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Melancolia e Depressão PDF
Melancolia e Depressão PDF
A CLÍNICA
DA MELANCOLIA E AS DEPRESSÕES
Design Gráfico: Cristiane Löff
Sobre instalação de Louise Bourgeois, “Líquidos preciosos”, 1992.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU: 159.964.2(05)
616.89.072.87(05)
CDU: 616.891.7
de finalizá-los. Ao contrário, o que se espera é que novas questões possam daí surgir,
convidando a um trabalho produtor de novas elaborações.
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TEXTOS AS VÁRIAS CENAS DA
MELANCOLIA E DA
DEPRESSÃO
Lúcia Alves Mees*
RESUMO
O texto apresenta cinco cenas sobre a melancolia e a depressão. As primeiras
cenas buscam revelar o cenário moderno circundante à depressão e propõem
uma discussão sobre a depressão associada às neuroses. A quinta cena trata
da melancolia como quadro clínico específico, sua etiologia e clínica.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; depressão; modernidade; clínica
ABSTRACT
The text presents five scenes about melancholy and depression. The first scenes
seek to reveal the modern scenery surrounding depression and pose a discussion
about depression associated to neurosis. The fifth scene deals with melancholy
as specific clinical picture, its etiology and clinics.
KEYWORDS: melancholy; depression; modernity; clinic
*
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Mestre em Psicologia Social
e da Personalidade PUC/RS. Professora do curso de extensão “Adolescência e experiências de
borda”- UFRGS.
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TEXTOS
C ena 1: O parceiro pede a sua companheira que passe a usar psicofármacos, afinal
ela está sempre se queixando do que, para ele, vai muito bem. Ela se deixa medicar
– é prescrito um antidepressivo – e ela se descobre “louca”; não o tipo de loucura que
ele lhe imputava, mas uma outra, fruto do desaparecimento temporário do sujeito de
desejo.
Cena 2: O DSMIII retira de sua codificação das doenças o termo histeria e
confere grande espaço à depressão.
Cena 3: O século XX consagra o termo depressão a partir da Economia, que o
marca com o conceito de baixa e alta do Mercado Financeiro e o ideário de que a alta
deve prevalecer.
Cena 4: As pesquisas são unânimes em apresentar as mulheres como mais sus-
ceptíveis à depressão.
As quatro cenas, aparentemente tão díspares, compartilham o cenário moderno
circundante da dita depressão: feminina, imperativamente rechaçada, substituta da his-
teria e definidora da demanda social acerca da mulher. Desde o prescrito no DSM III, até
alguns ramos da medicina, a mídia e as próprias mulheres e, às vezes, o parceiro, a
demanda parece ser a mesma: atenuar ou apagar o que a histeria põe em cena, a saber,
o desafio ao mestre, a inconstância, a insatisfação, o desejo de mudar, a queixa, o
enfrentamento da verdade, a fragilidade das garantias e a recusa aos semblantes. Se a
histeria caracterizou o início do século XX (e na sua trilha surgiu a psicanálise), a
depressão é supostamente sua substituta no final do século XX e, talvez, do XXI. Essa
dita mudança, proponho, expressa um desejo de que assim seja, ou seja, padeça a
mulher de tristeza, de desamparo, de mau humor, de insatisfação, de ciclotimia, seu
diagnóstico moderno será (nos âmbitos antes citados) o de depressão. Sua cura? O
mesmo remédio, com diferentes substâncias, mas a mesma doença. A pluralidade femi-
nina se vê reduzida a um só mal. A causa? Seu corpo, é claro. Seus neurotransmissores
não são adequados à vida em alta que se espera dela (e ela anseia também ! O problema
é quando ela acha que encontrou!!!). O corpo falante da histérica, enigmático, avesso a
qualquer manual de definição, assinalador dos limites da ciência, vem cedendo lugar a
um corpo bioquímico, controlável, pois objetivável. O corpo, antes revelador do
psiquismo, é agora o da neurobiologia. O inconsciente escancarado na histeria tende a
ser apagado nesse corpo de constituição doente, com o qual o sujeito não está implica-
do.
O corpo em desarmonia com o desejo histérico vem sendo suplantado por um
corpo que deve calar. Se antes o silêncio sobre o feminino era respondido pela histérica
com um corpo aos gritos, nas conversões, cegueiras, paraplegias, etc., aos poucos, ao
longo do século XX, ele vem sendo sedado da fome, da dor, dos desconfortos, enfim,
de seus clamores (observe-se que os antidepressivos são receitados, além do controle
do afeto, também para dietas alimentares, tensão pré-menstrual, dores de cabeça e
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AS VÁRIAS CENAS...
dores crônicas, fadiga crônica e sintomas gástricos). Os novos tempos buscam apagar
aquilo que no corpo da mulher é índice do feminino: sua castração revivida a cada
menstruação, sua relação a um corpo que dói em nome de um psiquismo que sofre, sua
relação oral reveladora de um laço com a mãe que se reatualiza no excesso alimentar, etc.
Quanto mais o intuito de acomodar o corpo à felicidade ganha lugar, mais a vida
parece potencialmente romper o equilíbrio, logo, o “stress”, o sofrimento, as inquieta-
ções, que, no passado, pareciam engrandecer o sujeito, hoje são vistas como passíveis
de quebrar a “adequação”. O passo seguinte é o de ter de sedar o que pode trazer um
tipo de pane ou falência do sujeito; enfraquecido, é claro, por aquilo mesmo que quer
combater.A dose maciça de recalque, com o intuito de pretensamente fortalecer, fragiliza
o sujeito a ponto de fazê-lo temer desesperadamente a perda de tal defesa. Assim, o
sofrimento hoje não é visto como algo que amadurece o sujeito, ou que lhe é próprio, ele
anuncia uma falência de “tudo”, se o tudo for seu afeto de contentamento associado a
um corpo mudo.
Além disso, observa-se que o termo “depressão”, há séculos presente na lín-
gua, só entrou na linguagem da psiquiatria e psicologia no século XX a partir de um
deslizamento a partir do campo da economia (Andrè, 1995). Quer dizer, um capital de
energia (quer seja energia monetária, nervosa, humoral ou moral) deve ser mantido em
alta, como na Bolsa de Valores, senão não tem lugar. Para os em baixa, ou a expulsão do
mercado, ou ejeção do mundo cada vez mais mercantil, ou tentar voltar à alta para gozar
de um lugar junto aos vivos. Os da alta são os que controlaram o próprio humor, o
corpo, as fraquezas e a histeria naquilo que ela tem de reveladora de uma falta que não
deixa nunca de existir.
A promessa – advinda do Outro – de encontro com as alturas cobra um preço: o
de não saber lidar mais com o próprio desejo, com suas nuances entre baixo e alto, com
sua expressão singular. Com dificuldades de desejar, o sujeito está ainda mais só. A
alegria de conquistar um (transitório que seja) objeto de desejo se esmaece. A orienta-
ção que o desejo traz (simplesmente por não ceder do desejo) (Lacan, 1988) se obscu-
rece e o lugar do sujeito parece mais e mais estranho. Não seria esse o sujeito deprimi-
do? Então, qual seria o estatuto da depressão em psicanálise – se é que há um – na
medida em que não compartilha com o imperativo de alta?
Considerando que se possa tomar a depressão restrita à neurose, sugiro que a
pensemos dentro de algumas modalidades neuróticas de relação à instância paterna,
isto é, na oscilação entre um triunfo sobre o pai e entre um apagamento por ele. Na
primeira hipótese, o afeto associado é o da alegria e júbilo; na segunda o da tristeza.
Mania e depressão que podem alternar-se, expressam essa oscilação na relação ao pai.
A mania é índice de um triunfo sobre o paterno, o que torna o objeto possível de ser
alcançado e, conseqüentemente, burla a castração e quita a dívida. O afeto presente em
tal posição subjetiva é de alegria e inquietação, visto que mescla uma felicidade intensa
de supostamente alcançar todas metas, e de agitação por ter de transitar por todas as
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TEXTOS
adiante), a meu ver, ele interpreta a relação do sujeito com o objeto na neurose. É nesta
que o objeto é perdido e passível de patologia, enquanto na melancolia propriamente
dita o objeto perdido não é constituído a não ser comoquase-nada (vide a seguir: cena
5). Dito de outra forma: o objeto só pode ser perdido se tiver sido constituído, como o
é na neurose.
Lacan (s/d) retoma a relação do sujeito com o objeto através de Hamlet para dizer
que, com a perda do objeto, funda-se um desejo insatisfeito, ou impossível. O acento
nessas características intrínsecas ao desejo funda a patologia. Ou seja, o sujeito neuró-
tico privilegia apenas o negativo do desejar, ficando preso àquilo que não pode realizar,
ou ao que é insatisfatório na realização. A neurose, portanto, reduz o desejo a
insatisfatório e impossível. Considerado isto, será que modernamente não se vê a inclu-
são e privilégio a um desejo – mais do que insatisfatório e impossível – deprimido?
Provavelmente a cultura atual interpretaria Hamlet como um depressivo. Prostrado,
entristecido, sem forças para perseguir seu objeto de desejo, atraído pela morte e ani-
quilação; Hamlet caberia bem em uma descrição de depressão. Resta saber se interessa
incluir um viés a mais nas modalidades de desejo (além de impossível e insatisfeito)... Se
essa inclusão for necessariamente negadora de alguma(s) modalidade do desejo, pare-
ce que só se tem a perder; todavia, se somar uma outra descrição às já consagradas pela
psicanálise, abrindo uma via a mais de interpretação, por que não? Se assim for, acho
que a leitura será, de qualquer forma, sobre a dificuldade do sujeito para lidar com a
perda do objeto imposta por um pai total ou impotente e com um desejo advindo daí que
não é jamais integralmente satisfeito. Se, a partir disso, o sujeito se deprime e esmorece
diante do projeto de desejar, mas anseia em fazer algo mais do que gozar disso, seja lá o
nome que se dê a seu sofrimento, esse sujeito interessa à psicanálise.
Cena 5: A outra cena. A melancolia.
A melancolia, mesmo que sintomatologicamente se assemelhe à depressão, não
guarda com esta nenhuma outra similaridade. Portanto, a parecença aparente só con-
funde quando o modelo médico/científico/moderno dita a leitura do adoecimento. Quan-
do os afetos e sintomas ganham o centro do diagnóstico e o sentir-se em alta resume
todo o imperativo social de satisfação, é que a melancolia e depressão se amalgamam.
A melancolia requer que nos reportemos a outros elementos: ao início da vida de
um sujeito, pois se situa nos esboços das primeiras relações com o Outro o ponto de
fixação do melancólico. O sujeito melancólico padece de um excesso de falta nesse
tempo da constituição, ou seja, carência de presença do primeiro Outro, sua mãe, no
que se refere aos cuidados que essa presta ao bebê. Cuidados maternos que, sabemos
desde Freud (1974), ultrapassam a simples higiene e alimentação e sim dizem respeito a
tomar o corpo da criança como falo, revesti-lo de erogeneidade, marcando-o de desejo
e fornecendo uma imagem com a qual se identificar. Que os cuidados primários ao nenê
sirvam de apoio à função simbólica desencadeada pela mãe, permite destacar que essa
marcação do corpo se vale do alimentar e cuidar para inscrever ali algo mais. O corpo,
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TEXTOS
ficância (das imagens) do melancólico: ou bem ele se fala em uma falta intransponível,
ou bem se fala em uma especial exceção a tudo e todos. Em um movimento de báscula,
o melancólico oscila entre esses opostos radicais, sem poder transitar pela parcialidade
do um pouco isso e um pouco aquilo. De acordo com sua patologia narcísica, revela sua
extrema dificuldade de revestir sua imagem com “bons olhos” e tece sua resposta com
um pretendido desdém ao imaginário. Seu discurso sobre a verdade prima pela grande
lucidez com a qual interpreta o mundo e traz consigo a dor de quem nunca se engana e
o alijamento do mundo de quem está radicalmente afastado do Outro. Mesmo assim,
não se pode pensar em destituí-lo desse discurso, pois ele circunda o vazio do Outro e
protege o sujeito melancólico de lançar-se nesse mortífero nada. Como já disse, uma
relativa parcialização nesse dircurso acredito que a análise pode compor, ao mesmo
tempo que uma transformação discursiva, penso eu, pode ser trabalhada. Ou seja,
diferentemente de pretender privar o sujeito melancólico de sua defesa à queda no
vazio, a interpretação analítica com o melancólico, o meu ver, tenta incidir sobre a
qualidade da defesa, sobre a possibilidade de se utilizar da sua relação peculiar com a
verdade para produzir algo próximo da sublimação. Pois, se a “verdade” está presente,
no sentido de um modo de relação ao simbólico que é pouco perpassado pelo recalque
– a chaga da castração está sempre cruamente exposta na melancolia, e o imaginário não
está agindo no incremento do recalque – será que potencialmente isso abre caminho à
relação a um destino pulsional outro, a saber, a sublimação? Na melhor das hipóteses
então, o melancólico pode valer-se de sua lucidez para construir, sim, algo reparatório à
sua imagem pouco inscrita, e que não redunde em necessária idealização e em ainda
maior afastamento do outro. Como potencial artista das palavras, o melancólico pode
vir a produzir, a partir do vazio, algo que se dirija a um outro, um público, a leitores etc.,
que eventualmente podem dirigir-lhe um olhar de reconhecimento interessante... Tra-
tar-se-ia de inventar um objeto que a cultura valorizasse, partir de um real que produzis-
se uma inserção simbólica e de um gozo que desse acesso ao desejo.
Apontar para essa direção sublimatória é idealizar a análise do melancólico? É
indicar sua dificuldade? É traçar uma esperança? Pois são os ideais e as desistências
que o melancólico põe em pauta para o analista e questiona quanto a psicanálise cons-
trói um ideal (se for um discurso somado ao discurso das verdades universais) e quanto
não serve para nada (se reduzida ao que parece ser). Portanto, o melancólico requer do
analista um lugar que não seja nem de quem esmorece diante da difícil direção da cura
do melancólico, nem de quem a idealiza a ponto de desmerecer seus vários limites...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 ANDRÉ,Serge.A impostura perversa . Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
2 FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo:uma introdução. In: _____.Edição Standard Brasileira
da Obras Psicológicas Completas de Sigmundo Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 14.
3 _____. Luto e melancolia. Edição Standard Brasileira da Obras Psicológicas Completas de
17
TEXTOS
18
TEXTOS
A MELANCOLIA NO
TEXTO FREUDIANO
Rodolpho Ruffino*
RESUMO
O texto é constituído de um subsídio capaz de contribuir para a pesquisa da
melancolia, abordando três requisitos prévios à investigação: a questão
metodológica, a relevância clínica na atualidade e a apresentação da bibliogra-
fia.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; método; clínica; estrutura; neurose narcísica
ABSTRACT
The text is a subsidy able to contribute to the research of melancholia. It
approaches three previous requirements to investigation: the methodological
aspect; the clinical importance nowadays and the presentation of bibliography.
KEYWORDS: melancholia; method; clinic; structure; narcissic neurosis
*
Psicanalista (SP), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Um dos autores do livro
“Adolescência – um enfoque psicanalítico”, organizado por Clara Rappaport, SP, ed. EPU, 1993.
Autor de vários artigos publicados sobre o tema da adolescência.
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TEXTOS
Q ueremos apresentar, com este texto, um pequeno subsídio capaz de contribuir para
o trabalho de todos os que hoje estão envolvidos com a pesquisa em torno deste
eixo que denominamos a clínica das depressões e da melancolia. Na verdade, busca-
mos aqui apenas contribuir com três dos requisitos prévios da investigação a que o
tema convoca: (1) aquele que perscruta a questão metodológica prévia ao exame do
movimento de surgimento do próprio tema no interior do texto freudiano – obra inaugu-
ral da disciplina psicanalítica; (2) a apreciação do que entendemos ser hoje a relevância
clínica do exame dessa questão eminentemente controversa, da posição da melancolia
frente às psicoses; e (3) a apresentação de uma bibliografia que indica onde se situam,
em meio à obra de Freud, os momentos fundantes da construção propriamente freudiana
do conceito de melancolia.
O presente estudo buscará apresentar-se, então, como o inicial, o ponto de
partida do que virá a ser nossa contribuição pessoal a um trabalho que se quer coletivo
e articulado em torno do eixo temático da melancolia1 .
A QUESTÃO DO MÉTODO
1. O tema da melancolia em Freud aparece em sua obra, desde o início, já
articulado a uma específica constelação temática, constelação esta que circunscreve-
mos enquanto uma e também enquanto específica, na medida mesma em que a pode-
mos definir como um dado conjunto finito e articulado de conceitos no qual cada um
deles, quando tomado em relação ao conceito freudiano de melancolia – conceito
este que aqui escolhemos como o eixo organizador em torno do qual o conjunto mesmo
veio a ser concebido –, apresentar-se-á articulado a todos os demais dos implicados
no mesmo conjunto, como deles se separando pela menor distância possível, distân-
cia esta que chamaremos, enquanto a menor possível, de distância em grau um.
Distância em grau um, lembremo-nos, é sinônimo de grande proximidade entre
dois ou mais conceitos; a vizinhança mais imediata possível entre eles; uma distância
muito próxima de contato entre dois ou mais conceitos tendo apenas como mediação
entre eles, em lugar de terceiro, a presença do conceito-eixo em função do qual a
vizinhança mesma se constituiu. Portanto, uma distância em grau um entre dois con-
ceitos equivale à menor distância entre os mesmos, estando eles separados por somen-
te um elemento mediador. Uma distância em grau zero, em contrapartida, seria uma
não-distância e também um não-contato: seria ou a imediaticidade de uma colagem, na
qual dois passam, por engano do estudioso, por um, ou seria a “relação” – se é que
esta palavra aqui tem algum cabimento – do mesmo consigo próprio. No máximo, pode-
1
A Associação Psicanalítica de Porto Alegre escolheu como tema-eixo de seus trabalhos deste
ano de 2001 A clínica da melancolia e dos estados depressivose, em torno dele, convocou seus
associados ao trabalho. O presente trabalho é o início de nossa resposta a essa convocatória.
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A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
ríamos situar, no ponto preciso do grau zero, não uma distância ou uma relação, mas
sim o lugar onde está posto o termo que nomeia o eixo mesmo em torno do qual se
constitui a constelação conceitual da pesquisa – em nosso caso, o grau zero é o lugar
de nada mais do que o do termo melancolia. Do lado oposto, relativamente à distância
de grau um, uma distância em grau n, estimando que n fosse concebido como um
número igual ou maior do que dois, indicaria uma maior distância entre dois elementos,
tão maior quanto maior fosse o valor numérico de n, uma distância na qual os elementos
em relação só se relacionariam separados/articulados através de um número n de medi-
ações. Neste último caso, entre os elementos enumerados entre essas n mediações,
para além de um entre esses que seria o elemento mediador primeiro – portanto o
elemento mediador já presente na distância em grau um entre dois conceitos, o ele-
mento-eixo da constelação conceitual – os demais seriam os próprios conceitos impli-
cados na constelação mais imediata possível ao eixo (que já é mediata, lembremo-nos,
em grau um), mediando, por sua vez, o próprio eixo e os conceitos primeiros a esse
eixo, articulados a outros de maior distância.
Se levarmos em conta que, em Freud, a melancolia enquanto conceito só nos
diz alguma coisa se a tomarmos em sua articulação com um certo número de outros
conceitos em relação aos quais a sua significância se apresenta, então, nada poderá
ser dito de significante sobre o nosso tema se não o considerarmos em relação à sua
vizinhança conceitual. Por outro lado, como amiúde encontramos na obra freudiana, a
larga extensão do campo de vizinhança de um conceito, se devesse ser inteiramente
percorrido para uma investigação conceitual qualquer, já estilhaçaria, de saída, a possi-
bilidade de qualquer empreendimento, tornando qualquer trabalho algo estéril porque
não delimitado. A idéia de constelação temática finita de conceitos articulados numa
distância de grau um, constituída ao redor do tema da pesquisa tomado em posição
de eixo, entretanto, evita-nos o duplo escolho do isolamento conceitual que distorceria
o valor do lugar de um conceito na teoria e o da não-delimitação do que importaria no
campo das relações estabelecíveis a partir de um conceito, que, por visar ingenuamente
resgatar, pela somatória em ordem aleatória, as múltiplas articulações conceituais de
um tema, a maioria das quais, aliás, necessariamente desprovida de relevância, estilha-
çaria de saída, pela ilimitabilidade que imporia à empresa, a possibilidade de se produzir
qualquer produto articulado na pesquisa.
Nossa pesquisa, portanto, pensa em poder percorrer, inicialmente, no texto
freudiano, a constelação temática finita dos conceitos que estiverem articulados
numa distância de grau um, constituída ao redor do tema da melancolia. Fixaremos
em breve quais conceitos supomos estarem aí inclusos. Antes de fixá-los para o leitor,
entretanto, considerando que, com esta pesquisa da melancolia em Freud, queremos
não apenas realizar um boa exegese do texto, mas também dar conta do que é um
enigma contemporâneo da clínica psicanalítica, reflitamos sob que condições have-
21
TEXTOS
remos de alcançar efetivamente nosso objetivo. Uma exegese dos fundamentos teóri-
cos damelancolia em Freud pode ser alcançada com apenas o exame da constelação
conceitual de grau um dos conceitos freudianos que se articulam imediatamente ao
redor do conceito de melancolia. Percorrendo apenas essa distância, teremos tocado
no enigma clínico contemporâneo que faz nossa geração de analistas voltar-se para
aquela re-exegese? Supomos que não. Se trabalhássemos com um conceito diretamente
nomeador do que se maneja na clínica, como a transferência, o acting out ou a resistên-
cia, talvez o exame da constelação em grau um que se constitua imediatamente ao redor
desses eixos, fosse suficiente para nos confrontarmo com o que, na clínica, pode fazer
enigma para nós hoje. Mas um conceito metapsicológico e psicopatológico, como é o
caso da melancolia, só se articula com a questão do manejo na direção da cura por uma
via mais longa de mediações. Sendo assim, isso nos obriga a percorrer constelações
conceituais outras, para além da de grau um – mas passando antes por esta –, se
quisermos que nossa pesquisa tenha alguma relevância no debate com as questões
clínicas atuais, estas que, se enfrentadas, fariam nossa disciplina seguir adiante na
marcha da história.
Retomando, a exegese é para nós, aqui, um passo necessário, mas não suficien-
te. Investigaremos a noção de melancolia em Freud a partir da exegese dos funda-
mentos freudianos do conceito em seu texto, delimitando-o ao situá-lo como este
eixo que articula toda a constelação conceitual que ao seu redor é convocada no
texto, desde a constelação em grau um até aquela, mais distante, pela qual a noção
freudiana de melancolia venha a tocar pelo menos em um dos enigmas clínicos pelos
quais somos provocados em nossa geração, para fazermos avançar a ação da psica-
nálise.
22
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
ção conceitual de ordem secundária. Ou seja, aqui se trata de, em relação ao primeiro
círculo (o de distância em grau um), um segundo círculo concêntrico, traçado numa
distância em um grau mais longínquo, rumo ao exterior, do ponto central onde se situa
o lugar do eixo.
A condição de pertencer a uma ordem secundária nem sempre implica necessa-
riamente a degradação da importância conceitual de uma constelação temática. Signi-
fica que com essa ordem secundária adentramos a uma constelação conceitual de
grau dois a partir do nosso eixo. Como vimos, se, para um trabalho com este tema, o
grau um, poderia dar-nos um saber de certa relevância para a pesquisa exegética da
teoria, permanecermos aí, por outro lado, seria mantermo-nos aquém de atingir o enigma
clínico pelo enfrentamento do qual nossa investigação pudesse ousar contribuir para o
avanço da psicanálise diante dos problemas cruciais que a contemporaneidade lhe (ou
melhor, nos) impõe resolver.
Nem todas as constelações secundárias a partir da melancolia teriam, para os
objetivos de nosso trabalho, a mesma relevância, mas a relevância clínica do conceito
só nos será revelada se, após termos passado pela investigação da constelação primá-
ria, adentrarmos e esgotarmos, na obra freudiana, o que se acoberta sob a constelação
secundária articulada pelo eixo constituído pelo tronco conceitual [melancolia >
neuroses narcísicas]. Pelo menos é por esta via que arriscamos a nossa própria leitura
daquilo que hoje faz enigma à nossa prática e daquilo por onde devemos enfrentar a
questão que relançará a psicanálise à frente em nossa geração.
Nessa segunda constelação surgem – nomeemos os seus elementos
constitutivos –, de um lado, alucinações, amência de Meynert, anorexia, bulimia,
confusão alucinatória, delírio alucinatório, estupor alucinatório e hipocondria, como
companheiros de condomínio da melancolia no endereço das neuroses narcísicas,
alguns deles sendo possuidores do mesmo nível estrutural que ela, outros com ela se
aparentando apenas por traços metonímicos; de outro lado, neuroses e psicoses, frente
às quais, ao menos segundo a última e, portanto, a definitiva psicopatologia elaborada
por Freud – aquela assumida por ele a partir de 19242 –, o campo das neuroses narcísicas,
finalmente, se distingue.
(Antes, em Freud, neurose narcísica era sinônimo de psicose e o antônimo de
neurose de transferência – sendo que este último conceito atravessava duas defini-
ções: em uma era sinônimo de neurose sexual de defesa; em outra, era a repetição, em
análise, constituída artificialmente pelo dispositivo analítico, da neurose infantil do
analisando e o meio para que o manejo do analista, pelo simulacro repetido, tivesse um
2
S. Freud, Neurosis y psicosis (1924[1923]), inSigmund Freud Obras Completas, v. 19, Amorrortu,
Buenos Aires, 1996, pp. 67-106.
23
TEXTOS
acesso indireto ao original. Neste sentido, supunha Freud antes de 1924, as neuroses
narcísicas – aqui ainda pensadas como o nome freudiano das psicoses – opunham-se
ao que se chamava, segundo a definição um, neuroses de transferência, na medida
mesma em que as primeiras, tal como eram então pensadas, não possibilitavam o acon-
tecimento, em análise, da transferência e, conseqüentemente, não franqueavam o cami-
nho à reconstrução artificial, em análise, do que, segundo a definição dois, se entendia
por neurose de transferência).
Em nosso caso, buscando prosseguir até o ponto em que possamos atingir, com
o produto de nossa investigação, algo que o perfaça com uma configuração mínima
capaz de alcançar a relevância clínica que o tema “clínica das depressões e da melanco-
lia” pede, haveremos de avançar, ao menos até certo ponto, até uma específica conste-
lação temática terciária que nos leve, no mínimo, a um dos temas no qual o texto
freudiano veio a confrontar-se, entre outras coisas, com um problema de manejo clínico
que, indiretamente pelo menos, esteja articulado ao tema da melancolia. Em nossa
leitura, nós a encontramos naquela constelação que se constitui pelo que, partindo do
tronco conceitual composto que articula {[melancolia>neurose narcísicas]-[neuroses
narcísicas>confusão alucinatória]}, leve-nos ao ponto onde a dificuldade de manejo
clínico de Freud se devia, assim o percebemos, às confusões teóricas pelas quais, à
época, pouco era possível distinguir-se o campo das neuroses narcísicas do das psico-
ses. Este ponto, nós o localizamos num texto bastante extenso que é anterior ao peque-
no e lacunar de 1924 que efetuou a distinção entre as neuroses narcísicas frente ao
campo das psicoses. Localizamos num texto de 1914, que só foi publicado e revisto em
1918, o texto freudiano intitulado De la historia de una neurosis infantil, onde se trata
não de um caso de melancolia, posto que de casos de melancolia Freud não nos
deixou registro escrito, mas de um caso de ocorrência de confusão alucinatória ( uma
outra neurose narcísica, no sentido pós 1924) e de seus efeitos permanentes e catas-
tróficos sobre um sujeito já organizado psiquicamente por uma neurose infantil. Ora, na
época (1914-1918, portanto, seis ou dez anos antes de 1924), o caso já testemunhava,
entre outras coisas, uma indecidibilidade diagnóstica, indecidibilidade bem fundada no
estado incompleto da teoria da clínica desses anos em relação a tudo o que não fosse
relativo à histeria ou à neurose obsessiva. Por isso, esse caso nos chegou sob a sombra
de algo que, sem se confundir com a idéia nada freudiana de borderline, poderia ser
concebido como se situando, de forma nublada, não exatamente na borda entre a
neurose e a psicose, mas sim como que revelando um psiquismo enigmaticamente
construído com elementos que margeariam as bordas do que, com freqüência,
fenomenicamente, caracterizariam as manifestações tanto neuróticas quanto psicóticas.
Trata-se do texto do tratamento do “Homem dos Lobos”, sobre o qual nos pergunta-
mos: o que uma releitura do caso do “Homem dos Lobos” a partir da revisão das
neuroses narcísicas do Freud de 1924 e do avanço que essa revisão proporcionou à
24
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
3
S. Freud, Histeria (1888), in Sigmund Freud Obras Completas,v. 1, Amorrortu, Buenos Aires,
1996, pp. 41-66.
4
Nesse texto, além de Freud nos apresentar um dos casos que perfaz o número daqueles cinco
que se constituíram em grandes relatos publicados, ele ainda (1) reatualiza e harmoniza sua teoria
com as considerações sobre o seu conceito de narcisismo e com a última sistematização de sua
metapsicologia, (2) reelabora teórica e clinicamente, já com distância e serenidade, a sua diferença
com C. G. Jung e (3) pôde, fazendo um bom uso do longo tempo livre forçado que lhe trouxe o
acontecimento da Grande Guerra, elaborar teórica e estilisticamente o material apresentado
5
Ocorre que a pequena nota marginal não é insignificante e, por sobre trinta e seis anos de
trabalho (de 1888 a 1924), resolve, infelizmente numa redação sumária, uma questão de diagnós-
tico diferencial cuja relevância haveremos de mostrar.
25
TEXTOS
ela implica visar reconstruir o conceito de melancolia, na medida em que esta, definida
enquanto neurose narcísica no sentido de 1924, puder-se deixar ser por nós entrevista
ao negativo pela via do impasse resultante do que não estava estabelecido como defi-
nição de neurose narcísica em 1918 para a consideração da confusão alucinatória.
Se pensamos em trabalhar a temática freudiana da melancolia nessa via que
conduz do conceito em grau um à sua articulação com o que Freud nos trouxe em seu
trabalho acerca do Homem dos Lobos, conforme vimos que essa articulação se faz
possível no grau três da constelação temática do conceito de melancolia em Freud,
considerando que (a) do grau um da articulação temática de um conceito , se quiser-
mos investigá-lo efetivamente, nada pode ser deixado fora e que (b) do grau três, ponto
final deste nosso percurso, só elegemos essa temática relacionada ao tronco não-
imediato melancolia-Homem dos Lobos, passando pela mediação da confusão
alucinatória, então nos é facultado só tomarmos do grau dois, aqui o grau intermedi-
ário da constelação temática do conceito – logo, que só vale para o nosso objetivo
como caminho entre o grau um e o grau dois– aquilo que lá está posto exatamente a
meio do caminho da melancolia, no grau um ao Homem dos Lobos, no grau três. Logo,
é facultado eliminar de nossa investigação, ao menos nesta nossa primeira investiga-
ção desse percurso, tudo o que, da constelação temática de grau dois, conduzir-nos-ia
para alhures. Isto quer dizer que, para este trabalho podemos, a princípio, subtrair
(deixando em reserva a possibilidade de virmos a resgatar alguns deles para o nosso
estudo apenas na medida em que eles vierem a ser requeridos por algum dos elementos
que permanecerão em nosso campo de interesse) os seguintes conceitos já antes enu-
merados: alucinações, amência de Meynert, anorexia, bulimia, delírio alucinatório,
estupor alucinatório e hipocondria (mesmo que possamos prever que, por conta do
conceito de confusão alucinatória – que reteremos – enhamos que resgatar, dentre
estes, num segundo momento, todos aqueles cujo nome está composto pela raiz do
termo alucinação).
26
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
algum saber que seria possuidor de relevância clínica? Dizemos que esse algo, para nós
que nos situamos nesta geração que é a nossa na história da psicanálise, no estado
atual em que as coisas clínicas se nos revelam em função do grau de avanço a que
pudemos conduzir a nossa práxis, que esse algo, apesar de todo o avanço de que a
nossa ação inovadora, e a das gerações que nos precederam, veio hoje a nos capacitar
e, apesar de toda a revelação da verdade das coisas que hoje se nos fez possível, esse
algo ainda nos faz enigma. Mas é do desvelamento, desvelamento mesmo que parcial,
desse enigma que a nossa clínica hoje depende para avançar naquilo que o nosso
tempo dela exige. Um enigma, neste sentido, é algo que pressupõe o avanço já alcança-
do. Ele é o subproduto do já alcançado que impele para o ainda a alcançar. Testemunha,
ao mesmo tempo, o saber consolidado em um tempo e o não-saber que se apresenta
nesse mesmo tempo. Ele é a voz do mundo e a testemunha de um tempo demandando
um novo avanço para uma disciplina e é, simultaneamente, o guia interno à disciplina a
disciplinar o movimento de sua práxis, disciplinando-a ao apontar-lhe a direção para
onde se insinua sua urgência e o que é, para ele, o relevante a fazer.
O reconhecimento da enigmaticidade teórica e da relevância prática do tema da
clínica das depressões e da melancolia para o nosso tempo, parece-nos, já está pre-
sente no espírito do proponente6 quando nos propõe exatamente este tema como eixo
temático para os seus/nossos trabalhos do ano. Está, portanto, ali (em quem nos con-
voca) e aqui (nos que se deixaram tocar pela convocação), presente em nossos espíri-
tos, que se visa com o tema a algo cuja relevância clínica se situa nisso que o tema,
ainda guardando muito de si como estando enigmático à nossa geração, solicita de
decifração urgente para os nossos dias, mas de uma decifração que se estima hoje já
disponibilizada a se efetivar, ainda que só parcialmente, no tempo de um ano – um
enigma é algo cuja enigmaticidade só se explicita nesse instante-limiar em que o tema
nele é, simultaneamente, ainda quase não-pensável e já quase passível de alguma con-
sideração pelo pensamento, ao menos pelo pensamento que não tema se arriscar, por
algum instante que seja, a tentar habitar esse mesmo instante-limiar onde o ainda não
coexiste com o já sim.
E de que urgência de decifração – decifração cujo resultado se nos revelaria
como algo de relevância para a clínica psicanalítica na atualidade – é essa que se trata
nesse enigma (e antes, qual é ele?) contido na idéia freudiana de melancolia? Em quê a
melancolia seria para nós hoje algo mais enigmático do que, por exemplo, a histeria, a
neurose obsessiva ou a paranóia? Frente ao quê, por exemplo, decifrarmos o que está
6
Referímo-nos ao convite à pesquisa do tema, feito pela APPOA, que o escolheu como seu eixo
temático para este ano de 2001.
27
TEXTOS
em jogo na melancolia poderia ser mais relevante para o avanço atual da práxis analítica
do que o seria a decifração, por exemplo, da alegria? O que é isso que uma determinada
época nos pede para que ela, conforme a nossa resposta, venha a nos permitir continu-
armos avançando em nossa marcha? E como não nos paralisarmos em demasia diante
do pedido?
A relevância clínica da decifração do que há de enigmático na melancolia, em
nosso entender, se situa nisso em que ela, como a mais páthica, no sentido de ser a mais
psicoticoforme, ou psicoticóide, das neuroses narcísicas, vem a interrogar hoje, tanto
quanto já inquietava nos tempos de Freud, o estatuto disso que são as formações
estruturais clínicas, retificando nossas suposições anteriores em uma direção que é,
simultaneamente, por um lado, muito pouco suspeitada pelos leitores de Freud e de
Lacan e, por outra, já prevista, em meio às frases menos freqüentemente sublinhadas
nos textos de Freud, como nos de Lacan.
Tomando rigorosamente a via da explicitação desses pontos, presentes em Freud
e em Lacan, não haveremos de abandonar a categoria da estruturalidade, mas havere-
mos de abandonar a falsa suposição, que nunca foi um pressuposto estruturalista,
segundo a qual tudo o que é relevante será estrutura ou de que tudo que não for
estrutura será mero epifenômeno ilusório.
Já explicitamos ao leitor até onde queremos chegar com o trabalho que será o
nosso para este ano: a uma pesquisa teórico-textual do tema da melancolia em Freud
que caminhe até alcançar uma configurabilidade tal de si mesma pela qual ela possa
dotar-se a si mesma de uma relevância clínica mínima que capacite o seu resultado a
nos ter feito avançar no entendimento das neuroses narcísicas até elucidarmos o se-
gredo de sua especificidade frente às formações estruturais clínicas.
E isso nós o desejamos na medida em que pensamos que é só por essa elucidação
que se poderá dar conta, nos dias de hoje, de uma parte considerável disso que se
chama, entre os lacanianos hoje, as novas formas do sintoma na contemporaneidade,
ou os estados limites, e que os outros chamavam de distúrbios borderline.
2. Essas novas formas do sintoma que parecem, à primeira vista, mesmo aos
lacanianos formados pelo estruturalismo, chegar ao sujeito como que por de fora das
estruturas... ; essas novas formas do sintoma que até conduzem alguns que ainda se
pensam lacanianos – os mais apressados a quererem chegar, mal um problema a eles se
tenha posto, o mais rapidamente possível, mesmo cedendo a algumas ligeirezas, à sua
solução, esquecendo que o seu ofício é feito antes para ser constituído pelo gosto no
apreciar dos enigmas de um problema e pela disposição a trabalhar pacientemente com
os mesmos e não pelo imediatismo de deles virem a querer livrar-se tão logo surjam – a
considerar que a era da suposição da idéia de estruturas clínicas, como se isso tivesse
sido apenas uma hipótese equivocada, já se tenha esgotado... ; ...ora, essas novas
28
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
7
Esse artigo tem para nós uma importância dupla. Nele, publicado um ano após os seus Três
ensaios, Freud, pela primeira vez, nove anos após ter disso assumido a convicção em correspon-
dência privada à Fliess, põe a público o seu abandono da teoria da sedução. Nele ainda as
neuropsicoses são apresentadas não apenas como distúrbiosclínicos ou quadro páthico , mas
também como a organização defensiva do indivíduo que nele se instaura para responder à
sexualidade infantil , ao seu incômodo e ao seu encantamento, como onegativo da perversão–
consideração que antecipa e fundamenta, para o campo da psicanálise não apenas lacaniana, a tese
lacaniana das formações estruturais.
29
TEXTOS
8
Há divergências entre autores lacanianos quanto à posição estrutural da fobia, pois muitos a
pensam como uma espécie de “placa giratória”, própria da neurose infantil, que antecederia a
“escolha” da neurose propriamente dita. Alguns incluem a perversão como estrutura particular,
outros a pensam como uma possível modalidade de montagem coletiva na sociabilidade entre
neuróticos. Há quem pense que a esquizofrenia não seria uma estrutura psicótica ao lado da
paranóia, mas algo que estaria para a paranóia assim como as neuroses narcísicas, conforme neste
texto as entendemos, estariam para as neuroses. Nesta última compreensão, a paranóia seria a
estruturaúnicadapsicose,seriaapsicoseporexcelência,conformeafórmuladeLacana para-
nóia é a psicose.
30
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
Concordamos, uma psicose não se define pelo grau de loucura que ela manifes-
ta e assim pensar seria conceder à manifestação empírica a chave da estrutura e não o
inverso, por mais que só possamos inferir a estrutura a partir da (e não apenas da)
lógica das manifestações que dela se atualiza na realidade, e também reconheçamos,
sua lógica não é a materialidade da sua manifestação. Entretanto, atentemos: uma
formação estrutural clínica é algo pelo que, quando tendo podido ser apresentada
para um analista, antes que ela venha a se desenhar diante de seu olhar, ela se expõe a
ele a partir do seu efeito de o tomar como nela situado, e nela situado em um preciso
lugar. No lugar em que, desde o Édipo, é aguardado este que a transferência visa, para
que a ele o sujeito se dirija segundo o verbo e no ponto de fuga que cada estruturação
clínica, distinguindo-se entre elas, solicitar. É graças a essa possibilidade oferecida pela
teoria que pode o analista afastar-se da semiologia descritiva em sua impressão
diagnóstica para chegar ao diagnóstico estrutural e não só porque ele substituiu a
manifestação pela lógica subjacente – isto já o faria, nós o sabemos, mais estruturalis-
ta, mas ainda não o suficiente. É porque, para além da importância – importância sem
dúvida verdadeira, mas útil para uma outra finalidade – que há no apreciar-se da lógica
que preside no sujeito sua relação a seus objetos, ao diagnóstico estrutural, no sentido
lacaniano do termo, o que importa é que, a partir dessa lógica, seja ela neuroticomórfica
ou psicoticomórfica, se tome o lugar onde, em meio a esses objetos, a presença do
analista é esperada na transferência.
Nas neuroses narcísicas, o lugar do analista, como também o do amado, põe-se
por sobre uma expectativa narcísica elevada à segunda potência – dizemos “e m
segunda potência”, pois esta se redobra em relação à expectativa narcísica neurótica
comum. Para os neuróticos, para cada lugar onde um Outro é esperado, há uma expec-
tativa de reposição narcísica do Eu que advém, como promessa, promessa formulada
em silêncio a si mesmo, àquele mesmo que espera. Logo, para todos os neuróticos, já há
a presença de uma expectativa narcísica em primeira potência dada, e o alimentar de
tal expectativa não se conta entre o que separaria, senão em grau, um neurótico comum
de alguém que está tomado por uma neurose narcísica.. Nem essa expectativa narcísica
em primeira potência do neurótico e nem aquela expectativa narcísica em segunda
potência daquele sujeito que está tomado por alguma das neuroses narcísicas não
fazem do Outro, entretanto, nele mesmo, uma especularidade em segunda pessoa, ou
uma matéria que se prestasse a alguma forma de colagem ao sujeito, ou um ninguém de
quem nada haveria de se esperar – acontecimentos que, virtualmente, podem se verifi-
car na condição narcísica em terceira potência que caracterizará o laço transferencial
na psicose, construída sob a forma da retirada libidinal em direção a um retorno auto-
erótico, condição, esta sim, distinta qualitativamente das duas ordens de expectativas
narcísicas há pouco nomeadas. A reposição narcísica esperada pela via do dirigir-se a
um Outro, nas neuroses narcísicas não se põe como uma exigência que o sujeito poria
32
A MELANCOLIA NO TEXTO FREUDIANO
sobre o Outro, ele mesmo, mas sobre a sua própria expectação, e isso não deixa de
confirmar a alteridade em lugar de terceiro que é atribuível ao Outro sob o pacto fálico
da intersubjetividade propriamente neurótica.
Na expectação transferencial, a neurose narcísica se revela como um acrésci-
mo que se sobrepõe à neurose sexual de defesa cujo limite foi desmanchado e, conse-
qüentemente, o sujeito escorregou para o piso do andar de baixo: a organização resul-
tante da reedição dramática familiar da estrutura edipiana, por falta da presença ou da
eficácia do elemento externo simbólico (algo articulado à função social da imago
paterna) que a manteria, deixou de ser um dique eficaz e o sujeito tombou para a
organização narcísica. Como o lugar requerido do Outro nessa organização é um
lugar materno onde ninguém mais pode pôr-se, essa queda ao narcísico é, antes, uma
queda a uma desestabilização do narcisismo primário que, como que “do fundo”,
haveria de garantir minimamente a relativa estabilidade que, em geral, é encontrada nos
humanos neuróticos.
28 Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci (1910); SFOC.96; v. 11; pp. 53-129. 11: 98.
29 Contribuiciones para un debate sobre el suicidio (1910); SFOC.96; v. 11; pp. 231-2.
11:232.
30 Puntalizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito
autobiograficamente (1911 [1910]); SFOC.96; v. 12; pp. 1-76. 12: 66.
31 Tótem y tabú. Algunas concordancias en la vida anímica de los salvajes y de los neuróticos
(1913 [1912-3]); SFOC.96; v. 13; pp. 1-164. 13: 45-7, 58-73, 96, 104, 141-3, 147 e 153.
32 Duelo y melancolía (1917 [1915]); SFOC.96; v. 14; pp. 235-58. 14: 237-55.
33 De la guerra y muerte. Temas de actualidad (1915); SFOC.96; v. 14; pp. 273-304. 14: 291,
300 e 310.
34 Algunos tipos de carácter dilucidados por el trabajo psicoanalítico (1916); SFOC.96; v. 14;
pp. 313-40. 14: 324-5.
35 18ª. Conferencia: La fijación al trauma, lo inconsciente (v.16; pp. 277-91); in Conferencias
de introducción al psicoanálisis (1916-7 [1915-7]); SFOC.96; vs. 15 e 16; pp. 1-444. 16:
252-3.
36 26ª. Conferencia: La teoría de la libido y el narcisismo (v.16; pp. 375-91); inConferencias de
introducción al psicoanálisis (1916-7 [1915-7]); SFOC.96; vs. 15 e 16; pp. 1-444. 16: 388-
9.
37 27ª. Conferencia: La transferencia (v. 16; pp. 392-407): in Conferencias de introducción al
psicoanálisis (1916-7 [1915-7]); SFOC.96; vs. 15 e 16; pp. 1-444. 16: 399.
38 De la história de una neurosis infantil (1918 [1914]); SFOC.96; v. 17; pp. 1-112. 17: 6, 10,
17 e 83.
39 Introducción a ‘Zur Psychanalyse der Kriegsneurosen’ (1919); SFOC.96; v. 17; pp. 201-8.
17: 207.
40 Victor Tausk (19xx); SFOC.96; v. 17; pp. 266-8. 17: 268.
41 Más allá del princípio de placer (1920); SFOC.96; v. 18; pp. 1-62. 18: 12 e 35.
42 Psicología de las masas y análisis del yo (1921); SFOC.96; v. 18; pp. 63-136. 18: 103, 124-
6.
43 Sobre la psicogénesis de un caso de homosexualidad femenina (1920); SFOC.96; v. 18; pp.
137-64. 18: 159.
44 ‘Psicoanálisis’ (v. 18; pp. 231-49) in Dos artículos de enciclopedia (1923 [1922]); SFOC.96;
v. 18; pp. 227-54. 18: 245.
45 El yo y el ello (1923); SFOC.96; v. 19; pp. 1-66. 19: 10-1, 30-1, 51-8.
46 Una neurosis demoníaca en el siglo XVII (1923 [1922]); SFOC.96; v. 19; pp. 67-106. 19:
82-9, 91, 103-5.
47 Neurosis y psicosis (1924 [1923]); SFOC.96; v. 19; pp. 151-60. 19: 158.
48 Presentación autobiográfica (1925 [1924]); SFOC.96; v. 20; pp. 1-70. 20: 56-7. 49.
Inhibición, síntoma y angustia (1926 [1925]); SFOC.96; v. 20; pp. 71-164. 20: 74, 86,
124-6, 158 e 160.
49 ?Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez imparcial (1926);
SFOC.96; v. 20; 165-244. 18:173.
50 El humor (1927); SFOC.96; v. 21; pp. 153-62. 21: 161.
51 Dostoievski y el parricidio (1928 [1927]); SFOC.96; v. 21; pp. 171-94. 21: 177, 180
e 184.
35
TEXTOS
52 Sobre la sexualidad feminina (1931); SFOC.96; v. 21; pp. 223-44. 21: 241.
53 31ª Conferencia: La descomposición de la personalidad psíquica (v. 22; pp. 53-
740; in Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis (1933[1932]);
SFOC.96; v. 22; pp. 1-168. 22: 56.
54 32ª. Conferencia: La feminidad (v. 22; pp. 75-103): in Nuevas conferencias de
introducción al psicoanálisis (1933[1932]); SFOC.96; v. 22; pp. 1-168. 22: 92.
55 Análisis terminable y interminable (1937); SFOC.96; v. 23; pp. 211-54. 23:253.
36
TEXTOS
UMA MELANCOLIA
TIPICAMENTE FEMININA
Rosane Monteiro Ramalho*
RESUMO
A partir de casos de pacientes com anorexia e bulimia (e da maior incidência
destas manifestações em mulheres), é analisado o feminino em nossa cultura e
sua problemática identificatória. É pensada a possibilidade de uma forma de
melancolia tipicamente feminina, uma vez que uma mulher, devido suas dificul-
dades identificatórias – decorrentes de suas relações primordiais –, acabe es-
perando do parceiro um desejo que lhe outorgue uma imagem de si, um reco-
nhecimento. E, por isso, uma ruptura nessa relação implicar um desequilíbrio
narcísico, desencadeando, muitas vezes, manifestações psicopatológicas.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; feminilidade; transtornos alimentares;
modernidade; identificações
ABSTRACT
From cases of anorexic and bulimic patients (and of the major incidence of
these pathologies beyond women), its analyzed the feminine in our culture and
its problematic in identification. The possibility of a typical feminine melancholy
is considered, once women, because of its difficulties in identification – originated
from their primordial relationships –,expects from their partners a desire that
would concede her an image of themselves, a recognition. That’s why a rupture
in this relation implicates a narcissist derangement, triggering, many times,
psychopathological manifestations.
KEYWORDS: melancholy, femininity, anorexia and bulimia, identifications
*
Psicanalista, membro da APPOA, mestranda em Psicologia Clínica pela PUC/SP.
37
TEXTOS
1
Segundo várias pesquisas e autores, entre eles, Cordás (1993).
2
Herscovici & Bay (1997).
3
Brusset, apud Urribarri (1999).
4
Laségue (1873); Gull (1965).
5
Com fins de purificação.
38
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...
6
Sobre essa questão, ver também Kehl (1996; 1998).
7
Aliás, o ideal amoroso e o de autonomia não se contrapõem, pelo contrário, ambos confluem no
narcisismo.
8
Relativo a isto, ver também Gay (1990), bem como Kehl (1998).
41
TEXTOS
9
Um interessante estudo sobre a Barbie encontra-se em Lord (1995).
44
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...
Então, elas (meninas e também mulheres), através dessa imagem, buscam ser
amadas, enquanto, para os homens, essa mesma imagem é objeto de desejo sexual,
objeto erótico – embora o que provoque o desejo masculino seja, mais do que o corpo
feminino em si, uma parte deste, um traço, por exemplo, um olhar, ligado a uma fantasia.
É interessante a coincidência dessa mesma imagem de um corpo feminino, essa imagem
desejada que vem a recobrir uma falta e, portanto, acaba tornando-se um fetiche. Não
podemos deixar de associar essa palavra ao seu sinônimo, feitiço, e à dimensão de
fascínio que ela remete – do recobrir, porém, justamente pelo fato de fazê-lo, denunciar
uma falta, um desejo (ou seja, a castração).
Nessa direção, Baudrillard (1996) afirma que o privilégio erótico do corpo femini-
no opera tanto para as mulheres como para os homens. Considera que o fascínio que se
verifica com as partes privilegiadas da troca simbólica, como a boca e o olhar, também se
verifica com toda e qualquer parte ou pormenor do corpo entrelaçado nesse processo
de significação erótica, mas que o mais belo objeto é o corpo feminino.
“O corpo desvelado da mulher, nas mil e uma variantes do erotismo, é
evidentemente a emergência do falo, do objecto-feitiço, é um gigantesco
trabalho de simulação fálica e o espetáculo incessantemente renovado
da castração” (Baudrillard, 1996, p. 173).
Nessa direção, ainda, o autor afirma que a mulher é intimada a fazer-se falo com
o seu corpo, sob pena de nunca ser desejável.
“E se as mulheres não são feiticistas é porque executam sobre si próprias
o trabalho contínuo de feiticização, tornam-se bonecas. Sabe-se que a
boneca é feitiço, feita para ser continuamente vestida e despida, enfeita-
da e desenfeitada. É este jogo de cobrir e descobrir que tem valor erótico
para a infância, é neste jogo às avessas que regride toda a relação objectal
e simbólica, quando a mulher se faz boneca, se torna o seu próprio feitiço
e o feitiço do outro” (Baudrillard, 1996, p. 185).
Por vezes, o fascínio é tanto que o “feitiço vira contra o feiticeiro”, visto que a
proximidade com a realização do desejo poder acabar produzindo justamente a inibição,
a evitação.
Há, porém, um equívoco feminino ao associar o fato de ser desejada ao modelo,
ao cânone – embora, atualmente, a estética cabide (tal como Twiggy) esteja cedendo
espaço às formas mais femininas (vide Gisele Bündchen). Esse modelo pode regrar a
vida social, ou seja, os estilos de vida, mas não os desejos sexuais – estes seguem
outros caminhos. Assim, nesse “fazer-se boneca”, mais do que a semelhança ao cânone,
o que provoca o desejo é o jogo de mostrar e esconder, é estar ligado a uma fantasia.
Isso evidencia que amor e desejo não se equivalem, dão-se por vias distintas – o amor,
enquanto admiração, idealização, tem relação, portanto, com os ideais; e o desejo, com
as fantasias sexuais –, podendo, porém, eventualmente se encontrar, confluir num mes-
mo objeto (numa mesma pessoa). Muitas vezes, a busca feminina de ser amada a leva a
46 provocar desejo, ou melhor, a encarnar o objeto do desejo masculino, a ser o receptácu-
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...
10
Sobre isso, ver Lévi-Strauss (1949).
48
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...
isto quer dizer que o próprio da feminilidade é não poder ser reconhecida senão por um
outro, ou seja, o enunciado “desejo de desejo” é tomado ao pé da letra.
Paralelamente, Pommier (1987) afirma que o narcisismo feminino assume sua
dimensão trágica porque se trata de fazer existir no olhar do homem uma identidade cuja
consistência se limita a esse reflexo. Para o autor, a imagem do corpo feminino é frágil
porque só subsiste na dependência do desejo masculino.
Como vimos, são clássicas as associações feminilidade/passividade e masculi-
nidade/atividade. Assim a feminilidade se relaciona à passividade, à disponibilidade de
vir a encarnar o objeto do desejo masculino; porém, uma passividade ativamente bus-
cada.
No seu texto “Uma criança é espancada”, Freud (1919) considera que, no caso
tanto de meninos como de meninas, a fantasia de espancamento corresponde a uma
atitude feminina, a uma posição passiva. Além disso, afirma haver, na fantasia, uma
equivalência do ser batida com o ser amada. Ser batida e amada, então, pelo pai.
Freud também fala em masoquismo feminino, diferenciando-o do masoquismo
originário, fundamental para ambos os sexos, que consiste numa posição objetal à
demanda do Outro (a princípio, materna), como fundante da subjetividade. Isto é, trata-
se do desejo materno libidinizando o pequenino corpo gerado.
O masoquismo feminino, como afirma Freud (1924), “(...) baseia-se no masoquis-
mo primário, erógeno, no prazer no sofrimento”. Parece estar relacionado à fantasia de
ser batida, ou seja, ao efeito do investimento, da marca paterna no corpo. E, por isso,
considera-se uma posição feminina – no entanto, não implica exclusivamente a posição
da mulher, mas uma fantasia de feminização que se relaciona também ao homem.
Feminização esta característica de todo processo de subjetivação, independente do
sexo biológico, por remeter ao investimento libidinal do corpo pelo Outro, do revesti-
mento do corpo do sujeito (numa posição passiva, objetal) por uma segunda pele –,
esta simbólica, composta de significantes, marcas inscritas a partir do seio, da voz, das
palavras, do aconchego, etc., fornecidos pela mãe ao bebê. Implica, portanto, uma
segunda pele necessária para a constituição subjetiva, por possibilitar uma imagem,
uma identificação. Podemos também considerar o masoquismo primário como uma de-
fesa, na medida em que defende o sujeito de ser pura carne, só um corpo, constituindo-
o como sujeito, através de uma segunda pele que reveste de significantes esse corpo,
delineando uma imagem, configurando uma silhueta, erotizando-o e, portanto, fazendo
dele algo além do orgânico.
Na literatura, temos a interessante “História de O”, de Pauline Réage. Esse livro
é considerado um dos romances eróticos franceses mais lidos e polêmicos do século.
Havia uma suspeita de que o autor fosse um homem, mas descobriu-se que se tratava
de uma mulher – uma jornalista francesa que se utilizou de um pseudônimo masculino.
O livro versa sobre a clássica fantasia feminina – a mulher que se deixa seduzir e
arrebatar pela dominação violenta de um homem do qual, voluntariamente, torna-se
49
TEXTOS
escrava. Entrega-se a todos os desejos de seu namorado, de forma a obter o seu amor.
O interessante é que “O” poderia desistir a qualquer momento; no entanto, permanecia.
Aceitou, por amor a ele, mas também porque ela mesma acabava obtendo gozo nessa
condição, por mais que se surpreendesse com isso.
Mais do que sentir dor, ela gozava, obtinha prazer nos seus suplícios (por exem-
plo, ao ser chicoteada), pois, dessa forma, sentia-se amada. É interessante que, na
“História de O”, a personagem não tenha um nome, sendo simplesmente chamada de
“O”. Podemos associar com “o” de objeto, pela posição mesma que ela ocupa, num
abandono de si mesma ao seu namorado – aliás, isso é o que também caracteriza o amor,
a paixão –, podendo, inclusive, morrer, caso venha a ser abandonada.
A história de “O” não apresenta um final. A autora sugere, no entanto, dois
destinos possíveis para “O”. No final do livro consta, numa breve notinha, que o último
capítulo fora suprimido, mas que “O” era abandonada pelo namorado. Consta, também,
que existe um segundo fim: vendo-se a ponto de ser abandonada pelo namorado, “O”
preferiu morrer, no que ele consentiu. Ainda, na literatura, encontram-se muitas obras,
nas quais as personagens femininas, ao serem abandonadas pelo homem que amam,
cometem suicídio como forma de aplacar a angústia, o desespero e o vazio em que se
encontram. É o caso, por exemplo, de Anna Karenina (de Tolstói) e Emma Bovary (de
Flaubert).
12
Distinta da psicose e da neurose de transferência (histeria, neurose obsessiva e fobia), como já
propunha Freud.
51
TEXTOS
13
Em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1925) e em “ Ansiedade e vida instintual” (1932).
52
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...
remeter a uma repetição do que viveu com sua própria mãe1 4 Aliás, isso talvez apresen-
te relação com os casos referidos, uma vez que, assim como suas mães, estas moças
ocupavam um lugar semelhante na filiação. Além disso, as mães, segundo diziam as
filhas, também possuíam uma história de abandono em suas relações primordiais. Tra-
tar-se-á somente de uma coincidência?
Nesse sentido, a mãe que não olha a filha, devido à sua dificuldade ou impossi-
bilidade de desejá-la, ou a mãe que, ao invés de palavras (significantes, da ordem do
desejo), dá, à filha, somente comida (objeto da necessidade), bem como a mãe que vê a
si mesma na filha (no lugar desta), ou mesmo a mãe fálica, sem falta, que impede ou
problematiza uma diferenciação geram um mesmo impasse: a dificuldade de a filha obter
tanto uma imagem de si quanto um reconhecimento como sujeito, sentindo-se abando-
nada. E, por isso, o vazio e o desamparo. Nessas situações, o modelo materno – como
Ideal do Eu – apresenta-se como inatingível, frente ao qual as tentativas da filha de
obter um reconhecimento tornam-se vãs. Dessa forma, por mais que ela faça, nunca será
suficiente (para ser reconhecida em sua diferença), advindo daí a sensação de eterna
insuficiência e de inconsistência que tem de si mesma. Acerca disso, o filme “Sonata de
outono”, de Bergmann mostra, muito bem, a inacessibilidade de uma mãe pianista,
voltada para si mesma, gerando, na filha, retraimento e inibição.
É possível que essas questões contribuam para explicar o porquê de tanto a
anorexia como a bulimia acontecerem predominantemente em sujeitos do sexo feminino,
bem como as razões para a melancolia acometer mais as mulheres.1 5
FANTASMA DO ABANDONO
Não apenas estas pacientes viveram situações de separações como abandono,
reeditando um abandono anterior – relativo às suas primeiras relações -, assim como
todos os seus relacionamentos (principalmente os amorosos, mas também os profissi-
onais, de amizade, etc.) eram experienciados como estando na iminência de serem rom-
pidos. Viviam, portanto, à espreita do fantasma de abandono. Aliás, mesmo quando se
aproximavam de alguém ou estabeleciam alguma relação, era comum sentirem, a princí-
pio, que não gostavam delas – ou que elas lhes eram indiferentes – até prova ao
contrário, precisando, então, de comprovações (ou testemunhos) de que eram amadas.
E, mesmo quando tais comprovações lhes eram fornecidas, ainda assim as percebiam
como frágeis, pois poderiam, a qualquer momento, ser desfeitas, não lhes sendo, por-
tanto, confiáveis em sua solidez. Elas apresentavam uma constante desconfiança quan-
to ao afeto, ao amor do outro por elas, conforme também foram suas relações primordi-
14
Ramalho (1993).
15
Kristeva (1989).
53
TEXTOS
ais – o fato de não encontrarem (ou obterem de forma tênue) um lugar para si no desejo
do Outro torna-lhes muito difícil obterem uma identificação. E, por isso, o sentimento de
desamparo e de insuficiência – tão semelhante ao do melancólico – era freqüente nes-
sas pacientes.
Neste sentido, essas moças apresentavam também uma tendência “a se fazer
abandonar”, como se a mínima atitude do outro fosse tomada por elas como abandônica,
uma realização de um destino implacável e inevitável, confirmando-o, então. Isto é, seu
fantasma tomava corpo. Assim, em situações de separação, sentiam-se rejeitadas (como
também passaram a fazer com o objeto-alimento, na anorexia), bem como sentiam-se
vomitadas (como também passaram a fazer nas suas crises de bulimia) – um aborto que
não se deu, bebê vomitado por sua mãe.
Esse fazer-se abandonar vai na mesma direção do sentir-se responsável pelo
abandono, ou seja, de que, por ser alguém tão insuficiente e sem valor, a separação se
torna uma conseqüência lógica.
Tal fantasma do abandono apresenta, como vimos, uma estreita ligação com a
angústia princeps feminina – temor da perda do amor, ou seja, do amor-espelho que lhe
fornece uma imagem, uma identidade para si, que considero não só feminina, mas ine-
rente a todo sujeito contemporâneo, uma vez que é o narcisismo que caracteriza nossa
cultura hoje. Nessa direção, esse fantasma de abandono e, conseqüentemente, o de-
samparo, solidão e depressão presentes nessas pacientes são também o que se encon-
tra em nossa cultura atualmente, como sintoma.
No entanto, além do fazer-se abandonar, algumas vezes, elas tomavam o lugar
inverso, embora comandado pelo mesmo fantasma – segundo os dois lugares (ativo e
passivo) do fantasma, resultado da relação estabelecida entre o Outro e o sujeito –, ou
seja, elas precipitavam o temível abandono. Por exemplo, em determinadas situações,
ao temerem ser abandonadas, geralmente numa relação amorosa, elas terminavam a
relação. Como se a angústia frente a uma iminente e inevitável ruptura – que as condu-
ziria a um insuportável estado de desamparo – as levassem a tomar, então, uma medida
de defesa psíquica.
Outra forma de relação – ou de defesa – adotada por elas consistia no tentar
estabelecer um limite nas relações, de maneira a evitar tanto o ser abandonada quanto
o ser engolida. Em ambas as situações, ou seja, no sentir-se abandonada ou no sentir-
se engolida, há a perda do limite e o risco de uma morte psíquica, ou seja, a anulação
subjetiva. Eu diria, ainda, que se trata dos dois lados da mesma questão: a distância
ótima, a justa medida, nem muito perto, que sufoque, nem muito longe, que abandone.
E, assim, na análise, a relação transferencial também lidava com essa delicada demarca-
ção: o transitar nesse estreito e frágil limite entre o abandono e o ingurgitamento.
Através da recusa do objeto, na anorexia, e da sua ingestão e posterior expul-
são, na bulimia, essas moças buscavam estabelecer um limite, inscrever uma separação,
uma falta, até então impossível de ser simbolizada, tal qual o fort-da freudiano. Da
54
UMA MELANCOLIA TIPICAMENTE...
mudez materna, as poucas coisas que conseguiam escutar de suas mães endereçadas a
elas foram, em geral, relativas à sua alimentação. E, portanto, através dessas manifesta-
ções é como se elas dissessem – pelo ato, e não pela palavra – que não é do objeto da
necessidade (orgânica) que precisam para viver, mas, fundamentalmente, de desejo –
objeto da necessidade psíquica.
O “ter que se virar por si mesma” manifesto por essas moças (a partir das rela-
ções parentais, em especial, com suas mães) apresenta uma estreita relação com o ideal
de autonomia, como vimos antes, tão presente em nossa cultura – o poder prescindir do
outro. Ou seja, o “façam-se por si mesmas” – como conseqüência do sentimento de
abandono e desamparo – era tomado por elas quase como um imperativo, que, aliás,
mostra-se similar ao que, segundo elas, provavelmente também teria acontecido com as
suas mães em relação às suas próprias mães. E esse parece ter sido um traço identificatório
para essas moças, que, no entanto, se percebiam como insuficientes, incapazes de dar
conta. Tomavam o “fazer-se por si mesmo” como um imperativo e, diria mais, como uma
necessidade vital, porém com um enorme vazio no lugar das ancoragens, das referênci-
as que as pudessem orientar.
Assim, para essas moças, a mesma busca de um olhar materno que desenhasse
seu corpo, que lhe desse uma forma, uma imagem, com a qual elas pudessem identificar-
se, obter um reconhecimento enquanto sujeito, também acontecia em relação aos seus
namorados: a busca de um olhar masculino que as delineassem em um corpo feminino,
que as definissem enquanto mulher.
Então, elas esperavam dos namorados um olhar, um olhar que não receberam de
suas mães ...um olhar como aquele que os príncipes dirigiam às mocinhas – revestindo-
as de um brilho especial – nas estórias que costumavam ler, quando crianças... um olhar
como aquele que os homens apaixonados dirigiam às suas amadas nos vários romances
que leram e que ainda lêem, embora, de certa forma – assim como, desde as suas
brincadeiras com as Barbies, em que encenavam a impossibilidade deste amor –, elas
sempre soubessem que esse príncipe não existe.
Mesmo assim, não cessavam de buscá-lo, ...de buscar este olhar que as permi-
tisse viver, ...que as permitisse existir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade . Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.
2 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro . São Paulo: Perspectiva, 1992.
3 AULAGNIER, P. Observações sobre a feminilidade e suas transformações. In: CLAVREUL,
J. e outros. O desejo e a perversão. Campinas: Papirus, 1990.
4 BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. Lisboa: Edições 70, 1996.
5 BRUSSET, B. Anorexia mental e bulimia do ponto de vista de sua gênese. In: URRIBARRI,
R. Anorexia e bulimia . São Paulo: Escuta, 1999.
6 _____. Bulimia: introdução geral. In: URRIBARRI, R . Anorexia e bulimia. São Paulo, Escuta,
1999.
55
TEXTOS
56
TEXTOS
UMA FALHA SÚBITA NA
LÓGICA DO UNIVERSO
Maria Rosane Pereira Pinto *
RESUMO
Partindo da diferença entre amor e paixão amorosa, o texto aborda o luto na
clínica do psicossomático, a partir de uma leitura do corpo como lugar de inscri-
ção da paixão. Principalmente, interessa interrogar os mecanismos do
psicossomático do ponto de vista do inconsciente, do corpo e da paixão, em
suas implicações na clínica do luto. Por fim, o texto também se propõe a avan-
çar e lançar algumas questões sobre o intrincado desdobramento da transfe-
rência no sujeito em sofrimento psicossomático, assim como as dificuldades
na direção da cura.
PALAVRAS-CHAVE: psicossomático; corpo-paixão; amor transferencial
ABSTRACT
The text approaches, from the difference between love and passion, the mourning
in the psychosomatic clinic, from a concept of body as the place of passion’s
inscription. It has the interest of questioning, mainly, the psychosomatic
mechanisms from the point of view of the unconscious, the body ant the passion,
and their implications in the mourning clinic. Finally, the text intends to advance
and to propose some questions about the intricate unfold of transference on the
subject in psychosomatic suffer, as qell as the difficulties in cure’s direction.
KEYWORDS: psychosomatic; body-passion; transference love
*
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e daAssociation Psychanalyse
et Médecine (Paris).
57
TEXTOS
A ssim se define o amor no poema que Marguerite Duras (1982) nos deu a ler sob o
título “A Doença da Morte”:“O amor, ele talvez tenha surgido de uma falha súbita
na logica do universo’’.
Sem fazer aqui um comentário da obra, o que mereceria um espaço especial,
retenhamos apenas que este pequeno tratado sobre o amor nos ensina muita coisa
sobre a paixão abismal, sobre o impossível da relação sexual e sobre o desejo e a morte
como condição da vida. Especialmente, guardemos esta noção de “falha súbita’’ da
qual surgiria o amor.
Sabemos que o amor efetivamente supõe uma perda, uma separação, uma falha.
É em conseqüência desta separação que se inscreve enquanto significante que o amor
pode sobreviver, que o sujeito pode fazer laço com o outro. Por sua vez, a paixão
amorosa se desencadeia justamente a partir da ausência do outro, ausência cujo luto o
sujeito não consegue fazer, logo, não significada.
Partindo dessa diferença básica entre amor e paixão amorosa, tentaremos abor-
dar aqui o fenômeno clínico que conhecemos por psicossomático, tomando-o pelo viés
do corpo como lugar de inscrição da paixão. E, na medida em que a paixão supõe o luto
impossível de uma separação, a hipótese sobre a qual se fundam nossas interrogações
é a de que se trataria, em vários casos de sujeitos em sofrimento psicossomático, de
uma paixão que se inscreve de forma melancólica no corpo do sujeito. Não se trata,
porém, de propor o psicossomático como resolução para a melancolia, menos ainda de
sugerir uma estrutura para este fenômeno. Interessa-nos, aqui, interrogar alguns de
seus mecanismos do ponto de vista do inconsciente, do corpo e da paixão em suas
implicações na clínica do luto.
Também cabe salientar que temos bastante presente quanto os temas do corpo
e da paixão restam bastante complexos, por vezes mesmo evitados, nas referências
conceituais da clínica psicanalítica, sobretudo se sucumbimos nós mesmos a uma pai-
xão por nosso corpus teórico. No entanto, uma tal complexidade não impede que a
presença do analista, por exemplo, em um serviço de oncologia, dentro de um hospital
geral2, possa revelar-se fecunda, na exata medida em que noções como corpo e pathos,
para a clínica médica, diferem radicalmente daquelas que interessam à clínica psicanalí-
tica. Mas é importante não perdermos de vista, igualmente, o fato de que não conside-
ramos o câncer como o paradigma do psicossomático. Ao contrário, em nosso entendi-
1
A citação em latim é de autoria desconhecida, pois se trata de um ditado popular. Freud a cita em
Notre rapport à la mort , em Actuelles sur guerre et la mort, Presses Universitaires de France,
1988, Paris, p.155.
2
No caso, o serviço de oncologia doHôpital de la Pitié-Salpêtrière, em Paris, serviço do Professor
R. Khayat, junto ao qual participo do trabalho de groupe de parole (psicoterapia de grupo) com
pacientes, sob a coordenação da psicanalista Josette Olier.
58
UMA FALHA SÚBITA...
3
Seminário de Psicanálise e Psicossomática da Association Psychanalyse et Médecine sob a
coordenação de Houchang Guilyardi no Hopital de la Pitié-Salpêtrière, Paris.
59
TEXTOS
4
Caso clínico apresentado por Denise Sauget sob o título ‘’Paroles de Patients’’ , nas jornadas
clínicas da Association Psychanalyse et Médecine – ‘’Le Corps a Ses Raisons’’ , em novembro
2000, no Hopital de la Pitié-Salpêtrière, Paris.
5
Tais noções sobre o psicossomático se encontram desenvolvidas por Cosimo Trono em‘’Figu-
res de Double’’- Ed. Denoel, Paris, 1986. Aderimos parcialmente às teses deste trabalho, embora
a obra em seu conjunto seja admirável. Sobretudo guardamos reserva quanto à idéia de considerar
o psicossomático como resolução para a melancolia, sugerida pelo autor em várias passagens da
obra.
60
UMA FALHA SÚBITA...
te, vem trazer a esta família o luto de sua morte, morte precedida de longo sofrimento
físico. Hoje, Madame A, depois de anos de errância em servicos de oncologia e de
várias cirurgias para extração de tumores malignos iniciados por um câncer de mama,
sofre de tumores na bacia, a mesma região do corpo que sua pequena irmã teve fatal-
mente queimada. Sua filha, por sua vez, também aos 18 meses de idade, teve as mãos
gravemente queimadas em um acidente doméstico e atualmente, tem ainda sofrimento
decorrente, já que teve seus dedos ‘’colados’’ do mesmo modo que a menina morta por
queimaduras. Além disso, a filha desta filha, logo, a neta de Madame A, hoje adolescen-
te, é obrigada a dormir com um aparelho ortopédico na região da bacia, em razão de uma
anomalia importante, não se sabe se congênita ou adquirida.
Por razões óbvias, não nos aventuraremos aqui a fazer um estudo de caso de
Madame A. Contentamo-nos em acrescentar a esta pequena vinheta o fato de que, em
seu discurso, a paciente enuncia uma enorme angústia de morte, carregada de culpabi-
lidade. Em sua fala desfilam amor, ódio e desejo de morte em relação ao outro, este outro
que ela tenta desesperadamente assimilar de maneira quase canibalística na situação
clínica. E se escutamos uma angústia de morte em suas palavras, escutamos também
uma firme recusa a falar da morte real, aquela que seu corpo lhe anuncia 6.
Aliás, o discurso desses pacientes demonstra claramente o que Freud queria
dizer quando escreveu, em 1915:
‘’…nosso inconsciente não acredita na própria morte, ele se conduz como se
fosse imortal. O que nós chamamos de ‘’inconsciente’’[…] não conhece absolutamente
nada de negativo, nenhuma negação – nele os opostos coincidem – e por isso ele não
conhece também a própria morte, à qual não podemos dar senão um conteúdo negativo.
Assim, nada de pulsional favorece a crença na morte’’ (Freud, 1988, p.151-152).
Neste mesmo trabalho, Freud nos ensina igualmente em que medida o desejo de
morte em relação ao outro engendra angústia para o sujeito em função da culpabilidade.
Somos também ali advertidos para o fato de que não devemos negligenciar dissociando
excessivamente esta realidade psíquica da realidade factual. Se a morte não existe para
nós, nem por isso o inconsciente deixa de lidar com a morte do outro. A morte é mesmo
a única punição que o inconsciente conhece para o outro. De sorte que praticar o
assassinato é mesmo tarefa usual do inconsciente, e qualquer atentado contra nosso
eu todo poderoso e soberano se inscreve como crime de lesa-majestade.
É também entre esta angústia de morte e o irrepresentável da própria morte que
parece debater-se o sujeito em sofrimento psicossomático. Isto de certo modo anula o
6
Tais considerações decorrem de meu trabalho com a paciente em psicoterapia de grupo na
Salpêtrière. Seu caso clínico foi objeto de comunicação de Josette Olier, com quem a paciente teve
atendimento individual, nas jornadas clínicas da A.P.M. já citadas anteriormente, sob o título
‘’Hiéroglyphes du Corps’’.
61
TEXTOS
aspecto delirante dos projetos de vida que alguns destes pacientes fazem, na mais
completa denegação da catástrofe na qual se encontram. Ao mesmo tempo, é nesta
impossibilidade de representação da própria morte que podemos situar, nestes casos, o
que Freud chama de ‘’escolha da doença’’. É justamente porque, inconscientemente, a
idéia da imortalidade é prevalente que o corpo pode ser alterado, como se o sujeito não
fosse suscetível de morrer com ele.
Neste sentido, acidente e intenção se superpõem, ou diríamos mesmo que se
fundem, numa espécie de paradoxo lógico. O acaso tem, na doença orgânica, não rara-
mente, o mesmo papel que no encontro de Édipo com Laio: acidente e intenção se
fusionam no desejo inconsciente, deixando a paixão amorosa expandir-se, ao preço do
real insuportável para o sujeito.
Era talvez neste registro do acaso que pensava Paul Schilder quando em 1935,
em seu tratado sobre “A Imagem do Corpo”, diz, da lesão orgânica que ‘’[...] na maioria
dos casos, ela é completamente acidental e intencional’’, e isto, não sem razão, no
capítulo onde ele propõe uma definição para a ‘’estrutura libidinal da imagem do corpo’’
(1998, p.204).
Assim, o sofrimento psicossomático tem algo deste enfant-roi que arranca os
próprios olhos para não olhar para o real insuportável do desejo cumprido, ‘’realizado’’.
Como Édipo, só resta extrair o órgão no qual estava inscrita a paixão incontrolável, no
qual a Lei não conseguiu imprimir a marca do impossível retorno ao corpo materno. E
este impossível insiste, mais ainda, no gozo mortífero da repetição que a nova lesão ou
a lesão suplementar vêm propiciar, reencontros que só a morte real pode fazer cessar,
esta mesma morte da qual nada se suporta saber.
Aliás, quanto a este insabido da morte, nada mais espantoso, por exemplo, nas
situações psicoterápicas de grupo no hospital, do que o anuncio da morte de um
paciente ausente. Há mesmo os que enunciam o clássico: ‘’Mas como pode? Ainda
ontem encontrei-o, falamos de um livro, ele estava tão bem!’’, quando se tratava de um
paciente dito ‘’terminal’’, situação para a qual vários deles se encaminham. Mas, na
verdade, a maioria prefere nada dizer, a morte sendo-lhes completamente estranha.
Tais reações mostram quanto estamos na presença do inconsciente quando
lidamos com o real do corpo, este mesmo corpo do qual afirmamos aqui, embora de
maneira apenas esboçada, ser o lugar de inscrição da paixão. Quando nos referimos à
‘’inscrição no corpo’’, nos referíamos, evidentemente, a uma inscrição no inconsciente.
Por isso, nos parece importante retomarmos a idéia de que o que Freud definiu como
sendo o psíquico, o inconsciente, não é outra coisa, para o falaser, senão o orgânico.
Idéia extremamente complexa mas de absoluta pertinência, que nos propõe Charles
Melman em seu trabalho ‘’Nouvelles Etudes sur l’Inconscient’’ [(1985)1999).
Neste seminário, Melman argumenta que, na medida em que todas as funções de
nosso corpo tais como situação dos orifícios, entradas e saídas, aparelhos sensoriais,
secreções endócrinas, grau de vigilância, etc., são comandadas pelo inconsciente, não
62
UMA FALHA SÚBITA...
viabilizar o acesso ao amor possível de ser vivenciado pelo analisante, um amor que
permita a elaboração do objeto, logo, da separação.
Esta passagem da paixão amorosa ao amor de transferência que encaminha o
sujeito em direção ao outro, apesar de toda a dificuldade que revela, resulta em um
dinamismo psíquico do qual, a despeito dos prognósticos terríveis para o biológico, a
sobrevivência do sujeito, e logo de seu corpo, surpreende estas previsões. Resta sem-
pre, do lado das previsões nestes casos, a questão de saber o que fez com que ainda
não se tenha cumprido o prognóstico, e somos tentados a responder: uma falha súbita
na lógica do universo , do universo abismal da paixão. É dessa falha que sobrevivemos
todos, é a partir dela que podemos suportar a vida, obrigação maior de todo o ser
humano vivo, como nos lembrava Freud.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 DURAS, Marguerite. La Maladie de La Mort. Paris: Editions de Minuit, 1982.
2 FREUD, Sigmund. Actuelles sur La Guerre et la Mort. Notre Rapport à la Mort. In:_____.
Obras Completas. Paris: P.U.F., 1988, p. 151-152.
3 HASSOUN, Jacques. Les Passions Intraitables . Paris: Flammarion, 2000, p. 68-69.
4 MELMAN, Charles. Nouvelles Etudes sur L’Inconscient, lição de 11/06/1985. Paris: Edições
da Association Freudienne Internationale, 1999, p. 219-221.
5 SCHILDER, Paul. L’Image du Corps. Paris: Gallimard, 1998.
64
TEXTOS
LÍQUIDOS PRECIOSOS
DE LOUISE BOURGEOIS
Elida Tessler*
RESUM0
Este texto se propõe a apresentar o trabalho da artista Louise Bourgeois, de
forma a associar suas construções espaciais ao seu pensamento em torno do
ato de criação. A instalação intitulada Precious Liquids, de 1992, foi focalizada
como elemento de análise, no qual a relação entre arte e melancolia se faz
presente. A produção do artista Casper David Friedrich e a do cineasta russo
Andrei Tarkovski foram também convocadas a contribuir para essa.
PALAVRAS-CHAVES: Louise Bourgeois; arte contemporânea; melancolia; ins-
talação
ABSTRACT
This text intends to present the work of the artist Louise Bourgeois, in order to
associate its spacial constructions to her thought around the act of creation.
The installation entitled Precious Liquids, of 1992, was focused as an analysis
instrument, where the relation between art and melancholy is present. The
production of the artist Casper David Friedrich and of the russian motion-picture
director Andrei Tarkovski were also convoked to contribute to this discussion.
KEYWORDS: Louise Bourgeois; contemporary art; melancholy; installation
*
Artista plástica. Professora do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena, ao lado de Jailton
Moreira, o Torreão – espaço de intervenção em arte contemporânea, em Porto Alegre.
65
TEXTOS
coisa tão inútil como a outra, diz ele, em seu vertiginoso poema “Tabacaria”), apalpando
o impossível “tão estúpido como o real”, absorvendo tensões que posteriormente
passam a derramar-se em suas instalações. Louise Bourgeois não exclui a improvisação
de seu método nem o lado racional. Ela olha o mundo e se apropria de muitas de suas
formas, singelos acontecimentos e grandes catástrofes subjetivas.
Podemos dizer que a reflexão é uma constante em sua atividade, decorrendo daí
a enorme quantidade de escritos já publicados e outros tantos fora de nosso alcance.
Porém, nada de interpretações antecipadas... Os objetos apresentam-se, e somente uma
visita demorada em suas proposições poderá fazer com que o seu pensamento encontre
um certo rebatimento em nosso corpo.
Louise Bourgeois nasceu em 1911, na França. Em 1938, muda-se para Nova York,
onde vive atualmente, em plena atividade. A artista diz desenhar como quem escreve e
assume seus desenhos como um verdadeiro diário, chamando-os de “pensamentos-
pluma”. São centenas de aquarelas, desenhos a bico-de-pena, gravuras e pinturas a
óleo, em suportes dos mais variados, desde cantos de páginas de agendas a telas
tradicionais de pintura. Tudo isso a nos dizer do olhar da artista diante do mundo.
Muitas esculturas e instalações também redimensionam nossa atenção para os deta-
lhes de um cotidiano. Peças de vestuário, vidros de perfume, carretéis de linha, agulhas,
banquinho de cozinha, espelhos e outras apropriações de objetos ordinários ali estão a
criar lugar de memória. Louise Bourgeois constrói vários ambientes que assumem a
forma de recinto, e que ela denomina Cells. Precious Liquids data de 1992. Antes dele,
uma série numerada de I a IV, e ainda outras com títulos bastante instigantes, como por
exemplo, Arch of hisyery (1993), Choisy (1991, com referências de sua casa de infância
em Choisy-le-Roy), Eyes and mirrors (1993) e Red Room (1994). Diz a artista que cada
cela representa diferentes tipos de dor: a física, a emocional e psicológica, a intelectual.
Para ela, cada cela trata também de um medo e do prazer do voyeur. Ali, há a fricção entre
olhar e estar sendo olhado ao mesmo tempo, provocando excitação. Vidros, lentes e
espelhos em ato.
Acompanhar o pensamento de Louise Bourgeois permite arriscar certos deva-
neios. Ele abre possibilidades para uma auto-análise quase compulsiva. São muitos os
elementos que falam de uma origem: a história familiar, as descrições da casa de infân-
cia, da convivência junto aos pais em um famoso atelier de restauração de tapeçarias
(gobelins), em Aubusson e depois Bièvre, na França. E por este viés, um longo enredo
de fios, de tramas, de tingimentos, de líquidos derramados, de suores, de odores e
outros medos: “Não há nada errado com os medos. Apenas conheça-os melhor do que
eles o conhecem. Sem medo, nada teria sido feito no mundo. Toda precaução nasce do
medo. O medo da fome gerou bons cozinheiros na França do sex XVI.“ (Bourgeois,
2000, p.275).
É preciso freqüentar as suas obras para perceber que há um sentido muito forte
no fazer que ultrapassa o dizer, o escutar, o ver, o ler e todos os outros verbos transiti-
67
TEXTOS
vos aqui implicados. O ato de criação sempre ensaia a sua coreografia e esboça uma
paisagem outra. Busca novas perspectivas e outros pontos de fuga. Bourgeois cria
cabines para entendimentos dispersos. O que quer a artista? E o que pode querer o
freqüentador de seu trabalho, quando este se depara com aqueles tão familiares estra-
nhos objetos colocados estratégicamente e configurando lugares?
Vejamos: Precious Liquids é uma peça que foi elaborada em 1992 e apresentada
na Documenta de Kassel desse mesmo ano. Vista do exterior, esta peça, que é realmente
um compartimento, lembra um grande e velho barril, feito com madeira de cedro, medin-
do 427 cm de altura, com diâmetro de 442 cm1. Uma gigantesca célula! Entrando, temos
um espaço circular, escuro, ôco, fechado, porém com duas portas garantindo-nos uma
entrada e uma saída, uma passagem, um percurso sem pânico. Para que estejamos ainda
mais seguros, a artista incorpora uma inscrição em halo de aço, circundando este
habitáculo: “A arte é uma garantia de sanidade”. Pois se é necessário um excesso de
sentimento melancólico no torpor desta visita, há também a oportunidade de um certo
exorcismo dos nossos fantasmas remanescentes.
Pois para a artista, assim funcionou. “A arte é uma garantia de sanidade – Sim, é
verdade. Em outras palavras: a arte o manterá no nível, certo! A arte o impedirá de ir a
extremos ou de sair do contexto...” (Bourgeois, 2000, p.250). Não se trata apenas de
pensar em úteros ou líquidos amnióticos, em analogias diretas ao corpo feminino. Sabe-
mos que este universo está em jogo, de forma bastante explícita, mas nem por isso
reducionista. São memórias da infância, e para quem já leu os diários de Louise Bourgeois,
mantidos desde os seus treze anos de idade até hoje, sabe que a figura do pai ocupa
lugar importante em seu processo de criação.
Em zona iluminada, no interior da célula, encontramos uma cama com estrado de
ferro com uma superfície irregular, onde repousa uma poça d’água. Em torno dela,
quatro hastes também em ferro, com ramificações feito galhos, que servem de suporte
para várias “bolhas” de vidro incolor. Ânforas em suspensão. Nelas, a pouca luz reflete
e se expande, desenhando na parede os seus contornos, anunciando o poder da trans-
parência. Na zona de sombra, quase atrás da porta, há algo mais de corpo: um casaco
masculino pendurado, um velho manteau, a figura de um homem grávido, talvez, pois
1
Temos a informação de que se trata realmente de um reservatório de água, comum de ser visto
nos tetos dos edifícios de Nova York. O interessante é que a artista o usa como lugar de distribui-
ção de líquidos. A escolha deste objeto, se assim podemos dizer, corresponde a uma lembrança de
LB acerca de seu primeiro atelier, que era uma pequena casinha sobre um telhado. As questões
referentes a esses “lugares de memória” podem ser conferidas na monografia preparada por
Marie-Laure Bernadac, Louise Bourgeios (Paris, Flammarion, 1995). Ver reprodução da instala-
ção na capa desta Revista.
68
LÍQUIDOS PRECIOSOS...
ali dentro está abrigada uma outra veste, desta vez infantil, onde estão bordadas as
palavras Merci / mercy. Francês / inglês. Obrigado / compaixão. Pequena travessia
biográfica de Louise Bourgeois: o vestido pertencia a uma menina de 12 anos. Aos
treze, ela inicia seu diário, relatando tomar conhecimento que o seu pai tem uma amante,
que mora em sua própria casa e que é a sua tutora. E ainda o que é mais forte, que sua
mãe sabe, cala e consente. “Temos o suor, as lágrimas, o muco, a saliva, a cera do
ouvido, a bílis, a urina, o leite, o pus, o sêmen e o sangue. A cela Precious Liquids
(1992) é sobre uma menina que cresce e descobre a paixão em vez do terror. Ela pára de
ter medo e descobre a paixão. O vestidinho que se refugia no casacão representa a
criança que passou por emoções fortes e assustadoras. O casacão é uma metáfora do
inconsciente. Estou em paz com meu inconsciente. Confio nele, posso achá-lo embara-
çoso, mas não posso estar enganada” (Bourgeois, 2000, p.255).
Para completar o “mobiliário” dessa pequena e úmida habitação, algumas gran-
des esferas. Duas em madeira e uma em borracha preta. E nem só de gotejamentos se faz
essa obra. Há também o caráter das evaporações, e o formato redondo não deixa de
estar relacionado ao que há de cíclico nesta associação dos objetos, seus lugares e as
emoções ali impregnadas . “As emoções intensas se tornam líquido – um líquido preci-
oso” (Bourgeois, 2000, p.235).
71
TEXTOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 AGAMBEN, Giorgio. Stanze – Parole et fantasme dans la culture occidentale . Paris: Payot &
Rivages, 1998.
2 BERNADAC, Marie-Laure. Louise Bourgeois. Paris: Flammarion, 1995.
3 BOURGEOIS, Louise. Destruição do pai – Reconstrução do pai. São Paulo: Cossac & Naify,
2000.
4 TARKOVSKI, Andreaei. Esculpir o tempo . São Paulo: Martins Fontes, 1998.
72
TEXTOS
DEPRESSÕES DA CRIANÇA*
Jean Bergès **
Gabriel Balbo ***
RESUMO
O texto trata das depressões infantis ligadas à morte dos pais na família moder-
na, nas quais a mãe é mantida, em todo seu poder, como aquela de onde
provêm todos os objetos simbólicos. Os autores apontam dois fatores etiológicos
relacionados à modernidade: 1) o declínio da referência a uma vontade divina e
a antecipação de um saber (nas predições genéticas e promessas não cumpri-
das); e 2) as imagens modernas da pulsão de morte (doença fatal ligada ao
gozo do morto e os “acidentes”).
PALAVRAS-CHAVES: depressão infantil; morte dos pais; saber; luto; predições
ABSTRACT
The text is about child depressions connected to the father’s death in the modern
family, in which the mother is kept in her full power as the one where all symbolic
objects come from.The authors point out two ethiologic aspects related to
modernity: 1) the decline of a divine will and the anticipation of a knowledge (in
the genetic predictions and non fulfilled promises); and 2) the modern images of
death instinct (fatal illness linked to the dead’s enjoyment and the “accidents”).
KEYWORDS: child depression; father’s death; knowledge; mourning; predictions
*
Tradução de Maria Rosane Pereira Pinto.
**
Neuropsiquiatra, psicanalista (Paris), membro da Associação Freudiana Internacional. Autor,
juntamente com Gabriel Balbo, de «A criança e a psicanálise», ed. Artes Médicas, 1997; « Jeu de
places de la mère et de l’enfant; essai sur le transitivisme », ed. Erès; « Autisme e défaillance
cognitive chez l’enfant», ed. Erès.
***
Psicanalista (Paris), membro da Associação Freudiana Internacional. Fundador, juntamente
com Jean Bergès e Marika Bounes-Bergès, daEcole de psychanalyse d’enfant à Paris. Diretor da
revista «La psychanalyse de l’enfant», editada pelaAssociation Freudienne Internationale.
73
TEXTOS
gravidez…
Assim, isto com que nos deparamos cada vez com maior freqüência nas curas,
não é mais tanto com o trabalho de luto, na medida em que ele está ligado à perda do
objeto amado. Deparamo-nos, bem antes, com a agressividade mortal que retorna em
uma regressão oral contra esse objeto mesmo, agressividade recalcada enquanto tal.
Trata-se de“odiá-lo de morte’’ 1 por estar morto, nisto que vem marcar como
impossível o luto das identificações ao objeto e conduz a regressão à identificação
narcísica.
Resta sublinhar, na nossa opinião, nesta tentativa de articular a modernidade
com a depressão das crianças, alguns aspectos que apresentam uma dificuldade em seu
trabalho. Primeiramente, a importância do saber nas depressões, no luto e na melanco-
lia.
Depois de enunciar os pontos comuns entre o luto e a melancolia, Freud assina-
la que é a falta de estima de si do melancólico que faz traço diferencial. Em seguida,
aplicando a essa doença o que acaba de descrever do luto, ele sublinha: “…em resumo,
isto nos levaria a relacionar, de uma maneira ou de outra, a melancolia a uma perda do
objeto que é subtraída à consciência, diferentemente do luto, no qual nada do que
concerne à pessoa é inconsciente’’. O melancólico pode saber que ele perdeu e não o
que ele perdeu.
Parece-nos que, no que diz respeito à depressão, a problemática é, antes, grama-
tical e traz consigo a negação de um futuro anterior ‘’eu não terei sido tal como eu havia
idealizado’’. Assim, o sujeito vai ser representado junto ao significante mestre, a morte,
por um outro significante, o saber, no caso do luto. O trabalho do luto consiste em fazer
emergir esse saber do desconhecimento, da denegação ou da recusa.
A figuração do sonho e os falsos reconhecimentos vêm confortar o eu nesse
desconhecimento fundamental fornecendo imagens, identificações imaginárias. Note-
mos que numerosos ritos funerários não se endereçam apenas ao corpo enquanto
suporte do imaginário, mas também àquilo no qual ele funciona: alimentação, bebida,
perfume. As funções privadas de todo o funcionamento pela morte são, entretanto,
alimentadas e sustentadas no luto. Existem civilizações que prescrevem, durante o luto,
a tarefa de levar para depositar sobre o tumulo do defunto, o casaco, o guarda-chuva,
o chapéu, os sapatos, necessidades pela mudança das estações. Assim se encontra
preservada a norma fálica das funções que, ao final de um ano, por não ter funcionado,
serão consideradas como perdidas.
1
Em francês:lui en vouloir à mort, equivalente desta expressão em português. Porém, o emprego
do verbo ‘ vouloir (querer, desejar firmemente) na expressão em francês conota com maior força
a implicação do sujeito. Se traduzíssemos literalmente seria: ‘’querê-lo até a morte’’, no sentido
de ‘’até que este querer implique a sua morte’’. N.de T.
75
TEXTOS
O mesmo se passa com o menino que, tendo morrido seu coelho, acomodou-o
no congelador, onde ele o visita, já que se tratava, para ele, de seu filho adotivo, estan-
do sua angústia ligada ao fato de que, neste caso, o filho havia morrido antes do pai.
Estes efeitos, estas colocações em ato daquilo que está em jogo no luto consti-
tuem, de certo modo, a ruína das ilusões, ao mesmo tempo em que se impõe o que Freud
chama de prova da realidade.
Esta problemática do saber em sua relação com o luto, com a melancolia e com o
futuro anterior parece poder ser explorada em duas direções clínicas: a predição das
doenças genéticas e as promessas não cumpridas.
Tornou-se possível a predição das doenças genéticas que levam, seja à morte
do feto ou da criança em um tempo previsível, seja a malformações orgânicas ou meta-
bólicas alterando determinadas funções fisiológicas ou cognitivas. Essa predição se-
gura feita aos pais toca em uma das articulações teóricas essenciais para a formação da
função simbólica, a saber, as relações entre o que provém da antecipação da mãe ou do
pai no momento do estádio do espelho, ou seja, para Lacan, as contingências da emer-
gência do sujeito em sua articulação com o narcisismo e com o eu.
Esta antecipação, que é constituída pela apreensão da imago ligada à imaturação
fundamental da criança (em particular postural e motora), faz da mãe a pessoa em posi-
ção de terceiro. É enquanto tal que a criança vai tomá-la como testemunha de sua
descoberta no momento em que se volta para ela, e que a mãe, por sua motricidade e
com suas palavras de acompanhamento vai ela mesma antecipar algo da maturação que
está por vir. Logo, dupla antecipação, que constitui a mola mestra da articulação ao
simbólico. A mãe, antecipando as atitudes, a gestualidade, interrogando os movimen-
tos e falando deles, dá à criança o crédito daquilo que ela é suscetível de fazer, de olhar,
de dizer e também do que ela sabe. Ora, é essa antecipação simbólica que vai encontrar-
se pervertida pelo anúncio de um saber sobre a doença genética que não se encontra
regida pelo simbólico, mas pelo real do gene em sua malformação. Não apenas a mãe
sabe, como também ela não pode fazer sinal deste saber sem ser aniquilada, sem opor-
se fundamentalmente à possibilidade de a criança ter acesso ao saber: é o saber que ali
faz obstáculo. Não se trata, neste caso, das condições que mostram que o luto da mãe
que sabe se articula com a melancolia da criança que não sabe?
Talvez seja possível, nesta conseqüência da disposição da ciência, em jogo para
o bem de todos e que não deixaria nada para a falta de saber dos pais e da sociedade,
reencontrar o limite funesto, a Até, que Antígona ultrapassa indo em direção ao túmulo
que Creonte lhe preparou, como nos lembra Lacan. Limite no qual ela se detém um
instante justamente para manifestar o luto daquilo que ela teria antecipado, quando,
entretanto, ela se diz como já fazendo parte dos mortos.
O segundo ponto sobre o qual nos permitimos uma interrogação é o que pode-
mos situar do lado da promessa não cumprida. Cada vez com maior freqüência, deparamo-
nos com casos nos quais está em jogo uma palavra comprometida em uma antecipação,
76
DEPRESSÕES DA CRIANÇA
objeto de uma espécie de nota promissória a resgatar no futuro. Por exemplo, o caso de
um menino ao qual, quando ele tinha cinco anos, o pai anunciou que sofria de leucemia
e lhe restavam apenas dois anos de vida. Acontece que esse pai morreu só quando o
menino tinha dezesseis anos. Tal era a conseqüência desta falta de palavra do pai: o luto
impossível, uma vez que já havia sido feito às avessas; efeito devastador do trabalho de
luto que mostra seu avesso, ou seja, o ódio, ainda mais gravemente manifesto na traição
e na luta. Assim, as vicissitudes da promessa têm a mesma estrutura que as falhas da
antecipação forçada das profecias genéticas.
Desde então, é em uma tensão imaginária para responder a isto, que a criança se
situa no estado de ilusão, como ela se coloca na relação de objeto, para evitar confron-
tar-se com sua impotência, sustentando-se no lugar de falo para a mãe. Quando este
destino não acontece, o futuro abolido vai exprimir-se no condicional que abre a voz ao
julgamento, à culpabilidade. A partir daí surge a modalidade do luto no futuro anterior,
marcado pela negação: ‘’eu não terei sido’’, ao mesmo tempo projetado sobre a ilusão e
tomado na falha do passado.
Eram estes os pontos sobre os quais nos interessava intervir.
77
TEXTOS
DO DEUS DECAÍDO
AO HOMEM *
Houchang Guilyardi **
RESUMO
Neste ensaio, o autor discorre sobre o impasse do melancólico diante da exi-
gência de um triunfo e de um ideal de plenitude confrontado a um fracasso
inexorável. Discorre sobre os elementos essenciais da lógica da melancolia
mostrando o quanto esta enuncia traços do laço social contemporâneo. Traz
também reflexões sobre o lugar dos antidepressivos e do álcool na dinâmica
dessas psicopatologias.
PALAVRAS-CHAVES: melancolia; gozo; neurolépticos; álcool
ABSTRACT
In this essay the author discourses about the melancholic stalemate in the
presence of the demanding of a triumph and a plenitude ideal versus a inexorable
failure. Discourses about the essential elements of melancholic logic showing
how it enunciates features of the contemporary social link. It also brings reflections
about the place of antidepressant and of alcohol in this psychopathologies
dynamic.
KEYWORDS: melancholy; enjoyment; neuroleptics; alcohol
*
Tradução de Maria Rosane Pereira Pinto.
**
Psicanalista, Presidente da Association Psychanalyse et Medicinede Paris.
78
DO DEUS DECAÍDO AO HOMEM
T entarei propor aqui uma perspectiva diferente para o que é geralmente considerado
como um desastre. O que aparece pequeno e miserável como uma decadência,
desejo apresentá-lo exatamente ao contrário, como um grande passo e, na realidade,
uma verdadeira coragem. Dito de outro modo, desejo apresentá-lo como o primeiro
passo, ainda que hesitante e inseguro, para uma humanização consciente, inscreven-
do-se no que indica Lacan sob sua fórmula: “Cessar de sê-lo para tê-lo ou não tê-lo’’ 2,
mudança de posição que tratarei de explicar gradualmente.
Não me parece absolutamente deslocado começar pelo que poderia ser chama-
do de Psicanálise lição 1 e dizer algumas palavras sobre o círculo, sobre o objeto a e
sobre o falo, a fim de poder apresentar progressivamente minhas proposições.
Para isso, é necessário considerar, primeiramente, pelo menos duas hipóteses:
A primeira diz respeito à fundação do sujeito da consciência. Admitamos que
um dia o sujeito perceba e, neste momento, imagine-se como o Um, uma sensação de
totalidade, um todo. É isto o que descreve Lacan no Estádio do Espelho e que podemos
esquematizar com ele a partir de um círculo ou de uma esfera. Percorrer as bordas de uma
tal esfera é algo efetivamente sem fim, infinitamente circular, ao passo que duas retas
paralelas, sabemos bem que ao horizonte, etc… Esta ilusão permanece como apelo à
vida, mas ficar ali fixado poderá constituir um estado psicótico, entre outros.
A segunda hipótese é de que todo ser humano comporta em sua estrutura um
corte (ou vários, mas isto veremos mais tarde). Corte constitutivo do ser humano ou
‘’parlêtre’’3, termo que indica a intervenção da linguagem nessa situação; dois elemen-
tos se separam do sujeito ou então digamos que um pedaço se separa do sujeito.
Podemos chamá-lo de falo, deixando na parte restante uma vacuidade na qual poderá
vir alojar-se ulteriormente a imagem de um objeto desejado, nomeado por Lacan de
objeto a, motor de vida.
Apresento estes dois aspectos sob a forma de hipóteses. Para aqueles que as
apreendem, sua verificação é plural e quotidiana. Pode-se constatar que, para todo ser
humano vivo, existe assim uma barra e sua necessidade. Uma barra que deve manter-se
e que se mantém em um lugar. Mas, constatação banal: ainda que estranho, esse lugar
não se superpõe necessariamente aos limites do corpo próprio, mas eventualmente ao
interior mesmo desse corpo ou a um outro corpo físico ou imaginário. As diferentes
modalidades designam objetos diferentes e posições distintas na estrutura, constituin-
do um igual numero de diferentes gozos: avatares da condição humana em sua varieda-
de.
1
Expressão de um paciente, relatado por Henri Ey, em Etudes Psychiatriques, Tomo 3.
2
Em francês: “ Cesser de l’être, pour l’avoir ou pas’’.
3
Em português, termo traduzido por “falasser’’.
79
TEXTOS
Temos, assim, várias letras: “A’’ 4, -ϕ, “a’’ e φ. Cada parlêtre ocupa alternativa ou
sucessivamente estes diferentes lugares e se situa-se de forma mais ou menos estável
preferencialmente em um desses lugares e em relações mais ou menos intensas com os
outros.
Nas tentativas de imaginar-se Todo, ou, em outras palavras, nas tentativas tota-
litárias, o acesso ao infinito, o ponto de entrada no infinito (e cada um peca por onde
deseja), apresenta-se sob diferentes modalidades:
– A Mulher é uma dessas modalidades. Tentativa, digamos, doméstica e familiar.
Seu objeto é privado: seu falo. Histérica bem sucedida?
– Uma tentativa social, habitualmente do lado do homem, nas formas acabadas
do Mestre, do Sábio, do Universitário, do Cientista. Obsessivo que deu certo?
– Pela perfeição das formas, por exemplo, a forma de um corpo perfeito. Do lado
daquelas que o exibem: manequins apaixonadas pelo próprio corpo. Do lado do olhar: o
‘’voyeur’’ correspondente. Nos dois casos, há uma crença nessa perfeição, com toda a
dimensão religiosa contida neste termo.
– A fé, o amor, a perfusão de amor, o gota-a-gota quotidiano, pois sabemos bem
que não se deve perder o contato, que não se deve ficar longe muito tempo. A falta faz
irrupção brutal quando o contato é rompido imaginariamente. Como sabemos, a de-
monstração de fé não muda nada nisto e todas as explicações neste sentido somente
interessam aos ateus, aos descrentes e aos céticos.
– O poder, lugar narcísico se ele existe, uma vez que em ultima análise, a política
toca e se junta (o que aliás é desastroso) à ilusão da infinita mestria imaginária.
– A concepção, no sentido largo ou habitual do termo, ou seja, a gravidez e o
parto, ou ainda a produção de um corpo de teoria, de uma idéia, de uma industria, de um
corpus, mas produto só, segundo uma concepção partogenética, sem ajuda ou com a
ajuda apenas de um terceiro (um vago marido, por vezes apenas um tubo de ensaio
basta, ou então sem ancestrais ou colegas), sem nada dever a ninguém: fundar sozinho.
Todo gozo é parcial, mas nestas visões, ele se imagina total, o que chamaremos
de ‘’Gozo Todo’’.
Estas tentativas podem ser qualificadas de alucinatórias ou de ilusórias, no
sentido forte da psiquiatria, e permitem eliminar todo o real, toda a falta.
Nessa visão, o falo deve ser brilhante, erigido, sempre magnífico. Uma única
possibilidade para ele: o triunfo. De maneira alguma ele deve mostrar sinais de fraqueza.
É neste ponto que constatamos a propensão do ser humano à expansão mega-
lomaníaca, a apoiar-se sobre uma certeza, cada um sobre a sua, excluindo assim a
certeza dos outros. Isto ajuda cada um a agir, a construir, a criar, mas apresenta por
vezes um perigo extremo para os outros, aqueles que estão fora do círculo, do círculo
familiar ou social em questão e que podem, assim, em uma conjuntura particular, ser
submetidos às piores cobranças indevidas puristas, higienistas.
4 Referência à noção lacaniana de “Autre’’ (Outro).
80
DO DEUS DECAÍDO AO HOMEM
traço e, sobretudo, nada querendo saber disso, o sujeito deixa escapar por vezes algu-
mas reflexões retomadas nos sistemas religiosos, místicos, teóricos…
Circunscrito, limitado, todo o melancólico mostra sua borda neurótica, olhando
na direção do lugar sem falhas, mas sem esperança, ou então remetendo a esperança
para mais tarde, quando o futuro lhe sorrirá. A neurose é afirmada, e enfrentar a dor e a
verdade do sujeito assim postas em evidência é problemático, pois a melancolia é a dor
de dever considerar a castração, sem poder, de um lado, uma vez mais denegá-la e de,
outro lado, sem poder encará-la, enfrentá-la. Nenhuma saída naquilo que até ali consti-
tuía sua norma e suas referências. Até mesmo o suicídio, que entretanto, como sabe-
mos, constitui uma saída eventual deste impasse, vem confirmar esta limitação, quer
dizer, a escolha da morte para evitar o inferno. O sujeito se encontra acuado dos dois
lados, o que redobra a inibição e a paralisia. O melancólico está bloqueado na situação
em que necessita verdadeiramente da ajuda de um terceiro, pois o risco é, mais do que
o do luto infinito, – já que o luto é, na realidade, um fenômeno móvel e que evolui em
direção a sua resolução, – o risco é antes o da melancolia infinita, na interdição implacá-
vel, ao mesmo tempo recusada e não-trabalhada.
Não é aqui o lugar de retomar a nosografia, mas consideremos a proposição de
Charles Melman, segundo a qual a melancolia é a norma.
Se a norma é a melancolia, poderia parecer ridículo ou estúpido não utilizar
antidepressivos. E somos obrigados a constatar que o mundo inteiro, ou quase todo,
encontra-se sob antidepressivos. “Populaçoes inteiras reservaram para eles um lugar
permanente na economia de sua libido. A eles não se deve apenas um gozo imediato,
mas também um grau de independência ardentemente desejado em relação ao mundo
exterior” [Freud (1929) 1971]. Freud fala da ação dos estupefacientes, e não se trata de
populacões inteiras, parecendo que isso concerne a uma boa parte de todos os povos,
do mesmo modo que o termo de independência pode estar ligado ao Outro ou à castra-
ção: agir sobre o mundo interior com a ajuda da mestria dos elementos do mundo
exterior.
A utilização dos estupefacientes é efetivamente universal. Existem, muito pro-
vavelmente, pouquíssimos seres humanos que não os consomem quotidianamente, e a
maioria dos habitantes do planeta os consomem em quantidade importante entre o
despertar e o dormir: a ingestão de estimulantes e de antidepressivos é permanente.
Com efeito, a civilização parece apresentar-se como uma longa conquista de drogas, e
se reage contra elas. Ao extremo, toda alimentação, todo açúcar comporta qualidades
antidepressivas, mais ainda certos produtos: o álcool, o tabaco, o café, o chá e, segun-
do os países e seus usos: ópio, haxixe, cocaína. Alguns produtos são mais ou menos
ativos, mas o chá utilizado permanentemente a partir do samovar o dia inteiro, o café, o
bombom ou o cigarro constantemente consumidos são também equivalentes de
perfusões. O antidepressivo de referência no Ocidente não é a clomipramina (Anafranil),
mas evidentemente o álcool.
82 Assim, proponho aqui pensarmos que a ação maior e essencial do álcool em
DO DEUS DECAÍDO AO HOMEM
A DESERÇÃO DO OUTRO*
Marie-Claude Lambotte**
*
Entrevista realizada por Ligia Gomes Víctora, Maria Rosane Pereira Pinto e Maria Cristina Poli
Felippi a pedido da Revista. Tradução de Esthér Trevisan. Revisão da tradução de Maria Rosane
Pereira Pinto.
**
M-C Lambotte é psicanalista, pesquisadora do CNRS ( Centre Nationale de Recherche
Scientifique) em Paris, professora na Universidade de Paris XIII, e autora de “Estética da Melan-
colia” e “O discurso melancólico”, além de vários artigos.
84
A DESERÇÃO DO OUTRO
M-C LAMBOTTE: Isto seria interessante, eu digo a vocês que não o havia
pensado. Seria interessante porque – e este é um ponto que, a meu ver, ainda traz muitas
86
A DESERÇÃO DO OUTRO
cólicos, parece-me que não é isso que seja necessário visar ou no que seja necessário
pensar – as coisas não se desenrolam da mesma maneira. Assim, nesses dois tipos de
discursos, há um que eu coloco mais do lado das neuroses e outro que eu coloco
verdadeiramente do lado das neuroses narcísicas – não das psicoses, mas das neuro-
ses narcísicas.
No que concerne às psicoses, tenho como que uma dúvida, uma questão sobre
a qual eu trabalho atualmente, que é a seguinte: como é possível que estas grandes
verdades às quais todo o mundo tem acesso – «não tem sentido», «a verdade não
existe», «é preciso reconstruir as coisas nós mesmos», etc. –, isto é, a afirmação da
castração, seja, ao mesmo tempo, para o sujeito melancólico, um evitamento? É eviden-
te, este é o paradoxo. É a afirmação e é uma figura de evitamento, mas, a meu ver, isto não
é a mesma coisa que a foraclusão psicótica. Entretanto, como é possível que estas
frases, «a verdade não existe», etc. – nas quais todos nós pensamos sempre, em um
certo momento de nossa vida ou de vez em quando, mas com as quais fazemos alguma
coisa –, como é possível que, para os melancólicos, essas frases tenham também o peso
das coisas? Quer dizer, elas fazem mergulhar verdadeiramente o melancólico em uma
espécie de desapego, de desvalorização, de nivelamento, de indiferença da realidade,
pois todo objeto reenvia a um outro, todos se equivalem, não é acordado mais valor a
um do que a outro. Assim, poderia ser o caso de trabalhar estas proposições do mesmo
modo que, do lado das psicoses, as palavras têm este peso de coisa. Talvez neste ponto
também haja algo da ordem, justamente, do peso das coisas, de uma confusão palavra-
coisa. Isto não me parece impossível, mas eu deixo o ponto de interrogação.
APPOA: Lemos no «Le Monde» um artigo que falava das estatísticas sobre o
suicídio dos adolescentes na França. Um menino em cada cinco e duas meninas em
cada cinco tentam o suicídio entre a idade de 14 e 24 anos: é a segunda causa de
morte em adolescentes. A senhora veria nesses dados, de um modo geral, uma incidên-
cia elevada de estados melancólicos graves na adolescência? Fazemos esta pergunta
porque, nesta reportagem, havia, no discurso de certos adolescentes que «sobrevive-
ram», algo da ordem do «tudo ou nada» do qual a senhora fala nos seus escritos,
alguma coisa da posição do equilibrista, jogando com a vida e a morte. Algumas meni-
nas diziam «eu deveria ter sido bem sucedida e eu fracassei em tudo, então, não sou
mais nada».
APPOA: O que a senhora diz nos faz pensar nos trabalhos de Jean Bergès e
Gabriel Balbo que, aliás, mantêm na Associação Freudiana Internacional, este ano, um
seminário sobre os estados depressivos e as melancolias nas crianças. Escutando-a,
não podemos deixar de pensar na noção de transitivismo da qual eles falam em seus
escritos, ou seja, uma hipótese materna sobre o recém-nascido que daria conta de uma
alteridade fundamental na constituição do sujeito. Pareceria que a mãe dos pacientes
melancólicos teria uma séria dificuldade com relação a isso.
M-C LAMBOTTE: Sim, acredito que há vários elementos, uma soma deles.
90
A DESERÇÃO DO OUTRO
parece ser a figura de projeção imaginária do sujeito melancólico: o analista passou por
tudo isso e se safou. É novamente uma figura de assimilação, é a mesma coisa, mas em
um outro estágio, e podemos, então, neste momento, apoiar-nos sobre esta relação
transferencial.
APPOA: O analista seria, de certo modo, um espectro, ele teria passado por uma
descida aos infernos e teria retornado. É desse modo que ele seria, na suposição do
sujeito melancólico, depositário de um saber sobre a vida e sobre a morte?
M-C LAMBOTTE: Sim, é exatamente isto. Se, bem no início da tomada em trata-
mento, é o sujeito melancólico que se encontra em uma posição quase de sujeito-
suposto-saber – porque ele diz «eu, eu sei tudo o que a senhora vai dizer» –, na
seqüência do tratamento, justamente, isso muda. É exatamente o que você disse: o
analista retorna daquilo que ele, o sujeito melancólico, viveu; o analista retorna, ele se
safa. Isto se faz progressivamente, com certeza, mas parece-me que há aí um ponto de
báscula que possibilita ao analista continuar verdadeiramente.
Uma outra coisa, ainda com relação à tomada em tratamento: é que eu não sei se
é preciso pensar, como eu dizia antes, em uma restauração do objeto libidinal, enfim, do
laço ao objeto – não sei, deixo um ponto de interrogação. Entretanto, manifesta-se na
cura o insabido, uma espécie de terceiro lugar entre o analista e o paciente. Este terceiro
lugar é, com freqüência, um lugar de contemplação, eu diria, em que o paciente fala ou
parece investir uma organização; bem concretamente, pacientes que organizam o inte-
rior de um apartamento, que o estruturam, ou que passeiam na natureza e acham isto
muito bonito, mas descrevem a natureza como uma paisagem, uma composição. Há,
assim, um terceiro lugar, onde me parece que o paciente investe todas as suas ativida-
des de organização, de composição, de estruturação. Aí, igualmente, neste efeito imagi-
nário, ele pensa que o analista, ele também, está interessado. Isto me parece ser, não sei
se um modo de resolução, mas, em todo o caso, uma abertura possível.
92
A DESERÇÃO DO OUTRO
do melancólico?
M-C LAMBOTTE: Sim, exatamente, porque este «eu não sou nada», isso foi
assim também na experiência vivida do sujeito melancólico, esta experiência que muitos
autores descrevem – e nós estamos de acordo – como a da indiferença da realidade, do
seu nivelamento, da falta total de relevo, etc. Simplesmente, neste ponto, há uma figura
que aparece também durante o tratamento, no discurso melancólico. É que, por trás
dessa realidade aparente, deve haver a verdadeira realidade. Quer dizer, justamente,
uma realidade brilhante, uma realidade que seria revestida de todos os afetos, algo de
absoluto, algo necessariamente da ordem do gozo. E a realidade nivelada, a realidade
sem relevo, a nossa realidade, teria a função de véu dessa realidade encoberta. Eu cito,
mas sem entrar em detalhes – é um trabalho que estou retomando –, esta escritora que
escrevia com uma caligrafia muito bela sobre o papel e que forçava a sua escrita até
deixá-lo quase rasgando. Ela dizia em seguida: «veja, a luz vem de trás, ilumina por
trás»; ou seja, é detrás que vem alguma coisa. Há, então, com freqüência, figuras como
esta: «as coisas são iluminadas por trás».
Penso que, com efeito, há algo também que faria com que o sujeito melancólico
1
Em Francês: rien.
93
ENTREVISTA
permanecesse em uma proximidade muito grande com o gozo originário. Sobre este
ponto, seria necessário retomar o trabalho de Lacan, em particular com «A Angústia»,
em torno da questão dos objetos cessíveis, disto que deve cair, despencar: o olhar, a
voz, as fezes, etc. Para o melancólico, há algo que resta verdadeiramente muito próximo,
e que a realidade nivelada encobre; de fato, felizmente, ela encobre este gozo. Então, o
objeto da realidade nivelada é um objeto reduzido ao nada, porque qualquer objeto
envia a um outro, pode ser substituído. Em contrapartida, há por trás disso algo da
ordem do absoluto. Há os que dizem «a verdadeira realidade».
Conseqüentemente, há esta abertura possível, no tratamento, quando o pacien-
te investe em atividades de estruturação, de organização, etc., porque essas são tam-
bém atividades de contemplação. É aí que um modo de resolução pareceria possível, na
direção do que chamamos o objeto estético. A função do objeto estético é a de ser um
objeto de contemplação, ou seja, a de indicar o gozo. Pois o objeto estético, seja uma
organização do interior, seja um objeto de coleção, seja um objeto artístico, ele é
metonímico do gozo que está por detrás. Quer dizer, ele não faz senão indicar o gozo,
mas focalizado sobre um objeto. Isso permite novamente ao sujeito melancólico reinte-
grar a realidade.
M-C LAMBOTTE: Fico muito contente com estas questões porque a clínica das
depressões em geral, ou do estado depressivo, e também a da melancolia, são, com
efeito, extremamente complexas. Simplesmente porque a melancolia toca a castração do
94
A DESERÇÃO DO OUTRO
ser, a falta fundamental. Então, se ouso dizer, estamos todos concernidos. Com efeito,
vemos chegar até nós pacientes que podem apresentar, em um momento ou outro,
estados de melancolização, ou que podem apresentar-se sob um aspecto depressivo,
sem que saibamos efetivamente se se trata de um modo depressivo grave ou de um
modo de descompensação em um dado momento mas que não é necessariamente
psicótico, ou ainda se se trata de uma melancolia já instalada, etc. Penso que os discur-
sos são diferentes. Mas o que é extremamente difícil é que, recebendo esses pacientes,
acredito que não temos, pelo menos no início, que trabalhar com a nosografia. Temos
que escutá-los e trabalhar com o discurso e os mecanismos. A este respeito, penso na
conclusão de Freud a uma conferência de Victor Tausck sobre melancolia. É uma confe-
rência de 1914 que encontramos em «Les minutes de Vienne», em «Les premiers
psychanalystes»2 . Eu a cito sempre porque, em primeiro lugar, Freud desmistifica ali
duas grandes questões que me pareciam mais de ordem médica do que psicanalítica.
Entre outras, como estudar a melancolia com os melancólicos graves, no hospital psi-
quiátrico, os quais se encontram – e, com efeito, eu os vi – prostrados sobre uma
cadeira e totalmente mudos? É verdade que aí, então, não sabemos se são melancólicos
ou se são psicóticos no sentido, eventualmente, da psicose maníaco-depressiva; mas
muito freqüentemente eles são unicamente melancólicos, com aspecto melancólico,
prostrados. Bem, Freud nos diz : «Nós não podemos trabalhar senão com casos benig-
nos». Trabalhar no sentido de teorizar, pois «são os casos benignos que nos aportam
o maior número de coisas». Então, isto me pareceu indicar coisas bastante pertinentes.
Otto Rank, que era o secretário das sessões da Sociedade Psicanalítica de Viena, escre-
ve: «O professor Freud encontra na conferência certas coisas que lhe são novas e
outras que não o são, etc […], o critério essencial segundo o qual é preciso circunscre-
ver os sintomas (que, na prática, não aparecem jamais sob sua forma pura) e as formas
das doenças é o mecanismo». Assim, Freud insiste sobre o mecanismo. Não sobre a
nosografia, mas sobre o fato de clarear os mecanismos: …»a observação de casos
benignos fornece a única possibilidade de delimitar o quadro puro». Ou seja, com o
quadro puro, nós nos deparamos com toda a sintomatologia possível, mas é somente
com os casos benignos que chegamos a delimitar o quadro puro. Não se trata de tomar
isso ao pé da letra, evidentemente, mas é algo bastante interessante clinicamente. Por
isso os estados de melancolização também não devem ser negligenciados, mesmo nos
neuróticos, pois eles nos ajudam a entrever o que poderia ser algo decorrente de um
quadro puro.
2
«Contribution à une exposition psychanalytique de la mélancolie», séance du 30 décembre
1914, «Les premiers psychanalystes, Minutes de la Société Psychanalytique de Vienne», trad.
N. Bakman, t. IV, 1912-1918, Paris Gallimard, 1983, p. 313.
95
ENTREVISTA
APPOA: Vários casos clínicos dos quais a senhora fala em «O Discurso Melan-
cólico» referem-se a mulheres que sofrem de bulimia e anorexia. Qual é a relação entre a
melancolia e esses fenômenos clínicos?
APPOA: A senhora estaria de acordo com a idéia de que, assim como Lacan
formalizou os quatro discursos, haveria um quinto a ser formalizado para a melancolia?
M-C LAMBOTTE: Sim, justamente, eu acho. Não penso em fazê-lo, esse quinto
discurso, mas acredito que seria de se trabalhar, em todo o caso, efetivamente, com os
quatro matemas do discurso. Trata-se, aí também, de uma apresentação, uma maneira
retórica de trabalhar as coisas em um movimento dinâmico, na organização e na estrutu-
ra, sem classificá-las a priori à direita ou à esquerda.
M-C LAMBOTTE: Eu não sei, pois seria preciso indagar também quais são as
pessoas que se encontram em tratamento psicanalítico atualmente. Talvez não sejam as
mesmas que há dez ou vinte anos. Esta é uma questão muito importante. É verdade que,
falando com outros psicanalistas, atualmente recebemos sujeitos, eu diria, narcísicos,
para ficar em um plano bem geral. Sim, é verdade, mas a que isto corresponde? É, sem
dúvida, dizer rápido demais «à perda de valores paternos» ou outros.
M-C LAMBOTTE: Sim, mas o interesse é saber por que elas mudaram de apre-
sentação. É devido somente às mudanças sociais? É somente o sociológico, por exem-
96
A DESERÇÃO DO OUTRO
M-C. LAMBOTTE: É o que nós dizíamos antes. Não trabalhei muito isso, mas eu
o menciono, simplesmente. Dizíamos que essa função fálica não era recusada, mas
tornada para sempre inacessível. Penso, com efeito, encontrar, no discurso dos homens
melancólicos, esta figura do pai fracassado como representante real da castração. É o
«veja bem, olhe…». Há algo da ordem da realidade – não do real, mas da realidade
tangível – que conforta o sujeito melancólico na sua afirmação e no seu evitamento,
simultâneos, da castração. Que isto seja do lado da realidade: acontece com freqüência
que o pai real do melancólico tenha atravessado momentos extremamente difíceis e seja
quase sempre representado em momentos de fraqueza, aquém do que deveria ser. Mas,
mesmo que, de certo modo, ele esteja ali totalmente integrado na realidade, o sujeito
melancólico vai dar um jeito para encontrar a falha – e sempre há falha na realidade – e
construir um pai fracassado. Ou seja, isso tem uma função: o pai fracassado vem legiti-
mar de algum modo a melancolia. Não se dá a mesma apresentação do lado feminino,
absolutamente. Mas eu não poderia estender-me sobre isso, porque seria realmente
necessário trabalhar mais essa questão.
dro, ao mesmo tempo que o sustenta, ele o deposita sobre o outro. É sua única moeda
de troca. E o Super-eu, é precisamente aí que eu o situaria, neste efeito destrutor
ininterrupto e nesta antecipação, pelo detalhe, da ruptura. Freud sublinha o lado lábil, o
lado massivo dos investimentos do sujeito melancólico: ao mesmo tempo que esse
investimento é enorme, subitamente ele é retirado. O Super-eu, a exemplo do que diz
Freud na «Introdução ao Narcisismo», eu o vejo como que avaliando continuamente a
distância entre o Eu e seu ideal, com uma função, para o sujeito melancólico, de impedi-
mento – dada a questão do objeto reincorporado, é a este objeto, evidentemente, que se
endereça o recobrimento do Eu, em toda a ambivalência do sujeito melancólico.
Mas o que é que faz com que, justamente, em um dado momento, o Super-eu
relaxe um pouco sua vigilância, fazendo com que haja, às vezes – e eu retomo aqui a
afecção maníaco-depressiva –, passagem à mania, passagem ao triunfo? Trabalhamos
bastante sobre a melancolia, um pouco menos sobre a mania e nada sobre isto que faz
passagem. E o que faz passagem, certamente nós podemos retomá-lo de Freud, em
«Psicologia das massas e análise do eu», e em «Luto e melancolia»: é a fusão entre o Eu
e o Ideal do Eu, quando é o Eu que toma o lugar de objeto para o ideal. O Super-eu,
então, não opera mais esta vigilância incessante, mas é exatamente a mesma coisa, uma
vez que o maníaco se interessa por tudo em torno dele, chegando à fuga de idéias, a
ponto que nenhum objeto e nenhuma representação adquira mais interesse que outra,
e tudo desfila. É exatamente a mesma posição do sujeito melancólico, em que todo
objeto envia a um outro. Também para o maníaco, todos os objetos se equivalem. Ele
não pode investir um objeto mais que um outro; imediatamente alguma outra coisa se
apresenta a ele, etc. Isto não é, de maneira nenhuma, um modo de resolução. É exata-
mente – tomemos Karl Abraham, retomemos Freud – é exatamente a mesma estrutura, a
mesma metapsicologia da melancolia. Então, a passagem de uma à outra – não necessa-
riamente há esta passagem – coloca a questão: o que é feito do objeto reincorporado?
Sim, há acordo entre o Eu e o Ideal do Eu, mas o que acontece com o objeto reincorporado?
Eu me pergunto se não se trataria aí disto que eu chamaria uma passagem ao ato intra-
psíquica, quer dizer, um assassinato perpetrado regularmente, mas intrapsíquico. Não é
uma expulsão, porque esse objeto não é depois retomado. É um verdadeiro assassinato,
no sentido em que Freud diz, em «Luto e melancolia», a respeito de quem está em luto,
que o luto comporta também este fato de ter que «matar o objeto uma segunda vez,
afirmar que ele está realmente morto»; e ter que «matá-lo uma segunda vez com o prêmio
narcísico de se manter vivo». Há algo assim na passagem do estado depressivo ao
estado de triunfo, que é como Freud caracteriza a mania.
em jogo antes desta questão do investimento de objeto, etc. seja mesmo este trabalho
da impotência à impossibilidade; a impossibilidade sendo a castração, evidentemente.
101
RECORDAR
REPETIR
ELABORAR CONCEITO DE MELANCOLIA*
Jaime Ginzburg**
*
Uma versão anterior e mais compacta deste trabalho foi publicada na revista Expressão , do
Centro de Artes e Letras da UFSM. Este texto é uma adaptação atualizada de um capítulo teórico
da tese de doutorado Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo, apresentada em 1997 na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, sob orientação de Maria do Carmo Campos.
**
Professor de Literatura da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisador do CNPq. Coor-
denador do Grupo de Trabalho de Teoria do Texto Poético da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). Autor de artigos publicados em livros
coletivos, entre eles Historicidade da poesia lírica: Drummond e o autoritarismo. In: INDURSKY,
Freda & CAMPOS, Maria do Carmo, orgs. Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra
Luzatto, 2000.
102
CONCEITO DE MELANCOLIA
ORIGENS
1
Trata-se do Aforismo 23 do livro VI de seus Aforismos. “Se o medo e a tristeza duram muito
tempo, tal estado é próprio da melancolia”.
2
A idéia de que o homem melancólico é inacessível e fechado em si mesmo é desenvolvida em
Schaller, 1988, p.32.
103
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR
entretanto, é preciso mais do que tudo um senso de medida. A bile negra, substância
considerada responsável pela formação da melancolia (Benjamin, 1984, p.169), emite
vapores que causam delírios (Azouvi, 1985, p.104). Ela seria resultado de excessos ou
faltas. Existe um modelo de equilíbrio humano, que supõe a capacidade de dosar, na
vida, o movimento e a quietude, o sono e a vigília, a comida e a bebida, as paixões da
alma. O excesso de algum desses elementos pode gerar no corpo um efeito nocivo
(Constantino El Africano, 1992 , p.17 e 39). Chama a atenção, na argumentação de
Constantinus, a idéia de que o excesso de meditação e a tentativa de investigar o
“incompreensível” provocam melancolia (Idem, p.21).
Além da determinação de que a melancolia seja uma doença, na Grécia também
se elaborou a idéia de que ela seja um “estado de exceção”, responsável por capacida-
des distintivas; essa proposição é atribuída a Aristóteles (Aristote, 1988, p.83 e 97). Ela
levou à compreensão de que existiria uma ligação entre a postura melancólica e o
pensamento contemplativo necessário para a filosofia (Klibansky, Panofsky e Saxl,
1989, p.87)3.
Na argumentação de Aristóteles, um dos pontos principais consiste na defesa
de que a bile negra tem por propriedade a inconstância. O filósofo explica que ela pode
comportar-se de maneira variável, tornando-se muito quente ou muito fria, podendo
causar efeitos diversos (Aristote, 19 , p.95). A multiplicidade de marcas de comporta-
mento da bile negra faria do melancólico um ser “polimorfo”, apto a agir e sentir de
maneiras diversas e contraditórias (Pigeaud, In Aristote, idem, p.15), oscilando entre a
atimia, o desapego à vida, e as manifestações eufóricas (Primerose, apud Azouvi, 19,
p.106). O “polimorfismo” da melancolia seria uma das razões de não haver uma defini-
ção rigorosa para ela 4. Na parte 955a de sua obra, Aristóteles afirma: “(...) para resumir,
pela razão de que a eficácia da bile negra é inconstante, inconstantes são os
melancólicos.”(Aristote, 1988, p.107)
Klibansky, Panofsky e Saxl situam a bile negra entre quatro “humores”, líquidos
presentes no corpo humano. Os outros três são a fleuma, a bile amarela e o sangue. A
teoria da melancolia surge em meio a uma lógica de pensamento que vincula diretamen-
3
Na condição melancólica, dentro dessa avaliação, haveria um vínculo entre capacidade intelec-
tual e loucura. Conforme Benjamin, Walter. 1984, 170). A meditação melancólica não corresponde
a um raciocínio lógico, ordenado e estritamente racional. A partir da associação entre melancolia,
contemplação e capacidade reflexiva, com base no livro de Klibansky, Panofsky e Saxl, Ítalo
Calvino propõe, de maneira difusa, uma teoria de que a literatura resulte, em sua produção e de
maneira geral, de uma condição melancólica. (Calvino, 1990, ps. 32 e 64-5).
4
Azouvi explica que o polimorfismo da bile negra foi associado, na Renascença, às propriedades
plásticas de mutação do diabo.
104
CONCEITO DE MELANCOLIA
5
Podendo ser encontradas variações de simbologia (como está explicado em POT, 1994, p.122-
9) , de modo geral, as associações cósmicas seriam delimitadas do seguinte modo:
Esse modo de pensamento teve seu cume na elaboração da doutrina dos quatro temperamentos,
atribuída a Galien (Idem, p.123). Conforme também Tellenbach, Hubertus, 1979 , p. 27-9.
105
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR
CONCEPÇÃO ROMÂNTICA
A presença da melancolia na poesia romântica é constante (Nunes, 19 , p.28/9).
Erich Auerbach, numa definição exemplar, afirmou que “o poeta romântico é um estra-
nho entre os homens; é melancólico, extremamente sensível, ama a solidão e as efusões
do sentimento” (Auerbach, s.d., p.228).
A disseminação da melancolia no romantismo europeu pode ser verificada atra-
vés das reflexões de Mário Praz, que explica que o próprio termo “romântico” designa,
a partir do século XVIII, o “amor pelos aspectos selvagens e melancólicos da natureza”
(Praz, 1996, p.33). Ao caracterizar a produção romântica, Praz aponta constantemente a
presença da melancolia em autores, como Keats, Chateubriand e Byron (Praz, 1996,
p.33), citando passagens exemplares de suas obras.
O fragmento seguinte de Leopardi expressa bem a importância que a melancolia
assumiu no período.
106
CONCEITO DE MELANCOLIA
6
Para Schiller, a realidade à nossa volta é essencialmente caótica, e os homens tentam, através do
entendimento, dar conta dela, mas o “turbilhão de fenômenos” que nos cerca carece de “nexo útil”.
Por essa razão, ele acredita que não devamos optar por uma ordenação da realidade que nos traga
bem-estar, mas por uma liberdade dentro do caos (p.63-4). Só essa postura, sem amarras, faz o
homem superar sua precariedade habitual e ter acesso ao sublime. Tal postura, para Schiller,
corresponde ao “demônio puro” que reside no homem (p.68).
107
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR
7
Aristóteles acredita que o vinho e a bile negra são de natureza semelhante. Aristote (19, 91).
Constantino el Africano.(1988, p.19-21 e 41.)
8
O desdobramento da idéia em outros autores está em Cordás, Táki Athanássios. 1992, p.16.
108
CONCEITO DE MELANCOLIA
referenciais de orientação para o sujeito lírico o leva ao desejo de deixar de existir (v.111)
(Guardini, 1953 , p. 15).
O estado descrito por Dutra e Melo, embora caro aos poetas românticos, não era
considerado positivamente pela moralidade burguesa oitocentista. O valor estético da
melancolia não correspondia a uma aceitação social do comportamento melancólico.
Peter Gay, em um livro sobre o ódio e a agressividade no século XIX, explica que a
liberação de impulsos agressivos era considerada, na moral burguesa, sinal de uma
virilidade vigorosa. Lideranças políticas e sociais manifestaram preocupação com rela-
ção ao “declínio da masculinidade” causado pela imposição de regras de comportamen-
to social voltadas para a contenção, e também por ideários pessimistas e niilistas.
Nesse contexto, em uma síntese de Paul Bourget, a melancolia é considerada “a menos
masculina das doenças” (Gay, 1995, p.104). O estudo de Gay é importante por situar a
percepção que a melancolia romântica recebia por parte da moralidade burguesa, que a
considerava algo perturbador para o padrão dominante de organização dos papéis
sexuais na sociedade.
No período romântico, a reflexão sobre religiosidade se associou à tentativa de
explicar a melancolia. Dois escritores franceses, Vitor Hugo e Chateubriand, elaboraram
reflexões dedicadas a compreender o conceito de melancolia à luz de princípios religio-
sos. Ambos acreditam que existe uma associação entre o cristianismo e a condição
melancólica.
Para o primeiro, o surgimento da religião cristã correspondeu a um amadureci-
mento da humanidade. Tendo superado as limitações das sociedades primitivas e da
Antigüidade Clássica, ela passa por grandes transformações, cujo impacto resulta em
descobertas fundamentais, como a da constituição dupla do homem, matéria e espírito,
e de sua distância de Deus. Essas descobertas causam sofrimento, motivando a melan-
colia. No seu prefácio de Cromwell, Hugo afirma:
“(...) o cristianismo separa profundamente o espírito da matéria. Põe um
abismo entre a alma e o corpo, um abismo entre o homem e Deus. (...)
faremos notar que, com o cristianismo e por ele se introduzia no espírito
dos povos um sentimento novo, desconhecido dos Antigos e singular-
mente desenvolvido entre os Modernos, um sentimento que é mais que
a gravidade e menos que a tristeza: a melancolia. (...) no instante em que
veio estabelecer-se a sociedade cristã, o antigo continente estava agita-
do. Tudo estava abalado até a raiz. (...) Fazia-se tanto ruído na terra, que
era impossível que alguma coisa deste tumulto não chegasse até o cora-
ção dos povos. Foi mais que um eco, foi um contragolpe. O homem,
concentrando-se em si mesmo em presença destas profundas vicissitu-
des, começou a sentir dó da humanidade, a meditar sobre as amargas
irrisões da vida. Deste sentimento, que tinha sido para Catão pagão o
desespero, o cristianismo fez a melancolia.” (Hugo, 1988, p.22-5).
110
CONCEITO DE MELANCOLIA
CAMINHOS
A reflexão moderna sobre a melancolia está profundamente ligada às suas bases
antigas. A conexão entre a experiência da perda e a condição melancólica, explicada em
Constantinus, é fundamental na abordagem do tema desenvolvida pela psicanálise. A
idéia de que o estado melancólico está ligado à vivência de uma perda é apresentada na
correspondência entre Freud e Wilhelm Fliess. Em um texto chamado ‘Rascunho G’,
vinculado a essa documentação, Freud defende que a melancolia corresponde,
afetivamente, ao “anseio por alguma coisa perdida” (Peres, 1992, p.33). O desenvolvi-
mento da reflexão de Freud sobre o assunto se encontra em seu estudo Luto e melan-
colia (Freud, 1992).
111
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR
Nesse artigo, Freud faz uma distinção entre duas atitudes possíveis diante da
experiência da perda. A primeira consistiria no sentimento de luto. Este supõe a aceita-
ção de que a perda é irreversível; o sofrimento vivido pelo sujeito duraria algum tempo,
e, após esse período, ele procuraria o reequilíbrio afetivo, substituindo o objeto perdido
por outro 9. Contrariamente, no caso da atitude melancólica, o sujeito não aceita a sua
perda. Passa a viver com desânimo, perde o interesse pelo mundo externo, inibe suas
atividades e diminui os sentimentos de auto-estima (Idem, p. 131). O melancólico agride
o próprio ego e encontra satisfação em expor sua própria precariedade (Idem, p. 133). A
mesma linha de reflexão é apresentada por Julia Kristeva, segundo a qual, para o melan-
cólico, a perda do objeto é intolerável e leva a um “estado-limite” (Kristeva, 1989, p.14-
7).
Na filosofia, encontramos também reflexões sobre o tema que apontam para uma
associação direta entre a experiência da perda e a condição melancólica. O trabalho de
Jean-Pierre Schaller tem como ponto de partida a consideração de que o desejo de
recuperar um passado perdido seja a motivação básica para essa condição (Schaller, 19,
p.18). O estudo de Sarah Kofman desenvolve argumento similar (Kofman, 1985, p.20-1).
Uma contribuição importante à teoria da melancolia foi desenvolvida por Walter
Benjamin, em seu estudo sobre o drama barroco alemão. O filósofo fundamenta sua
exposição em elementos referentes a compreensões antigas e medievais da melancolia,
citando Aristóteles e Constantinus Africanus, e discutindo tópicos como o deus Cronos,
o planeta Saturno e a bile negra.
Entre os pontos que interessam a Benjamin, está a disposição do melancólico
para a contemplação. Ele encontra em um pensador do século XV, Marsilius Ficinus, a
idéia de que a bile negra motiva o espírito para a contemplação; encontra na gravura
“Melancolia”, de Dürer, um “símbolo do homem contemplativo” e conduz o raciocínio
à generalização, indicando que a atitude contemplativa é fundamental na condição
melancólica (Benjamin, 1984, 176-8).
A leitura dessa gravura, proposta por Benjamin, apoiada nos estudos de Panofsky
e Saxl, eleva-a a imagem exemplar do melancólico (Lagarde & Michard, 1963, p.161) 10. A
obra de Dürer apresenta uma representação deste estado em que se fundem duas
maneiras de pensar e sentir: o saber técnico e racional, vinculado à geometria e aos
instrumentos de trabalho, é colocado no mundo “do luto e do fracasso humanos”
9
“(...) a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda
a libido seja retirada de suas ligações com este objeto.”(p.132).
10
A esse respeito, cabe registrar a admiração que Dürer despertou entre os românticos europeus,
comentada por André Lagarde e Laurent Michard. Vitor Hugo redigiu um poema em sua homena-
gem, com o título A Albert Dürer, em que se refere ao pintor como “ mon maître”. Conforme
Lagarde, André & Michard, Laurent. XIXe. Siècle, 1963. p. 161.
112
CONCEITO DE MELANCOLIA
(Klibansky, Panofsky & Saxl, 1989, p.494). Dentro desse plano, ele se torna inútil, alvo
de indiferença. Entre a teoria de Freud e essa reflexão estética, há um ponto comum, a
idéia de perda de interesse pela realidade externa, por parte do melancólico.
Chama a atenção ainda, no estudo de Benjamin, a citação de longos trechos de
Panofsky e Saxl citados a respeito de Cronos. O filósofo alemão se interessa pelo fato
de esse deus ser considerado um “demônio das antíteses”, um “deus dos extremos”.
As citações explicam as ambigüidades fundamentais do deus e levam à idéia de que seu
caráter é “em última análise determinado por um dualismo intenso e fundamental” (Benja-
min, 1984, p.172-3). Tomada como figura matriz do conceito de melancolia, a divindade,
dominando o nascimento e a morte, sendo frágil e poderosa, representa uma espécie de
síntese da condição saturnina.
A idéia de que existe um vínculo direto entre melancolia e dualismo 11 foi elabo-
rada por Romano Guardini, Jean-Pierre Schaller e Olivier Pot. O primeiro caracteriza o
comportamento melancólico do seguinte modo.
11
A compreensão da melancolia como algo dual remonta a autores como Marsilius Ficinus e
Richard Burton, que descreveram a condição melancólica ponderando que, mesmo marcado pela
fragilidade física que o expõe a doenças, o homem melancólico é dotado de capacidades como
sensibilidade poética e inclinação filosófica. Conforme Cordás, 1997, p.16.
113
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR
PERSPECTIVAS DE TRABALHO
Embora a melancolia seja encontrada em diferentes culturas, nosso estudo tem
por horizonte a especificidade de sua presença na cultura brasileira. Essa presença se
dá em formas e intensidades particulares, distintas de fontes, influências ou referênci-
as, e constitui um sistema ainda não mapeado de relações, passíveis de interpretação,
entre produção cultural e contexto histórico.
Entre outros autores, o poeta romântico Álvares de Azevedo foi um dos respon-
sáveis pelo estabelecimento de fortes conexões entre a melancolia e a reflexão sobre o
Brasil (Azevedo, 1942). Em sua perspectiva de continuidade, este estudo deve procurar
conexões entre traumas históricos coletivos, associados à exploração colonial, ao
escravismo, à violência sistemática no processo de formação social, à opressão de
114
CONCEITO DE MELANCOLIA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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16 GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega . São Paulo: Cultrix, s.d.
17 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime . São Paulo: Perspectiva, 1988.
18 KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturne et la mélancolie . Paris: Gallimard, 1989.
115
RECORDAR, REPETIR, ELABORAR
116
VARIAÇÕES
O PROVISÓRIO COMO
MODO DE EXISTÊNCIA
Luis Roberto Benia*
*
Psiquiatra, Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS.
117
VARIAÇÕES
sentido material do termo. Trata-se também de conferir um lugar ao qual está atribuído
um determinado valor subjetivo e social. A precarização do emprego e o aumento do
desemprego são a manifestação de um“déficit de lugares” (Castel, 1998) ocupáveis na
estrutura social, entendendo-se por lugares posições às quais estão associados uma
utilidade social e um reconhecimento público. É comum encontrarmos sujeitos que se
dizem “sem um lugar”, que se sentem à deriva, com relação ao trabalho. Sucumbem,
então, num certo tipo de melancolia, pois o colapso narcísico que enfrentam é muito
grande.1
As mudanças no panorama econômico mundial resultaram em transformações
radicais no processo produtivo. As novas tecnologias ou as novas formas de trabalhar
determinaram um corte sem precedentes no número de postos de trabalho. Com a
automatização das tarefas manuais na indústria, a mão-de-obra humana torna-se cada
vez menos necessária. No setor de serviços, há a substituição do trabalho humano pelo
computador. Assistimos, além da escassez progressiva de empregos, à mudança radical
da sua natureza e das suas fontes e também mudanças culturais que ocorrem numa
velocidade incrível, características da temporalidade contemporânea. Na medida em
que o capitalismo se globaliza, não só pelos desenvolvimentos da nova divisão interna-
cional do trabalho, mas também por sua penetração nas economias dos países que
compreendiam o mundo socialista, podemos dizer que o mundo do trabalho também se
tornou global. Sob as mais diversas formas sociais e técnicas de organização, o proces-
so de trabalho passa a estar submetido aos movimentos do capital em todo o mundo
(Ianni, 1994).
O desemprego estrutural, causado tanto pela globalização quanto pela
tecnologia, se não aumenta necessariamente o número total de pessoas sem trabalho,
contribui para deteriorar o mercado de trabalho para quem precisa vender sua capacida-
de de produzir. Os novos postos de trabalho, em sua maioria não oferecem ao seu
ocupante as compensações usuais que as leis e os contratos coletivos antes garantiam.
Muitos desses postos são ocupações por conta própria. Uma empresa que antes con-
tava em seus quadros funcionais com uma equipe profissional completa (ex.: contabili-
dade, vigilância, alimentação, pesquisa de mercado, etc.), hoje prefere que estes profis-
sionais lhe prestem os seus serviços através de pequenas empresas independentes ou
de maneira autônoma. Para a empresa-cliente a vantagem está na flexibilidade do novo
1
Se pensarmos em todos o desígnios, desejos, investimentos, expectativas, significações de que
o sujeito foi objeto, desde sua concepção e mesmo antes, nesta articulação com o campo do
Outro, campo simbólico que constitui, por introjeção, a instância do Ideal do eu, e estrutura, ao
mesmo tempo, a relação do sujeito com sua imagem especular (Eu-Ideal), vemos que este colapso
se apresenta pois não há possibilidade para o sujeito encontrar algum significante em que possa
contemplar-se sem cair em reprovação, e não há nada narcisicamente tão desvantajoso.
118
O PROVISÓRIO COMO MODO...
2
A figura da metamorfose é uma metáfora ilustrativa, que implica idéias de término e recomeço,
de algo que se transforma, de provisoriedade, de algo que se perde e algo que se eleva das ruínas.
Isso nos permitirá não cair em um discurso totalmente fatalista e pensar que, se há a melancolia,
há também a possibilidade do luto, como veremos adiante.
119
VARIAÇÕES
informados nos anos setenta e oitenta que as portas iriam abrir-se para quem tivesse
curso superior, conhecimentos de inglês, etc. Mais recentemente, os conhecimentos de
informática e a pós-graduação entraram na lista dos pré-requisitos que franqueariam a
passagem para a vida profissional. Porém, em grande parte dos casos, só conseguiram
ser admitidos na categoria dos desempregados de luxo.
Uma dimensão que deve ser levada em conta ao analisarmos a experiência do
desemprego é a atitude adotada em relação às atividades que tenham um estatuto
substitutivo do trabalho. É essa atitude, socialmente determinada e estritamente ligada
ao conjunto dos recursos sociais, que explica que o desemprego possa ser vivido
melhor ou pior. São os cursos de especialização, os estágios, as atividades culturais e
artísticas, nos quais os indivíduos se engajam e que se tornam, para eles, uma ocupação
O significado conferido ao trabalho como um valor essencial para a vida, como fonte de
identidade e meio de sobrevivência é o que permite compreender a angústia na qual são
jogados os sujeitos ao deparar-se com as mudanças no mercado de trabalho. Necessi-
tam refazer seus projetos de vida a partir de uma nova temporalidade, na qual a incerte-
za, a provisoriedade, a mudança constante, são a regra.
Dado o valor que o trabalho tem na vida desses sujeitos, a possibilidade de fazer
um luto quando das dificuldades em encontrá-lo nunca passa pela abolição do traba-
lho, mas sim por tomar uma atividade substitutiva, o estudo, por exemplo, como um
trabalho.
A idade aparece como uma variável importante na medida em que traduz rela-
ções diferentes à norma do trabalho. Objetivamente a probabilidade de conseguir um
emprego cresce com a idade, e depois passa a decrescer a partir dos 40 anos, para se
tornar muito pequena após os 50. A experiência subjetiva do desemprego acompanha
esta curva, porque o indivíduo interioriza essas probabilidades objetivas, que são
reatualizadas ao longo da procura por um novo trabalho, gerando uma série de expecta-
tivas. Ou seja, o jovem se instala numa curva crescente de expectativas, que podem
transformar-se em uma frustração crescente à medida que o desemprego se prolonga.
Quaisquer que sejam as análises sobre a conjuntura, o sujeito se sente desvalo-
rizado. Sabemos que, para a maioria, a carreira constitui uma preocupação constante e
é um dos signos mais claros de sucesso profissional e pessoal. Ter uma carreira é a
forma privilegiada de afirmação de si. Assim, não é somente a organização temporal do
cotidiano que é posta em questão mas todo um sistema de projeções de um devir que
está ligado a uma trajetória profissional. É de fato essa trajetória, verdadeiro plano de
vida, que define a sua identidade, mais que sua situação em um momento dado, de
forma que o desemprego, que interrompe o desenrolar previsto ou projetado de uma
carreira, com suas etapas mais ou menos racionalizadas, leva a uma verdadeira crise de
identidade, que se traduz pelos sentimentos de humilhação e culpabilidade. O tempo de
curto prazo, flexível, do novo capitalismo parece impedir que se faça uma narrativa
constante da vida no trabalho e, portanto, de uma carreira.
121
VARIAÇÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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123
VARIAÇÕES
TECNOCIÊNCIA E
SUBJETIVIDADE
João Biehl*
*
Antropólogo, professor do Departamento de Antropologia, Universidade de Princeton, Esta-
dos Unidos.
1
Agradecimentos: Denise Coutinho e Ana Luzia Outeiro ajudaram a pensar e a realizar este
projeto de pesquisa: muito obrigado. Também agradeço os coordenadores, funcionários e clientes
do CTA e o apoio do CNPq, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e
do Departamento de Medicina Social da Universidade de Harvard. Adriana Petryna, Joseph
DumiteM ichaelM .J.Fischer:thank you . Sou o único responsável pelas idéias aqui expressas.
124
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE
tância do trabalho de Lacan nessa área: “O sujeito tem uma gênese, o sujeito não é
originário. Ora, quem disse isto? Freud, certamente, mas foi preciso que Lacan o mos-
trasse claramente. Daí a importânica de Lacan” (citado por Eribon, 1996: 147). Lacan
mencionou esse encontro com o trabalho de Foucault em seu próprio seminário naque-
le ano, “De um Outro ao outro” (n/d). Novamente ele argumentou que Foucault apropri-
adamente valorizava a originalidade de uma função interna aos discursos, o que implica
“um efeito de divisão e de laceração que é próprio a todos” (n/d:90). O que está em
funcionamento ao nível do inconsciente é o retorno a a: “há um saber que diz que em
algum lugar há uma verdade que desconhece a si mesma’” (n/d:90). A psicanálise, diz
Lacan, contraria os ideais e práticas da ciência, mostrando que há sempre algo no
sujeito que “sabidamente mente, sem a contribuição da consciência” (1991: 194). O fato
é que a ciência “não tem memória; uma vez constituída, ela esquece os caminhos pelos
quais se constituiu... ela esquece a dimensão de verdade que a psicanálise seriamente
põe a trabalhar” (1989:18). Paradoxalmente, postula Lacan, “nós não temos mais nada
com o que unir conhecimento e verdade senão o sujeito da ciência” (1989:17). O que
caracteriza particularmente as formas cartesiana e capitalista de subjetividade, continua
ele, é que a verdade é o nosso trabalho: amamos a verdade e dispomos de saberes para
proliferar nossos sintomas, produzindo, assim, ‘mais gozar’ (o conceito lacaniano é
uma analogia à ‘mais valia’ elaborada por Karl Marx, 1983 – vide Zizek, 1997). “[…] não
há discurso que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da
verdade” (1994:74). A recorrência da experiência de que ‘talvez não seja o verdadeiro’,
aponta para os trabalhos da verdade no sujeito (1994:13). E nós, modernos, não somos
sem uma relação insistente com formas variáveis da verdade.
RISCO E AUTO-BIO-ADMINISTRAÇÃO
Adiante. Desde 1993, com mudanças na Coordenação Nacional de DST/AIDS e
fundos do Banco Mundial, dezenas de Centros de Aconselhamento e Testagem para o
HIV (CTA) foram criados anualmente em todo o país – há agora mais de 150 (Biehl,
1999). O modelo norte-americano que informa esta e outras iniciativas de prevenção da
AIDS localiza a natureza do problema médico bem como as possibilidades para sua
solução nos instintos e mentes individuais e, de acordo com o que o antropólogo Sean
Patrick Larvie, enfatiza “uma profilaxia psicológica” (1997:100). Em 1997, conduzi pes-
quisa etnográfica em um CTA em Salvador, no Estado da Bahia, auxiliado pela psicana-
lista Denise Coutinho e pela psicóloga Ana Luiza Outeiro (uma das conselheiras do
CTA). Combinamos observação participativa com análise epidemiológica e levanta-
mento clínico (Biehl com Coutinho e Outeiro, 2001).
Os clientes do CTA seguem o seguinte conjunto inicial de procedimentos: esco-
lhem um pseudônimo, preenchem um questionário epidemiológico, escutam uma pales-
tra sobre os aspectos clínicos e científicos do HIV e AIDS e então passam por
aconselhamento individual pré-teste. Neste momento, o cliente e o conselheiro locali-
126
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE
zam o ato potencialmente mórbido que motivou a pessoa a vir ao CTA e traduzem
aquele ato em um fator de risco. A seguir, formulam um plano epidemiológico individual
(uma nova gramática de risco), que basicamente tem por objetivo a formatação de
comportamentos conscientes de segurança, particularmente com respeito à sexualida-
de. Nas palavras de Mulata, uma estudante de II Grau, “Eu preciso me controlar... tenho
que aprender a ver que as aparências enganam”. Ela parece ter racionalizado bem as
lições do CTA: “Se um casal não quer usar camisinha, ambos precisam fazer o teste do
HIV. A vida está em jogo”. Em jogo está também a formação de uma nova autopercepção
biológica da cliente. Essa autopercepção funciona como um ideal ‘verdadeiro’ do ego:
tem que ser constantemente trazido à consciência e transformado em novos valores de
vida a serem incorporados em práticas sexuais. A conselheira Marlene é direta: “Eu lhes
pergunto: ‘foi o seu desejo de prazer, de satisfação, mais forte do que o desejo de
continuar a viver?’” Os conselheiros também avaliam as implicações psicológicas de
revelar uma potencial soropositividade e formulam estratégias para assegurar que os
clientes retornem para buscar o resultado do teste. Amostras de sangue são então
coletadas no laboratório da sala contígua.
Durante nossa pesquisa no CTA, documentamos uma alta demanda de testagem
por parte de clientes de baixo risco, em grande parte oriundos da classe trabalhadora e
da classe média baixa, apresentando ansiedade e queixando-se de sintomas aparente-
mente relacionados à AIDS, como diarréia, emagrecimento, herpes, e assim por diante.
A maior parte dos clientes eram soronegativos e muitos retornavam para uma segunda
e terceira testagem (também negativa). Dados do Laboratório Central (LACEN), onde
todos os exames sangüíneos do Estado eram então realizados, mostravam que, real-
mente, tinha havido um aumento expressivo no número de testagens para o HIV e um
concomitante decréscimo geral na soropositividade registrada pelo LACEN desde que
o CTA começara a oferecer seus serviços em 1994 (Biehl, 1999, 2001; Cunha et al., 1996).
É importante ressaltar que esses dados não representam a soroprevalência da popula-
ção em geral ou o risco individual de infecção pelo HIV. Refletem, isto sim, a emergência
de uma nova população, a população de uma AIDS imaginária.
Podemos fazer um paralelo entre as medidas de saúde pública e o controle social
na era do HIV/AIDS com a administração das epidemias no início da modernidade na
Europa. Em Vigiar e Punir, Foucault mostra que durante a quarentena, por exemplo,
cada indivíduo na localidade contaminada (e estritamente monitorada) era obrigado a
aparecer na janela de sua casa. “Todos trancados em suas gaiolas, todos à janela,
dizendo seus nomes e mostrando-se quando chamados – é a grande revista dos vivos
e dos mortos” (1979: 196). Tais estratégias e ações disciplinares deram forma a uma
nosopolítica: “A relação de cada indivíduo com sua doença e com sua morte passa
pelos representantes do poder, o registro que eles fazem disto, as decisões que tomam
sobre ele” (197). Robert Castel (1991) e Gilles Deleuze (1995) argumentam que nas
nossas novas sociedades neoliberais, caracterizadas pela deteriorização dos locais
127
VARIAÇÕES
A JANELA IMUNOLÓGICA
De volta ao CTA. O fenômeno da AIDS imaginária não representa o fracasso
desta prática de prevenção. Representa, isto sim, um novo laço estabelecido entre o
aparato de testagem e o cliente, e o cliente e si mesmo através deste aparato e experiên-
cia tecnocientífica. A questão da ‘janela imunológica’ é revelatória. Num projeto piloto
de pesquisa com 37 clientes, todos soronegativos, 5 disseram que já haviam sido testa-
dos para o HIV antes. Os conselheiros pediram a 14 clientes que retornassem para uma
segunda ou terceira testagem porque eles “tinham uma janela aberta”. A janela
imunológica corresponde à lacuna temporal que existe entre a infecção inicial pelo vírus
e a soroconversão, isto é, quando o anticorpo específico HIV-1 pode ser detecado no
128
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE
TECNONEUROSE
Concluo com a experiência de Oxigênio, que retorna ao CTA para o seu quarto
teste. Desta vez, o conselheiro disse a esta comerciária de 32 anos, que não havia mais
nada que o Centro de Testagem pudesse fazer por ela. Oxigênio havia esgotado sua
cota de testes. “Mas eu preciso de mais um”. Ela disse que estava muito deprimida,
apontou para as lesões cutâneas em seu rosto e repetiu sua história: “Um ano atrás eu
fui estuprada”. O estuprador disse-lhe que tinha AIDS. Nenhuma queixa foi registrada
na polícia. Todos os conselheiros que atenderam Oxigênio concordam com a seguinte
interpretação: “ela cometeu adultério e está morrendo de culpa”. Agora até mesmo o
marido apresenta sintomas relacionados com a AIDS, alega Oxigênio. Ela já procurou
dois psicoterapeutas, em vão. “Não gostei, o primeiro disse que eu não tinha nada; a
segunda não disse nada”. A necessidade de um novo teste para o HIV parece estar
enlaçada com a impossibilidade de Oxigênio acessar sua própria palavra e na realidade
a substitui. Entendo que a experiência sintomática, confusa e dolorida de Oxigênio é
arquitetada tecnicamente. As dinâmicas neuróticas de clientes como ela não são sim-
plesmente expurgadas em enquadramentos epidemiológicos e biotestagens, mas são
instrumentalizadas e co-produzidas como sendo normais, retornando à realidade social
como tecnoneurose. Esta é uma via de duas mãos. Ao mesmo tempo em que esses
novos sujeitos de risco são treinados para ultrapassar atos potencialmente mórbidos
através de um novo saber (um duplo) de si mesmos, eles também normalizam, agora com
tecnociência, sua capacidade neurótica/plástica de reinventar a subjetividade. Nesse
processo, clientes como Oxigênio tornam-se dependentes de uma significação secreta
130
TECNOCIÊNCIA E SUBJETIVIDADE
que o teste de HIV possa carregar (no lugar deles), e podem assim ter forcluído o acesso
à singularidade dos seus dramas e à formulação do desejo.
Em muitos casos, os sintomas destes clientes soronegativos e suas demandas
por uma verdade biológica são também veículos para a construção de novas identida-
des sociais. Em meio a vazios abertos pelo desaparecimento e/ou reciclagem de tradici-
onais laços sociais, muitos clientes usam o CTA para resolver conflitos familiares e
amorosos (casos de incesto, perda de virgindade e adultério). Outros usam este aparato
para formular ou camuflar novas definições de orientação sexual (afirmando ou negan-
do homossexualidade, por exemplo), para liberar-se de servidão sexual ou lidar com
mudanças ocasionadas por uma nova consciência de gênero. Muitos simplesmente
exercitam o raro direito de ter aqui acesso a um ‘moderno’ aparato de saúde pública. De
um modo geral, observamos clientes de-ritualizando relacionamentos face-a-face e rea-
lizando fantasias programáticas de uma suposta autonomia.
Em resumo, este experimento técnico-cultural e a experiência de uma AIDS ima-
ginária no CTA tem como efeitos imediatos: a consolidação local de um ethos biocientífico
de governamentalidade, o reforço da fantasia como um regulador da realidade social, a
nova inscrição de padrões de dominação social e sexual e a viciada auto-
instrumentalização de novos sujeitos de risco. A história de Oxigênio mostra que, neste
contexto, o que permanece é o imperativo categórico da ciência – conhecer ad infinitum.
E, no lugar onde essa pulsão epistemológica é maquinada, não há necessidade da
presença de uma pessoa real. Como Hannah Arendt previu no final da sua obra “A
Condição Humana” (1958: 299), aqui os processos da vida interior, encontrados nas
paixões através da introspecção, tornam-se literalmente padrões e regras para a criação
da vida automática do ser humano artificial.
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132
TEMA DO PRÓXIMO NO DA REVISTA DA APPOA
DEPRESSÃO E MELANCOLIA
II DIREITOS AUTORAIS
A aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus, nesta
Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publicações.
V REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfabé-
tica pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. 2. ed.
Porto Alegre : Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20 . Mais ainda. Rio de Janeiro : J. Zahar, [s. d.].
PARTE DE OBRA
CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço conjugal.
Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo . São Paulo : Comp.
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FREUD, S. Teorías sexuales infantiles (1908) In: _____. Obras completas. 4. ed. Madri : Bibli-
oteca Nueva, 1981. v. 2.
ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? C. da APPOA , Porto Alegre, n. 71, p. 12-20,
ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente.Revista da Associação Psicana-
lítica de Porto Alegre , Porto Alegre, Artes e Ofícios, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.
ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl.
Jornal Zero Hora , Porto Alegre, 05 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.
NESTROVSKI, Authur. Uma vida copiada: prensa internacional reavalia memórias fictícias de
Beinjamin Wilkomirski. Folha de São Paulo , São Paulo,11 jul. 1999. Caderno Mais, p. 9.