciência “não tem memória; uma vez constituída, ela esquece os caminhos pelos
quais se constituiu... ela esquece a dimensão de verdade que a psicanálise seriamente
põe a trabalhar” (1989:18). Paradoxalmente, postula Lacan, “nós não temos mais nada
com o que unir conhecimento e verdade senão o sujeito da ciência” (1989:17). O que
caracteriza particularmente as formas cartesiana e capitalista de subjetividade, continua
ele, é que a verdade é o nosso trabalho: amamos a verdade e dispomos de saberes para
proliferar nossos sintomas, produzindo, assim, ‘mais gozar’ (o conceito lacaniano é
uma analogia à ‘mais valia’ elaborada por Karl Marx, 1983 – vide Zizek, 1997). “[…] não
há discurso que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da
verdade” (1994:74). A recorrência da experiência de que ‘talvez não seja o verdadeiro’,
aponta para os trabalhos da verdade no sujeito (1994:13). E nós, modernos, não somos
sem uma relação insistente com formas variáveis da verdade.

RISCO E AUTO-BIO-ADMINISTRAÇÃO
Adiante. Desde 1993, com mudanças na Coordenação Nacional de DST/AIDS e
fundos do Banco Mundial, dezenas de Centros de Aconselhamento e Testagem para o
HIV (CTA) foram criados anualmente em todo o país – há agora mais de 150 (Biehl,
1999). O modelo norte-americano que informa esta e outras iniciativas de prevenção da
AIDS localiza a natureza do problema médico bem como as possibilidades para sua
solução nos instintos e mentes individuais e, de acordo com o que o antropólogo Sean
Patrick Larvie, enfatiza “uma profilaxia psicológica” (1997:100). Em 1997, conduzi pes-
quisa etnográfica em um CTA em Salvador, no Estado da Bahia, auxiliado pela psicana-
lista Denise Coutinho e pela psicóloga Ana Luiza Outeiro (uma das conselheiras do
CTA). Combinamos observação participativa com análise epidemiológica e levanta-
mento clínico (Biehl com Coutinho e Outeiro, 2001).
Os clientes do CTA seguem o seguinte conjunto inicial de procedimentos: esco-
lhem um pseudônimo, preenchem um questionário epidemiológico, escutam uma pales-
tra sobre os aspectos clínicos e científicos do HIV e AIDS e então passam por
aconselhamento individual pré-teste. Neste momento, o cliente e o conselheiro locali-
126
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

zam o ato potencialmente mórbido que motivou a pessoa a vir ao CTA e traduzem
aquele ato em um fator de risco. A seguir, formulam um plano epidemiológico individual
(uma nova gramática de risco), que basicamente tem por objetivo a formatação de
comportamentos conscientes de segurança, particularmente com respeito à sexualida-
de. Nas palavras de Mulata, uma estudante de II Grau, “Eu preciso me controlar... tenho
que aprender a ver que as aparências enganam”. Ela parece ter racionalizado bem as
lições do CTA: “Se um casal não quer usar camisinha, ambos precisam fazer o teste do
HIV. A vida está em jogo”. Em jogo está também a formação de uma nova autopercepção
biológica da cliente. Essa autopercepção funciona como um ideal ‘verdadeiro’ do ego:
tem que ser constantemente trazido à consciência e transformado em novos valores de
vida a serem incorporados em práticas sexuais. A conselheira Marlene é direta: “Eu lhes
pergunto: ‘foi o seu desejo de prazer, de satisfação, mais forte do que o desejo de
continuar a viver?’” Os conselheiros também avaliam as implicações psicológicas de
revelar uma potencial soropositividade e formulam estratégias para assegurar que os
clientes retornem para buscar o resultado do teste. Amostras de sangue são então
coletadas no laboratório da sala contígua.
Durante nossa pesquisa no CTA, documentamos uma alta demanda de testagem
por parte de clientes de baixo risco, em grande parte oriundos da classe trabalhadora e
da classe média baixa, apresentando ansiedade e queixando-se de sintomas aparente-
mente relacionados à AIDS, como diarréia, emagrecimento, herpes, e assim por diante.
A maior parte dos clientes eram soronegativos e muitos retornavam para uma segunda
e terceira testagem (também negativa). Dados do Laboratório Central (LACEN), onde
todos os exames sangüíneos do Estado eram então realizados, mostravam que, real-
mente, tinha havido um aumento expressivo no número de testagens para o HIV e um
concomitante decréscimo geral na soropositividade registrada pelo LACEN desde que
o CTA começara a oferecer seus serviços em 1994 (Biehl, 1999, 2001; Cunha et al., 1996).
É importante ressaltar que esses dados não representam a soroprevalência da popula-
ção em geral ou o risco individual de infecção pelo HIV. Refletem, isto sim, a emergência
de uma nova população, a população de uma AIDS imaginária.
Podemos fazer um paralelo entre as medidas de saúde pública e o controle social
na era do HIV/AIDS com a administração das epidemias no início da modernidade na
Europa. Em Vigiar e Punir, Foucault mostra que durante a quarentena, por exemplo,
cada indivíduo na localidade contaminada (e estritamente monitorada) era obrigado a
aparecer na janela de sua casa. “Todos trancados em suas gaiolas, todos à janela,
dizendo seus nomes e mostrando-se quando chamados – é a grande revista dos vivos
e dos mortos” (1979: 196). Tais estratégias e ações disciplinares deram forma a uma
nosopolítica: “A relação de cada indivíduo com sua doença e com sua morte passa
pelos representantes do poder, o registro que eles fazem disto, as decisões que tomam
sobre ele” (197). Robert Castel (1991) e Gilles Deleuze (1995) argumentam que nas
nossas novas sociedades neoliberais, caracterizadas pela deteriorização dos locais
127
VARIAÇÕES

tradicionais de confinamento, pela crescente redução do aparato de previdência social


e por novas estratégias de business, a administração de populações e corpos se está
tornando cada vez mais automatizada. Esta administração pós-disciplinar é baseada,
por exemplo, em ciências de risco e estabelecida através de diagnósticos médico-psico-
lógicos. A proposta e prática de centros como o CTA é representativa dos novos
modos pelos quais o Estado contemporâneo reescreve o contrato social na área de
saúde pública. Aqui grupos de indivíduos fisicamente saudáveis e mercadologicamente
viáveis, por assim dizer, são tratados como ‘sociedade de risco’ e reorganizados em
termos de ‘melhoramento psicossexual’. A questão de quando aparecer na janela e ser
contado pelo Estado é agora uma negociação interna que tem a ver com a produção de
verdade biotécnica destes seletos indivíduos – os clientes do CTA são treinados para
se tornarem administradores de seus instintos, e têm no exame do HIV o meio para
verificar esta auto-bio-administração.
Este processo de criação de subjetividades coletivas livres de risco coexiste
com outro processo técnico-político no qual os pobres dos pobres e os doentes dos
doentes, os ‘inúteis’ segundo a lógica econômica, são ‘invisibilizados’ (Biehl, 1999,
2000). Pessoas vivendo com AIDS nas ruas de Salvador, por exemplo, não são alvo de
programas específicos de prevenção, tratamento e assistência e, ainda que detectados
como casos de AIDS por algum serviço de saúde do Estado, não são, na sua maioria,
registrados na vigilância epidemiológica que, por sua vez, produz estatísticas demons-
trando um controle eficaz da epidemia. Denomino este processo ‘morte social’: aban-
donados com AIDS são incluídos na ordem social através do seu morrer, como se suas
mortes tivessem sido autogeradas. Neste caso, a invisibilidade é um mecanismo de
controle dentro dos cálculos dos processos de vida que estão agora no centro das
ações governamentais (mediadas por risk expertise e biotecnologia) – vida para quem?
Por quanto tempo? A que custo? Como afirma o filósofo Renato Janine Ribeiro, no
Brasil “torna-se imaginável [e realizável] um discurso que pretenda o fim do social, a
fim de emancipar a sociedade… O social diz respeito ao carente; a sociedade, ao eficien-
te” (2000:21).

A JANELA IMUNOLÓGICA
De volta ao CTA. O fenômeno da AIDS imaginária não representa o fracasso
desta prática de prevenção. Representa, isto sim, um novo laço estabelecido entre o
aparato de testagem e o cliente, e o cliente e si mesmo através deste aparato e experiên-
cia tecnocientífica. A questão da ‘janela imunológica’ é revelatória. Num projeto piloto
de pesquisa com 37 clientes, todos soronegativos, 5 disseram que já haviam sido testa-
dos para o HIV antes. Os conselheiros pediram a 14 clientes que retornassem para uma
segunda ou terceira testagem porque eles “tinham uma janela aberta”. A janela
imunológica corresponde à lacuna temporal que existe entre a infecção inicial pelo vírus
e a soroconversão, isto é, quando o anticorpo específico HIV-1 pode ser detecado no
128
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

sangue (Alcabes et al., 1993). A data específica da infecção é raramente sabida e a


lacuna entre infecção e soroconversão é aproximada. Em média, a janela imunológica se
estende de 2 semanas a 3 meses. Os centros de testagem rotineiramente adotam um
período padrão de 3 a 6 meses como referência para localizar a última situação de risco
do sujeito e acessar sua verdade soropositiva ou negativa (há casos registrados em
que a soroconversão deu-se depois de seis meses). Conforme observado nas rotinas
do CTA, essa temporalidade quase científica é muitas vezes usada pelos conselheiros
para anular os resultados de testes anteriores e induzir os clientes a retornarem para
outra testagem (“pelo que você me disse agora, você poderia ter uma janela aberta
quando fez o teste”) – enquanto isto, eles são colocados numa espécie de quarentena
de sexo seguro. Observamos ainda que a janela imunológica é também integrada, de
forma complexa, às fantasias dos clientes. Muitos se sentem ‘zerados’ depois de passar
pela quarentena e pelo novo teste e se expõem novamente a situações de baixo risco. A
dúvida sobre a verdade do HIV permanece. Entendo que a eficácia indutiva dessa
tecnologia de testagem repousa no fato de que ela maneja e dá nova forma ao insistente
dilema psicológico de que ‘talvez isto não seja verdadeiro’.
Considere a maneira pela qual Luneta realiza suas fantasias no CTA e os efeitos
desta experiência. Este homem de 42 anos de idade, bissexual, tem um diploma univer-
sitário e trabalha como funcionário público. No aconselhamento pré-testagem ele se
queixou de constantes dores de estômago e diarréia: “Isto tem a ver com a doença.
Estou apavorado.” Luneta também falou sobre as suas dificuldades em controlar “o
desejo de sexo” e os problemas com o uso de preservativos: “A cabeça do homem é um
assunto muito sério. Preciso prevenir. Mas é que as camisinhas atrapalham meu tipo
preferido de relação sexual. A penetração não é tão importante. As coisas preliminares
são muito melhores e se eu fizer tudo isto com camisinha, cada vez vou consumir pelo
menos três.” Segundo Luneta, as campanhas governamentais de prevenção da AIDS
são geralmente ineficazes: “Elas precisam usar o corpo e incitar a fantasia”. Feliz, após
receber o resultado negativo, Luneta enfatizou que vir ao CTA o impactou sobremanei-
ra: “Durante o aconselhamento eu comecei a canalizar toda aquela culpa. Agora meu
pensamento é mais coerente”. O momento decisivo “de mudança”, no entanto, ocorreu
com a coleta do seu sangue. Luneta descreveu a coleta como se fosse a culminação do
prazer que busca nas suas ‘preliminares’ aventuras sexuais. “A tensão é incrível. No fim
temos que dar o nosso sangue, e então as coisas não estão mais no nível da hipótese.
É uma sensação tremenda.” Ou seja, através da coleta sangüínea o domínio do fantas-
ma parecia ter chegado (momentaneamente) ao fim, e havia então gozo na produção de
verdade bio-técnica. “O teste em si me ajuda a entender que eu poderia ter esta coisa e
poderia morrer. É difícil, mas o teste revela isto.” Mas como Luneta provavelmente
“estava em janela” quando o sangue foi coletado, ele foi solicitado a retornar para uma
segunda testagem.
No CTA, o processo científico de objetificação passa com sucesso do cientista,
129
VARIAÇÕES

o criador de um novo sistema de conhecimento, ao indivíduo que pratica o sistema de


modo que o subjetivo fique reduzido a um erro e o humano “a um jogo determinado de
símbolos englobando todas as interações entre objetos” (Lacan, 1991: 194). Um ‘pro-
gresso’ na formação subjetiva é aqui estimulado: à medida que o campo de consciência
risk-free do cliente é amplificado, uma autocompreensão biotecnologicamente baseada
desloca a sua fala e mantém a vontade pela verdade prosteticamente no lugar das
palavras. Neste processo, o sujeito da psicanálise é idealmente excluído como sendo
uma miragem do passado. Esse enodamento das pessoas consigo mesmas e umas com
as outras via biotecnologia e as reformas das possibilidades humanas aí inscritas são
parte de “uma nova cultura de simulação” (Turkle, 1997: 22) e de uma crescente
biologização da mente e da intersubjetividade (Young, 1995; Agamben, 1998; Rabinow,
1999; Haraway, 1991; Biehl, 1999b; Petryna e Biehl, 1997). A visão de Foucault de um
modo experimental de subjetividade, expressa no fim de sua palestra “O que é um
Autor?”, parece estar bem no processo de se realizar: “Penso que, ao passo que nossa
sociedade muda, a ficção e seus textos polissêmicos irão mais uma vez funcionar de um
modo diferente [...] um modo que não mais será o autor, mas sim experimental” (1998:
222).

TECNONEUROSE
Concluo com a experiência de Oxigênio, que retorna ao CTA para o seu quarto
teste. Desta vez, o conselheiro disse a esta comerciária de 32 anos, que não havia mais
nada que o Centro de Testagem pudesse fazer por ela. Oxigênio havia esgotado sua
cota de testes. “Mas eu preciso de mais um”. Ela disse que estava muito deprimida,
apontou para as lesões cutâneas em seu rosto e repetiu sua história: “Um ano atrás eu
fui estuprada”. O estuprador disse-lhe que tinha AIDS. Nenhuma queixa foi registrada
na polícia. Todos os conselheiros que atenderam Oxigênio concordam com a seguinte
interpretação: “ela cometeu adultério e está morrendo de culpa”. Agora até mesmo o
marido apresenta sintomas relacionados com a AIDS, alega Oxigênio. Ela já procurou
dois psicoterapeutas, em vão. “Não gostei, o primeiro disse que eu não tinha nada; a
segunda não disse nada”. A necessidade de um novo teste para o HIV parece estar
enlaçada com a impossibilidade de Oxigênio acessar sua própria palavra e na realidade
a substitui. Entendo que a experiência sintomática, confusa e dolorida de Oxigênio é
arquitetada tecnicamente. As dinâmicas neuróticas de clientes como ela não são sim-
plesmente expurgadas em enquadramentos epidemiológicos e biotestagens, mas são
instrumentalizadas e co-produzidas como sendo normais, retornando à realidade social
como tecnoneurose. Esta é uma via de duas mãos. Ao mesmo tempo em que esses
novos sujeitos de risco são treinados para ultrapassar atos potencialmente mórbidos
através de um novo saber (um duplo) de si mesmos, eles também normalizam, agora com
tecnociência, sua capacidade neurótica/plástica de reinventar a subjetividade. Nesse
processo, clientes como Oxigênio tornam-se dependentes de uma significação secreta
130
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

que o teste de HIV possa carregar (no lugar deles), e podem assim ter forcluído o acesso
à singularidade dos seus dramas e à formulação do desejo.
Em muitos casos, os sintomas destes clientes soronegativos e suas demandas
por uma verdade biológica são também veículos para a construção de novas identida-
des sociais. Em meio a vazios abertos pelo desaparecimento e/ou reciclagem de tradici-
onais laços sociais, muitos clientes usam o CTA para resolver conflitos familiares e
amorosos (casos de incesto, perda de virgindade e adultério). Outros usam este aparato
para formular ou camuflar novas definições de orientação sexual (afirmando ou negan-
do homossexualidade, por exemplo), para liberar-se de servidão sexual ou lidar com
mudanças ocasionadas por uma nova consciência de gênero. Muitos simplesmente
exercitam o raro direito de ter aqui acesso a um ‘moderno’ aparato de saúde pública. De
um modo geral, observamos clientes de-ritualizando relacionamentos face-a-face e rea-
lizando fantasias programáticas de uma suposta autonomia.
Em resumo, este experimento técnico-cultural e a experiência de uma AIDS ima-
ginária no CTA tem como efeitos imediatos: a consolidação local de um ethos biocientífico
de governamentalidade, o reforço da fantasia como um regulador da realidade social, a
nova inscrição de padrões de dominação social e sexual e a viciada auto-
instrumentalização de novos sujeitos de risco. A história de Oxigênio mostra que, neste
contexto, o que permanece é o imperativo categórico da ciência – conhecer ad infinitum.
E, no lugar onde essa pulsão epistemológica é maquinada, não há necessidade da
presença de uma pessoa real. Como Hannah Arendt previu no final da sua obra “A
Condição Humana” (1958: 299), aqui os processos da vida interior, encontrados nas
paixões através da introspecção, tornam-se literalmente padrões e regras para a criação
da vida automática do ser humano artificial.

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York: Verso, 1997.

132
TEMA DO PRÓXIMO NO DA REVISTA DA APPOA

DEPRESSÃO E MELANCOLIA

O número 21 da Revista seguirá o trabalho em torno do assunto Depressão e


Melancolia, acompanhando o projeto da APPOA deste ano que convida a tomarmos
este tema como eixo central de nossas reflexões e produções.
Esta edição pretende, ainda efetivar o projeto de trazer ao leitor, um debate atual
entre a Psicanálise e as Neurociências, tendo em vista a relevância que estas últimas
têm tomado na abordagem da depressão e melancolia.
Os textos devem ser enviados, até 31de julho, à Comissão da Revista, conforme
normas abaixo.

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

I APRECIAÇÃO PELO CONSELHO EDITORIAL


Os textos enviados para publicação serão apreciados pela comissão editorial da
Revista e consultores ad hoc, quando se fizer necessário.
Os autores serão notificados da aceitação ou não dos textos. Caso sejam neces-
sárias modificações, o autor será comunicado e encarregado de providenciá-las, devol-
vendo o texto no prazo estipulado na ocasião.
Aprovado o artigo, o mesmo deverá ser enviado para a APPOA, aos cuidados
da Revista, em disquete, acompanhado por uma cópia impressa e assinada pelo autor,
ou por e-mail.

II DIREITOS AUTORAIS
A aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus, nesta
Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publicações.

III APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS


Os textos devem ser apresentados em três vias, contendo:
– Folha de rosto: título, nome e créditos do autor (em nota de rodapé), contendo títulos
acadêmicos, publicações de livros, formação profissional, inserção institucional, ende-
reço postal, e-mail, fone/fax; resumo (até 90 palavras); palavras-chaves (de 3 a 5 subs-
tantivos separados por ; ); abstract (versão em inglês do resumo); Keywords (versão
em inglês das palavras-chaves).
– Corpo do texto: deverá conter título e ter no máximo 15 páginas (37.500 caracteres);
usar itálico para as palavras e/ou expressões em destaque; para os títulos de obras
referidas, itálico.
– Notas de rodapé: as notas referentes ao título e créditos do autor serão indicadas por
* e **, respectivamente; as demais, por algarismos arábicos ao longo do texto.
IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
A referência a autores deverá ser feita no corpo do texto somente mencionando
o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de autores cujo ano do
texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada.
Ex: Freud [(1914) 1981].
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas. As que possu-
írem menos de 5 linhas, deverão ser mantidas no corpo do texto. A partir de 5 linhas,
deverão aparecer em parágrafo recuado e separado, acrescidas do (autor, ano da edi-
ção, página).

V REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfabé-
tica pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:

OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. 2. ed.
Porto Alegre : Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20 . Mais ainda. Rio de Janeiro : J. Zahar, [s. d.].

PARTE DE OBRA
CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço conjugal.
Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo . São Paulo : Comp.
das Letras, 1993. p. 21-9.
FREUD, S. Teorías sexuales infantiles (1908) In: _____. Obras completas. 4. ed. Madri : Bibli-
oteca Nueva, 1981. v. 2.

ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? C. da APPOA , Porto Alegre, n. 71, p. 12-20,
ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente.Revista da Associação Psicana-
lítica de Porto Alegre , Porto Alegre, Artes e Ofícios, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.

ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl.
Jornal Zero Hora , Porto Alegre, 05 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.
NESTROVSKI, Authur. Uma vida copiada: prensa internacional reavalia memórias fictícias de
Beinjamin Wilkomirski. Folha de São Paulo , São Paulo,11 jul. 1999. Caderno Mais, p. 9.

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