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EFEITOS INTER

EFEITOS TEXTU
INTERTEXTU AIS N
TEXTUAIS A
NA
ENEID
ENEIDAA DE VIRGÍLIO
VIRGÍLIO
USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
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LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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Humanitas FFLCH/USP – outubro 2001


PAULO SÉRGIO DE VASCONCELLOS

EFEITOS INTER
EFEITOS TEXTU
INTERTEXTU AIS N
TEXTUAIS A
NA
ENEID
ENEIDAA DE VIR GÍLIO
VIRGÍLIO

2001

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Copyright 2001 da HUMANITAS FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,


sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP


Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

V331 Vasconcellos, Paulo Sérgio de


Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio / Paulo Sérgio de
Vasconcellos.— São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2001.

404p.

Originalmente apresentada como Tese (Doutorado – Faculdade


de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 1996).

ISBN 85-7506-023-6

1. Poesia épica latina 2. Intertextualidade 3. Virgílio 4.


Eneida I. Título

CDD 873

HUMANITAS FFLCH/USP

e-mail: editflch@edu.usp.br
Telefax: 3818-4593

Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento
Coordenação Editorial
Ma Helena G. Rodrigues – MTb 28.840
Projeto Gráfico
Walquir da Silva – MTb 28.841
Diagramação
Selma Ma Consoli Jacintho – MTb 28.839
Projeto de Capa
Diana Oliveira dos Santos
Revisão de Provas
Edison Luís dos Santos
Revisão
Autor
SUMÁRIO

Prólogo ............................................................................................................ 7

Capítulo I – Imitatio e intertextualidade na literatura latina ................................. 11


1. Imitatio e intertextualidade ...................................................... 13
2. O diálogo com o hipotexto: exemplificação ............................... 44
3. Precedentes, na épica latina, da estratégia intertextual
de Virgílio .............................................................................. 68

Capítulo II – Formas e processos alusivos na Eneida ............................................ 77


1. Citação e condensação ............................................................. 86
2. Um caso singular de contaminatio: o proêmio
da Eneida ............................................................................. 112
3. Paratextualidade: o título da epopéia ...................................... 125
4. Intratextualidade .................................................................. 129
5. Autotextualidade .................................................................. 148
6. “Correção” estética ............................................................... 161
7. Ironia ................................................................................... 170
8. Elipse ................................................................................... 182

Capítulo III – Efeitos intertextuais na “Odisséia” de Virgílio .............................. 189


1. Parte odissíaca e parte iliádica ................................................ 191
2. Enéias: alter Ulisses? .............................................................. 207
3. A canção de Iopas ................................................................. 221
4. O episódio de Aquemênides ................................................... 225
5. Universo elegíaco versus universo épico no canto IV ................ 231
6. A luta do livro V: ruptura de expectativa na estratégia
intertextual .......................................................................... 261
7. O silêncio de Dido ................................................................ 274
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Capítulo IV – Efeitos intertextuais na “Ilíada” de Virgílio .................................. 287


1. “Alius Achilles” .................................................................... 289
2. Guerra civil .......................................................................... 311
3. Camila e a sombra de Dido .................................................... 319
4. Turno e Dido ....................................................................... 329
5. Trama alusiva na cena final da epopéia .................................... 340

Conclusão ..................................................................................................... 385


Bibliografia .................................................................................................... 391

–6–
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

PRÓLOGO

Ao longo destas páginas, analisaremos questões intertextuais


na Eneida, propondo, como se verá, leituras intertextuais de versos,
cenas, episódios e até mesmo do título da epopéia. No primeiro capí-
tulo, de natureza introdutória, discutiremos as relações entre a no-
ção de intertextualidade tal como aqui a entenderemos e a de
imitatio, apresentando também uma amostra do jogo alusivo em
poetas latinos outros que não Virgílio épico. No segundo, apontare-
mos processos alusivos da epopéia virgiliana, com análises que vi-
sam, sobretudo, a ressaltar sua característica fundamental de gera-
ção de sentidos. O terceiro e o quarto capítulos apresentam e anali-
sam efeitos intertextuais na primeira e na segunda parte da epopéia,
ou seja, em sua “Odisséia” e em sua “Ilíada”, respectivamente. Nas
páginas que seguem, especialmente nos dois primeiros capítulos,
explicitaremos que aspectos do fenômeno da intertextualidade es-
tudaremos aqui. Essa advertência é motivada pela amplitude de sen-
tidos que o termo “intertextualidade” tem abarcado nos últimos
anos, tornando prudente sua “definição”, no sentido etimológico
mesmo desta palavra; podemos adiantar que seguimos, geralmente,
a esteira de um Genette, lidando com relações entre texto em foco e
textos por ele, de alguma forma, evocados, operando, porém, restri-
ções e estabelecendo especificidades de nomenclatura que se escla-
recerão no segundo capítulo. Interessa-nos o texto literário, sobre-
tudo o poético.
Ainda sobre a composição deste estudo, cumpre dizer que
traduzimos a quase totalidade das citações; quando se trata de tre-
chos literários latinos e gregos, sempre os vertemos nós mesmos para
o português ou apresentamos traduções portuguesas de outros; em

–7–
Paulo Sérgio de Vasconcellos

ambos os casos, o original acompanha a tradução, para que o leitor


especializado possa avaliar objetivamente a tradução realizada, mas,
sobretudo, para que todo leitor tenha elementos para apreciar as
análises propostas a partir de tais excertos. Contudo, quando repro-
duzimos comentários da crítica virgiliana, só deixamos no original
expressões ou trechos para os quais gostaríamos de chamar a aten-
ção ou que mereciam uma verificação particular. Citações de textos
literários que aparecem mais de uma vez só são acompanhadas de
tradução na primeira. Será preciso observar que nossas traduções
não têm pretensões literárias? De fato, muitas vezes preferimos a
versão literal, ou quase, especialmente quando estabelecemos con-
fronto com um modelo imitado.
Como se verá, na tradução literária de Virgílio, abrimos ami-
úde espaço a Odorico Mendes, cujo texto vem reproduzido sem
modernização da ortografia; de fato, tal tradução, malgrado certos
pontos discutíveis (como é naturalíssimo acontecer) parece-nos não
apenas a melhor em língua portuguesa como também digna de figu-
rar entre as mais prestigiadas de todos os tempos em todas as lín-
guas. (Falta um verbete consagrado ao tradutor na Enciclopedia
Virgiliana!) Ocasionalmente, é também a Odorico que recorremos
para transcrever traduções poéticas de Homero. Gostaríamos que o
espaço atribuído ao tradutor maranhense fosse considerado como
humílima homenagem a um latinista e helenista que, apesar da ex-
celência de sua produção, tem sido alvo de não leves incompreensões.
Na citação de textos latinos, uniformizamos o emprego do u
consonantal como u, e não v, mesmo quando a edição que seguía-
mos trazia a segunda grafia; semelhantemente, nunca transcreve-
mos o i consonantal como j.
É importante alertar para o fato de que não distinguimos siste-
maticamente, na utilização do importante comentário de Sérvio, as
passagens que pertencem ao chamado Seruius auctus ou Seruius
Danielinus, ampliação do primeiro reunindo escólios de autoria de-
batida.

–8–
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Finalmente, observamos que vêm indicadas na bibliografia as


edições de textos latinos e gregos que adotamos para as citações.
Antes de prosseguir, porém, precisamos registrar nossos agra-
decimentos a pessoas e instituições que de uma forma ou de outra
ajudaram a levar a cabo a tese que está na origem deste livro ou se
empenharam em sua publicação. Somos gratos ao Prof. Michele
Coccia, catedrático de Literatura Latina no Departamento de
Filologia Clássica da Università degli Studi di Roma “La Sapienza”,
que nos acolheu em nossa estada de um ano em Roma, possibilitan-
do, além do contato com estudiosos de Virgílio e importantes insti-
tuições de pesquisa, o acesso a livros e artigos de revista inacessíveis
no Brasil. Somos gratos à CAPES, que nos concedeu bolsa de estu-
do para desenvolver a pesquisa no exterior, à Unicamp e aos colegas
de Latim e Grego dessa universidade, que puseram à nossa disposi-
ção obras importantes e uma generosidade sempre pronta: Prof. Dr.
Francisco Achcar, então docente de Latim do Instituto de Estudos
da Linguagem; Prof. Dr. Trajano Vieira, da área de Grego do mes-
mo Instituto; Prof. Rogério Hafez, também docente de Grego da
Unicamp por ocasião da pesquisa e da defesa de nosso trabalho na
USP. À Profa. Dra. Ingeborg Braren, da USP, devemos, entre ou-
tras gentilezas, o prestativo auxílio para a resolução de dificuldades
burocráticas quando de nossa ida à Itália; à Profa. Dra. Angélica
Chiappetta, o empenho na publicação em livro de nossa pesquisa; à
FAPESP, a concessão de auxílio à sua publicação. Gratos somos
também à Banca Examinadora de nossa tese, que com suas críticas
e sugestões, levadas em conta aqui na medida do possível, permitiu
um aperfeiçoamento do trabalho original. Dela participaram os Pro-
fessores Doutores Francisco Achcar, Joaquim Brasil Fontes, José
Luiz Fiorin, Zélia de Almeida Cardoso, além do orientador de toda
a pesquisa, a quem dirijo um agradecimento especial. De fato, o Pro-
fessor Doutor Antonio da Silveira Mendonça, de quem tive a hon-
ra de ser colega na USP e na Unicamp, exemplo de sapiência e com-
petência aliadas a uma solicitude sempre tão pronta, a uma amizade

–9–
Paulo Sérgio de Vasconcellos

sempre tão íntegra, acompanhou desde o início este nosso trabalho


e o expurgou de várias imperfeições. É a ele que dedicamos este
livro, contando com sua indulgência para as falhas que aqui se en-
contrem e que são, todas, de nossa responsabilidade pessoal.
Uma última palavra para advertir que não foi possível incor-
porar a este livro o farto material que se produziu nos últimos anos,
em todo o mundo, sobre a questão intertextual na poesia greco-
latina e sobre Virgílio, em particular. Mais do que nunca está aceso
o debate; mais do que nunca se tornou anacrônico debruçar-se so-
bre a poesia antiga de um ponto de vista crítico sem levar em consi-
deração a “arte alusiva” tão vistosamente nela praticada.

– 10 –
I – IMITATIO E INTERTEXTUALIDADE
NA LITERATURA LATINA
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

1. IMITATIO E INTERTEXTUALIDADE

Os antigos Romanos sempre tiveram consciência de que sua litera-


tura era, na quase totalidade, literatura “de segundo grau”,1 isto é, uma
reelaboração criativa de formas e temas emprestados à cultura grega, con-
siderada exemplar, paradigma de excelência. É curioso que a explicitação
enfática dessa dependência e dessa aparente “inferioridade” se dê em
Horácio e Virgílio, respectivamente, os dois poetas que elevam a poesia
latina a um grau de sofisticação jamais atingido até então; o primeiro
declara, em passo tantas vezes citado:

Graecia capta ferum uictorem cepit et artes


intulit agresti Latio (Ep. II, 1, v. 156-157)

“A Grécia, capturada, capturou o feroz vencedor e as artes


introduziu no rústico Lácio...”

1
Desde aqui, será bom esclarecer que não trataremos em especial, neste trabalho, da
característica intertextual de toda obra literária, que mantém sempre com um conjun-
to de textos relações genéticas de que o escritor pode estar mais ou menos consciente;
nesse sentido, toda obra literária é “de segundo grau”, diálogo pacífico ou tenso com
uma tradição. Ficarão fora de nosso campo de interesse a “arquitextualidade” e a pro-
blemática do gênero – não porque se trate de questões menores para a compreensão de
Virgílio (nada estaria mais longe da verdade), mas porque restringiremos nosso estudo
à análise de aspectos menos evidentes dessa relação dialética com modelos – a geração
de sentidos, marca virgiliana que, apesar de permear toda a Eneida, é ainda hoje pouco
conhecida. Por outro lado, também não nos ocuparemos do caráter intertextual e
dialógico de todo código lingüístico. É fácil notar como a língua reutiliza de várias
formas, em novas unidades, enunciados prévios, criando jogos complexos de significa-
ção a partir das relações entre o já dito e o que se diz; mas convém não esquecer que a
linguagem poética, centro de nossos estudos, é singular, marcada por ritmo, figuras de
linguagem, esquemas sonoros, etc. que fazem do verso uma unidade mais perdurável
na memória coletiva e, em seu reemprego, mais facilmente identificável. Além disso,
poemas como os homéricos (ou, pelo menos, seus trechos mais prezados) eram estuda-
dos nas escolas romanas e confiados à memória, de tal forma que sua citação, mais ou
menos disfarçada, dificilmente passaria despercebida. Outros aspectos da questão se-
rão aflorados nas páginas que seguem. Para resumir: nosso foco em certos aspectos da
intertextualidade são uma consciente renúncia ao que não é essencial às nossas análi-
ses nem pode aqui ser tratado em profundidade.

– 13 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Para Horácio, vencida pelas armas romanas, a Grécia, que era


superior nas artes, acabou por dominar culturalmente seu conquista-
dor (capta / cepit) e exercer sobre ele o papel de civilizadora.2 O orgu-
lho nacional não tolhia tais manifestações; o próprio César, em dis-
curso reportado por Salústio, expõe aos senadores o que todos já re-
conheciam: Roma crescera imitando as instituições dos outros povos
que considerava boas e úteis:

Maiores nostri...neque illis superbia obstabat quo minus aliena


instituta, si modo proba erant, imitarentur /.../ quod ubique apud
socios aut hostis idoneum uidebatur, cum summo studio domi
exsequebantur: imitari quam inuidere bonis malebant. (De Con.Cat.
LI, 37-38)
“Quanto a nossos antepassados... o orgulho não os impedia de imi-
tar as instituições alheias, desde que fossem boas /.../ o que por toda
parte, entre os aliados ou os inimigos, parecia-lhes útil, realizavam
em seu país com o máximo empenho: preferiam imitar a invejar os
bons”.

No domínio da cultura, o exemplo mais surpreendente de re-


conhecimento de uma inferioridade original de Roma em face da
Grécia não nos dá Horácio mas Virgílio; na Eneida, em versos reple-
tos de comovido orgulho nacional, traçando o ideário romano,
Anquises se dirige aos descendentes de Enéias, ao povo ro-mano:

Excudent alii spirantia mollius aera,


credo equidem, uiuos ducent de marmore uoltus,
orabunt causas melius, caelique meatus
describent radio et surgentia sidera dicent;
tu regere imperio populos, Romane, memento
(hae tibi erunt artes), pacique imponere morem,
parcere subiectis et debellare superbos. (VI, v. 847-853)
“Outros hão de forjar mais suavemente bronzes que parecem respirar

2
No mesmo poema, Horácio observa que ainda em seu tempo permaneciam vestígios
da rusticidade inicial das letras latinas antes do contato com a Grécia: hodieque manent
uestigia ruris (“ainda hoje permanecem vestígios de rusticidade”, v. 160).

– 14 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

(creio de fato) e do mármore extrairão vultos vivos,


melhor defenderão causas e os caminhos do céu
descreverão com o compasso e o surgir dos astros dirão;
tu, Romano, lembra-te de reger sob teu império os povos
(serão estas as tuas artes), impor as condições da paz,
poupar os vencidos e debelar os soberbos.”

Num poema de consagração dos ideais romanos, espantamo-


nos com a afirmação de que as artes (provindas da Grécia, na visão de
Horácio) são apanágio de outros povos, pois que de espécie diversa
serão as qualidades identificadoras do poderio de Roma: controle so-
bre o mundo, com estabelecimento da paz, embasado na clemência
para com os que aceitam o jugo romano e na força contra os que o
rejeitam. Virgílio declara até mesmo a inferioridade dos Romanos na
retórica (orabunt causas melius), provocando compreensível perple-
xidade em vários leitores, comentadores e críticos, estarrecidos com o
juízo negativo subliminarmente lançado sobre a obra de Cícero.3 O
poeta não menciona explicitamente a poesia, mas é óbvio que a res-
trição hae tibi erunt artes (e se note o relevo dado ao demonstrativo
por sua posição, em início de verso e separado do substantivo de que
ele é adjunto) exclui outras habilidades que não as políticas e milita-
res.4
Em Roma havia, como se sabe, manifestações culturais autóc-
tones que poderiam ter dado origem a gêneros literários próprios ou a
uma literatura desenvolvida mais independentemente; assim, os cha-
3
Ver, a título de exemplo, CONINGTON. The Works of Virgil with a Commentary.
Hildesheim, Georg Olms, 1963, vol. II, p. 539, nota ao verso 849 do passo citado
acima. O silêncio sobre o nome de Cícero – ao passo que se menciona Catilina como
paradigma de celerado no Tártaro – tem feito pensar nas razões políticas que teriam
levado Virgílio a preterir a memória do mais célebre orador de Roma.
4
Digno de atenção o quiasmo excudent alii/tu regere...memento, que reforça a antítese.O
esquema foi bem observado por NORDEN, Eduard. P.Vergilius Maro Buch VI. 8. ed.,
Stuttgart, Teubner, 1984, p. 335. É fácil notar que o quiasmo não é perfeito, mas a
estrutura paralela em contraste nos parece evidente: predicado mais forma pronominal
seguidos de forma pronominal mais predicado, em orações que, semanticamente, esta-
belecem uma oposição.

– 15 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

mados carmina conuiualia 5 pareciam trazer o embrião de uma épica


autenticamente nacional; porém, o contacto com a cultura grega, acen-
tuado sobretudo a partir do século III a.C., sufocou essa e outras pers-
pectivas de desenvolvimento literário autônomo.
A primeira obra da literatura latina é uma tradução, a rústica
Odussia de Lívio Andronico, que se teve de haver com o processo de
transposição de um texto para outra língua e as questões delicadas daí
decorrentes, assunto ao qual voltaremos de forma menos sumária.
Posteriormente, Ênio, um poeta de tendências helenizantes, que ado-
tará o hexâmetro grego na epopéia e aperfeiçoará a dicção poética
latina como nunca se vira antes, mas sempre no sentido da aproxima-
ção mais estreita dos modelos gregos, clássicos e helenísticos, será
considerado o pater das letras romanas. Ênio, contraposto por Cícero
aos neóteroi, aqueles poetas de sua geração que revolucionavam a
literatura latina adotando com maior rigor os princípios alexandrinos,
na verdade não apenas compusera obras no espírito da nova estética
como também deixara explícita, no famoso prólogo de seus Annales,
paradigma de epopéia nacional antes da Eneida, a dependência do
modelo grego, neste caso sobretudo homérico, patenteada, de resto, na

5
Denominam-se assim os poemas recitados ao som da flauta pelos antigos Romanos em
época remota, já que Catão o Censor (séc. III a.C.) a eles se refere como costume dos
antepassados. Nada temos desses cantos bem como não possuímos o testemunho origi-
nal de Catão, reproduzido, na verdade, por Cícero, em duas passagens das Tusculanas:
Quamquam est in Originibus, solitos esse in epulis canere conuiuas ad tibicinem de
clarorum hominum uirtutibus... (I, 2)
“Embora se leia nas Origens que os convivas costumavam cantar, nos banquetes, ao
som da flauta, os feitos de bravura dos homens ilustres...”
...grauissimus auctor in Originibus dixit Cato, morem apud maiores hunc epularum
fuisse, ut deinceps, qui accubarent, canerent ad tibiam uirorum laudes atque uirtutes.
(IV, 2)
“...Catão, autor digno do maior crédito, disse, nas Origens, que era costume dos nossos
antepassados, nos banquetes, após se acomodarem à mesa, cantar ao som da flauta os
louvores e os feitos de bravura dos varões.”
Testemunhos desse mesmo costume – louvar em versos os antepassados durante os
banquetes – encontram-se também em Horácio (Odes IV, v. 29-32); Tácito (Annales
III, 5) e Sérvio (Ad Aen. I, 641).

– 16 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

dicção poética, na escolha do metro etc. Narrava ali que a “sombra” de


Homero lhe aparecera e contara que sua alma, após outras encarnações,
transmigrara para o corpo do próprio Ênio. O grande poeta da romanida-
de se pretendia, pois, um alter Homerus, título com o qual concordaria
Lucílio bem como os críticos mencionados por Horácio, em outro trecho
da epístola já citada, mas que a personagem Estácio das Saturnais conce-
deria a Virgílio, não a Ênio.6 Mais: o episódio dos Annales se baseia na
descrição de sonho que precede as Origens (Aitia)/) de Calímaco, o poe-
ta alexandrino por excelência. Já Ênio, portanto, lança mão de processo
alusivo que veremos utilizado por Virgílio na Eneida: filia-se à tradição
homérica, filtrando-a, entretanto, pela ótica – mais ou menos transfigu-
radora – da estética alexandrina. Estão em germe, pois, nos primórdios
mesmos da literatura latina, as sutilezas alusivas que serão multiplicadas
(e refinadas) por poetas das gerações seguintes, especialmente por Vir-
gílio.
Saboroso paradoxo: o próprio Cícero, desprezador e crítico incisivo
daqueles poetae noui,7 foi na juventude um versejador de tendências
alexandrinas e, além de composições próprias que se valem dessa estéti-
ca, redigiu tradução dos Fenômenos e dos Prognósticos de Arato – ade-
rindo, assim, num primeiro momento, à reprodução mais ou menos cria-
tiva de modelos alexandrinos.8

6
Ver fr. 343 de Lucílio; quanto aos passos de Horácio e Macróbio, ei-los:...alter Homerus,/
ut critici dicunt (“...um segundo Homero,/ como dizem os críticos” – HORÁCIO.
Epístolas II, 1, 50); Homerus uester Mantuanus (“...esse vosso Homero mantuano” –
MACRÓBIO. Saturnais. I, 16, 43).
7
Nas Tusculanas (III, 19), por exemplo, Cícero, numa referência depreciativa aos
poetae noui, contrapõe Ênio, “poeta egrégio” (poetam egregium) aos “cantores de
Euforião” (cantoribus Euphorionis: há uma nuança pejorativa nesse substantivo,
com sua idéia de repetição), que, segundo o orador, desprezavam o pater das letras
latinas. Sobre o pouco apreço em que o orador tinha os neotéricos, tem-se boa
síntese em PARATORE. História da Literatura Latina. Lisboa, Calouste Gulbenkian,
1983, p. 311-312.
8
Veja-se GENTILI, B. et alii. Storia della Letteratura Latina. Roma-Bari, Laterza,
1990, p. 261. Um panorama sucinto da influência de Cícero poeta sobre Virgílio

– 17 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Da tradução à criação de obra original a partir de um modelo,


grande é o passo,9 mas desde o início a filiação a texto ou textos a
partir dos quais criarão suas obras os escritores latinos permanecerá
norma: literatura em segundo grau, se assim podemos nos expressar,
derivada de matéria preexistente.
Os Romanos terão um nome para designar esse processo –
imitatio, conceito que de certa forma abarcará a noção de aemulatio:
tentativa de igualar ou superar o original. Suas sutilezas serão demons-
tradas ao longo destas páginas, segundo esperamos. Veremos, por
exemplo, que não se trata de retomar apenas modelos gregos mas
também latinos; por vezes, numa delicada operação, um escritor reto-
ma um modelo grego através de um poeta latino que já o imitara. Dá-
se mesmo o caso da “auto-imitação”: um poeta pode retomar seus
próprios versos e reelaborá-los na feitura de nova obra, confiando que
o leitor se recordará do contexto precedente e fará o confronto inter-
textual. Também é conhecido o processo de contaminatio, um con-
ceito aplicado especialmente ao teatro de Plauto e Terêncio e que
consiste na fusão de dois ou mais modelos gregos ou na inserção, num
modelo privilegiado, de cenas, situações, personagens de outras fon-
tes.

se pode ler na Enciclopedia Virgiliana. Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 1984,
vol. I, p. 776-777.
9
Não queremos dizer que uma tradução não seja uma obra original, um ato criativo,
mas que um tradutor, por mais criativo que seja, tem, do ponto de vista do diálogo
com o texto de partida, menor liberdade: Virgílio, que não se apresenta como tradu-
tor, não é obrigado, por exemplo, a seguir as grandes articulações da epopéia homé-
rica (embora não raro o faça) como Lívio Andronico, que traduz a Odisséia (além
do mais, para servir como texto escolar!). Virgílio transforma seu modelo como
quer; Lívio, se tivesse assumido a mesma atitude, teria criado um texto que não
ousaria senão por alguma intenção especial chamar Odisséia; o autor da Eneida é
Virgílio, mas o da epopéia homérica, mesmo sob vestes latinas, ainda é Homero, não
Lívio – embora pudesse, talvez, o tradutor de hoje, consciente da natureza intertex-
tual de sua tarefa, revoltar-se contra esse “preconceito”, afinal trata-se da mesma
relação dialética que todo criador mantém com seus modelos, ainda que em outro
grau e meta diversa.

– 18 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Praticada largamente, a imitatio não deixava de dar margem a


mal-entendidos; o próprio Virgílio (e logo entenderemos por que sua
obra oferecia farta ocasião para tais equívocos) foi constantemente
acusado na Antigüidade de mero plagiador de Homero em sua Eneida.
Tal crítica já nascera entre seus contemporâneos, e aos que o recrimi-
navam por seus supostos furta, o poeta desafiava: “Por que não tenta-
vam eles também esses mesmos furtos? Compreenderiam, então, que
é mais fácil surrupiar de Hércules sua clava que de Homero um ver-
so.”10
Não é possível comprovar a autenticidade da anedota. Se tal
frase foi de fato dita por Virgílio, revelaria a manifestação daquela
“angústia da influência” que Harold Bloom investigou como uma das
constituintes fundamentais da tradição poética:11 apropriar-se de verso
de Homero é tarefa comparável à da tentativa de roubar de Hércules
sua arma. Assim, Virgílio reconhece a superioridade do grande pre-
cursor (Homero, como o semideus, tem estatuto superior ao dos mor-
tais comuns) bem como o desafio ingente da operação imitativa, seja
qual for o sentido preciso a dar à expressão “surrupiar um verso”. O
poeta seria alvo fácil dos malevolentes, incapazes de apreciar como a

10
Vita Donati 46, apud TOLKIEHN. Omero e la Poesia Latina. Bologna, Pàtron, 1991,
p. 49, n. 125. A citação completa: Asconius Pedianus libro, quem contra obtrectatores
Vergili scripsit, pauca admodum obiecta ei proponit eaque circa historiam fere et quod
pleraque ab Homero sumpsisset; sed hoc ipsum crimen sic defendere adsuetum ait:
“cur non illi quoque eadem furta temptarent? uerum intellecturos facilius esse Herculi
clauam quam Homero uersum subripere.” (“Ascônio Pediano, no livro que escreveu
contra os detratores de Virgílio, faz-lhe muito poucas objeções e geralmente a propósi-
to da história e por ter tomado quase tudo de Homero; mas diz que o próprio poeta
costumava se defender de tal acusação assim: ‘Por que não tentavam eles também esses
mesmos furtos? Compreenderiam, então, que é mais fácil surrupiar de Hércules sua
clava que de Homero um verso’”). A expressão “surrupiar a clava de Hércules, um
verso de Homero” deveria ser proverbial, como se depreende deste passo das Saturnais,
em que um dos convivas defende Virgílio: cum tria haec ex aequo impossibilia putentur,
uel Ioui fulmen uel Herculi clauam uel uersum Homero subtrahere... (“...sendo consi-
deradas igualmente impossíveis três coisas: tirar de Júpiter seu raio, ou de Hércules a
clava, ou de Homero um verso...”, V, 3, 16).
11
Angústia da Influência. Rio de Janeiro, Imago, 1991.

– 19 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

imitatio se torna, em sua obra, princípio estético levado a conseqüên-


cias extremas, mecanismo gerador de sentido, como veremos. Segun-
do Donato, um certo Perélio Fausto, teria publicado toda uma rela-
ção de furta cometidos por Virgílio!12
Nas Saturnais, depois que Eusébio convence seus colegas na
discussão de que Virgílio é não só poeta mas orador consumado,13
Evângelo, provocativo, expressa sua descrença na cultura literária grega
de um poeta que nascera no Vêneto, em família de camponeses.14 A
resposta a tão descabida questão, à qual se pode objetar, por exemplo,
que na verdade era muitíssimo civilizada a Gália cisalpina em que
nascera o poeta, Eustácio tece ampla e minuciosa defesa de Virgílio,
centrada em apontar na sua obra o profundo conhecimento da cultu-
ra e da ciência grega. Interessa-nos relevar que a argumentação se
apóia no conceito de imitatio e aemulatio; assim, para Eustácio, a
Eneida é como que um espelho da obra homérica:

Quid quod et omne opus Vergilianum uelut de quodam Homerici


operis speculo formatum est? (V, 2, 13)

“Que dizer da obra de Virgílio em seu conjunto, modelada como


uma espécie de espelho da obra de Homero?”

Confrontando trechos de Virgílio com o equivalente homérico,


Eustácio por vezes acrescenta breve apreciação estética da imitatio,
como se a intenção do poeta latino fosse de fato rivalizar com o origi-
nal grego; dessa forma, Virgílio ora igualaria, ora superaria, ora não
atingiria a excelência do modelo.

12
Vita, 44.
13
Omnes inter se consono murmure Vergilium non minus oratorem quam poetam
habendum pronuntiabant (V, I, 1).
14
Vnde enim Veneto rusticis parentibus nato, inter siluas et frutices educto, uel leuis
Graecarum notitia litterarum? (“Pois como um vêneto, filho de pais camponeses,
criado entre florestas e arbustos, poderia ter conhecimento, por mais vago que fosse,
das letras gregas?”, V, 2, 1).

– 20 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

No livro VI, Rúfio e Cecina Albino expõem a imitatio dos mo-


delos latinos, sob o enfoque da emulação do original. O trecho abaixo
transcrito é interessante por mostrar outro aspecto da retomada dos
modelos – sua função de “ornato” – constantemente relevada como
um dos objetivos da imitação – bem como atestar que a acusação de
plágio pairava sempre sobre o poeta:

Etsi uereor ne, dum ostendere cupio quantum Vergilius noster ex


antiquiorum lectione profecerit et quod ex omnibus flores uel quae in
carminis sui decorem ex diuersis ornamenta libauerit, occasionem
reprehendi uel imperitis uel malignis ministrem, exprobantibus tanto
uiro alieni usurpationem nec considerantibus hunc esse fructum legendi,
aemulari ea quae in aliis probes, et quae maxime inter aliorum dicta
mireris in aliquem usum tuum opportuna deriuatione conuertere; quod
et nostri tam inter se quam a Graecis et Graecorum excellentes inter se
saepe fecerunt. (VI, 1, 2)

“No entanto, desejando mostrar quão grande proveito tirou o nosso


Virgílio da leitura de seus predecessores e que flores e que ornamentos
colheu de todos eles, de partes diversas, para embelezamento de seu
poema, receio oferecer aos ignorantes ou aos maldosos pretexto para
criticá-lo repreendendo em tão grande homem a usurpação do alheio,
sem considerar que tal é o fruto da leitura – tentar igualar o que nos
outros se aprova e usar em benefício próprio do que mais se admira na
obra dos outros; foi isso que fizeram amiúde não só os nossos, tanto
entre si quanto tomando emprestado dos gregos, como os melhores
dentre os gregos entre si.”

Nesse período longo e solene, repleto de subordinação bem ba-


lanceada, em ciceroniana concinnitas, patenteia-se a consciência de
que a obra de Virgílio está cheia de referências intertextuais e que tal
característica não constitui plágio, mas exercício de admiração para
com a obra que se toma por modelo em vista de sua excelência. O
processo é bem identificado, ainda que sua marca mais profunda e
surpreendente – a criação de sentido que deriva do diálogo com o
autor que se cita ou evoca – não é expressa. Atribui-se função perifé-
rica à retomada de modelos: adorno da expressão poética.

– 21 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Assim, nas próprias Saturnais, o exame da imitatio virgiliana,


dividido em duas partes – o que o poeta tomou dos gregos, o que dos
latinos, restringe-se à indicação das passagens em confronto e ocasio-
nais apreciações sobre o resultado da rivalidade com o original; a des-
crição da tempestade na Eneida, por exemplo, faz-se com mira
imitatione (V, 2, 13); por vezes, Virgílio supera Homero:

non negabo non numquam Vergilium in transferendo densius


excoluisse. (V, 11,1)

“Não negarei que por vezes Virgílio, em sua reelaboração, cultivou


mais plenamente a forma”.

Nec non negauerim cultius a Marone prolatum. (V, 11, 30)

“Nem poderia negar que Marão o expressou com maior elegância.”

Note-se a cautela na expressão do juízo: non/nec negare – a


litotes atenua a afirmação sobrze a superioridade estética ocasional
do poeta latino em face de seu modelo maior.
Entretanto, por vezes Virgílio se revela inferior:

dicam in quibus mihi uisus sit gracilior auctore. (V, 13, 1)

“Direi em que momentos me pareceu não estar à altura do modelo.”

Ocasionalmente, o imitador se mostra quase tão hábil quanto o


imitado:

In aliquibus par paene splendor amborum est. (V, 12, 1)

“Em alguns momentos, é quase igual o brilho de ambos.”

Virgílio a tal ponto idolatraria Homero que, na versificação,


teria imitado até mesmo seus defeitos!15 Com outros modelos gregos,

15
V, 14, 1.

– 22 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

mesmo tipo de paralelo: a fábula de Dido, por exemplo, teria supera-


do em elegância (elegantius) a história dos amores de Medéia e Jasão,
narrada por Apolônio nas Argonáuticas (V, 17, 5). Quanto aos poe-
tas latinos, Virgílio salvou, dessa forma, do esquecimento a obra de
vários escritores antigos (V, 1, 5), com a reprodução de versos que
parecem soar melhor no texto do imitador (VI, 1, 6).
Em suma, louvável por não confundir jogo alusivo com plágio,
além de nos ter conservado grande número de fragmentos de obras
latinas hoje perdidas, a análise de Macróbio, operada através dos per-
sonagens de sua obra, peca por traçar apreciação demasiado superfi-
cial, que não capta o cerne do processo intertextual em Virgílio: os
efeitos de leitura que o confronto com os modelos instaura.
Também Sérvio, que aponta constantemente os modelos virgi-
lianos ao longo de seu comentário à Eneida, não parece se dar conta
dessa característica da imitatio tal como a desenvolve Virgílio; para
ele, o poeta simplesmente “gosta de citar o que lê”, acrescentando
alguma modificação ao original.16
Referíamos, no início destas nossas considerações, uma causa
histórica para o surgimento de uma literatura “de segundo grau” en-
tre ozs Romanos, sua dependência inicial da literatura grega; acres-
centa-se outra, de capital importância:Roma estreita seu contato com
esta última no período helenístico, em que se praticava a atividade
literária com amplo recurso às alusões intertextuais; de fato, sobretu-
do na poesia, desenvolve-se então a arte da intertextualidade, que se
torna parte integrante do fazer literário. Fruto de uma cultura agora
eminentemente escrita e que venera seus modelos e os reutiliza de
todas as formas, surge uma poesia culta17 paralelamente à figura do
filólogo erudito, exegeta dos textos da tradição. Por princípio, um
poeta jamais partirá do nada, mas criará sempre a partir de outros

16
Ad Aen. III, 10: aqui, o autor imitado é Névio (edição THILO, vol. I, p. 336).
17
“Essa relação entre poesia e erudição que constitui uma das características mais
importantes da criação poética alexandrina...”, como dizem KÖRTE & HÄNDEL.
In: La poesía Helenística. Barcelona, Labor, 1973, p. 19.

– 23 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

textos modelares, especialmente do homérico, cultuado como


paradigma supremo e matriz fecundante de novos textos além de fon-
te de todos os gêneros literários.18
Sabe-se que a literatura latina, das origens até a época de
Augusto, encaminhar-se-á no sentido de um aperfeiçoamento de
suas formas pelo cinzel depurante da arte neotérica, alexandrini-
zante. Virgílio e Horácio, que reconhecidamente elevam o verso
latino a uma perfeição que o rústico satúrnio19 de um Lívio Andro-
nico jamais pôde atingir, serão os expoentes dessa maior exigência
no cultivo da forma, princípio fundamental da estética alexandri-
na,20 ao consagrarem em sua dicção poética um sistemático labor
limae; comporão também com a arte delicada e complexa da incor-
poração de outros textos, gregos e latinos, a seu próprio texto, fa-
zendo da arte alusiva princípio estético, como seus predecessores
helenísticos.
Vimos como Virgílio era com freqüência mal-interpretado, acu-
sado de plágio em face de Homero – equívoco que deveria estar bas-
tante difundido se nas Saturnais extensas considerações são dedicadas a
provar que o poeta rivalizava com seus modelos e por vezes os superava:
percebe-se que muitos leitores não pareciam estar cientes de que a refe-
rência a Homero, como a tantos outros precursores, era parte estrutural
da significação da Eneida, não mero elemento decorativo ou plágio
revelador de pobreza criativa e falta de originalidade.

18
Sobre um outro aspecto da questão intertextual na Antigüidade, o problema da
reutilização dos lugares-comuns, veja-se nossa observação mais além.
19
Horácio o denomina horridus (“rude”, “tosco”) e cita a decadência de seu prestígio
como resultado da influência da elegância grega sobre a rusticidade das letras lati-
nas antes de seu contacto com as artes gregas (Ep. II, 1, v. 157-159).
20
Ainda que os dois luminares da época de Augusto superem o alexandrinismo estrito
(Virgílio, por exemplo, compõe uma epopéia longa e na tradição homérica, o que re-
pugnaria a Calímaco), “não renunciam, de fato, às conquistas técnicas dos poetae noui
nem à poética de Calímaco, de quem aceitam os elementos essenciais – sobretudo o
refinamento formal, a erudição literária e mitológica, a destinação elitista da poesia...”
(GENTILI, B. et alii. Op. cit., p. 270).

– 24 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Atualmente, após a copiosa e profunda reflexão que se tem fei-


to sobre a natureza da literatura e a noção de intertextualidade, estamos
mais preparados para não cair na esparrela de ler Virgílio como imita-
dor sem viço de Homero ou – pior ainda – lê-lo sem levar em conside-
ração a multiplicidade de outros textos no texto de sua obra.21 Aqui,
nosso interesse é, primordialmente, Virgílio, mas, cremos, toda a his-
tória da literatura latina pode e deve ser refeita sob o ponto de vista
da intertextualidade: tal fio condutor nos permitiria rever erros de
apreciação e afinar nossa compreensão de seu rosário de textos.
Até o século passado, o estudo das relações intertextuais na
poesia latina quase sempre se limitava à identificação minuciosa das
“fontes”. O filólogo geralmente se mostrava satisfeito depois de ter
conseguido identificar determinado passo a que um poeta aludia ou
citava em seu poema; muitas vezes acrescentava juízo estético sobre a
capacidade do novo texto em nivelar ou superar a excelência do ori-
ginal; não se analisavam, entretanto, os sentidos que a evocação in-
tertextual presentificava ao leitor apto a percebê-la e decodificá-la. A
bem da verdade, a Quellenforschung, em que têm brilhado sobrema-
neira os filólogos alemães, é passo indispensável e primeiro para a
análise intertextual, pois que de início, obviamente, é preciso detec-
tar a alusão, tarefa árdua, que exige conhecimento extenso e ativo
dos escritores da tradição cultural em que se insere o poeta ou prosa-
dor em foco, bem como a perspicácia de perceber sutilezas alusivas,
mas não se pode dizer que se compreendeu a função de uma retoma-
da de outro texto simplesmente quando se apontou a “fonte” ou “fon-
tes” certas ou possíveis. No estudo da Eneida, um precedente remoto
desta atitude é Quinto Otávio Avito, que teria escrito oito livros com
o balanço dos versos da epopéia que retomavam outros textos e a

21
No campo dos estudos virgilianos, destacam-se nomes como Georg Knauer, Gian Biagio
Conte, Alessandro Barchiesi, Philip Hardie, Francis Cairns, R. O. A. M. Lyne e Nicholas
Horsfall – com obras que citaremos ao longo de nosso trabalho: todos exploram as rela-
ções intertextuais em nível muito acima da mera coleta de “fontes”.

– 25 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

indicação desses hipotextos – Omoio/


( thtej (literalmente: Seme-
lhanças). 22

Croce tem palavras incisivas para criticar essas análises incom-


pletas ou falseadas:

“...aquela assombrosa tendência da crítica através da qual os pesquisa-


dores eruditos de fontes imaginam haver explicado uma obra literária,
quando encontram seus antecedentes...”23

Do mesmo modo, Wellek, numa advertência importante para


quem lida com intertextualidade:

“Obras de arte, no entanto, não são simples somatórios de fontes e


influências; são conjuntos em que a matéria-prima vinda de outro lugar
deixa de ser matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutu-
ra”.24

A prática da pesquisa de fontes, em que se esmerou a filologia


alemã, secundou equívocos na interpretação e avaliação crítica da
obra de Virgílio como da dos escritores latinos em geral. No século
XIX, as concepções românticas a respeito da originalidade e do gênio
natural e espontâneo, que os críticos reconheciam num Homero, cuja
epopéia teria brotado da alma popular, conservando-lhe todo o fres-
cor, forneciam argumentos para desprezar Virgílio por sua suposta
artificialidade e falta de originalidade.25 Ignorando ao mesmo tempo o
caráter convencional da epopéia homérica, fruto de longa elabora-
ção, e a natureza do processo criativo de Virgílio, muitas vezes os

22
Vita Donati, 45. O nome varia de acordo com a tradição manuscrita. O texto
reproduzido na Enciclopedia Virgiliana (vol. V**, p. 439) traz Omoioteleu/
( twn.
Quanto a seu autor, é certo que se trata de mais um dentre os muitos obtrectatores
do poeta; a coletânea serviria, então, para o acusar de plágio.
23
“A Literatura Comparada”. In: COUTINHO, E. & CARVALHAL, T. (Org.). Li-
teratura Comparada.Textos Fundadores. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 62.
24
“A Crise da Literatura Comparada”. In: Idem, ibidem, p. 111.
25
Dois pequenos exemplos representativos de toda uma tendência antivirgiliana.
Para August Wilhelm von Schlegel (1767-1845), Virgílio “não é mais do que um

– 26 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

estudiosos se posicionaram a respeito de um e de outro como se esti-


vessem imbuídos do velho espírito da aemulatio, que incitava, em
outros tempos, a comparar a obra dos dois poetas e eleger uma delas
em detrimento da outra26 – maniqueísmo renitente que simplesmente
desconhece e, portanto, interpreta mal, as intenções estéticas das obras
de escritores latinos como Virgílio. Mesmo um poeta como Catulo,
tantas vezes celebrado por sua originalidade e espontaneidade, apa-
rentemente não preso a modelos em suas composições mais brilhan-
tes, tem sido atualmente reavaliado e já não pode ser invocado como
antípoda de um Virgílio. Suas poesias pessoais estão repletas de luga-
res-comuns várias vezes tratados na poesia grega e também retomam
modelos gregos; se conhecêssemos melhor a literatura helenística, com
certeza ainda mais intensa nos apareceria sua subordinação a uma
tradição literária. Em suma, não fez literatura intertextual apenas
quando traduziu Calímaco ou Safo; Catulo, porém, com sua técnica
da simulação de espontaneidade e sinceridade, que apontamos em
outro trabalho,27 faz-nos mais facilmente não perceber o aspecto “cul-

talentoso fabricante de mosaicos, que organiza habilmente empréstimos de outros poe-


tas” (apud ZIOLKOWISKI, Theodore. Virgil and the Moderns. Princeton, Princeton
University Press, 1993, p. 78). O historiador Niebuhr (1776-1831) disse que “a Eneida
não passa de um potpourri de erudição de que só os antiquários podem tirar proveito”
(Idem, ibidem, p. 79).
26
Exemplar, nesse sentido, o comentário de Aulo Gélio: admira uma comédia de Cecílio
quando a lê sem cotejá-la com seu modelo grego, Menandro, mas ao compará-la
com a deste último, decepciona-se e conclui que o poeta latino “não deveria procu-
rar imitar o que era incapaz de reproduzir” (non puto Caecilium sequi debuisse,
quod assequi nequiret, II, 23, 22). Mas, como aponta Cesare Questa, as análises
textuais comparativas de Gélio falham por não levar em consideração a peculiarida-
de dos textos, que os faz diversos; assim, o estudioso latino confronta uma versão de
Cecílio para versos de Menandro sem se ater à distinção mais evidente (descontan-
do-se a diversidade de línguas) – enquanto no grego se tratava de trecho para ser
recitado, no latino se cria uma “versão” para ser cantada (In: PLAUTO, Tito Maccio.
Casina. Introduzione di Cesare Questa. Milano, BUR, 1988, p. 30).
27
VASCONCELLOS, P. Realidade Biográfica e Verdade Poética no “Romance Amoro-
so” de Catulo. São Paulo, FFLCH da USP, 1990 (dissertação de mestrado).

– 27 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

to”, doctus, de sua poesia, as características alexandrinas de sua arte,


que não se restringem aos poemas de maior fôlego.
Para a superação das deficiências da Quellenforschung em sen-
tido restrito, tem contribuído muito, no âmbito das letras clássicas,
um célebre artigo de Giorgio Pasquali sobre a “arte alusiva”, publica-
do inicialmente em 1942; distinguindo das reminiscências involuntá-
rias as alusões intencionais, afirma:

“As alusões não produzem o efeito pretendido senão sobre um leitor


que se recorde claramente do texto ao qual se referem.”28

Para Pasquali, o processo alusivo está presente não apenas na


literatura clássica mas na literatura em geral como em todas as ar-
tes;29 prenuncia-se a reflexão de um Genette:

“As práticas da derivação não são, absolutamente, privilégio da litera-


tura, mas...encontram-se também na música e nas artes plásticas”.30

Genette, por sua vez, aprofundará o tema e cautelosamente res-


saltará as peculiaridades do processo em uma arte e outra; Pasquali se
mantém na analogia e na apresentação de alguns poucos exemplos;
seu artigo, aliás, é relativamente curto, ainda que admiravelmente
denso e inspirador.
O filólogo italiano releva o papel ativo do leitor-decodificador,
que deve ler, por exemplo, versos de Virgílio ou Horácio tendo em
mente, “até nos mínimos detalhes, Homero e Hesíodo, Apolônio e
Arato, Calímaco e quem sabe quantos outros alexandrinos; dentre os
Romanos, pelo menos Ênio e Lucrécio, mas também os próprios con-
temporâneos”.31

28
“Arte Allusiva”. In: Pagine Stravaganti. Firenze, Sansoni, 1968, p. 275.
29
Idem, ibidem, p. 276.
30
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La Littérature au Second Degré. Paris, Seuil, 1982,
p. 443.
31
Idem, ibidem, p. 276.

– 28 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Interessa-nos, precipuamente, que Pasquali se revela ciente da


importância do intertexto criado pela alusão, que não é mero adorno,
mas integra a significação, como revela a sua análise de um exemplo
da Eneida; de fato, vejam-se os versos de sentido vago do livro VI:

uendidit hic auro patriam dominumque potentem


imposuit, fixit leges pretio atque refixit. (VI, v. 621-622)

“Este vendeu por ouro a pátria e um senhor poderoso


impôs; estabeleceu leis por dinheiro e aboliu-as.”32

O hic do contexto ganha nome preciso quando confrontamos


esses versos com os de Vário, conservados nas Saturnais (VI, 1, 39) e
que se referem a Marco Antônio:

uendidit hic Latium populis agrosque Quiritum


eripuit, fixit leges pretio atque refixit.
“Este vendeu o Lácio aos povos e os campos dos Quirites
arrebatou; estabeleceu leis por dinheiro e aboliu-as.”

Pasquali expressa a suposta intenção do poeta:

“Vário certamente tinha em mente Marco Antônio e nele Virgílio terá


desejado que seu leitor pensasse...” (grifo nosso)33

32
De passagem, façamos uma ressalva à tradução de Tassilo Orheu Spalding; seu texto
traz:
“Aquele vendeu sua pátria por ouro e lhe impôs um senhor todo-poderoso; aquele
outro, mediante certa soma, estabeleceu leis e aboliu-as...”
Como se depreende com facilidade pelo exame do contexto, a referência é a um só
personagem, não a dois (“aquele...aquele outro...”); hic se conecta com o outro hic
que inicia o verso da seqüência. Talvez o tradutor se tenha dexado extraviar pelo
comentário de Sérvio, que, artificialmente, separa os enunciados, vendo neles alu-
sões a diferentes personalidades (ver edição THILO, vol. II, p. 87-88).
33
Idem, ibidem, p. 278. Por outro lado, os estudiosos invocam, desde Sérvio, um curioso
precedente ciceroniano: nas Filípicas (XIII, II, 5), aparece a expressão leges refixistis
(“abolistes as leis”), com referência à abolição das leis de Antônio. Se aceitarmos que
Varo, no De Morte (Caesaris) retoma Cícero, poderemos vislumbrar um exemplo in-

– 29 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Obviamente, os versos não são incompreensíveis para o leitor


que não percebe a alusão; no contexto, a Sibila enumera a Enéias as
múltiplas formas do crime, isto é, situações típicas que não necessi-
tam obrigatoriamente de aplicação a personagem específico; desse
modo, temos na seqüência a descrição cuja referência precisa – caso
haja uma – é desconhecida:34

hic thalamum inuasit natae uetitosque hymenaeos (v. 623)


“Este se precipitou sobre o tálamo da filha e os proibidos himeneus”.

Duas leituras são possíveis, portanto: a alusiva acrescenta um


significado ao significado geral “faces do crime”, é necessariamente
mais rica. Mas este é apenas um exemplo pálido, a nosso ver, da arte
intertextual de Virgílio, muito mais sutil e surpreendente.
O tom de certas expressões de Pasquali revelam que seus con-
frontos intertextuais suscitavam desagrado em muitos. Não se po-
deria prever a influência enorme que seu artigo exerceria posterior-
mente, quando se superariam os mal-entendidos de uma leitura
crítica limitadora. Breve e cauteloso, o autor não pôde extrair todas
as conseqüências de suas idéias, tarefa deixada para depois; de nos-
sa parte gostaríamos de tê-lo visto salientar este aspecto crucial da

trigante de efeito intertextual, afinal, nas Filípicas, fala-se das leis de Antônio, abolidas
por terem sido impostas à força e contra os auspícios (per uim et contra auspicia). Varo
remete, portanto, a todo um contexto de pesadas acusações contra aquele político
polêmico, ao mesmo tempo em que amplia a acusação contida na expressão original:
Antônio teve leis abolidas mas ele mesmo aboliu leis ou as fez, movido não pela genu-
ína sede de justiça dos senadores romanos (de que fala Cícero), mas pela mais deslavada
corrupção... Seja como for, um dado é incontestável: a retomada textual está a apontar
uma alusão a Marco Antônio neste ponto da Eneida, um dado importante numa epo-
péia que celebra Augusto.
34
Norden critica a sugestão serviana de que se trataria de alusão a Tiestes ou a Cíniras,
o pai de Mirra; para ele se trata simplesmente de referência geral a um tema caro à
poesia helenística, a danação dos impudicos (NORDEN, Eduard. Op. cit., p. 292).
Seja como for, não se percebe alusão a personagens não míticas, num contexto em
que o poeta mescla mito e homens comuns.

– 30 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“arte alusiva” que é a criação de sentido. Seja como for, suas refle-
xões, que tinham sido prenunciadas, sobretudo, por filólogos ale-
mães, foram de grande influência e consagraram a expressão “arte
alusiva” aplicada ao jogo intertextual. É curioso, por fim, observar
que o artigo de Pasquali se centra em exemplos de Virgílio; de fato,
nenhum escritor latino radicalizara a tal ponto o princípio da
alusividade e, por isso, sua obra interessa sobremaneira aos que se
ocupam da questão.
Num ensaio independente do de Pasquali, Jackson Knight,
partindo de estudos sobre poetas da literatura universal, reconheceria
a “imitação como lei universal da poesia”,35 prenunciando a teoria de
Harold Bloom. Para ele, mais que tentativa de emulação, a imitatio é
exercício de admiração por um modelo e meio de oferecer ao leitor
aquele prazer do reconhecimento de que já falava Aristóteles – e é
digno de nota que estudiosos modernos da intertextualidade não dei-
xam de relevar esses pontos.
O mérito maior de Knight é combater enfaticamente a idéia de
uma inferioridade imediata de Virgílio em razão de suas imitações
múltiplas de outros poetas e definir esse processo alusivo como ele-
mento estrutural da arte virgiliana, a que ele nomeia “integração”,
“arte integrativa”, o poeta latino faria parte daqueles criadores que
“integram...sua obra com derivações de outras obras originais”.36

35
É desse pressuposto, assim enunciado pelo Padre Spinoza (1894-1961), que parte o
estudo de Knight. A frase está em Virgilio Romano. Milano, Longanesi, 1949, p. 116.
Spinoza condena os paralelos típicos que se fazem entre Homero e Virgílio e, baseado
nos estudos de Victor Bérard, relembra que mesmo Homero imitou as suas “fontes”
(apud ZIOLKOWISKI, Op. cit., p. 52-53).
36
Idem, ibidem, p. 121. Devo ao Prof. Dr. Antonio da Silveira Mendonça, a observação
de que nas próprias Saturnais parece enunciar-se tal idéia; de fato, para Eustácio, “o
que tomou dos gregos Virgílio inseriu em seu poema como se ali tivesse brotado” (carmini
suo tamquam illic nata conseruit, Sat.V, 2,2): supera-se, aqui, a redução das relações
intertextuais à mera imitatio superficial ao se reconhecer que o poeta integra na estru-
tura da obra as alusões.

– 31 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Infelizmente, porém, o estudioso põe em excessivo relevo os


aspectos inconscientes do processo; assim, em grande parte, as “deri-
vações” viriam à mente do poeta de forma involuntária e passariam,
depois, pela correção criticamente exercida pela consciência. Notem-
se estas palavras:

“Quando Virgílio lia, pensava, observava e sentia, as impressões que


lhe vinham da vida ou das leituras imprimiam-se na sua memória e
inadvertidas (grifo nosso) se combinavam num conjunto; no entanto,
ele trabalhava, projetava, decidia pelo menos o que acreditava querer
fazer, se bem que o caprichoso impulso poético fizesse desviar bastante
os seus projetos humanos”.37

Ainda que se siga uma atenuante a essas considerações, pois


que seu autor ressalta a importância do trabalho consciente, que exer-
ceria uma espécie de revisão estética, todo o texto de Knight, cujo
interesse pela psicologia é conhecido, ressente-se de certa ênfase nos
aspectos supostamente inconscientes do processo alusivo. Ora, sobre
os aspectos psicológicos da alusão literária nada podemos afirmar;
devemos interrogar-nos quanto aos efeitos intertextuais possíveis, re-
nunciando a qualquer indagação sobre seu aspecto voluntário ou
involuntário; as “certezas” da interpretação, de resto, nunca serão
absolutas, ou seja, não se trata de saber o que Virgílio quis dizer38 no
intertexto, mas que efeitos podemos identificar a partir de uma leitu-
ra que leve em conta o jogo alusivo, os contextos confrontados, a
coerência de nossa análise com o conjunto da obra. O leitor implícito
se torna decifrador ativo não de uma fórmula matemática mas de
sentidos tênues que vêm revestir a leitura linear: necessariamente,
pairará sempre um quê de mistério, atormentador se não renunciar-

37
Idem, ibidem, p. 126.
38
Desde que não se caia no psicologismo falseador e se tenha consciência da imprecisão
dos termos, não censuramos o uso de expressões do tipo “intenções do poeta”, de que
nós mesmos lançaremos mão: trata-se de fórmula cômoda a que parece impossível
renunciar. Não queremos ressuscitar o “Autor”, cuja morte se anunciou há bastante
tempo...

– 32 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

mos a solicitar do texto uma única e completa resposta precisa que


supostamente o desvende definitivamente. A natureza deste aspecto
da intertextualidade – evocação de sentidos não explicitados mas sus-
citados a partir de um confronto com outros textos – convida-nos à
prudência. Parece-nos óbvio, porém, que, inscritos na estrutura de
uma obra, os efeitos intertextuais – seja qual for o modo como os
interpretemos – fazem parte do universo semiótico do texto; avaliar
que referências são “inconscientes” não faz, portanto, o menor senti-
do. Por outro lado, admitir nossa incapacidade de compreender o sen-
tido de uma dada alusão é não apenas demonstração de cautela mas
fatalidade de uma operação que lida com um vastíssimo contexto cul-
tural em parte obscuro a nós, apesar dos esforços dos filólogos através
de tantos séculos.
Estudos sobre o tema têm-se multiplicado; imitatio, arte alusi-
va, literatura comparada, intertextualidade (conceito amplamente
alargado, já não restrito ao universo do texto literário) são termos e
expressões empregados com freqüência e se sobrepõem. De nossa parte,
adotaremos de preferência a noção de “intertextualidade”, que urge
definir, já que a palavra, em razão do emprego difuso, tornou-se, a
nosso ver, algo opaca: utilizada por autores nos contextos mais díspares
para abarcar noções não totalmente equivalentes, perdeu precisão de
sentido, tornando-se genérica demais.
Compreenderemos, pois, intertextualidade39 como a presença
num texto de outro(s) texto(s) por ele evocado(s) e integrado(s) pro-
duzindo significação. De forma econômica, sob o verdadeiro “palim-

39
Quem primeiro empregou o termo “intertextualidade” (intertextualité) foi Julia Kristeva,
na década de sessenta. Em seu Shmeiotikh /, recherches pour une sémanalyse. Citan-
do Bakhtin, a autora diz:
“todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transforma-
ção de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de
intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla”. (Citamos da
edição em português: Introdução à Semanálise. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 64.)
Poderíamos mais precisamente dizer que estamos escolhendo o aspecto da
intertextualidade que será o nosso objeto de estudo.

– 33 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

psesto” que é o texto,40 podem-se ler outros “hipotextos”, de extensão


variada, com os quais dialoga, criando um intertexto que caberá ao
leitor perceber e interpretar, isto é, tornar explícito, analisando os
efeitos de leitura que advêm do confronto. Restringiremos, por um
lado, o conceito, evitando nele englobar, por exemplo, aquelas com-
ponentes que se poderiam definir como a “literariedade” de qualquer
obra, seu diálogo com um conjunto de textos da tradição em que se
insere, e o tornamos especialmente apto para retratar a situação da
poesia latina (e helenística), particularmente a de Virgílio, culta por
princípio em suas referências a outros textos evocados à memória do
leitor. Ver-se-á que, ao contrário de Genette, tomaremos a expressão
“intertextualidade” como conceito mais geral para designar as rela-
ções alusivas entre um texto e seus “modelos”,41 posteriormente, dis-
tinguiremos, por razões didáticas, espécies de intertextualidade:
paratextualidade, intratextualidade e autotextualidade – classes que
amiúde convergirão, pois que uma citação poderá ser, ao mesmo tem-
po, auto- e intratextual, por exemplo. Esperamos esclarecer estas con-
siderações iniciais no segundo capítulo deste livro, em que apresenta-
remos exemplificação da Eneida para ilustrar essas noções.
Ressaltemos desde já uma característica do jogo alusivo na lite-
ratura latina que deve impedir equívocos sobre supostos plágios ou
falta de originalidade no poeta imitador: as referências não ficam ocul-
tas senão ao leitor “desatento”, pelo contrário, o autor incita ao reco-

40
É a útil, se bem que imperfeita, metáfora desenvolvida por Genette, como se sabe;
adotamos aqui, também, o sentido que dá às expressões “hipertexto” e “hipotexto”.
Ver GENETTE. Op. cit., p. 7-17 (sobretudo).
41
“Transtextualidade” (transtextualité) é o termo mais geral da nomenclatura adota-
da pelo autor e inclui a noção de architextualité (Op. cit., p. 7); nossas análises
contemplarão, sobretudo, as relações entre um texto (o “hipertexto”) e outro (o
“hipotexto”), no domínio do que Genette denomina hypertextualité (p. 11-12),
mas não se restringirão a esse aspecto da “transtextualidade”, como se verá. De
resto, observemos que essa nomenclatura apenas nos interessa na medida em que
pode servir para lançar luz sobre a complexa rede intertextual da Eneida.

– 34 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

nhecimento, como já notara Sêneca o Retor, tratando de um caso de


imitatio:

non subripiendi causa sed palam mutuandi, hoc animo ut uellet


agnosci.42

“Não para surrupiar, mas para tomar emprestado às claras, com a


intenção de que houvesse o reconhecimento”.

Note-se o verbo subripere, o mesmo da citação de Ascônio


Pediano, e que deveria resumir a crítica malevolente dos detratores
de Virgílio, que o acusavam de “surrupiar” especialmente Homero;
na passagem acima, comenta-se uma retomada de Virgílio por Ovídio,
que, segundo Sêneca o Retor, incita ao reconhecimento da alusão
por parte do leitor.
Veremos que os modos de alusão podem ser sutis (no início do
segundo capítulo, haveremos de falar em “graus” de aproximação in-
tertextual na leitura da Eneida) e dependerá, então, da bagagem lite-
rária de leitor e de sua perspicácia interpretativa a detecção das refe-
rências intertextuais e sua compreensão. Entretanto, insistiremos que
a alusão pode entrar na estrutura do texto como elemento importan-
te do significado, criando sentidos que passam despercebidos aos “in-
cautos”, isto é, aos que fizerem leitura empobrecedora, em maior ou
menor grau, da pluralidade de significação com que se entretém o
poeta numa obra eminentemente polifônica.
Definindo os critérios da imitatio (ou mimesis) bem sucedida,
Russel enumera-os em cinco princípios, que abaixo transcreveremos,
apondo observações nossas:

42
Suasoriae 3, 7 apud RUSSEL. “De Imitatione”. In: WEST & WOODMAN (Org.).
Creative Imitation and Latin Literature. Cambridge, Cambridge University Press, 1979,
p. 12.

– 35 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

1. “O objeto deve ser digno de imitação”.

É postulado evidente; trata-se, na maioria das vezes,43 de uma


espécie de homenagem ao precursor, ainda quando as intenções do
poeta são emulativas; de resto, as artes do mundo contemporâneo,
especialmente o cinema, têm-nos acostumado a esse processo: pense-
mos nas muitas “homenagens”, o mais das vezes pífias, a um cineasta
como Hitchcock, de quem se recriam cenas e climas – eis, a nosso
ver, uma das marcas da cultura pós-moderna, que se compraz na cita-
ção (e autocitação).44 Na literatura do Ocidente, o exemplo mais for-
te dessa veneração ao modelo está na Divina Comédia de Dante, que
faz de Virgílio guia e supremo mestre na arte do poetar:

O de li altri poeti onore e lume,


vagliami ’l lungo studio e ’l grande amore
che m’ha fatto cercar lo tuo volume.
Tu se’ lo mio maestro e ’l mio autore;
tu se’ solo colui da cu’io tolsi
lo bello stilo che m’ha fatto onore. (Canto I, v. 82-87)45

Na tradução em versos de Cristiano Martins:

“Dos outros poetas honra e desafio,


valham-me o longo esforço e fundo amor
que ao teu poema votei anos a fio.
Na verdade, és meu mestre e meu autor;
ao teu exemplo devo, deslumbrado,
o belo estilo que é meu só valor.”46

43
E não sempre, pois se pode, por exemplo, parodiar um mau verso citando-o de alguma
forma.
44
Muitas vezes, mostrando diante da tradição cultural um distanciamento crítico que se
pode eivar de ironia ou sarcasmo. Nas artes contemporâneas, de fato, a relação dos
criadores com a tradição cultural revela uma filtragem ativa, crítica e pessoal das obras
do passado.
45
DANTE. Tutte le Opere. Roma, Newton Compton, 1993, p. 35.
46
DANTE ALIGHIERI, A Divina Comédia. Tradução, introdução e notas de Cristiano
Martins. Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, p. 88.

– 36 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Como o antigo Romano venerava no átrio de sua casa as efígies


dos antepassados, modelos de virtude a imitar e cultuar; como o filho
do nobre se ligava desde cedo, no fórum, a um daqueles renomados
oradores, veteranos com os quais aprenderia, por emulação, as nor-
mas da eloqüência política; como os senadores se espelhavam na tra-
dição, no mos maiorum considerado repertório de bons exemplos de
conduta no tratamento da coisa pública – assim, o poeta venera seus
modelos, inserindo-se numa tradição da qual não poderia prescindir.
Sua obra incorpora a dos precursores que o poeta estima como
paradigma de excelência, cuja “imitação” confere, por si só, a digni-
dade da auctoritas dos patres. Também no campo das letras, portan-
to, verifica-se aquela característica central da cultura romana: o per-
filar-se numa tradição veneranda, dela se destacando não para afirmar
uma rebeldia “romântica” ou pretensões de originalidade radical, mas
para integrar uma visão de mundo pessoal e preceitos estéticos pró-
prios na história de um gênero literário ou do conjunto de obras que
constitui o repertório da literatura. Em suma, as tendências estéticas
da imitatio e da arte intertextual vão perfeitamente ao encontro das
coordenadas dessa cultura permeada pelo culto dos arquétipos da
comunidade.

2. “Deve-se reproduzir o espírito mais que a letra”.

Esta é a afirmação mais discutível dentre as que arrola Russel.


Veremos que o jogo alusivo é mais sutil e compreende também o con-
fronto estilístico com o modelo: por vezes, um poeta é levado a inte-
grar determinado modelo operando nele, porém, “correções” estéti-
cas que ficam evidentes para quem conserva ativamente na memória
o hipotexto evocado.

3. “A imitação deve ser tacitamente reconhecida, na compreensão


de que o leitor informado reconhecerá e aprovará o empréstimo”.

– 37 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

É o que se manifesta nas palavras de Sêneca o Retor transcritas


mais acima e se patenteará, assim o esperamos, em nossa análise dos
efeitos intertextuais da Eneida; insistamos: fazem parte da significa-
ção as alusões. Não só “tentar compreender o sentido da Eneida sem
recorrer continuamente a Homero é como tentar ler um código cujo
segredo está perdido”,47 mas não ter em mente, em nenhum momen-
to, ao lê-la e interpretá-la, os hipotextos (não só Homero como tam-
bém Catulo, Apolônio de Rodes, Ênio, Lucrécio, dentre outros), é
trair as intenções estéticas da obra, empobrecendo sua significação de
forma lamentável.

4. “O empréstimo deve se tornar algo próprio, pelo tratamento


individual e assimilação a seu novo contexto e propósito”.

É óbvio que toda retomada já modifica o material de origem,


por menores que sejam as modificações feitas pelo escritor; ainda que
se tratasse de um mesmo verso, na mesma língua, sua inserção em
contexto diverso afetaria de imediato a compreensão do texto inte-
grado ao novo contexto. No caso extremo da ficção borgiana, o
Quixote de Pierre Menard, realmente idêntico na expressão ao origi-
nal, não é o mesmo Quixote de Cervantes. Desse modo, a operação
intertextual jamais pode ser neutra, isto é, sempre cria novos sentidos
que se sobrepõem ou contrastam com o do original reproduzido ou
evocado. As formas de tratamento do material “tomado empresta-

47
GRANSDEN, K. W. Vergil’s Iliad. An Essay on Epic Narrative. Cambridge, Cambridge
University Press, 1984, p. 04. Aqui, entretanto, é preciso fazer uma ressalva a que
voltaremos no capítulo seguinte: a decodificação das alusões na Eneida comporta “graus”:
se a leitura absolutamente não alusiva é praticamente impossível, pois que a trama
intertextual atinge também a estrutura de superfície da obra (pensemos na pretensão
de Turno em se julgar uma espécie de Aquiles redivivo, mas morrendo como Heitor),
a alusão geradora de sentido pode alcançar uma sutileza extraordinária sem que seu
desconhecimento prejudique a compreensão das linhas gerais da trama, embora se
deva renunciar, nesse caso, ao ganho de sentido que a detecção e interpretação da
alusão proporcionam.

– 38 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

do”48 são múltiplas, como veremos, e nem sequer podem ser cataloga-
das de modo esquemático em sua totalidade, pois as possibilidades do
jogo intertextual são virtualmente ilimitadas.

5.“O imitador deve pensar de si mesmo que está competindo com


seu modelo, ainda que saiba que não é capaz de superá-lo”.49

É o que os Antigos conheciam por aemulatio e cujos ecos se


podem perceber em vários autores da literatura latina – em Macróbio,
como apontamos, ou em Quintiliano50. Juvenal traz exemplo signifi-
cativo (e, curiosamente, de novo se trata de Virgílio); traçando a ca-
ricatura da mulher letrada, diz o satirista:

commitit uates et comparat, inde Maronem


atque alia in parte in trutina suspendit Homerum (VI, v. 436-437)

“Traça paralelos entre poetas e os compara, depois suspende


num prato da balança Marão e no outro Homero”.

Não cremos que a competição estética seja dado fundamental,


objetivo primeiro perseguido: lembremos as palavras de Virgílio sobre
a dificuldade de roubar de Homero um verso; fundamental, sim, é a
irrupção de efeitos de sentido, ponto em que temos insistido. Um des-
ses efeitos mais facilmente identificáveis é o da paródia, que podemos
ilustrar com um passo das Bacchides de Plauto. Quando o escravo
Crísalo descreve sua tentativa de arrancar dinheiro do velho Nicobulo,
narra seu feito como se se tratasse de segunda guerra de Tróia, desta

48
Não é satisfatória a metáfora comercial, empregada freqüentemente no texto de Russel:
enfatiza em demasia o produto da “imitação”, em detrimento do verdadeiro diálogo
que o intertexto gera entre imitado e imitador.
49
Op. cit., p. 16.
50
Veja-se, por exemplo, como no livro X, 1, 85-86 de sua Institutio Oratoria, Quintiliano,
ao tratar de Virgílio, o maior escritor latino, na sua opinião, relaciona-o a Homero,
atribuindo ao mantuano um honroso segundo lugar nesse confronto tradicional.

– 39 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

vez mais gloriosa... e cita, nesse contexto farsesco, versos de uma com-
posição séria, a tragédia Andrômaca de Ênio, que seu público deveria
reconhecer:

O Troia, o patria, o Pergamum... (v. 993)

Para uma situação que parecerá repetir-se como farsa, versos


trágicos que fazem rir, deformados pelo contexto cômico; efeito de
estranhamento pela mudança de situação, em técnica que encontra-
remos muitas vezes no Satiricon de Petrônio. A lamentável Tróia, na
fala do escravo, torna-se o velho tolo que se tenta enganar com ardis
e assaltar como quem investe contra uma fortaleza só transponível
pela astúcia...51
Sem dúvida, o exemplo de Plauto mostra que nem sempre a in-
tenção é rivalizar com o modelo (corrijamos, pois, Russel), mas, por
vezes, simplesmente provocar o riso pela evocação de palavras de tenso
patético num contexto da mais absoluta farsa; o comediógrafo lança
mão desse recurso com freqüência, chegando até a explicitar, em deli-
ciosa metalinguagem, a paródia, como neste verso do Psêudolo:52

Vt paratragoedat carnufex! (v. 707)

“Como banca o ator trágico, o patife!”

51
Na comédia, mais precisamente, o velho Nicobulo é escarnecido ora como nova Tróia,
ora como Príamo, sem que Plauto harmonize as duas idéias. Como exemplos do pri-
meiro caso, citemos: ego erum expugnabo meum (“tomarei de assalto o meu patrão”),
v. 929, contraposto a Atridae...Priami patriam Pergamum... decumo anno post
subegerunt, (“Os Atridas subjugaram, após dez anos, a pátria de Príamo, Pérgamo”),
v.925-928, e Nostro seni huic stolido, ei profecto nomen facio Ilio (“Quanto a este
nosso velho tolo, sem dúvida farei com que receba o nome de Ílio...”), v. 945; como
exemplo de Nicobulo tratado simplesmente como Príamo, veja-se: Sed Priamum
adstantem eccum ante portam uideo (“Mas eis que vejo Príamo em pé diante da por-
ta”), frase de Crísalo ao avistar Nicobulo...
52
Ver LEUMANN. “La Lingua Poetica Latina”. In: LUNELLI, Aldo (Org.). La Lingua
Poetica Latina. 3. ed., Bologna, Pàtron, 1988, p. 142.

– 40 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Dessa forma comenta Carino as palavras de Psêudolo, saboroso


pastiche de estilo trágico sobre o qual chama a atenção a observação
acima reportada. Aqui talvez seja mais apropriado falar em efeito inter-
textual do que em imitatio, a não ser que se alargue o sentido dessa
palavra. Como se vê, a intertextualidade ajudará a criar aquele efeito
de “carnavalização” estudado por Bachktin e que permeia a comédia
latina, sobretudo a de Plauto: mundo às avessas, em que o escravo,
atrevidamente astucioso, faz que seu patrão aja de acordo com seus
interesses, tornando-se objeto passivo em suas mãos. A seriedade trági-
ca se esvai em tiradas bufas; o sublime eniano “desce” à comicidade
popular plautina.
Esse exemplo da comédia de Plauto é tão somente pálida ilustra-
ção dos efeitos de leitura criados pela intertextualidade; a seguir, apre-
sentaremos amostra mais interessante, no campo da poesia latina, ex-
cluindo por ora a Eneida; antes, porém, é preciso abrir parênteses para
uma ressalva já esboçada mais atrás.
Não nos ocuparemos de um aspecto da intertextualidade que tem
sido estudado por autores como Gian Biagio Conte, Alessandro
Barchiesi, Gérard Genette; poderíamos denominá-lo, com o último,
“arquitextualidade”.53 Quando Virgílio, por exemplo, adota o hexâme-
tro datílico na Eneida, insere sua epopéia numa tradição cujo ponto de
partida é Homero, mas não se esgota na obra de Homero; do mesmo
modo, quando Camões se utiliza do epíteto para caracterizar seu herói
ou inicia seu poema épico evocando os versos iniciais da Eneida, esta-
belece relação com toda uma tradição épica exercitada anteriormente
no Ocidente. Cada escritor se filia a uma tradição, um gênero, que
compreende, em última instância, uma série de textos modelares.54

53
“...o arquitexto, ou, se se prefere, a arquitextualidade do texto /.../ isto é, o conjunto das
categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros
literários, etc. – de que depende cada texto particular” (Op. cit., p. 07).
54
Conscientemente ou não, quando um jovem poeta (e pensemos, propositalmente, em
alguém fora do meio acadêmico) resolve escrever um poema, conscientemente ou não,
sob a página por ele preenchida com seus versos, hão de ecoar, de alguma forma, pági-

– 41 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Modos de enunciação, princípios genéricos, adoção de fórmulas,


reemprego de expressões vinculadas a certo tipo específico de texto,
seleção lexical e sintaxe embasada na tradição de determinado gêne-
ro, etc. – tudo isso que poderíamos denominar, com Barchiesi e Con-
te, a “gramática textual,”55 faz parte da relação intertextual, com es-
tatuto particular: trata-se de reproduzir não uma passagem qualquer
de um precursor, transformando-a seja como for, mas de concretizar,
reatualizando, na nova obra as regras de um código, extraídas de todo
um repertório de textos paradigmáticos. Os estudiosos italianos distin-
guem, então, “Modelo-Exemplar” e “Modelo-Gênero”, no primeiro caso,
o poeta retoma loci determinados de um precursor; no segundo, cons-
trói um “análogo” do modelo, tratando-o como “uma espécie de ma-
triz gerativa”.56
É evidente que seria artificial traçar uma linha divisória estan-
que entre esses dois aspectos da intertextualidade; entretanto, a divi-

nas e páginas de outros poetas, séculos e séculos de tradição estética, todo um conhe-
cimento assimilado de forma mais ou menos difusa. Não existe criação do nada, aqui,
não existem personas individuais e palavras únicas em discurso monológico – está-se
fadado a alguma espécie de diálogo com o passado, por mais que seu peso sobre nós
possa parecer sufocante, por mais que sintamos vertigem diante da sombra dos mortos,
vivos nas páginas dos livros, a espreitar-nos em sua cômoda situação de predecessores.
Não somos nós os primeiros, e os que virão depois enfrentarão a mesma encruzilhada
da criação de alguma forma prenunciada, ou influenciada, pela configuração astral de
um céu sempre mutável e sempre o mesmo. Pensemos no caso de nosso jovem poeta,
um adolescente, que decida expressar no papel os sentimentos (o que, pelo menos em
nossa adolescência, era a concepção difusa de poesia entre as pessoas “comuns”). Ao
escrever seus versos, esse jovem, sem perceber, estará empregando uma série de regras
para a composição poética, um conjunto de normas não sistematizadas mas de algum
modo introjetadas a partir de um acervo de textos do passado que ele talvez jamais
tenha lido. Todos trazemos, então, à folha de papel nossas regras de criação, extraídas
de uma tradição poética formada, em última instância, por um conjunto de textos
exemplares. Escrever versos é, como toda atividade cultural, uma atividade social, por
menos que se esteja ciente do grau em que se é determinado pelo discurso do outro.
55
“Imitazione e Arte Allusiva. Modi e Funzioni dell’Intertestualità”. In: CAVALLO,
Guglielmo et alii (direttori). Lo Spazio Letterario di Roma Antica. Roma, Salerno [1989]
p. 94-95.
56
Op. cit., p. 95.

– 42 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

são aqui nos interessa para definirmos nosso campo de ação. Estuda-
remos as transformações de sentido operadas na Eneida pela incorpo-
ração de outros textos cujas “vozes” se fazem ouvir na rica polifonia
de seu discurso; deverá explicitar-se, assim, a referência a textos par-
ticulares, num diálogo suscitado pela recorrência.
Antes de passar à exemplificação, parece-nos útil também uma
breve menção ao livro de Cairns sobre os gêneros e topoi na literatura
greco-latina;57 essa obra, densa e proveitosa, tem sido hoje revalorizada,
como merece.58 Cairns trata da “composição genérica”, em que um
conjunto de unidades de conteúdo, não a métrica ou outro dado for-
mal do poema, define o tipo de composição, reelaborado pelos escri-
tores ao longo dos séculos. Entendido esse critério e conhecidos os
principais gêneros detectáveis pelo estudo contrastivo, tem-se um
método utilíssimo para analisar sobretudo aqueles poemas cuja estru-
tura e temática têm desafiado críticos e leitores; de fato, freqüente-
mente, como demonstram as análises de Cairns, a dificuldade advém
da complexa relação de determinado texto com o gênero ou gêneros
que norteiam sua composição. Aqui, estamos, obviamente, no terre-
no da intertextualidade; mas não faz parte das investigações desse
autor o que preferencialmente nos interessa: a retomada explícita,
porque textual, de obra anterior por determinada composição a ela
formalmente ligada, processando-se a filiação entre os textos não por
categorias abstratas de composição (por exemplo, no gênero
propemptikón, a presença de um destinatário que parte, o receptor
que a ele dirige a palavra, etc., como elementos primários, mais os
tópicos secundários), mas por referências textuais concretas,
detectáveis. O hipertexto dialoga, pois, não apenas com uma tradição
genérica, consolidada num conjunto de textos que materializam re-

57
CAIRNS, Francis. Generic Composition in Greek and Roman Poetry. Edinburgh,
Edinburgh University Press, 1972.
58
Em nosso país, destaca-se a divulgação promovida por Francisco Achcar em seu pri-
moroso livro: ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar – Comum. Alguns temas de Horácio
e sua presença em português. São Paulo, Edusp, 1994.

– 43 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

gras, mas com textos singulares. Certamente ambos os aspectos da


intertextualidade demandam a atenção dos estudiosos e podem dar
bons frutos na compreensão da literatura latina; aqui, porém, ocupar-
nos-emos de uma faceta da questão: a que pode lançar luz sobre as-
pectos pouco conhecidos da Eneida.

2. O DIÁLOGO COM O HIPOTEXTO: EXEMPLIFICAÇÃO

Sem dúvida, a perda de muitas obras da literatura helenística e


da latina, como o desaparecimento quase total das elegias de Galo e de
tantas composições dos neotéricos, impede-nos de apreciar devidamente
efeitos de intertextualidade nos poetas latinos cujas obras chegaram até
nós. Cremos, e vai dito sem hipérbole intencional, que teríamos verda-
deira revolução copernicana no estudo dos clássicos latinos se, por um
acaso impossível, víssemos resgatadas, por exemplo, as produções poé-
ticas dos escritores alexandrinos mais eminentes hoje perdidas; vería-
mos, por certo, com maior clareza o modus operandi da imitatio bem
como a constância da linha de assimilação e reelaboração que unifica a
maior parte da tradição poética latina.
O que nos resta da poesia grega e latina, porém, é suficiente
para comprovar o processo intertextual e apontar matizes e especifici-
dades nos poetas latinos que nos é dado conhecer. Veremos, sobretu-
do, como a Eneida é uma rapsódia, no sentido etimológico, de cita-
ções e alusões, intertextualidade levada a conseqüências que diríamos
“extremas”, se não temêssemos a marca pejorativa da expressão. Apon-
taremos alguns exemplos de diálogo entre poetas latinos e seus pre-
cursores nas páginas que seguem, a título de ilustração, reservando,
de preferência, a Eneida para observações posteriores nos capítulos
seguintes.
Na elegia I, 3 de Tibulo, o poeta é levado a tratar o topos dos
castigos infernais, um elo naquela sutil e fluida concatenação de mo-
tivos que sua poesia vai tecendo ao longo dos versos, por vezes condu-

– 44 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

zindo o leitor insensivelmente para bem longe do ponto inicial, atra-


vés de transições bem dissimuladas – técnica alexandrina em que ele
é mestre. O primeiro dístico desse “motivo” é:

At scelerata iacet sedes in nocte profunda


abdita, quam circum flumina nigra sonant (v. 67-68)

“Mas a morada celerada jaz em profunda noite


encerrada e ao seu redor rios negros ressoam.”

Quando pensamos na evocação dos suplícios do Hades, que po-


eta anterior nos vem à mente? Lucrécio, por certo, com os brilhantes
versos do livro III em que fornece uma interpretação alegórica, consi-
derando-a confortadora, das punições que tradicionalmente, desde
Homero na literatura, sofriam no Tártaro os grandes criminosos do
mito. O passo lucreciano assim se inicia no De Rerum Natura:

Atque ea nimirum quaecunque Acherunte profundo


prodita sunt esse, in uita sunt omnia nobis. (III, v. 991-992)

“E, sem dúvida, tudo o que no Aqueronte profundo


tradicionalmente se diz ocorrer, é em nossa vida que ocorre”.

As semelhanças formais entre os dois passos são reveladoras:


– At, iniciando o trecho de Tibulo, retoma os primeiros sons do
atque de Lucrécio; a tal semelhança no começo de versos que desen-
volvem o motivo, vem-se acrescentar a repetição do mesmo adjetivo
atribuído aos Infernos (profundus; Tibulo, porém, prefere aplicá-lo à
“noite” ao invés de a “Aqueronte”); o adjetivo reiterado aparece em
mesma posição num e noutro poeta – no final do verso; deve-se notar
também a seqüência -te profund-,em ambos;

– abdita, no início do pentâmetro, recorda o prodita lucreciano,


ambos em início de verso; Tibulo se utiliza do mesmo verbo que Lucrécio,

– 45 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

particípio passado nos dois, mas mudando o prefixo (abdita/prodita).


Hábil reelaboração, especialmente tendo em vista que as duas formas
verbais, graças à prefixação diversa, são antitéticas: literalmente, “es-
conder” / “revelar”. Efeito sutil a que parece não faltar ironia fina: já
desde aqui, Tibulo sugere que integrará a passagem lucreciana “corri-
gindo-a”, assim, na sua visão do Hades, tratará dos castigos infernais
como realidade não discutida, rejeitando a interpretação simbólica de
Lucrécio. Em suma, a retomada de formas lucrecianas realça a diferen-
ça entre as duas visões do mesmo tema;

– Tibulo retrata Tisífone (uma das Fúrias), Cérbero, Tântalo,


Tício, as Danaides, e todos esses mitos compareciam já em Lucrécio;
acrescenta, porém, Ixião, como fará Virgílio em sua Nékuia. Cabe
não esquecer, contudo, sem procurar extrair dessa informação impos-
síveis certezas, que alguns estudiosos atribuem a ausência desse céle-
bre criminoso mítico no De Rerum Natura a uma lacuna; de fato,
Sérvio, em seu comentário à Eneida, faz referência ao suplício da roda
em Lucrécio, evocando uma passagem desse poema que até nós não
chegou;59

– Tício é descrito num e noutro com estes versos, respectiva-


mente:

porrectusque nouem Tityos per iugera terrae (v. 75)

qui non sola nouem dispessis iugera membris (v. 1001)

“E Tício, estendido por nove jeiras de chão”.

“Que não apenas nove jeiras (ocupa) com os membros estendidos”.

59
Ver LUCRÈCE. De Rerum Natura. (Comentário de Enout-Robin.) Paris, “Les Belles
Lettres”, 1962, tomo II, p. 163-164, ad uersum 1011.

– 46 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

As palavras nouem e iugera ocupam em ambos a mesma posi-


ção: comprovação de reminiscência lucreciana em Tibulo. Curiosa-
mente, os dois poetas sugerem formalmente a extensão gigantesca do
corpo de Tício, mas de modo diverso. Tibulo alonga o polissílabo
porrectus com a enclítica – que, criando um efeito rítmico notável,
tanto mais que o longo vocábulo ocupa esse lugar privilegiado do ver-
so que é o início. Lucrécio, em sintaxe expressiva, lança mão de pro-
cesso mais complexo, numa espécie de alongamento do enunciado ao
descrever o gigante; assim, o castigo do criminoso não poderia durar
eternamente, ainda que seu corpo cobrisse toda a terra:

Quamlibet immani proiectu corporis exstet,


Qui non sola nouem dispessis iugera membris
Obtineat, sed qui terrai totius orbem (v. 1000-1002)

“Por mais gigantesca que fosse a extensão de seu corpo,


a ponto de ocupar não apenas nove jeiras com os membros estendi-
dos,
mas o disco da terra inteira...”

O suplício de Tântalo, que precede o de Tício, fora narrado por


Lucrécio em apenas dois versos; o do gigante ocupa oito, com o
“esticamento” sintático que se obtém da pronunciada subordinação
(na passagem transcrita, oração concessiva seguida de duas relativas
coordenadas entre si).60 Tibulo, com notável economia, consegue
sugerir efeito semelhante. Não nos parece exagerada a hipótese de
que Tibulo, aqui, arroga-se em êmulo do antecessor, condensando ao
máximo e obtendo, numa só palavra, o efeito conseguido em Lucrécio
por um longo enunciado. Assim, se nossa análise é correta, sucede
com esse tipo de procedimento intertextual o que ocorre com a tra-
dução criativa, que “transcria” o original: recriam-se, no novo texto,

60
Contribui para reforçar na forma a impressão de estatura descomunal o ritmo predomi-
nantemente espondaico (dez espondeus contra seis dátilos e dois troqueus), vale dizer,
mais vagaroso.

– 47 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

recursos expressivos do texto de partida, construindo-se um “análo-


go” que não precisa ser, necessariamente, o equivalente literal do outro.
É óbvio que na recriação o grau de liberdade é incomparavelmente
maior, livre que está o hipertexto das injunções da atividade tradutória,
por mais criativa que esta se permita ser.
Apontemos, agora efeitos de ironia que Tibulo extrai da reto-
mada de Lucrécio. Como se sabe, este narra o castigo de Tântalo tal
como Eurípides o descreve, e não como Homero; nessa versão, o
supliciado é condenado a ter sobre sua cabeça uma rocha que eterna-
mente ameaça cair sobre ele, pondo-o em estado de medo constante
e ânsia perpétua. Ora, Tibulo também figura Tântalo, mas “corrige” o
poeta epicurista:

Tantalus est illic, et circum stagna (v. 77)

“Tântalo está ali e, ao seu redor, um lago”.

Saboroso efeito de contraste: em Lucrécio se repete o advérbio


hic e a expressão in uita para salientar que os castigos do Tártaro na
verdade se passam na vida dos homens.61 Ora, Tibulo diz-nos que
Tântalo está ali (illic), isto é, no confronto intertextual, não aqui, em
nossa vida, como pretendia o poeta epicurista...62 e, além disso, tem à
sua volta água, adoção de outra versão do mito, contrastada à
lucreciana.
Mas se, excluindo Ixião, os condenados de Tibulo estavam to-
dos já em Lucrécio, falta no primeiro Sísifo: com a matéria do prede-
cessor, o elegíaco cria novo texto, que assimila aspectos do original e
o tranfigura. Observemos, sobretudo, a remodelação do motivo, sua
adaptação ao novo contexto, isto é, sua inserção em novo gênero:
não só Tibulo dá como verídicos os castigos, contra Lucrécio, mas

61
Hic: Sed Tityos nobis hic est, v. 1005; Hic Acherusia fit stultorum denique uita, v.
1036; a expressão in uita comparece quatro vezes: nos versos 992, 995, 1008 e 1027.
62
Note-se que illic aparece três vezes nesse passo da elegia: nos versos 73, 77 e 81.

– 48 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

acrescenta, por fim, que no Tártaro deve estar quem ultrajou seu amor;
desse modo, o motivo sofre a necessária mudança para adequar-se ao
contexto elegíaco. Eis a imprecação, em enunciado optativo,
comuníssimo nas elegias de Tibulo:

Illic sit quicumque meos uiolauit amores,


optauit lentas et mihi militias. (v. 81-82)

“Ali esteja todo aquele que tiver violado os meus amores


e desejado longas campanhas militares para mim”.

Com tal acréscimo aos temas lucrecianos, recupera-se a temática


da fonte original para o contexto diverso, elegíaco-amoroso: há, sim, pu-
nição nos Infernos para os criminosos e ali será punido o rival do poeta...
Lucrécio é, pois, corrigido em sua ideologia racionalista (“iluminista”,
poderíamos dizer) e, ao mesmo tempo, integrado através de nova leitura:
deformado, se quisermos, pela ótica de um gênero que não é mais o poe-
ma didático e uma visão de mundo que não é a epicurista.
A tal retomada de Lucrécio por Tibulo poderíamos aplicar a
nomenclatura de Hardie; o primeiro praticara a “demythologization”
das fábulas sobre o Hades; o segundo o retoma para promover uma
pessoal e irônica “remythologization”,63 que parece “corrigir” a fonte
ao incorporá-la. Hardie estuda processo semelhante em Virgílio -e,
de novo, é Lucrécio que é reelaborado. O autor mostra, por exemplo,
como o poeta épico recupera imagens lucrecianas do raio, comparado
a um projétil lançado por um tormentum (Eneida XII, v. 921; De
Rerum Natura VI, v. 328 e ss.). Em Lucrécio, trata-se de explicar
naturalmente o fenômeno, negando intervenção sobrenatural; ora,
Virgílio “inverte o processo”, pois, aplicada à espada de Enéias, a ima-
gem confere ao herói o estatuto de varão secundado por poderes divi-
nos, de mortal alçado ao divino em sua força sobrenatural. Esse tema

63
HARDIE, Philip. Virgil’s Aeneid: Cosmos and Imperium. Oxford, Clarendon Press,
1989, p. 178.

– 49 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

é reforçado por outras alusões, analisadas pelo autor, que parecem


transfigurar o duelo final da epopéia em luta de um deus contra um
inimigo do poder celeste.
Outro exemplo de como Virgílio “corrige” sua fonte, temos num
célebre passo das Geórgicas:

Felix qui potuit rerum cognoscere causas,


atque metus omnis et inexorabile fatum
subiecit pedibus strepitumque Acheruntis auari!
Fortunatus et ille deos qui nouit agrestis,
Panaque Siluanumque senem Nymphasque sorores!
Illum non populi fasces, non purpura regum
flexit et infidos agitans discordia fratres
aut coniurato descendens Dacus ab Histro;
non res Romanae perituraque regna; neque ille
aut doluit miserans inopem aut inuidit habenti.
Quos rami fructus, quos ipsa uolentia rura
sponte tulere sua, carpsit nec ferrea iura
insanumque forum aut populi tabularia uidit. (II, v. 490-502)

Na tradução personalíssima de Odorico Mendes:

“Feliz quem poude conhecer as causas,


Vãos medos pisa e o fado inexoravel.
De estrondos zomba do Acheronte avaro!
Feliz inda o que abraça agrestes numes
A Pan, Silvano padre e irmãs Napéas!
Comicios, feixes, purpura traidora,
Discordia fratrecida, ou conjurado
O Istro e o Daco a descer, cahidos reinos,
Roma em triumphos, nada o move; ricos
Não ha que inveje, ou pobres que o magoem;
Do galho apanha os espontaneos fructos,
Sega-os da lavra; leis de ferro ignora,
Foro insano ou do povo os tabularios.” 64

64
Reproduzimos o texto, sem modernizar a ortografia, como se vê, tal qual se apresenta
nesta edição: ODORICO MENDES, Manuel. Virgilio Brazileiro. Rio de Janeiro, W.
Remquet, 1858, p. 129.

– 50 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Pierre Boyancé aventa a hipótese de que na primeira parte


desse makarismós se tenha alusão a Pitágoras;65 entretanto, as vá-
rias expressões lucrecianas nos fazem crer que é Lucrécio, não
Pitágoras, o filósofo aqui visado, como a maior parte dos estudiosos
tende a pensar. Veja-se, em especial, rerum causas e subiecit pedibus
(cf. De Rerum Natura I, v. 79: pedibus subiecta). Hardie obseva
que Virgílio louva Lucrécio com a mesma linguagem empregada por
Empédocles, uma das fontes do epicurista, para exaltar...Pitágoras.66
Como esse estudioso também observa, Virgílio retoma material
lucreciano para corrigir as concepções do filósofo materialista. As-
sim, ao ideal racionalista do homem que conhece as causas dos fe-
nômenos e, desse modo, livra-se do medo dos deuses e da morte e
oferece aos outros mortais a via da libertação através da razão,67 o
poeta das Geórgicas oporá o ideal da vida bucólica, proclamando
feliz também o camponês piedoso que vive apartado da corrupção
da cidade.
Curiosamente, após afirmar a bem-aventurança de quem cultua
a religião tradicional (abalada pela doutrina de Lucrécio), Virgílio
traça da vida campestre um quadro com tons epicuristas. O homem
do campo, ausente das lutas pelo poder (Illum non populi fasces;
Lucrécio, na passagem do livro III que já comentamos, comparara a
Sísifo o homem que se esfalfa por obter o poder: petere a populo fascis.../
imbibit, v. 1009-1010), não perturbado por dissensões nem guerras
externas, vive numa espécie de ataraxia (non flexit), contente com o
que a natureza oferta (Quos rami fructus...), ao contrário dos eternos
insatisfeitos que são os tolos repreendidos pelo poeta epicurista. As-
sim, Virgílio presta homenagem a seu antecessor, evocando-lhe te-
mas e formas, mas lhe contrapõe seu ponto de vista: os camponeses,

65
Apud Saint-Denis: VIRGILE. Géorgiques. Paris, “Les Belles Lettres”, 1982, p. 101-
102, nota ao verso II, 490.
66
Op. cit., p. 39, nota 02.
67
Tema lucreciano por excelência: Epicuro é o grande Prometeu do espírito a redimir
a humanidade de suas angústias mais viscerais e perturbadoras.

– 51 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

que desconhecem as causas dos fenômenos, também gozam da felici-


dade que Lucrécio restringia aos filósofos e homens comuns esclareci-
dos pela doutrina epicurista, aos convertidos pelo seu Verbo salva-
dor...; sem se desfazer de suas práticas religiosas (pelo contrário:
fundamentando nelas seu cotidiano), fruem natural e espontanea-
mente da ataraxia almejada por Lucrécio.
Vê-se quão enriquecedora pode ser a leitura que leva em conta o
diálogo com o hipotexto:68 relações de que o leitor implícito deveria estar
ciente sob pena de perder irremediavelmente muitos efeitos de leitura.
Vimos que do diálogo com seu antecessor, Virgílio acaba por ressaltar o
aspecto positivo que a religio pode desempenhar na vida humana, com-
batendo, assim, a visão negativa que Lucrécio dela traçara:69

Tantum religio potuit suadere malorum! (I, v. 102)

“A tão grandes males pôde levar a religião!”

Interessante alusão à Odisséia, integrando um motivo épico a


um contexto elegíaco, encontramos no poema CI de Catulo, em que
o poeta expressa comovido adeus ao irmão morto na Tróade. Nem
Kroll, o comentador fundamental de sua obra, nem De Gubernatis,
nem Fordyce, apontam a reminiscência,identificada e analisada por

68
Vale a pena destacar mais uma expressão confirmadora da relação intertextual com
Lucrécio; os versos virgilianos atque metus omnis et inexorabile fatum/ subiecit pedibus
strepitumque Acheruntis auari ecoam o lucreciano Et metus ille foras praeceps
Acheruntis agendus (“É preciso perseguir e expulsar aquele medo do Aqueronte..., De
Rer. Nat. III, v. 37). O filósofo, na mais integral ortodoxia epicurista, tenta demonstrar
que a alma, composta de átomos, é mortal; dissolvidos os elementos que a compõem,
nenhuma sensibilidade é mais possível; dessa forma, o temor de castigo no além é
absurdo. Virgílio, por sua vez, ainda que exaltando a libertação desse medo ao Aqueronte,
visada por Lucrécio, rejeita aspectos de sua doutrina, contrapondo-lhe um ideal diver-
so.
69
Mas, ressalve-se, não se trata de ateísmo, ao contrário do que se ouve dizer demasiadas
vezes! – se bem que os incautos se possam apoiar no precedente do próprio Cícero, para
quem a doutrina epicurista desemboca na negação da divindade.

– 52 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Barchiesi e Conte num ensaio já por nós mencionado;70 descrevemos


a seguir a operação alusiva levada a cabo por Catulo, acrescentando
às considerações dos dois estudiosos breve comentário nosso. O poe-
ma assim se inicia:

Multas per gentes et multa per aequora uectus

“Tendo viajado por muitos povos e muitos mares...”

A anáfora alude a uma repetição célebre, a do início da Odis-


séia, que deveria estar na mente dos leitores latinos, impregnados de
Homero desde os bancos escolares. Na proposição homérica, o adjeti-
vo pollu/j é reiterado três vezes; Catulo retoma a repetição dos ver-
sos 3 e 4:

pollw=n d )a)nqrw/pwn i/)den a/)stea

“De muitos homens viu as cidades...”

(a) n qw/ p wn a/) stea será evocado em gentes)

) /) g e)n po/nt% ...


polla\ d o

“Muito no mar...”

(e/n po/nt% se tornará per aequora)

Mas tal citação não esgota a trama alusiva; de fato, no verso 3,


Catulo enuncia o objetivo da longa peregrinação:

Vt te postremo donarem munere mortis

“Para te ofertar a derradeira homenagem fúnebre...”

70
“Imitazione e Arte Allusiva” (Op. cit., p. 109).

– 53 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ora, a indicação da meta evoca a oração final participial que


segue, no texto homérico, a referida anáfora:

a)r nu/ m enoj h(/n te yuxh\n kai\ no/ston e(tair/ wn (v. 5)

“Para conservar sua vida e o retorno dos companheiros...”

Implicações do intertexto: Catulo se retrata como um Odisseu.


A partir dessa premissa, os sentidos possíveis, propostos pela leitura
intertextual, multiplicam-se: o poeta faz o caminho inverso ao da per-
sonagem grega; este saíra de Tróia e, após tantas labutas por terra e
mar, iria reencontrar seus familiares sãos e salvos, sendo a Odisséia,
como se sabe, a narrativa de seu nóstos; Catulo, porém, vai a terra
estrangeira (saberemos que também se trata de Tróia pelo poema LXVIII
– numa leitura intratextual, portanto) tão somente para cumprir os
rituais fúnebres e dirigir a palavra pela última vez a uma “cinza muda”.
O contraste entre os dois peregrinos acentua a emoção que perpassa os
versos de Catulo. O leitor “informado” é, assim, incitado a tecer ilações
a partir do confronto, a fazer associações entre contextos; elipticamente,
o texto se multiplica em sentidos não expressos de forma explícita. É
evidente que não podemos precisar a intenção do poeta com essa reto-
mada da Odisséia, mas não se poderá negar que, presente no poema,
ela é provocação ao leitor, que, como nunca, assumindo papel de intér-
prete ativo, deve aproximar e contrastar textos e contextos, estabelecer
associações e explicitar sentidos subliminares. Em suma, trata-se de um
ganho de sentido, impossível pela leitura linear.
No livro VI de sua epopéia, Virgílio retoma Catulo, de forma
complexa, inserindo a imitatio deste último no contexto da Nékuia,
integrando ao mesmo tempo o precursor grego e o latino:71

71
O mais completo – e modelar – comentário ao livro VI, o de NORDEN, não menciona
o passo catuliano, mas um verso de Pacúvio, como reminiscência no verso de Virgílio
em pauta; o paralelo estabelecido por Conte e Barchiesi é, porém, absolutamente con-
vincente.

– 54 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Quas ego te terras et quanta per aequora uectum


accipio! quantis iactatum, nate, periclis! (VI, v. 692-693)

“Por que terras jogado, por que mares,


Por que perigos, filho, eu te recebo!”72

É difícil não extrair sentidos do confronto intertextual: tem-se


a impressão de que a jornada odissíaca de Enéias termina com o en-
contro de seu pai nos Campos Elísios; dessa forma, assinala-se o fim
da Odisséia como modelo privilegiado nessa primeira parte da Eneida,
princípio estrutural ao qual retornaremos. A segunda parte do poe-
ma, fundada na Ilíada, não deixará de conter referências à saga de
Ulisses – pelo contrário, os estudiosos têm apontado também aqui
fortes reminiscências odissíacas; mas a trajetória de riscos mortais do
herói, suas vicissitudes de peregrino e joguete dos deuses por terras e
mares, é dada por finda. Essa interpretação, corroborada por outros
indícios, vem-nos por via alusiva: o poema de Catulo evocado na
Eneida faz pensar no encontro de Enéias com seu pai como meta atin-
gida após dura viagem; do intertexto criado por seu antecessor, Virgílio
cria novo intertexto.
É curioso que os estudiosos italianos, no estudo mencionado,
citando o verso 693 só até accipio, nada dizem a propósito de iactatum,
que dele faz parte e evoca, juntamente com terras e per aequora, a
própria imitação da Odisséia realizada por Virgílio no início de sua
epopéia: multum ille et terris iactatus et alto (I, v. 3). Diremos, então,
que Virgílio evoca Homero, Catulo e...a si próprio, como que inte-
grando num só passo três alusões:

original homérico – reelaboração catuliana (poema CI) – hipertexto


(livro VI)
reelaboração virgiliana
(proposição do livro I)

72
Tradução concisa de Odorico Mendes.

– 55 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Dizendo de outro modo, duas imitationes são incorporadas à


nova imitatio, que sintetiza, assim, a história da reelaboração do
passo homérico. Portanto, ao invés de aceitarmos integralmente es-
tas considerações de Barchiesi e Conte, procederemos a uma retifi-
cação:

“Virgílio, ao evocar aquele mesmo texto homérico, não quis esquecer a


transformação catuliana; e fundiu, assim, num único gesto, dois diver-
sos atos de imitação. Pode-se observar, com maior pedantismo, que
uma imitação translingüística se somou a uma imitação intralingüís-
tica”.73

Retificando: “três diversos atos de imitação”, “a duas imitações


intralingüísticas”...
Virgílio retoma Catulo mas acrescentando elementos de uma
imitação, sua, do original a que o poeta veronês aludia. Reforça, so-
bremaneira, o caráter odissíaco de Enéias, além de criar, com a alusão
a Catulo, efeitos outros, cuja análise, brilhante, pode-se ler nas pági-
nas dos estudiosos italianos.
A obra de Ovídio é toda semeada de alusões intertextuais, que
servem com freqüência ao tom parodístico e ligeiro de sua produção.
A nosso ver, um dos exemplos mais curiosos dessa relação com um
hipotexto se encontra na elegia 9 do livro III dos Amores.74 O poema,
um lamento pela morte de Tibulo, apresenta a certa altura as duas
amantes cantadas por esse poeta, Délia e Nêmesis, primus amor e
cura recens (v. 32), respectivamente. A segunda declara, provocativa,
à primeira, retomando e adaptando ligeiramente um verso do próprio
Tibulo:

73
Op. cit., p. 109.
74
Parcialmente analisado em VEYNE, Paul. L’ Élégie Érotique Romaine. Paris, Seuil,
1983, p. 72. Há tradução em português, que, infelizmente, apresenta vários erros, a
ponto de, em dados momentos, comprometer a compreensão do original: A Elegia
Erótica Romana. São Paulo, Brasiliense, 1985.

– 56 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Me tenuit moriens deficiente manu (v. 58)

“Foi a mim que ele segurou, ao morrer, com a mão desfalecente”.

Todo leitor de Tibulo recordará os belos versos em que o poeta


figura sua própria morte, com a amada Délia a seu lado:

te spectem, suprema mihi cum uenerit hora,


te teneam moriens deficiente manu. (I, 1, v. 59-60)75

“Que eu te contemple, quando chegar para mim a hora derradeira,


que eu te segure, ao morrer, com a mão desfalecente”.

Tibulo emprega o subjuntivo optativo, como em tantas outras


passagens de sua obra; na elegia de Ovídio, Nêmesis afirma que, na
realidade, foi a ela, não a Délia, que o poeta segurou com suas mãos
desfalecentes (contrapondo-se, pois, tenuit, pretérito perfeito do in-
dicativo, a teneam, expressão de desejo). Com toda probabilidade,
Ovídio simplesmente se refere ao fato de que Tibulo morreu quan-
do compunha elegias a uma e não a outra; ora, representar como
pessoas de carne e osso essas figuras de ficção (por mais que estejam
elas embasadas na vida pessoal, indevassável, do autor) e, além dis-
so, em disputa pela honra de ter estado com ele no fim da vida, eis o
sal desses versos. Efeito de ironia, sem dúvida, mas que não destoa
num poema de celebração à memória do poeta falecido. De fato,

75
É difícil entender como Francesco della Corte, em sua edição de Tibulo, pôde preferir
a lição et à te (teneam) de alguns manuscritos, minoritários que sejam. Conforme
analisamos em trabalho anterior, já citado aqui, há jogo fônico com a segunda pessoa,
obsessivamente reiterada (te/spectem/te/teneam/deficiente), à semelhança do que ocor-
re, por exemplo, no poema LI de Catulo, no proêmio do De Rerum Natura, nas invectivas
de Dido a Enéias, para citar casos mais célebres. A reelaboração de Ovídio parece-nos
referendar a lição te teneam: ilustração de como o estudo da intertextualidade pode
fornecer elementos para o estabelecimento filológico dos textos. Veja-se TIBULLO.
Le Elegie. A cura di Francesco della Corte. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Arnoldo
Mondadori, 1989, p. 60.

– 57 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ovídio trata a elegia e os personagens de Tibulo como realidade


factual, fazendo de Délia e Nêmesis seres tão verdadeiros quanto a
mãe e a irmã do poeta, mencionados também por ele nos versos 47-
52, em alusão à elegia I, 3, em que Tibulo, “doente em terra feácia”
(v. 3), também imagina o momento derradeiro de sua vida, rejeitan-
do a idéia de morrer em terra estrangeira, sem a mãe que lhe recolha
os ossos queimados nem a irmã que, com os cabelos desgrenhados,
deite perfumes sobre sua cinza (v. 5-8).
Em seu poema Remedia Amoris, Ovídio nos apresenta um caso
muito interessante de jogo intertextual, que passa despercebido aos
que não estão impregnados da Eneida e da Odisséia como o leitor
implícito, requerido pelo texto. Trata-se da digressão sobre Circe,
que constitui uma suasoria repleta de reminiscências da Eneida. Após
refutar a terapia das artes mágicas para a cura do amor, Ovídio in-
troduz o exemplum da feiticeira Circe, que, na Odisséia, como se
sabe, recebe Ulisses em sua ilha e deseja dele fazer seu esposo. Mas
no texto de Ovídio, a maga é pintada com traços de personagem
elegíaca, amante que procura reter consigo, ansiosamente, o amado
na iminência de partir.
Primeiro estranhamento para o leitor que recorda o contexto
homérico: Circe não tentara reter Odisseu e até lhe enviara vento
favorável à navegação; por outro lado, em Ovídio a partida deste é
denominada fuga (v. 266, 281), acusação que Dido, não Circe, lan-
çara contra Enéias! Adiantemos a conclusão, alicerçada em várias
provas que logo elencaremos: Ovídio retrata Circe com traços de
Dido, e o curioso de tal “jogo” é que Virgílio retratara Dido com
traços de Circe! Ironia a não passar despercebida do leitor informa-
do: realiza-se a operação inversa da feita por Virgílio, sem que o
leitor seja explicitamente advertido. Este poderia, por certo, em lei-
tura descuidada, não se dar conta de que a personagem ovidiana é
uma Circe muito diversa da tradicional, transfigurada pela
reelaboração virgiliana – em suma, uma espécie de Dido travestida
na célebre antepassada grega!... O leitor que, tendo lido o poema

– 58 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

elegíaco, consultar a Odisséia, ficará surpreso com a diferença de


situação; mas se reler o trecho da Eneida em questão, espantar-se-á
com as semelhanças...
Múltiplos são os indícios da plausibilidade de nossa leitura.
Além dos já citados, destacam-se: a imagem da paixão de Circe con-
tém os elementos “fogo” e “ferida” (ne te ferus ureret ignis, v. 267;
in qua male uulneror una, v. 283); ora, no livro IV, segundo vere-
mos mais detalhadamente, ao retratar os sofrimentos de Dido imersa
nos afetos que a conduzirão à ruína, tais metáforas comparecem como
leitmotiv da imagética da paixão; como no contexto elegíaco, amor
é ferida e fogo em que o amante se consome.76
Talvez esse nosso último argumento não pareça convincente,
pois se poderia dizer que Ovídio teria simplesmente realizado a trans-
posição da personagem homérica para o contexto elegíaco, inde-
pendentemente da intermediação de Virgílio, mas o fato é que no
texto de um fervilham referências ao do outro. Além disso, como
veremos, tem-se uma leitura pessoal de uma passagem do livro IV
da Eneida, com efeito cômico de que só fruirá plenamente o leitor
que tenha em mente essa epopéia.
Prosseguindo no arrolar das alusões, observemos que Dido cha-
mara Enéias de mero “hóspede” (de esposo que, a seu ver, antes fora
– v. 323-324); o poeta elegíaco denomina Ulisses callidus hospes (v.
265). A Odisseu é aplicado, por Ovídio, o epíteto de dulichium
ducem (v. 272); ora, é justamente no livro IV da Eneida que Enéias
recebe com certa insistência o título de dux Troianus, um emprego
singular que comentaremos em outro capítulo.
Na suasoria propriamente dita (v. 273-284), Circe diz que já
não suplica que Ulisses seja seu esposo; só lhe pede um prazo:

76
De fato, Dido, no livro IV, tem traços fortes de personagem elegíaca, conforme vere-
mos.

– 59 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ne properes, oro: spatium pro munere posco (v. 277)

“Não te apresses, rogo: peço-te o favor de um prazo”.

Também Dido tenta reter Enéias suplicando-lhe um espaço de


tempo, alívio para sua dor, através da irmã Ana; como a Circe ovidiana,
afirma que já não pensa no matrimônio:

Non iam coniugium antiquom, quod prodidit, oro,


nec pulchro ut Latio careat regnumque relinquat:
tempus inane peto, requiem spatiumque furori (IV, v. 431-433)

“Já não imploro o antigo conúbio, que ele traiu,


nem que se prive do pulcro Lácio e renuncie ao reino;
tempo inócuo peço, trégua e pausa para o furor”.

Notem-se as semelhanças formais: em Ovídio comparecem não


só as palavras oro e spatium como o próprio andamento sintático da
Eneida:

Non ego, quod primo, memini, sperare solebam,


iam precor, ut coniunx tu meus esse uelis. (v. 273-274)

“Já não imploro pelo que costumava esperar, lembro-me, no início:


que tu queiras ser meu esposo”.

Virgílio: Non iam...peto; Ovídio: Non...iam precor;


ut Latio careat; ut coniunx tu meus...;
quod prodidit; quod primo sperare solebam.

Acrescentemos o eco: coniugium/coniunx esse.


Dido pede a dilação da partida como um favor, um munus –
recompensa devida pelos serviços prestados:

...extremum hoc miserae det munus amanti (v. 429)

“Conceda à mísera amante este favor derradeiro”.

– 60 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Circe também pede um favor: pro munere (v. 277).


A maga de Ovídio alega o mau tempo como razão para não en-
frentar o mar e permanecer em terra firme, adiando a partida iminente:

Et freta mota uides, et debes illa timere (v. 279)

“E vês agitadas as águas e deves temê-las”.

Dido se revolta ao imaginar que Enéias foge precipitado, dis-


posto até mesmo a enfrentar o mau tempo do inverno:

Quin etiam hiberno moliris sidere classem


et mediis properas Aquilonibus ire per altum (v. 309-310)

“Chegas até mesmo a equipar sob uma constelação de inverno a tua


frota
e te apressas a ir por alto-mar em meio aos Aquilões”.

Realçando a filiação ao texto da Eneida, Ovídio cita um verso


da epopéia, adaptando-o saborosamente ao contexto; Circe diz ao
amado:

Non hic noua Troia resurgit (v. 281)

“Aqui não ressurge uma nova Tróia”.

Na alocução consolatória a seus companheiros, após o naufrá-


gio nas costas de Cartago, Enéias lhes diz que no Lácio será possível
fazer ressurgir Tróia:

illic fas regna resurgere Troiae. (I, v. 206)

“...ali nos será lícito fazer ressurgir Tróia”.

Outro elemento do texto ovidiano que retoma Virgílio está no


verso que segue a suasória:

– 61 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Illa loquebatur, nauem soluebat Ulixes (v. 285)

“Ela falava, levantava âncora Ulisses”.

Ovídio sintetiza brilhantemente – e com sua dose de ironia –


uma passagem da Eneida: após ouvir os últimos lamentos e imprecações
de Dido,77 Enéias nada lhe diz, cumprindo escrupulosamente a ordem
de partida que lhe mandara Júpiter; aqui, o herói abandona a posição
de amante, apartando-se de Dido e reassumindo o estatuto de herói
épico, ameaçado pela aventura em Cartago, que deve ser objetivo e
realista, voltado para a ação e a execução de um projeto superior. Por
mais frio e insensível que possa parecer ao leitor moderno e ao “ro-
mântico” de todas as épocas, Enéias deve ficar surdo aos afetos do
coração:

At pius Aeneas, quamquam lenire dolentem


solando cupit et dictis auertere curas,
multa gemens magnoque animum labefactus amore
iussa tamen diuom exsequitur classemque reuisit. (IV, v. 393-396)

“Mas o pio Enéias, por mais que desejasse mitigar-lhe a dor,


consolando-a, e com palavras remover-lhe as inquietações,
gemendo muito e com o coração abalado por grande amor,
cumpre, no entanto, as ordens dos deuses e torna à frota”.

Em Ovídio, evidente intenção irônica: enquanto a amante fa-


lava (loquebatur), Ulisses agia...; na Eneida, um herói que reprime
seus sentimentos mais íntimos (afinal, desejava ele consolar a rainha)
para cumprir sua missão; assim, Enéias aparta-se do código trágico-
elegíaco que estrutura a figura de Dido e recupera a perdida objetivi-
dade necessária ao cumprimento dos destinos; em ambos, silêncio que

77
Primeiramente, Dido perde os sentidos, deixando Enéias impossibilitado de dirigir-lhe
a palavra; depois, salienta o poeta que o herói renuncia a tal, um silêncio que lhe será
retribuído no livro VI. Às preces feitas através de Ana, Enéias fica impassível, pois um
deus tapara suas orelhas (placidasque uiri deus obstruit auris, IV, v. 440).

– 62 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

é ruptura de comunicação. Note-se o relevo dado ao verso que des-


creve as ações objetivas do troiano, fecho da passagem, em destaque,
com linguagem estilisticamente “neutra”: ordem direta normal em
latim.
Ovídio, portanto, acaba por fornecer-nos uma leitura78 de um
episódio da Eneida, transpondo-a para o contexto da Odisséia. De
certa forma, Ovídio, como Virgílio, mostra o caráter irreconciliável
dos dois códigos em confronto: o elegíaco-amoroso e o épico; sua Circe,
personagem de elegia como a Dido do livro IV, é incapaz de reter em
seu mundo o herói épico, regido por outro código de valores, o da
ação. A ruptura se traduz no silêncio de Ulisses-Enéias, que rejeita a
possibilidade de um diálogo entre dois mundos agora opostos irreme-
diavelmente. Na Eneida, esse silêncio é trágico, contra a vontade e
em oposição aos sentimentos do que parte, causador de imenso sofri-
mento na rainha, que, no livro VI, mostrará ainda carregar-lhe as
marcas. No poeta elegíaco, a nosso ver, é humorístico, tanto mais que
Ovídio, ao contrário de Virgílio, não explora o íntimo do herói, que,
portanto, não demonstra pesar algum; nesse sentido, o Odisseu de
Ovídio é mais objetivo, pois que visto em sua exterioridade mais radi-
cal, do que o protagonista do poema épico!
Deixamos para o final da interpretação intertextual o que, se-
gundo nos parece, é o momento mais irônico do jogo alusivo nessa
passagem de Ovídio; ao apelar para os sentimentos de Ulisses, Circe
lhe diz:

Hic amor et pax est...


totaque sub regno terra futura tuo est. (v. 283-284)

“Aqui está o amor e a paz...


e toda esta terra há de fazer parte de teu reino”.

78
Deve-se observar que essa leitura escapa muitas vezes ao leitor comum, embora seja
fundamental para a compreensão do silêncio de Dido no livro VI.

– 63 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na Eneida, porém, é quem parte, Enéias, que declara estar em


outro lugar seu amor e a pátria que os deuses lhe destinaram:

sed nunc Italiam magnam Gryneus Apollo,


Italiam Lyciae iussere capessere sortes:
hic amor, haec patria est. (v. 345-347)

“Mas agora à grande Itália Apolo Gríneo,


à Itália, os oráculos lícios mandaram que eu buscasse;
aqui está o amor, esta é a pátria...”

Et nos fas extera quaerere regna. (v. 350)

“E nos é lícito procurar reinos estrangeiros”.

Notemos que hic pode ser interpretado como “aqui” ou “este”,


pronome no último caso, advérbio demonstrativo no primeiro; prova-
velmente, em Virgílio é o pronome, já que segue a ele haec;79 em
Ovídio resulta melhor a análise da palavra como advérbio; em todo
caso, a semelhança fônica, que dá margem ao duplo entendimento,
confere à retomada ovidiana caráter de citação textual.
Circe age exatamente como Dido, mas Ovídio lhe atribui pala-
vras semelhantes às que foram empregadas por Enéias, como se Circe-
Dido utilizasse, hábil e retoricamente, os argumentos que poderiam
ser invocados por Ulisses-Enéias para a partida. Como era comum
nos oradores romanos, a personagem adianta possíveis objeções para
rejeitá-las antes que o interlocutor as formule, só que nesse caso é
como se Circe tivesse lido a Eneida... Há evidente efeito cômico nes-
sa transposição, desde que o leitor, não é inútil insistir, participe ati-
vamente do pacto intertextual, percebendo a alusão e apreciando a
reelaboração operada pelo poeta e seus efeitos de distorção.

79
Para Conington, no passo da Eneida em questão, hic pode ser o advérbio; a maioria dos
comentadores nem ventila a hipótese.

– 64 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Em suma, se a Dido de Virgílio deixa transparecer aspectos de


Circe, a Circe de Ovídio revela traços de Dido, segundo já observamos:
relação triangular em que se dialoga com Homero e Virgílio ao mesmo
tempo. O texto novo traz em si a própria história da retomada de um
locus, incorporando, com modificações próprias e intenções particula-
res, imitatio anterior. Víramos Virgílio retomando Homero através de
Catulo; o processo acima analisado é basicamente o mesmo.
Exemplo análogo, mas de menor extensão, temos na Arte de
Amar: a Calipso de Ovídio, personagem homérica que tem nele tra-
ços de Dido, roga a Ulisses que lhe narre os acontecimentos da guerra
de Tróia, com a insistência da personagem virgiliana em face de Enéias:

Haec Troiae casus iterumque iterumque rogabat (II, v. 127)

“Ela lhe rogava os infortúnios de Tróia de novo e de novo”.

É Calipso vista sob o ângulo da imitatio de Virgílio, cuja Dido


funde numa só personagem Circe, Calipso, Ariadne, Medéia, Nausícaa,
etc. A reiteração do advérbio iterum é uma espécie de “chave” para a
detecção da alusão; de fato, na Eneida, o encantamento de Dido com
a narrativa do herói é assim expresso:

Iliacosque iterum demens audire labores


exposcit pendetque iterum narrantis ab ore. (IV, v. 78-79)80
“Aos trabalhos ilíacos de novo, insensata!, deseja insistentemente
ouvir
e de novo pende dos lábios do narrador”.

Na tradução de Odorico Mendes:

“D’Ílio outra vez sem tino ouvir demanda,


E da narrante boca outra vez pende”.

80
Note-se o relevo de iterum: expresso duas vezes e antes de cesura (pentemímera e
heftemímera, respectivamente).

– 65 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

A repetição do mesmo advérbio mais um acréscimo que está


em Virgílio mas não em Homero – a obsessão pela narrativa do he-
rói, reveladora do interesse apaixonado da protagonista – parece
comprovar a operação intertextual nos versos de Ovídio: aparen-
tando evocar a personagem do poeta grego, Ovídio a recupera, na
verdade, tal como outro “imitador” latino a transformara; novamen-
te, é a história de uma mimese que é relembrada. Sob o texto
ovidiano, o texto de Virgílio que contém o homérico – palimpsesto,
pois, a conservar mais de uma camada de escritura, releitura feita
sobre uma outra releitura. Não cremos que haja, nas letras latinas,
poeta mais ousado que Ovídio no tratamento da tradição literária
como material de criação para uma nova literatura, parodística, bre-
jeira: jogo de espelhos que apresentará ao leitor desprevenido uma
imagem deformada, já que ele pode ser levado a atribuir à Calipso
homérica, por lapso de memória, traços a ela alheios que Ovídio lhe
conferiu... Efeito de ilusão literária: em bizarra inversão, é como se a
Calipso do precursor, Homero, tivesse recebido influência da Dido
de seu sucessor, Virgílio, mais ou menos como o Quixote de Menard
teria modificado o de Cervantes. Em suma, metapoesia, que joga
com o processo alusivo quase parodisticamente, criando distorções
na memória literária dos desprevenidos, isto é, dos que abusivamente
tomarem a Calipso ou a Circe de Ovídio por réplicas fiéis das cria-
ções homéricas...
Amiúde, a interpretação a ser dada a uma alusão é mais incer-
ta; insistimos: a nosso ver, o estudioso deve apontar a referência e
seus efeitos possíveis; sua argumentação revelará a verossimilhança
de sua análise; entretanto, é evidente que jamais se poderá ter cer-
teza absoluta da real intenção do poeta, pela natureza mesma do
intertexto, um espaço de leitura entre os textos, com sentidos não
explicitados. No elogio de Epicuro do livro I do De Rerum Natura,
Lucrécio se utiliza da expressão Graius homo (v. 67) para aludir ao
filósofo, cujo nome não é mencionado; trata-se de fórmula tipica-
mente grega e que só teria sido empregada anteriormente, na litera-

– 66 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

tura latina, por Ênio, num passo dos Annales, em referência ao ge-
neral Pirro.81 A primeira interpretação – e seria mais prudente se
deter nela: Lucrécio faz uso de um sintagma próprio da poesia épi-
ca.82 Ernout e Robin comentam, justamente, que “a perífrase perten-
ce ao estilo épico”.83 Lucrécio descreve a façanha intelectual de
Epicuro, em sua luta contra a superstição, como uma batalha épica; o
grego é uma espécie de herói, redentor da humanidade como Hércules,
que vence luta titânica contra um monstro que sujeitava vergonhosa-
mente todos os homens. Mas a interpretação pode ir mais longe, apoi-
ada na alusão a Ênio: Epicuro é um guerreiro como Pirro; assim,

“A alusão sustenta a imagética militar com a qual Lucrécio reveste as


façanhas intelectuais do filósofo”.84

Aceitemos ou não a última interpretação (Epicuro=Pirro), é


evidente que o emprego de uma fórmula épica nesse passo ressalta as
intenções de conferir estatuto heróico à obra do filósofo. O exame do
contexto é revelador; Epicuro é chamado uictor:

Vnde refert nobis uictor quid possit oriri (I, v. 76)

“De onde nos reporta, vencedor, o que pode nascer...”

Note-se a ambigüidade de refert, magistralmente aproveitada


por Lucrécio: “reporta”, isto é, “ensina-nos”, “narra”, mas também
“traz de volta”, como presa de guerra conquistada ao inimigo.85
A análise dever ser, portanto, a mais completa possível; mas
seus elementos devem passar pela prova do contexto em que a alusão

81
FARRELL, Joseph. Vergil’s Georgics and the Traditions of Ancient Epic. New York-
Oxford, Oxford University Press, 1991, p. 34-35, nota 17.
82
O próprio Virgílio o empregará, denominando o guerreiro Ácron, no livro X da Eneida,
um Graius homo – v. 720.
83
LUCRÈCE. Op. cit., tomo I, p. 27.
84
FARRELL. Op. cit., p. 35.
85
Ver o comenário de ERNOUT & ROBIN. In: LUCRÈCE. Op. cit., p. 30.

– 67 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

se insere; estabelecer-se-á, de certa forma, o grau de verossimilhança


da interpretação. No caso de Lucrécio que comentamos brevemente,
podemos dizer que um “excedente” de interpretação (Epicuro=Pirro)
é apresentado pelo estudioso como possível, coerente com a interpre-
tação global e referendador da primeira interpretação proposta, mais
concretamente verificável; modestamente, a análise se detém aqui,
sob risco de tecer hipóteses no mínimo impossíveis de comprovar com
dados objetivos do texto – tentação a que está sempre sujeita a análi-
se intertextual de qualquer obra, favorecida, como já dissemos, pela
natureza mesma do intertexto, uma “mensagem” não expressa con-
creta e diretamente no enunciado do texto alusivo, um código que
cabe ao leitor desvendar e explicitar sem que possa ter a pretensão de
encontrar, ao cabo da análise, uma suposta verdade por ele encontra-
da como quem decifrou enigmas.

3. PRECEDENTES, NA ÉPICA LATINA, DA ESTRATÉGIA INTERTEXTUAL


DE VIRGÍLIO

Apresentamos exemplos de relações intertextuais na literatura


latina, selecionando passagens da poesia elegíaca e didática que nos
pareciam muito expressivas sob o aspecto da alusão literária; pode-
mos, todavia, indagar a respeito da situação da épica pré-virgiliana:
que precursores terá tido Virgílio no uso da “arte alusiva” em sua
epopéia?
Se toda literatura é, em sentido amplo, “interetxtual”, a litera-
tura latina como tal nasce sob o signo da intertextualidade, isto é,
consciente de seu caráter “derivativo”, fator de conseqüências impor-
tantes para seu desenvolvimento. Seus criadores explorarão significa-
tivamente as conseqüências dessa condicionante. Mostramos, com
passos de poetas diversos, que o jogo alusivo cria sentidos, um subtexto
a que tem acesso o leitor atento à inter-relação; Virgílio, contudo,
como veremos, explorará em sua epopéia – mas o processo já se anun-

– 68 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ciava nas Bucólicas e nas Geórgicas, as possibilidades máximas desse


princípio estético em que com ele se transformará a alusão.
É difícil avaliar, em vista do estado fragmentário da obra dos
poetas latinos arcaicos e da perda de grande parte da literatura
alexandrina, o grau de originalidade do jogo intertextual na Eneida,
epopéia eminentemente alusiva. A nosso ver, o mais plausível é que
Virgílio tenha, de fato, criado uma espécie particular e original de
intertextualidade, explorando tendências das letras latinas. Vejamos,
brevemente, os principais precursores do mantuano na poesia épica,
passando-os em sumária revista sob o ângulo da “arte alusiva”, tenta-
remos, assim, verificar os possíveis precedentes de uma estratégia tex-
tual que culminaria com a Eneida.
Mencionamos que a primeira obra da literatura latina é uma
tradução da Odisséia feita por Lívio Andronico. Pelo que nos é dado
avaliar a partir dos fragmentos e do testemunho de escritores da An-
tigüidade, seus méritos artísticos não deveriam ser grandes, embora já
não se possa avalizar um juízo completamente negativo. Horácio –
mas se deve recordar, prudentemente, sua parcialidade no julgar os
poetas arcaicos latinos – é severo na apreciação do conjunto da obra
de Lívio, que, para ele, simplesmente não se pode chamar de poesia,
apesar de uma e outra qualidade ocasional:

Non equidem insector delendaue carmina Liui


esse reor, memini quae plagosum mihi paruo
Orbilium dictare; sed emendata uideri
pulchraque et exactis minimum distantia miror.
Inter quae uerbum emicuit si forte decorum,
si uersus paulo concinnior unus et alter,
iniuste totum ducit uenditque poema. (Ep. II, 1, v. 69-75)

“De minha parte, não ataco nem julgo que se devam destruir
os versos de Lívio, que, bem me lembro, a mim, uma criança,
como carrasco Orbílio ditava; mas que pareçam elegantes
e belos e não distantes da perfeição, causa-me espanto.
Se neles alguma palavra eventualmente brilha, formosa,

– 69 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

se um que outro verso é um pouco mais harmonioso,


sem razão se considera o conjunto, e o vendem, como poesia”.

O primeiro verso da tradução de Lívio nos parece assegurar que


o tradutor não carecia de qualidades:

Virum mihi, Camena, insece uersutum86

“Canta-me, Camena, o homem versátil...”

Em Homero:

Andra
)/ moi ennepe,
/) Mou=sa, polu/tropon (o(j
\ ma/la polla\ )

Utilizando o satúrnio, ao invés do hexâmetro datílico homéri-


co, o tradutor é obrigado a deixar a seqüência do verso da epopéia,
colocada por nós entre parênteses, para um segundo verso, cujo enun-
ciado desconhecemos. Notemos, porém, a habilidade de Andronico,
que obtém tradução bastante próxima do original: uirum mihi repro-
duz fielmente, conservando a ordem, o texto de partida (e de uirum
se lembrará Virgílio em seu poema). Segue-se a invocação à Musa,
com a mais significativa alteração operada pelo tradutor, exemplo de
sua freqüente preferência por adaptar realidades e mitos gregos ao
equivalente, ou próximo disso, latino; sobretudo a seqüência indica
quão versátil podia ser sua atividade tradutória. Sander Goldberg ob-
serva que em insece se tem “uma palavra latina rara, de sentido, som
e acento similar ao incomum, próprio de Homero, ennepe” e que
uersutum apresenta a “mesma metáfora” contida em polu/tropon87 –
a idéia da mente que se volta em vários sentidos.88 Na verdade, como
se lê em Gélio, os Antigos já associavam etimologicamente insece e
86
Conservado por AULO GÉLIO nas Noctes Atticae, XVIII, 9, 5.
87
“Saturnian Epic: Livius and Naevius”. In: BOYLE, A.J. (Org.). Roman Epic. London-
New York, Routledge, 1993, p. 22.
88
De uertere, na forma freqüentativa uersari; uersutos eos appello quorum celeriter mens
uersatur, diz Cícero no De Natura Deorum, III, 10, 25, explorando a etimologia da
palavra.

– 70 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ennepe89, associação, ao contrário de muitas etimologias propostas na


Antigüidade, absolutamente correta.90
A tradução de Lívio, portanto, não é prosaica nem descuidada:
vai à procura de equivalências que mantenham não apenas o sentido
mas o tipo de registro e, quando possível, a evocação dos próprios
sons bem como a manutenção da ordem das palavras do original.
Assim, já não se pode aceitar sem ressalvas um juízo como o de H. de
la Ville de Mirmont, que chama a tradução de “rude e infiel”.91
Não é possível saber, porém, se Lívio Andronico iniciara, ao
menos embrionariamente, a estratégia intertextual cujo cume se en-
contrará na Eneida: criação de sentidos por meio da alusão contínua;
parece-nos improvável num texto que se pretende tradução, destina-
do a servir de material didático nas escolas romanas. Seja como for, já
se delineia, na Odussia, a técnica da contaminatio, inserindo-se, em
determinadas passagens da tradução, palavras tiradas de outro con-
texto da mesma obra que se traduz e até mesmo de outras obras, se-
gundo S. Mariotti.92 Contudo, ainda estamos longe da complexidade
virgiliana.
Névio, que era da Campânia, região de cultura grega, cria a epo-
péia latina de assunto nacional com seu Bellum Punicum, que narra a
primeira guerra contra os cartagineses, da qual ele próprio participara.93
Muito se tem discutido sobre a estrutura e o conteúdo dessa
obra que tanto emprestará a Virgílio, mas, novamente, o estado em
que chegou aos dias de hoje convida à prudência. Importante para
nossas considerações é que Névio tratara, de alguma forma, da guerra
de Tróia, relatando, pois, acontecimentos anteriores à guerra púnica

89
Noctes Atticae, XVIII, 9, 9.
90
Da raiz * seku- (latim sequi; alemão sagen, etc.): cf. POKORNY, Julius.
Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. Bern und München, Francke, 1959, I.
Band, p. 896-897.
91
In: Études sur l’Ancienne Poésie Latine. Paris, Albert Fontemoing, 1903, p. 139.
92
Apud GENTILI, B. et alii. Op. cit., p. 79.
93
Ver GÉLIO. Noctes Atticae, XVII, 21, 45.

– 71 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

e se filiando à tradição homérica com um provável início in medias


res. Observemos este fragmento:

blande et docte percontat Aenea quo pacto


Troiam urbem liquerit (fr. 23)

“Suave e habilmente narra Enéias de que modo


a cidade de Tróia deixou...”

É possível que, como o Enéias de Virgílio, o de Névio se esten-


desse no relato de acontecimentos da guerra de Tróia; seria, então, o
grande precursor do mantuano na estrutura mista de sua epopéia,
afinal, criando a Ilíada latina, uma epopéia guerreira, teria integrado
a ela processo narrativo (o in medias res), talvez personagens e temas,
da Odisséia. Mas, em razão do pouco que dela nos resta, a natureza
precisa do jogo alusivo de Névio não pode ser determinada.
Os Annales de Ênio, poeta cuja técnica alexandrina já mencio-
namos, inauguram a tradição literária mais diretamente ligada à epo-
péia de Virgílio: na temática, união do passado lendário e mítico aos
fatos objetivos da história; na forma, adesão maior ao modelo homé-
rico, com o uso do hexâmetro datílico e das convenções épicas cano-
nizadas pela tradição homérica, tais como invocação à Musa, concilia
deorum, etc. No célebre proêmio aos Annales, por nós brevemente
comentado, a sombra do poeta grego assim se dirige a Ênio:

O pietas animi! (fr. 5)

Ênio, portanto, vê no precursor a imagem de um pai a quem


cultuar com toda reverência e seguir obedientemente. Não esqueça-
mos os traços afetivos, profundamente arraigados na sensibilidade
romana, da figura arquetípica do pai, de resto tão presentes numa
obra como a Eneida, bem como a carga emocional da palavra pietas,
que confere às relações familiares caráter de escrupulosa sacralidade.
Apesar da escassez de versos restantes, pensamos que é verossí-
mil inferir que muito do jogo intertextual da Eneida já comparecia

– 72 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

nos Annales. Aulo Gélio conservou versos de um dos proêmios (pois


essa epopéia não possuía apenas um):

inseque, Musa, manu Romanorum induperator


quod quisque in bello gessit cum rege Philippo.94

“Segue a narrar, Musa, o que, com as tropas romanas,


cada um dos chefes realizou na guerra contra o rei Felipe”.

Seguindo o precedente de Andronico, Ênio usa o verbo raro


inseque/insece, equivalente ao homérico ennepe, mas ao invés de in-
vocar a Camena rústica, apela à Musa, reproduzindo, na seqüência
inseque, Musa a ordem homérica e)n/ nepe, Mou=sa. Temos, pois, uma
especie de contaminatio condensada, que Virgílio praticará amiúde:
retomada do modelo homérico com a incorporação de variações pro-
duzidas por outro poeta que retomara o mesmo texto.
Num estudo recente, William Dominik aponta as semelhanças
estruturais entre o episódio do sonho de Ília, narrado por Ênio no
primeiro proêmio dos Annales (I, fr. 29) e o episódio de Tiro, violen-
tada por Possêidon, narrado na Odisséia (XI, v. 235-259).95 O poeta
latino organizou seu texto modelando-se estreitamente nessa passa-
gem da Nékuia; similarmente, Virgílio organizará sua matéria de for-
ma a evocar os dois poemas homéricos. Ênio, portanto, em obra que
não era tradução, praticava a técnica da alusão a um modelo – com
que profundidade e freqüência ao longo de sua epopéia, jamais sabe-
remos; certamente de uma forma tosca em face da arte refinada de
Virgílio em sua Eneida.
Com a “revolução” dos poetae noui, que adotam mais sistema-
ticamente a estética alexandrina, o diálogo com a tradição grega se
faz mais estreito; é de se lamentar a perda das obras de Cina, Calvo,

94
Apud GÉLIO. Noctes Atticae, XVIII, 9, 3. É o fragmento 322-323 do livro X dos
Annales, na edição de WARMINGTON. Remains of Old Latin.Vol. I: Ennius and
Caecilius. Cambridge, Harvard University Press (Loeb), 1988, p. 118.
95
“Ennius’ Annales”. In: BOYLE, A.J. (Org.). Op. cit., p. 42.

– 73 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Polião, Galo, que poderiam fornecer indícios mais precisos sobre a


novidade da técnica alusiva da Eneida. A obra de Catulo, porém, dá-
nos uma amostra da complexidade da poesia “de segundo grau” nesse
momento praticada por aquela geração “modernista”, não nos referi-
mos às traduções cum uariatione como o poema LI, recriação de uma
ode de Safo, ou o LXVI, tradução de elegia de Calímaco; pensamos,
sim, no epyllion96 que é o poema LXIV, repleto de alusões sutis e
eruditas a uma série de autores: Hesíodo, Apolônio de Rodes,
Eurípides, Ênio,97 numa contaminatio de autores gregos e latinos, an-
tigos e “modernos”.
Note-se o exemplo citado abaixo, que ilustra a técnica de
“condensação” que também haveremos de encontrar, e com freqüên-
cia, em Virgílio: fusão num só verso de dois versos originais diferen-
tes; aqui, trata-se de dois autores gregos, Hesíodo e Apolônio de Ro-
des.
No poema Escudo de Hércules, atribuído ao primeiro, Atenas
desta forma se dirige a Hércules e a Iolaus:

Xai/rete, Lugkh=oj geneh\ thlekleitoi=o (III, v. 327)

“Salve, prole do célebre Linceu!”

No final de sua epopéia, Apolônio saúda em seu nome os heróis:

Ilat
/( , ) a) risth=ej maka/rwn ge/noj... (Argonáuticas, IV, v. 1773)

“Sede propícios, heróis, prole dos bem-aventurados!”

96
Parece consagrada essa palavra para designar um poema alexandrinizante de tema
mitológico, relativamente curto em comparação com uma epopéia tradicional, espécie
de epopéia em miniatura, e caracterizado, dentre outros traços, por alusões eruditas e
forte presença de discursos diretos e monólogos bem como de digressões e descrições
(ver Enciclopedia Virgiliana, vol.II, p. 340, verbete epillio).
97
Ver o comentário de KROLL (Catull. 7. ed., Stuttgart, Teubner, 1989, p.140-196),
bem como o denso ensaio de David KONSTAN, “Neoteric Epic: Catullus 64”. In:
BOYLE, A. J. Op. cit., p. 59-78.

– 74 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Catulo reúne as duas interpelações; como em Apolônio, é o


“eu-poético” que toma a palavra, não uma personagem da narrativa:

heroes saluete, deum genus... (LXIV, v. 23)

Saluete é o equivalente latino, familiar, do Xai/rete de Apolônio;


deum genus reproduz o maka/rwn ge/noj de Hesiodo (ou do poeta
que escreveu o Escudo) – pequeno exemplo de uma alusão a dois
hipotextos diversos, incorporados à teia alusiva do epyllion.
De Andronico a Catulo, vemos que a epopéia e o poema épico
em geral parecem se filiar sempre a modelos anteriores, como que
deixando à disposição dos autores a possibilidade de tecer relações
intertextuais as mais diversas: haverá sempre um “diálogo” com a tra-
dição do gênero, tendo em Homero uma espécie de fulcro irradiador
de influências, o ponto de partida por excelência a ser assimilado e
transfigurado.
Se a literatura latina nasceu sob o signo da intertextualidade,
inserindo-se numa tradição e superando-a com as singularidades de
sua arte alusiva, Virgílio, por sua vez, extrairá conseqüências radi-
cais dessa condicionante cultural. No domínio da épica, em espe-
cial, Virgílio acentuará tendências em germe nos seus antecessores,
conforme se pôde depreender do rápido exame dos poetas ditos “ar-
caicos” como da epopéia em miniatura que é o poema LXIV de
Catulo.
Note-se que geralmente tratamos neste item, como no ante-
rior, de “intertextualidade” num sentido restrito: evocação de um
hipotexto de outro escritor com o qual o hipertexto tecerá relações
de sentido; nas páginas que seguem distinguiremos fenômenos como
a “intratextualidade” e a “autotextualidade”, cremos que seria pro-
veitoso, e o mencionamos como indicação de amplo e fascinante
campo de estudo de que aqui não nos poderemos ocupar, analisar
tais facetas da intertextualidade na obra de outros escritores lati-
nos, uma vez que o estado atual de sua obra o permita.

– 75 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

No capítulo seguinte, daremos uma amostra dos processos alu-


sivos da Eneida, cuja extensão e sutileza são inimagináveis para o
leigo, vale dizer o leitor que se aproxima da obra sem ter ciência dos
princípios intertextuais que a regem.

– 76 –
II – FORMAS E PROCESSOS
ALUSIVOS NA ENEIDA
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Ao longo de nossas análises sobre a trama alusiva da Eneida,


como talvez em nossas exemplificações anteriores, algum leitor se verá
levado a perguntar: será possível que o poeta solicite do receptor de
sua mensagem conhecimento tão erudito para a compreensão de seu
poema bem como habilidade de filólogo, quase de detetive, para sur-
preender e analisar referências sutis a tão grande conjunto de textos?
Em primeiro lugar, é preciso recordar sempre que o leitor de
poesia da Antigüidade era culto; aprendia na escola a traduzir e inter-
pretar textos gregos, a memorizar modelos literários1 e manipular te-
mas e formas em composições pedidas pelos mestres. Como se sabe, o
ensino se fundava especialmente em textos paradigmáticos, e as cri-
anças aprendiam, por exemplo, uma língua como o grego lendo e tra-
duzindo autores como Homero.2 Por outro lado, a estética alexandrina,
que pouco a pouco ia se impondo ao gosto comum na época de
Augusto,3 requeria do leitor implícito a agilidade em navegar no ver-
dadeiro mar de citações e alusões em que se podia transformar um
texto de maior fôlego.
Defendemos, porém, outra idéia, que não se contrapõe às con-
siderações anteriores. A nosso ver, uma obra como a Eneida prevê, no

1
Na escola do grammaticus, espécie de ensino secundário, depois de o mestre ter lido e
explicado determinado texto (poetarum enarrationem: “explicação dos poetas”, nas
palavras de Quintiliano – Inst. Orat. I, 4, 2), os alunos o liam em voz alta e se esforça-
vam por decorá-lo (ver MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüida-
de. São Paulo, E.P.U., 1990, p. 430).
2
Santo Agostinho retrata situação que certamente vinha se repetindo há séculos: a
predominância do texto literário também no aprendizado do idioma. Obrigado a apren-
der grego através de Homero, mesmo sem conhecer previamente o vocabulário da
língua, de uma forma não natural e sob ameaça constante de punição, a suavidade do
poeta lhe parecia, quando criança, amarga como fel: Nam et Homerus peritus texere
tales fabellas et dulcissime uanus est et mihi tamen amarus erat puero (“Pois também
Homero é hábil em compor tais histórias e frívolo de um modo incomparavelmente
doce, e, no entanto, para mim, uma criança, era amargo”, Confissões, I, XIV, 23).
3
Segundo Donato (Vita 26), tal foi o sucesso das Bucólicas, que freqüentemente eram
cantadas nos teatros; Sérvio (Ad Buc. 6, 11 – apud Enciclopedia Virgiliana, vol. V**,
p. 451) menciona a recitação no palco da sexta bucólica pela famosa Licóride, a aman-
te de Marco Antônio e do poeta Cornélio Galo.

– 79 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

campo alusivo, níveis de complexidade na interpretação de seu texto;


nenhuma leitura dessa epopéia pode prescindir totalmente da com-
preensão de alusões, sobretudo aos mitos e à trama narrativa de
Homero, mas o aprofundamento e enriquecimento de uma leitura
linear compreende vários graus de aproximação até o leitor implícito
ideal, isto é, capaz de detectar e entender todas as artimanhas da in-
tertextualidade na obra. Nesse sentido, nenhuma leitura da Eneida
será ideal, porque perdemos grande parte do repertório de textos a
que ela alude e porque não somos sempre capazes de compreender as
intenções da alusão, já que não é possível recuperar o horizonte cul-
tural do leitor da época de Augusto. Não exageremos, contudo, no
tom pessimista: não se ousará negar universalidade à mensagem da
epopéia, cuja mensagem, por certo, tem sido transmitida ao longo dos
séculos, em leituras com maior ou menor, quando não quase nula,
recorrência ao parâmetro da alusividade. Por outro lado, não é por
vivermos em outro momento cultural que não compreenderemos uma
obra do passado, e seria vão exercício de pessimismo lamentar o ób-
vio: pelo próprio curso natural das coisas, o leitor “ideal” é uma abs-
tração cada vez mais esgarçada com o passar do tempo – basta pensar,
por exemplo, nos aspectos da língua latina que não somos mais capa-
zes de avaliar com precisão e que desafiam filólogos num jogo, amiú-
de, de antemão perdido. Todavia, uma espécie de arqueologia textual
que ocupa grande parte dos estudiosos do mundo antigo e que vai à
procura dos sentidos perdidos, de quando em quando, na história da
recepção de uma obra, lança luz nova sob facetas obscurecidas em
tempos precedentes, resgatando do esquecimento expectativas
interpretativas inscritas no texto literário; assim, o tempo que não
pode ser revertido é mitigado, e atingimos compreensão que há dez
anos ou há um século atrás não era possível. Cremos, por exemplo,
que Virgílio, do final do século XIX a esta data, tem suscitado análises
que verdadeiramente representam ganhos de inteligibilidade com re-
lação a certas épocas anteriores.
O estudo dos efeitos intertextuais tem como conseqüência re-
levar a complexidade, a um primeiro olhar desatento insuspeitada, de

– 80 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

um poema qual a Eneida; porém, quanto mais profundamente imer-


gimos na busca do intertexto sub-reptício, tanto mais podemos ten-
der a nos sentir distantes da compreensão de Virgílio: o sentido de
sua obra talvez pareça hermético ou irrecuperável em toda sua força.
Eis uma ilusão que cumpre retificar, afinal, por sua própria concepção
como texto, a Eneida se sustenta como um todo e se faz usufruir este-
ticamente mesmo aos que pouco, ou quase nada, se atêm à problemá-
tica da intertextualidade – atestam-no milhões de leitores não espe-
cialistas, ao longo dos séculos, que vêm encontrando na epopéia a
satisfação estética que é essência mesma do fato literário. Tais leito-
res, porém, se “informados”, compartilhando os resultados, tateantes
que sejam, da crítica e da filologia virgiliana, veriam acrescer a seu
prazer mais um: o do reconhecimento das alusões e conseqüente mul-
tiplicação de sentidos que uma leitura intertextual não apenas possi-
bilita mas provoca. Ler a Eneida sem referência ao jogo alusivo impli-
ca perda certa,4 mas algum tipo de perda sofre também a leitura dos
“iniciados”, como já lembramos, diante do cemitério de versos em
que se transformou a poesia latina arcaica e grande parte da alexan-
drina; não pretenderemos, então, que os leitores “comuns” lêem ou-
tra obra que não a concebida pelo poeta – deixam, sim, de reconhecer
outras “vozes” na polifônica epopéia que admiram.
Para nós, portanto, a Eneida permite níveis de leitura mais ou
menos alusiva, ainda que, já o veremos, sem um mínimo de memória
textual a compreensão da obra pode ser afetada. Entre as páginas que
seguem, encontraremos um tipo de intertextualidade que não exige

4
Um pequeno exemplo: no livro X, queixando-se a Júpiter, Vênus lamenta a repetição
da guerra de Tróia e, depois de mencionar Diomedes, diz: Equidem, credo, mea uolnera
restant (“Certo me aguardam, penso, outras feridas”, X, v. 29, na tradução de Odorico
Mendes); o leitor desinformado não saberá que a deusa fora ferida pelo Tidida, em
episódio da Ilíada, e não entenderá o que ela teme ou finge temer. Contentar-se com o
esclarecimento de uma nota de rodapé, como faz o leitor comum, não basta, pois,
geralmente, em tais circunstâncias, o comentador apõe informação sumária que não
leva em conta os aspectos propriamente literários da alusão: pára-se, pois, no meio do
caminho...

– 81 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

conhecimento ativo senão do próprio texto que se vai lendo: trata-se


de recordar, muitas vezes em detalhe, passagens anteriores que serão
evocadas sutilmente para criar sentido, em processo a que chamare-
mos “intratextualidade”. Se não tecer a rede de associações a que o
texto, pela retomada de material lingüístico, incita, o leitor por certo
se verá privado de riquezas recônditas da obra, segundo esperamos
demonstrar; empregando de novo a metáfora musical, sua “execu-
ção” da Eneida como leitor ativo, terá menos notas, mutilará arran-
jos, ignorará nuanças.
Desejamos provar, com o conjunto de nossas análises, a funcio-
nalidade da arte intertextual (ou alusiva, ou “integrativa”, como que-
riam, respectivamente, Pasquali e Knight, ou imitatio, como
etiquetavam os Antigos) de Virgílio em sua epopéia, exemplo radical
desse processo artístico pouco compreendido; assim, forneceremos
desmentido categórico a estas considerações de Anthony Camps:

“É claro, além disso, que, freqüentemente, quando uma reminiscência


homérica é identificada, não acrescenta nada para o leitor à qualidade
poética da versão virgiliana...Por vezes, pelo contrário, uma evocação
demasiado explícita de um precedente homérico pode ser danosa”.5

Aqui, Camps parece estar preso ao velho conceito da “imita-


ção” como aemulatio, sem se ater à geração de sentido pela via inter-
textual. Um pouco mais além, o mesmo estudioso afirma:

“Para uma leitura da poesia virgiliana, o efeito melhor se obtém quando


a recebemos através de uma série de impressões. Obviamente o leitor
deve reconhecer e reagir a alusões explícitas e ecos acentuados, como,
de resto, deve ser sensível ao fato de que a característica mais singular
da poesia virgiliana é aquela qualidade de ressonância e alusividade que
aparece tanto na forma quanto no conteúdo do poema. Mas, em ‘ritmo’
normal, a leitura do poema não permitirá que os ecos e ressonâncias
que nele estão contidos produzam mais do que uma vaga impressão

5
CAMPS, A. “Lettura del Primo Libro dell’ Eneide”. In: Lecturae Vergilianae. Napoli,
Giannini, 1983, p. 25.

– 82 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

passageira. Isso não é um mal. Nem importa muito se algumas alusões


forem completamente ignoradas. Com o conhecimento limitado das
circunstâncias históricas que possuímos, isso é, de resto, inevitável em
alguns casos.6 Algumas das reações, além do mais, refletem antes uma
disposição pessoal do leitor que uma intenção mais ou menos conscien-
te da parte do poeta (grifo nosso)”.7

Se a alusão provoca “vaga impressão passageira”, é porque não


a conseguimos interpretar com eficiência, em razão, talvez, de alguma
chave que o tempo tornou difícil ou impossível encontrar; por outro
lado, não se exijam certezas científicas quando se trata de texto lite-
rário e intertexto, mensagem não explícita que se instaura do con-
fronto entre textos. Porém, se faz parte da arte de Virgílio, como reco-
nhece Camps, o jogo intertextual como elemento produtor de sentido,
mais que “impressão”, ter-se-á uma espécie de “excedente” de leitura
para além da linear, fascinante e intrigante recurso a tornar multifa-
cetado o texto e a permitir polifonia que só levianamente poderíamos
ignorar, como se se tratasse de mero adorno, esse outro preconceito
da noção de imitatio-aemulatio. Para nós, Camps, pensando em certo
tipo de alusão mais “neutro”, incita involuntariamente à renúncia a
uma pesquisa importante e que é relativamente recente nos estudos
virgilianos: a de apontar e interpretar os efeitos intertextuais que
modificam nossa compreensão ao menos de passagens da obra. Ora,
eis um campo ainda a explorar; segundo pensamos, reanalisar sob tal
ângulo a poesia latina em geral, já o dissemos, há de trazer bons frutos
e enriquecer a nua leitura linear, não intertextual, que normalmente
dela se faz.
Poderíamos pensar em leitura da Eneida que fizesse uso mínimo
de intertexto. No livro VI, por exemplo, a menção a uma nova guerra

6
Aqui, o autor parece confundir alusão intertextual com alusão a fatos históricos do
passado e da atualidade do poeta; concordaríamos neste ponto, se, ao invés de “cir-
cunstâncias históricas”, lêssemos “literatura anterior ao poeta e a ele contemporânea”,
isto é, a tradição literária em que se insere Virgílio.
7
Idem, p. 25-26.

– 83 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

de Tróia no Lácio, só compreendida por quem de algum modo está


informado da tradição mítico-lendária cujo cume é Homero, pode ser
superficialmente esclarecida com uma consulta a dicionários de mito-
logia e obras congêneres; quanto maior a informação, porém, maior o
enriquecimento da leitura pela possibilidade de entender os sentidos
gerados pela alusão; no limite, a perda da leitura intertextual levará
ao comprometimento da inteligibilidade da narrativa e ao falseamen-
to de sua concepção.
Uma pergunta inicial assombra quem se preocupa com o resga-
te dos sentidos criados pela alusão: como identificar a referência ao
hipotexto? Veremos que na prática a questão é complexa, pois os
modos de citação transcendem a mera reprodução de versos ou tre-
chos de versos, traduzidos de originais gregos ou transcritos de auto-
res latinos, técnica mais facilmente detectável e muito freqüente.
Quando intervém a contaminatio, sutis se mostram as possibilidades
de entrecruzamento de vários hipotextos e infindas as variedades de
alusão; mas o processo pode ter contornos ainda mais tênues.
Apresentaremos, nas páginas deste capítulo, uma amostra, que
não se pode pretender exaustiva, dos processos alusivos na Eneida;
salientaremos os efeitos de sentido e elegeremos casos que sabemos
aparentemente discutíveis, mas a nosso ver certos, de jogo intertex-
tual, muitas vezes tramado com recursos tão delicados que parecem
incitar o leitor a uma constante jornada de desvendamento. Reitera-
mos que esquema algum poderia dar conta da riqueza inesgotável das
variedades de operações alusivas; apresentaremos, portanto, aspectos
relevantes da ars imitandi 8 virgiliana, acompanhados de considera-
ções quanto ao significado criado pela polifonia. O centro de nossas
páginas passará a ser a análise e interpretação de efeitos de leitura
provocados pela arte intertextual da Eneida. Algumas das análises
seguintes se complementarão nos dois capítulos posteriores, em que

8
Será preciso dizer que atribuímos outro valor à noção de imitatio tal como desde a
Antigüidade se vem conceituando o termo?

– 84 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

focalizaremos nossa atenção sobre o conjunto da primeira e da segun-


da parte da epopéia.
Antes de prosseguir, porém, é necessária uma advertência. Em
um capítulo de seu Further Voices in Vergil’s Aeneid, intitulado
“Allusion”, R.O.A.M. Lyne defende tese semelhante à nossa; para
ele, os textos evocados por Virgílio, “são parte do novo texto, cons-
tantemente e em detalhe, continuamente convidando ao processo de
comparar e contratar... Ler a Eneida é estar consciente de outros tex-
tos por detrás da nova criação”.9
Mas esse livro, de 1992 e obtido por nós em 1994, no final de
nossa estada como bolsista em Roma, quando toda a nossa pesquisa já
se encaminhara na direção de uma análise intertextual radicalmente
assumida como parte integrante da composição virgiliana (um princí-
pio, de resto, prenunciado pelos estudos de Pasquali, Knight, Otis e
outros), ressente-se de certos excessos, sobretudo pela insistência do
autor em identificar a todo custo further voices na Eneida – vozes in-
quietantes e perturbadoras sob a superfície heróica e patriótica da epo-
péia. Além do mais, não trata particularmente da intra-, para- e
autotextualidade, esses aspectos da intertextualidade que distinguire-
mos a seguir, nem apresenta os mesmos resultados que reportaremos.10

9
LYNE, R. O. A. M. Further Voices in Vergil’s Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1992,
p. 103.
10
Divergimos em parte desse estudioso ao questionar sua afirmação de que o leitor tem
de estar conciente de textos e contextos evocados (“To read the Aeneid is to be
constantly aware of other texts in and behind the new creation”, p. 103). Para ajudar o
leitor, o poeta lhe lançaria “sinais” que apontam para o confronto intertextual; de fato,
tais “sinais” existem, e nós mesmos apontaremos alguns, dirigidos ao leitor atento,
capaz de compreender a alusão e extrair dela sentidos, mas, para nós, esse é o grau
“ideal” de leitura intertextual, não necessariamente inscrito na estrutura da obra como
indispensável à significação; ou seja, com suas constantes alusões, cuja teia sutilíssima
perpassa todo o poema, várias camadas de sentido se somam ao sentido linear, possibi-
litando graus de aproximação intertextual. O próprio Lyne, de resto, mitigará a afirma-
ção acima transcrita dizendo, mais de uma vez, que se pode ler a epopéia sem prestar
ouvidos a essas vozes sub-reptícias sob o tecido narrativo de superfície, mensagens que,
por vezes, estariam em conflito com sua ideologia explícita.

– 85 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na verdade, em toda a parte do mundo que cultiva os clássicos,


tal é a massa ingente de estudos sobre a epopéia que toda pretensão
de originalidade absoluta fica relativizada pela impossibilidade, reco-
nhecida pelos maiores especialistas,11 de estar a par de tudo o que se
publica sobre a obra e o poeta. Nem sejamos, por isso, pessimistas:
seja como for, cada análise individual, se conseguir ler profundamen-
te o texto, trará sempre novas descobertas, pois, apesar de tudo, há
muito a desvendar nessa que talvez seja a obra mais estudada em toda
a tradição ocidental, à exceção da Bíblia, da Antiqüidade aos nossos
tempos.

1. CITAÇÃO E CONDENSAÇÃO

Entre as formas de alusão na Eneida, o processo mais simples,


por se tratar de verdadeira citação, é o da reprodução de verso latino,
com pequenas modificações, em novo contexto. Um exemplo muito
discutido é o que segue; integra a justificativa de Enéias diante da
sombra de Dido, no último encontro nos Infernos:

inuitus, regina, tuo de litore cessi. (VI, v. 460)

“Foi contra a vontade, rainha, que saí de teu litoral”.

O leitor de Catulo lembrará este verso:

Inuita, o regina, tuo de uertice cessi. (LXVI, v. 39)

“Foi contra a vontade, ó rainha, que saí de tua cabeça”.

11
“A bibliografia virgiliana é tão vasta que, se é muito difícil, para não dizer impossível,
poder-se vangloriar de ter dela conhecimento exaustivo, não é também fácil dela co-
nhecer completamente setores específicos...”, declara Giancotti (In: GIANCOTTI,
Francesco. Victor Tristis. Lettura dell’Ultimo Libro dell’ “Eneide”. Bologna, Pàtron,
1993, p. 2, nota 2).

– 86 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Aqui, a mecha da cabeleira de Berenice, transfigurada em cons-


telação, dirige-se a sua dona, em poema traduzido de Calímaco, e re-
corda o momento em que a rainha a cortara e a consagrara aos deuses
como voto pelo retorno do marido.
A semelhança quase total (as modificações feitas consistem tão
somente no acréscimo de interjeição e na substituição de uertice por
litore, além da flexão de gênero do adjetivo inuitus, de acordo com o
novo contexto) induz ao confronto; trata-se, porém, de exemplo de
alusão difícil de interpretar, caso não a tomemos como mero “ador-
no”, explicação demasiado fácil para um poeta como Virgílio. Norden
observa o tom helenístico do episódio das vítimas do amor, em que se
insere o do encontro de Dido com Enéias, e admira a arte com que
Virgílio reproduz quase literalmente um verso em contexto comple-
tamente diferente;12 Jean Granarolo sugere duas interpretações dife-
rentes:

“De um lado, pode querer dizer que Enéias, exatamente como a mecha
de cabelos, é obrigado a obedecer à vontade do destino; por outro /.../
pode-se pensar que Virgílio queira deixar entender que, como a mecha,
Enéias se encaminha para a deificação...”13

Para Cartault, os versos se adaptam ao novo contexto, perden-


do a cor especial que tinham no texto de origem;14 o crítico francês,
portanto, simplesmente julga que não há nada a interpretar em ter-
mos de intertextualidade, nenhum sentido surgiria da alusão. Barchiesi
e Conte repelem algumas interpretações e preferem, mais prudente-
mente, louvar o modo como Virgílio “apropriou-se de Catulo, produ-
zindo um verso de belíssima fatura e...adequado ao patético do con-

12
NORDEN, Eduard. Op. cit., p.154.
13
Enciclopedia Virgiliana, verbete Catullo. Granarolo não diz que a segunda hipótese
fora já proposta por Thorton em 1962 (cf. HIGHET, Gilbert. The Speeches in Vergil’s
Aeneid. Princeton, Princeton University Press, 1972, p. 202, nota 18).
14
CARTAULT, A. L’Art de Virgile dans l’Énéide. Paris, Bibliothèque de la Faculté de
Lettres de l’Université de Paris, 1926, v. I, p. 510.

– 87 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

texto”.15 Por outro lado, Nicholas Horsfall julga que há, nessa trans-
posição virgiliana, “intenção literária pelo menos em parte humorísti-
ca”.16 A diversidade de interpretações revela quanto de enigmático e
desafiador pode haver na trama intertextual da Eneida.
Nossa interpretação só pode ser anunciada aqui; compreender-
se-á melhor nossa leitura quando analisarmos o conteúdo elegíaco do
livro IV da Eneida, cujos ecos ressoam no encontro do livro VI. Em
resumo, tudo o que diz respeito à história de amor entre Dido e Enéias
é filtrado pelo código elegíaco (e trágico), desse modo incorporado ao
épico; a reminiscência catuliana, em passagem que encerrará o episó-
dio das relações entre os dois amantes, selando o fim definitivo de uma
paixão que obstaculizava o cumprimento dos destinos, faz comparecer,
num vislumbre, a atmosfera elegíaca que tinha dominado o livro IV,
repleto de expressões do código da poesia elegíaca. Sua inserção num
contexto diverso, em que adquire novo sentido, é belo índice da mu-
dança de estatuto do herói Enéias: Dido permanece sempre a “ferida”
por amor, um ponto a que voltaremos com mais detalhes, mas Enéias
superou-se, e, ao invés de sucumbir ao mero papel de amante elegíaco,
ameaça que parece pairar sobre ele no livro IV e que o impediria de
alçar-se ao nível do herói épico, transcendeu sua subjetividade, assu-
mindo objetivamente a tarefa de tornar-se veículo do divino, executor
piedoso, ainda que sofrido, dos destinos. O código elegíaco é integrado
na estrutura da epopéia e ultrapassado pelo código épico; está presente
com toda a força poética que lhe conferiu Virgílio, mas submetido à
visão de mundo da ação heróica, unificadora ideológica da obra.17
Por vezes, Virgílio traduz verso grego da forma mais fiel; um
exemplo extremo é esta espécie de transcrição de nomes próprios gre-
gos em latim:

15
Op. cit., p. 107.
16
HORSFALL, N. Virgilio: L’Epopea in Alambico. Napoli, Liguori, 1991, p. 63.
17
Sem fácil monologismo, porém: vozes dissonantes ganham seu espaço na estrutura da
epopéia. Sobre este último ponto, vejam-se as análises, muitas vezes brilhantes, em que
pese aos ocasionais exageros, de LYNE, R. O. A. M. Op. cit. (a ler de forma crítica).

– 88 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Alcandrumque Haliumque Noemonaque Prytanimque (IX, v. 767)

“Alcandro, e Hálio, e Noémon, e Prítane...”18

Trata-se de guerreiros troianos que são mortos por Turno, quan-


do, aproveitando-se da imprudência de Pândaro e Bícias e da ausên-
cia de Enéias, o chefe rútulo se introduz no acampamento inimigo e
promove ali verdadeira carnificina.
Desde Sérvio, os grandes comentadores da Eneida não deixam
de lembrar que o verso virgiliano é tradução literal de um verso da
Ilíada:

Alkandro/
)/ n te Noh/mona/ te Pru/tani/n te. (V, v. 678)
n q ) Alio/
/(

No contexto homérico, Palas Atena incita Ulisses a abater os


lícios, que combatem ao lado dos troianos contra os gregos; dentre os
que tombam são citados vários guerreiros, como os que preenchem
com seus nomes sonoros o verso citado.
Sérvio, espantado com a menção desses guerreiros na Eneida,
pois que tais homens tinham sucumbido no poema homérico e reapa-
recem em Virgílio para serem abatidos mais uma vez...dá sua explica-
ção:

unde apparet non ad historiam, sed ad ornatum poematis haec nomina


pertinere19

“A partir disso, evidencia-se que tais nomes interessam não à história,


mas à estética do poema”.

Para o comentador, portanto, a alusão tem propósito meramente


exterior – é ornamento, provavelmente pela musicalidade o verso e
do tom épico conferido à narrativa com a incorporação da passagem
18
Para a transposição dos nomes latinos para o português, guiamo-nos pelos dicionários
de Saraiva e Torrinha.
19
Edição THILO, vol. II, p. 378.

– 89 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

da Ilíada. Um crítico sutil e sempre válido, ainda digno de ser lido


apesar do tempo, Cartault, aprova tal explicação.20
Ora, parece-nos que o desvendamento das razões dessa citação
deve percorrer mais um passo; primeiramente, evoca a passagem nar-
rada em Homero; ali, Atena, como aqui Juno, insufla o herói que
protagoniza o episódio:

tw= r (a kata\ plhqu\n Luki/wn tra/pe qumo\n A)qh/nh (Il. V, v. 676)

“Contra a multidão de lícios fez voltar seu coração Atena”.

Iuno uiris animumque ministrat. (En. IX, v. 764)

“Juno lhe ministra forças e ânimo”.

A citação, pois, tem função estrutural: evoca a situação “imita-


da” (Ulisses massacrando os inimigos) nesse ponto preciso da narrati-
va. Confrontam-se, assim, duas unidades narrativas semelhantes.
Outra leitura, porém, vem-se acrescentar a essa: o poeta suge-
re, com a alusão, o repetir-se aparente, no Lácio, de um episódio da
guerra de Tróia; assim, Turno parece se apresentar como o equiva-
lente do guerreiro grego; a expectativa de que a história de fato se
repita integralmente mutatis mutandis deixa aberta ao leitor a possi-
bilidade de uma vitória de Turno, sua transformação real no “novo
Aquiles” misteriosamente anunciado pela Sibila.
Virgílio estava por certo ciente de que seu leitor imbuído de
Homero poderia tomar por deslize a incorporação de tal verso do po-
eta grego,21 mas correu o risco de ser tachado de incoerente pelos que
velam por uma ingênua verossimilhança: fatos narrados antes da in-

20
Op. cit., p. 710.
21
Como era de se esperar, houve mesmo quem o considerasse espúrio (ver FORBIGER,
Albertus. Vergili Maronis Opera. Editio quarta, Lipsiae, I. C. Hinrichs, MDCCCLXXV,
pars III, p.311).

– 90 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

triga da Eneida, que de certa forma os retoma, não poderiam estar em


contradição com ela, sobretudo em detalhes tão concretos; em suma,
desafiou provocativamente a capacidade de decifração intertextual
do leitor... Por outro lado, para quem faz leitura “linear”, nenhum
estranhamento; é ao leitor atento às alusões que o texto virgiliano
apresenta algo engimático, que clama por explicação.
Propomos, pois, a hipótese: o poeta reproduz o verso grego não
apenas pela beleza evocativa dos sons dos nomes nem só para aludir
ao modelo imitado – além desses fatores, o efeito pretendido é de que
Turno apareça, em ironia trágica que se patenteará com o desenrolar
da trama, nesse momento de sua breve e sangrenta aristeia, como o
suposto vencedor dos já antes vencidos troianos: por um momento,
Turno parece emergir como guerreiro grego vitorioso nessa suposta
repetição da história. Como se sabe, Turno fracassará; a alusão, tra-
zendo à tona o contraste entre os dois contextos, salienta o caráter
ilusório da ação épica do rútulo.
No campo da citação, que reproduz material alheio com pouca
ou nenhuma uariatio,22 uma forma de intertextualidade sobre a qual
não nos deteremos aqui é a retomada de fórmulas épicas, que, além
de obviamente realçar o tom épico do discurso, situam a obra numa
tradição literária, a da epopéia homérica. Eis seu sentido fundamen-
tal: funcionar como marca de gênero, um dado dessa “arquitextuali-
dade” que não é nosso objetivo analisar mais detalhadamente, segun-
do advertimos no capítulo precedente. Um exemplo claro:

Aeole, namque tibi diuom pater atque hominum rex (I, v. 65)

“Éolo, pois que a ti o pai dos deuses e rei dos homens...”

Talvez o leitor recorde logo de início o estilo de Homero, que


cunha fórmulas como:
22
Forma alusiva freqüente na Eneida, já o notaram Sérvio (Ad Aen. III, 10) e Macróbio
(Sat. VI, 2, 30); neste último, lê-se: Sunt alii loci plurimorum uersuum quos Maro in
opus suum cum paucorum immutatione uerborum a ueteribus transtulit (“Há outras

– 91 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

path\r a)ndrw=n te qew=n te (Il., I, v. 544)

“O pai dos homens e dos deuses...”

Em Virgílio, há o acréscimo de rex, além da modificação na


ordem das palavras; entretanto, Macróbio nos informa que o poeta
retoma expressão de Ênio:

tum cum corde suo diuum pater atque hominum rex23

“Então, em seu coração, o pai dos deuses e rei dos homens...”

Tais alusões devem, a nosso ver, ser classificadas como “neu-


tras” quanto à criação de sentido, isto é, de efeito intertextual que
modifique nossa leitura criando subtexto a ser decifrado; sua função,
como dissemos, é filiar a epopéia a toda uma tradição literária, um
conjunto de textos que definem o gênero ao qual se filia a Eneida.
Assim, não daremos maior importância a fórmulas desse tipo, repeti-
da em II, 648 e X, 2 e 743: trata-se de “etiquetas” de um estilo que se
pretende homérico. Contudo, cautela se faz necessária por estarmos
lidando com fragmento de Ênio; não seria impróprio da arte virgiliana
se uma dessas alusões, “neutras” em princípio, se empregasse em de-
terminada passagem com intenção a mais de criar sentido a partir do
confronto com o contexto de que foi extraída; desse modo, a alusão
se poderia denominar “marcada”, semantizando um traço estrutural
– e algo semelhante ocorre com o emprego dos epítetos à Homero na
Eneida, segundo os estudiosos vêm observando.24 O estado atual da

passagens de muitos versos mais que Marão transpôs dos Antigos para sua obra com
mudança de poucas palavras”).
23
Nossa edição, da UTET, traz diuum; parece-nos evidente, porém, que a melhor lição é
mesmo diuom.
24
Em Virgílio, os recursos épicos da tradição (epíteto, fórmula, etc.) tendem a se motivar:
uma repetição, por exemplo, mais que marca de estilo formular, pode gerar sentido; um
epíteto, ao invés de ser empregado mecanicamente, chama a atenção, pelo contexto
em que aparece, para um aspecto do personagem, etc. Há algum tempo, costumava-se

– 92 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

obra de Ênio, porém, faz que não possamos afirmar com certeza o
caráter “neutro” de tal alusão; pelo que nos é dado julgar, parece ser
simples marca genérica.
Uma das formas de citação em Virgílio é a “condensação”, es-
pécie de contaminatio em miniatura; o primeiro nome é sugerido por
Farrell, que exemplifica com dois versos homéricos reduzidos a um
por Virgílio:

enq’
/) ar
/) ehn
)/ Glau/kh te Qa/leia/ te Kumodo/kh te,
( h te bow=pij(Il. XVIII, v. 39-40)
Nhsai/h Speiw/ te Qo/h q )Ali/

“Ali estavam Glauce e Tália e Cimódoce,


Neséia e Espio, Toe e Alia de olhos bovinos”.

Em Virgílio, fundem-se os dois em um:

Nisaee Spioque Thaliaque Cymodoceque (V, v. 826)

“Niséia e Espio, Tália e Cimódoce”.

Para Farrell, “é difícil evitar a conclusão de que ele (scilicet


Virgílio) considerava a condensação alusiva um fim em si mesmo”.25
De fato, o exemplo acima é revelador: o poeta funde duas metades de
dois versos homéricos, reproduzidas literalmente, com a primeira par-
te do segundo verso ocupando a primeira posição, e a segunda parte
do primeiro verso original preenchendo a segunda posição, o que po-
demos esquematizar, à maneira de Knauer: 40a + 39b= verso
virgiliano. Em suma, contaminatio em pequena escala, sem modifica-
ção outra do material de origem.
Que Virgílio, porém, quer evocar o contexto homérico, demons-
tram-no outros detalhes alusivos, não aduzidos por Farrell; veja-se:

opor Virgílio a Homero sob tal aspecto de suas respectivas obras, mas recentemente os
estudiosos têm mostrado algo semelhante em passagens do poeta grego.
25
Op. cit., p. 94.

– 93 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

laeua tenet Thetis et Melite Panopeaque uirgo (V, v. 825)

“À esquerda se posiciona Tétis, Mélita e a virgem Panopéia”.

Retoma Virgílio dois outros versos do mesmo passo homérico:


kai\\ Meli/th (v. 42) e kai\ Pano/ph (v. 45) – nova fusão, portanto,
de dois versos em um só (et Melite Panopeaque), desta vez com acrés-
cimos virgilianos (Laeua tenet Thetis e uirgo).
Pode-se insistir, então, na idéia de “condensação”, de fato mui-
to presente aqui: o cortejo que acompanha o carro de Netuno ocupa
cinco versos em Virgílio (v. 822-826); em Homero, no episódio visa-
do por Virgílio, só o catálogo das Nereidas preenche onze (v. 39-49).
Se examinarmos, porém, os diferentes contextos num poeta e outro,
aproximados pela alusão, notaremos algo mais curioso; na Eneida,
Vênus suplica a Netuno que as naus de Enéias possam chegar a salvo
à Itália, e sua prece é atendida; o poeta expressa o efeito que as pala-
vras tranqüilizadoras do deus nela provocam – alegria:

His ubi laeta deae permulsit pectora dictis (V, v. 816)

“Depois de afagar com tais palavras o coração alegre da deusa...”

Enéias, por sua vez, em face da serenidade das águas, é invadido


pelo mesmo sentimento (e se note o paralelismo realçado pelo de-
monstrativo em posição inicial nos dois passos):26

Hic patris Aeneae suspensam blanda uicissim


gaudia pertemptant mentem (V, v. 827-828)

“Neste momento alegrias acariciantes penetram, por sua vez,


na mente ansiosa do pai Enéias...”

26
No primeiro caso, pronome; no segundo, advérbio com valor temporal: mas se trata da
mesma raiz demonstrativa.

– 94 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Mãe e filho se igualam na alegria e desse quadro evola sensação


de placidez e serenidade, em contraste com a atmosfera carregada
que predominara no livro anterior; também o mar, pacificado pelo
deslizar do carro de Netuno sobre as ondas, participa da atmosfera de
paz:

subsidunt undae tumidumque sub axe tonanti


sternitur aequor aquis, fugiunt uasto aethere nimbi. (v. 820-821)

Na tradução bastante livre – e belíssima – de Odorico Men-


des:

“Cahe sob o eixo tonante o inchado argento,


Amansa a vaga, espalham-se os negrumes.”27

Ora, no contexto do original imitado, Aquiles, após receber a


notícia, por ele pressentida, da morte de Pátroclo, chora e é acompa-
nhado em seu lamento por todos, sua mãe inclusive:

a)/ kouse de\ po/tnia mh/thr


h(me/nh en) be/nqessin a(lo\ j para\ patri\ ge/ronti
kw/ kuse/n t a ) /) r e /) eita(XVIII, v. 35-37)28
) p

“Ouviu então a mãe soberana,


sentada nos abismos do mar, ao lado do velho pai,
e de imediato também lançou um gemido”.29

27
Literalmente: “Abrandam-se as ondas e, sob o eixo toante,/ aplaina-se a túmida super-
fície das águas, fogem do vasto éter os nimbos”.
28
Os dois primeiros versos retomam I, v. 357-358, em que também se mostra a dor de
Aquiles, mas aqui ressentido pela atitude de Agamenão, que lhe tomara Briseida. O
contexto e as outras alusões, porém, revelam que é a outra passagem da Ilíada que
Virgílio tem em mente.
29
“(O urrar medonho) ouviu-lhe a augusta madre/ Com seu pae no aqueo pego, e ulula
e geme” (Odorico Mendes).

– 95 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

É notável o efeito de contraste, um dos princípios da arte


virgiliana em geral, como se sabe; aqui, vemos que também está pre-
sente em sua arte alusiva. Assim, em Homero, filho e mãe divina se
desfazem em dolorosos lamentos e tudo a sua volta parece comparti-
lhar dessa dor; em Virgílio, são tomados de alegria, em meio à placi-
dez geral. Num, a mais intensa desolação, noutro a mais profunda
alegria; em ambos, a solidariedade da natureza que parece compactuar
desses afetos.
A leitura intertextual, incitada pelas alusões textuais, leva-nos
a concluir: o texto sugere e provoca o paralelo contrastante. Virgílio
se apropria de versos homéricos reproduzidos literalmente, ainda que
de forma parcial, extraindo-os de um contexto determinado e inse-
rindo em outro, de atmosfera oposta; sem dúvida, o efeito sobre o
leitor “atento” é notável. Vê-se que a leitura linear, não intertextual,
priva o leitor de uma parcela de significado que pode parecer peque-
na, mas cuja eficácia se deve recuperar, pois a tal nos incita a singular
imitatio virgiliana.
É freqüente em Virgílio um curioso processo de contaminatio
que aqui ilustraremos: o poeta imita passos de Apolônio de Rodes,
mas integra em sua criação elementos que encontra no original ho-
mérico; em outras palavras, transforma Apolônio através da fonte
primeira desse poeta helenístico, Homero, bem como, por outro lado,
retoma este último através das mudanças operadas pelo primeiro.
Analisaremos um exemplo que mostrará tal processo em ação e possi-
bilitará um comentário sobre observações da crítica mais recente a
respeito dessa passagem famosa, discutida já desde a Antigüidade.
Trata-se do símile de Apolo, a quem Enéias é comparado, no livro IV:

Qualis ubi hibernam Lyciam Xanthique fluenta


deserit ac Delum maternam inuisit Apollo
instauratque choros, mixtique altaria circum
Cretesque Dryopesque fremunt pictique Agathyrsi,
ipse iugis Cynthi graditur mollique fluentem
fronde premit crinem fingens atque implicat auro,

– 96 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

tela sonant umeris: haud illo segnior ibat


Aeneas, tantum egregio decus enitet ore. (IV, v. 143-150)

Eis como Odorico reproduz a refinada construção desses ver-


sos:

“Quando abandona Phebo a Lycia hiberna


E o caudal Xantho, e ao visitar a Delos
Materna, instaura os coros, pelas aras
Mistos Cressos e Dryopes fremindo
E Agathyrsos pintados; por cabeços
Do Cyntho airoso pisa, e o crino undante
Atilando, enredado em molle folha,
De ouro ennastra; o carcaz aos hombros tinne:
Não menos senhoril Enéias ia;
Tanto garbo transluz no egregio rosto!”30

Notemos de início o refinamento da expressão, digno de um


poeta helenístico; há, por exemplo, o alongamento do -e de -que, no
verso 146, antes do grupo muda com líquida (Cretesque, na cesura
após o terceiro tempo forte, triemímera, que secunda a cesura no sé-
timo, heftemímera – esquema métrico não incomum). Diante de ex-
pressões como essa, Nougaret fala em “caráter artificial”;31 diríamos,
com maior precisão, caráter refinado, que é a marca de todo esse ver-
so singular. Apontaremos, sobretudo, a ordem das palavras na seqüên-
cia abaixo (grafam-se com letras minúsculas os adjetivos e com mai-
úsculas os substantivos):

30
Literal e prosaicamente: “Qual Apolo, quando a Lícia hibernal e a corrente do Xanto/
abandona e visita a materna Delos/ e instaura coros; ao redor dos altares, mesclados,/
fremem os cretenses e os dríopes e os agatirsos pintados; / ele caminha pelos jugos do
Cinto e com tenra fronde/ os cabelos ondulantes ajeitando ata e os envolve em ouro,/
dardos ressoam-lhe nos ombros: não menos valoroso que ele ia/ Enéias, beleza tão
grande brilha em sua face egrégia!”
31
NOUGARET, L. Traité de Métrique Latine.Paris, Klincksieck, 1948, p. 50, § 125.
Sobre o tema, pode-se consultar este ensaio de Janssen, com as notas de Lunelli: “Le
Caratteristiche della Lingua Poetica Romana” In: LUNELLI, Aldo (Org.). Op. cit., p.
88 e ss.

– 97 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

mollique fluentem
a b
fronde premit crinem (v. 147-148)
A B

É esquema sintático elaborado e conhecido o que tentamos re-


presentar acima com a seqüência ab-AB: a dois adjetivos seguem dois
substantivos por eles modificados, na ordem respectiva; tal “figura”
simétrica, com a ressalva de que, no passo acima, não ocupa apenas
um verso, é a que caracteriza o verso chamado aureus (adjetivo1-
adjetivo2 VERBO substantivo 1-substantivo 2);32 dois versos desse
tipo aparecem no mesmo episódio da caça nesse livro IV, quando se
descreve a indumentária de Dido, que acompanha Enéias:

Sidoniam picto chlamydem circumdata limbo (v. 137)

“Envolta na clâmide sidônia de fímbria bordada...”

aurea purpuream subnectit fibula uestem (v. 139)

“Fíbula de ouro liga-lhe a veste purpúrea”.

Portanto, em passagem relativamente curta, por três vezes


Virgílio emprega essa ordem requintada; o terceiro verso é um autên-
tico aureus ou, como se diz em inglês, uma “Gold Line”. Pode-se pen-
sar que o poeta quer assim pôr em relevo a impressão de refinamento
e beleza que dão o tom de todo o trecho, de fatura vincadamente
helenística; a secundar essa interpretação, está a insistente repetição
do elemento “ouro”:

32
Nenhum dos fragmentos de Ênio trazem esse esquema; encontrá-lo-emos, antes de
Virgílio, em Catulo e em Lucrécio; certos fragmentos poéticos de Cícero trazem esque-
ma similar, mas não o autêntico verso aureus, segundo CONRAD, Carl. “Traditional
Patterns of Word-Order in Latin Epic from Ennius to Vergil” In: Harvard Studies in
Classical Philology, vol. 69, 1965, p.236. Sobre o tema, consulte-se NORDEN, E. Op.
cit., p. 392-398.

– 98 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ostroque insignis et auro (v. 134)

“...belo em sua púrpura e ouro”.

cui pharetra ex auro, crines nodantur in aurum,


aurea purpuream subnectit fibula uestem. (v. 138-139)

“Sua fáretra é de ouro, seus cabelos se atam em ouro,


fíbula de ouro liga-lhe a veste purpúrea”.

Que tal repetição vem reforçar o aspecto helenístico dos versos,


revela-o a alusão: é calcada nos hinos a Diana e Apolo, de Calímaco,
como Clausen apontou há algum tempo.33
Entretanto, o esquema sintático desses versos (observamos a tí-
tulo de curiosidade) é empregado aqui não apenas por seu valor estéti-
co,34 tão prezado pelos Antigos; a nosso ver, o uso da estrutura abAB
sugere e realça a idéia de entrelaçamento, contida nos três casos em
que esse esquema comparece: a veste que envolve Dido, a fivela que
prende a veste, a delicada folhagem que ata a cabeleira de Apolo...
No símile que estamos comentando, Virgílio retoma Apolônio
de Rodes; já adiantamos que não encontraremos neste tal ordenação
dos sintagmas adjetivo-substantivo que constitui a marca mais singular
da sintaxe dos versos da Eneida que estamos focalizando. No poeta
grego, temos:

oiÂoj d e) k
) nhoi=o quw/deoj eiåsin Apo/
) llwn
Dh=lon a) n h ) g
) aqe/hn h)e\ Kla/ron h)/ o(/ ge Puqw\
h)/ Luki/hn eu)rei=an e)pi\ Ca/nqoio r (ov=si!
toi=oj a) na\ plhqu\n dh/mou ki/en, wå rto d a ) ) uth\
keklome/nwn a)/ mudij. (Argonáuticas, I, v. 307-311)

33
CLAUSEN, Wendell. Virgil’s Aeneid and the Tradition of the Hellenistic Poetry.
Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1987, p. 22.
34
Um poeta como Virgílio reveste maximamente de sentido os recursos formais a sua
disposição, por isso devemos sempre estar atentos: etiquetar como mero “adorno” po-
ético certas construções refinadas pode ser enganoso. Carl Conrad, no artigo já citado,
analisa alguns efeitos de sentido que surgem do emprego da “Golden Line” ou de es-
quema semelhante (p. 235-241).

– 99 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Qual, do templo perfumado de incenso, caminha Apolo


para a sagrada Delos, ou Claro, ou Pito,
ou para a vasta Lícia, junto às águas do Xanto:
tal se movia, em meio à multidão; ergueu-se, então, o grito
dos que o exortavam em conjunto”.

Patenteia-se a imitatio: no andamento sintático (qualis/ oiâoj)


polissíndeto: em – que/ em h/)) ; na citação de lugares de culto do deus
(Delos e Lícia aparecem nos dois); numa expressão como Xanthique
fluenta, tradução fiel do original grego. Vê-se, porém, que o poeta
latino acrescentou vários elementos ao símile, em especial o fremir
dos adoradores do deus, vindos de várias partes do mundo, em torno
dos altares, elemento que ocupa o lugar da aclamação uníssona dos
gregos a Jasão. Virgílio integra o traço de Apolônio ao símile, moven-
do-o da esfera do comparado à do comparante, Apolo, num verso
cheio de musicalidade e força de sugestão (pois se trata de nomes
gregos que evocam povos da mais diversa procedência):

Cretesque Dryopesque fremunt pictique Agathyrsi

Além desse elemento novo, a já comentada descrição dos cabelos


do deus, tópica na poesia latina, e, sobretudo, um hemistíquio a que nada,
na fonte helenística, corresponde: tela sonant umeris, cuja singularidade
é realçada pela cesura que o destaca da seqüência do verso.
Comentadores (baste citar Conington e Forbiger, dois dos mai-
ores estudiosos de Virgílio, como é consenso hoje) observaram que se
trata de tradução de Homero, que, na Ilíada, diz, referindo-se a...Apolo:

eklagcan
/) d ) ar
)/ ) o)is / wn (I, v. 46)
+ toi\ e )p ) w)m

“Retiniram-lhe as flechas sobre os ombros”.

Num estudo já por nós mencionado,35 Lyne propõe ousada in-


terpretação do sentido a ser dado a essa alusão ao Apolo da Ilíada; se
35
LYNE. Further Voices, p. 123-125.

– 100 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

partirmos da idéia de que o jogo alusivo cria sentidos intertextuais,


qual o valor funcional dessa “citação” erudita?
Antes de enveredarmos por esse tema intrigante, cumpre real-
çar a importância deste exemplo para nossas considerações; ilustra-
mos, desse modo, como Virgílio, imitando Apolônio, acrescenta-lhe
elementos que estão na “fonte” dos dois, isto é, Homero; no exemplo
em foco, o fato de que se tem em mente sempre a mesma divindade
deve ter facilitado a integração dos dois precursores num só texto.
Ao remontarmos ao contexto do verso homérico reproduzido
por Virgílio, uma interpretação algo perturbadora pode ser aventada.
Na Ilíada, Apolo se prepara para golpear animais e homens com suas
flechas, infligindo-lhes a peste. O ruído das armas do deus é também
mencionado no verso 49 e se tornará um topos da poesia latina:36

deinh\ de\ klaggh\ ge/net ) a)rgure/oio bioi=o

“Terrível foi o ruído do arco argênteo”.

No episódio de Dido também se fala de peste: a doença de amor


que consome a rainha e a levará à perda; no livro I, é anunciada, em
antecipação trágica cara a Virgílio:

infelix, pesti deuota futurae (I, v. 712)

“Infeliz, votada a uma peste vindoura”.

O procedimento é homérico, mas com técnica e arte virgiliana:


a do contraste trágico. Dido fora apresentada ao leitor com majestáti-

36
Em Ovídio, por exemplo: Phoebus adest: sonuere lyrae, sonuere pharetrae / signa deum
nosco per sua (“Febo me assiste: ressoaram as liras, ressoaram as fáretras/ reconheço o
deus por seus sinais”, Remedia Amoris, v. 705); note-se o mesmo verbo empregado por
Virgílio – sonare. Na própria Eneida, a aljava de Apolo em fuga ressoa: Agnouere
deum.../pharetramque fuga sensere sonantem (“Reconheceram o deus.../ e sentiram o
ressoar da fáretra em sua fuga” IX, v. 659-660).

– 101 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

ca alegria e serenidade (talem se laeta ferebat, v. 503); agora, quando


está prestes a ser ferida pelas artes de Cupido, o poeta a denomina
“infeliz” e condenada a uma “peste futura”, um amor destrutivo e ne-
fasto.
No livro IV, Juno resolve unir Dido a Enéias, quando a sente
presa daquela “peste” (tali persensit peste teneri, v. 90), aquela doença
que a faz esquecer-se totalmente dos seus deveres de rainha (v. 86-89).
A teoria de Lyne:37 Enéias é comparado a Apolo portador-da-
peste (plague-bringer); portanto, de algum modo o herói troiano é
apresentado ao leitor como o portador da desgraça da rainha Dido,
em papel perturbador para o herói da epopéia. À voz épica de super-
fície se contrapõe uma outra “voz”, inquietante por lançar sobre a
personagem épica uma luz nada positiva, já que Dido, sua “vítima”,
concentra a simpatia do leitor. Lyne tenta provar, ao longo de sua
obra, que esse aflorar de “vozes” contrastantes com a “voz” épica é
recorrente na Eneida e muitas vezes, como aqui, dá-se sutilmente,
por alusão, em perspectiva intertextual.
Por discutíveis que sejam algumas análises do autor, deixamos
aqui registrada nossa concordância prudente: parece-nos provável a
interpretação de Lyne, em face da temática do livro IV, cuja coerên-
cia se revela na constância das imagens de caça e de ferida e fogo com
que se descreve o amor de Dido. Lembremos que a rainha se suicida
com a espada mesma de Enéias, gesto de cunho simbólico, sem dúvi-
da; Ovídio, fundado em sua leitura de Virgílio, realçará esse dado por
vezes subestimado pelos comentadores da epopéia:

Praebuit Aeneas et causam mortis et ensem (Heroides, VII, v. 195)

“Ofereceu Enéias, ao mesmo tempo, a causa do amor e a espada”.

37
Em grande parte precedido por Otis, que fala dos “omninous overtones of the Homeric
Apollo about to shoot his pestilential arrows”(p. 74); “Dido has indeed been ‘shot’ by a
cruel hunter but he is Aneas, not the light hearted Cupid”(p. 75). OTIS, Brooks.
Virgil. A Study in Civilized Poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963.

– 102 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Involuntariamente, Enéias tem culpa na morte de Dido: o poe-


ta ousadamente enfrenta o risco de traçar situações ambíguas, delica-
das, profundamente humanas, para o seu herói; seu epos, em suma,
não é maniqueísta nem sua ideologia compactamente objetiva; seu
herói não é protótipo de perfeição. Enéias é um homem que luta pela
superação de suas fraquezas e enfrenta não males absolutos e bem
definidos, mas o conjunto de forças antidestino que o põem em dile-
mas insolúveis: precisa abandonar Dido e não pode evitar-lhe a mor-
te; precisará matar Turno, embora quisesse, de início, perdoar-lhe.
Virgílio estava tão ciente da dificuldade em que se encontrava seu
herói da maneira como o apresentou no canto IV, que o faz sentir-se
culpado pela morte de Dido, apesar de ter apenas obedecido à ordem
divina e às injunções de sua missão providencial:

Funeris heu tibi causa fui? (VI, v. 458)

“De tua morte, ai!, fui a causa?”

A seqüência aponta os motivos que justificaram a partida de


Cartago; no entanto, apesar de suas “atenuantes”, Enéias sente dolo-
rosa culpa; chora (demisit lacrimas, v. 455) diante da agora insensível
rainha, num dos episódios magistrais da Eneida, pela gama de senti-
dos que evoca (a marcha impiedosa do fatum, que exige sacrifício e
semeia dores na terra; o sentimento de culpa e amor só tarde demais
manifestado – e quando a expressão dos afetos já nada mais pode
mudar, a incomunicabilidade, etc.), pelo pathos intenso, aliados à
costumeira habilidade da dicção virgiliana. Voltaremos a esse episó-
dio no próximo capítulo.
As considerações acima, que reúnem observações nossas às de
Lyne, parecem-nos confirmar a hipótese de que a alusão sutil de Virgílio
nesse passo do canto IV tencionaria mais do que comparar Enéias
caçador a Apolo armado de setas. No contexto do episódio dos amo-
res entre o troiano e a cartaginesa, a alusão provoca o leitor e o incita
a ver em Enéias o causador (ressalvadas as “atenuantes”) da desgraça

– 103 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

de Dido. Assim como esta fora apresentada, no primeiro livro, de forma


contrastante, feliz entre seus súditos mas na iminência da desgraça, no
símile do livro IV em que a beleza majestática de Enéias é comparada à
de Apolo, veicula-se uma nota dissonante, um prenúncio de infelicida-
de. E se recordarmos que Dido, no primeiro livro, fora comparada a
Diana, em expressões que retornarão no símile de Apolo, teremos em
mente que o poeta quis tornar explícita ao leitor essa relação entre os
dois momentos do episódio dessa paixão funesta – em contraste trági-
co, insinua-se, num caso e noutro, a futura desgraça.
Mas a trama intertextual de Virgílio reserva outras surpresas a
quem a observa mais de perto. No símile de Dido comparada a Diana,
a deusa aparece em seu aspecto de caçadora:

illa pharetram
fert umero (I, v. 500-501)

“ela a fáretra
leva nos ombros...”

Ironia trágica, por via intratextual: num símile do livro IV, que
haveremos de comentar mais detalhadamente, Dido será comparada a
uma corça caçada por um pastor, ferida de morte por uma seta, numa
inversão temática que salienta a queda sofrida pela personagem, sua de-
gradação de ser ativo a passivo, de caçadora a caça, exemplo da funcio-
nalidade semântica do símile nessa epopéia requintada, alexandrinizante.
Para o leitor de Apolônio, contudo, esse jogo intratextual reproduz, com
toques originais, um dado intertextual; de fato, nas Argonáuticas, Medéia,
um dos “modelos” da complexa Dido, é primeiramente comparada a
Ártemis caçadora, diante de cujo carro as feras tremem:

a)mfi\ de\ qh=rej


knuzhqm%= sainousin
/ u\potrome/ontej iou=) san (Arg. III, v. 884)

“Ao redor, as feras


com rugidos balançam a cauda tremendo à sua passagem”.

– 104 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

No livro IV,38 a mesma personagem, num breve símile, é com-


parada a uma cerva assustada pelo latir dos cães (v. 12-13); assim,
também Medéia, sugere-se, passa de caçadora a caça.
Virgílio, portanto, além de assimilar o par de amantes Dido e
Enéias a Diana e Apolo, como Apolônio associara Medéia e Jasão a
Ártemis e Apolo, reproduz em sua epopéia um magnífico e sutil efeito
de leitura intratextual das Argonáuticas, um contraste trágico veicu-
lado também no contraste de dois símiles semanticamente relaciona-
dos. É óbvio que na Eneida outras conotações próprias vêm-se somar
às da “fonte”grega, mas é interessante notar que Virgílio apresenta,
para o leitor intertextual, uma leitura profunda da epopéia de Apolônio
de Rodes.
Até aqui, partimos de citações – mais ou menos transformadas –
de um original; entretanto, a alusão pode assumir feição muito mais
complexa que a dos casos assinalados e comentados; veremos um exem-
plo dessa sutileza da referência intertextual que pode escapar ao leitor
desprevenido.
O início do livro IV da Eneida nos apresenta Dido fortemente
impressionada com as virtudes e vicissitudes do herói troiano, que
narrara suas penas e errores por terra e mar nos livros II e III; a um
dado momento, exclama a rainha:

quae bella exhausta canebat! (IV, v. 14)

“Que guerras, suportadas até o fim, ele cantava!”

38
É digno de nota que esses símiles aplicados a Medéia comparecem nos livros III e IV; na
Eneida, os “equivalentes” surgem nos livros I e IV; ora, se tivermos em mente que os
livros II e III trazem a narrativa de Enéias, quebrando a ordem cronológica dos aconte-
cimentos, poderemos dizer que, abstraindo-se desse “interlúdio”, o poeta segue o exemplo
de Apolônio: um símile em cada livro, em sucessão que vai dos aspectos positivos da
situação do personagem (Dido em seu papel de rainha e fundadora de uma comunida-
de) aos negativos (a mulher devastada por uma paixão que a arruína); a distância,
porém, desafia a atenção do leitor mais experimentado, que deve associar as duas ima-
gens separadas por centenas de versos para saborear-lhes o confronto.

– 105 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

O uso de canere causa espécie e leva a discussões entre filólogos


e comentadores da obra, afinal por que Dido se refere à narração feita
por Enéias com um verbo que significa, propriamente, “cantar”? A
resposta que em geral se dá é que o poeta alude ao caráter épico dos
fatos contados pelo troiano,39 mas há quem proponha outras explica-
ções: referência à “suavidade da voz do herói”, segundo Pascal,40 re-
jeitado por Buscaroli, 41 mas parcialmente aceito por Paratore;42 o verbo
teria o sentido de falar non simpliciter, non uulgaria, mas magna;43
etc. Nada se encontra no comentário de Sérvio a respeito do emprego
de canere nesse passo da epopéia. Para o Thesaurus Linguae Latinae,
apoiado em Quintiliano,44 tem-se exemplo do verbo com o sentido de
“dicere memorare narrare ferre”; 45 é óbvio, porém, que esse tipo de
descrição semântica, comum em dicionários, não leva em conta as
nuanças de que o termo se reveste e que o distinguem do prosaico e
banal dicere.
Como observa Conington, o verbo é também empregado com
freqüência quando se trata de “sacred utterance”46; de fato, com tal
conotação é muito empregado por Virgílio na Eneida. Por outro lado,
aparece em IX, 621 com o objeto direto dira, comentando discurso
direto que reporta a violenta e arrogante imprecação de Numano
Rêmulo contra os troianos – aqui, portanto, também se avista o sen-

39
É a leitura mais óbvia, aparentemente: Enéias celebra suas proezas bélicas como o
próprio poeta canta arma uirumque.
40
Citado por Paratore, em seu comentário ao livro IV, no volume II de sua edição da
Eneida, p. 185, e por BUSCAROLI, Corso. Il Libro di Didone. Milano, Dante Alighieri,
1932, p. 54.
41
Para quem o sentido é o de narrar com o tom da epopéia.
42
Paratore aventa a hipótese de que convirjam os dois sentidos: a feição épica dos fatos
narrados e a suavidade da voz: “Talvez seja exata uma interpretação que leve em conta
ambos os sentidos”, diz.
43
Forbiger (1873), tomo II, p. 427-428, retomando Wagner.
44
Inst. Or.VIII, 6, 38.
45
Thesaurus Linguae Latinae. Lipsiae, Teubner, MDCCCCVI-MDCCCCXII, v. III,
p. 267, B.
46
Op. cit., vol. II, p. 218, nota ao verso III, 438.

– 106 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

tido religioso: trata-se de maldição que se deseja agourenta para os


inimigos.47 Assim, além de empregar o verbo no sentido de “cantar”,
o poeta utiliza-o amiúde com seu matiz religioso, que poderíamos glo-
sar: “dizer em forma de oráculo, profecia ou invocação de mau agou-
ro; enunciar palavras sacras e expressas sob efeito da divindade”. Eis
os passos em que o verbo comparece com tal significado:

II, 124 (canebant), 176 (canit), 239 (canunt: canto religioso -sacra);
III, 155 (canit), 183 (canebat), 366 (canit), 373 (canit), 438 (cane),
444 (canit), 457 (canat), 559 (canebat); V, 524 (cecinerunt); VI, 76
(canas), 99 (canit), 345 (canebat); VII, 79 (canebant), 271 (canunt),
398 (canit: o sujeito é Amata, que simula estar possuída por Baco);
VIII, 49 (cano), 340 (cecinit), 499 (canens), 534 (cecinit), 656 (canebat
– no escudo de Enéias, representa-se o ganso que revelou aos Romanos
a chegada funesta dos gauleses)48; IX, 621 (canentem); XI, 399 (cane);
XII, 28 (canebant), 864 (canit: o canto funesto da Dira).49

Evidentemente, não é esse sentido religioso que transparece no


verbo canere no contexto do livro IV que estamos analisando. Tem-
se de buscar outra explicação, se não nos contentamos em ver nele
um sinônimo de dicere.
Nossa proposta é radicalmente diversa, fundada na sutileza da arte
virgiliana, que se compraz em disfarçar alusões intertextuais, explícitas
apenas ao leitor atento a essa característica de seu fazer poético. Sem
descartar a possibilidade de que o poeta tenha desejado, ambiguamente,
a interpretação de tal verbo, em leitura de superfície, no sentido de “cele-

47
Idem, ibidem, vol. III, p. 216, nota ao verso IX, 621.
48
Sérvio aponta a matiz do verbo no contexto: quasi praediuinabat: nam ‘canere’ et
dicere et diuinare significat (“como que pressagiava, pois canere significa tanto ‘dizer’
quanto ‘pressagiar’ ”, op. cit., vol. II, p. 295).
49
Notável a freqüência, como se vê: a Eneida é um poema religioso; quanto à presença
maior no canto III, basta lembrar a temática do livro para entender-lhe a motivação:
vagam por mares e terras os troianos, buscando em profecias e oráculos o esclarecimen-
to da vontade divina sobre o destino de sua peregrinação.

– 107 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

brava como numa epopéia”,50 trazemos à baila interpretação mais digna


do complexo jogo alusivo de Virgílio. Ao leitor “atento”, a alusão é clara:
a narrativa dos últimos dias de Tróia51, feita por Enéias no livro II, tem
por modelo estrutural o canto do aedo Demódoco sobre o episódio do
cavalo, na Odisséia,52 e o efeito de estranhamento certamente provocado
pelo verbo canere, de que são testemunho eloqüente as discussões dos
estudiosos..., funciona como advertência, um “sinal”, lançado a quem,
em leitura que vai além da superfície, participa ativamente do jogo inter-
textual da epopéia, um convite a remontar à “fonte”, a ir além da leitura
linear, enriquecendo o texto com as observações que cada leitor pode
extrair do confronto. Por exemplo: a diferença essencial entre modelo e
imitação, que está, a nosso ver, mais que na extensão e contexto, mais
que na “complementação” de Homero, no modo como se narra aquele
episódio da guerra de Tróia (em primeira pessoa, como depoimento pes-
soal cheio de emoção participante, não em terceira, como em Homero).
Curiosamente, elogiando o aedo, Odisseu lhe diz que ele canta como se
estivesse estado presente aos acontecimentos: o (Od.VIII, v. 491) ou se
tivesse ouvido a história de alguém. Enéias, por sua vez, grande novidade
na Iliupersis virgiliana, dará sua versão pessoal, com o ponto de vista dos
vencidos e o foco narrativo centrado em sua pessoa, pois, ao contrário de
Demódoco, o herói troiano estava presente... Antes da narração propria-
mente dita, o poeta salienta esse aspecto, colocando na boca de Enéias
estas palavras:

quaeque ipse miserrima uidi


et quorum pars magna fui. (II, v. 5-6)

50
Expressão de LEJAY-PLESSIS. Oeuvres de Virgile. Paris, Hachette, 1930, p. 393.
51
Pois Dido menciona guerras (bella); está em foco aqui a destruição de Tróia, que per-
mitiu a Enéias, em sua inútil resistência, alguns feitos bélicos, e não a narrativa subse-
qüente, no livro III, dos labores por terra e mar, em que não há propriamente guerras e
que tem outro ponto de partida: a narrativa de Odisseu aos feácios, esta, sim, em
primeira pessoa.
52
VIII, v. 499-520. Ver KNAUER, Georg. Die Aeneis und Homer. Göttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1964, p. 172.

– 108 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“Todos os acontecimentos tristíssimos a que assisti


e nos quais tomei parte ativa”.

Enéias, pois, canta suas façanhas e penas como um aedo, como


Demódoco, à maneira de Odisseu,53 a quem Alcínoo cumprimentará
desta forma:

mu= qon d )wj) o(/t )a)oido\j e)pistame/nwj kate/lecaj (Od. XI,


v. 368)

“Contaste tua história com arte, como um aedo”.

Ressaltemos a singularidade do uso de canere no contexto que


estamos discutindo, analisando todos os demais passos em que o ver-
bo aparece com outro matiz que não o religioso, já por nós pesquisado:

I, 742 (canit – trata-se da canção do aedo Iopas);


IV, 190 (canebat – a Fama reporta verdades e inverdades, facta atque
infecta);
V, 113 (canit – a respeito do som da tuba);
VI, 657 (canentis – os habitantes dos Campos Elísios entoam o peã);
VII, 513 (canit – Alecto dá o sinal para a guerra, tocando a tuba
recurva), 698 (canebant – os aliados de Messapo cantam me-
lodiosamente, como cisnes, a seu rei);
IX, 525 (canenti – na invocação do poeta à musa Calíope), 777
(canebat – o aedo Creteu, “amado das musas”, “sempre can-
53
Em Homero, encontramos outro paralelo na Ilíada; os integrantes da embaixada dos
aqueus enviada a Aquiles, encontram-no cantando as glórias dos heróis: a)/eide
d a)) / ra kle/a a)ndrw=n (Ilíada, IX, v. 189); o grego canta temas dos aedos, como os
aedos. Observemos que o verbo não só é o mesmo empregado na proposição homérica
para referir o canto que a Musa cantará por seu intermédio, mas, curiosamente, com-
parece com a mesma forma, apesar da diferença de sentido gramatical: imperfeito do
indicativo no passo em que é aplicado a Aquiles, imperativo presente na invocação.
Coincidência, apenas, ou intenção de aproximar protagonista e aedo? Seja como for,
semelhantemente, na Eneida o mesmo verbo é aplicado ao “cantar” de Virgílio (cano)
e ao “narrar” de seu protagonista (canebat).

– 109 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

tava os cavalos e as armas e as batalhas dos heróis”: semper


equos atque arma uirumque pugnasque canebat);
X, 191 e 192 (canit e canentem, respectivamente; em ambos os ca-
sos, trata-se do canto de Cycnus), 310 (canunt – do som
das tubas que dão o sinal para a luta).

Como se vê, com exceção da segunda recorrência (IV, v. 190),


imitada por Estácio,54 faz-se referência a canto real, acompanhado ou
não de instrumento, ao som da tuba ou ao canto particular do aedo:
usos comuns na literatura latina. Deixamos de lado, para o destacar, o
célebre arma uirumque cano, que abre o proêmio da epopéia; por outro
lado, o verso IX, 777, citado integralmente mais acima, também mere-
ce atenção – Creteu, como o próprio Virgílio, canta as façanhas bélicas
à maneira do aedo homérico.55 Acrescentemos: como Enéias, outro (se-
melhante e diverso) Demódoco. Aplicando ao protagonista o verbo
com sentido que pode parecer “destoante” se não associarmos Enéias a
um aedo, Virgílio nos transporta para sua fonte e convida ao confronto:
um aceno sutil, que é preciso compreender no conjunto de uma obra
constantemente alusiva, ao invés de tecer hipóteses sobre conotações
especiais do verbo nesse contexto específico.
Outro exemplo de citação sub-reptícia vem analisado a seguir.
Para cumprir o encargo que lhe dera Juno de semear a discórdia e
criar as condições para a guerra entre troianos e latinos, Alecto,
disfarçada em Cálibe, sacerdotisa do templo da deusa, aparece em
sonho a Turno, tentando incitá-lo a combater os recém-chegados ao
Lácio. Turno resistirá à aparição; segundo já notara Heinze, Virgílio
evoca, uma passagem homérica: o sonho de Penélope, que recebe da

54
Facta infecta loqui (Tebaida III, v. 430), apud CONINGTON. Op. cit., volume I,
p. 270. Parece-nos que, aplicado a esse ser monstruoso, o verbo expressa sua divindade
(de fato,Virgílio a representa como filha da Terra, IV, v. 178); nesse caso, de novo
“sacred utterance”.
55
Conington percebera a possibilidade dessa relação, num comentário demasiado breve,
que merecia desenvolvimento: “Virg. may have been identifying the narrative of Aeneas
with his own heroics” (Op. cit., volume II, p. 250, nota ao verso 14).

– 110 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

imagem de Iftima, sua irmã, palavras de consolação destinadas a


assegurá-la do bem-estar de Telêmaco.56 A aparição lhe fora manda-
da por Palas Atena:

du/natai ga\r,
Palla\j Aqhnai/
) h! se\ d )o)durome/nhn e)leai/rei!
h)/ nu=n me proe/hke tei\n ta/ de muqh/sasqai (Od. IV, v. 827-829)

“Pois tem poder


Palas Atena. Ela se compadece de ti, que te afliges;
foi ela quem agora me enviou a ti para dizer isto”.

Ora, tal revelação da divindade que enviou a aparição é imita-


da por Virgílio:

Haec adeo tibi me, placida cum nocte iaceres,


ipsa palam fari omnipotens Saturnia iussit. (VII, v. 427-428)

“Foi isto que a ti, quando estivesses deitado na plácida noite,


mandou-me dizer abertamente a própria Satúrnia onipotente em
pessoa”.

Não nos parece casual que, neste exato momento da narrativa,


compareça o advérbio palam, que, para quem tem em mente o origi-
nal sobre o qual se baseia Virgílio, evoca sonoramente o nome Pallas,
empregado por Homero no texto de partida! Como dissemos, trata-se
de mais um caso de alusão sutil, um piscar de olhos cúmplice ao leitor
ciente desse diálogo ininterrupto com o texto homérico e outros tex-
tos da literatura greco-latina.57

56
HEINZE, Richard. Virgils Epische Technik. Stuttgart, Teubner, 1957, p. 188. Como
se sabe, dentre os estudos de conjunto sobre a Eneida, este é um dos melhores, senão o
melhor, apesar de ultrapassado em alguns pontos – segue sendo modelar, malgrado o
passar do tempo. Sinal evidente de sua importância: recentemente, foi traduzido para
o inglês, demonstrando que suas análises continuam a despertar interesse.
57
Cumpre observar, sem nos determos na análise, que o episódio da aparição de Alecto a
Turno se apóia em outras retomadas de Homero, mais um exemplo da complexidade
da técnica alusiva virgiliana. Evoca o poeta, sobretudo, a cena iliádica do sonho envia-

– 111 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

2. UM CASO SINGULAR DE CONTAMINATIO: O PROÊMIO DA ENEIDA

Após o título – que, como veremos no item seguinte, inaugura


o jogo alusivo da Eneida, a proposição do poema prossegue e aprofunda
o pacto de intertextualidade com o leitor;58 convém examiná-la, por
apresentar sutil contaminatio, o que permitirá, de passagem, criticar
afirmações recentes sobre esses versos.
A proposição segue de perto a da Odisséia, como é amplamente
reconhecido; mas não esquece a evocação da Ilíada e incorpora um
traço do terceiro maior modelo da Eneida, as Argonáuticas. Em Virgílio:

arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris


Italiam fato profugus Lauiniaque uenit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram,
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos Latio, genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae. (I, v. 1-7)

do por Zeus a Agamenão (II, v. 16-34), incitando-o a armar o exército para combater
os troianos: era chegada a hora de tomar a cidadela de Príamo. Ora, Agamenão é
enganado por Zeus, que deseja trazer desgraça para os aqueus para honrar o ausente
Aquiles, e é chamado “tolo” (o, v. 38) pelo próprio narrador. A evocação sugere para-
lelos intertextuais: se Zeus faz Agamenão acreditar em uma falsidade – afinal Tróia não
cairia ainda – iludindo-o sobre os decretos divinos, Turno, sob a influência concreta de
Alecto – que lhe lança uma tocha sobre o peito – acreditará numa quimera ao pensar
que pode impedir a união de Enéias e Lavínia. Sobre esse confronto, veja-se KNAUER.
Die Aeneis und Homer, p. 236-237, a quem seguimos de perto nas observações desta
nota.
58
Damos por rejeitada em definitivo a hipótese de que as linhas (conservadas por Sérvio
e por uma das Vitae) que constituiriam inicialmente o incipit da epopéia, seriam, se
virgilianas de fato, mantidas pelo poeta em sua edição, caso tivesse ele vivido para
revisar e publicar o poema. De nossa parte, somos avessos até mesmo a admitir a auten-
ticidade desses versos, que, porém, Perret e Odorico Mendes incorporaram a suas edi-
ções da Eneida. Boa síntese das discussões travadas a respeito pode-se ler no comentá-
rio de Paratore, volume I, p. 123-125. Recentemente, Horsfall expressou a recusa taxativa
da autoria virgiliana desses versos: “Nunca foram escritos por Virgílio...” (HORSFALL,
Nicholas. A Companion to the Study of Virgil. Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 24).

– 112 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Vale a pena transcrever a tradução de Odorico Mendes:

“Armas canto e o varão que, exul de Troia,


Primeiro os fados profugo aportaram
Na Hesperica Lavino. Em mar e em terra
Muito o encontrou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras soffreu, na Ausonia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação Latina e Albanos padres
E os muros vem da sublimada Roma”.

A esses sete versos da proposição propriamente dita – a síntese


da intriga, o argumentum – sucede a invocação à Musa; poetas poste-
riores imitarão essa separação entre argumento e invocação, como o
nosso Camões. Transcrevamos o trecho, que também irá nos interes-
sar aqui:

Musa, mihi causas memora, quo numine laeso


quidue dolens regina deum tot uoluere casus
insignem pietate uirum, tot adire labores
impulerit. Tantaene animis caelestibus irae? (v. 8-11)

“Musa, lembra-me as causas: por que ofensa a sua vontade divina


ou com que se ressentindo, a rainha dos deuses, a passar por tantos
infortúnios,
a enfrentar tantas penas, obrigou um varão insigne por sua piedade:
Tamanhas iras nos espíritos celestes?”

O leitor de Virgílio imediatamente recordaria os versos famosos


que introduzem a Odisséia:

Andra
/) moi e)n/ nepe, Mou=sa, polu/tropon, o)j / ma/la polla\
pla/gxqh, epei\ ) Troi/hj iero\( n ptoli/eqron e)p / erse!
pollw=n d a ) )nqrw/pwn iden )/ a)/stea kai \ no/on e)/gnw,
polla\ d o ) /( g e
) n/) po/nt% pa/ qen a)l
/ gea o)n/ kata\ qumo/n,
a)rnu/menoj h)n/ te yuxh\n kai\ no/ston e (tai/rwn.
a)ll )ou d) w
) â j e (ta/ rouj e)rru/sato, i(e/meno/j per!

– 113 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

au )tw=n ga\r sfete/r$sin a)tasqali/$sin o)l / onto,


nh/pioi, oi(/ kata\ bou=j Uperi/
( onoj Heli/
) oio
h)s
/ qion!au )ta\r o( toi=sin a) fei/leto no/stimon håmar
tw=n a(mo/qen ge, qea/ , qu/gater Dio/j, eipe\) kai\ h(mi=n. (v. 1-10)

Na tradução de Odorico Mendes:

“Canta, ó Musa, o varão que astucioso,


Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,
Viu de muitas nações costumes vários.
Mil transes padeceu no equóreo ponto,
Por segurar a vida e aos seus a volta;
Baldo afã! Pereceram, tendo, insanos,
Ao claro Hiperiônio os bois comido,
Que não quis para a pátria alumiá-los.
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra”.

Observemos de passagem que a tradução, enxuta e elegante,


com a costumeira riqueza vocabular de Odorico, não mantém, contu-
do, a expressiva anáfora que Virgílio imitará.
São evidentes os pontos de contacto entre as duas proposições.
Por vezes, Virgílio parece traduzir o original ou, ao menos, criar um
análogo de seu andamento sintático:

andra)/ – uirum (no mesmo caso)


o)j / – qui (idem)
polla\
pollw= n – multum...multa (imitação do polissíndeto)
polla\
o)j / ma/la polla\ / pla/ gxqh – multum ille... iactatus
polla\ d o ) n/) po/nt% pa/qen a)/ lgea – multa quoque (et bello) passus
) /( g e
e)n/ po/nt% – alto
a) rnu/menoj – dum (mais subjuntivo, com idéia de finalidade)
d )... kai\ – quoque et
e)c ou – unde.

A semelhança de expressão nos leva a ressaltar diferenças de


sentido; por exemplo: Odisseu iniciou seus errores “depois de ter des-
truído a fortaleza sagrada de Tróia”; Enéias sai de Tróia para fundar

– 114 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

uma cidade. Virgílio, pois, utiliza-se do paralelismo para realçar a di-


ferença que separa seu herói do grego: Enéias é um fundador, não um
destruidor; sua viagem, comandada pelo destino, tem objetivo nobre
– mais que um simples retorno para casa (mas é preciso fazer uma
ressalva, como veremos posteriormente: os troianos, no fundo,
retornarão às suas origens), trata-se de, por ordem providencial (fato),
lançar as sementes da futura Roma. (Note-se a posição de relevo que
o nome da Vrbs ocupa, enfechando a proposição e apresentando-se
como fim último do vagar penoso e dos labores bélicos do protagonis-
ta.) Efeito de contraste provocado pela referência ao hipotexto: acos-
tumar-nos-emos a essa característica estrutural da Eneida.
Quanto à composição, é notável como Virgílio organiza mais
sistematicamente a sua síntese do argumento, provavelmente levan-
do em conta críticas que os Antigos já teciam a respeito do proêmio
de Homero. O poeta latino tem em vista as duas grandes partes de sua
epopéia, já desde as primeiras palavras:

arma uirumque cano

Aqui, é preciso abrir parênteses (voltaremos ao tema no primeiro


item do capítulo seguinte) para discutir a sugestão de Lausberg, endos-
sada por Cairns, de que, centrando-se na Odisséia como modelo privi-
legiado de toda a Eneida, Virgílio emprega arma em posição inicial para
evocar sonoramente o que introduz o poema grego.59A hipótese parece,
em princípio, sedutora, especialmente porque justificaria o emprego dessa
expressão singular, que tem dado azo a discussão desde Sérvio; este
explica arma como metonímia para “combates” e vê no substantivo
uma referência à parte iliádica da Eneida, no que é geralmente seguido
pelos estudiosos da epopéia. A divisão do assunto ficaria clara, pois,
desde o início; ter-se-ia, porém, uma figura, a inversão, pois:

59
CAIRNS, Francis. Virgil’s Augustan Epic. Cambridge, Cambridge University Press,
1990, p.191.

– 115 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

prius de erroribus Aeneae dicit, post de bello60

“Primeiro fala dos errores de Enéias; depois, da guerra”.

Não se pode esquecer que Virgílio por várias vezes aproxima do


substantivo arma o substantivo uir, este último em casos diversos; eis
as referências:

I, 119; II, 668; IV, 495; VI, 814; IX, 620, 777; XI, 124, 125 (armis),
696, 747.

O emprego da expressão em IX, 777, verso que já comentamos


brevemente, é revelador; fala-se de Creteu, que

semper equos atque arma uirum pugnasque canebat

Virum é, aqui, genitivo plural, o que faz pensar na possibilida-


de, por alguns aventada, como informa Sérvio, de que no arma
uirumque inicial se tenha hendíadis – “as armas do varão”: as consi-
derações sobre a estrutura da obra nos fazem rejeitar, porém, tal hi-
pótese;61 para nós, trata-se de expressão bimembre que sintetiza o ar-
gumento da epopéia. O contexto, que também traz o verbo canere,
revela que a expressão arma, seguida de uir, complemento do verbo, é
associada por Virgílio a um contexto guerreiro, iliádico.

60
Sérvio, edição THILO, volume I, p. 6. Esse “quiasmo” estrutural já se reflete na própria
proposição: arma contrapõe-se a multum ille et terris iactatus et alto (parte odissíaca),
seguido de multa quoque et bello passus (parte iliádica: arma). Ver TRAINA. “Tre
Versioni del Proemio dell’Eneide” In: Poeti Latini (e neolatini). Note e Saggi Filologici.
Bologna, Pàtron, 1989, III serie, p. 118.
61
Também o princípio de Os Lusíadas é com freqüência interpretado como hendíadis,
até mesmo por estudiosos do gabarito de José Maria Rodrigues (ver FRANCA, Rubem.
As Armas & Os Barões. Recife, Unicap, 1973, p. 12; o autor dedica seu ensaio a esse
tema, aventando, com notável cautela, a hipótese de que não haja tal figura nesse
célebre início da epopéia portuguesa).

– 116 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Arma, portanto, refere-se aos combates de Enéias, à parte guer-


reira de suas façanhas, contada nos livros VII-XII,62 e não pode servir
de argumento para referendar a hipótese de que a Eneida seria uma
Odisséia com momentos de Ilíada, o que desde o início se evidencia-
ria com a evocação dos sons de na abertura do poema latino – tal
interpretação recente tende a minimizar a clara natureza bipartida da
estrutura da Eneida, tema a que haveremos de voltar no próximo ca-
pítulo desta dissertação.
Virgílio organiza sua proposição tendo sempre em vista a divi-
são da epopéia em duas grandes partes:

arma (parte iliádica) uirumque (parte odissíaca: evocação, pelo


sentido e caso gramatical, da primeira palavra da Odisséia) cano

– introdução geral, que engloba todo o poema (note-se a relativa au-


tonomia rítmica e sintática da expressão, com pausa após o verbo –
não é sem motivo que tal seqüência, tão eficaz e memorável, tornou-
se identificadora da epopéia, tanto quanto o próprio título, nos escri-
tores antigos que a ela se referem);

Troiae qui primus ab oris


Italiam fato profugus Lauiniaque uenit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram

– síntese dos errores de Enéias: viagem de Tróia à Itália, deter-


minada pelo destino, enfrentando a ira de Juno;

multa quoque et bello passus, dum conderet urbem


inferretque deos Latio, genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae.

62
Veja-se o anúncio da Eneida em Propércio II, 34, especialmente o verso 63, em que
arma é a mesma metonímia que emprega Virgílio.

– 117 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

– síntese das batalhas de Enéias no Lácio, com a indicação de sua


finalidade (edificação de uma cidade e introdução dos deuses troianos)
e conseqüências (surgimento futuro de Roma, leitmotiv ecoado em
profecias e nas falas dos deuses).

Temos, pois, a separação nítida entre as duas partes: multum


ille...multa quoque.
Mas se a retomada do proêmio da Odisséia é patente em nível
formal, que temos da Ilíada, além da menção de guerras? Virgílio não
terá incorporado nenhum traço formal do poema bélico de Homero?
A resposta só pode ser: o poeta alude textualmente à Ilíada,
mas de forma mais sutil. Notemos, inicialmente, que a condensada
proposição da Eneida tem o mesmo número de versos, sete, do
proêmio da Ilíada,63 não do da Odisséia, que se estende de maneira
mais difusa; a ela se segue, como na Ilíada, a evocação do motivo: a
cólera de Juno, como, no poema grego, a rixa entre Agamenão e
Aquiles:

Musa, mihi causas memora, quo numine laeso (I, v. 8)

ti/j t )a)/r sfwe qew=n e)r/ idi cune/hke ma/xesqai; (I, v. 8)

“Que deus, posto entre ambos, provocou a rixa?”64

Por outro lado, não cremos ser inverossímil que o memorem


iram da proposição da Eneida esteja a evocar sonoramente a célebre
ira de Aquiles, sobretudo pelo som inicial do adjetivo aplicado a iram.65
Virgílio, pois, nos temas como na forma com que os enuncia,
recorda ao leitor as duas grandes obras que constituirão sua fonte

63
Dentre outros, observou-o QUINN, Kenneth. Virgil’s Aeneid. A Critical Description.
London and Henley, Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 41.
64
Na tradução enxuta de Haroldo de Campos: CAMPOS, Haroldo & VIEIRA, Trajano.
MHNIS. A Ira de Aquiles. São Paulo, Nova Alexandria, 1994, p. 31.

– 118 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

maior, incitando-o a participar da leitura intertextual que será cons-


tante ao longo da Eneida; sua epopéia conterá uma Odisséia e uma
Ilíada a confrontar com as originais e depreender do confronto vasta
gama de significações. Logo à frente, veremos um elemento rítmico
da Ilíada que o poeta latino reaproveita em seu proêmio, prova formal
suplementar do que vimos afirmando.
Observemos, contudo, que no poeta grego a invocação é fundi-
da à proposição (dirigida à Mou=sa, na Odisséia; à qea/, na Ilíada);
Homero solicita que a divindade cante através de sua poesia o canto
que será o poema; ora, Virgílio usa o verbo cano, assumindo-se como
fonte primeira de seus versos – invocará a Musa apenas para que ele lhe
recorde, filha da Memória que é...,66 as causas da hostilidade de Juno.
Nesse ponto, Virgílio se aproxima de Apolônio de Rodes, que,
porém, não invoca a Musa, em suas Argonáuticas, mas Apolo; será sob
a inspiração desse deus que há de recordar a saga dos heróis da nau
Argo:

65
CAIRNS, F. Virgil’s Augustan Epic, p. 202. De fato, a Eneida também narra a história
da ira de Juno, cujo furor contaminará Dido (aqui, com a ajuda de Vênus, natural, pois
que o meio de que se servirá Juno é a paixão amorosa) e Turno (com o auxílio de
Alecto, já que se trata de inocular no jovem rútulo o amor a uma guerra celerada,
verdadeiro conflito civil). Apoiando-se nas paixões humanas, que beiram a loucura,
Juno age, portanto, semeando o sentimento maior que a move em sua perseguição aos
troianos; só no final da Eneida, veremos a esposa de Júpiter renunciar aos seus ódios,
acatando o desejo de Júpiter e, finalmente, pela primeira vez, demonstrando o senti-
mento que detestava ver nos seus inimigos: alegria (laetata, v. 841; notemos que no
livro I e no VII, a ação nefasta da deusa se desencadeia ao ver os troianos laeti). Como
a Ilíada termina com o fim da terrível cólera de Aquiles (contra Agamenão e, depois,
contra o cadáver de seu inimigo Heitor), a Eneida concluirá com a deusa reprimindo
sua fúria (pelo menos até às guerras púnicas); no livro XII, Júpiter a exorta: Verum age
et inceptum frustra summite furorem (“Mas, vamos!, submete um furor em vão desen-
cadeado!”, v. 832).
66
Mas é interessante relevar que memorare significa, ao mesmo tempo, “lembrar”e “refe-
rir”, como o grego; ressaltou-o Benveniste (apud DETIENNE, Marcel. Os Mestres da
Verdade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Zahar, s.d., capítulo II, nota 3, p. 79). Na
própria epopéia, o verbo aparece empregado com outro sentido que o de “lembrar”(VIII,
v. 79).

– 119 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Arxo/
) menoj se/o Foi=be palaigene/wn kle/a fwtw=n
mnh/somai (I, v. 1-2)

“Sob tua guia, Febo, as façanhas dos antigos heróis


recordarei...”

Seguindo mais de perto a Odisséia em seu proêmio, Virgílio in-


corpora também não apenas traços da Ilíada como das Argonáuticas:
hábil fusão de seus três principais modelos.
Um artigo de Clifford Weber67 traz mais revelações a respeito
da sutileza dessa arte alusiva. O estudioso ressalta pontos formais de
contacto entre a proposição virgiliana e a iliádica; alguns já haviam
sido observados antes:

e)c ou dh\ – unde...


Atrei/
) j – Albanique...........Romae.
dhj te............ Axilleu/
)

Como se vê, o último verso dos dois proêmios apresenta nome


próprio no início e no fim; em ambos, palavra de fundamental impor-
tância recebem destaque: Aquiles e Roma, que encerram o verso.68
Quanto às palavras iniciais, te, como se sabe, equivale totalmente ao -
que latino; trata-se da mesma enclítica indo-européia tão difundida entre

67
“Metrical Imitatio in the Proem of the Aeneid” In: Harvard Studies in Classical Philology,
vol. 91, 1987, p. 261-271.
68
No caso da Eneida, Virgílio realça o último substantivo do verso fazendo-o vir num
sintagma que é o mais longo dos três coordenados, isto é: genus Latinum (cinco síla-
bas), Albanique patres (seis), altae moenia Romae (sete). “A primeira frase de Virgílio
termina com o enfático Romae – o clímax de uma tríade ascendente...tendo cada
membro uma sílaba a mais que o precedente”, nas palavras de QUINN. Op. cit., p. 41.
Que a “Aquiles”corresponda “Roma”, no proêmio virgiliano, é significativo: mais que
um herói em particular, mais que Enéias, cujo nome aparecerá pela primeira vez só no
verso 92, o poema tem em vista a perspectiva de uma cidade que representa um mode-
lo de civilização; o troiano é, por certo, seu herói arquetípico, mas a obra não se centra
na mera narrativa das aventuras de um varão. Enéias, ao contrário de Aquiles ou
Ulisses, carrega sobre os ombros o peso de um futuro que faz de sua gesta um paradigma
cuja transcendência a trama nunca perde de vista. Assim, seus amores com Dido terão
como efeito a guerra contra Cartago; suas lutas no Lácio serão o protótipo das guerras
civis: em suma, sua “estória”, na perspectiva do leitor, se torna história.

– 120 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

as línguas do tronco (em sânscrito, por exemplo, temos ca); metrica- V

mente, as duas expressões têm a mesma quantidade (Atrei/


) dhj te –
Albanique) – coincidência não fortuita, tanto mais que os Antigos ti-
nham ouvidos sensíveis a rais seqüências fônicas.
Weber aprofunda a análise, apontando mais semelhanças métricas:

Atrei/
) dhj te a)/ nac – Albanique patres

Também a palavra inicial do segundo verso da Eneida, Italiam


(seguida de palavra iniciada por consoante), tem as mesmas quanti-
dades da palavra que ocupa tal posição no proêmio da Ilíada:
ou)lome/nh. Para o leitor antigo, sensibilíssimo aos ritmos e efeitos
sonoros, e nutrido de Homero, como já dissemos, não deveria passar
despercebida a aproximação; observe-se, de passagem, que a existên-
cia dessas regularidades traz novo argumento para rejeitar a autenti-
cidade dos versos que precedem arma uirumque, pois, se os aceitásse-
mos, não mais ocuparia a mesma posição no proêmio a correspondência
métrica apontada entre o início do segundo e do sétimo verso da Ilíada
e o segundo e o sétimo da Eneida!
Mas Weber aponta uma coincidência especial e digna de aten-
ção, que reservamos para o final desta análise da proposição virgiliana.
As primeiras três palavras do poema contêm uma “anomalia” métrica
significativa. Os poetas evitavam usar no início do hexâmetro (e mes-
mo do pentâmetro) esta seqüência:

– – –
(primeira palavra) (segunda) (terceira)

Ou seja, evitava-se, numa seqüência inicial de três palavras,


uma série constituída de troqueu, anfíbraco e iambo, empregada
comumente na segunda parte dos pentâmetros – segundo Weber, esse
seria um exemplo da “aversão geral dos poetas antigos em escrever
num metro sugerindo outro”.69 Ora, é exatamente esse o esquema do
69
WEBER. Op. cit., p. 262.

– 121 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

início da Eneida, anômalo também no sentido de que o próprio Virgílio


procura evitar ao máximo tal seqüência. Esse dado é tanto mais signi-
ficativo pela importância que os Antigos davam às primeiras palavras
das obras, que podiam funcionar como identificadoras de todo o con-
junto, o que se deu com a Eneida, e marcadoras do gênero. Weber
mostra que esse esquema é o mesmo...da Ilíada:

Arma uirumque cano

mh=nin a)e
/ ide qea/

Novamente, reforça-se o que observamos: Virgílio recupera, de


forma sutil e habilíssima, Ilíada e Odisséia (com toque de Apolônio
de Rodes), manifestando ao leitor a filiação de sua obra ao epos ho-
mérico (e pós-homérico, na tradição homérica).70 Atestam-no as re-

70
Não nos é possível desenvolver a contento, aqui, um tema fascinante: há, nas próprias
epopéias homéricas, um jogo intertextual comparável com o da Eneida. Os proêmios
da Ilíada e da Odisséia têm elementos lingüísticos (lexicais, sintáticos) semelhantes,
atribuíveis, sem dúvida, a uma tradição épica, mas é difícil escapar à observação de que
o confronto entre eles faz relevar contrastes de sentido bastante significativos. Aponte-
mos os paralelos mais evidentes:
– Ambos se iniciam por uma palavra que define o tema central, no caso acusativo
(mh=nin, a)n/ dpa; compare-se com o virgiliano arma uirumque);
– Um adjetivo de quatro sílabas modifica esse substantivo inicial (ou )lome/nhn,
polu/tropon);
– O sintagma substantivo/adjetivo é desenvolvido por oração adjetiva (h(\ muri / )
Axaioi=
) \ ma/ la polla/; em Virgílio: Troiae qui primus ab oris);
j... o(j
– Em ambos os proêmios, presença marcante de quantificadores (muri,/ ) polla/ j;
polla/, pollw= n, polla/ );
– Invocação à Musa.
Deixamos para o fim, e destacamos, o paralelo mais interessante, a nosso ver. Nos dois
proêmios homéricos há referência a sofrimentos. Entretanto, enquanto na Ilíada se
menciona um Aquiles que foi o causador de dores sem conta em seus companheiros,
na Odisséia se fala das dores que o próprio protagonista sofreu. Num caso, a expressão
é a)l / hke; no outro, pa/ qen a/)lgea. Comparando-se as duas, nota-se o con-
/ ge ) e)q
traste evidente dos dois processos verbais, distinguindo enfaticamente a saga dos pro-
tagonistas. Será que Virgílio, poeta impregnado de Homero, não terá lido o predecessor

– 122 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

lações intertextuais, que, de resto, acabam por trazer argumento críti-


co para, por exemplo, rejeitar a incorporação dos versos anteriores a
arma uirumque cano: não faziam parte da proposição da Eneida; as-
sim, a intertextualidade secunda os esforços da filologia para resolver
velhos problemas da crítica virgiliana. Por outro lado, se aceitarmos
que arma encabeça o poema para evocar fonicamente o da Odisséia –
hipótese a levar em consideração, a nosso ver, desde que não deduza-
mos a partir disso a prioridade absoluta desse modelo sobre a Ilíada ou
neguemos na expressão bimembre a referência aos dois modelos
homéricos – então, de novo, tem-se argumento para rejeitar os versos
que antecedem o célebre início da epopéia, pois que a primeira pala-
vra de um poema evoca a primeira do outro.
Como fez Traina com Caro e outros,71 será interessante analisar
brevemente como um tradutor sensível ao andamento sintático do
original, Odorico Mendes, verteu os sete versos da proposição da
Eneida; sua tradução foi reproduzida mais acima.
De início, destaque-se a concisão: nove versos, apenas dois a
mais que o original – um bom resultado em condensação, se tivermos
em vista a diferença entre as duas línguas, uma sintética, outra analí-
tica; basta lembrar, de resto, que a tradução de Caro, nada prolixa,tem
doze versos.
Bastante fiel, Odorico recupera elementos importantes do tex-
to: a palavra inicial, arma, mantida tal qual, isto é, como metonímia,
coordenada a “varão”, que, além de lembrar fonicamente uirum, tem
a vantagem de ecoar a célebre imitatio camoniana. Entretanto, a ne-
cessidade de acrescentar a relativa a esse substantivo obrigou-o a in-
serir entre as duas palavras o verbo principal – alteração leve, tanto
mais justificável pela observação da verdadeira proeza que é conser-

com mais atenção que muitos estudiosos ao longo dos séculos? Não teria ele percebido
que nas epopéias homéricas há uma espécie de jogo alusivo passível de se transformar
numa técnica compositiva? Mera especulação, mas faz pensar...
71
Op. cit., p. 120-127.

– 123 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

var uma forma métrica regular ao longo de toda a tradução. Manteve


Odorico a anáfora bimembre: “muito...muito” e a hipálage em “lem-
brado rancor da seva Juno”. Para se ter idéia da excelência dessa últi-
ma construção, basta lembrar que Tassilo Orpheu Spalding simples-
mente não traduz o adjetivo em sua edição em prosa da Eneida.72
Outros tradutores, como Perret, por exemplo, dão-lhe um equivalen-
te que desfaz o efeito poético, pois que atribuem a ira epíteto banal, a
evitar qualquer possível sensação de estranhamento: neutraliza-se,
assim, a hipálage em banalização prosaica do enunciado.
Odorico também é fiel à estrutura relativa (uirumque...qui... “e
o varão que...”), mas não consegue manter a subordinação mais cer-
rada do original, que desenvolve o período com particípios conjuntos,
apositivos: iactatus, passus, transformados em verbos conjugados por
ele (“encontrou”, “sofreu”) – leitura forçada do original que alguns
editores do poema referendam, totalmente equivocados, a nosso ver.
Lamentamos, também, a perda das nuanças de intencionalidade e
esforço do subjuntivo de dum conderet e inferret: “quando/ Funda a
cidade e lhe introduz os deuses...”
Finalmente, os dois últimos versos conservam a concisão de
Virgílio e se inflam tão somente com um acréscimo: o verbo “vêm”,
em contraposição à eficaz elipse do original.
Em resumo, Odorico, apesar de alguns desvios, consegue repro-
duzir a concisão e vários efeitos poéticos do proêmio; basta comparar
com outros tradutores que a verteram também em versos regulares
para ser idéia da façanha e do êxito obtido.73

72
Op. cit., p. 11. Tratar-se-á de erro de revisão?
73
Além do já citado Caro, Albini e Bacchielli tentaram a difícil empresa. No campo da
concisão, ambos perdem para Odorico: onze versos contra nove. Sobre o primeiro,
consulte-se TRAINA (Op. cit., p. 124-126); quanto ao segundo, sua tradução está no
volume indicado a seguir: VIRGILIO. Eneide. Versione poetica, introduzione e
commento di Adriano Bacchielli. Torino, Paravia, 1991, p. 19.

– 124 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

3. PARATEXTUALIDADE: O TÍTULO DA EPOPÉIA

Já o título da epopéia de Virgílio estabelece com o leitor o pacto


de intertextualidade que deverá reger a leitura da obra; diríamos, uti-
lizando a nomenclatura de Genette,74 que a relação hipertextual da
Eneida com o modelo homérico em especial é assinalada por Virgílio
nesse componente do “paratexto” que é o título. De fato, Aeneis in-
forma o leitor de que se terá como tema um herói de nome Enéias,
como a Odisséia centra o foco narrativo em Odisseu.
Daqui, algumas conseqüências importantes; Virgílio retomará
a epopéia homérica, mas elegerá um protagonista de relevo bem supe-
rior ao dos demais personagens, não um conjunto de protagonistas
que se alternam na centralização do foco (não apenas Aquiles ou
Agamenão, do lado grego, mas Heitor e Príamo, do lado troiano etc.),
tal como se vê na Ilíada. Desnecessário mencionar as nuanças: tam-
bém na Odisséia, durante longa parte da narrativa, tem-se Telêmaco,
não Ulisses, como protagonista; por outro lado, na Eneida, Turno
também assume esse papel, especialmente quando, como em todo o
livro IX, Enéias está ausente do campo de batalha; contudo, Odisséia
e Eneida centram-se mais compactamente na figura unificadora de
um herói principal.
Mas a relação de Virgílio com seu hipotexto é sempre comple-
xa: envolve reelaboração, confronto e incitamento à identificação dos
“desvios”, jamais imitação mecânica e passiva. Temos insistido em
que a presença de outros textos sob seu texto se destina a gerar senti-
dos, numa dialética a que o leitor não deve ficar alheio sob pena de
empobrecer decisivamente sua leitura. Partícipe ativo de uma deci-
fração que compreende operações tais como a identificação do
hipotexto e a análise do sentido que a superposição de textos faz bro-
tar, o leitor implícito é constantemente provocado a comparar e dis-
tinguir. Permanecer no hipertexto, em leitura que não engloba as “fon-

74
Op. cit., p. 7-14.

– 125 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

tes”, é condenar-se a não desfrutar de muitas riquezas, mais ou menos


acessíveis, da significação, como também o é – armadilha que a
Quellenforschung por tanto tempo não evitou, segundo apontamos –
a mera identificação dos passos “imitados” pelo poeta, se não atingi-
mos o cerne da ars virgiliana: criação de sentido pelo confronto do(s)
subtexto(s) integrado(s) à estrutura da obra.
Assim, a consideração do título não nos deve enganar: a Eneida
não será uma Odisséia; já nos referimos à tese de Lausberg-Cairns de
que a epopéia latina se basearia fundamentalmente na Odisséia, com
a introdução de material subsidiário da Ilíada, num processo de imitatio
não incomum na literatura latina: partindo-se de um modelo mais
recente, através deste se retomam aspectos de um modelo anterior,
da fonte mesma deste último, como faz não raramente Ovídio; trata-
se de englobar o continuum histórico de um texto, sua história como
matriz de outros textos, em processo que vai do texto original à fonte
e vive-versa simultaneamente. Retomaremos as considerações de
Cairns no próximo capítulo, quando examinarmos a estrutura da
Eneida; por ora, reafirmamos a diferença, do ponto de vista mesmo
do título, entre a epopéia de Virgílio e a saga de Ulisses.
No decorrer da ação, por cerca de vinte vezes75 os troianos são
chamados Aeneadae, a partir do nome de seu chefe; a Eneida, pois,
mais que poema de consagração de um herói singular, é a exaltação
de toda uma coletividade encarnada em Enéias, seu mais eminente
representante e figura arquetípica sob a qual se revelam traços da
romanidade ideal: pietas, grauitas, disciplina. Na complexa teia tem-
poral da Eneida – que, através de profecias e oráculos, além da catábasis
do livro VI e da descrição do escudo, no livro VIII, compreende a
futura Roma e seus descendentes – essa coletividade de que Enéias é
porta-voz é a própria Roma e os troianos redivivos em que se transfor-

75
Dezoito, precisamente, segundo o cômputo de POMATHIOS, Jean-Luc. Le Pouvoir
Politique et sa Représentation dans l’ Énéide de Virgile. Bruxelles, Latomus, 1987,
p. 132.

– 126 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

marão os descendentes do herói, através de seus valores cívicos e es-


pirituais. Assim, no livro VIII, cuja ação se passa predominantemente
no sítio da futura Vrbs, os Romanos são por duas vezes denominados
Aeneadae. Na primeira ocorrência, temos o célebre passeio de Evandro
e Enéias pelos lugares onde surgirá Roma; os personagens admiram a
paisagem tão evocativa para o leitor de Virgílio, iniciando a explora-
ção do local pela porta e altar de Carmenta:

Vix ea dicta, dehinc progressus monstrat et aram


et Carmentalem Romani nomine portam
quam memorant, nymphae priscum Carmentis honorem,
uatis fatidicae, cecinit quae prima futuros
Aeneadas magnos et nobile Pallanteum. (VIII, v. 337-341)

“Mal assim falara e, avançando, aponta-lhe o altar


e a porta que os Romanos denominam Carmental,
antiga honraria à ninfa Carmenta,
vate profética, que foi a primeira a anunciar os futuros
magnos Enéadas e o nobre Palanteu”.

No escudo de Enéias, em que Vulcano cinzelara res Italas Roma-


norumque triumphos (“a história itálica e os triunfos dos Romanos”,
VIII, v. 626), a luta de Roma contra o rei deposto Tarqüínio, que se
aliara ao inimigo externo, é assim sintetizada:

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant. (VIII, v. 648)

“Os Enéadas se lançavam às armas em defesa da liberdade”.

O grande precedente dessa identificação entre os Enéadas e os


Romanos é, na literatura, o verso inicial do célebre “hino” a Vênus que
abre o De Rerum Natura de Lucrécio, escritor que tanto influiu sobre a
obra de Virgílio; ali Vênus é denominada Aeneadum genetrix, “gera-
dora dos Enéadas”, isto é, dos Romanos. Considerava-se, portanto,
Enéias como o herói que fundara a raça romana; de fato, como era
previsível, ideais romanos são projetados sobre a personagem virgiliana.

– 127 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Essas considerações procuram advertir para o engano que se


cometeria em aceitar sem mais a equação: Odisseu – Odisséia/ Enéias
– Eneida; em Virgílio, como já dissemos, a personalidade do protago-
nista é transcendida, suas ações e atitudes são “fundadoras” da futura
civilização romana, suas qualidades as virtudes arquetípicas de um
povo. A insistência de Virgílio no emprego da expressão Aeneadae
(companheiros de Enéias/ futuros Romanos) realça esse estatuto “po-
lítico”, no mais amplo sentido da palavra, de que se reveste o protago-
nista da Eneida.
Camões, que pratica com a epopéia virgiliana mutatis mutandis
o que basicamente Virgílio operou com a homérica, isto é, integração
e superação explícita (nenhum sentido valorativo, porém, na pala-
vra “superação”: trata-se de transcendência para nova forma e visão
de mundo, sentida como “desvio” em relação aos modelos), tam-
bém terá em mente, ao intitular seu poema épico, a exaltação do
coletivo – Os Lusíadas será o nome da epopéia portuguesa, que ce-
lebra não a saga de um homem particular, o Gama, mas essa mesma
saga como exemplum ímpar de um suposto gênio lusitano secunda-
do pela providência divina. É significativo que em seu proêmio o
poeta português use o plural do correspondente ao latino uirum:
cantará os “varões assinalados”, não um só herói (e se note o adjeti-
vo, evocação do insignis, aplicado a Enéias): a leitura intertextual,
provocada pela epopéia, também suscita sentidos, pelos contrastes
que a semelhança formal só faz salientar. Camões retoma a tradição
épica ocidental, greco-latina, para modificá-la, nela inserindo ou-
tros valores e ideais.
Na Eneida, portanto, é a ação fundadora do pater Enéias que
se narra, e Virgílio não insiste nesse epíteto gratuitamente: seu he-
rói traz em si as virtudes mais prezadas do ideário romano persegui-
do por seus descendentes, que cultuarão sua imagem tão piedosa-
mente quanto os nobres cultuavam a memória dos ancestrais mais
ilustres, que constituíam, por seu passado, modelo perene a ser imi-
tado e invocado.

– 128 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

4. INTRATEXTUALIDADE

Por muito tempo o estudo das repetições na Eneida, uma carac-


terística da obra que não escapa ao leitor atento, recebeu tratamento
predominantemente filológico; discutia-se, quase invariavelmente, se
dada repetição de verso ou versos (sobretudo se longa e total) não era
devida ao estado incompleto da epopéia, vestígio de redação provisó-
ria, ou deslize que o poeta consertaria se tivesse tido tempo para rever
integralmente seu texto, ou fruto espúrio de interpoladores. Outro
filão da crítica textual se encaminhava no sentido de decidir, diante
de duas passagens idênticas, qual teria sido redigida antes.
Tais preocupações são, em parte, cabíveis; entretanto, a abor-
dagem estritamente filológica falseia os aspectos literários da repeti-
ção, que, como recurso poético, cria associações de analogia e con-
traste, sugere sentidos do confronto de contextos diversos, etc. Além
disso, vinha recebendo tratamento esporádico e assistemático a ques-
tão da linguagem “formular”, calcada na repetição, um dado óbvio
para quem lê a Eneida, sobretudo se se tem na memória a língua poé-
tica homérica, em que a repetição constitui pilar vistoso e irremovível
da arquitetura do conjunto. Um livro de Walter Moskalew, relativa-
mente recente, veio cobrir essa lacuna inexplicável, apresentando um
trabalho de conjunto (ainda que não esgote a matéria; bem longe
disso...) sobre esse tema transcurado.
O autor mencionado distingue, corretamente, dois tipos de re-
petição: a que dá marca épica ao texto, isto é, sua “formulaic texture”,
e a “referential”, “intimamente ligada à estrutura e ao sentido” e que
“reflete a lógica interna e o desígnio artístico do poema”.76 Nota que
esses dois tipos não se excluem, “pois todas as repetições...contribuem
para a impressão de que o poema é épico em seu estilo...”77

76
MOSKALEW, Walter. Formulaic Language and Poetic Design in the Aeneid. Leiden,
Brill, 1982, p. 73.
77
Idem, p. 79.

– 129 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Moskalew, entretanto, denomina “decorativo” a esse papel da


repetição – marca de uma linguagem que se pretende épica, isto é,
homérica; ora, a nosso ver o termo é infeliz e inadequado. De fato, se
sua função é filiar a epopéia a uma certa tradição épica, reproduzindo
um tipo de dicção poética característico, é evidente que não se trata
de mero adorno de estilo; na verdade, reveste-se, no projeto geral de
Virgílio, de papel capital. Para se ter idéia dessa peculiaridade da
Eneida, pensemos em como a epopéia de Apolônio de Rodes, que
também se insere na tradição homérica, é muito mais parca em reite-
rações de tais “fórmulas”. Por outro lado, limitando seu campo de
estudo às expressões com uma certa extensão, Moskalew acaba dei-
xando de lado material lingüístico relevante, que merecia interpreta-
ção, conforme veremos mais adiante.
Nesta parte de nossa pesquisa, preferimos adotar o termo mais
abrangente de intratextualidade, concebida como a evocação, no curso
de uma obra, de passagens da mesma obra: alusão interna, portanto;
mas restringiremos nossas considerações ao exame de exemplos que
mostrem de que maneira essa retomada interna cria sentidos que pre-
cisam ser decodificados depois que a memória do leitor a reconheceu.
Admitimos a divisão de Moskalew em repetições que influem no sen-
tido ou não, mas notamos a tendência virgiliana a “marcar” de signi-
ficação os recursos poéticos e a linguagem herdada da tradição
homérica; além de marcar gênero, a repetição na Eneida tende a ser
semioticamente funcional, a criar sentidos; em suma, poderíamos di-
zer que propende a ser sobredeterminada, desempenhando duplo pa-
pel. Não sendo exclusiva da linguagem épica (pensemos nos refrães
de certas formas líricas, nas repetições catulianas que estruturam o
poema em Ringkomposition, etc.), a repetição, fomentada por essa
linguagem, fornece material abundante para a criação de sentidos su-
tilmente sugeridos: de novo, cabe ao leitor relacionar textos e con-
textos interligados pela referência interna e extrair do confronto os
efeitos de leitura. Operação subjetiva por excelência, esse modo
dialético de ler deixa ao leitor a iniciativa e a competência na decifra-

– 130 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ção possível, que deve ser justificada pela adequação ao contexto ge-
ral e apoiada por indícios seguros, sob pena de se perder na excessiva
divagação, risco a que nem mesmo o próprio Moskalew escapa.78
Enfim, coerência e apoio no texto: eis as diretrizes que não po-
demos deixar de seguir, se quisermos evitar os excessos de interpreta-
ção, especialmente freqüentes nos que operam a leitura dita “simbóli-
ca” da Eneida. Deve-se, acima de tudo, resistir à tentação de ver, em
toda e qualquer repetição, um efeito de sentido, uma operação
interpretativa que vem, por vezes, em certos autores, acompanhada
de considerações tão forçadas e artificiais que comprometem e
distorcem o sentido da obra em seu conjunto.
Impossível negar, contudo, que Virgílio parece comprazer-se em
extrair sutis sugestões da auto-alusão no corpo de sua Eneida; é o caso
do símile aplicado a Turno em XII, v. 4-9, que evoca o célebre símile
de IV, 68-73, em que Dido é comparada a uma corça79 ferida. Lyne
comenta a relação, se bem que suas ilações nos pareçam, em mais de
um ponto, exageradas.80 Analisemos a passagem; Turno, exaltado pelo

78
Ao que parece, o abuso interpretativo na consideração da recorrência verbal atinge um
dos estudos sobre a Eneida que vem influenciando a muitos, The Poetry of the Aeneid,
de Michael Putnam, ao qual, infelizmente, não tivemos acesso. Críticos profundos e
ponderados, porém, têm criticado esse aspecto da obra; a título de exemplo, citamos
CONTE, G. B. Virgilio. Il Genere e i suoi Confini. Modelli del Senso, Modelli della
Forma in una Poesia Colta e ‘Sentimentale’. Milano, Garzanti, 1984, p. 156.
79
Notemos, de passagem, que a escolha do animal não parece gratuita; é verdade que
Virgílio retoma Apolônio, como logo veremos, mas é significativo que Dido seja associ-
ada com Diana (no símile de I, v. 498-504), a lua (por exemplo, no símile de VI, v. 453-
454: a primeira visão que de Dido tem Enéias nos Infernos comparada à de alguém que
vê ou crê ter visto a lua em meio às trevas) e a corça. Nas palavras de Junito Brandão
(Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis, Vozes, 1991, vol. I), Diana-Ártemis “esta-
va estreitamente ligada a Hécate e a Selene, personificação antiga da Lua”(p. 122), e a
corça era o seu animal predileto (p. 121).
80
LYNE, R.O.A.M. Words and the Poet. Characteristic Techniques of Style in Vergil’s
Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1989, p. 163. Pöschl, bem antes de Lyne, apontava
essa ligação Turno-Dido e tecia sobre ela comentários interessantes, aos quais voltaremos
no último capítulo deste trabalho (cf. PÖSCHL, Viktor. Die Dichtkunst Vergils. Bild
und Symbol in der Äneis. Innsbruck-Wien, Margarete F. Rohrer, 1950, p. 183-184).

– 131 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

rumo adverso aos latinos que os combates estão tomando, assemelha-


se, em seu furor, a um raivoso leão ferido:

Poenorum qualis in aruis


saucius ille graui uenantum uolnere pectus
tum demum mouet arma leo gaudetque comantis
excutiens ceruice toros fixumque latronis
impauidus frangit telum et fremit ore cruento:
haud secus accenso gliscit uiolentia Turno.(XII, v. 4-9)

Em Odorico Mendes:

“Qual de Afras brenhas


Ferido o leão no peito, encrespa as garras,
Do collo folga a sacudir a juba,
Do caçador estrala o fixo dardo,
Ruge-lhe impavido a cruenta boca;
Tal cresce a furia do abrazado moço...”81

De início, notemos as expressões que remetem aos versos do


livro IV, abaixo transcritos:

qualis coniecta cerua sagitta,


quam procul incautam nemora inter Cresia fixit
pastor agens telis liquitque uolatile ferrum
nescius; illa fuga siluas saltusque peragrat
Dictaeos; haeret lateri letalis harundo. (IV, v. 69-73)

“Qual a corça que, atirada a seta,


incauta entre os bosques cretenses, de longe atingiu
o pastor, em seu encalço com dardos, deixando o volátil ferro,
sem saber; ela, na fuga perpassa selvas e bosques
dicteus; permanece cravada em seu flanco a flexa fatal”.82

81
A nosso ver, a boa tradução se enfraquece no verso final: Odorico perde a seqüência
uiolentia Turno, associação significativa para a caracterização do personagem.
82
Uma tradução autenticamente poética deverá manter o delicado jogo fônico do último
verso: haeret lateri letalis harundo, em que os sons comparáveis se agrupam em quiasmo;

– 132 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Idêntica fórmula de introdução do comparante: qualis; uso do


presente para relatar as ações do elemento comparante (mouet, frangit,
fremit/peragrat); emprego de verso e trecho de verso no final do símile
destacados pela pausa (haud secus.../haeret – com presente e verbo
antes do sujeito em ambos).
A tais elementos, acrescem-se outros: de fato, saucius graui
uolnere evoca um trecho do início do mesmo livro IV, que retrata
Dido:

At regina graui iamdudum saucia cura


uolnus (IV, v. 1-2)

“Mas a rainha, ferida há muito de profundo amor,


a chaga...”

Diante dessas observações, é curioso que Virgílio faça referên-


cia, no símile aplicado a Turno, a leão púnico...; para Lyne, com a
intenção de recordar Cartago e os episódios do livro IV.83
No início do livro IV e do livro XII, Dido e Turno, respec-
tivamente, são descritos feridos, uma de paixão, outro de excessiva
fúria:

além disso, em haeret harundo e lateri letalis (como, no verso anterior, em siluas
saltusque) temos a chamada “aliteração com vogal interposta variável”, um esquema
sonoro que talvez provenha da linguagem sacerdotal e se tornaria uma das marcas da
língua da épica, segundo CECCARELLI, Lucio. L’Alliterazione a Vocale Interposta
Variabile in Virgilio. Roma, Japadre, 1986, p. 3. Sua definição do fenômeno: “aquela
variedade particular de aliteração caracterizada pela mudança da vogal ou do ditongo
intermédio entre consoantes iguais” (ibidem). O autor, entretanto, não considera haeret
harundo em sua análise das aliterações desse tipo na passagem em foco (p. 89-90),
provavelmente por levar em consideração que o h inicial é marca de aspiração, e não
propriamente consoante, como já pensavam os gramáticos latinos antigos (nota
aspirationis; ver NIEDERMANN, M. Phonétique Historique du Latin.Paris,
Klincksieck, 1953, p. 99). Mas nenhum critério técnico eludirá o fato de que essa
associação de sons comparece próxima de duas outras aliterações “com vogal interpos-
ta variável”.
83
Words and the Poet, p. 163.

– 133 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Como ali a paixão da amante, aparece aqui a paixão do guerreiro como


uma ferida devoradora, uma doença que aniquila tragicamente sua ví-
tima. O livro de Dido e o livro de Turno, através desse símbolo
introdutório (scilicet: a imagem da ferida), estão ligados um ao outro
também exteriormente”.84

Assim, Virgílio conduz o leitor à aproximação dos dois persona-


gens que se antepõem à missão de Enéias e ganham relevo nas duas
metades do poema; Dido, figura dominante na parte odissíaca, cujas
relações amorosas com Enéias constituem um obstáculo ao cumpri-
mento dos fados que só é removido após a intercessão de Júpiter atra-
vés de Mercúrio; Turno, o rival da parte iliádica, empecilho à pacifi-
cação entre latinos e troianos.85 Os dois apresentados em símile como
animais feridos, vítimas de um conjunto de circunstâncias que coloca
Enéias como agente da “ferida” a ambos infligida. Enéias sob luz duvi-
dosa, como querem vários estudiosos, especialmente aqueles que pro-
curam as arestas da ideologia augustana na Eneida? Mas o herói é o
agente do Fatum, e o amor tresloucado da rainha de Cartago e a ex-
cessiva superbia do rútulo (uiolentia é palavra que só a ele se aplica ao
longo da epopéia!)86 configuram-se como obstáculos reais ao cumpri-
mento da missão divina de que o troiano está encarregado. Certa-
mente faz parte da complexa ideologia da epopéia, rica em mensagens
subliminares nada simples ou fáceis, o fato de que – tantos o têm ob-
servado87 – vítimas sofredoras, as duas personagens apareçam como
“simpáticas”, no sentido etimológico, ao leitor, mas, evidentemente, a
sugestão é mais adequada a Dido, figurada no símile como animal frágil
84
PÖSCHL. Op. cit., p. 184.
85
Curiosamente, Júpiter intervirá de novo, desta vez para alquebrar as forças e o ânimo
de Turno, enviando-lhe a Dira (XII, v. 845-868) e, assim, precipitando a vitória de
Enéias – Virgílio acentua o paralelismo dos destinos das duas personagens.
86
Os passos a citar: XI, 376 (uiolentia Turni); XII, 9 (uiolentia Turno), 45 (uiolentia
Turni ); acrescente-se X, 151 (uiolentaque pectora Turni), em que não aparece o subs-
tantivo mas o adjetivo correspondente. A proximidade com o nome de Turno, traço
de todas as ocorrências, revela as intenções do poeta: ligar a imagem do rútulo à do
herói excessivamente colérico, condenável Aquiles, sob esse aspecto.
87
Lyne, por exemplo, em Words and the Poet, p. 163.

– 134 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

que foge ao seu perseguidor, já fadada à morte (letalis harundo), que a


Turno, leão altivo, que, ferido, resta impávido e continua a ameaçar e
desafiar seus agressores.88
Comentário à parte merece a comparação de Dido com uma
corça ferida; sabemos que todo o livro IV desenvolve a imagem do
ferimento de amor da rainha que se transformará em chaga letal,
infligida pela espada de Enéias na auto-imolação final: imagens de
ferida e fogo anunciam o trágico desfecho, a morte pelo ferro e o cor-
po queimado na pira que a própria Dido mandara erguer.89 Mas, ao
que parece, não foi ainda notado por nenhum dos comentadores e

88
Cremos que essas nossas considerações servem de alerta contra a tendência a distinguir
um paralelo demasiado cerrado entre Dido e Turno (no quarto capítulo deste trabalho,
nós mesmos afloraremos o tema) e a julgar que o poeta traçou deste último um retrato
muito positivo; retornaremos à questão, ao analisar os efeitos intertextuais na caracte-
rização de Turno.
89
Já em Apolônio de Rodes, seguido de perto por Virgílio no livro IV, encontramos a
associação entre a ferida de amor e o fogo. Atingida por Cupido, eis o estado de Medéia:
be/loj d e ) n) edai/eto kou/rv / ne/rqen u(po\ kradi/v, flogi\ eikelon
)/ (“A seta ar-
dia/ no fundo do coração da moça, semelhante a uma chama...”: Argonáuticas III, v. 286-
287). Na epopéia de Virgílio, porém, as imagens perpassam todo o episódio e se revestem
de significação surpreendente: “Essas seqüências de imagens de fogo e ferida...(...) intro-
duzem, entre outras coisas, um sentimento de trágica inevitabilidade. A ferida de amor
de Dido se transforma...na ferida do suicídio, e o fogo de seu amor se transforma...nos
fogos de sua pira”, diz LYNE (Further Voices, p. 120, nota 31), retomando belas observa-
ções de Pöschl e Otis. É interessante notar, por outro lado, que Ovídio relacionara de
perto a imagem da ferida de amor com a ferida concreta do suicídio de Dido, já propondo,
portanto, essa leitura do episódio, como o revela a epístola de Dido a Enéias, uma de suas
Heróidas:
Nec mea nunc primum feriuntur pectora telo;
Ille locus saeui uulnus amoris habet. (VII, v. 189-190)
“Nem é agora a primeira vez em que meu peito é ferido:
esse lugar conserva a chaga de um amor cruel”.
Lembremos que as metáforas para a paixão de Dido aparecem logo no início do livro
IV:
At regina graui iamdudum saucia cura
uolnus alit uenis et caeco carpitur igni. (v. 1-2)

– 135 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

estudiosos do poeta que, no livro VI, quando Enéias revê Dido nos
Infernos, ainda sangrando da ferida, Virgílio sugere, pela intratextua-
lidade, em discreta alusão, a comparação inicial da rainha com
um...animal ferido. Vimos que no símile do livro IV a corça é retrata-
da em fuga por selvas e florestas (illa fuga siluas saltusque peragrat);
no livro VI, além da referência a uolnus, devemos observar atenta-
mente estas palavras:

errabat silua in magna (v. 451)

Ao leitor atento não escapará a evocação de um animal a vagar


por uma floresta, que, parte da região infernal onde Enéias encontra
Dido, traz à memória a imagem do símile. Trata-se de poderosa carac-
terização de Dido apaixonada: eternamente sujeita ao afeto que a
condenou. Como no símile se falava em fuga, no canto VI, Dido foge:

Quem fugis ? (v. 466)

“De quem foges?”

refugit
in nemus umbriferum (v. 472-473)

“Refugiou-se
numa floresta umbrosa...”

Por fim, observemos que a concepção do amor como ferida e fogo é um topos de larga
difusão no Ocidente; no mito, Eros-Cupido é freqüentemente representado portando
a tocha além das setas que ferem. Quanto à recorrência da metáfora na tradição literá-
ria (mas até em letras de música popular a vemos, mais ou menos explícita), recorde-
mos um exemplo mais que célebre, o soneto de Camões:
“Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente...”
Quando, na ópera de Wagner, Parsifal recebe de Kundry o primeiro beijo de amor, o
herói exclama, transtornado, que a ferida arde em seu flanco (“Die Wunde! – Die
Wunde! – / Sie brennt mir hier zur Seite”).
O tema, a história desse topos, está a merecer toda uma pesquisa específica.

– 136 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Note-se que nemus evoca nemora do símile do livro IV.


A confirmar a possibilidade de tal leitura, outros indícios, des-
ta vez intertextuais: in nemus umbriferum lembra e)n ne/mei skier%=,
em que o substantivo grego tem a mesma raiz do latino, e a expres-
são toda parece traduzida por Virgílio, da Ilíada, XI, v. 480, adjunto
adverbial também na primeira posição no verso. No poema grego,
Odisseu é comparado a um...cervo (e)l / afon, v. 475) ferido por uma
seta (i )%=, v. 476)! De maneira sutil, inter- e intratextualmente se
vem apoiar a sugestão do livro VI: aqui, Dido deve assemelhar-se à
patética corça ferida do livro IV.
Por fim, outros dados, intratextuais: o cervo de Sílvia, cuja morte
é o estopim dos conflitos no Lácio, “vagava nas florestas” (errabat
siluis,VII, v. 491), sintagma de notável semelhança com o que temos
aplicado a Dido nos Infernos (errabat silua, VI, v. 451). Ferido (saucius,
VII, v. 500), como Dido é ferida de amor (saucia, IV, 1), refugia-se na
casa que lhe é familiar (nota intra tecta refugit, VII, v. 500), como
Dido se refugia (refugit, VI, v. 472) junto ao marido Siqueu. No livro
I, Enéias, indo à caça, avista três cervos errantis (v.184-185). Nesse
mesmo contexto, o troiano é descrito perseguindo o rebanho com
dardos, numa expressão que aparecerá no símile aplicado a Dido: agens
telis (I, v. 191; IV, v. 71). Essa associação entre Enéias caçador, os
cervos que “erram” e a caça com dardos vem reforçar não só a ima-
gem desse herói como causador involuntário da morte de Dido mas
também a descrição da cartaginesa nos Infernos sob a figura patética
da cerva atingida letalmente; aqui, o verbo errabat 90 e a presença da
floresta (silua, nemus) são, dentre outros elementos, índices bastante

90
Com o verbo errare, Virgílio pode estar, também, aludindo à etimologia que os Antigos
já propunham: Dido significaria “a errante”, nome que lhe teria sido dado pelos líbios
em referência ao exílio que a levou às terras africanas. De fato, na prece do rei Jarbas a
Júpiter, fala-se na femina...errans (IV, v. 211): essa recorrência faz pensar. Sabemos
que o poeta se compraz em evocar etimologias; por outro lado, aceitando-se tal motiva-
ção para o emprego desse verbo, não se invalida a alusão intratextual proposta – estamos
acostumados com a habilidade de sua arte.

– 137 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

eloqüentes para o leitor que está atento à teia sutil de relações


intratextuais e intertextuais urdida pelo poeta.
Em seu estudo do estilo formular da Eneida, Moskalew não in-
clui este exemplo (errabat silua/ errabat siluis) em sua análise;91 no
entanto, eis uma amostra ímpar da capacidade do poeta em criar sen-
tido através do jogo alusivo. A imagem da corça ecoando mesmo nes-
se ponto da narrativa – último adeus de Enéias à rainha, que ainda
sangra92 e ainda foge – com as características de fragilidade e impru-
dência que os Antigos atribuíam ao cervo em geral,93 eis um brilhante
tour de force poético a que o leitor “desprevenido”, isto é, não inter-
textual em sentido amplo, não terá acesso!
Vemos que Virgílio explora de forma sutil uma imagem através
de alusões intertextuais e intratextuais; no livro IV, como aponta Lyne,
na descrição dos pesadelos de Dido reaparece a imagem de um Enéias
a caçar Dido, evocando, pois, o símile da corça. Em sonho, a rainha se
vê acossada pelo troiano:

Agit ipse furentem


in somnis ferus Aeneas (IV, v. 465-466)

“Persegue a ela, enfurecida,


em sonho, ele próprio, o feroz Enéias...”

91
Ver sua útil “lista de repetições” (p. 184-245).
92
A retomada da imagem realça a idéia de que nos Campi Lugentes os mortos por amor
conservam as marcas da paixão que os arruinou: nem aqui deixam de sofrer (por isso,
lugentes, particípio presente, em sintagma quase intraduzível com campi). Como diz
Virgílio, curae non ipsa in morte relinquont (“Não os abandonam os sofrimentos amo-
rosos – curae – nem mesmo na morte”, VI, v. 444). De fato, a ferida de Dido é recens,
como se depreende da atitude mesma da rainha, ponto a que voltaremos no capítulo
seguinte.
93
Ceruus animal est timidum, uelox, iracundum, incautum (“O cervo é um animal me-
droso, veloz, iracundo, incauto...”), reza um tratado de fisiognomonia (e note-se
incautum: no verso 70 do livro IV, tem-se incautam!): ANONYME LATIN. Traité de
Physiognomonie. Paris, “Les Belles Lettres”, 1981, § 121, p. 135.

– 138 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Lyne chama atenção para o uso do verbo agere, que no símile


da corça denotava o ato da caça.94 Notemos algo relevante para nos-
sas considerações: por via alusiva, apenas, o leitor atento associará a
cena à de uma caçada, cruel do ponto de vista de Dido95 . Em leitura
“linear”, pode-se perder, nessa descrição do pesadelo, o motivo da
“caçada”, já que o verbo agere é vago o bastante para que o leitor lhe
confira sentido menos preciso que o de “caçar” (“perseguir”, por exem-
plo, como em nossa tradução). Outro indício intratextual importan-
te: o símile da corça ilustra o furor de Dido (urbe furens, IV, v. 69);
no pesadelo, Enéias persegue uma Dido enfurecida (furentem) – em
casos diversos, trata-se do particípio presente do mesmo verbo.
Nas Argonáuticas, também Medéia, como a Dido do livro IV, é
comparada a uma corça num símile que já mencionamos:

tpe/ssen d ) h)ut/ e tij kou/fh kema\j h(n/ te baqei/hj


ta/rfesin en) culo/xoio kunw=n e)fo/bhsen o(moklh/. (IV, v. 12-13)

“Tremia como uma corça veloz que, na espessura


de um bosque profundo, o latido dos cães pôs em fuga”.96

Mas é fácil observar como Virgílio elabora mais finamente a


imagem, que nele se torna mais intensa e dramática (a ferida, sua
letalidade, o contraste entre a vã alegria da rainha e seu destino trági-
co) e é integrada sutilmente no conjunto de imagens não só de um
episódio como de toda a obra.
Outra observação intratextual a respeito da imagem da paixão
como ferida: já no início do livro IV, o sentimento de Dido é chama-
do uolnus, como recordamos; mas a essa metáfora, seguem os efeitos

94
Further Voices, p. 196-197.
95
Ferus nos parece um dos exemplos mais significativos, em toda a epopéia, do estilo
subjetivo de Virgílio a contaminar a terceira pessoa da narrativa.
96
O verbo fobe/w, além de “assustar”, pode ter esse sentido (ver BAILLY, A. Dictionnaire
Grec Français. Paris, Hachette [s.d.] p. 2088) – talvez essa tenha sido, pelo menos, a
“leitura” de Virgílio, que retrata o animal em fuga.

– 139 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

que a pessoa de Enéias, seu semblante e suas palavras, provocam na


rainha:

haerent infixi pectore uoltus97


uerbaque (IV, v. 4-5)

“Permanecem gravados em seu peito o semblante


e as palavras”.

Vimos que no símile da corça, Virgílio menciona uma letalis


harundo que se crava em seu flanco (haeret lateri): aqui como ali
Enéias é o agente da chaga mortal que consumirá Dido; note-se a
semelhança formal: haeret pectore/haeret lateri.
Vê-se a comprovação de uma característica da Eneida especial-
mente realçada no livro IV: a coesão, o nexo íntimo e constante entre
suas imagens.98 O ponto relevante para a perspectiva de nosso estu-
do: o leitor desatento, que não estabelece associações entre tantas
“reminiscências”, perde significações sutis, que Virgílio deixa
depreender do confronto intratextual e intertextual, como temos ten-
tado demonstrar.
Um exemplo de como a retomada de material lingüístico do
próprio poema pode criar significações ocultas a quem não estabelece
a relação, captando e interpretando essa espécie de auto-alusão, é nos
dado por Knight. Nós o exporemos, desenvolvendo-o, porém, e apre-
sentando prova suplementar dessa ligação bem como o
aprofundamento de seu significado no contexto.
Quando o cavalo de madeira adentra os muros troianos, Virgílio
o caracteriza como fatalis machina.../feta armis (“engenho fatal.../

97
Notemos a expressiva paranomásia uolnus/uoltus; são expressões assim que fazem pa-
recer intraduzível, em todo seu vigor poético, uma obra como a Eneida.
98
Cremos que esse é um dos trunfos tangíveis da chamada crítica simbólica da Eneida,
tantas vezes demasiado inventiva em suas ilações... Além da obra de Pöschl já citada,
pode-se mencionar, com reservas, o estimulante livro indicado a seguir: THOMAS, Joël.
Structures de l’ Imaginaire dans l’Énéide. Paris, “Les Belles Lettres”, 1981.

– 140 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

grávido de armas”, II, v. 237-238); a comparação do bojo do cavalo


repleto de soldados com um animal grávido, expresso com extraordi-
nária eficácia poética em Virgílio, tem longa história; Eurípides talvez
tenha sido o pioneiro, com seu “cavalo prenhe de armas” (egku/ ) mon )
ippon
(/ teuxe/wn), nas Troianas, 11. Ênio utiliza a imagem, numa
tragédia, Alexandre, que menciona o “cavalo grávido de homens ar-
mados/ para destruir, com seu parto, a elevada Pérgamo” (...grauidus
armatis equus/ qui suo partu ardua perdat Pergama).99 Finalmente,
Lucrécio fala do “parto de gregos” (partu/ Graiugenarum) que incen-
diou Tróia (De Rerum Natura, I, v. 477-478).
A expressão virgiliana, que pode surpreender à primeira vista,
insere-se numa tradição literária precisa. Curiosamente, como obser-
va Knight,100 locução que a evoca reaparece no livro IX, na mesma
posição, isto é, em início de verso. Trata-se do episódio da abertura
das portas do acampamento troiano, ato de imprudência de Pândaro
e Bícias, que o fazem “confiados em suas armas”, freti armis (IX, v.
676), convidando voluntariamente os inimigos a penetrarem além
dos muros: ultroque inuitant moenibus hostem (ibidem).
Como se sabe, Turno entrará no acampamento e, se não fosse
pelos deslizes de um furor excessivo e cego, que o leva a ser imprevi-
dente, teria aniquilado os troianos, pondo fim à guerra; Virgílio ob-
serva, o que não foi notado por Knight:

ultimus ille dies bello gentique fuisset. (IX, v. 759)

“Aquele dia teria sido o último da guerra e da raça”.

Ora, tal afirmação evoca outra, do mesmo livro II:

Nos delubra deum miseri, quibus ultimus esset


ille dies, festa uelamus fronde per urbem. (v. 248-249)

99
Apud MACRÓBIO, Saturnais, VI, 2, 25.
100
Op. cit., p. 300-301.

– 141 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Aos templos dos deuses, nós, infelizes, para quem seria o último
aquele dia, velamos com festiva fronde através da cidade”.

A alusão é patente: ultimus ille dies (genti) / ultimus ille dies


(quibus, isto é, nobis, Troianis); mas se notem os tempos verbais – a
entrada do cavalo em Tróia seria o fim da cidade de Tróia e parecia
ser a ruína total dos troianos; por outro lado, a entrada de Turno no
acampamento dos mesmos troianos teria sido, não foi, a destruição
dos últimos remanescentes de Tróia, graças a um descuido do rútulo.
Knight observa:

“Ele pensava em uma tentativa de penetração nos muros da defesa. E


isto lhe recordou o cavalo de Tróia e lhe voltou, então, à mente feta
armis e fez sua escolha vocabular, operando, como de costume, uma
mudança mínima”.101

Escapa ao autor dessas linhas o principal: Virgílio procura suge-


rir que a incursão de Turno parece repetir em princípio o episódio do
cavalo; a guerra de Tróia, portanto, parece renovar-se tal qual no
Lácio, ao menos em seus episódios mais importantes. Entretanto, a
repetição é aparente, por uma série de motivos; aqui, o caráter sober-
bo e auto-suficiente do inimigo livra os troianos de uma situação que
lhes figurava tão fatal quanto a da última noite da cidade de Tróia. O
jogo alusivo é usado para ressaltar semelhanças e diferenças entre as
situações que o poeta confronta; assim, Virgílio parece dizer que a
história de fato não se repete; por vezes, superficialmente se tem a
impressão de repetição, falsa: ironia trágica para com os que se julgam
futuros vencedores dos outrora vencidos, para com Turno, falso alter
Aquiles...Os outrora derrotados são agora amparados pelo destino que
os reserva para uma tarefa grandiosa, os primeiros passos na fundação
dessa Tróia rediviva, e renovada, que se pretenderá Roma.
Nossa análise fornece fundamento suplementar para rejeitar a cor-
reção do texto para freti animis, justamente repelida por Forbiger,

101
Op. cit., p. 301.

– 142 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Conington e Knight. A possibilidade de se compreender armis como


ablativo de armus (“braço”), não de arma (“armas”), aventada como pos-
sível por Conington, deve ser veementemente descartada, a menos que
se queira, de maneira forçada, ver ambigüidade na expressão.
Este nos parece, em suma, um exemplo claro de como a análise
literária que leva em conta as várias facetas da intertextualidade pode
fornecer subsídios para a discussão filológica: aqui, trata-se de rejeitar
uma correção textual desnecessária, insciente, além disso, das “inten-
ções” mais sutis do texto.
Analisemos mais um caso de intratextualidade; desta vez, no
episódio do escudo, que apresenta Augusto no comando da luta con-
tra o Oriente capitaneado por Antônio e Cleópatra:

hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar


cum patribus populoque, penatibus et magnis dis,
stans celsa in puppi, geminas cui tempora flammas
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus. (VIII, v. 678-681)

Versos assim traduzidos por Odorico Mendes:

“Cá, n’alta popa, Augusto arrasta aos prelios


Senado e povo, os deuses e os penates;
De ambas as fontes ledo exhala flammas,
Na cabeça a luzir a estrella patria”.

A expressão stans celsa in puppi (“em pé, na alta popa”) compa-


rece algo modificada em IV, 554: Aeneas celsa in puppi (“Enéias, na
alta popa...”) e tornará em X, 261, também aplicada ao protagonista da
Eneida: stans celsa in puppi, clipeum cum deinde sinistra (“em pé, na
alta popa, quando com a mão esquerda seu escudo...”). A nosso ver,
mais que fórmula de tipo homérico, tal associação de Augusto a Enéias102
não é sem implicações. Não há de nos contradizer a observação de que

102
Tema tratado à exaustão na bibliografia crítica do poema. Mais recentemente, podem-
se ler as páginas de Moskalew (Op. cit., p. 136-139).

– 143 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

o mesmo sintagma, dessa vez sem modificação alguma, é aplicado a


Anquises em III, 527, pois se conclui que, pelo reemprego do material
lingüístico, Virgílio associa Augusto a seus ancestrais ilustres retratados
no poema. Não estamos dizendo uma obviedade – afinal, há tantos
indícios dessa associação – porque salientamos que a relação intratextual,
a via alusiva, vem apoiar a equiparação.
Não se trata de mera fórmula, mecanicamente repetida toda
vez que se menciona um chefe, troiano ou não, num navio; assim, no
livro V, os chefes (ductores) troianos são representados in puppibus
(v. 132), seu lugar de honra numa embarcação – ou seja, com um tipo
de expressão que não evoca em absoluto as mencionadas acima. Vir-
gílio, pois, incita à identificação de Augusto com os ancestrais da gens
Iulia também através da intratextualidade, em expressões que só a
esses personagens se aplicam.
O trecho do livro X acima transcrito traz ainda menção ao es-
cudo de Enéias (clipeum), forma sutil de interligar, na memória do
leitor, esse episódio com o do escudo. De fato, mais além, Enéias é
assim descrito:

Ardet apex capiti cristisque a uertice flamma


funditur et uastos umbo uomit aureus ignis. (X, v. 270-271)

“Arde o penacho do elmo em sua cabeça e da cimeira uma chama


irradia-se e o centro áureo do escudo vomita vastos fogos”.

Note-se:

VIII X
flammas flamma
uomunt uomit
uertice a uertice

Por outro lado, essa chama a circundar Augusto e Enéias evoca


a que surgira sobre os cabelos de Ascânio, um dos sinais celestes que
convencem Anquises a partir de Tróia saqueada pelos gregos:

– 144 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ecce leuis summo de uertice uisus Iuli


fundere lumen apex, tactuque innoxia mollis
lambere flamma comas et circum tempora pasci. (II, v. 682-684)

“Eis que, leve, do alto da cabeça de Iulo pareceu


irradiar luz uma crista de fogo e, inócua ao tato,
uma chama lamber-lhe os delicados cabelos e se alimentar ao redor
das têmporas”.

Além das expressões de uertice e flamma, temos fundere


(funditur, em X, 271), apex (também em X, 270) e circum tempora
(cui tempora, em VIII, 680), a estabelecer paralelo entre os três pas-
sos; obviamente, narra-se sempre o mesmo fenômeno, um prodígio
que une os destinos de Enéias, Augusto e Iulo-Ascânio, e se poderia,
então, alegar a identidade de situação para justificar a repetição lexical;
entretanto, quando prodígio similar ocorre com Lavínia (VII, v. 71-
77), é relatado com material lingüístico quase inteiramente diverso
(poucas as semelhanças: uisa, v. 73/ uisus, II, 682; iuxta genitorem, v.
72/ inter...ora parentum, em II, 681 – neste último caso, semelhança
de sentido, não de expressão).
Vemos, portanto, Enéias e seus familiares masculinos – o pai e o
filho – associados a Augusto. Lavínia é retratada como centro de um
prodígio que também a liga a esses personagens – mas, nesse caso, a
reiteração textual muito mais tênue torna a associação mais esgarçada.
Ainda no campo intratextual, a relação do imperador com o
herói troiano vai além; compare-se:

cum patribus populoque, penatibus et magnis dis (VIII, v. 679)

“...com os Pais e o povo, os penates e os grandes deuses”.

cum sociis natoque penatibus et magnis dis (III, v. 12)103

“...com os aliados e o filho e os penates e os grandes deuses”.

103
Não compreendemos por que a edição de Perret não coloca vírgula após natoque, se a
inseriu após populoque; mesma discrepância na edição de Mynors. As edições de Remigio
Sabbadini e de Paratore coerentemente apresentam vírgula em ambos os versos.

– 145 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Este último verso ocorre quando Enéias relata sua partida de


Tróia para o exílio (Feror exul in altum, III, 11). Além de o segundo
hemistíquio ser igual nos dois versos, no primeiro temos a mesma es-
trutura sintática (dois ablativos de companhia interligados pela
copulativa -que) e léxico semanticamente relacionável: sociis/populo;
nato/patribus. A comparação revela sutilezas: além dessa espécie de
inversão, patribus, em VIII, não se refere ao sentido familiar de “pais”
(nem teria sentido em latim falar nos patres de uma mesma pessoa:
parentes é a palavra adequada), mas aos senadores que acompanha-
vam Augusto em Ácio. Não seria descabido supor que aqui Virgílio
força ao reconhecimento da carga afetiva contida, seja como for, em
patribus, isto é, revitaliza sua etimologia pelo confronto com o passo
retomado, onde a palavra equivalente é nato! Desse modo, também
por via intratextual, o poeta contrasta, na descrição do escudo, o con-
texto familiar e nacional que cerca Augusto à caótica associação de
seu rival Antônio, que tem a seu lado uma rainha egípcia, o que o
próprio texto qualifica de nefas (v. 688)104, povos bárbaros e deuses
monstruosos.105 De nossa parte, a convivência com a obra virgiliana
nos estimula a tal leitura, pois o poeta se revela mestre nessas alusões
sub-reptícias, espécie de puzzles refinados, dirigidos ao leitor “aten-

104
Aberração para os Romanos não só por se tratar de uma bárbara (e todo o episódio
elabora a oposição entre o mundo civilizado de Augusto e a barbárie capitaneada por
seu adversário), mas por ser mulher; certamente Antônio deveria parecer, na visão
propagada pela ideologia augustana, tão uxorius quanto o negligente Enéias do livro
IV...Os estudiosos de Virgílio têm apontado o primeiro motivo (aliança com uma es-
trangeira) como motivação da censura explícita do poeta; Sérvio, porém, aponta como
razão maior o fato de uma mulher acompanhar o exército (mulier castra sequebatur),
apenas roçando, a nosso ver, o dado a levar em conta – a reprovação romana à subor-
dinação do homem à mulher, aqui levada a extremas conseqüências, pois que se trata
de partilhar a condução da guerra, assunto masculino por excelência na ideologia ro-
mana. Há que valorizar uma e outra explicação, em nada excludentes. Camões parece-
nos explicitar a dependência, considerada vergonhosa, de Antônio, mostrando o capi-
tão “Romano injusto... preso da Egípcia linda e não pudica” (Os Lusíadas, II, 53, v. 4-8;
modernizamos a ortografia da edição de Epifânio Dias).
105
Boa análise da ideologia que ressuma da descrição da batalha de Ácio no escudo em
QUINT, David. Epic and Empire. Princeton, Princeton University Press, 1993, p. 21-48.

– 146 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

to”. Assim, Augusto tem a seu lado políticos que são como familiares
seus e, como aliado, todo um povo (populo/sociis), como chefe prote-
tor de uma comunidade em peso unida em torno a si106 – eis as
inferências extremas do jogo alusivo.
Neste ponto, faz-se necessária uma advertência. Não cremos
que se deva ler a Eneida como “alegoria” cerrada de fatos contempo-
râneos à época do poeta, como se começou a fazer desde cedo e ainda
hoje se faz; a epopéia não é um “roman à clef”, e interpretá-la nesse
sentido leva aos absurdos de um Drew, que chega a identificar Acates
com Agripa, Mnesteu com Mecenas, Mezêncio com Sexto Pompeu...107
Edoardo Coleiro, que nos fornece essas referências, já que não tive-
mos acesso ao velho livro de Drew (criticado, aliás, em várias outras
obras de estudiosos da Eneida), não aceita esses desvios interpretativos
mas propõe também sua leitura alegórica; em livro recente, chega a

106
O leitor é levado a se esquecer de que se tratava de guerra civil e, como apregoava a
ideologia augustana, associa o conflito a uma guerra externa, com as forças do Ociden-
te, representantes da ordem, combatendo contra as forças desagregadoras do Oriente.
Veja-se QUINN. Idem ibidem. É verdade que, no meio da luta, Virgílioretrata a Dis-
córdia junto a Marte, as Dirae e Belona (v. 700-703), em alusão a guerras civis, mas,
após mencionar a presença dessas divindades, o poeta introduz Apolo, que intervém
para secundar a ação de Augusto. Para nós, habilíssimo escamoteamento da verdade
incômoda para a ideologia augustana, já que Otávio aparece como que combatendo
contra a própria guerra civil, como se esta fosse, de fato, um flagelo das hostes de
Antônio, um inimigo externo como os povos orientais que fogem diante da interven-
ção do deus. Corroborando essa leitura, temos, além da união concorde de todo o
Estado – povo e Senado – ao lado de Augusto, a descrição do triunfo do vencedor: toda
a cidade fortemente unida na alegria geral, no aplauso e no agradecimento aos deuses
(v. 717-718), ambiente muito diverso do que se esperaria de um quadro de pós-guerra
civil. Para interessante contraste, recordemos o final dramático e lutuoso do De
Coniuratione Catilinae, de Salústio (LXI), em que à alegria do exército vencedor se
mesclam dor e luto (Ita uarie per omnem exercitum laetitia, maeror, luctus atque gaudia
agitabantur: “Assim, por todo o exército, propalavam-se, confundidos, a alegria, a tris-
teza, o luto e o júbilo”), por encontrarem-se entre os que tombaram amigos e familiares.
Em Virgílio, que tantas vezes lhe dá voz, nenhuma concessão ao sofrimento dos venci-
dos nesse episódio triunfalista.
107
Apud COLEIRO, Edoardo. Tematica e Struttura dell’ Eneide di Virgilio. Amsterdam,
Grüner, 1983, p. 108.

– 147 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

dizer, por exemplo, que a “guerra de Turno contra Enéias (...) repre-
senta a guerra civil entre Otaviano e Antônio”,108 além de estabelecer
a equação Enéias= Augusto, só aceitável se relativizarmos o sinal
gráfico, isto é, rejeitarmos a equiparação absoluta, e Amata como “ale-
goria de Cleópatra”!109
É evidente que a Eneida contém muitas alusões a fatos contem-
porâneos; aliás, várias referências devem a nós ser obscuras por causa
da distância que nos separa da época de Virgílio; é mais evidente ain-
da que Enéias lembra Augusto em uma série de traços, mas querer
interpretar a sua saga como relato criptográfico das gestas do impera-
dor é, a nosso ver, absurdo e só pode mesmo suscitar os equívocos dos
estudiosos “alegorizantes” mais radicais. Preferimos a cautela de um
Camps, que, apresentando alguns dos “ecos de história romana” (é o
título de um capítulo de sua obra sobre a Eneida), reconhece que tais
“reflexos, normalmente, não são o resultado de um processo sistemá-
tico”.110
Concluindo, também por via intratextual Virgílio associa
Augusto a Enéias como a Anquises e Ascânio, luminares da gens;
tenhamos em mente, todavia, que a epopéia do protagonista exalta o
fundador do império de forma muito mais sutil e profunda, literária,
do que o faria uma narrativa disfarçada e fiel de sua trajetória política.

5. AUTOTEXTUALIDADE

Outro tipo de intertextualidade consiste na autocitação, isto é,


na evocação, em dada obra, de uma passagem de outra obra do mesmo
autor; ainda que tal denominação não seja ideal, poderíamos chamá-la
autotextualidade. De novo, cautela se faz necessária: distinguir-se-á a

108
Op. cit., p. 19.
109
Idem, p. 21.
110
CAMPS, W.A. Introduzione all’Eneide. Milano, Mursia, 1990, p. 128.

– 148 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

coincidência de expressão, fruto da unidade intrínseca de um mesmo


estilo, da referência pretendida, provocada, e criadora de sentido; flui-
dos, porém, são os limites entre uma classe e outra.
Muitos estudiosos têm apontado a semelhança entre o episódio
da perda de Creúsa, que ocupa o final do livro II da Eneida (na verda-
de, não constitui o último narrado no livro, mas é o mais longamente
tratado nessa parte final) e o mais que célebre episódio da perda de
Eurídice por Orfeu, contado no livro IV das Geórgicas. Se Orfeu des-
ce ao Hades para tentar resgatar a amada, Enéias volta a Tróia em
chamas à procura da esposa perdida no caminho da fuga; e o mesmo
destino sela uma e outra empresa: a impossibilidade de trazer de volta
a esposa (coniunx, nos dois episódios). Virgílio nos estimula a compa-
rar – e confrontar – as situações por que passam um e outro através da
alusão contínua. Note-se:

Iamque propinquabam portis omnemque uidebar


euasisse uiam, subito cum creber ad auris
uisus adesse pedum sonitus (En. II, v. 730-732)

“E já me aproximava das portas e parecia ter completado,


são e salvo, o percurso, quando de repente aos meus ouvidos
pareceu chegar, insistente, um som de passos”.

Iamque pedem referens casus euaserat omnis


redditaque Eurydice superas ueniebat ad auras
pone sequens (namque hanc dederat Proserpina legem),
cum subito incautum dementia cepit amantem. (Geórg. IV, v. 485-
488)

“E já, voltando sobre seus passos, escapara a todos os riscos


e, de volta, Eurídice caminhava em direção às súperas auras,
seguindo-o atrás (pois tal condição impusera Prosérpina),
quando, de repente, o desatino se apossou do incauto amante”.

Compare-se: iamque/iamque; omnem/omnis; euasisse/euaserat;


subito cum/cum subito; ad auris/ad auras. Este último paralelo é inte-
ressante: trata-se de palavras distintas, de auris (ouvido) e aura (aura,
brisa), que Virgílio associa, pela semelhança fônica e integração ao

– 149 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

contexto. Note-se também o efeito de inversão: euasisse uiam/casus


euaserat; subito cum/cum subito – figuras que poderíamos denominar
“quiasmos” numa gramática intertextual.
Destaque merece a expressão pone sequens: é assim que Creúsa
seguirá Enéias (pone subit coniunx, “atrás segue minha esposa”, v. 725).
Sequens/subit: o poeta insiste na reminiscência fônica (pone s...)111.
Que Virgílio confronta, e provoca o leitor a fazê-lo, evidencia-
se em brilhante alusão à diferença de motivos: Enéias perde a esposa
por não ter olhado para trás quando da precipitação da fuga; Orfeu,
como se sabe, por ter feito exatamente o oposto:

Nec prius amissam respexi animumue reflexi (En. II, v. 741)

“Não me dei conta de tê-la perdido nem prestei atenção...”

immemor heu! uictusque animi respexit (Geórg. IV, v. 491)

“Esquecido, ai!, e vencido em seu coração, olhou para trás...”

A tradução do verso da Eneida escamoteia a presença do mes-


mo verbo respicere: “olhar para trás”, “voltar a atenção”.112 Seja como
for, Enéias não pára nem lança seu olhar à esposa – e assim a perde;
Orfeu pára e, infringindo a norma de Prosérpina, dirige o olhar a
Eurídice – e assim a perde. Notemos: nec respexi/ respexit, paralelo
reforçado pela repetição animum/animi, casos diversos do mesmo subs-
tantivo. Insistimos: a coincidência verbal não é fortuita nem fruto de
redação paralela a ser modificada pelo autor em sua revisão frustrada
da Eneida. A crítica filológica não deve ceder à tentação de tais equí-

111
Virgílio parece ter evitado usar uma forma de sequi como o particípio sequens das
Geórgicas, por já ter empregado o mesmo verbo um verso acima (sequiturque, em
referência a Iulo – II, v. 724). É um exemplo de sua notória predileção pela uariatio.
112
Numa tradução francesa literal, nec respexi é assim vertido: “Et je ne tournai-pas-la-
tête-pour voir” (sic). In: VIRGILE. Livres I, II et III de l’Énéide. Expliqués littéralement
par M. Sommer. Paris, Hachette [s.d.], p. 89.

– 150 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

vocos; de fato, temos evocação insistente, que atravessa todo o episó-


dio e sotopõe o texto das Geórgicas sob o da Eneida, criando um
intertexto, um texto bidimensional, multissêmico, elíptico.
Quando Enéias retorna a Tróia em busca de Creúsa, faz ecoar
por todas as ruas da cidade seus lamentos:

impleui clamore uias, maestusque... (II, v. 769)

“Enchi com meu clamor as ruas e aflito...”

No símile aplicado à dor de Orfeu, fala-se em Filomela, que


chora a perda de seus filhotes:

et maestis late loca questibus implet. (Geórg. IV, v. 515)

“...e enche de aflitos gemidos as paragens ao longe”.

Compare-se: impleui/implet; maestus/maestis.


Enéias chama sua esposa pelo nome várias vezes:

maestusque Creusam
nequiquam ingeminans iterumque iterumque uocaui. (v. 769-770)

“e aflito Creúsa
em vão, sem cessar, de novo e de novo chamei”.

Orfeu, por sua vez, Eurydicem...uocabat (v. 526).


O troiano é chamado pela sombra de Creúsa dulcis coniunx
(v. 777); no episódio de Orfeu, Proteu, em efusão lírica (é este perso-
nagem o narrador), menciona a dor daquele poeta pela perda da es-
posa, que o leva a invocá-la constantemente em seu canto:

te, dulcis coniunx, te solo in litore secum,


te ueniente die, te decedente canebat. (v. 465-466)

“A ti, doce esposa, a ti, no litoral deserto, consigo mesmo,


a ti, ao sol nascente, a ti, no poente, cantava”.

– 151 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Com “nascente”e “poente”, tentamos toscamente reproduzir um


efeito poético do original, a repetição fônica da segunda pessoa que
ecoa pelos versos: te (quatro vezes), ueniente, decedente: belíssimo
exemplo de um recurso que já mencionamos, presente no proêmio do
De Rerum Natura, na tradução catuliana da ode de Safo (poema LI),
no livro IV da Eneida (v. 305-330), em Tibulo (I, 1, v. 59-60) – comum
nos hinos religiosos, o que explica sua presença na invocação a Vênus
de Lucrécio, nas preces, e, como se pode ver pelos outros exemplos, na
poesia amorosa113 (e logo veremos que o episódio de Dido, no livro IV,
está impregnado de linguagem típica da elegia amorosa latina).
Outro paralelo temos na indagação reprovadora que a amada
dirige a um e outro:

Quid tandem insano iuuat indulgere dolori...? (En. II, v. 776)

“Que prazer tão grande em ceder a uma dor insana?”

quis tantus furor? (Geórg. IV, v. 495)

“Que tamanho furor é esse?”

Compare-se: quid/quis; tantum/tantus; insano/furor.


Ambas as esposas não podem sair de sua condição, impedidas
uma pelo próprio Júpiter, outra por Caronte, o guardião do Orco:

nec te comitem hinc portare Creusam


fas, aut ille sinit superi regnator Olympi. (En. II, v. 778-779)

“Não é lícito levar Creúsa daqui como tua companheira


nem o permite o soberano do alto Olimpo”.

nec portitor Orci


amplius obiectam passus transire paludem. (Geórg. IV, v. 502-503)

113
Trata-se do que os alemães denominam “Du-Stil”, que insistiria sobre o prestígio do
destinatário, segundo ÉVRARD-GILLIS. La Récurrence Lexicale dans l’Oeuvre de
Catulle. Paris, “Les Belles Lettres”, 1976, p. 75.

– 152 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“Nem o barqueiro do Orco


deixa que se atravesse mais o pântano a sua frente”.

Além da reiteração de nec, temos sintagmas construídos seme-


lhantemente, em posição final nos versos, com sons que se ecoam:
regnator Olympi/ portitor Orci, semanticamente afins: perífrases que
definem o papel das duas divindades, uma comandando as regiões
superiores, outra as inferiores; atente-se também à sinonímia sinit/
passus.
Ambas as mulheres se despedem com um Iamque uale (En. II,
v. 789; Geórg. IV, v. 497). Enéias e Orfeu tentam inutilmente abra-
çar a sombra em que se transformaram suas respectivas esposas:

Haec ubi dicta dedit, lacrimantem et multa uolentem


dicere deseruit, tenuisque recessit in auras.
Ter conatus ibi collo dare bracchia circum;
ter frustra comprensa manus effugit imago. (En. II, v. 790-793)

Em Odorico Mendes:

“Nisto, o fallar me corta, e em auras tenues


Esvaecida, ao choro meu furtou-se.
Tres vezes fui lançar ao collo os braços,
Tres presa embalde se desfez a imagem”.

Nas Geórgicas:

Dixit et ex oculis subito, ceu fumus in auras


commixtus tenuis, fugit diuersa, neque illum
prensantem nequiquam umbras et multa uolentem
dicere praeterea uidit... (IV, v. 499-502)

Odorico assim traduz:

“Aqui, sumiu-se em fumo, esvaecida


Num ar subtil; nem poude ver o amado,

– 153 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Que abraçando phantasmas almejava


Muito falar...”

Note-se: dicta dedit/dixit; et multa uolentem dicere (em am-


bos, na mesma posição no verso); tenuis in auras/in auras...tenuis;
frustra comprensa/prensantem nequiquam; effugit/fugit. De passagem,
observemos que algumas reiterações, confrontadas, criam um efeito
de “inversão”, obviamente só acessível à leitura alusiva.
É comum em Virgílio a aproximação de episódios ou passagens
em que o poeta parece vislumbrar semelhanças, unindo, por exem-
plo, determinado passo da Ilíada e da Odisséia num só hipertexto;
aqui, uma situação similar deve ter incitado à comparação, facilitada
e induzida por um dado curioso que os comentadores da Eneida apon-
tam: uma tradição não seguida por Virgílio denominava justamente
Eurídice a esposa de Enéias! Nas palavras de Jacques Heurgon:

“É evidente que a homonímia C.(scilicet Creúsa)/Eurídice inspirou a


Virgílio esta reprodução”.114

Mas é preciso ressaltar a criação de subtexto que essa retomada


propicia: Enéias como Orfeu, tendo de suportar como este as injunções
de um fatum exigente; no respectivo contexto, veremos que um está
destinado ao sucesso, por sua obediência aos ditames divinos; o outro
pateticamente perde a si mesmo além da amada, como dirá Eurídice
(et me...et te perdidit...?,v. 494), por não ter respeitado a “lei de
Prosérpina”, não possuindo, pois, aquela pietas irrestrita que distin-
gue Enéias. A seqüência dos dois textos revela, no confronto, uma
significativa oposição: Orfeu se debate na aflição, em discurso indire-
to livre (reportado pelo narrador, Proteu):

Quid faceret? quo se rapta bis coniuge ferret?


Quo fletu Manis, quae numina uoce moueret? (Geórg. IV, v. 504-505)

114
“Reprodução” é, no original italiano, doppione. Heurgon sumariza a comparação que
se tem feito entre os dois episódios. Ver Enciclopedia Virgiliana, tomo I, p. 932, verbete
Creusa.

– 154 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“Que fazer? Para onde se lançar, arrebatada pela segunda vez sua
esposa?
Com que pranto comover os Manes, que numes, com sua voz?”

No caso de Enéias, nenhuma efusão patética, após o último


encontro com a esposa que nunca mais verá; sua subjetividade se
oculta na ação, objetivamente narrada pelo próprio protagonista; é
como se o personagem tivesse de fato cedido aos destinos, conforme
Creúsa o incitava a fazer, e assumido, na concretude da ação prática,
as funções de chefe de sua comunidade, transcendendo (não será a
primeira vez...) sua individualidade:

Sic demum socios consumpta nocte reuiso. (En. II, v. 795)

“Assim, no fim da noite volto a ver os companheiros”.

Final demasiado frio para o episódio, numa perspectiva senti-


mental, romântica; final digno de um herói que se sacrifica individu-
almente pelo cumprimento de uma missão divina. Enéias é o chefe de
um povo em exílio; no exercício dessa função, deixa em segundo pla-
no seus afetos para revelar-se na ação salvadora; lembremos de suas
palavras aos companheiros após a tempestade que quase destruiu a
todos, narrada no livro I; o herói tenta tranqüilizar seu povo e, para
tal, reprime no peito a dor profunda que no momento o invadia:

Talia uoce refert curisque ingentibus aeger


spem uoltu simulat, premit altum corde dolorem. (I, v. 208-209)

“Tais palavras pronuncia e, triste com as ingentes preocupações,


simula a esperança no semblante, contém no coração a dor profunda”.

Quanto a Orfeu, entrega-se, após a perda definitiva de Eurídice,


ao lamento incessante, sozinho (em contraste com os socios da Eneida),
em meio a uma dura natureza:

Solus Hyperboreas glacies Tanaimque niualem


aruaque Riphaeis numquam uiduata pruinis

– 155 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

lustrabat, raptam Eurydicem atque inrita Ditis


dona querens (Geórg.IV, v. 517-520)

“Sozinho, os gelos hiperbóreos e o nevoso Tânais


e os campos nunca desprovidos das geadas dos Rifeus
percorria, a perda de Eurídice e de Dite os vãos
dons lamentando”.

Por via intertextual, ou, mais especificamente, autotextual, acen-


tua-se um aspecto da personagem Enéias: sua submissão incondicio-
nada ao destino, que requer autocontenção em vista de fins maiores –
eis um herói que, sofrendo e se lamentando no seu íntimo, no entanto
objetivamente age.
Deixamos para o final da análise desse episódio o dado a nosso
ver mais “inquietante”do confronto intertextual; Virgílio explicita a
culpa de Orfeu:

cum subita incautum dementia cepit amantem (Geórg. IV, v. 488)

Ora, no episódio da perda de Creúsa, vemos que Enéias comete


um erro fatal, por ele atribuído a um nume hostil (II, v. 735): em sua
precipitação, afasta-se dos caminhos conhecidos (II, v. 736-737) –
avulta a possibilidade de que a esposa se tenha perdido nesse momen-
to, por descuido; o troiano, então, mostra-se tão incauto quanto Orfeu!
É verdade que a própria sombra de Creúsa explica o acontecimento
como estratégia do destino para ali retê-la, mas não deixa de surpre-
ender que o herói seja mostrado em situação tão delicada, nesse as-
pecto comparável com a de Orfeu. No capítulo seguinte, quando ana-
lisarmos o livro IV, voltaremos à questão; veremos que Enéias parece
expor o ocorrido com um certo sentimento de culpa que a Dido das
Heróidas de Ovídio explorará...
Outro relevante caso de autotextualidade comparece num símile
do livro I; Enéias admira a construção de Cartago, então em anda-
mento, e o poeta descreve o fervilhar do trabalho, comparando ope-
rários a abelhas:

– 156 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Qualis apes aestate noua per florea rura


exercet sub sole labor, cum gentis adultos
educunt fetus, aut cum liquentia mella
stipant et dulci distendunt nectare cellas,
aut onera accipiunt uenientum, aut agmine facto
ignauom fucos pecus a praesepibus arcent;
feruet opus redolentque thymo fragrantia mella. (I, v. 430-436)

Em Odorico Mendes:

“Taes lidam pelo prado ao Sol abelhas


Na florea primavera, emquanto ensaiam
O adulto enxame, ou doce fluido espessam,
do nectar flavo retesando as cellas;
Emquanto a carga das que vem recebem,
Ou em batalha expulsam da colmêa
Os zangãos, gente ignava; a obra ferve,
A tomilho recende o mel fragrante”.

Além de uma reminiscência homérica (Ilíada II, v. 87-93),115


temos, aqui, uma retomada significativa do episódio das abelhas de-
senvolvido no livro IV das Geórgicas. Citam-se trechos de versos ou
versos inteiros sem modificação alguma:

cum gentis adultos / educunt fetus – Geórg. IV, v. 162b-163a;


aut onera accipiunt uenientum, aut agmine facto – Geórg. IV, v. 167;116
ignauom fucos pecus a praesepibus arcent – Geórg. IV, v. 168;
Feruit opus redolentque thymo fragrantia mella – Geórg. IV, v. 169.117

A edição Perret da Eneida, que vimos seguindo, e a de Saint-


Denis para as Geórgicas, ambas integrando a coleção da série “Les
115
Veja-se MACRÓBIO, Sat. V, 11, 1. Em Homero, num símile, os soldados gregos são
comparados com abelhas; daqui o ponto de partida para a concepção do símile; de
resto, aestate noua per florea rura evoca e)p a sin (Il. II, v. 89),
) /) nqesin eiarinoi=
)
“sobre as flores primaveris”. Macróbio cita o paralelo como exemplo da ocasional supe-
rioridade estética de Virgílio sobre Homero.
116
Na edição das Geórgicas que seguimos, não há vírgula antes de aut.
117
Nas Geórgicas, vírgula depois de opus.

– 157 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Belles Lettres”, além das pequenas diferenças que apresentamos em


nota, discordam, neste último verso, mais seriamente; a primeira traz
feruet, a segunda feruit; é óbvio que esse caso de intertextualidade
induz a homogeneizar a forma verbal; o fato de que a discrepância
ocorra na mesma série de textos criticamente editados, sem comentá-
rio especial sobre a passagem, é digno de reprovação. A descoberta da
alusão deve trazer, mais uma vez, elementos para a crítica filológica.
Há versos reproduzidos na Eneida com ligeira modificação:

educunt fetus, aut cum liquentia mella – Geórg.: educunt fetus; aliae
purissima mella, v. 163;
stipant et dulci distendunt nectare cellas – Geórg.: stipant et liquido
distendunt nectare cellas, v. 164.

Podemos dizer que o símile da Eneida, com exceção de seu iní-


cio (Qualis apes aestate noua per florea rura/ exercet sub sole labor),
que introduz a comparação, é todo realizado com elementos da passa-
gem das Geórgicas.
Dir-se-á, talvez, que Virgílio, ao descrever algo semelhante ou
idêntico, tem tendência a se repetir; na verdade, essa explicação é
demasiado ingênua, pois não se trata de repetição; o confronto cria
curiosa relação: nas Geórgicas, como todo leitor do poeta reconhece,
as abelhas são descritas como se constituíssem uma comunidade aná-
loga à humana (daí a possível interpretação simbólica ou alegórica do
episódio). Ali, o vocabulário da política e da sociedade humana e,
particularmente, romana, aparece com freqüência; veja-se: consortia
tecta / urbis habent magnisque agitant sub legibus aeuom / et patriam
solae et certos nouere Penatis (v. 153-155); foedere pacto (v. 158);
domorum (v. 159); gentis (v. 162), etc.; sobretudo: (paruosque)
Quirites (v. 201), apelativo que designava os cidadãos romanos.
Enquanto as abelhas são assim comparadas (mas sem uso do sí-
mile épico, de forma menos explícita) a homens que trabalham para a
comunidade, na Eneida os homens é que são comparados com abe-
lhas, dessa vez através do símile: curioso processo de inversão, se pen-

– 158 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

sarmos numa gramática intertextual que avalie o confronto entre os


dois textos. Certamente Virgílio contava que seu leitor fruiria desse
prazer refinado de apreciar a habilidade e fineza com que o poeta cita
a si mesmo, adaptando, porém, suas próprias palavras ao novo con-
texto e efetuando a inversão entre comparante e comparado: das abe-
lhas “humanizadas” do poema didático aos homens semelhantes a
abelhas do poema épico.118
É possível e justificável que o leitor, a partir do paralelo estabe-
lecido, aprofunde sua leitura; nas Geórgicas, o poeta desenvolve a
noção de uma realeza a dominar a colmeia (cerea regna, IV, v. 202);
na Eneida, inisitir-se-á no epíteto de regina, constantemente aplica-
do a Dido.119 Por outro lado, nas Geórgicas, Virgílio apontará os efei-

118
Outro exemplo semelhante, envolvendo, também, uma retomada, na epopéia, do poe-
ma anterior: no livro XII da Eneida, Turno (v. 103-106) e Turno e Enéias (v. 715-724)
são comparados a touros; no primeiro caso, o rútulo é comparado ao animal que se
prepara para um combate; no segundo, rútulo e troiano a animais em disputa pelas
fêmeas do rebanho, em versos que ecoam, como os comentadores observam (Conington,
por exemplo), uma passagem das Geórgicas (III, v. 219 e ss.) onde é implícita a
humanização de touros descritos na mesma situação. Na epopéia, símiles que compa-
ram homens a animais, técnica homérica tradicional; nas Geórgicas, humanização
implícita dos últimos, para ilustrar o poder universal do impulso amoroso. Interessa-
nos ressaltar que o elo a ser feito entre as duas obras não é incitado apenas pela relação
de inversão na técnica da similitude, mas, sobretudo, pelos vários ecos textuais que
unem, na memória do leitor intertextual, os textos e contextos. Como fizemos acima
com a descrição das abelhas nas Geórgicas, poderíamos também aqui apontar os vários
índices da antropomorfização dos touros nesse poema; citemos somente este, bastante
eloqüente: o animal vencido se retira “dos reinos de seus ancestrais” (regnis excessit
auitis, III, v. 228). A relação “autotextual” incita-nos a comparar: como os touros das
Geórgicas, os heróis da Eneida também travam luta pelo poder, por um regnum, de
certa forma consubstanciada na disputa pela mão da filha de Latino, por mais que
oblitere esse aspecto a transcendentalização do papel de Enéias, artífice de uma missão
divina, secundada pelos destinos. Pode-se ver uma análise da inter-relação entre esses
textos dos dois poemas virgilianos em NEWMAN, J. The Classical Epic Tradition.
Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 1986, p. 131-133.
119
Só no livro I, que é o que nos ocupa aqui, temos: regina, nos versos 303, 496, 522, 697,
728; reginam, em 594, 674; além disso, note-se: regit, no verso 340; in regia, v. 631;
regali luxu, v. 637; regalis mensas, v. 686.

– 159 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

tos devastadores sobre a colmeia da perda do “rei” (sabe-se que só no


século XVII se descobrirá que não se trata de “rei”, mas de “rai-
nha”...):120

Rege incolumi mens omnibus una est;


amisso rupere fidem constructaque mella
diripuere et cratis soluere fauorum. (Geórg. IV, v. 212-214)

“Incólume o rei, todas têm um só desígnio;


perdido, rompem o trato e os méis fabricados
saqueiam e dissolvem as celas dos favos”.

Da mesma forma, a notícia da morte da rainha Dido provoca


efeito comparável ao da destruição de Cartago ou Tiro pelos inimi-
gos:

non aliter quam si immissis ruat hostibus omnis


Karthago aut antiqua Tyros, flammaeque furentes
culmina perque hominum uoluantur perque deorum. (En. IV,
v. 669- 671)

“Como se, ao assalto dos inimigos, ruísse inteira


Cartago ou a antiga Tiro, e as flamas furiosas
pelos tetos dos homens e dos deuses se alastrassem”.

Como deixam ver os versos das Geórgicas, o destino de toda a


colmeia está ligado ao de seu “rei”; quando o governante está bem,
ela trabalha unida pelo objetivo comum; ora, tendo lido o episódio de
Dido no livro IV, lembrando-se do símile, em leitura retrospectiva,
diante do estado de dissolução e negligência com que a paixão obses-
siva da rainha contamina seus próprios súditos,121 como não recordar

120
Ver LYNE. Further Voices in Vergil’s Aeneid, p. 7, nota 9.
121
Non coeptae adsurgunt turres, non arma iuuentus
exercet portusue aut propugnacula bello
tuta parant; pendent opera interrupta minaeque
murorum ingentes aequataque machina caelo. (IV, v. 86-89)

– 160 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

a associação virgiliana entre o comandante real e seu povo, as abelhas


e seu “rei”?
Tal leitura fica como sugestão: não há mais elementos formais
sólidos para confirmá-la; entretanto, o efeito de inversão por nós apon-
tado é resultado seguro da análise intertextual – mais que revelar a
habilidade técnica do poeta, possibilita um efeito alusivo de contraste
a que Virgílio sutilmente conduz o leitor.

6. “CORREÇÃO” ESTÉTICA

Retomando modelos, o poeta pode resgatá-los desviando-se,


porém, em certos aspectos estilísticos e fazendo sobressair a diferença
do confronto entre seu hipertexto e o hipotexto evocado. Trata-se do
que poderíamos denominar “correção estética” do precursor, um dos
pontos mais difíceis de detectar e interpretar no domínio intertextu-
al,122 não só porque se devem distinguir as intenções do poeta, avaliar
que padrão estilístico pode estar rejeitando como inadequado a seus
ideais artísticos, mas também porque a obra dos poetas arcaicos recu-
perados por Virgílio nos chegou em estado fragmentário. Antes de
mais nada, esse desvio do original não invalida o valor de homena-
gem da citação; o poeta venera os modelos que incorpora, ainda quan-
do opera sobre eles a “retificação” estilística que lhe parece adequada.
Podemos denominar o processo como um clinamen em nível formal,
para empregar a nomenclatura de Bloom:

“Não mais se levantam as torres iniciadas, a juventude nas armas


não se exercita nem os portos e os baluartes para a guerra
fortificam; pendem, interrompidos, os trabalhos e as ameaças
Ingentes dos muros e o engenho que atingia o céu”.
122
Será preciso observar que esse aspecto da arte alusiva escapa ao nosso interesse central
que é o da geração de sentidos na leitura intertextual? Do confronto com um predeces-
sor, surge, sim, um certo efeito de sentido, mas, de certa forma, metalingüístico, exte-
rior aos elementos internos da obra.

– 161 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Um poeta se desvia ao ler o poema de seu precursor de tal forma a


executar um clinamen com relação a ele. Isto aparece como um movi-
mento corretivo em seu próprio poema, sugerindo que o poema precur-
sor fora acurado até certo ponto, mas deveria, então, ter se desviado,
precisamente na direção em que se move o poema”.123

Um exemplo em miniatura temos no livro VII da Eneida. Em


operação simples de “correção”, o poeta omite um dado do precursor
que está imitando; para o leitor que tem em mente o trecho original,
ressalta-se a escolha feita pelo poeta. Eis os versos, que contêm um
símile a ilustrar a cólera terrível de Turno (amor ferri et scelerata
insania belli/ ira super), nele incitada por Alecto:

magno ueluti cum flamma sonore


uirgea suggeritur costis undantis aeni
exsultantque aestu latices, furit intus aquai
fumidus atque alte spumis exuberat amnis,
nec iam se capit unda, uolat uapor ater ad auras. (VII, v. 462-466)

A tradução de Odorico é rica em sonoridade, ritmo e concisão:

“Qual da undante caldeira, quando ao bojo


Lignea flamma se applica estrepitosa,
A agua enfurece e ferve, em bolhas salta;
Fumea espumante a enchente, sem conter-se
Trasborda e vai-se em turbidos vapores”.

Na Ilíada, Homero compara o rio Escamandro à água fervente;


por certo, com a menção de amnis,124 Virgílio acena, cúmplice, ao
leitor informado: está a imitar aquela passagem; entretanto, retira do
símile o detalhe mais realístico, como se verá; em Homero:
123
BLOOM, Harold. Op. cit., p. 43.
124
Literalmente “rio”; mas a expressão aquai amnis é geralmente traduzida, como em Odorico,
de uma forma que escamoteia esse aceno ao passo homérico: “masse liquide” (Bellessort,
Perret); “fiotto dell’acqua” (Canali); “fiotto ondoso”(Bacchielli). Notemos também intus
(“dentro”), retomando o homérico e)n/ don e a presença de oração completa em final de
verso e de símile, destacada: uolat uapor ater ad auras/ ze /e d )u(\dwr.

– 162 –
)
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

w(j de\ le/bhj zei= e)/ndon e)peigo/menoj puri\ poll%=,


kni/shn meldo/menoj a(palotrefe/oj sia/ loio,
pa/ ntoqen a) mbola/dhn, u(po\ de\ cu/la ka/gkana kei=tai,
w(/j tou= kala\ r (e/eqra puri\ fle/geto, ze/e d )u(/dwr! (Il. XXI,
v. 362-365)

Na tradução não muito fiel de Carlos Alberto Nunes:

“Tal como a banha de um gordo cevado depressa se funde


num caldeirão colocado nas chamas de lenha bem seca,
e, pela ação do calor, cresce e ameaça ao redor derramar-se:
ferve, desta arte, a corrente nas chamas vivazes de Hefesto.”

Virgílio suprime o detalhe da banha do porco a se derreter, esse


“wenig erhabene Detail”, inadequado ao estilo do poeta, como obser-
va Pöschl;125 e não se pode esquecer a crítica que sobre o texto homé-
rico se vinha fazendo, sobretudo em época alexandrina: certamente
não deixaria de exercer influência sobre Virgílio.
Referendando tal interpretação, é notável, neste trecho da
Eneida, o acúmulo de formas da linguagem mais elevada, afastada da
expressão prosaica; Conington fala em “dignified language”:126 sonore,
“doublet poétique de sonus”;127 flamma uirgea, com a ousadia do
epíteto (literalmente, algo semelhante ao excelente “chama lígnea”
de Odorico; mesmo processo em VIII, v. 694: stuppea flamma, “cha-
ma de estopa”, ou, na versão de Odorico: “fachos estupeos”); aeni;
latices, “termo exclusivamente poético e nobre”;128 aquai, solene
genitivo arcaico, muito empregado por Ênio e Lucrécio; amnis, evita-
do na prosa. Também a ordem das palavras é refinada: o sujeito flamma
inserido entre o sintagma magno sonore; a enfática posição inicial do
verbo em exsultant...furit... e uolat...; bem como a posição em final de
oração dos sujeitos (latices,amnis, unda) em três versos seguidos.

125
Op. cit., p. 154.
126
Op. cit., vol. III, p. 48.
127
ERNOUT & MEILLET. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Paris,
Klincksieck, 1951, p. 1122.
128
ERNOUT-MEILLET, p. 611.

– 163 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Acrescente-se a riqueza dos jogos fônicos e teremos uma idéia do re-


finamento cerrado conferido à sua expressão poética por Virgílio no
texto que retoma uma passagem mais prosaica de Homero, cuja poe-
sia não repele elementos mais realísticos; em suma, Virgílio parece
“filtrar” o texto grego pela estética alexandrina...
Aos catálogos do livro II da Ilíada (dos navios: v. 484-760; dos
melhores guerreiros e cavalos aqueus: v. 761-770, que tradicional-
mente se considera agregado ao anterior; dos troianos: v. 816-877), o
poeta latino contrapõe duas composições, inseridas em livros diferen-
tes: o arrolar dos povos comandados por Turno está no livro VII (v.
641-817); o catálogo dos navios etruscos no livro X (v. 163-214) – a
relação estreita entre os dois vem salientada pela invocação às Musas
que os abre a ambos, iniciando com o mesmo verso:
Pandite nunc Helicona, deae, cantusque mouete (VII, v. 641; X,
v. 163)

“Abri agora o Hélicon, deusas, e suscitai os cantos!”

Virgílio talvez procure, dessa forma, evitar “a monotonia da


Ilíada, que junta um ao outro os catálogos dos dois exércitos inimi-
gos”;129 mas além de tal mudança estrutural da composição, a aemulatio
com o modelo se evidencia na forma mesma da estrutura sintática.
Macróbio já o notara: aos infindáveis oi (/ de e oi (/te que comparecem
no longo passo homérico, Virgílio contrapõe fórmulas de transição
mais variadas para evitar o fastidium.130 É visível, de fato, a preocupa-
ção com a uariatio, um dos bem conhecidos princípios estéticos da
arte alexandrina, ainda que o resultado seja discutível. Para a perso-
nagem de Macróbio, por exemplo, a “divina simplicidade” de Homero
é insuperável, com seu efeito estilístico singular: a impressão de que
realmente se passa em revista, como numa enumeração de guerreiros
dispostos em fileiras.131 Em Macróbio, louva-se, portanto, a adequa-
129
CARTAULT. Op. cit., volume II, p. 723.
130
MACRÓBIO. Sat. V, 15, 14.
131
tamquam per aciem dispositos enumerans (V, 15, 16).

– 164 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ção do estilo ao objeto reproduzido: uma enumeração sistematica-


mente ordenada. É curioso observar, por outro lado, que Virgílio, alu-
dindo ao modelo, também faz uso, nos dois catálogos, de expressões
que lembram as homéricas:

qui Nomentum urbem, qui Rosea rura Velini,


qui Tetricae horrentis rupes montemque Seuerum
Casperiumque colunt Forulosque et flumen Himellae,
qui Tiberim Fabarimque bibunt, quos frigida misit
Nursia (VII, v. 712-716)

“Os que habitam a cidade de Nomento, os róseos campos do Velino,


os rochedos da escarpada Tétrica e o monte Severo,
e o Caspério e os Fórulos e o rio Himela,
os que bebem do Tibre e do Fábaris, os que enviou a fria
Núrsia...”

A tradução não dá conta da repetição do relativo, bastante


deselegante em português. No catálogo do livro X:

quique urbem liquere Cosas, quis... (v. 168)

“Os que deixaram a cidade de Cosa, aqueles a quem...”

qui Carete domo, qui sunt Minionis in aruis (v. 183)

“Os que residem em Cere, os que habitam os campos do Minião”.

Utilizando um topos da poesia épica, o catálogo, Virgílio reto-


ma o modelo homérico e lhe impõe sua marca pessoal, corrigindo-o
pela uariatio; já Apolônio de Rodes o fizera;132 assim, o poeta latino
passa o precursor grego pelo crivo da estética de que Apolônio de

132
Veja-se APOLLONIO RODIO. Le Argonautiche. Introduzione e commento di Guido.
Paduano e Massimo Fusilo. 2. ed., BUR, 1988, p. 83, nota aos versos 23-227, e HEINZE.
Op. cit., p. 366-368, nota 2 (sobre a tendência geral à uariatio em Virgílio e o prece-
dente de Apolônio).

– 165 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Rodes foi um dos mestres. A leitura intertextual leva ao confronto e


ao julgamento estético.
Mas o exemplo mais claro de “correção” do original está nestes
versos:

At tuba terribilem sonitum procul aere canoro


increpuit (IX, v. 503-504)

“Mas a trombeta terrível som em seu bronze canoro ao longe


estrepitou...”

Sérvio notara a dependência de Ênio: um verso apontado una-


nimemente como exemplo de mau gosto133 e de exagero no uso dos
recursos fônicos, a que o poeta arcaico não se furtava:

at tuba terribili sonitu taratantara dixit (fr. 140)

“Mas a tuba, com terrível som, “taratantara” disse...”

O emprego da onomatopéia taratantara e o uso excessivo da


aliteração em /t/, sem contar a banalidade do verbo, maculam o ver-
so; Virgílio utiliza a primeira parte, bem mais feliz, e modifica a segun-
da, desprezando a onomatopéia fácil e atenuando a aliteração. Como
bem sintetiza Sérvio:

“Virgílio fez muitas transformações desse tipo, ao encontrar asperezas”.134

O leitor é levado, assim, a comparar a nova roupagem do verso


com a do texto de partida e apreciar a mudança estética por que pas-
sou o modelo.

133
Uma amostra de “métodos inescrupulosos no uso da língua artística”, segundo COR-
TE, Francesco della. Disegno Storico della Letteratura Latina. Torino, Loescher, 1984,
p. 50.
134
Et multa huius modi Vergilius cum aspera inuenerit mutat (Ed. THILO, tomo II, p.
353).

– 166 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Virgílio deixara patente esse tipo de relação com a obra de um


modelo como Ênio, pleno de altos e baixos, se é verdadeira a anedota
reportada por Cassiodoro:

Vergilius, dum Ennium legeret, a quodam quid faceret inquisitus


respondit: “Aurum in stercore quaero”.135

“Lendo Virgílio a Ênio, tendo alguém lhe perguntado o que estava fa-
zendo, respondeu: ‘Procuro ouro no esterco’ ”.

Examinemos, agora, um outro exemplo possível de “correção”;


vejam-se estes versos de Homero:

Ai a)/ j d )ou )ke/t )e)/mimne!bia/ zeto ga\r bele/essi!


da/mna min Zhno/j te no/oj kai\ Trw= ej a)gauoi\
ba/ llontej! deinh\n de\ peri\ krota/ foisi faeinh\
ph/lhc ballome/nh kanaxh\n e)/xe, ba/ lleto d )aiei\ )
ka\p fa\lar )eu)poi/hq !)o( d )a) ristero\n wåmon e)/kamnen,
e)/mpedon ai)e\n e)/xwn sa/koj ai )o/lon! ou )d )e)du/nanto
a)mf )au)t%= pelemi/cai e)rei/dontej bele/essin.
aiei\ ) d )a)rgale/% e)/xet ) a)/sqmati, ka\d de/ oi (i drw\
( j
pa/ntoqen ek) mele/wn polu\j e)/rreen, oude/ p$ eiåxen
a) mpneu=sai! pa/ nt$ de\ kako\n kak%= e)sth/rikto. (Il. XVI,
v. 102-111)

“Ájax não mais resistia: era dominado pela força dos dardos;
domava-o o desígnio de Zeus e os ilustres troianos
a lançar projéteis; terrivelmente, ao redor de suas têmporas, o brilhante
casco, atingido, ressoava; era sem cessar atingido
nos adornos bem feitos; ele sentia cansaço no seu ombro esquerdo
por segurar sempre, firme, o escudo cintilante; e não conseguiam,
ao seu redor, demovê-lo cobrindo-o de dardos.
Era-lhe sempre difícil a respiração, e o suor
de todos os membros do corpo corria, abundante, nem lhe era possível
retomar alento: por toda parte um mal sucedia a outro mal”.

135
Apud Enciclopedia Virgiliana, v. V**, p. 453.

– 167 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Segundo nos informa Macróbio,136 Ênio retomou tais versos em


sua epopéia, no episódio do tribuno Caio Élio;137 em sua transcrição:

undique conueniunt uelut imber tela tribuno,


configunt parmam, tinnit hastilibus umbo
.....................................................................
aerato sonitu galeae sed nec pote quisquam
undique nitendo corpus discerpere ferro
semper abundantes hastas frangitque quatitque.
totum sudor habet corpus multumque laborat
nec respirandi fit copia, praepete ferro
Histri tela manu iacientes sollicitabant.

“De toda parte provêm, como chuva, dardos contra o tribuno;


cravam-se no escudo; ribomba, com as lanças, a saliência...
.....................................................................
com brônzeo ressono do casco, mas ninguém é capaz,
acometendo-o de todos os lados, de rasgar-lhe o corpo com o ferro.
Sempre as lanças abundantes quebra e agita.
O suor toma-lhe todo o corpo e muito pena,
sequer é possível respirar: com o célere ferro
os histros, lançando dardos, o acossavam”.

É evidente que o poeta latino procura manter certos meios ex-


pressivos do original, como o estilo paratático. Uma diferença notá-
vel, porém, é o emprego preferencial do presente histórico, que con-
fere maior vivacidade à narrativa, ao invés do imperfeito ou outro
tempo histórico; na passagem de Ênio, a proporção é de oito presen-
tes para um único tempo histórico; ao que tudo indica, aliás, o uso
abundante desse presente narrativo é próprio da épica latina em con-
fronto com a grega.138

136
Sat.VI, 3, 3.
137
Ou Célio, pois o nome é objeto de controvérsia. Veja-se Marco Scaffai, na edição da
obra de TOLKIEHN (Op. cit., nota ao capítulo XXIII, p. 106).
138
Veja-se “Virgil’s Aeneid” In: BOYLE (Org.). Op. cit., p. 105, nota 15.

– 168 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Quanto a Virgílio, reelabora a passagem homérica, através de


Ênio; a personagem, agora, é Turno, sitiado pelos troianos (como Ájax
– a guerra de Tróia parece repetir-se...):

Ergo nec clipeo iuuenis subsistere tantum


nec dextra ualet, iniectis sic undique telis
obruitur. Strepit adsiduo caua tempora circum
tinnitu galea et saxis solida aera fatiscunt
discussaeque iubae capiti nec sufficit umbo
ictibus: ingeminant hastis et Troes et ipse
fulmineus Mnestheus; tum toto corpore sudor
liquitur et picem (nec respirare potestas)
flumen agit, fessos quatit aeger anhelitus artus. (IX, v. 806-814)

“Portanto, o jovem não é capaz, sequer, de resistir nem com o escudo


nem com a destra, a tal ponto de dardos lançados de toda parte
é coberto. Retumba com ruído contínuo ao redor das têmporas cavas139
o capacete, e com pedras os sólidos bronzes fendem
e os penachos são arrancados da cabeça; nem o escudo basta
para aparar tantos golpes: as lanças redobram os troianos e o próprio
Mnesteu fulminante; então, de todo o corpo o suor
escorre (nem é possível respirar) em rio de piche:
o alento difícil agita os membros cansados”.

São vários os indícios de que Virgílio retoma Homero passan-


do-o pelo viés de Ênio (elaborando com maior refinamento, porém,
os versos do poeta arcaico); que alude diretamente aos versos gregos,
demonstra-o a forma culta Troes, equivalente ao grego T, na mesma
posição no hexâmetro (quinto pé). Formalmente, porém, um ponto
nos interessará aqui: Virgílio adota o presente histórico eniano (nove
casos).140

139
Relacionam caua a tempora, dentre outros, Conington, Perret, Luca Canali, Forbiger;
um forte argumento para tal é a presença dessa expressão no mesmo livro IX, v. 633.
140
Macróbio arrola, com razão, o passo virgiliano como exemplo de imitatio de Ênio;
criticamos, pois, Conington, que declara, em nota ao verso IX, 806, não haver nos
versos de Ênio “nada que pareça ter influenciado Virgílio particularmente em sua re-
produção de Homero”(Op. cit., vol. III, p. 229).

– 169 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Além do presente, citemos as fortes aliterações em /t/, que re-


produzem o som dos dardos e a inversão do sujeito, com ênfase no
processo verbal, que Virgílio, porém, duplica:

conueniunt...tela strepit...galea
tinnit...umbo nec sufficit...umbo
ingeminat...et Troes et ipse/fulmineus
Mnestheus
quatit aeger anhelitus

Virgílio nitidamente rivaliza com o modelo eniano, que possi-


velmente tinha o mesmo número de versos que a passagem da Eneida,
se aceitamos a sugestão de Vahlen, defendida por G.B.Conte;141 típi-
ca aemulatio: superação do modelo com a mesma concisão e maior
eficácia expressiva; de fato, retoma Homero, utilizando, contudo, o
presente histórico em todo o trecho, seguindo a sugestão de Ênio e
indo além dela, pois o poeta arcaico mesclara aos presentes históricos
um isolado e destoante imperfeito (sollicitabant).

7. IRONIA

Outro efeito possível da alusão é o de ironia; levada ao extre-


mo, temos a paródia, uma das formas de intertextualidade mais co-
muns e fáceis de detectar. Por vezes, basta reproduzir tal e qual um
verso célebre fora de seu contexto, transportando-o para contexto
totalmente diverso, e se produz ironia, só percebida pelo leitor que
tenha na memória a expressão reproduzida e, pela transposição,
distorcida.
Para não abandonarmos completamente o campo da Eneida,
um verso famoso do diálogo entre Dido e sua irmã Ana – nesse livro
IV que tem sido sempre um dos mais estimados de toda a epopéia – é
o que segue transcrito, assinalado sintaticamente pelo uso de particí-

141
Veja-se a edição das Saturnais que temos utilizado, p. 691, nota 3.

– 170 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

pio passado de verbo intransitivo com valor ativo e do dativo com o


verbo pugnare, “lutar”, à grega, ao invés do prosaico complemento de
cum mais ablativo:

placitone etiam pugnabis amori? (IV, v. 38)

“Lutarás até mesmo contra um amor que te agrada?”

No contexto, Ana incita Dido a ceder à paixão nascente pelo


troiano Enéias (esse dado trágico – é a própria irmã da rainha que a
impele para a atitude de conseqüências funestas – será salientado no
final do livro). Tal expressão é retomada integralmente na história da
matrona de Éfeso, uma das mais conhecidas, senão a mais conhecida,
das fábulas milésias inseridas no Satiricon. 142 Aqui, o sal da citação
advém da diferença brutal entre os contextos. Na Eneida, os cegos
conselhos de Ana, embasados num senso prático comezinho e num
afeto pela irmã incapaz de ver mais além, impelem Dido à violação do
pudor (soluitque pudorem, v. 55), quebrando-lhe as últimas resistên-
cias e encaminhando-a à perda final; no Satiricon, temos a escrava da
matrona (“aquele exemplo único e verdadeiro de decência e amor”–
CXI, 5), que, seduzida primeiramente pela comida e bebida deixadas
pelo soldado na gruta, decide-se a tomar de assalto (expugnare, lin-
guagem militar!...CXI, 10) as resistências da patroa.
Que a referência à situação original da Eneida é requerida como
elemento do novo texto, prova-o a citação de outro verso da mesma
cena “imitada”, ou melhor dizendo, talvez, “distorcida”), posto tam-
bém na boca da escrava:

Id cinerem aut manes credis sentire sepultos (CXI, 12)

“Crês que é isso que sente a cinza ou os manes sepultos?”

142
A citação do verso virgiliano aparece em CXII, 2; a história começa a ser narrada em
CXI.

– 171 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na Eneida:

id cinerem aut manis credis curare sepultos? (IV, v. 34)

“Crês que disso cuidam a cinza ou os manes sepultos?”

Vê-se que Petrônio operou leve mudança: sentire por curare, a


menos que não se trate de variante introduzida indevidamente no
texto do Satiricon.
Na Eneida, Dido, personagem épica, fundadora de uma cidade
que viria a ser a maior rival de Roma, degrada-se, pelo efeito da pai-
xão, até a auto-imolação, culpada para si mesma por ter violado o
juramento de fidelidade à memória do marido Siqueu. Perde seu esta-
tuto de personagem épica, poderíamos dizer, para assumir um conde-
nável papel de amante elegíaca. O poeta, de fato, por várias vezes
conota de nuanças negativas a descrição da paixão que a destruirá.
No conto do Satiricon, Petrônio parece se deliciar com o redi-
mensionamento do texto virgiliano: a matrona de Éfeso, exemplo de
uirtus, não nos esqueçamos, cede ao desejo, porque tal é a fraqueza
humana, assim são feitos os homens, sem virtudes idealizadas que
possam sustentar até o fim, sem sentimentos épicos mais dignos de
semideuses como os heróis das epopéias do que da humanidade com a
qual diariamente convivemos...Este nos parece ser um tema recor-
rente no Satiricon, que retrata a realidade comezinha sem retoques,
sem nobreza, mas sem censura explícita.
Dido se matará porque não suporta não apenas a partida de um
amante mas o sentimento dilacerador de que falhou para com os ide-
ais que faziam a sua antiga fama. No Satiricon, a matrona (palavra
repleta de significado para a moral romana) acaba por ficar muito
satisfeita, “burguesamente” feliz, isto é, nada epicamente, tendo cedi-
do sem remorsos ao soldado; na verdade, com tal despudor, com tal
esquecimento da memória do falecido, a ponto de sugerir, por conta
própria, a crucificação do cadáver deste, que assim tomaria o lugar do
corpo do condenado pelo qual velava o soldado e que fora roubado...

– 172 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Em suma, a comparação com o episódio de Dido, isto é, a leitu-


ra intertextual, realça o realismo quase cínico da história de Petrônio,
o despudor nada trágico da matrona de Éfeso, o lado mais chão dos
sentimentos humanos, pintado pelo autor com toques que nos lem-
bram Machado de Assis. Por outro lado, irresistivelmente, somos le-
vados a refletir sobre a idealização que o discurso épico impõe à maté-
ria narrada; essa espécie de paródia do modelo solene acaba por ironizar
traços do original e por ameaçar turvar-lhe a ideologia (na memória
do leitor implícito, Dido e seu duplo negativo ficam associados...),
com um simples deslocamento de contexto.
Em Homero, encontramos também o efeito de ironia intertex-
tual (ou autotextual, se o autor ou conjunto de autores da Ilíada e da
Odisséia for o mesmo). A Eumeu, o fiel porqueiro, Odisseu se apre-
senta como estrangeiro, metamorfoseado por Palas Atena em velho
mendigo; a certa altura, diz ao criado, que não o reconheceu:

e)xqro\ j ga\r moi kei=noj o(mw= j Ai) +d ao pu/lvsi


gi/netai, o(/j peni /$ eikwn
)/ a) path/lia ba/ zei (Od., XIV, v. 156-157)

“Pois para mim tão odioso quanto as portas do Hades


se torna aquele que, cedendo à necessidade, conta mentiras”.

Ora, o leitor da Ilíada recordará um trecho da fala de Aquiles


ao próprio Odisseu, condenando a mentira, a duplicidade de quem
pensa uma coisa e diz outra:

e)xqro\j ga\r moi kei=noj o(mw= j Ai+ ) dao pu/lvsin


)/ (Il. IX, v.
o(/j x ) e(/teron me\n keu/q$ e)ni\ fresi/n, a)/ llo de\ eipv
312-313)

“Pois para mim tão odioso quanto as portas do Hades é aquele


que oculta algo na mente, fala coisa diversa”.

Na Odisséia, é patente a evocação da passagem da Ilíada – há a


repetição completa de um verso, seguido de outro de estrutura sin-

– 173 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

tática (o(/j) e sentido relacionáveis com o correspondente ilíadico; a


ironia é provocada pelo fato de que Odisseu, ao afirmar que lhe é
odioso quem conta mentiras, procurando, assim, afastar as suspeitas
de que não estivesse dizendo a verdade, no momento mesmo em que
de fato mente, evoca o juízo negativo que lhe expressara Aquiles so-
bre quem se comporta de forma dúplice, expressando algo diferente
do que pensa, em estratégia de que Odisseu faz amplo uso...143
À primeira vista, parece impossível que se encontrem num poe-
ma sério como a Eneida efeitos intertextuais que provoquem o sorriso
do leitor, como os que vimos no Satiricon. Mas cremos que eles exis-
tem; sutis, são um aceno ao leitor culto e perspicaz, que se admirará
da habilidade do jogo alusivo. À maioria dos leitores comuns, porém,
passarão despercebidos; na verdade, a referência intertextual jocosa é
quase sempre mínima, e forma a não comprometer a gravidade do
todo. Um exemplo: quando da partida de Enéias de Cartago, Virgílio
compara os troianos, em sua azáfama, a formigas:

Ac uelut ingentem formicae farris aceruom


cum populant hiemis memores tectoque reponunt,
it nigrum campis agmen praedamque per herbas
conuectam calle augusto; pars grandia trudunt
obnixae frumenta umeris, pars agmina cogunt
castigantque moras, opere omnis semita feruet. (IV, v. 402-407)

“Como as formigas um ingente monte de trigo


saqueiam, lembradas do inverno, e o depositam em seu abrigo,
vai a negra fileira pelos plainos e pela relva a presa
carregam, através de angusta via; parte delas se esforça por erguer
aos ombros grandes grãos, outra cerra as fileiras
e castiga a demora; toda a vereda ferve de trabalho”.

Sérvio informa que a expressão it nigrum campis agmen, que


Virgílio aplica a formigas, é tomada tal e qual dos Annales de Ênio,

143
BEYE, Charles R. Ancient Epic Poetry. Homer, Apollonius,Virgil. Ithaca and London,
Cornell University Press, 1993, p. 33.

– 174 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

onde, entretanto, referia-se a ...elefantes!144 O leitor informado capta


o contraste de contextos e sorri da reutilização do material: detalhe
sutil revelado aos “iniciados”, isto é, aos que são capazes de detectar e
analisar a alusão.
No episódio do livro VIII em que Vênus tenta obter de Vulcano
armas para seu filho, um tom ligeiro se faz mais presente, a ponto de
Cartault afirmar (sem tirar, porém, todas as conseqüências da obser-
vação) que “a cena é da mais fina comédia; é cheia de humor”.145
Virgílio introduz a resposta de Vulcano, após as palavras e a sedução
de Vênus, assim:

Tum pater aeterno fatur deuinctus amore (VIII, v. 394)

“Então profere o pai, enlaçado por eterno amor...”

O leitor de Lucrécio identificará a alusão ao célebre proêmio do


De Rerum Natura, num passo em que se representa Marte seduzido
pelos encantos de Vênus:

aeterno deuictus uolnere amoris (I, v. 35)146

“...vencido pela ferida de um eterno amor”.

Como Lyne interpreta,147 o efeito intertextual é de humor, afi-


nal era conhecida a história das infidelidades de Vênus ao marido
144
Edição THILO, vol. I, p. 537: hemistichium Enii de elephantis dictum. Ver também
HORSFALL (Op. cit,p. 63), que aponta outros casos de ironia (a partir de um artigo
de Harrison, ao qual não pudemos ter acesso, sobre a “arte alusiva... com intenção de
divertimento”).
145
Op. cit., p. 613.
146
Ed. Garnier.
147
Further Voices in Vergil’s Aeneid, p. 40. Cartault, porém, já mostrara a alusão, mas
sem levar adiante a análise intertextual; na verdade, o crítico hesita: em Lucrécio,
“tratava-se de Marte, ao passo que aqui se trata do esposo legítimo. É simplesmente
uma imitação deslocada ou Virgílio usou de malícia (y a-t-il mis malice)?” Ver
CARTAULT. Op. cit., vol. II, p. 648.

– 175 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Vulcano, seus encontros furtivos com o amante Marte (narra-se na


Odisséia, VIII, v. 266-366, o jocoso conto da punição da traição pelo
marido ultrajado). Virgílio alude, pois, ao adultério da deusa de forma
sub-reptícia. Por outro lado, Lyne nota que, enquanto Lucrécio usa o
verbo deuictus, comprazendo-se com o paradoxo do deus da guerra
vencido pelo amor, Virgílio emprega deuinctus (“encadeado”, “atado”),
aludindo ao castigo infligido aos amantes, que são apanhados na rede
finíssima armada pelo marido, tornado-se, assim, alvo do escárnio dos
demais deuses; nesta passagem da Eneida, é Vênus que, com seus en-
cantos, cativa, “ata”, Vulcano...148 Mas é bom salientar que a lição
deuinctus, aceita por Perret, Mynors e Sabbadini, é repelida por Paratore,
que acolhe deuictus;149 neste caso, perde-se a possibilidade da última
interpretação – mas a ironia intertextual do episódio permanece.
Acrescentaremos à análise de Lyne algumas observações inter-
textuais. Em primeiro lugar, o confronto entre os contextos faz pen-
sar. Em Lucrécio, de fato, o poeta apela a Vênus para que ela, com
seu amor de efeito poderoso sobre Marte, influencie o deus, fazendo
com que “os feros trabalhos da guerra” por toda a parte cessem (De
Rerum Natura I, v. 30-31); em Virgílio, Vênus usará de seus encantos
que fascinam o esposo para pedir-lhe... armas. Se a invocação de
Lucrécio a Vênus, de que faz parte o verso em foco, inicia-se por um
solene Aeneadum genetrix (I, v. 1), a deusa apresenta assim seu pedi-
do a Vulcano: arma rogo genetrix nato (VIII, v. 383): “armas peço,
como mãe para o filho”; além do substantivo em destaque, chama a
atenção nato, que designa Enéias, cujo nome ecoa no epíteto com
que Lucrécio designa os Romanos. A aproximação intertextual, pre-
sente no texto de Virgílio e, portanto, merecedora de atenção, incita-
nos a comparar e distinguir; nessa operação, criam-se efeitos de leitu-
ra mais ou menos tênues – nunca desprezíveis para o leitor que se
dispõe a participar desse jogo instigante.

148
Op. cit., p.41.
149
Sérvio, porém, lia deuinctus (Op. cit., vol. II, p. 259).

– 176 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Em segundo lugar, há um outro efeito de humor, se aceitarmos


as sugestões até aqui feitas; no mesmo verso que ecoa Lucrécio e que
alude à infidelidade de Vênus comparece o apelativo pater aplicado a
Vulcano! Em sentido superficial, nada de memorável: aplicado aos
deuses, o substantivo não implicava parentesco, “mas era somente
um termo de devoção e um reconhecimento da preocupação do deus
para com os homens”;150 no entanto, é difícil não perceber nova iro-
nia em estrutura profunda, isto é, no diálogo com o hipotexto. Ao vir
no verso que alude a amores adúlteros, próximo de um genetrix nato
que recorda que Vênus é mãe mas Vulcano não é o pai do natus em
questão, Enéias... – o substantivo, compreendido em seu sarcasmo
subliminar, torna ainda mais risível a situação do deus, presa dos en-
cantos de uma deusa nada fiel e pouco recatada.
Apontemos outros traços humorísticos na cena, fora do âmbito
estritamente intertextual, mas que servem de apoio a uma leitura alu-
siva em que a ironia está presente intensamente. Primeiramente, há
algo de irônico no deus do fogo (ignipotens, v. 414) sendo dominado
pela chama de amor que a esposa lhe passa (notemos accepit solitam
flammam, v. 389: o deus do fogo “ recebeu” da esposa a chama, bem
como a insistência significativa na imagem dessa outra espécie de fogo
que domina Vulcano: calor, v. 390; ignea rima, “sulco ígneo”, isto é,
“o raio”, v. 392). Por outro lado, o deus declara, após o abraço erótico
de Vênus, que se ela tivesse tido um semelhante zelo (similis si cura
fuisset, v. 396), ele poderia ter armado os troianos durante a guerra
com os gregos, já que nem Júpiter nem os destinos não proibiam que
Tróia durasse por mais dez anos (v. 397-399)... Similis si cura fuisset –
muitos tradutores e comentadores nos parecem se equivocar sobre a
interpretação da frase;151 note-se o relevo de similis; o deus diz que se

150
Observação de Warde Fowler, reportada em BAILEY, Cyril. Religion in Virgil. Oxford,
Clarendon Press, 1935, p. 135.
151
Canali, grande tradutor, perde o tom irônico, de velada malícia: “Se avevi un tale
pensiero,/ anche allora mi era consentito armare i teucri”; também Annibal Caro: “Se
t’era grado...”. Perret e Odorico traduzem com a adequada fidelidade, em consonância

– 177 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

a esposa tivesse demonstrado, durante a guerra de Tróia, tal solicitu-


de (em sentido malicioso, a utilização de seus dons eróticos) na sua
missão de conseguir armas para um troiano, naquele tempo ele teria
armado os troianos todos!
Diríamos que aqui – mas de forma sutil, discreta – Virgílio per-
mite que penetre em sua epopéia aquele humor brejeiro que perpassa
o episódio dos amores de Ares e Afrodite, na Odisséia.
Também na epopéia de Camões o humor se insinua no coló-
quio entre Vênus e uma divindade; desta vez, a deusa seduz o próprio
Júpiter; este tão empolgado fica com sua beleza que:

“De modo que ali, se só se achara,


Outro novo Cupido se gerara.” (Os Lusíadas, II, 42, v. 7-8)

Neste episódio dOs Lusíadas, porém, como se vê, a pouca seri-


edade que exibem os deuses pagãos deve encontrar limite em certo
senso de pudor na descrição de suas ações. Em Homero e Virgílio,
retrata-se o ato físico (com notável discrição, porém); em Camões, a
presença de olhares indiscretos obriga o pai dos deuses à contenção...;
assim, uma célebre cena amorosa da tradição greco-latina é incorpo-
rada ao poema lusitano, filtrada, contudo, por um sentimento de de-
coro mais rígido.
Há, contudo, outra espécie de ironia que merece destaque, pois
que advém diretamente da arte intertextual da Eneida e será explora-
do amiúde pelo poeta; trata-se de contrapor ao texto um subtexto
contrastante que emerge das relações intertextuais, criando uma es-
pécie de distanciamento crítico do discurso literal e linear através das

com a discrição virgiliana; este último traz: “Se igual empenho houveras...” Entre os
comentadores, perdem a força maliciosa do destaque dado a similis, Sabbadini: “se tu
mi avessi pregato anche allora”(Eneide, vol. VIII, p. 47) e Conington: “had you felt the
same anxiety, meaning, had you made the same request”. Este último também elude a
malícia de troianos, interpretando-o como um (estranho) plural para designar somente
Enéias, “em exagero retórico” (Op. cit., p. 124) – eis um exemplo de como o excessivo
e descabido pudor dos estudiosos é capaz de cegar os mais finos intérpretes de Virgílio...

– 178 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

alusões. Encontramo-lo várias vezes nas falas das personagens; o lei-


tor informado, por “saber” mais que a personagem em foco, já que
compreende o subtexto originado pela intertextualidade, apreende
uma mensagem que às vezes apresenta o desmentido cabal às pala-
vras pronunciadas por ela, daí resultando efeito de ironia que pode se
colorir de nuança trágica. É comumente o que vemos ocorrer com
Turno, cuja cegueira é denunciada pelo código tramado pela alusão.
Apresentamos a seguir uma ilustração desse curioso processo inter-
textual.
Quando Turno está para incendiar a frota de Enéias, ocorre o
prodígio da transformação dos navios em ninfas, que semeia o terror
sobre os aliados do rútulo. Cegamente, este interpreta o fenômeno a
seu favor, em palavras que recordam, sim, Aquiles, de quem Turno
pretende ser a reencarnação, mas alguns passos apresentam alusões
que lançam sobre a personagem uma outra luz. Observe-se:

Nil me fatalia terrent,


si qua Phryges prae se iactant, responsa deorum (IX, v. 133-134)

“Em nada me aterrorizam,


ainda que os frígios delas se jactem, as respostas fatais dos deuses”.

A fala irônica e pouco “pia” de Turno recorda palavras de Hei-


tor – o papel que ao final da epopéia se verá ter sido reservado no
geral ao rútulo – que, numa assembléia, assim responde a Polidamante,
que desaconselhara a luta com os gregos junto aos navios:152

tu/nh d o ) i )wnoi=si tanupteru/gessi keleu/eij


pei/qesqai, tw=n ou)/ ti metatre/pom o ) u)d a
) l
) egi/zw,
eit/) e
) pi\ deci / i) wsi
/) pro\j h )w= t )h)el
/ io/n te,
eit/) e ) ) ristera\ toi / ge poti\ zo/fon h)ero/enta. (Il. XII,
) p a
v. 237-240)

152
Este paralelo e o seguinte constam da lista de Homerzitate de Knauer (Op. cit., p. 407).

– 179 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Tu em pássaros de estendidas asas me incitas


a acreditar, com os quais não me preocupo nem um pouco153 nem me
inquieto,
se da direita vêm, na direção da aurora ou do sol,
se da esquerda, rumo às trevas sombrias”.

Em Odorico Mendes:

“E por aves guiar-me ali-spalmadas


Queres, das quaes nem curo nem me importa,
Voem da dextra para o Sol e aurora,
Ou da sinistra para o occaso e trevas.”

Eis um primeiro efeito da alusão: sob Turno paira a sombra de


Heitor. Mas apontaremos exemplo mais ilustrativo de ironia por meios
intertextuais nessa mesma fala do rútulo. Note-se:

Sunt et mea contra


fata mihi, ferro sceleratam exscindere gentem,
coniuge praerepta. (IX, v. 136-138)

“Também eu, por minha vez, tenho meus


próprios destinos: com a espada aniquilar uma nação criminosa,
por me terem arrebatado a esposa.”

Turno se julga, portanto, um novo guerreiro grego, um Menelau


redivivo154 a vingar a injúria infligida pelo suposto novo Páris, Enéias,
que lhe teria roubado Lavínia; é esse o seu destino, julga. Porém, sob
tais palavras, o jogo alusivo mostra a ilusão de Turno, seu julgamento
errôneo dos arcanos dos destinos, já que suas palavras evocam as
de...Páris!:

153
“Nem um pouco”, em nossa tradução, tem tão somente a função de ressaltar que Virgílio
parece ter “traduzido” o por nihil.
154
Na seqüência, explicita o paralelo: Nec solos tangit Atridas/iste dolor (“Não só aos
Atridas um tal ressentimento atinge...”).

– 180 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

) kai\ h (mi=n. (Il. III, v. 440)


pa/ ra ga\r qeoi/ ei si

“Também há deuses do nosso lado”.

Turno interpreta mal o prodígio, e o leitor sabe que está enganado,


pois que conhece as verdadeiras razões da transformação da frota de Enéias.
Além disso, o herói contrapõe seus fados pessoais ao destino ali manifes-
tado: enquanto Páris se referia aos deuses de todos os troianos (h (mi=n), o
rútulo expressa confiança nos seus destinos (mea, reforçado pela disjun-
ção – fata, que completa o sintagma, só aparece no verso seguinte); por
via intertextual, salienta-se a feição individualística de sua ação. Por ou-
tro lado, no momento mesmo em que se coloca na situação de vítima de
um Enéias-Páris que lhe teria arrebatado Lavínia à força, ele próprio sur-
ge como novo Páris, de quem ecoa as palavras. Levando às últimas con-
seqüências os sentidos originados do jogo alusivo, é Turno, sugere-se,
quem deseja se apossar indevidamente da filha de Latino, um dado antes
ressaltado na narrativa ao se relatar que os oráculos divinos desaprova-
vam essa união prometida. Ironia trágica: o leitor sabe o verdadeiro peso
a dar às palavras cheias de arrogante autoconfiança pronunciadas por
Turno num momento crítico para os seus.
Por fim, observemos outra ironia intertextual; Sérvio, em nota
pouco lembrada pelos comentadores da epopéia, observa a respeito
de coniuge praerepta:

inuidiose sponsam coniugem uocat.155

“Em seu ódio chama de esposa a noiva”.

Em sua cegueira, Turno força o paralelo, falsificando a realida-


de, deturpando os fatos; Lavínia lhe fora, sim, prometida, mas jamais
sua esposa. Aqui, corrijamos Gaffiot, que cita este passo para ilustrar
o emprego de coniux com o sentido de “fiancée”,156 um exemplo das

155
Op. cit., vol. II, p. 322.
156
GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin Français. Paris, Hachette [1981] p. 396.

– 181 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

insuficiências de uma análise não centrada nos aspectos literários do


texto. Turno se equivoca: a situação de Helena não é a mesma de
Lavínia, como a sua própria difere da de Menelau. Como amiúde na
Eneida, temos ressaltada a noção de que a história de fato não se
repete, apesar das aparências, apesar das pretensões de Turno. O lei-
tor informado, que aqui tem o papel ativíssimo de passar pelo crivo de
seus conhecimentos intertextuais as palavras e a acão de um persona-
gem, percebe que o rútulo se apresenta sob traços falsos ao invocar o
grande paralelo épico, pintando-se numa atitude heróica que não é,
rigorosamente, a sua...
Esse exemplo nos alerta para usar de cautela diante de supostas
incoerências de Virgílio geradas por sua arte alusiva mesma, que, ao
transpor de um contexto para outro certos elementos textuais, criaria
no texto de chegada sentidos obscuros ou quase ilógicos.157 Não se
pense em alguma inabilidade de adaptador: Turno, não Virgílio, é
que se equivoca e força o paralelo impossível – eis o efeito intertextu-
al criado por uma associação indevida porque demasiado mecânica e
cega quanto aos fundamentos divinos que jazem por trás das ações
humanas. Dizendo de forma mais paradoxal: Turno é incapaz de de-
cifrar com pertinência seu destino pessoal, lendo mal o intertexto ge-
rado por sua própria ação...Daí aquele efeito de ironia trágica a perse-
guir a figura patética do rútulo, incapaz, ao contrário de Enéias, de ler
os signos divinos que fazem vislumbrar aos homens o sentido de uma
ação que parece errática e inconseqüente sem o esteio num plano
sagrado que os transcende e os heroifica verdadeiramente.

8. ELIPSE

Um processo alusivo não raro na Eneida é o que se poderia de-


nominar “elipse”; Virgílio alude a um episódio narrado em outro poe-

157
Alguns exemplos curiosos são apontados em LEE, Guy. “Imitation and Poetry of Virgil”
In MCAUSLAN, I, & WALCOT, P. (Org.). Virgil, p. 1-13.

– 182 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ta sem recontá-lo, mas deixando ao leitor a possibilidade de extrair


sentidos do confronto com o texto evocado. Um bom exemplo está
no início do livro VII, quando os troianos costeiam as terras onde
mora Circe:

Proxima Circaeae raduntur litora terrae,


diues inaccessos ubi Solis filia lucos
adsiduo resonat cantu tectisque superbis
urit odoratam nocturna in lumina cedrum,
arguto tenues percurrens pectine telas.
Hinc exaudiri gemitus iraeque leonum
uincla recusantum et sera sub nocte rudentum,
saetigerique sues atque in praesepibus ursi
saeuire ac formae magnorum ululare luporum,
quos hominum ex facie dea saeua potentibus herbis
induerat Circe in uoltus ac terga ferarum.
Quae ne monstra pii paterentur talia Troes
delati in portus neu litora dira subirent,
Neptunus uentis impleuit uela secundis
atque fugam dedit et praeter uada feruida uexit. (VII, v. 10-24)

“Costeiam de perto os litorais da terra circéia,


onde a rica filha do Sol aos bosques inacessíveis
faz ressoar com perene canto e nos tetos soberbos
queima odorado cedro para os lumes noturnos,
com fino pente percorrendo as telas tênues.
Daqui se ouvem gemidos e iras de leões
que recusam grilhões e, noite avançada, rugem,
e porcos eriçados de cerdas e, em estábulos, ursos
enfurecerem-se e vultos de grandes lobos a uivar:
homens a quem, tirando-lhes o antigo aspecto com ervas poderosas,
a deusa feroz, Circe, revestira de faces e dorsos de feras.
Para que não sofressem tais monstruosidades os pios troianos,
impelidos para os portos, nem funestos litorais suportassem,
Netuno encheu de ventos favoráveis as velas,
concedendo-lhes a fuga, e além das férvidas águas os transportou”.

– 183 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Aqui, tem-se a referência explícita aos episódios bem conheci-


dos da Odisséia; notemos que o poeta dá a explicação para a presença
dos animas ferozes naquelas paragens – eram homens transformados
por uma feiticeira; portanto, não é preciso conhecer a peripécia de
Ulisses para compreender no conjunto o trecho. O leitor intertextual
deve, entretanto, estar atento para as intenções de um poeta como
Virgílio.
A chave para a leitura intertextual está nos últimos versos; é
Netuno quem impede os troianos de passar pelas experiências terrí-
veis que os companheiros de Ulisses enfrentaram. O deus intervém
pessoalmente mandando-lhes vento favorável, como que em recom-
pensa por sua pietas (pii Troes, um belo exemplo de como o uso de
epíteto se carrega de sentido em Virgílio!, em expressão densa no
contexto): aquele povo tão religioso não merece sofrer as monstruosi-
dades de Circe...Ora, os gregos que Ulisses comanda vagam por mar
perseguidos pela ira de...Possêidon, o equivalente exato de Netuno,
por terem cometido, junto com seu chefe, um ato de impiedade –
cegar o filho do deus.158 Quem tem em mente o poema grego, não

158
Esse paralelo se reforça com a perspectiva intertextual global dos seis primeiros livros,
fundados sobre a Odisséia: logo no início da narração, Juno avista a frota troiana e
resolve provocar uma tempestade para destruí-la, como, no poema grego, Possêidon vê
Odisseu perto da terra dos feácios e provoca uma tempestade (Od. V, v. 286-295) que
a Eneida ecoará intensamente; na seqüência, Virgílio aludirá constantemente ao epi-
sódio homérico, marcando o início de sua narrativa com o sinete da Odisséia, como é
mais do que sabido. O curioso é que o efeito maior da ação vingativa de Juno – a
tempestade – é combatido pelo equivalente latino do deus do mar, Netuno, que sereniza
as águas revoltas (I, v. 124-156). Em leitura intertextual, o confronto é inevitável: ao
contrário de Ulisses, Enéias e os seus não têm nenhuma impiedade contra uma divin-
dade a expiar, pelo contrário: vagam por mares e terras por causa do ódio de uma deusa
ofendida em sua vaidade e orgulho – nenhuma ação contra ela foi pelos êxules come-
tida, e o próprio narrador se espanta com a perseguição a um herói tão insigne por sua
devoção (I, v. 8-11). Virgílio, curiosamente, poderia ter investido seu Netuno do papel
que coube a Juno: perseguir os troianos, já que, no mito da fundação da cidade, o deus
castigara Tróia pela perfídia de Laomedonte; na narrativa da queda de Tróia por Enéias,
vemo-lo destruindo os fundamentos mesmos da cidade (II, v. 610-612). Entretanto, o

– 184 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

deixará de notar outro contraste: Odisseu observa que navegara para


um porto seguro da ilha de Circe, guiado por mão divina:

poeta, ao longo da epopéia, mostra um Netuno que não só não guarda rancor algum
contra os exilados como também vela pessoalmente por Enéias; atendendo ao pedido
de Vênus, que lhe pede travessia segura até a Itália (V, v. 796-798), o deus recorda que
já salvou Enéias, quando este lutava contra Aquiles em duelo desigual (V, v.804- 810).
Atente-se para estas palavras de Netuno, que contrastam com o tratamento recebido
por Odisseu:

saepe furores
compressi et rabiem tantam caelique marisque.
Nec minor in terris, Xanthum Simoentaque testor,
Aeneae mihi cura tui. (V, v. 801-804)

“Muitas vezes os furores


contive e a cólera tão grande do céu e do mar.
Nem menor em terra, invoco em testemunho o Xanto e o Simoente,
foi-me a preocupação com teu Enéias”.

Ora, Netuno declara que, assim como por terra se preocupou com Enéias (e segue a
referência ao episódio em que o salvou da morte iminente), tem agido para proteger o
troiano da fúria do céu e do mar – portanto, ao contrário de Odisseu, o troiano conta com
a proteção do deus! E se lembramos do símile aplicado a Netuno que acalma a tempesta-
de provocada por Juno – um velho piedoso fazendo aplacar o furor da populaça (furor
arma ministrat, I, v. 150; cf.:furores), é difícil não concluir que Virgílio, da forma discreta
que lhe é característica, operando com sutis associações intratextuais, sugere que Netuno
acalma a fúria dos elementos para auxiliar Enéias. Para quem não relê a passagem do livro
I fazendo, em leitura retrospectiva, a relação com o passo do livro V mencionado acima,
perde-se esse dado curioso, pois parecerá a esse leitor “linear” que o deus se irrita simples-
mente pela invasão dos ventos tempestuosos em seus domínios. Se nossas observações
procedem, estão equivocadas afirmações como estas, comuns na análise da intervenção
de Netuno: “Se ele intervém, não é absolutamente por interesse pelos troianos, que ele
finge ignorar, mas porque exerce funções que não é permitido a subalternos usurpar”
(CARTAUT – Op. cit., vol I, p. 102): crítico fino, Cartault não pôde, porém, beneficiar-
se da atenção mais cuidadosa que só recentemente vem recebendo a análise intertextual,
que nos vai acostumando com a sutileza desafiadora da trama da Eneida. Seja como for,
essa espécie de amor paternal que Netuno demonstra por Enéias contrasta vivamente
com a perseguição que Possêidon move a Ulisses – especialmente porque é revelada na
parte odissíaca da epopéia, plena de alusões às peregrinações do grego.
Para uma leitura simbólica da cena da tempestade na Eneida, veja-se Pöschl (Op. cit., p.
41 e ss.); um breve confronto Enéias-Odisseu é traçado por Lyne (Further Voices, p. 104-
107).

– 185 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

e)n/ qa d e
) p
) a
) k
) th=j nhi+ kathgago/mesqa siopv=
neuen. (Od. X, v. 140-141)
nau/loxon e)j lime/na, kai/ tij qeo\ j hgemo/
(

“Para aquele litoral dirigimos o navio em silêncio


a um porto seguro, e um deus nos guiava”.

Entrevemos, então, fina ironia no paralelo: se Odisseu se sen-


te conduzido providencialmente por um deus, quando, na verdade,
vai ao encontro da monstruosa feiticeira, na verdade disso só se po-
dem vangloriar os troianos, aquele povo pio que, por intervenção
pessoal do arquiinimigo de Ulisses, não precisam passar por tal des-
ventura. A elipse é hábil: longe de ser simples preterição, justifica-
se pelo sentido positivo que cria para seu herói a partir do confronto
com Odisseu: de novo, um efeito da leitura intertextual acessível ao
leitor atento.
Outro exemplo de elipse temos no livro V: Mnesteu menciona
sem mais a passagem pelo cabo Málea – perigosíssimo para a navega-
ção no Peloponeso:

nunc illas promite uiris,


nunc animos, quibus in Gaetulis Syrtibus usi
Ionioque mari Maleaeque sequacibus undis. (V, v. 191-193)

“Manifestai agora aquelas forças,


agora, a coragem que nas gétulas Sirtes demonstrastes
e no mar Jônio e em Málea de incansáveis ondas”.

Ora, como Knauer aponta, Odisseu diante de Málea tem de


enfrentar tempestade por obra de Zeus e não consegue dobrar o cabo
(Odisséia IX, v. 80-81; XIX, v. 186-187), assim como acontece com
Menelau (III, v. 286-289) e Agamenão (IV, v. 514-516).159 Os troianos
têm sucesso por sua força e coragem, além de, e sobretudo, por sua

159
KNAUER- “Vergil and Homer”. In: TEMPORINI-HAASE (Ed.). Aufstieg und
Nierdergand der Römischen Welt. Einunddreissigster Band. Berlin-New York, Walter
de Gruyter,1981, p. 878.

– 186 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

pietas, na empresa em que Ulisses (como os Atridas) fracassa, castiga-


do pelo próprio pai dos deuses (IX, v. 67-69).
Mencionando sucintamente, nessa parte odissíaca da epopéia,
um episódio (a navegação junto ao cabo Málea) que a Odisséia narra-
ra mais detalhadamente,160 o poeta cria efeito que poderíamos cha-
mar de elipse intertextual: remete a uma cena do modelo que ele não
imitará, mas extraindo do confronto com o original sentido não
negligenciável. É notável que este passo seja o único em toda a Eneida
em que se menciona a navegação em torno a Málea: elipse também
intratextualmente.161

160
Para Geymonat, trata-se, simplesmente, de uma “implícita, mas não menos evidente,
homenagem a Homero” (Enciclopedia Virgiliana, vol. III, p. 327, verbete Malea).
161
Mas é preciso observar que Sérvio(-Dan.), em nota ao verso III, 204 (p. 378), apresenta
três versos em que se menciona o cabo Málea na narração que Enéias faz de seus
errores a Dido: postos à parte no manuscrito original do poema, teriam sido cancelados
na edição canônica. Se Forbiger e Mario Geymonat duvidam da autenticidade desses
versos (cético também se mostra Conington, segundo o qual eles não se adaptam bem
ao contexto), julgando-os obra de um interpolador, Paratore e Sabbadini, dentre ou-
tros, consideram-nos autênticos (ver Enciclopedia Virgiliana, vol. III, p. 327). Aceita a
hipótese da interpolação como a mais provável, é muito verossímil que a estranheza
quanto à elipse virgiliana tenha levado algum interpolador a preencher a lacuna paten-
te na narrativa das peregrinações marítimas de Enéias.

– 187 –
III – EFEITOS INTERTEXTUAIS NA
“ODISSÉIA” DE VIRGÍLIO
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

1. Parte odissíaca e parte iliádica

É quase unanimidade entre os estudiosos da Eneida que a epo-


péia de Virgílio foi concebida como uma imitatio unificadora dos dois
poemas homéricos, assim estruturada, em suas linhas gerais: os seis
primeiros livros modelados sobre a Odisséia e os seis últimos sobre a
Ilíada, num total de doze livros, um quarto do conjunto de cantos de
Homero. É preciso, hoje, voltar a essa questão, em virtude de consi-
derações como as de Cairns, que, recentemente, num estudo, de res-
to, muito interessante, propõe a leitura da Eneida fundamentalmente
como uma Odisséia com momentos de Ilíada.1
A divisão em duas partes homéricas vem sendo apregoada desde
os mais antigos comentadores e críticos da obra. Em Macróbio encon-
tramos estas palavras, que atestam toda uma tradição de leitura:

“Mas passo em silêncio essas e outras coisas repetidas às crianças. Pois a


própria Eneida não tomou emprestado de Homero primeiramente os
errores da Odisséia, depois, da Ilíada, os combates? É que a ordem dos
acontecimentos mudou necessariamente a ordem da obra, já que em
Homero antes se travou a guerra ilíaca, depois couberam a Ulisses, vol-
tando de Tróia, os errores, ao passo que em Marão, a navegação de
Enéias precedeu as guerras que posteriormente se travaram na Itália.”2

1
“The Aeneid as Odyssey” é o título de um capítulo que se encontra às páginas 177-214
de seu Virgil’s Augustan Epic, por nós já citado. Já no início do capítulo, Cairns estabe-
lece sua tese: a Eneida seria “não uma obra bipartida dividida por tema principal (isto
é, viagens ou batalhas) mas uma Odisséia unitária com episódios iliádicos importantes”
(p. 178).
2
Sed et haec et talia pueris decantata praetereo. Iam uero Aeneis ipsa nonne ab Homero
sibi mutuata est errorem primum ex Odyssea, deinde ex Iliade pugnas? Quia operis
ordinem necessario rerum ordo mutauit, cum apud Homerum prius Iliacum bellum
gestum sit, deinde reuertenti de Troia error contigerit Ulixi, apud Maronem uero
nauigatio bella quae postea in Italia sunt gesta praecesserit (V. 2, 6). É curioso notar
que Macróbio cria em seu próprio texto um quiasmo (errorem ex Odyssea...ex Iliade
pugnas) a reforçar a idéia de uma inversão estrutural, requerida pelo próprio assunto da
epopéia latina, feita por Virgílio na ordem dos poemas homéricos.

– 191 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Sérvio, como já vimos, também salienta a divisão em duas par-


tes; comentando o primeiro verso da epopéia vê na expressão arma
uirumque uma espécie de inversão estrutural, afinal Virgílio iniciou
com uma referência a guerras e ao peregrinar do herói, mas

“Primeiro fala dos errores de Enéias; depois da guerra”.3

Em outro momento, releva a duplicidade da imitatio virgiliana:

“Como dissemos no início, esta obra está dividida em duas partes: os


seis primeiros livros foram compostos à imagem da Odisséia...mas os
seis que seguem foram compostos à imagem da Ilíada...”4

Que o próprio Virgílio salientou essa divisão, parece-nos fácil


demonstrar com provas textuais. Em primeiro lugar, há a proposição,
que já comentamos: não apenas as duas palavras iniciais (com arma
em referência à parte iliádica; uirum, à parte odissíaca) mas também a
seqüência revelam a estrutura bipartida. De fato, pontuada pela aná-
fora, a divisão é clara:

multum ille et terris iactatus et alto


ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram – “Odisséia”

multa quoque et bello passus, dum conderet urbem – “Ilíada”5.

Em outro passo, a Sibila, neste livro que se apresenta de fato como o


divisor de águas, o centro da epopéia, isto é, o sexto, distingue as duas
seções maiores da saga de Enéias, ao dizer-lhe:
“O tandem magnis pelagi defuncte periclis
(sed terrae grauiora manent)...” (v. 83-84)

3
Nam prius de erroribus Aeneae dicit, post de bello (Op. cit., vol. I, p. 6)
4
Vt in principio diximus, in duas partes hoc opus diuisum est: nam primi sex ad imagi-
nem Odyssiae dicti sunt...hi autem sex qui sequuntur ad imaginem Iliados dicti sunt...
(Vol. II, p. 124, ad uersum VII,1).
5
V. Pöschl (Op. cit., p. 41).

– 192 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“‘Ó tu, que enfim escapaste aos grandes perigos do pélago


(mas os da terra, mais duros, te aguardam)..’.”

A oposição pelagi/terrae resume a trajetória heróica de Enéias –


de sua “Odisséia” por mar e sua, mais dura, segundo a Sibila, “Ilíada”
em terra.6
Mas, a nosso ver, a maior comprovação dessa leitura bipartida
da epopéia vem da análise estrutural dos livros. Como se crê, pelo
menos desde Conway, há uma nítida correspondência entre livros da
segunda metade e livros da primeira; outras relações estruturais enge-
nhosas se têm proposto, revelando de fato simetrias e contrastes sutis
entre as partes da Eneida, mas sem dúvida a associação proposta por
Conway é a que mais se impõe. Assim, o livro I e o livro VII estão
intimamente interligados – e é como se a epopéia, a partir do livro
VII, fosse reiniciar-se, retomando o livro I , com nova invocação à
Musa e a presença de numerosos temas e reiterações lexicais que re-
cordam o livro primeiro.
Antes de apresentar, porém, um quadro das relações entre es-
ses dois livros que encabeçam as duas metades da epopéia, cremos
necessário invocar a devida dose de cautela; de fato, na busca de sutis
correspondências entre os livros, alguns estudiosos traçam paralelos
forçados, artificiais (infelizmente, não só na análise dessa obra de
Virgílio). Assinalaremos um exemplo: em suas considerações sobre a
estrutura da Eneida, Edoardo Coleiro aponta esta suposta relação de
contraste entre um livro e outro:

“ Livro I Livro VII


Juno concerta entre Enéias e Dido o Juno tenta impedir o
matrimônio entre
matrimônio que Júpiter não quer. ← contraste → Enéias e Lavínia, que
Júpiter quer.”7

6
Já o notara, dentre outros, Hardie: “Claramente, sugere-se a distribuição de Mar para a
metade odissíaca da Eneida e de Terra para a metade iliádica” (Op. cit., p. 306).
7
Op. cit., p. 85.

– 193 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ora, Juno tem a idéia do casamento entre Enéias e Dido apenas


no livro quarto , após perceber que Dido, graças a Vênus, está apaixo-
nada pelo troiano (IV, v. 90-104): trata-se de um estratagema conce-
bido diante da situação criada pela rival da deusa, que pretendia, abra-
sando a rainha de amor, propiciar boa acolhida ao filho. Quanto à
tempestade do livro primeiro, provocada por Juno, tem por objetivo
aniquilar toda a frota, como fica claro nas ordens da rainha dos deu-
ses a Éolo, e não fazer desembarcar Enéias em Cartago para o ligar
matrimonialmente a Dido! Na tentativa de descobrir paralelos, Coleiro
falseia a apresentação da própria intriga da Eneida. Seu livro tem
méritos, porém, e ajudar-nos-á a traçar as correspondências mais se-
guras.
Segue abaixo um quadro que reproduz, com modificações, o de
Duckworth;8 acrescentaremos nossas observações a partir do esque-
ma proposto por esse estudioso, fruto não apenas de sua leitura indi-
vidual mas de análises feitas anteriormente por outros.

I VII

Juno e tempestade Juno e guerra

(Num livro e noutro, quando tudo parece ir bem, e os troianos


atingem a terra que lhes parece estar destinada, surge Juno e reverte a
situação, invocando forças caóticas: da natureza, em I; da vida social
– a guerra, em VII.)

Invocação à Musa Invocação à Musa


Troianos laeti (v. 35) Troianos e Enéias laeti
(v.36, 130, 147, 288)

8
DUCKWORTH, George. Structural Patterns and Porportions in Vergil’s Aeneid.Ann
Arbor, The University of Michigan Press, 1962, p. 8. Antes de Duckworth, Conway e
Pöschl, especialmente, trataram do tema das correspondências entre o primeiro e o
sétimo livro.

– 194 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

(Da alegria ao infortúnio – a arte virgiliana compraz-se no con-


traste que exalta a dramaticidade dos episódios e acentua o patético;
aqui, porém, um dado intratextual, a repetição do adjetivo nesse mo-
mento da intriga, conecta singularmente as duas situações.)

Juno lamenta sua falta de poder I

Juno levanta tempestade no mar com


a ajuda de Éolo e as forças da natureza II

Chegada em terra estrangeira Chegada em terra estrangeira (Lácio


(Cartago, após tempestade marítima) após navegação em águas tranqüilas)

Refeição na costa Refeição na costa

Profecia da grandeza romana Profecia da grandeza romana


(Júpiter a Vênus) (Fauno a Latino)

Vênus disfarçada encontra


Enéias – revela identidade III

Troianos já conhecidos Troianos já conhecidos

Pinturas do passado troiano Estátuas do passado latino


(ueterum effigies ex ordine
auorum, v. 177)

(Note-se: Enéias, no templo de Juno, em Cartago, uidet Iliacas


ex ordine pugnas, v. 456: nos dois passos a representação do passado
é feita ex ordine.)

Dido recebe os troianos Latino recebe os troianos

Ilioneu fala por Enéias Ilioneu fala por Enéias

Oferta de amizade e presentes Oferta de amizade e presentes

– 195 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

I Juno lamenta sua falta de poder


II Juno excita a guerra sobre a
terra, com a ajuda de Alecto e de
forças humanas

(Note-se a inversão estrutural: no primeiro livro, Juno age con-


tra os troianos, mas a tempestade provocada por Éolo é aplacada, e
eles são bem recebidos por uma rainha; no sétimo, são bem recebidos
por um rei, mas Juno age, através de Alecto, para suscitar um novo
tipo de tempestade: a guerra.)

III Alecto disfarçada visita Turno –


revela identidade

Vênus prevalece sobre Juno Juno prevalece sobre Vênus

Fechamento dos Portões da Guerra Abertura dos Portões da Guerra


(na profecia de Júpiter)

(Aqui, vê-se com clareza que Juno é, de fato, a força antidestino


que alguns estudiosos apontam9 como o papel central da deusa na
epopéia, pois provoca uma guerra não desejada pelo pai dos deuses,
que encarna o Fatum. Assim, no concilium deorum do livro X, Júpiter
declara que proibira o conflito entre troianos e latinos: Abnueram
bello Italiam concurrere Teucris, v. 8 – uma verdadeira guerra provo-
cada por sua esposa rebelde, cuja vontade se choca frontalmente com
os decretos dos destinos e, por isso mesmo, está fadada a não prevale-
cer.)

Efeito de Cupido sobre Dido Efeito da serpente sobre


(v. 685 e ss.) Amata (v. 349 e ss.)

Movimento do livro – da infelicidade Movimento do livro – da alegria à


à alegria infelicidade.

9
A expressão “antidestino” é de Otis: “Counter-Fate” (OTIS, Brooks. Virgil. A Study in
Civilized Poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963, p. 223, dentre outras).

– 196 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

O esquema acima é suficiente para demonstrar a conexão entre


os dois livros. Não é certamente preciso enumerar as iterações lexicais
– a intratextualidade explícita – que apóia esses paralelos; entretanto,
tendo apontado algumas, acrescentemos uns poucos mas curiosos exem-
plos. No livro I, o discurso de Ilioneu à rainha assim é introduzido:

maximus Ilioneus placido sic pectore coepit (v. 521)

“Mais velho, Ilioneu assim principiou com plácido peito...”

No livro VII, é o rei que responde à embaixada capitaneada por


Ilioneu com a expressão amistosa e acolhedora:

atque haec ingressis placido prior edidit ore (v. 194)

“E, ao entrarem, isto proferiu, adiantando-se, com plácido semblante...”

Mais que mera fórmula à Homero, a repetição, inserida em tal


contexto de reminiscências do livro I, funciona como signo intratextual.
O monólogo de Juno no livro VII é muito semelhante ao do
livro I; notemos:

Ast ego, magna Iouis coniunx (VII, v. 308)

“Mas eu, grande esposa de Júpiter...”

ast ego, quae diuom incedo regina Iouisque


et soror et coniunx (I, v. 46-47)

“Mas eu, que avanço como rainha e de Júpiter


não só irmã como esposa...”

Num e noutro livro, Juno se socorre de divindades subalternas,


dirigindo-se a Alecto e a Éolo, no sétimo e no primeiro, respectivamente:

Quam Iuno his acuit uerbis ac talia fatur (VII, v. 330)

– 197 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“A quem Juno incita com estas palavras e assim lhe fala...”

Ad quem tum Iuno supplex his uocibus usa est (I, v. 64)

“Junto a quem Juno, suplicante, usou de tais palavras...”

Notemos: quam/ad quem, em início de verso; his uerbis/his uocibus.

Mais significativo é que, se no livro I uma tempestade, provoca-


da pelos ventos desencadeados por Éolo a pedido de Juno, transforma
o dia em noite de repente (subito, v. 88), no livro VII, de repente
(repente, v.27) a mais acolhedora calmaria surge quando os troianos
estão para adentrar o Lácio – simbolicamente, o momento é o do
nascer de um novo dia:

Iamque rubescebant radiis mare et aethere ab alto


Aurora in roseis fulgebat lutea bigis,
cum uenti posuere omnisque repente resedit
flatus et in lento luctantur marmore tonsae. (VII, v. 25-28)

“E já enrubescia o mar com os raios e do alto éter


a Aurora fulgia lútea em róseas bigas,
quando tombaram os ventos e de repente cessou todo
sopro, e no lento mármore lutam os remos.”

Aqui, como por mão divina, a natureza mostra sua face mais
benévola aos recém-chegados. Curiosamente, Camões em sua epo-
péia explora o uso de tais imagens: a expedição do Gama chega à
Índia, após tempestade, ao raiar do dia:

“Já a manhã clara dava nos outeiros


Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.” (Lusíadas VI, estrofe 92, v. 1-6)

– 198 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

As intenções estéticas do lusitano parecem claras; a tempesta-


de anterior é, segundo Epifânio Dias, “pura ficção”10: o poeta deixa de
lado o relato histórico realista para dar sentido simbólico ao episódio
da chegada à terra demandada pelo Gama. Parece-nos difícil escapar
à conclusão de que Camões deve ter se inspirado na imagética da
Eneida. Confirma-o um forte indício intertextual: iamque/ já. Os ver-
sos brilhantes de Virgílio – prodígio de ritmo, delicadas sonoridades e
imagens sugestivas – certamente exerceram seu fascínio sobre esse
leitor atentíssimo da Eneida.
Mas, ao invés de tal leitura “simbólica”, poder-se-ia, com certa
razão, invocar um dado intertextual não desprezível. Como revela
Knauer11, o início do livro VII retoma o início do livro XII da Odisséia
(em aparente apoio à tese de Cairns de uma contínua Odisséia ao
longo da Eneida); ora, nesse passo do poema homérico, mostra-se
Odisseu chegando à terra de Circe ao raiar do dia. É preciso, porém,
rever o contexto com maior atenção; na verdade, Ulisses e os seus
aportam à ilha Eea antes do nascer do dia e o herói espera o surgimento
da Aurora para mandar seus homens à casa de Circe:

e)n/ qa d a
) p) robri/cantej e)mei/namen Hw= ) di=an.
håmoj d h ) r) ige/neia fa/ nh r (ododa/ ktuloj Hw/
) j,
dh\ to/t ) e)gw\n e (ta/rouj proi+hn ej) dw/ mata Ki/rkhj (Od. XII, v. 7-9)

“Então, caindo no sono, esperamos a divina Aurora.


Quando surgiu matutina Aurora de róseos dedos,
enviei eu os companheiros à morada de Circe”.

10
Os Lusíadas de Camões. Comentados por Augusto Epifânio da Silva Dias. 3. ed., MEC,
1972, p. 48. Para o comentador, a infidelidade do poeta tem o objetivo de dar “interes-
se poético ao resto da viagem” – dotar de aura simbólica a chegada, que inaugura uma
nova era de difusão da doutrina cristã e da civilização européia, completamos nós.
11
“...transformou o começo da Odisséia 12, que segue a Nékyia, no começo de seu sétimo
livro”, que se sucede à descida de Enéias ao Hades (KNAUER, Georg. “Vergil and
Homer”, p. 878).

– 199 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Um ponto de contato intrigante entre o livro I e o VII encon-


tramos no uso que faz Virgílio da imagem da tempestade. No símile
do livro inicial, o primeiro de toda a epopéia, o acalmar da tempesta-
de por Netuno é comparado ao apaziguamento de uma sedição, de
um conflito civil, por um velho cidadão a quem todos respeitam –
portanto, associa-se guerra a tempestade. Ora, no livro VII, o início
do conflito entre troianos e latinos, provocado por Juno, que fora a
responsável pela perturbação dos mares, aparece num símile (!) com-
parado ao mar revolto, em curioso efeito intratextual de inversão:

fluctus uti primo coepit cum albescere uento,


paulatim sese tollit mare et altius undas
erigit, inde imo consurgit ad aethera fundo. (VII, v. 528-530)
“Como, ao primeiro vento, começa a alvejar a vaga,
pouco a pouco se ergue o mar e mais alto as ondas
levanta, então do fundo abismo se eleva para o éter.”

O rei Latino, que tenta resistir ao crescendo de hostilidades é


comparado a uma rocha batida pelas ondas do mar (VII, v. 586 e ss.);
em dado momento, exclama ele: “somos atingidos pela procela!”
(ferimurque procella!, v. 594), em referência à situação em que se
encontra o Lácio.
A intratextualidade nos leva a comparar e distinguir: no livro I,
Netuno acalma o mar revolto e serena os elementos; no VII, Latino é
incapaz de fazer frente ao furor desencadeado por Juno. A inversão
(mar revolto comparado a tumulto civil/ tumulto civil12 comparado a
mar revolto) reforça a diferença entre o poder soberano do deus e a
incapacidade do rei, que abandonará as rédeas do mando.
Apesar de todos esses paralelos, pode-se contra-argumentar, po-
rém, com as observações de Knauer, que mostra como nos primeiros
livros da segunda parte continua forte a imitatio da Odisséia.13 De
12
Voltaremos ao tema no capítulo seguinte: a guerra no Lácio é uma guerra civil.
13
Die Aeneis und Homer, p. 241 e ss. Nos livros 7 e 8, tem-se retomada dos livros 13 e 14
da Odisséia, além da Telemaquia. (Ver também KNAUER. “Vergil and Homer”,
p. 884 e ss.)

– 200 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

fato, reminiscências dessa epopéia homérica permeiam toda a segun-


da metade da Eneida, como a relação das Homerzitate, exaustiva-
mente feita por Knauer, revela. Entretanto, nunca se disse que na
primeira metade de seu poema Virgílio imita só a Odisséia como na
segunda imitaria só a Ilíada; vimos como até mesmo a proposição,
aparentemente odissíaca, incorpora elementos da Ilíada. Nada é sim-
ples na concepção de uma obra como a Eneida; mas continuamos a
manter a tese tradicional da divisão em duas grandes partes, de acor-
do com os seus dois modelos fundamentais. Virgílio emprega as duas
fontes ao mesmo tempo continuamente; na parte odissíaca de sua
epopéia, temos o amplo desenvolvimento dos jogos, no livro V, cujo
modelo evidente são os jogos do livro XXIII da Ilíada, sem que isso
signifique renúncia ao princípio de privilegiar aqui o modelo da Odis-
séia.
Assim, se é verdade que a Ilíada se faz sentir com mais força
como hipotexto a partir do livro IX da Eneida, a intenção de Virgílio
não é menos clara: a partir do livro VII tem início uma nova fase da
intriga; a nova invocação à Musa nos parece eliminar toda incerteza:

Nunc age, qui reges, Erato, quae tempora rerum,


quis Latio antiquo fuerit status, aduena classem
cum primum Ausoniis exercitus appulit oris,
expediam et primae reuocabo exordia pugnae.
Tu uatem, tu, diua, mone. Dicam horrida bella,
dicam acies actosque animis in funera reges
Tyrrhenamque manum totamque sub arma coactam
Hesperiam. Maior rerum mihi nascitur ordo,
maius opus moueo. (VII, v. 37- 45)

Na tradução de Odorico:

“Eia, Erato, exporei do Lacio antigo


Os reis, o estado, a successão de cousas,
Quando aportou n’Ausonia a estranha armada;
Vou do conflicto recordar o exordio.
Tu diva, tu me inspira: horridas guerras

– 201 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Dirá teu vate, os prelios, os monarcas


Ferozes por seu damno; as Tuscas hostes,
A coalição direi da Hesperia em armas.
Mór assumpto se me abre, he mór a empresa.”

Atentemos para o fato de o poeta dizer que passará a cantar as


guerras – portanto, aqui se inicia a parte iliádica, anunciada na pro-
posição; além disso, releva a superioridade da temática que principia
(maius opus), uma dentre as várias manifestações, entre os Antigos,
do maior apreço com que se tinha a epopéia bélica em confronto com
a de “aventuras”, superando a Ilíada em prestígio à Odisséia.14
No livro VI da Eneida, a Sibila anuncia claramente que uma
espécie de nova Ilíada se anuncia para Enéias, com guerras terríveis,
um Simoente e um Xanto, acampamentos dóricos e até mesmo um
outro Aquiles:

alius Latio iam partus Achilles (VI, v. 89)

Novamente, a causa do conflito será um casamento com es-


trangeiro:

Causa mali tanti coniunx iterum hospita Teucris


externique iterum thalami. (v. 93-94)

“A causa de tão grande mal para os teucros será de novo uma esposa
estrangeira e de novo tálamos externos”.

Portanto, ao contrário do que pensa Cairns, evidencia-se que a


segunda parte da epopéia será uma espécie de Ilíada, semelhante ao
poema bélico de Homero e, ao mesmo tempo, diverso, como vere-
mos.
14
Ironicamente, esta segunda parte que Virgílio parece prezar mais é a menos lida e
estudada, apesar de certas tentativas de revalorizá-la (a de Gransden, sobretudo, cujo
estudo já citamos, merece registro).

– 202 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Desenvolvendo sua tese, Cairns procura justificar a suposta es-


colha privilegiada da Odisséia como principal modelo da Eneida; en-
tretanto, algumas de suas considerações são discutíveis. O argumento
de que Odisseu, ao contrário do colérico Aquiles, era defendido por
filósofos como os estóicos e o cínico Antístenes15, elevando, assim, o
conceito em que se tinha sua saga, moralmente superior à de Aquiles,
não nos convence, pois um dado textual, ao qual voltaremos, não
pode ser ignorado: do ponto de vista dos troianos, Ulisses é um trapa-
ceiro criminoso e ímpio.16 Enéias, veremos, é posto na situação de um
Odisseu, mas se comporta de forma diferente da do herói grego, mais
de uma vez execrado na epopéia latina. Quanto à admiração maior de
que a Odisséia pareceria gozar entre os Romanos, não se deve esque-
cer que Propércio, saudando o surgimento da Eneida, afirma que está
nascendo algo superior à Ilíada – portanto, era esse o modelo supre-
mo de epopéia e era a tal obra que Virgílio parecia poder superar; os
Romanos contavam com o aparecimento de sua Ilíada definitiva:

Cedite Romani scriptores, cedite Grai!


nescio quid maius nascitur Iliade. (Elegias, II, 34, v. 65-66)

“Cedei o passo, escritores romanos, cedei, gregos!


Nasce não sei o quê mais grandioso que a Ilíada.”

Propércio certamente sabia que a epopéia de seu amigo Virgílio


continha, de alguma forma, uma Ilíada (atente-se para arma: o poeta
parece já conhecer o proêmio da Eneida):

qui nunc Aeneae Troiani suscitat arma


iactaque Lauinis moenia litoribus. (v. 63-64)

15
Op. cit., p. 182.
16
Para Cairns, essas críticas a Odisseu não invalidam sua tese: Enéias seria um Odisseu
de outra estampa (Op. cit., p. 193).

– 203 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Que, agora, revive as armas do troiano Enéias


e as muralhas estabelecidas no litoral lavínio”.

Inconvincente, também, se nos afigura a sugestão de que a


Odisséia oferecia a Virgílio um épico dominado por uma personagem
principal, ao contrário da Ilíada, em que, ao lado de Aquiles avulta
especialmente Heitor, dentre outros, criando-se a impressão de um
grupo de protagonistas, apesar da predominância de Aquiles.17 Ora,
justamente na parte mais propriamente bélica da segunda metade (li-
vros IX-XII), avulta a figura de Turno, além de momentos protagoni-
zados por personagens como Palante, Camila, Mezêncio, Niso e
Euríalo! Por outro lado, o livro IV da metade odissíaca põe nitida-
mente Dido, não Enéias, em primeiro plano. Virgílio, aqui, parece ter
perseguido uma certa simetria na apresentação dos personagens: na
primeira metade da epopéia, avultará por vezes a figura de Dido; na
segunda, a de Turno – dois personagens que terão com o protagonista
por excelência, Enéias, se assim podemos nos expressar, uma relação
especial. Desse modo, revela-se bastante frágil a argumentação de
Cairns neste ponto.
Na verdade, o estudioso não leva em conta o que a crítica tem
apontado por vezes: Enéias não assume tão somente traços de uma
personagem de Homero. Na segunda metade da epopéia, ele se en-
contra ora na situação de Aquiles, ora na de Heitor, de tal forma,
cremos, que a previsão da Sibila é, como costumavam ser os oráculos,
especialmente ambígua, de maneira a manter um certo suspense até o
final da Eneida – quem será o novo Aquiles? A um dado momento da
epopéia, Turno se julgará tal, mas ao final do último livro se saberá
que Enéias terá assumido, na trama iliádica geral, o papel do herói
grego – não será exatamente como ele, não será Aquiles redivivo,
mas lhe caberá na intriga uma atuação comparável, ao passo que Tur-
no, ora aparente Aquiles, ora Heitor, morrerá como este último. Nova-

17
Op. cit., p. 184-185.

– 204 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

mente, é preciso recordar a extraordinária complexidade da Eneida,


que jamais apresenta elementos de composição estanques e facil-
mente delineáveis, o que explica de fato a diversidade de opiniões
dos críticos diante da análise dos personagens, em especial de Enéias,
Turno e Dido, sobre os quais juízos contraditórios têm sido expres-
sos.
Já comentamos a proposição da Eneida sob o ângulo da inter-
textualidade; para Cairns, o prólogo da obra é um dos indícios de que
a epopéia se pretende uma “Odisséia aperfeiçoada”, propondo Enéias
como um “Odisseu superior”.18 Ora, vimos que a análise métrica, além
da temática e da composição em geral, revela que Virgílio também
aqui não se esquece da Ilíada.
Cremos, portanto, que a divisão da Eneida em duas partes, cada
uma delas fundada sobre um modelo privilegiado19, tem de ser mantida,
feitas as necessárias ressalvas, em especial, a de que o poeta constan-
temente “contamina” as duas “fontes”, e essas com outras mais. Não
se trata de uma visão ingênua, de redutora dicotomia, mas de um
princípio estrutural confirmado por dados textuais eloqüentes. A cor-
respondência notável entre os livros que encabeçam as duas metades
da epopéia acentua a divisão. Vimos que essas relações (de semelhan-
ça e contraste) unem livros da segunda parte aos da primeira, mais ou
menos como a Odisséia e a Ilíada apresentam correspondências entre
si (e entre livros no corpo de cada epopéia), como a crítica tem de-

18
Op. cit., p. 193.
19
Dentre tantos estudiosos sérios da Eneida que dão como evidente esse dado estrutural,
mencionemos Otis, cuja obra, um dos estudos fundamentais da epopéia, apesar de ter
sido escrita há mais de trinta anos, traz capítulos intitulados “The Odyssean Aeneid”
(p. 215) e “The Iliadic Aeneid” (p. 313). Mais recentemente, após inventariar os diver-
sos modelos que tentam explicar a estrutura da epopéia, um estudioso conclui: “a úni-
ca divisão manifestamente clara a nossos olhos continua sendo a divisão em duas par-
tes” (LESUEUR, Roger. L’Énéide de Virgile. Essai sur la Composition Rythmique d’une
Épopée. Toulouse, Association des Publications de l’Université de Toulouse-Le Mirail,
1975, p. 26); esse estudioso, entretanto, propõe outra divisão possível (ver a nota 22).

– 205 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

monstrado. Talvez Virgílio, leitor atentíssimo de Homero, tenha pro-


curado criar uma estrutura geral que reproduzisse, mutatis mutandis,
esse aspecto intratextual da estrutura de cada um dos épicos e a
intertextualidade (ou autotextualidade) da Odisséia com relação à
Ilíada.20 Seja como for, sua Eneida incorpora de forma complexa as
duas epopéias homéricas, fazendo seguir à peregrinação do herói um
relato de batalhas.21
Aqui, não nos esquecemos de estudos como o de Duckworth,
que, após Stadler, Pöschl e Büchner, aponta também na Eneida um
esquema tripartido:22

20
Eis, por certo, um tema a aprofundar em pesquisa específica: até que ponto Virgílio não
leu Homero muito mais sutilmente do que se tem imaginado, percebendo em seu mo-
delo associações intratextuais complexas? Em todo caso, a técnica intertextual virgiliana
é demasiado elaborada e singular para podermos atribuir a outro poeta que não a ele
essa arte de compor original e, com toda probabilidade, de inédita radicalidade na
história da epopéia.
21
Digna de atenção especial a hipótese de que Virgílio, fazendo sua leitura pessoal da
obra homérica, pode ter percebido relações intertextuais mais sutis entre a Odisséia e a
Ilíada e procurado reproduzi-las na estrutura de seu poema. É um campo a ser explora-
do e cujo estudo pode fornecer argumentos para a defesa da estrutura bipartida da
Eneida. Apontemos um exemplo: se, como já se vem observando, o papel de mensagei-
ro dos deuses é deixado para Íris na Ilíada e para Hermes na Odisséia, na metade
odissíaca da Eneida o mensageiro é Mercúrio (Hermes), que anuncia a Enéias as or-
dens de Júpiter (IV. v. 222) ou incita o troiano a fugir de Cartago o mais depressa
possível (IV. v. 448), ao passo que na metade iliádica a mensageira é Íris, que ora se
dirige a Turno, a pedido de Juno (IX, v. 2), ora a Juturna, a mando de Júpiter (IX, v.
803). É verdade que Íris também aparece na primeira parte da Eneida, mas não como
portadora de mensagem divina: em IV. v. 694 e ss., é enviada por Juno para abreviar a
agonia de Dido; em V. v. 606 e ss., disfarça-se em Beroé para incitar as troianas a
incendiar a frota. Virgílio, como era de se esperar, revela-se um leitor atento de Homero.
22
Lesueur nega a existência dessa estrutura e propõe para a parte odissíaca uma compo-
sição “embrassée”, em que os livros I-III e V-VI enquadrariam o livro IV. central
(LESUEUR, Roger. Op. cit., p. 68-106). Tal análise, porém, parece-nos pouco convin-
cente, ao contrário de suas interessantes e consistentes observações sobre o ritmo ternário
que seria freqüente na construção dos episódios como na própria expressão lingüística
da epopéia.

– 206 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

I-IV(TRAGÉDIA DE DIDO) V/VIII(DESTINO DE ROMA) IX-XII (TRAGÉDIA


DE TURNO)23
Como aquele último estudioso afirma, a divisão tripartida não
se substitui ao agrupamento em duas metades, mas vem se sobrepor a
este.24

2. ENÉIAS: ALTER ULISSES?

Os seis primeiros livros da Eneida constituem a Odisséia do


troiano Enéias; a partir disso, podemos indagar as conseqüências des-
sa aproximação. Adiantemos nossa leitura: Virgílio extrai desse con-
fronto sentidos nem sempre percebidos; o périplo de Enéias o coloca

23
É claro que a determinação dos temas centrais de cada tríade é discutível. Para nós, o
esquema acima tem a vantagem de ressaltar o papel preponderante de Dido e Turno,
que, com Enéias, dividem ou dominam a cena em amplos blocos narrativos. Em todo
caso, a proposta de Duckworth supera a de autores como Pöschl: I-IV (Ilíada troiana),
V-VIII (Odisséia de Enéias), IX-XII (Ilíada latina) – ver Enciclopedia Virgiliana, vol.
II, p. 244. Dentre outras críticas possíveis a esse esquema, apontemos que ele não leva
em conta o caráter nitidamente odissíaco do livro III, a massa de alusões a esse poema
homérico no primeiro canto, bem como a concentração, nessa segunda parte, de tema
iliádico por excelência (guerra contra uma cidade) apenas no segundo. Por outro lado,
analisando o simbolismo trevas/luz, que é tão marcante na epopéia, Pöschl vê na pro-
gressão das tríades de livros este “ritmo”: trevas-luz-trevas (Die Dichtkunst Virgils, p.
280); ora, autores como Perret relevaram a visão trágica e sombria do poeta ao longo
da obra e que contamina até mesmo a profecia aparentemente otimista de Anquises e
a revista dos heróis no livro VI (o exemplo maior é o episódio do jovem Marcelo).
Quanto à noção de que os livros pares são mais sombrios que os ímpares, ressalvas são
necessárias, afinal, um livro como o III, por exemplo, finda com a morte de Anquises,
episódio que, na visão de Enéias, foi sua maior provação (Hic labor supremus, v. 714),
e o livro VII retrata a ação da terrível Alecto sobre Amata, Turno e os latinos, que
desemboca numa guerra funesta.
24
Op. cit., p. 13. Dessa forma, Virgílio evitaria uma dura quebra entre as duas metades da
epopéia, diz Duckworth; mas é preciso acrescentar: não apenas com a subdivisão em
três partes como também por meio das correspondências entre os livros de uma e outra
seção. Lesueur entretanto, vê incompatibilidade entre as duas divisões propostas (Op.
cit., p. 36).

– 207 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

na situação de um Ulisses que, pela diversidade de comportamentos,


aparecerá transformado por nova ética. Contudo, é preciso tomar
cuidado com as conclusões fáceis, pois a técnica intertextual do poeta
latino é sempre rica de nuanças.
Não é incomum na crítica virgiliana25 a análise seguinte: o nóstos
de Enéias se apresenta como diverso do de Odisseu; este sofre por
mares e terras para retonar para casa, ao passo que aquele sai de casa
para enfrentar o desconhecido e ir ao encontro de uma terra estran-
geira assinalada pelo destino; aparentemente, temos um caso de in-
versão, comum no jogo intertextual virgiliano. Na verdade, sabere-
mos no decorrer da própria parte odissíaca da epopéia que a ida a uma
terra aparentemente estrangeira é uma espécie de volta às origens
troianas, ao local onde surgira a raça. Num plano que ultrapassa o
individual, Enéias, como arquétipo de seu povo, está de fato retornando
a um antigo e esquecido lar: a raça troiana retorna ao esquecido ber-
ço. O rei Ânio, sacerdote de Apolo, incita os troianos que consulta-
ram o oráculo a procurar a antiga mãe, indicação da Itália, mal inter-
pretada por Anquises, como se verá:

Antiquam exquirite matrem.


Hic domus Aeneae cunctis dominabitur oris
et nati natorum et qui nascentur ab illis. (III, v. 96-98)

“Procurai a antiga mãe.


Aqui a casa de Enéias dominará sobre todas as plagas
bem como os filhos de seus filhos e os que deles nascerão”.

25
OTIS pode servir de exemplo de afirmações que precisam sofrer ressalvas: “O nostos
da Odisséia, que é realmente a imemorial história da volta ao lar de um homem, foi,
assim, transformado no que era quase seu oposto, o progresso de um homem distante
de seu lar, distante do centro emocional de toda sua vida afetiva, em direção a uma
nova, desconhecida e até mesmo temível meta...”(Op. cit., p. 224-225). Do ponto de
vista individual, descreve-se bem a saga de Enéias; mas se pensarmos na função provi-
dencial que o transcende como mero indivíduo, a ida ao Lácio desse herói responsável
pela sobrevivência e transfiguração do destino de sua raça é também um nóstos.

– 208 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

É notável, porém, e tem sido reconhecido pela crítica, sobretu-


do desde Knauer, que a comparação de Enéias com Ulisses permite a
Virgílio distinguir seu herói do modelo grego. Trata-se de operação
complexa que põe em relevo semelhanças e diferenças.
Antes de prosseguir é necessário pensar nesta equação: Enéias
como alter Ulixes. Pode-se pensar que Virgílio tenha baseado sua
personagem num Odisseu interpretado pela filosofia cínico-estóica,
isto é, como modelo de superação dos labores e dos prazeres pernici-
osos?26 De fato, o poeta insiste no tema dos labores pacientemente
enfrentados por seu protagonista;27 sua relevância se patenteia no
fato de aparecer já no proêmio, na primeira apresentação de Enéias
ao leitor:

multa quoque et bello passus (I, v. 5)

quidue dolens regina deum tot uoluere casus


insignem pietate uirum, tot adire labores
impulerit. (I, v. 9-11)

No livro XII, temos o passo célebre em que Enéias se dirige ao


filho Ascânio antes de voltar para o campo de batalha; as primeiras
palavras do herói reconhecem que não lhe está destinada a sorte fácil
mas o enfrentamento de um duro penar:

“Disce, puer, uirtutem ex me uerumque laborem,


fortunam ex aliis.” (XII, v. 435-436)

“Aprende, criança, de mim a virtude e o verdadeiro labor,


dos outros, a felicidade”.

26
Sobre essa análise da personagem homérica, pode-se consultar BUFFIÈRE, F. Les Mythes
d’Homère. Paris, “Les Belles Lettres”, 1973, p. 772 e ss. Com os neoplatônicos, Odisseu
se transformará em imagem acabada do sábio perfeito (p. 386).
27
“Aeneas Patiens” é o sugestivo título de um artigo de Francesco della Corte In: Atti
del Convegno Nazionale di Studio su Virgilio. Torino, Regione Piemonte, 1984,
p. 55-65.

– 209 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Enéias tem consciência de que não é quinhão seu a felicidade


individual; sua ação é o enfrentamento de um labor que revela uma
virtude férrea. Aqui, o troiano parece realmente falar com a firmeza
de um estóico, se bem que, para um filósofo da seita ortodoxo, prova-
velmente não haveria a distinção que, no fundo, realiza o herói entre
uirtus/labor e fortuna, pois, sob quaisquer circunstâncias, o sábio se-
ria feliz (mas eis um ponto controverso e debatidíssimo!). Os que ten-
dem a ver na saga do protagonista um progresso rumo a uma postura
estóica diante do mundo, não podem ignorar o fato de que Enéias
nunca nega sua condição de mortal que sofre e lamenta o sofrimento
causado pelos destinos, como no encontro com Dido nos Infernos,
bem longe estando da imperturbabilidade e da ataraxia, como o de-
monstrará, também, sua face guerreira à Aquiles, em que as iras de-
sempenham não pequeno papel...
Essas breves considerações são suficientes, cremos, para descar-
tar uma leitura de Enéias como um Odisseu reinterpretado pelo crivo
estóico; na verdade, maior é a repulsão por ela quando passamos em
revista o retrato que o próprio poema traça do herói grego. Ora, trata-
se de uma visão nitidamente negativa, mesmo porque o ponto de vis-
ta privilegiado é o dos troianos vencidos pela astúcia inescrupulosa de
Odisseu. Em seu relato, Enéias deixa claro que os gregos só consegui-
ram tomar de assalto Tróia graças a insídias e perjúrios.28 Não fosse a
condenável perfídia dos gregos, Tróia subsistiria; os troianos foram
vítimas de excesso de confiança na palavra alheia e um sentimento de
compaixão que os cegara:

28
Esse juízo estava difundido na Antigüidade, a ponto de alguns, como Varrão, dize-
rem que os troianos não tinham sido, em rigor, vencidos, pois, pegos de surpresa
través de ardis, não houvera rendição aos inimigos. Veja-se o comentário de Sérvio
(–Danielino): Varro et ceteri inuictos dicunt Troianos, quia per insidias oppressi
sunt; illos enim ‘uinci’ adfirmant qui se dedunt hostibus (“Varrão e outros chamam
invictos os troianos, já que só foram subjugados através de uma cilada; de fato, afir-
mam que são vencidos apenas os que se entregam aos inimigos”: Op. cit., vol. II, p.
516, ad uersum XI, 306).

– 210 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Talibus insidiis periurique arte Sinonis


credita res, captique dolis lacrimisque coactis
quos neque Tydides nec Larisareus Achilles,
non anni domuere decem, non mille carinae. (II, v. 195-198)

“Com tais insídias e com a arte do perjuro Sinão,


acreditou-se na história, capturados por dolos e coagidos por lágrimas
os que nem o Tidida nem Aquiles de Larissa,
nem dez anos domaram, nem mil navios.”

Enéias comenta assim a astúcia perversa de Sinão, mas se


depreende da epopéia que ela é apenas um exemplo dessa criminosa
insídia cujo expoente maior é Odisseu.
As referências a Ulisses na Eneida são negativas; um caso discutí-
vel é o do episódio de Aquemênides, que comentaremos posteriormente.
Enéias abre seu relato a Dido dizendo que os acontecimentos da queda
de tróia comoveriam até mesmo um soldado do duro Ulisses (duri miles
Vlixi, II, v. 7); para o troiano, portanto, o grego demonstra normalmente
insensibilidade. Essa expressão, com o adjetivo durus, merece destaque,
pois se aproxima fonicamente de uma outra, dirus Vlixes, que aparece
duas vezes: em II, 261 e 762, na narrativa de Enéias. Ora, como Knight
apontou, um leitor de Homero logo evocaria uma de suas fórmulas –
di=oj Odusseu/
) j29; na verdade, o autor aponta só dirus como equiva-
lente virgiliano da expressão homérica, mas nos parece evidente que durus
também fica associado a essa evocação.30 Eis um caso exemplar de suges-
tão intertextual: Virgílio salienta a visão troiana do herói grego modifi-
cando seu epíteto, que passa de positivo a negativo, mas com sons que
evocam – aqui a chave da alusão – os da fórmula homérica. Note-se a
conotação de dirus, que significa “terrível”, “funesto” (as Dirae são as
Fúrias, que o poeta denomina geminae pestes em XII, v. 845).

29
A expressão comparece muitas vezes; a título de exemplo: Il. I, v. 145; II, v. 244; III,
v. 205 e 314; etc.; Od. I, v. 196, 398; II, v. 27; etc.
30
Op. cit., p. 195. Veja-se também o verbete Ulisse na Enciclopedia Virgiliana, 1990,
v. V*, p. 359.

– 211 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Em III, v. 273, de novo o ponto de vista dos troianos; ao passa-


rem por Ítaca, amaldiçoam a terra natal do herói grego:

et terram altricem saeui exsecramur Vlixi.

“E execramos a terra nutriz do feroz Ulisses”.

É interessante notar que nessa passagem o poeta reproduz de


perto a dicção homérica, em alusão intensa; veja-se:

Iam medio apparet fluctu nemorosa Zacynthos


Dulichiumque Sameque et Neritos ardua saxis. (III, v. 270-271)

“Já em meio às águas aparece a nemorosa Zacinto


e Dulíquio e Same e Nérito de rochas escarpadas”.

Na Odisséia, em discurso do protagonista a Alcínoo:

e)n d o) r
/) oj aut) $=,
Nh/riton einosi/
) fullon a)riprepe/j! a)mfi\ de\ nh=soi
pollai\...
Douli/xio/n te Sa/ me te kai\ u(lh/essa Za/ kunqoj. (IX, v. 21-24)

“na qual se eleva um monte,


Nérito de comas tremulantes; ao redor, ilhas numerosas...
Dulíquio e Same e também a silvosa Zacinto”.

Note-se o sintagma similar em última posição, com mesmo nome


próprio e epíteto sinonímico (nemorosa Zacynthos/ u( l h/ e ssa
Za/ kuntqoj), coordenação idêntica dos mesmos nomes próprios
(Dulichiumque Sameque / Douli/xio/n te Sa/ me te; Sameque et /
Sa/ me te kai\), nome próprio com sua caracterização (Neritos ardua
saxis / Nh/riton ei )nosi/fullon); no último paralelo, divergem as
expressões adjetivais, mas ardua saxis pode ter sido sugerida pelo ad-
jetivo trhxei=a, aplicado a Zacinto no verso 27.

– 212 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Curiosamente também Aquiles é chamado saeuus – saeuom


Achillem, em narrativa de terceira pessoa que se “contamina”, po-
rém, com a subjetividade da personagem em foco: ao invés de Enéias
a admirar as pinturas do templo de Juno em Cartago (I, v. 458). O
filho daquele herói grego, Pirro, ou Neoptólemo, é representado no
livro II (do ponto de vista de Enéias, portanto) como um matador
sangüinário, que, após imolar o filho de Príamo diante do próprio pai,
assassina impiedosamente o velho, que se refugiara junto a um altar
(II, v. 526-558).31 Esse ato sacrílego de Pirro será punido; no livro III,
saberemos que o filho de Aquiles morrerá de maneira tão bárbara
quanto aquela com que imolara Príamo: assassinado por Orestes tam-
bém junto a um altar (patrias...ad aras) que deveria protegê-lo (III,
v. 330-332). Assim, aquele ato ímpio de um grego como que será
punido por uma espécie de justiça divina a funcionar com os métodos
de uma lei do talião.32

31
No verso seguinte, o comentário de Enéias explicita o efeito que o poeta pretendeu
com a cena: o de horror diante de tanta abominação: At me tum primum saeuos
circumstetit horror (“Mas então, pela primeira vez, violento horror me envolveu”).
32
Observemos que o corpo do rei é retratado, magistralmente, como um corpo decapita-
do abandonado na costa:

Iacet ingens litore truncus,


auolsumque umeris caput et sine nomine corpus. (II, v. 558-559)

“Jaz, ingente tronco à beira-mar:


cabeça arrancada dos ombros e corpo anônimo”.

Um dia Orestes matará (obtruncat, III, v. 332) o matador de Príamo. As traduções


correntes normalmente eludem um traço importante desse verbo: na verdade, Orestes
decapita Pirro, que, assim, expia a impiedade cometida morrendo como Príamo, e
igualmente junto aos altares que não o salvam. Boa solução em Odorico: “estronca”;
mas Perret traz um pálido “tue”, perdendo a associação, como Spalding (“mata”),
Bacchielli (“uccise”) , Caro (“tolse la vita a lui”) e Canali (“massacra”). Estendemo-nos
nos exemplos para ilustrar como o estudo intratextual deveria fornecer subsídios para a
tradução; dentre todos os citados, só Odorico é, aqui, sob esse aspecto, “fiel”. Boa e
detalhada análise em HEUZÉ, Philippe. L’Image du Corps dans l’Oeuvre de Virgile.
Roma, École Française de Rome, 1985, p. 147-152; louvável o relevo dado ao sentido

– 213 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Laocoonte, que tentaria impedir os troianos de acolher em sua


cidade o fatal cavalo maquinado por Ulisses, associa a perfídia grega à
figura dessa personagem, em passagem interessante; do ponto de vis-
ta troiano, o grego é conhecido pelos aspectos negativos de sua inteli-
gência, vale dizer pelos dolos:

aut ulla putatis


dona carere dolis Danaum? sic notus Vlixes? (II, v. 43-44)

“ou julgais que algum


dom dos Dânaos carecem de dolos? É assim que conheceis Ulisses?”33

Note-se a associação aliterante dona dolis Danaum e o desta-


que a Ulisses como exemplo da velhacaria grega.
Comentando a perfídia de Sinão, Enéias define sua visão dos
gregos que tomaram Tróia de assalto:

Accipe nunc Danaum insidias et crimine ab uno


disce omnis (II, v. 65-66)

“Escuta, agora, as insídias dos dânaos e, pelo crime de um,


conhece todos”.

O discurso de Sinão é exemplo de habilidade retórica utilizada


para fins perversos, arte grega, segundo o próprio Enéias afirma, co-
mentando palavras do enganador:

em que se deve entender obtruncat (p. 151) – infelizmente, os tradutores não parecem
cientes da importância intratextual desse detalhe.
33
A expressão lapidar, concisa e veemente, deve ter se popularizado até se tornar prover-
bial, sugere Paratore (no vol. I de seu comentário, p. 252), que invoca o fato de compa-
recer tal e qual no Satiricon, XXXIX, 3; aqui, porém, é possível outra explicação: no
contexto, Trimalcião recita o sic notus Ulixes? e comenta: Quid ergo est? Oportet
etiam inter cenandum philologiam nosse (“E então? Deve-se até mesmo em meio a um
jantar ter conhecimento das letras”). O novo-rico quer obviamente demonstrar cultu-
ra citando seu Virgílio...

– 214 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Ille dolis instructus et arte Pelasga. (II, v. 152)

“Ele, instruído pelos dolos e pela arte pelasga...”

Ulisses, em sua cruel astúcia, é apenas o exemplo mais acabado


de uma característica compartilhada pelos gregos, em contraste com
a ausência de malícia dos troianos.
No intuito de conquistar a simpatia dos ingênuos enganados,
Sinão pinta Odisseu como um embusteiro criminoso:

Inuidia postquam pellacis Vlixi (II, v. 90)

“Depois que, pelo ódio do pérfido Ulisses...”

No discurso de Sinão, o grego é um intrigante impiedoso:

hinc semper Vlixes


criminibus terrere nouis (II, v. 97-98)

“A partir daí, Ulisses sempre


a aterrorizar com novas acusações...”

scelerumque inuentor Vlixes (II, v. 164)

“Ulisses inventor de crimes...”34

Portanto, a personagem homérica é pintada como uma espécie


de gênio do mal, uma inteligência usada para fins destrutivos e iní-
quos.35 Uma de suas vítimas, Deífobo – novamente o ponto de vista
dos vencidos troianos – assim o define:

34
Sêneca faz ecoar a Eneida, em sua tragédia Troades (As Troianas); Andrômaca chama
Odisseu machinator fraudis et scelerum artifex (“maquinador de fraude e artífice de
crimes”, v. 750).
35
Ecoando o retrato virgiliano de Ulisses, Dante o mostra no oitavo círculo do Inferno,
expiando, entre os embusteiros, o “ardil do cavalo” de madeira (“l’agguato del caval” –
canto XXVI, v. 59 do “Inferno” da Divina Comédia). Quanto a Camões, nos Lusíadas

– 215 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

hortator scelerum Aeolides (VI, v. 529)

“o eólida encorajador de crimes”.

O epíteto esconde, para o leitor não iniciado na mitologia, um


insulto: Deífobo alude a uma versão nada honrosa sobre o nascimen-
to de Odisseu. Este seria filho de Sísifo (por sua vez filho de Éolo).
Ora, como se sabe, a personagem era exemplo de patifaria e cruelda-
de – uafer o chama Horácio, nas Sátiras, II,3,21; Lucrécio evoca a
punição que tradicionalmente essa personagem recebia no Hades:
condenado a rolar eternamente montanha acima uma pedra que, mal
chega ao topo, precipita-se abaixo, obrigando-o a recomeçar a tare-
fa.36 Assim, Virgílio incorpora uma face do mito nada positiva para
Ulisses e que, claro, está ausente da Odisséia, em que ele será sempre
o filho de Laertes. É possível entrever aqui uma ironia, por efeito in-
tertextual; Deífobo o chama Aeolides, em fórmula do tipo homérico;
ora o próprio Odisseu se apresentara a Alcínoo assim:

ei m)/ Oduseu\
/) j Laertia/dhj, o(/j pa=si do/loisin
a)nqrw/poisi me/lw, kai\ meu kle/oj ou)rano\n i(/kei. (IX, v. 19-20)

“Sou Odisseu Laercíada, que de todos os homens


é conhecido por suas astúcias, e minha fama vai ao céu”.

O uso do epíteto por Deífobo, do mesmo tipo do contexto ho-


mérico, faz pensar na provocação latente na frase do troiano: trata-se
de rebaixar Ulisses não só lembrando sua verdadeira origem compro-

temos um eco dessa visão negativa da personagem em “à lingua vã de Ulisses fraudu-


lenta” (canto X, 24, v. 4). Retratando sua eloqüência como eticamente criticável, em
vista dos fins para os quais é empregada, o poeta português condena, aqui, essa conhe-
cida característica de Ulisses, que aparece evocada mais neutramente em outros passos
de sua epopéia: “facundo Ulisses” (II, 45, v. 1; V. 86, v. 3-4), a quem Palas Atena “dá
língua facunda” (VIII, 5, v. 6). No início do poema, ele é o “sábio Grego” (I, 3, v. 1). A
visão camoniana é nuançada, portanto. (Modernizamos a grafia da edição de Epifânio
Dias já citada.)
36
De Rerum Natura, III, v. 1008-1015.

– 216 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

metedora (filho de Sísifo, não de Laertes) e caráter (dotado de uma


astúcia perversa de que deveria envergonhar-se, não gabar-se...). A
alusão é tanto mais interessante pelo fato de retornar em palavras do
próprio protagonista da epopéia de Virgílio, que se distingue do grego,
vangloriando-se por qualidade bem diversa da dele, como os estudio-
sos têm notado.37 Eis como se apresenta Enéias a Vênus disfarçada
em caçadora:

Sum pius Aeneas, raptos qui ex hoste Penatis


classe ueho mecum, fama super aethera notus. (I, v. 378-379)

“Sou o pio Enéias, que os Penates arrebatados ao inimigo


transporto comigo em uma frota, noto pela fama até além do éter”.

Observemos notus (cf. sic notus Ulixes?) e a construção calcada


no original homérico: verbo “ser” no início de verso, epíteto (pius vem
substituir o mais neutro “laercíada”), oração relativa que caracteriza o
protagonista (Ulisses se vangloria dos “dolos”, palavra fortemente negati-
va na Eneida, mas Enéias de sua pietas38 – estabelecendo-se, assim, por
via intertextual, a diferença fundamental entre os dois), seguida de afir-
mação da amplitude da fama; curiosamente, porém, a de Enéias vai “além
do céu”... Em suma, parece impossível que o poeta não esteja incitando o
leitor “informado” a confrontar as personagens, em detrimento de Odisseu,
ou, pelo menos, em destaque da superioridade moral de seu protagonista,
que se distingue pelo escrúpulo religioso, não pela fraude.

37
A indicação do precedente homérico remonta pelo menos a Sérvio, que, porém, como
acontece com freqüência em seu comentário, não extraiu todas as conseqüências do
paralelo apontado. Por outro lado, não entendemos como Quinn (Op. cit., p. 281) vê
em sum pius Aeneas apenas um eco de uma passagem de Édipo Rei: “o( pa= si kleino\j
Oidi) /pouj kalou/menoj” (“eu, o chamado Édipo, conhecido de todos”, v.8). Quinn,
na verdade, não detecta o cerne do processo alusivo de Virgílio na Eneida; de fato, o
crítico parece ver em tais alusões apenas dois aspectos: o prazer do leitor no reconheci-
mento e a dívida de gratidão para com o predecessor que o poeta admira (veja-se
p. 281, nota 1).
38
Sérvio comenta bem: a relativa explicita o sentido de pius: hoc est sum pius.

– 217 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Outro passo significativo para demonstrar a imagem negativa


que se traça de Ulisses na Eneida, distinguindo-o, em assim, de Enéias,
posto em situação similar mas afirmando outro ideal, temos na res-
posta de Diomedes à embaixada dos latinos, que lhe solicitavam auxí-
lio na luta contra os troianos; o grego diz que todos os que combate-
ram contra Tróia sofreram punição por seus crimes, palavra que vimos
associada a Ulisses:

Quicumque Iliacos ferro uiolauimus agros


(mitto ea quae muris bellando exhausta sub altis,
quos Simois premat ille uiros), infanda per orbem
supplicia et scelerum poenas expendimus omnes (XI, v. 255-258)

“Nós todos que com o ferro violamos os campos ilíacos


(omito o que suportamos combatendo sob os altos muros,
os heróis que o Simoente preme), através do mundo inenarráveis
suplícios e castigos de toda espécie pelos crimes pagamos.”39

É notável que Virgílio ponha na boca de um grego a condena-


ção absoluta da guerra: tratou-se de uma profanação criminosa que
está sendo punida pelos deuses. A aventura de Ulisses com os Ciclopes,
justamente o mais célebre exemplo da astúcia do grego, surge no con-
texto da Eneida como castigo pelos crimes cometidos!:

Aetnaeos uidit Cyclopas Vlixes. (XI, v. 263)

“Viu aos Ciclopes do Etna Ulisses.”

39
Vale a pena observar que a frase final scelerum poenas expendimus omnes é quase sem-
pre interpretada como se omnes se conectasse a poenas, o que é mais do que provável.
Cremos, porém, que é possível entender esse adjetivo como uma retomada enfática do
pronome quicumque (literalmente: “quem quer que...pagamos todos”), o que daria rele-
vo ainda maior à advertência de Diomedes. Teríamos, assim, uma ambigüidade sintática,
não única em Virgílio. A objeção de Sérvio à interpretação de omnes como referindo-se
aos gregos é absurda: “omnes” non potest ad Graecos referri, quia non omnes pertulere
supplicia (“ ‘omnes’ não pode se referir aos gregos, porque nem todos sofreram suplícios”;
ora, o comentador se esquece do pronome quicumque, com o qual Diomedes deixa claro
que todos os que profanaram Tróia têm sido castigados pelos deuses.

– 218 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Eis um exemplo de como Virgílio apresenta uma visão desviante


e tendenciosamente negativa da saga de Odisseu, punido por seus
crimes na visão de um de seus compatriotas...
Outras referências explícitas ao nome de Ulisses na Eneida ou
são neutras ou não tão negativas, sem serem positivas: Ithacus, em II, v.
104, 122 e 128, na fala de Sinão; fandi fictor Vlixes, no violento discur-
so de Numano, em IX, v. 602 (aqui, porém, note-se a ferina ironia: o
hábil arengador 40 grego bem como os Atridas são contrapostos à mais
rija estirpe latina – Numano sugere que, se aqueles troianos escaparam
outrora de um cerco, foi por fraqueza dos então atacantes...).
Logo examinaremos o episódio de Aquemênides, que mencio-
na Ulisses. Agora, apontemos outro caso de intertextualidade a dis-
tinguir, em proveito de Enéias, os dois heróis. No livro III, Enéias
conta que, de Tróia, fora aportar na Trácia, onde fundou uma cidade:

Feror huc et litore curuo


moenia prima loco fatis ingressus iniquis
Aeneadasque meo nomen de nomine fingo. (III, v. 16-18)

“Para cá sou levado e na curva praia


estabeleço os primeiros muros, tendo aportado sob fados contrários,
e o nome “Enéadas” a partir de meu nome crio.”

A filologia, desde Sérvio, procura identificar a cidade fundada


por Enéias na Trácia; mas o que vale a pena ter em mente nesse passo
40
A expressão fandi fictor não é totalmente clara; há quem interprete como “mentiroso”
(assim na tradução de Luca Canali; expressão similar no dicionário de Saraiva, mas
não no de Gaffiot). Parece-nos que a ênfase está na loquacidade excessiva do grego,
contraposta pelo latino à nativa bravura. Heyne (apud Conington, vol III, p. 214)
aponta a provável origem da expressão, um sintagma homérico: na Ilíada, Heitor cha-
ma Aquiles de e)pi/klopoj mu/qwn (XXII, v. 281), “adroit pour parler”, segundo Bailly;
mas a idéia de uma astúcia no falar que implica fazer passar por verdadeiro o que é falso
talvez não esteja ausente em ambas as expressões. Traduzem no sentido que julgamos
mais adequado ao contexto, dentre outros, Annibal Caro (“ben parlante”), Bellessort
(“beau parleur”), Perret (“adroit discoureur”); nosso Odorico Mendes traz um pálido
“fraudulento”.

– 219 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

é um paralelo com a saga de Ulisses, relevado por Knauer41: o grego


narra a Alcínoo que, saindo de Tróia, fora a Ísmaros, na Trácia, o
lugar por onde andará Enéias, tendo ali...destruído uma cidade e ani-
quilado seus habitantes:

Ilio/
) qen me fe/rwn a)/ nemoj Kiko/nessi pe/lassen,
Isma/r%!
) e)/nqa d )e)gw\ po/lin e)/praqon, w)/lesa d )au)tou/j·
(IX, v.39-40)

“De Ílio o vento, impelindo, fez-me aportar entre os Cíconos,


em Ísmaro; ali eu destruí a cidade e os aniquilei...”

Virgílio incita ao confronto; nas palavras de Knauer:

“Odisseu, o vitorioso, destrói Ísmaro na Trácia; Enéias, o exilado...funda


Ainos na mesma região...”42

Como índice textual, há certamente pouquíssimo: um feror


que evoca o fe/rwn do poema grego, mas o leitor impregnado de
Homero era certamente incitado ao paralelo e ao contraste. Enéias
é o grande fundador, ao passo que Ulisses se tornara conhecido por
destruir cidades; sobretudo, se, no proêmio da Odisséia, o segundo
verso aponta o grego como destruidor de Tróia, Enéias será glorifi-
cado, no proêmio virgiliano, como o fundador de uma cidade:

e)pei\ Troi/hj i ero\ / erse (I, v. 2)


( n ptoli/eqron e)p

“depois que destruiu a sagrada fortaleza de Tróia...”

dum conderet urbem (I, v.5)

Mais: Enéias, com sua incansável pietas, estabelece os funda-


mentos para o surgimento futuro de Roma, a Tróia rediviva, modelo

41
“Vergil and Homer” In: TEMPORINI-HAASE (Ed.). Op. cit., p. 878.
42
Op. cit., p. 878.

– 220 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

de religiosidade, aperfeiçoada pelas virtudes latinas. Sua ação, por-


tanto, compensa e anula a ação destrutiva (punida pelos deuses se-
gundo o Diomedes virgiliano!) de Odisseu. O paralelo incitado pela
epopéia latina não deixa dúvidas: Enéias emerge do confronto como
um Ulisses peregrino, mas um Ulisses eticamente superior ao original.
Similarmente, Camões, fazendo a releitura do modelo épico greco-
latino, enaltecerá outro tipo de herói, outro Deus, outro Fatum, ou-
tras virtudes; se Virgílio não fosse tão mais sutil, tão menos explícito
que o lusitano, poderia ter escrito, pensando na pietas de Enéias como
valor paradigmático para os Romanos:

“Cesse tudo o que a Musa antiga canta,


Que outro valor mais alto se alevanta.” (Lus.I, 3, v. 7-8)

3. A CANÇÃO DE IOPAS

Mencionamos que Virgílio, partindo de um modelo como


Homero, abarca, por vezes, em sua reelaboração, outra recriação do
episódio que “imita”, criando complexa relação não apenas com o
original de partida mas com toda uma tradição posterior. Um outro
exemplo desse processo intertextual é a breve cena do final do ban-
quete, no livro I: o aedo Iopas entoa um canto cosmogônico, que o
poeta resume:

Hic canit errantem lunam solisque labores,


unde hominum genus et pecudes, unde imber et ignes,
Arcturum pluuiasque Hyadas geminosque Triones,
quid tantum Oceano properent se tingere soles
hiberni, uel quae tardis mora noctibus obstet.
Ingeminant plausu Tyrii, Troesque sequontur. (I, v. 742-747)

“Então canta a lua errante e os labores do sol,


de onde provêm o gênero humano e os rebanhos, de onde a chuva
e os raios,

– 221 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Arcturo e as chuvosas Híades e as gêmeas Ursas,


por que se apressam a se tingir no Oceano os sóis
hibernos, ou que demora é obstáculo para as noites tardas.
Redobram o aplauso os tírios e os troianos os seguem.”

Na Odisséia, porém, o aedo Demódoco canta a rixa entre


Aquiles e Odisseu (VIII, v. 72-82), os amores de Ares e Afrodite (VIII,
v. 266-367) e o episódio do cavalo de Tróia (VIII, v. 499-521). No-
tando o anfitrião Alcínoo que Odisseu chora e geme intensamente
após o último relato (como, depois do primeiro, verteu lágrimas cui-
dadosamente ocultadas), pede que o aedo se interrompa e interroga o
hóspede, incitando-o a contar sua história (VIII, v. 536-586).
Virgílio condensa em uma só canção as três do aedo; reproduzin-
do a estrutura da narrativa homérica, fará seguir à intervenção do aedo
o incitamento de Dido a Enéias a narrar as vicissitudes por que passou:

“Immo age et a prima, dic, hospes, origine nobis


insidias” inquit “Danaum casusque tuorum
erroresque tuos; nam te iam septima portat
omnibus errantem terris et fluctibus aestas”. (I, v. 753-756)

“ ‘Mas, vamos: conta-nos, hóspede, desde o princípio’,


diz, ‘as insídias dos dânaos e os infortúnios dos teus
e os teus errores; pois que já o sétimo ano te leva
errante por todos as terras e vagas do mar.’ ”

Compare-se: immo age...dic nobis/ a)ll ) a)/ge moi...ei pe\


) (VIII,
v. 572); notemos, também -que...-que, evocando os vários do texto
grego. Enéias é como Odisseu diante de Dido-Alcínoo.
Mas entre uma passagem e outra (a canção do aedo/ a narrativa
de Enéias – à maneira de um aedo, como vimos...), o poeta acrescenta
estes versos, que focalizam Dido e seu notável interesse pelo passado
de Enéias, signo do amor que já começa a consumi-la:

Nec non et uario noctem sermone trahebat


infelix Dido longumque bibebat amorem,

– 222 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

multa super Priamo rogitans, super Hectore multa;


nunc quibus Aurorae uenisset filius armis,
nunc quales Diomedis equi, nunc quantus Achilles. (I, v. 748-752)

Na tradução de Odorico Mendes:

“O serão entretida ia estirando


A infeliz Dido, e longo amor bebia,
Muito de Priamo, inquirindo muito
De Heitor; que armas da Aurora o filho tinha,
Diomedes que frisões, que jando Achilles.”

A questão é: por que o aedo de Virgílio canta uma cosmogonia?


Se em Macróbio a escolha de tema filosófico para um banquete é alvo
de crítica indireta (tal tipo de entretenimento estragaria o encanto da
reunião e até faria rir os convivas, feácios ou cartagineses...), Sérvio, ao
tentar justificar a temática do canto de Iopas (de forma obtusa, porém:
adequava-se a uma rainha ainda casta...), revela também que o poeta
era alvo de críticas nessa questão. 43 Contra as interpretações simbóli-
cas (de um Pöschl, por exemplo)44, analisando a estrutura de todo o
episódio e as fontes de Virgílio, Robert Brown nos parece ter dado,
recentemente, a leitura definitiva.45 O poeta retoma o topos homérico
através de Apolônio de Rodes, que, em sua epopéia (Argonáuticas I, v.
494-515), faz Orfeu cantar uma cosmogonia fundada em Empédocles.
Em Virgílio, essa operação efetuada sobre a fonte homérica,
como demonstra convincentemente Brown, cria sugestivas conota-

43
Macróbio VII, I, 14; Sérvio (ad uersum II, 742). Paratore, em sua edição da Eneida,
resume o estupor de muitos: “espanta que não se cantem empresas heróicas mas, justa-
mente, temas cosmogônicos” (v. I, p. 236, nota ao verso 742).
44
Pöschl sugere que o canto de Iopas faz referência sutil “aos destinos de Dido e Enéias”(Op.
cit., p. 248); o autor se apóia, sobretudo, na identificação de Dido com Diana e a lua, e
de Enéias com Apolo e o sol. O paralelo, instigante, tem fundamento, mas não se deve
forçar o texto numa leitura cerradamente simbólica ou alegórica.
45
“The Structural Function of the Song of Iopas” In: Harvard Studies in Classical Philology,
vol. 93, 1993, p. 315-334.

– 223 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

ções. Assim, ao canto de Iopas, que reproduz estrutura própria do


poema didático e versa sobre grandes temas da especulação filosófica
dos Antigos, contrapõe-se o interesse particularista de Dido, que, sob
forma encontrável na poesia didática (série de interrogativas indire-
tas, com anáfora dos pronomes interrogativos, etc.), demonstra preo-
cupar-se só com o que, de alguma forma, diz respeito ao passado de
Enéias. Notável o ritmo e o andamento quase obsessivo:46 Dido arde
de amor; seu universo se concentra no herói, não nos grandes temas
tratados pelo aedo; por via intratextual (já que a expressão do resumo
da canção do aedo é similar à das perguntas ansiosas de Dido),47 há
evidente contraposição.
Curiosamente, Dido pede a Enéias que narre sua história a pri-
ma origine, expressão que bem caberia num poema cosmológico...48
Mais uma vez Virgílio contrasta os dois campos de interesse pelo uso
de f’órmulas próprias da poesia didática e é nesse sentido, cremos, que
se deve entender a curiosa retomada de errantem (lunam) da canção
do aedo no substantivo erroresque (tuos) e no particípio errantem
(te). Insinua-se um toque irônico: Dido se interessa não pelos errores
dos astros ou pelos labores do sol, mas pelos errores e labores...de
Enéias! – e a ênfase no possessivo, reiterado a pouca distância
(tuorum,tuos) está a revelá-lo.49
A partir de Homero, passando pelo crisol de Apolônio,50 Virgílio,
como é freqüente, faz ressoar de novos sentidos, de forma sutil e por

46
Reveladoras as repetições multa super...super multa, em quiasmo, e nunc...nunc...nunc;
o ritmo sincopado; o uso do freqüentativo (rogitans).
47
Anáfora (unde...unde); interrogativas indiretas (quid tantum Oceano properent se
tingere soles..., quae tardis mora noctibus obstet); elipses (unde hominum genus et
pecudes, unde imber et ignes.../cf. nunc quales Diomedis equi, nunc quantus Achilles).
48
Na proposição às Metamorfoses, que começam com o surgimento do mundo e do
homem, Ovídio pede o favor dos deuses para seu relato, que vai da “primeira origem do
universo”(primaque ab origine mundi, I, v. 3) até seu próprio tempo.
49
Veja-se o artigo de Brown, p. 322.
50
Julgamos desnecessário dizer que, além de Homero e Apolônio, Virgílio retoma Lucrécio
e sua própria poesia (Buc. VI, Geórg. II, v. 475-482): inter- e autotextualidade vêm se

– 224 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

via inter- e intratextual, um antigo topos. Quão equivocado pôr em


dúvida sua “originalidade”, quando, como temos visto, o processo in-
tertextual é parte integrante de sua composição, gerador de sentidos
a partir do conjunto de textos e contextos evocados.

4. O EPISÓDIO DE AQUEMÊNIDES

As duas outras menções explícitas a Ulisses que ainda não co-


mentamos, ocorrem no episódio de Aquemênides, nesse livro III, que
é o mais odissíaco da Eneida; expliquemos: não porque aqui estejam
concentradas as alusões ao poema grego, pois que o primeiro livro é
mais significativo a esse respeito,51 mas pelo fato de ser todo o livro
unificado pela idéia dos errores de Enéias, que aqui vemos como o
peregrino a vagar por terras e mares. Críticos e estudiosos têm reitera-
do o tom decididamente homérico do conjunto. Obviamente, ressal-
tam-se as diferenças; a mais significativa é que as andanças do troiano
são guiadas pelos signos da vontade divina e ganham um sentido de
paulatino esclarecimento e progressão para a terra assinalada, através
de oráculos, profecias e aparições divinas. Se Ulisses vaga perseguido
pela cólera divina, Enéias, desviado e acossado por uma Juno que só
renuncia a seu ódio no final da epopéia, segue sempre, porém, impeli-
do pelos ditames celestes.
Aquemênides é provavelmente criação virgiliana; trata-se de
um companheiro de Ulisses que acabou sendo esquecido52 na terra

associar a relações intratextuais delicadas; como assinalamos mais de uma vez, a técni-
ca alusiva do poeta é complexa e desafia esquemas.
51
“Mais de três quartos do primeiro livro da Eneida são modelados sobre a Odisséia;
nenhum livro contém um número tão elevado de correspondências”, observa Gennaro
d’Ippolito (Enciclopedia Virgiliana, vol. III, p. 823).
52
Retomando a personagem, Ovídio (Metamorfoses XIV. v. 160 e ss.) o mostrará dizen-
do ter sido “abandonado” pelos companheiros gregos (relictus, v. 178). Pode-se pensar
que na Eneida haja uma velada censura ao comportamento dos gregos, especialmente

– 225 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

dos Ciclopes. O episódio permite ao poeta retomar uma das célebres


passagens da Odisséia sem repeti-lo com Enéias, herói totalmente di-
verso do astucioso Odisseu, que, aqui, demonstrará pietas, não esper-
teza. Resumindo a façanha do grego pela boca de Aquemênides,
Virgílio cria uma narrativa em primeira pessoa sem envolver nela seu
protagonista; de fato, Aquemênides, insiste-se, foi testemunha das
crueldades do ciclope: uidi egomet (v.623), uidi (v.626) e pode, as-
sim, dar um relato vívido dos acontecimentos.
Se a relação intertextual aqui é estreita53, há também no episódio
paralelos intratextuais que os estudiosos têm apontado, especialmente
com a história da fraude tramada por Sinão contra os troianos; a estru-
tura é semelhante, os dois personagens condividem outros aspectos além
da nacionalidade, e as retomadas textuais são várias.54 Notemos:

Qui sit fari, quo sanguine cretus,


hortamur (III, v. 608-609)

“A dizer quem é, de que sangue gerado,


encorajamo-lo”.

Hortamur fari quo sanguine cretus (II, v. 74)

Ille haec deposita tandem formidine fatur. (III, v. 612; II, v.76)55

“Ele, deixando de lado finalmente o medo, fala.”.

de Odisseu (novamente!), contraposto ao espírito humanitário dos troianos. Diz


Pomathios: “Em sua fuga, ele (scilicet Odisseu) não abandonou a uma triste sorte o
infeliz Aquemênides, objeto da compaixão de Enéias e dos seus?” (POMATHIOS,
Jean-Luc. Le Pouvoir Politique et sa Représentation dans l’Énéide de Virgile. Bruxelles,
Latomus, 1987, p. 28).
53
Cartault chega a afirmar que a narrativa só é perfeitamente inteligível para quem tem
a Odisséia em mente (Op. cit., vol. I, p. 258), com certo exagero, pois, se os fatos são
condensados de forma muito sintética, o todo faz sentido autonomamente. Mas é certo
que Virgílio incita a que o leitor estabeleça o confronto.
54
Cf. CARTAULT, p. 293-294; Enciclopedia Virgiliana, v. I, p. 22-23; QUINN, p. 134.
55
Considera-se o verso II, 76 interpolado por copista que se teria deixado levar pela
semelhança entre os dois passos, já que não consta do episódio de Sinão nos melhores

– 226 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Per sidera testor,


per superos atque hoc caeli spirabile lumen” (III, v. 599-600)

“Invoco por testemunhas os astros,


os deuses súperos e esta luz vital do céu”.

per superos et conscia numina ueri (oro) (II, v. 141)

“...suplico pelos deuses súperos e pelos numes cônscios da verdade”.

Vos aeterni ignes, et non uiolabile uestrum


testor numen. (II, v. 154-155)

“A vós, fogos eternos e vosso não violável


nume, invoco por testemunhas.”

Ipse pater dextram Anchises haud multa moratus


dat iuueni atque animum praesenti pignore firmat. (III, v. 610-611)

“O próprio pai Anquises sem mais delongas a destra


Estende ao jovem56 e com o pronto penhor lhe revigora o ânimo.”

Ipse uiro primus manicas atque arta leuari


uincla iubet Priamus dictisque ita fatur amicis (II, v. 146-147)

“O próprio Príamo é o primeiro a mandar que lhe tirem as amarras das


mãos
e os apertados grilhões, e lhe fala com estas palavras amigas...”

Veja-se também a semelhança de sentido e de andamento sin-


tático entre III, v. 604-605, e II, v. 102-103.
Diante de tantas coincidências, tanto mais porque em livros
sucessivos (portanto, mais facilmente detectáveis pela memória do

manuscritos nem é referido ali por Sérvio; a edição de Mynors nem o traz. Parece-nos,
todavia, que faltam provas definitivas para expurgá-lo.
56
Garantia de boa-fé no empenho da palavra, o estender da destra, aqui, mostra a retidão
dos troianos – mesmo com um antigo inimigo mortal, selam um pacto de proteção.

– 227 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

leitor comum), somos levados a indagar-lhes a causa. A crítica mais


cerradamente filológica se atém à discussão a respeito da prioridade
de composição, a nosso ver um equívoco, pois não se trata de caso de
duplicidade casual de redação: o poeta aproxima os dois passos para
daí extrair sentidos.
No episódio de Sinão, um grego engana os troianos com uma
história mentirosa, lágrimas e artifícios retóricos; estes aparecem como
bondosos, sensíveis ao sofrimento alheio e confiantes na palavra mes-
mo de um indivíduo da raça inimiga. O próprio rei Príamo é o primei-
ro a demonstrar benevolência, como o fará Anquises com Aquemêni-
des, paralelo realçado pela alusão. Depois de toda a tramóia fatal aos
troianos, que viram o poder destrutivo da perfídia grega, Anquises e
os seus não guardam rancor vingativo contra o inimigo, acolhendo
amigavelmente o companheiro do odiado Ulisses: delineia-se certa-
mente aqui uma nova ética, que reconhece no outro, para além de
antigos ódios (ao contrário de Juno, os dárdanos sabem perdoar...), a
comunhão das mesmas vicissitudes humanas. Mais que inimigo, Aque-
mênides é um ser humano em situação deplorável a comover os
troianos por sua condição. Por outro lado, se os troianos se compor-
tam como da outra vez, isto é, com benévola compaixão, o grego se
mostrará bem diverso do insidioso Sinão; desse modo, na incorpora-
ção do companheiro de Ulisses à expedição troiana, tem-se uma espé-
cie de antecipação da simbólica reconciliação entre esses dois povos
antes absolutamente hostis que ocorrerá com a união dos árcades de
Evandro às tropas de Enéias. Por via intratextual, salienta-se a gene-
rosidade e a grandeza da alma de Enéias e os seus; como diz Paratore:

“O episódio de Aquemênides foi concebido precisamente como respos-


ta da generosidade de Enéias à feroz fraudulência dos aqueus, uma res-
posta tanto mais significativa porque concretizada em atenção a um
companheiro de Odisseu. Por isso a referência intencional ao episódio
no qual o aqueu responsável pelo engano atroz se apresentou pela pri-
meira vez de uma forma parecida com a de Aquemênides.”57

57
Op. cit., vol. I, p. 171.

– 228 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Ovídio, retomando o episódio em suas Metamorfoses, sintetiza


numa expressão o sentido moral que lhe conferiu Virgílio; seu Aque-
mênides declara, expressando admiração pelo inesperado do gesto
troiano ao acolher o grego:

Graiumque ratis Troiana recepit. (XIV, v. 220)

“E a nau troiana acolheu um grego.”


Notemos que Aquemênides é denominado Graius (III, v. 594): Ovídio
alude ao texto de Virgílio.

Agora podemos comentar os dois passos em que o nome de


Ulisses é citado; da primeira vez,é seu ex-companheiro que diz:

Sum patria ex Ithaca, comes infelicis Vlixi (III, v. 613)

“Sou de Ítaca, minha pátria, companheiro do infeliz Ulisses.”

Sérvio explica assim o uso de infelix, que aqui teria sentido pe-
jorativo:

“Como fala entre inimigos, busca captar sua benevolência com a


recriminação daquele que sabe ser odiado pelos troianos.”58

Tratar-se-ia, pois, de captatio beneuolentiae; mas a expressão


reaparece, desta vez expressa pelo próprio Enéias: Achaemenides,
comes infelicis Vlixi (“Aquemênides, companheiro do infeliz Ulisses”,
v. 691). Sérvio, encontrando dificuldade em entender o emprego no
contexto, apresenta mais de uma leitura para o adjetivo:

“O epíteto foi posto para preencher o verso, à maneira grega, sem levar
em consideração o contexto, já que Enéias, incoerentemente, chama

58
Quoniam apud hostes loquitur, quaerit fauorem eius uituperatione, quem scit odio
esse Troianis (vol. I, p. 445).

– 229 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ulisses infeliz; a não ser que, sendo pio, até mesmo do inimigo se com-
padeça, ao sofrer ele próprio os mesmos errores.”59

Se se aprofundasse na via intratextual, Sérvio por certo elegeria a


última interpretação. Enéias mostra aqui a mesma nobre compaixão
que os troianos demonstraram a Aquemênides. Apesar do precedente
da traição de Sinão, o grego é bem acolhido, e sua sorte, como a do
peregrino Ulisses (retratado, contudo, neste mesmo livro e no anterior,
como um ser execrável), encontra no coração dos êxules aquela “sim-
patia”, aquela confraternização com o semelhante sofredor, seja ele um
ex-inimigo de guerra, que permeará a Eneida. A aventura no antro de
Polifemo é uma exaltação da inteligência salvadora de Ulisses, que vence
com sua astúcia a força bruta do ciclope (que em Homero se espanta de
ter sido atacado por homem tão franzino, IX, v. 515); por sua vez, o
episódio de Aquemênides ilustra a humanitas notável dos troianos, que
supera até mesmo os antigos ódios – novamente, confronta Virgílio a
astúcia de um com a pietas de todo um povo.60
Somos levados, portanto, a discordar de quem vê em infelicis
Vlixi o emprego de um “epíteto tradicional”, um “homerismo”61, como
já sugeria Sérvio; em Virgílio, como temos visto, os recursos da língua
épica homérica tendem a ganhar funcionalidade na significação, a
gerar sentido. Por outro lado, a idéia de que aqui o poeta esboçaria a
conciliação entre prófugos troianos e os antigos inimigos deve ser
rechaçada. Afinal, no livro II e na parte precedente do III, os gregos
são pintados de forma negativa, segundo mostramos. A quem argu-
mentasse que esta é a visão anterior ao episódio de Aquemênides,
caberia lembrar que toda a parte anterior é narrada em primeira pes-

59
Epitheton ad inplendum uersum positum more Graeco, sine respectu negotii. nam
Aeneas incongrue infelicem Ulixen dicit; nisi forte quasi pius etiam hostis miseretur,
cum similes errores et ipse patiatur (p. 454).
60
Outro caso curioso de intratextualidade envolvendo o episódio de Aquemênides é
analisado em OTIS, p. 263-264.
61
Como o próprio Paratore em seu comentário (vol. II, p. 172), apesar da boa análise do
episódio em seu conjunto.

– 230 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

soa por Enéias a Dido, ou seja, no livro I e IV, que narram a estada em
Cartago, Enéias continua considerando os gregos, e Odisseu em espe-
cial, exemplo de malícia extremada, inteligência a serviço da perfídia,
pois essa é a imagem que sobressai de seu relato. Na verdade, a recon-
ciliação simbólica virá depois, na parte iliádica da epopéia, com os
gregos capitaneados por Evandro a vir em socorro de Enéias; a pró-
pria Sibilia em sua profecia enuncia o inusitado do fato:

Via prima salutis,


quod minime reris, Graia pandetur ab urbe. (VI, v. 96-97)

“O primeiro caminho da salvação


ser-te-á aberto, o que menos esperas, por uma cidade grega.”

Já se delineia nesse passo o que será uma das chaves para a


compreensão do poema – a idéia de que a guerra de Tróia parece
repetir-se, mas a realidade será outra: os troianos se unirão a gregos
para combater latinos e rútulos. Se era destino que Tróia tombasse
pela mão dos aqueus, estabeleceram os arcanos divinos que os enéadas
se imporiam no Lácio e, fundidos com a gente nativa, seriam a se-
mente do “eterno” império romano.

5. UNIVERSO ELEGÍACO VERSUS UNIVERSO ÉPICO NO CANTO IV

O livro IV da Eneida é, do ponto de vista intertextual, bastan-


te complexo: apresenta alusões a tragédias gregas e latinas, por exem-
plo; além disso, a narrativa da paixão de Dido recorda os elementos
de uma tragédia, como tem sido observado à exaustão. Por outro lado,
o livro se inicia ecoando fortemente o terceiro canto das Argonáuticas:
indica-se, pois, que, nesse canto, o grande modelo estrutural de Virgílio
é Apolônio, o primeiro a desenvolver, numa epopéia que segue a tra-
dição homérica, um longo e importante retrato de uma paixão, eco-
ando, assim, o profundo interesse da poesia helenística em geral pela

– 231 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

vida afetiva e sentimental. Mas são também intensas, no episódio de


Dido, as alusões ao poema LXIV de Catulo bem como a linguagem e
os temas da poesia elegíaca tal como os latinos a fixaram. Examine-
mos os paralelos entre os dois poemas, expressando de antemão que
estamos cientes do duplo aspecto da inter-relação: há alusões concre-
tizadas na retomada textual ao lado de semelhanças de sentido e si-
tuação não necessariamente acompanhadas de citações.
As queixas de Dido a Enéias evocam de perto as de Ariadne
contra Teseu; ambas as heroínas denominam o amado que parte62 de
perfidus (v. 305, 366 e 421, no livro IV da Eneida; versos 132-133, no
poema de Catulo);63 ambas crêem, portanto, terem firmado um pacto
tácito com o parceiro, cuja quebra viola a justiça e atenta contra os
ditames divinos (neglecto numine diuum, “negligenciado o nume dos
deuses”, em LXIV, v. 134). O amante que se vai é cruel (crudelis, v.
311 e 661 do livro IV; crudelis, em LXIV, 136 e, em 138, o equivalen-

62
Na Eneida, Dido lança tais queixas a Enéias, cujas intenções de fuga pressentiu; quan-
to a Ariadne, como se sabe, seus lamentos não têm outro destinatário senão a natureza
que a circunda e os deuses que ouvirão sua súplica, uma vez que só se da conta do
abandono ao despertar, quando Teseu já partira.
63
É curioso que Virgílio insista na suposta perfidia de Enéias, já que os troianos possuíam
tal fama, cujo arquétipo mítico é a perfídia de Laomedonte: o pai de Príamo recebera o
auxílio de Apolo e Netuno para a construção de Tróia, mas não pagou a recompensa
acertada com os deuses, que se vingaram. Pode-se considerar essa reiteração do epíteto
perfidus como a reutilização de um topos freqüente na poesia amorosa; contudo, é
intrigante que a rainha de Cartago recrimine o fundador da raça romana por um defei-
to de caráter que os Romanos considerarão característica dos cartagineses. Trata-se da
chamada fides punica: ver Salústio, Bellum Iugurthinum CVIII, 3, e, especialmente,
Tito Lívio XXI, 4, 9: Aníbal tinha “uma perfídia mais do que púnica” – perfidia plus
quam Punica. Se o arquiinimigo dos Romanos, prenunciado por Dido como seu vinga-
dor, assinalava-se por tal fama, não achamos inverossímil que Virgílio tenha acentua-
do a quebra da palavra no livro IV para motivar, mítico-lendariamente, os males que
essa perfídia causaria aos Romanos; assim, os enéadas, sofrendo a justiça divina que
paga na mesma moeda, haveriam de expiar a antiga falta do troiano... Enéias, por outro
lado, voltará a ser chamado pérfido pela rainha Amata, em VII, v. 362, alusão à velha
fama da perjura Tróia. Sobre o tema, veja-se a Enciclopedia Virgiliana, vol. IV. verbete
perfidus.

– 232 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

te inmite pectus). Para reprovar a falta de sensibilidade de um e outro


amante, ambas recorrem a um conhecido topos, presente já em
Homero:

Nec tibi diua parens generis nec Dardanus auctor,


perfide, sed duris genuit te cautibus horrens
Caucasus Hyrcanaeque admorunt ubera tigres. (En. IV, v. 365-367)

“Nem uma deusa é tua mãe nem Dárdano o autor de tua raça,
pérfido, mas gerou-te, eriçado de duros rochedos,
o Cáucaso, e ofereceram-te os úberes tigresas da Hircânia.”

Quaenam te genuit sola sub rupe leaena,


Quod mare conceptum spumantibus expuit undis,
Quae Syrtis, quae Scylla rapax, quae uasta Charybdis,
Talia qui reddis pro dulci praemia uita? (LXIV, v. 154-157)

“Que leoa, pois, te gerou sob a rocha solitária?


Que mar te concebeu e expeliu das ondas espumantes?
Que Sirte, que Cila voraz, que devastadora Caribde,
A ti, que retribuis com tais recompensas a doce vida?”

Curiosamente, Virgílio reutiliza só uma expressão catuliana,


invertendo-a, em “quiasmo” intertextual: genuit te/te genuit.
A cruel ingratidão que se censura é posta em realce, nas quei-
xas de Dido e de Ariadne, pelo comportamento supostamente mag-
nânimo de uma e outra personagem para com o amante:

Eiectum litore, egentem


excepi et regni demens in parte locaui;
amissam classem, socios a morte reduxi. (En. IV, v. 373-375)

“Lançado à praia, sem nada,


acolhi-o e, insensata, concedi-lhe um lugar em meu reinado;
a frota perdida e a seus companheiros salvei da morte.”

Certe ego te in medio uersantem turbine leti


Eripui, et potius germanum amittere creui,

– 233 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Quam tibi fallaci supremo in tempore deessem (LXIV, v. 149-151)

“Certamente fui eu que a ti, debatendo-te em meio à voragem da


morte,
livrei e preferi perder um irmão
a faltar-te, falso!, no perigo extremo.”

Dido e Ariadne se dizem “infelizes” (mihi...miserae, IV, v. 315;


ego...misera, LXIV, v. 196), como os elegíacos apaixonados (Miser
Catulle, que abre o poema VIII de Catulo é um pequeno exemplo; no
próprio Catulo e em Tibulo e Propércio, o adjetivo reaparece aplica-
do ao infortunado amante).
Ambas as heroínas expressam o desejo de que o encontro fu-
nesto com o amante não tivesse jamais ocorrido:

felix, heu nimium felix, si litora tantum


numquam Dardanidae tetigissent nostra carinae. (IV, v. 657-658)

“Feliz, ai!, feliz demais, se em nossos litorais


jamais tivessem tocado as naus dardânidas!”

Iuppiter omnipotens, utinam ne tempore primo


Gnosia Cecropiae tetigissent litora puppes. (LXIV, v. 171-172)

“Júpiter omnipotente, se, princípio de tudo, jamais


em litorais de Gnosso tivessem tocado as popas cecrópias!”

Notemos que Virgílio não reproduz a estrutura exata do uersus


aureus de Catulo (adj. a – adj.b – subst.A – subst.B); se tivesse deslo-
cado litora para o verso seguinte, teríamos, num só verso, a constru-
ção também refinada (em quiasmo sintático: subst.adj./adj.subst.) que
se divide entre dois:

subst.A (litora)-adj.b (Dardanidae) – adj.a (nostra) – subst. B (carinae)

– 234 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

As duas personagens lançam maldições contra seus amantes:


Dido pede que Enéias, caso seja seu destino chegar à Itália, sofra com
uma guerra, seja arrancado aos braços de seu filho, implore ajuda e
assista ao funeral dos seus (IV, v. 612-618), o que de fato ocorrerá na
“estória” do poema. Além disso, deseja que ele morra cedo, sem poder
usufruir do reino (v. 618-620), previsão concretizada segundo uma
versão da morte do troiano; sobretudo, clama por um vingador, em
referência clara, para o leitor de Virgílio, a Aníbal e às guerras púnicas
– um vaticínio concretizado na história. Quanto a Ariadne, reclama
uma vingança que se realizará, narrada no próprio poema: o fatal es-
quecimento de Teseu, que provocará a morte de seu pai. Um ponto a
observar: Dido deseja, para toda a raça odiada (Dardanios colonos)
uma vingança que se efetue com chama e ferida, como com fogo e
chaga se consumiu de amor e encontrou a morte (voltaremos à ima-
gem posteriormente); ora, Ariadne pede às Erínias que Teseu seja
vítima do mesmo esquecimento que o fez abandoná-la:

Sed quali solam Theseus me mente reliquit,


Tali mente, deae, funestque seque suosque. (LXIV, v. 200-201)

“Mas com o mesmo espírito com que Teseu me abandonou,


Com tal espírito, deusas, seja funesto a si e aos seus.”

Teseu, esquecido de içar a vela que anunciaria ao pai, à distân-


cia, um retorno feliz, involuntariamente o leva ao desespero e ao sui-
cídio; julgando ter perdido o filho, ele se precipita do alto dos roche-
dos (LXIV, v. 238-245). Portanto, num caso e noutro, as palavras de
mau agouro das amantes abandonadas se cumprem – vingança que se
realiza numa espécie de “pagar com a mesma moeda”; daí, um efeito
perturbador para a interpretação da Eneida, afinal Enéias, através de
sua descendência, é punido por um ato de injustiça cometido contra
a fides e, portanto, contra os deuses, como Teseu! Trágica ironia: o
troiano parte de Cartago contra sua vontade íntima, conformando-se
às prescrições de Júpiter, e, no entanto, não deixa de ser culpado pela
quebra da lealdade para com a rainha de Cartago – pagará por isso na

– 235 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

segunda metade do poema,64 nas circunstâncias de sua morte, não


narradas por Virgílio mas conhecidas do leitor implícito, bem como
através de sua descendência, como que contaminada por sua falta!
Seu forte sentimento de culpa, expresso no livro VI, é em parte justi-
ficado por uma conduta pessoal indigna, apesar de exigida pelo desti-
no. Ariadne invocara os deuses pedindo justiça: iustam a diuis
(exposcam) multam (LXIV, v. 190: “justo castigo aos deuses...”), in-
voca Júpiter (Iupiter omnipotens ,v. 171), garante da fides, e as
Eumênides (v. 193), que punem os crimes dos homens (facta uirum
multantes uindice poena, v. 192: “punindo as ações dos homens com
castigo vingador”) – e o próprio Júpiter concede-lhe a justa vingança
(annuit inuicto caelestum numine rector, v. 204: “anuiu com seu nume
invicto o governante dos celestes”). Dido apela ao Sol, a Juno, prote-
tora de Cartago e, claro, inimiga de Enéias, a Hécate (essa outra face
de Diana, divindade associada à rainha por Virgílio), às “Diras vinga-
doras” (Dirae ultrices, v. 610)65 e, de maneira genérica, como faziam
os Romanos em suas preces (temerosos de, esquecendo-se de um deus,
atrair-lhe a cólera enciumada), “os deuses da morrente Elisa” (di
morientis Elissae, v. 610) – e é igualmente atendida, isto é, Enéias,
como Jasão, de forma menos explícita em Virgílio mas referendada
constantemente pela alusão a Catulo, é culpado de violar a palavra
empenhada... Um adepto das further voices sob a voz épica de super-
fície seria tentado a concluir que Enéias, ao contrário de Teseu, que
só infelicita ao pai, acaba de algum modo responsável pela carga ter-
rível de sofrimentos das guerras púnicas – mas essa seria uma visão
demasiado parcial, pois, na verdade, o troiano foi levado a partir de
Cartago em obediência aos destinos, pela intervenção do próprio
Júpiter, que, entretanto, provoca uma situação de quebra da fides por

64
“Se Enéias é infeliz, não é somente por causa da cólera de Juno; ele expia a morte de
Dido...”, diz, com excelência, Cartault (Op. cit., vol. I, p. 333).
65
Equivalente romano das Eumênides ou Erínias, também chamadas Fúrias (Alecto,
Megera e Tisífone – no Tártaro de Virgílio, representa-se a ultrix Tisiphone, VI, v.
570-571), segundo Steven Farron (Enciclopedia Virgiliana, vol. II, verbete furie, p.
620).

– 236 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

cuja punição ele mesmo tem de velar! Trata-se, por certo, de punição
por uma falta de Enéias, mas esta é mitigada pela subordinação do
herói às ordens de Júpiter. Mais que Enéias, Júpiter é que aparece sob
uma luz nada límpida...
O paralelo perturbador vem reforçado pela alusão sutil: as
imprecações de Ariadne e Dido terminam ambas por uma estrutura
sintática exatamente igual, precedidas por pausa:

pugnent ipsique nepotesque (IV, v. 629)

“Lutem eles próprios e seus descendentes”.

funestet seque suosque (LXIV, v. 201)

Funestet seque suosque: ditas por Ariadne, essas palavras resu-


mem o que de mais terrível deseja Dido como vingança.
Aqui, assinalemos mais um exemplo de como a descoberta do
jogo intertextual pode angariar argumentos para a discussão filológica:
em certos manuscritos da Eneida não aparece o -que final, pois certa-
mente o copista rejeita uma palavra que torna o verso “hipermétrico”;
os comentadores e editores do texto discutem, propõem explicações
para a ocorrência, alegando até mesmo efeitos de sentido decorren-
tes66, mas , a nosso ver, é óbvio o dado principal: Virgílio, com esse
polissíndeto, evoca o poema e o contexto de Catulo. Em face de tan-
tas alusões, mais ou menos explícitas, não há dúvida de que também
nesse trecho a relação com o poema LXIV prossegue; considerando
essa inter-relação, não se deve emendar nem rejeitar o hemistíquio.
Dido, como Ariadne, se sente abandonada e traída e lança con-
tra Enéias não só a acusação de violar a confiança depositada como
também de tentar fugir sem dar explicações, ato de crueldade que

66
Ver o comentário de Paratore, v. II, p. 239. Para observações filológicas mais comple-
tas, Forbiger, v. II, p. 521-522; este aceita o verso como está e propõe também uma
explicação literária para a construção.

– 237 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

agravaria a falta do herói troiano. De fato, o próprio Mercúrio incita


Enéias a precipitar uma verdadeira fuga (IV, v. 565).
Vemos que a alusão ao poema de Catulo suscita efeitos de leitu-
ra que iluminam certos aspectos do episódio em geral pouco percebi-
dos numa leitura “linear.” Além dessa, a imitação de Catulo cumpre
uma outra função – inserir o episódio de Dido na tradição elegíaca,
como somos levados a acreditar ao observar que, em todo o livro IV,
é recorrente a presença, através de lugares-comuns e léxico próprio,
do registro elegíaco,67 que assim irrompe no corpo da épica. Virgílio
trata Dido, nesse livro sobretudo, como uma personagem de elegia.
Operação delicada: o poeta põe em primeiro plano a heroína acossa-
da pela paixão dilacerante, a ponto de Enéias abandonar provisoria-
mente o papel de protagonista; significativamente, o canto IV se ini-
cia e termina com o foco centrado em Dido.
A filiação elegíaca foi notada por Guillemin:

“Inspirando-se em Apolônio, o poeta quer que Dido seja uma outra


Medéia e faz apelo, para a representar, à tradição elegíaca. (...) Dido
fala como Lésbia, como Cíntia...”68

Uma tragédia na epopéia, como amiúde se disse?69 Se elementos


do gênero não faltam,70 bem como alusões intertextuais a poetas trági-

67
Páginas brilhantes foram consagradas a esse tema por Marzia Bonfanti, no capítulo II
de seu Punto di Vista e Modi della Narrazione nell’Eneide. Giardini, Pisa, 1985, p. 85-
159. Recentemente, Cairns apresentou análise detalhada da tradição elegíaca no epi-
sódio (Virgil’s Augustan Epic, p. 129-150).
68
GUILLEMIN, A. -M. L’Originalité de Virgile.Paris, Les Belles Lettres, 1931, p. 73.
69
“O livro no seu conjunto é uma tragédia à parte, como dizia Leo, a única tragédia
romana digna de ser colocada ao lado das tragédias gregas” (BUCHNER, Karl. Virgilio,
Il Poeta dei Romani. Brescia, Paideia, 1986, p. 459), afirmação acolhida por Pöschl
(Op. cit., p. 129). Veja-se também Heinze (Op. cit., p. 119 e ss.) – para citar alguns dos
maiores estudiosos de Virgílio.
70
Relevemos a peripécia, a figura da irmã Ana e da “nutriz de Siqueu” (v. 632), verdadei-
ras confidentes de tragédia, o anúncio da morte futura da protagonista, a ironia trágica,
os efeitos de contraste, a ambigüidade prenunciatória, a fortíssima presença de diálogos

– 238 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

cos, o retrato intenso da paixão que Virgílio pinta evoca, sobretudo, o


mundo elegíaco, cuja linguagem perpassa todo o livro IV.
Não é incomum, especialmente entre leitores desavisados, a
idealização romântica na leitura do episódio; nessa perspectiva, Dido
aparece como a amante abandonada por um frio e passivo, quase sem
vida, Enéias, que desempenharia péssimo e condenável papel em toda
a história... A nosso ver, essa leitura é viciada por não levar em conta
certos elementos textuais que revelam aquelas expectativas culturais,
ideológicas, historicamente condicionadas, que direcionavam, de certo
modo, a interpretação do leitor implícito – eis elementos facilmente
escamoteáveis numa leitura superficial ou sentimental do livro IV.
Virgílio narra, sim, uma história de amor, plena de patético; o retrato
de Dido é comovente e simpático, no geral, à personagem; certamen-
te a descrição pungente de sua morte fez chorar não apenas a Santo
Agostinho;71 mas o poeta, inserindo-se na perspectiva ideológica de

e monólogos e até mesmo essa espécie de deus ex machina que é a intervenção de


Juno, através de Íris, para acabar com a cruel agonia de Dido. Marcadores da filiação
genérica são também as alusões a tragédias; o exemplo mais curioso é este, porque
explícito – a situação de Dido é comparada à de grandes exempla da tragédia:

Eumenidum ueluti demens uidet agmina Pentheus


et solem geminum et duplices se ostendere Thebas,
aut Agamemnonius scaenis agitatus Orestes,
armatam facibus matrem et serpentibus atris
cum fugit ultricesque sedent in limine Dirae. (IV. v. 469-473)

“Como, em desvario, vê Penteu o esquadrão das Eumênides


e o sol redobrado e dúplice se mostrar Tebas,
ou como o agamenônio Orestes, perseguido em cena,
ao fugir da mãe armada com tochas e negras serpentes,
enquanto no limiar se postam as Fúrias vingadoras”.

Com scaenis, o poeta deixa claro que não alude simplesmente a mitos, mas a tragédias
que retratam esses mitos. Dido se sente perseguida por causa de uma culpa trágica,
umaubrij
\( funesta a expiar.
71
Confissões I, 13, 20 e 21.

– 239 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

sua época, não deixa de condenar-lhe o comportamento tresloucado,


censurando essa espécie de loucura que dela se apossou até consumir-
lhe as entranhas;72 em suma, o amor de Dido, paixão nefasta, é apre-
sentado com tons fortemente negativos. O leitor moderno, porém,
sem perceber que contamina a leitura do episódio com noções sobre o
amor que não são as de Virgílio e sua época, tende a eludir os aspectos
negativos com que o poeta reveste essa paixão. Na Antigüidade ro-
mana, Dido, como o “eu-poético” Catulo ou outro elegíaco apaixona-
do, só pode ser mesmo misera nessa escravidão aos afetos incontrolá-
veis.
No livro I, quando Dido é apresentada ao leitor em seus aspec-
tos mais nobres – trata-se da heróica fundadora e mantenedora de
uma cidade destinada a expandir-se e dominar o Mediterrâneo até
sucumbir sob os golpes fatais de Roma, da rainha que, apesar das
ameaças de povos vizinhos, garante a segurança e o bem-estar de seu
povo73 – Virgílio, em técnica de contraste que lhe é cara, anuncia a
sombra que paira sobre a personagem:

infelix, pesti deuota futurae (I, v. 712)

A paixão que a consumirá é anunciada como doença, pestis,


tópico da poesia elegíaca que encontramos já em Catulo:

72
Ainda que, em última instância, o amor de Dido fora obra de Vênus, através de Cupido,
fica patente que a rainha continua responsável por sua conduta; o próprio narrador
chama de culpa a ligação de Dido com Enéias após o episódio da gruta (IV. v. 172).
73
Entretanto, observa Cairns (Virgil’s Augustan Epic, p. 139-140), já nas palavras de
Vênus, disfarçada em caçadora, a Enéias (v. 335-369), enfatiza-se o amor de Dido a
Siqueu (amore, v. 344; amorum, v. 350; amantem, v. 352). Parece prenunciar-se, por-
tanto, a futura perda de estatuto heróico de Dido, traída em seus afetos mais femini-
nos; entregando-se a eles, a amante de elegia avultará sobre a fundadora de um futuro
império. No mesmo passo, contrapõe-se, por via intratextual, esse amor conjugal de
Dido ao amor ao ouro de Pigmalião: magno miserae dilectus amore, v. 344/auri caecus
amore, v. 349; no livro IV, o amor-paixão por Enéias degradará a rainha como a cupidez
cegara o irmão.

– 240 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Eripite hanc pestem perniciemque mihi (LXXVI, v. 20)

“Arrancai de mim esta peste e esta desgraça.”

Neste mesmo poema, que contém comovente prece aos deuses


para que livrem o “eu-poético” de uma paixão que o infelicita, o sen-
timento amoroso é denominado taetrum morbum (v. 25) – e tal tópi-
co reaparecerá em Tibulo, Propércio e Ovídio. Doença da alma, tra-
ta-se de um furor que aliena o indivíduo de seu papel social, escravi-
zando-o a uma única e exclusivista fonte de interesse. Sob seu poder,
Dido abandona os deveres de rainha, degrada-se na humilhação vã74
e finalmente se entrega à insânia; assim, o poeta aplica à personagem,
no livro IV, estes adjetivos e substantivos:

male sana, v. 8; furentem, v. 65, 283, 465 e 548; furens, v. 69; demens,
v. 78; furori, v. 91 e 433; furorem, v. 101; furenti, v. 298; furiis, v.
376; furias, v. 474; furores, v. 501; insania, v. 595; furibunda, v. 646.

Como se vê, é tema que Virgílio reitera qual leitmotiv. Doença


da alma, a paixão é também representada como ferida que atinge le-
talmente o corpo no símile da corça (IV, v. 69-73); aqui, em outra
técnica cara ao poeta, a da reiteração, há quatro referências à flecha
que atinge o animal, como Dido fora atingida por Cupido: sagitta,
telis, uolatile ferrum, harundo.75

74
Improbe Amor, quid non mortalia pectora cogis? (“Ímprobo Amor, a que não obrigas
os corações mortais?”, IV. v. 412), esse o verso que antecede à representação da rainha
como uma humilhada suplicante (supplex, v. 414) – eis a que a paixão a obriga (cogitur,
v. 414).
75
Não se trata de mero tour de force a provar a riqueza verbal do poeta; com a repetição,
realça-se a idéia contida no último verso do símile, a da permanência da seta no flanco
do animal, isto é, a fixidez obsessiva de um sentimento que levará Dido à morte: haeret
lateri letalis harundo. Causa espanto, portanto, que se tenha apontado a passagem
como sinal da incompletude da redação, em virtude de uma suposta “inabilidade”
verbal do poeta, que o levaria a repetir exaustivamente o mesmo conceito!

– 241 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

A paixão é, pois, doença76 que consome Dido e lhe causa a per-


da; entregue a seus sentimentos particulares, a rainha se aliena de
seus deveres de chefe de uma comunidade, contaminando todo seu
povo com censurável negligência.77 Se no livro I, Virgílio mostrara
Enéias admirando o intenso trabalho de construção da cidade (v. 421-
436), no livro IV, o poeta retrata a decadência geral que se apoderou
de todos depois que Dido se entregou ao amor:

non coeptae adsurgunt turres, non arma iuuentus


exercet portusue aut propugnacula bello
tuta parant; pendent opera interrupta minaeque
murorum ingentes aequataque machina caelo. (IV, v. 86-89)

No episódio da caça, Virgílio mostra Dido demorando-se no


leito, enquanto todos a aguardam:

Reginam thalamo cunctantem ad limina primi


Poenorum expectant (v. 133-134)

“À rainha, demorando-se no tálamo, no limiar os primeiros


dentre os cartagineses aguardam...”

É uma cena traçada com discrição, mas o detalhe que incrimina


a rainha, indolente em seu leito,78 não pode escapar ao leitor, tanto

76
Sobre tal concepção “pessimista” no conjunto da obra de Virgílio, pode-se consultar:
LANA, Italo. “Virgilio e la Felicità”. In: Atti del Convegno Nazionale di Studi su
Virgilio. Torino, Regione Piemonte, 1984, p. 35-53 (“...na poesia de Virgílio, ao lado
do Amor, sentam-se a morte e o silêncio, não a felicidade”, p. 37). Mais minucioso e
profundo, o ensaio de Giovanni D’Anna. “La Concezione dell’Amore in Virgilio”. In:
Virgilio. Saggi Critici. Roma, Lucarini, 1989, p. 21-31. Considerações sempre interes-
santes no polêmico mas meritório livro de Paul Veyne, já citado, que estuda particular-
mente a elegia amorosa latina.
77
Virgílio desenvolve um motivo da poesia helenística; no idílio XI de Teócrito, Polifemo
se exorta a voltar às atividades rotineiras, esquecendo, assim, a paixão não correspondida
por Galatéia (v. 72-75). Veja-se Heinze (Op. cit., p. 130, nota 6 em especial).
78
Também se pode interpretar thalamo como “em seu quarto” e, com verossimilhança,
pensar que Dido se demora não porque dorme até mais tarde mas porque perde tempo

– 242 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

mais se recordarmos as concepções romanas sobre os deveres e a


dignitas de um governante; aqui, o poeta parece assinalar que o lado
político de Dido cede cada vez mais ao lado feminino, individual,
anti-heróico. No canto VIII, como tem demonstrado a crítica,
Virgílio expressa o ideal de simplicidade, frugalidade e laboriosidade
sã, encarnado no rei Evandro; o comportamento do rei é, assim,
contraposto ao da rainha apaixonada, bem como, de resto, a seu
luxo corruptor, orientalizante. Curiosamente, o poeta descreve tam-
bém o despertar de Evandro, mas este se levanta ao nascer do dia,
como Enéias:

Euandrum ex humili tecto lux suscitat alma


et matutini uolucrum sub culmine cantus. (VIII, v. 455-456)

“A Evandro, de sua humilde morada, desperta a benfazeja luz


e os cantos matutinos dos pássaros sob o teto.”

Notemos Reginam/Euandrum, ambos destacados, em posição


inicial, no mesmo caso, seguidos de adjunto adverbial de lugar e com
o sujeito expresso depois: não há reiteração lexical, mas a estrutura
sintática paralela e os contextos contrastáveis fazem crer que, de
fato,Virgílio incita ao confronto.
Sérvio, que dá como motivo da demora o desejo de agradar ao
amante (studio placendi)79 adornando-se cuidadosa e ricamente, não
toca o âmago da cena, índice de uma nefasta submissão de Dido ao
lado mais feminino de sua alma.
De maneira semelhante, na segunda bucólica, a paixão que se
apossa do pastor Córidon, todo imerso na dor pela traição do amante,
leva-o a transcurar as tarefas que lhe competem:

adornando-se; ainda assim, age negligentemente. Bacchielli traduz por “letto”; Perret,
por “chambre”– dois exemplos da dupla interpretação possível.
79
Vol. I, p. 487.

– 243 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“A! Corydon, Corydon, quae te dementia cepit?


Semiputata tibi frondosa uitis in ulmo est.” (Buc. II, v. 69-70)

“Ai!, Córidon, Córidon! Que loucura se apossou de ti?


Podada pela metade te está a videira no olmo frondoso.”

À poesia erótica deve Virgílio uma expressão tão intensa do


amor como esta:

est mollis flamma medullas (IV, v. 66)

“Devora-lhe a chama as medulas delicadas.”

É evidente a retomada de Catulo:80

Ignis mollibus ardet in medullis (XLV, v. 16)

“Fogo arde nas delicadas medulas.”

Como nos elegíacos, a paixão contrariada rapidamente conduz


ao ódio mais visceral, alternância de sentimento comum nos aman-
tes, na experiência dos Antigos, retratada pelos poetas. Ovídio ilustra
bem esse tema, desenvolvendo o sintético – e mais eficaz e densa-
mente poético – poema LXXXV de Catulo (Odi et amo...):

80
O paralelo é o argumento decisivo, a nosso ver, para corroborar a leitura de mollis
como acusativo que qualifica medullas, ao invés de nominativo relacionado com
flamma. É a interpretação de Sabbadini, Perret, Forbiger (com ampla argumenta-
ção), Buscaroli, dentre outros; porém Conington, Luca Canali, na edição de Paratore,
Odorico e Tassilo Orpheu Spalding, em suas traduções, preferem a outra interpreta-
ção. Sérvio, como não é incomum em seu comentário, acolhe as duas, sem se decidir:
utrum ‘mollis flamma’, an ‘mollis medullas’? (vol. I, p. 476). Pensamos que, se é
possível pensar num tipo de ambigüidade que aparece não raramente na Eneida, o
cotejo com o hipotexto decide a questão, assumindo-se como verdadeira a tese de
que Virgílio incita ao reconhecimento e, amiúde, ao confronto com o modelo evoca-
do. Em todo caso, temos mais um exemplo de como a intertextualidade fornece
argumentos para a discussão filológica.

– 244 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Luctantur pectusque leue in contraria tendunt


Hac amor hac odium, sed, puto, uincit amor.
Odero, si potero; si non, inuitus amabo. (Amores III, 11b, v. 33-35)

“Lutam e meu coração ligeiro arrastam para direções opostas


ora o amor, ora o ódio, mas, acho, o amor vence.
Odiarei, se for capaz; senão, amarei contra minha vontade.”

Os que vêem a história de Dido como uma narrativa de amor


sentimental, em que o gélido Enéias sai aviltado diante da sublime
grandeza da rainha, deveriam atentar para a passagem em que esta,
percebendo que a frota troiana zarpara de suas terras, não só amaldiçoa
o herói e sua descendência como também dá vazão a um sentimento de
tenebroso ódio, próximo da loucura, como a própria personagem co-
menta (quae mentem insania mutat?, “Que insânia transtorna meu
espírito?”, v. 595):

Non potui abreptum diuellere corpus et undis


spargere? non socios, non ipsum absumere ferro
Ascanium patriisque epulandum ponere mensis? (v. 600-602)

“Não poderia ter-lhe dilacerado o corpo e nas ondas


dispersá-lo? E aniquilar os companheiros com a espada e o próprio
Ascânio servir como repasto à mesa do pai?”

Em seu desatinado monólogo, Dido apresenta a face mais obs-


cura de uma Medéia ou de um Atreu81 – com a diferença de que suas
palavras são expressão de um desejo que jamais se concretizaria; mas
isso não atenua sua culpa, afinal a maldição que lança sobre Enéias e
os seus descendentes é terrível – e se realizará.
Diz com excelência Luca Canali:

81
Choca, sobretudo, a referência a Ascânio, em contraste brutal com a ternura de-
monstrada pelo menino no livro I (amor maternal em que se mescla erotismo, pois
trata-se de um falso Ascânio, na verdade o próprio Cupido encarregado de ferir
Dido de amor).

– 245 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Na realidade, não é uma história de amor, mas um clímax de loucura


e, além do mais, uma loucura como doença da alma...”82

De fato, na passagem citada, o universo elegíaco é transposto;


não encontraremos nos elegíacos expressões de ódio tão radicais,83
que parecem próprias da tragédia; mas a passagem rápida do amor ao
ódio visceral é, sim, tema daquela poesia. O episódio de Dido não é
uma história de amor romântico; é o relato de um amor que se torna
cada vez mais doentio e degradante, a trajetória de um amor elegíaco
que terminará por atingir proporções trágicas.
O amor dilacerante impede que Dido encontre a serenidade; a
rainha, ao contrário de Enéias, é excluída do ciclo natural, impossibi-
litada de integrar-se ao ritmo que governa a natureza; assim, não con-
segue dormir, enquanto a plácida noite concede o sono a todas as
criaturas:

Nox erat et placidum carpebant fessa soporem


corpora per terras, siluaeque et saeua quierant
aequora, cum medio uoluontur sidera lapsu,
cum tacet omnis ager, pecudes pictaeque uolucres,
quaeque lacus late liquidos quaeque aspera dumis
rura tenent, somno positae sub nocte silenti.
[Lenibant curas et corda oblita laborum.]
At non infelix animi Phoenissa neque umquam
soluitur in somnos oculisue aut pectore noctem

82
CANALI, Luca. L’ Eros Freddo. Roma, Ateneo, 1976, p. 76. Também se expressam no
mesmo sentido Cartault: “é uma espécie de loucura furiosa na qual sua razão soçobrou”
(Op. cit., vol. I,p. 305) e Quinn, comentando o suicídio da rainha: “a piedade que ela
desperta é mesclada de horror; é mais a piedade que sentimos por aqueles que estão
loucos do que a piedade mais pura que sentimos pelo sofrimento inocente” (Op. cit., p.
152).
83
Catulo e Ovídio, por exemplo, parecem encenar “suas” emoções e dá-las em espetácu-
lo ao leitor, com doses inegáveis de humor e autozombaria: longe estamos, aqui, da
seriedade trágica do episódio de Dido. Pusemos entre parênteses o possessivo e gostarí-
amos de fazer o mesmo com o prefixo “auto”, para distinguir, na medida do possível,
autor de carne e osso, esse imponderável, e eu-poético.

– 246 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

accipit: ingeminant curae rursusque resurgens


saeuit amor magnoque irarum fluctuat aestu. (IV, v. 522-532)

“Era noite e do plácido sono desfrutavam os fatigados


corpos pelo mundo, e as florestas e os mares agitados
tinham se aquietado, quando giram os astros no meio de seu curso,
quando se cala todo o campo: os rebanhos e os pássaros multicores,
os que habitam ao longe os límpidos lagos ou as terras eriçadas de silvedos,
mergulhados no sono sob a noite silenciosa.
[Abrandavam as inquietações e os corações esquecidos das penas.]
Mas a fenícia, infeliz em seu coração, nem jamais
se entrega ao sono nem em seus olhos e em seu peito a noite
acolhe: redobram as inquietações e de novo ressurgindo
enfurece-se o amor e ela se agita num grande mar de iras.”84

À conturbada vigília da rainha, contrapõe o poeta o sono plá-


cido de Enéias:

Aeneas celsa in puppi iam certus eundi


carpebat somnos... (v. 554-555)

“Enéias, na elevada popa, já decidido a partir,


desfrutava do sono...”

Note-se a alusão intratextual: na primeira descrição, Virgílio


mostra todos os seres da natureza a gozar do sono – carpebant soporem;
Enéias, como o mundo à sua volta, ao contrário de Dido, também
carpebat somnos. O poeta repete o verbo carpere a pequena distân-

84
Virgílio segue Apolônio (III, v. 744-751); este contrapõe o calmo silêncio da noite, a
induzir ao sono, à vigília ansiosa de Medéia. O poeta latino, entretanto, organiza suas
imagens de forma particular, mais simbólica; enquanto Apolônio fala dos navegantes
(nauti/loi), que observam as estrelas, do viajante (o(di/thj) e do guardião das portas
(pulawro\j), que desejam o sono, do torpor que se apossa até mesmo da mãe que
perdeu os filhos (tina pai/dwn/ mhte/ra teqnew/twn), isto é, centra-se no ponto de
vista humano, Virgílio, a não ser por um impreciso fessa corpora, só trata dos astros e
dos animais, contrapondo mais decididamente o repouso da natureza aos tormentos de
Dido, o ciclo natural à aberração antinatural do amor-paixão.

– 247 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

cia, de uso certamente não comum com tal sentido e, pela reiteração,
cria efeitos de leitura: Enéias, já se libertando da sedução do amor,
pode-se integrar ao ciclo natural, enquanto Dido, escravizada ainda à
paixão, aliena-se do estado de natureza, isola-se num tormento feroz
que nenhum repouso conhece, nenhum dom da natureza pode miti-
gar. A escolha do verbo – que significa “gozar de”, realçando a “idéia
da ação benéfica do sono”–85 acentua o contraste com a atormentada
vigília de Dido.
No início do livro IV, Virgílio opõe, de forma sutil, o repouso do
herói à inquietação noturna de Dido: At, primeira palavra do livro, é
adversativa que contrasta com o quieuit do verso anterior, última
palavra do terceiro livro. Enéias, após terminar sua longa narração,
descansa, mas a rainha não é capaz de fazer o mesmo:

nec placidam membris dat cura quietem. (v. 5)

“Nem a inquietação concede a seus membros o plácido descanso.”

A retomada da mesma raiz de quieuit (aplicado a Enéias) em


quietem (aplicado a Dido) é dado intratextual significativo: como
normal em Virgílio, sugere-se também o contraste de forma discreta,
não explícita, por reiteração lexical.
Outro passo que traz descrição da natureza se imanta de cono-
tação semelhante:

Post ubi digressi, lumenque obscura uicissim


luna premit suadentque cadentia sidera somnos,
sola domo maeret uacua (IV, v. 80-82)

“Depois que se despediram, e, por sua vez, obscurecida, seu brilho


a lua contém, e os astros deslizantes persuadem ao sono,
só, na casa vazia, aflige-se...”

85
BUSCAROLI, Corso. Op. cit., p. 366.

– 248 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

A calma da noite avançada que induz ao sono, fonicamente


realçada pela aliteração da sibilante (suadentque...sidera somnos), não
traz a Dido o repouso. Seu isolamento da comunidade e da natureza
em geral é patente – ao contrário de todos os seres, a rainha não
dorme, está só e entregue a um sofrimento que a noite não pode abran-
dar. Eis um exemplo notável de como Virgílio motiva suas descrições
da natureza, conferindo-lhes funcionalidade no sentido geral, eivando-
as de conotação no contexto em que se inserem.
Apontemos, brevemente, outro suposto exemplo, mencionado
já por Sérvio, da adequação da notação de tempo ao conteúdo da
narrativa. Na manhã em que Dido perceberá a partida de Enéias, o
surgimento do novo dia é assim referido, em linguagem homérica:

Et iam prima nouo spargebat lumine terras


Tithoni croceum linquens Aurora cubile. (IV, v. 584-585)

“E já com novo lume banhava as terras a primeira


Aurora, abandonando o leito açafrão de Titono”.

Pode-se pensar que a escolha de Virgílio não seja gratuita, isto


é, seja motivada pelo contexto; Virgílio descreve o nascer do dia uti-
lizando a imagem da Aurora que abandona o leito do troiano Titono,
o irmão mais velho de Príamo. Efeito, portanto, de similitude e con-
traste, pois na narrativa é um troiano que se afasta de Cartago, aban-
donando para sempre a rainha, ao passo que no mito Aurora deixa
provisoriamente, a todo alvorecer, o leito do amado.86 Não há como
86
Sérvio diz, sinteticamente: “pois que Enéias está para zarpar e abandonar Dido” (quia
est nauigaturus Aeneas et relicturus Didonem...: ad uersum XI, 183, vol. II, p. 497). O
comentador traz mais um exemplo: no livro XI, quando se vai narrar o episódio dos
funerais de troianos e latinos após o estabelecimento da trégua, o nascer do dia é assim
descrito:
Aurora interea miseris mortalibus almam
extulerat lucem referens opera atque labores (XI, v. 182-183)
“A Aurora, entretanto, aos míseros mortais sua alma
luz erguera, renovando-lhe os trabalhos e as penas”.

– 249 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

deixar de evocar a observação, que, segundo Sérvio, Asínio Polião


fizera a respeito da descrição do dia em Virgílio:

Sérvio menciona extulerat (do verbo effero, que, como se sabe, significa “erguer” –
sentido de superfície, aqui – mas também “levar para ser enterrado” – sentido velado,
em ambigüidade não incomum nesse poeta sutil!) como exemplo da adequação ao
episódio. Há, porém, outros traços mais evidentes a se apontar: o tom melancólico de
todo o enunciado, em que aos “mortais” (relevo da transitoriedade da vida humana,
bem pertinente no contexto lutuoso) “infelizes” (e a tristeza será sentimento dominan-
te na seqüência), o novo dia traz uma luz paradoxal, pois que, embora “benéfica e
criadora” (não é fácil traduzir alma), ao invés de sanar as dores dos homens, apenas os
acorda para os trabalhos e as penas cotidianas (labores, com sua carga negativa – tanto
mais numa epopéia em que o tema das “penas” do herói é uma constante!). A Aurora
é, pois, representada como portadora de dura labuta renovada (referens) todos os dias
aos míseros mortais.
Mais um exemplo possível de associação entre a descrição do dia nascente e a
trama; ao amanhecer de um dia crucial, que verá o estabelecimento do pacto entre
Enéias e Latino para o duelo com Turno, temos estes belos versos marcando a passa-
gem do tempo:
Postera uix summos spargebat lumine montis
orta dies, cum primum alto se gurgite tollunt
solis equi lucemque elatis naribus efflant (XII, v. 113-114)
“Mal o dia seguinte espargia de luz o alto dos montes,
surgindo, quando do abismo profundo se elevam
os cavalos do sol e sopram a luz das narinas alçadas...”
Cerca de cinqüenta versos depois, o rei Latino aparecerá solenemente, num carro
puxado por quatro cavalos, trazendo nas têmporas raios dourados, que imitam os do
sol, seu avô. Latino encarna o Sol, numa quadriga (quadriiugo uehitur curru, XII, v.
162, especifica o poeta; Turno, que o acompanha, vai numa biga, bigis, v. 164), como
a de seu antepassado, evocada no símile (solis equi; Ovídio dá os nomes desses quatro
animais, abarcados com a mesma perífrase de Virgílio em início de verso: ...Pyrois et
Eous et Aethon,/ Solis equi, quartusque Phlegon – Metamorfoses, II, v. 153-154:
“Piroente e Eous e Etão,/ cavalos do sol, e o quarto, Flegonte...”).
Lyne traz outro exemplo curioso: no livro VIII, a noite que desce é assim descrita:
“Cai a noite e abraça a terra com suas negras asas”(Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur
alis: v. 369); ora, segue-se At Venus e a narrativa da sedução de Vulcano, incitando-
nos a ver no amplectitur do verso 369 uma conotação erótica: a noite abraça a terra
como Vênus e Vulcano se unirão num amplexo carnal. O que torna essa leitura con-
vincente é o fato de que a raiz do verbo amplectitur comparece no substantivo amplexus,

– 250 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Asinius Pollio dicit, ubique Vergilium in diei descriptione sermonem


aliquem ponere aptum praesentibus rebus...

“Asínio Polião diz que Vergílio, na descrição do dia, sempre expressa


algo adequado ao contexto...”

Todavia, não devemos procurar a todo custo, em cada indica-


ção de tempo na Eneida, conotações sutis; na verdade, Virgílio em-
prega esse elemento da tradição homérica nem sempre da forma apon-
tada por Polião; novamente, escapa da majoritária mecanicidade da
fórmula homérica, sem realizar sistematicamente a tendência oposta.
Assim, os versos sobre a Aurora citados mais acima87 aparecem em
outro contexto, sem mudanças: no livro IX, v. 459-460, passagem em
que não se percebe nenhuma adequação especial ao conteúdo da nar-
rativa.

duas vezes expresso (VIII, v. 388 e 405), na cena dos amores entre os dois deuses (ver
LYNE. Further Voices, p. 38).
Não temos conhecimento de um estudo que analise sistematica e contrastivamente
as notações de tempo desse tipo em Homero, Apolônio de Rodes e Virgílio (no contex-
to latino, seria interessante pesquisar também a épica anterior): cremos que o tema
está a merecer um aprofundamento detalhado, que seria, sem dúvida, muito frutuoso.
87
Versos imitados de Homero:
Hw\
) jd e ) k ) lexe/wn par a ) g
) auou= Tiqwnoi=o
/ nuq, ) i(n/ a) qana/toisin fo/wj fe/roi h)de\ brotoi=si! (Il. XI, v. 1-2)
o)r
“A Aurora, do leito do glorioso Titono,
alçou-se para levar a luz aos imortais e aos mortais”.
Quanto a croceum cubile, em especial, retoma outro passo homérico, mostrando
que Virgílio realiza também aqui um tipo freqüente de condensação:
) \ j de\ kroko/peploj e)ki/dnato pa= san e)p )aiåan. (Il. XXIV. v. 695)
Hw
“A Aurora, com seu manto açafrão, espalhava-se sobre toda a terra.”
Notemos que o composto poético kroko/peploj era difícil de se manter em latim,
pela menor flexibilidade da língua na formação de tais palavras, que Aristóteles julgava
próprias da alta poesia. Há relativamente poucos compostos na Eneida, como revela a
ampla pesquisa de Cordier (Études sur le Vocabulaire Épique dans l’Enéide. Paris, “Les
Belles Lettres”, 1939).

– 251 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na segunda bucólica, o amor do pastor Córidon por Aléxis tam-


bém o faz destacar-se das atividades normais dos outros pastores e do
movimento geral que arrebata os outros seres:

Nunc etiam pecudes umbras et frigora captant;


nunc uiridis etiam occultant spineta lacertos,
Thestylis et rapido fessis messoribus aestu
alia serpullumque herbas contundit olentis.
At mecum raucis, tum uestigia lustro,
sole sub ardenti resonant arbusta cicadis. (v. 8-13)

“Agora até os rebanhos procuram as sombras e o frescor;


agora até as sarças ocultam os verdes lagartos,
e Téstilis, para os ceifeiros fatigados pelo calor abrasante,
alhos e serpão esmaga, ervas recendentes.
Mas comigo, enquanto sigo tuas pegadas,
sob o sol ardente ressoa de roucas cigarras o arvoredo.”88

Enquanto os outros seres buscam refúgio para o calor abrasante


e se refrescam, Córidon continua a arder como arde o sol no seu pino;
ao declinar do astro, o pastor ainda permanece abrasado de amor.
Novamente, o tema que reaparecerá no episódio de Dido: o contraste
entre o apaixonado e a natureza, que exclui o primeiro do ritmo da
segunda:

et sol crescentis decedens duplicat umbras;


me tamen urit amor; quis enim modus adsit amori? (v. 67-68)

“E o sol, declinando, duplica as sombras crescentes;


a mim, porém, abrasa o amor; pois que medida há para o amor?”

No canto IV, portanto, tem-se a narrativa de uma paixão


avassaladora, alienante e autodestrutiva; exceto por seus tons trági-
cos e sombrios, pinta-se o universo elegíaco, mas centrado na aman-
te, Dido. De fato, Enéias como que cede espaço a Dido no foco do

88
Emprestamos à tradução de Odorico Mendes “recendentes” e “arvoredo”.

– 252 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

narrador;89 basta atentar aos discursos diretos atribuídos a uma e ou-


tra personagem,como se mostra abaixo:

DIDO:
v. 9 a 29 – diálogo com Ana;
v. 305 a 330 – diálogo com Enéias;
v. 365 a 387 – palavras dirigidas a Enéias, que não responderá;
v. 416 a 436 – palavras dirigidas a Ana;
v. 478 a 498 – idem;
v. 534 a 552 – monólogo;
v. 590 a 629 – monólogo;
v. 634 a 640 – palavras dirigidas a Barce, a velha nutriz de Siqueu;
v. 651 a 662 – monólogo final, antes do suicídio.

ENÉIAS:
v.333-361 – resposta a Dido (curiosamente, introduzida assim: Tan-
dem pauca refert)
v. 573 a 579 – incitamento aos companheiros para a partida.

A Enéias a palavra é concedida apenas duas vezes e, numa delas,


em resposta ao discurso que Dido teve a iniciativa de proferir. A voz do
herói se cala e não temos indicação clara de seus sentimentos, que
aflorarão só no livro VI, por ocasião do último encontro entre os aman-
tes; daí a impressão da palidez do herói diante da sombra avultada da
rainha, um elemento que, ousadamente, Virgílio desenvolve num li-
vro, que, ironicamente, é o mais lido e estimado dentre todos – o menos
“heróico”, no sentido tradicional,90 de toda a epopéia... Enéias pertence
a um outro mundo que o do universo elegíaco de Dido, por isso Virgílio
o deixa na penumbra quando da narração dos amores entre os dois,
centrando-se decididamente em Dido. Como observa Marzia Bonfanti:

“Dido pensa e age como pensa e age a personagem da mulher apaixo-


nada (assim como a mulher apaixonada era vista na tradição literária

89
“O quarto canto é dedicado a Dido; a tal ponto ela domina a cena, que o herói do epos
aparece como deuteragonista”, diz Heinze, p. 119.
90
O heroísmo de Enéias, aqui, é de outra natureza, feito de renúncia e auto-superação.

– 253 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

erótico-elegíaca); Enéias participa, ao contrário, de um mundo de valo-


res que é coletivo e épico (isto é, não “alexandrino”nem elegíaco).” 91

Assim, modalidades narrativas concedidas a Dido, como o mo-


nólogo, faltam a Enéias, cuja afetividade permanece numa espécie de
elipse. A Dido, uma expansão da primeira pessoa que contrasta com a
terceira com que se narram atos e atitudes de Enéias. Bonfanti releva
como os sentimentos do troiano são assumidos pela narrativa em ter-
ceira pessoa, em discurso indireto livre, num momento crucial do epi-
sódio (após a advertência de Mercúrio):

Heu quid agat? quo nunc reginam ambire furentem


audeat adfatu? quae prima exordia sumat? (IV, v. 283-284)

“Ai! que deveria fazer? Com que palavras, agora, da rainha enfurecida
ousaria acercar-se? Por onde começar?”

Após a mensagem divina, Enéias decide partir de Cartago; he-


sita, porém, no modo como o fará – nenhum conflito emocional, ne-
nhuma cisão aparente entre o que lhe comanda o deus e o que lhe vai
pela alma; as dúvidas surgem apenas quanto à maneira de explicar-se
com Dido, mas sua decisão já está tomada. Enéias recupera seu esta-
tuto de herói épico, enquanto Dido marcha funestamente na direção
inversa. As palavras do herói que marcam a ruptura definitiva são
reveladoras: seu verdadeiro amor não se dirige a uma pessoa, mas à
terra indicada pelos destinos:

hic amor, haec patria est. (v. 347)92

Enéias transcende seu sentimento individual (magnoque


animum labefactus amore, v. 395) canalizando-o para a concretização

91
Op. cit., p. 127-128.
92
Hic amor faz pensar: será demasiado supor que o poeta aluda ao conhecido anagrama
de Roma, a pátria dos descendentes de Enéias? Neste caso, expressar-se-ia de forma
curiosa a relação de oposição inconciliável entre o amor de Dido e Roma.

– 254 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

de uma obra supra-individual, ao passo que Dido negligencia a tarefa


heróica que lhe incumbia (a construção de Cartago e o governo de
seu povo) para mergulhar toda numa paixão sem futuro.
No episódio de Dido, podemos dizer, portanto, que um Enéias
decaído recupera sua integridade, ao passo que a rainha soçobra; a
narrativa dos amores entre os dois é a história de dois universos que se
chocam e se repelem. A censura aos dois é explicitada num enuncia-
do em terceira pessoa que parece refletir a visão de Júpiter:

audiit Omnipotens, oculosque ad moenia torsit


regia et oblitos famae melioris amantis . (IV, v. 220-221)

“Ouviu-o o Onipotente e volveu os olhos para os muros


reais e os amantes esquecidos de melhor fama”.

Virgílio aproximara os destinos de um e outro, ambos exilados,


viúvos, fundadores de cidade;93 como diz Dido:

Me quoque per multos similis fortuna labores


iactatam hac demum uoluit consistere terra. (I, v. 628-629)

“A mim também, por muitos labores perseguida, fortuna semelhante

quis que, finalmente, eu me detivesse nesta terra”.

93
Apontemos uma associação entre os dois personagens, evidenciada intratextualmente;
signos claros de uma consciência culpada, à noite a imagem de Anquises aparece para
aterrorizar Enéias, ao passo que Dido tem a impressão de ouvir a voz do marido Siqueu
no templo a ele dedicado. Notemos o paralelismo: quotiens umentibus umbris / nox
operit terras (“todas as vezes que, com suas sombras úmidas, a noite cobre a terra...”,
IV. v. 351-352) / hinc exaudiri uoces et uerba uocantis/ uisa uiri, nox cum terras obscu-
ra teneret (“daqui, parecia-lhe ouvir vozes e as palavras/ do marido a chamá-la, quando
a noite obscura cobria a terra...”, IV. 460-461). Em Enéias e Dido, pois, um sentimento
de culpa se revela em perturbadoras aparições noturnas de Anquises e Siqueu, pai e
marido, respectivamente, a advertir contra a quebra da pietas. No quarto capítulo
deste trabalho, voltaremos ao paralelo Dido-Enéias.

– 255 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Iactatam e labores evocam a proposição da Eneida: é evidente a


aproximação com Enéias. Em sua alocução a Dido, Ilioneu assim a saúda:

“O regina, nouam cui condere Iuppiter urbem


iustitiaque dedit gentis frenares superbas” (I, v. 522-523)

“Ó rainha, a quem Júpiter uma nova cidade fundar


concedeu e, com a justiça, frear os povos soberbos...”

Ora, desde a proposição da epopéia, sabemos que a missão divina


de Enéias tem como fim a fundação de uma cidade (dum conderet
urbem, I, v. 5); por outro lado, saberemos no livro VI que, segundo
Anquises, um dos aspectos da missão do romano, cujas qualidades ide-
ais Enéias deve encarnar, é “debelar os soberbos” (debellare superbos,
VI, v. 853). Antes de sua “queda”, portanto, Dido é retratada em uma
tarefa de fundação e civilização que é o ideal mesmo do próprio Enéias,
quando este se torna consciente de seu papel nos arcanos dos fados:
nesse sentido, o troiano “evoluirá” e a cartaginesa “involuirá”.
Enéias, por outro lado, parece correr o mesmo risco de Dido:
Mercúrio o encontra ajudando-a a construir a nova cidade, revestido
com os caros presentes da rainha (v. 259-264);94 a censura é viva:

“Tu nunc Karthaginis altae


fundamenta locas pulchramque uxorius urbem
exstruis? heu, regni rerumque oblite tuarum!” (IV, v. 265-267)

“Tu, agora, da alta Cartago95


estabeleces os alicerces e, como um esposo submisso, bela cidade
constróis? Ai!, esquecido do reino e de teu destino!”

94
Como sempre Virgílio não explicita, sugere; que esse luxo de Enéias revela a decadên-
cia do herói, vê-se pelas palavras da Fama: o monstro denigre os amantes dizendo,
entre outras coisas, que passam o inverno na luxúria: luxu (v. 193). A essa palavra, que
Plessis-Lejay glosa molliter uiuendo (Op. cit., p. 405) e que é geralmente traduzida
nesse sentido, não falta, por certo, a idéia da vida luxuosa.
95
Na proposição, menciona-se que da gesta de Enéias provirão “os muros da alta Roma”
(altae moenia Romae, I, v. 7) – o uso do mesmo epíteto, agora aplicado a Cartago, faz

– 256 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Através da perífrase “esposo submisso”, vertemos o depreciati-


vo uxorius, assim glosado por Sérvio: nimium uxori deditus uel
seruiens 96 – não se poderia encontrar expressão mais eloqüente para
designar, do ponto de vista romano, a decadência de Enéias, objeto
quase passivo nesse momento da narrativa. Cairns observa, aliás, que
Dido, tal como é representada por Virgílio, reproduz o papel ativo do
amante na poesia elegíaca, isto é, o papel do (a) amante, não da ama-
da.97 Nesse sentido, não é inverossímil a hipótese de Quinn, a respei-
to do verso abaixo, que reproduz o verso IV, 124:

Speluncam Dido dux et Troianus eandem


deueniunt (v. 165-166)

“À mesma gruta Dido e o comandante troiano


acorrem...”

Para Quinn, podemos ler o primeiro verso de duas formas: a


primeira, e mais natural, fazendo a cesura no terceiro pé (mais preci-
samente, pentemímera) – speluncam Dido/dux et Troianus; mas se
pode pensar, também (subliminarmente, diríamos nós), numa cesura
no quarto pé (heftemímera), apoiada por cesura secundária no se-
gundo (triemímera), esquema não raro, mas menos freqüente: spe-
luncam/Dido dux et/Troianus.98 Dido, dux, conduz Enéias, como se
este fosse um ser passivo, suprema desonra para o ideário romano.99

pensar: é como se Mercúrio, nas entrelinhas, lembrasse que o troiano deve contribuir,
sim, para a fundação de uma cidade, mas esta é Roma, não Cartago!
96
E. THILO, v. I, p. 514, ad uersum 266.
97
“...she is the ‘lover’, not the ‘beloved’” (Virgil’s Augustan Epic, p. 137).
98
QUINN, K. Op. cit., p. 410. Clausen também apresenta a mesma interpretação (Op.
cit,p. 23-24). Nega, porém, taxativamente a possibilidade dessa segunda leitura e, con-
seqüentemente, da ambigüidade, Horsfall, comentando o verso IV. 124, que é repro-
duzido integralmente no contexto que estamos analisando (ver HORSFALL, N. A
Companion to the Study of Virgil, p. 229).
99
Um verdadeiro topos da poesia amorosa, e elegíaca, em particular, é o da inversão de
papéis: o homem apaixonado se torna objeto passivo da amada, como um escravo
diante do patrão. Lucrécio, no livro IV do De Rerum Natura, aponta que “a vida (do
apaixonado) transcorre sob o arbítrio de uma outra pessoa” (alterius sub nutu degitur

– 257 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Também é Quinn quem recorda um dado intratextual que merece


relevo: no passo do livro IV citado acima, aparece o verbo deuenire;
no livro I, a audaciosa fuga de Dido para Cartago é assim expressa:
dux femina facti./Deuenere... – o emprego do mesmo verbo após dux,
apelativo aqui realmente aplicado a Dido, faz pensar numa associa-
ção alusiva significativa. No livro I, temos um enunciado enaltecedor,
pois que confere à rainha virtudes que os Romanos atribuíam aos gran-
des homens; Dido surge, portanto, sob sua face mais heróica. No livro
IV, transformar-se-á na tresloucada amante de elegia e em trágica
Medéia, com a capacidade de uma Circe para enfeitiçar o troiano a
tal ponto que se faz necessária a intervenção do próprio Júpiter para
livrá-lo da derrocada e incitá-lo a reassumir a tarefa que o transcende
e enobrece. Apontamos outro dado que se insere perfeitamente nessa
leitura: nas palavras do pai dos deuses a Mercúrio, o nome de Enéias
é calado, e este é inicialmente denominado por um Dardaniumque
ducem (IV, v. 224) a que não deve faltar ironia que beira o escárnio;
toda a passagem ressuma da revolta de Júpiter diante da aparente
renúncia do troiano à missão divina.
Enéias e Dido se igualam no esquecimento de seu papel herói-
co, por um momento, no livro IV; a Fama os mostra regnorum
immemores (“esquecidos dos reinos”, v. 194). Assim, um e outro pa-
recem trair seu projeto heróico para sempre; entretanto, veremos que
Enéias é capaz de salvar-se, superando-se; Dido, incapaz de dar o
mesmo passo, sucumbe – sua tragédia é a de uma involução sem vol-
ta. Concebida a paixão da rainha como um amor elegíaco, esse uni-
verso contrastante com o do épico deve permanecer marginal no re-
lato da epopéia, isto é, episódio a ser superado por um herói que

aetas, v. 1115). Em Catulo, Lésbia é domina e era (LXVIIIb, v. 68 e 136, respectiva-


mente). Esse mesmo poeta retrata o passado venturoso com a amada; naquele tempo
feliz, acorria sempre ao lugar para onde a moça o conduzia (Cum uentitabas quo puella
ducebat, VIII, v. 4) – notemos o verbo ducere, que já se pretendeu emendar para dicere
(ver a edição de Kroll, p. 17), perdendo um matiz importante da significação. Quanto
aos elegíacos Tibulo, Propércio e Ovídio, o tema é recorrente, sendo desnescessário
apontar sua presença.

– 258 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

pertence a outra esfera de valores, a mesma de Dido, antes que esta se


perdesse por obra de Vênus. Que a rainha seja submetida, por pode-
res divinos, a essa alienação cruel da antiga substância social que fazia
sua fama e orgulho; que desça à auto-humilhação consciente ainda
de sua queda; que conserve em seu suicídio trágico muito da velha
fibra e nobreza sem poder renegar totalmente a paixão; que obtenha
as lágrimas de Enéias somente tarde demais, na última entrevista nos
Infernos,quando nenhuma comunicação é mais possível – tudo isso
faz de Dido uma das personagens mais patéticas de toda a literatura
ocidental.
Terminaremos esse item com um breve comentário a respeito
do papel de Enéias no episódio de Dido. Já rejeitamos a leitura unila-
teral que condena o herói e romantiza a paixão entre os dois; entre-
tanto, apontamos a quebra da fides por Enéias (Dido nesse ponto tem
razão!) acarretando a punição, embora o herói tenha, simplesmente,
seguido as recomendações de Júpiter, que até o tornara surdo às pre-
ces da rainha. Gostaríamos de insistir, agora, nessa situação delicada
em que Virgílio coloca Enéias; para tal, extrairemos elementos de uma
leitura privilegiada do episódio – a de Ovídio, nas Heróidas (afinal,
trata-se de um poeta, romano e da época de Augusto).
Na epístola de Dido a Enéias, a idéia da perfídia é quase um
leitmotiv; Enéias é visto como um mentiroso que quebrou sua pala-
vra: “e os mesmos ventos levarão velas e a palavra empenhada?”
(Atque idem uenti uela fidemque ferent?, Her. VII, v. 10); “Estás
determinado, Enéias, a romper, junto com o pacto, as amarras dos
navios?” (Certus es, Aenea, cum foedere soluere naues, v. 11); “in-
fiel” (infidum, v. 30); “Ter violado a palavra empenhada não é bom
para quem afronta os plainos do mar”(Nec uiolasse fidem temptantibus
aequora prodest, v. 57); “castigo para a perfídia”(perfidiae poenas, v.
58); “os perjúrios de uma língua enganadora” (falsae periuria linguae,
v. 67); “e Dido levada à morte pela fraude frígia”(Et Phrygia Dido
fraude coata mori, v. 68); “pérfido” (perfide, v. 79); “tudo mentira!”
(literalmente: “mentes em tudo” : Omnia mentiris, p. 81); “tua língua

– 259 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

/não começou a enganar conosco...” (neque enim tua fallere lingua/


Incipit a nobis, v. 81-82); “ímpia destra” (impia dextra, v. 130 – con-
testando a alegada pietas do herói!).
Mas Dido acusa Enéias de algo mais grave: de ter antes sido
responsável pela morte da esposa, que ele, insensível, teria abandona-
do...:

Si quaeras ubi sit formosi mater Iuli,


Occidit a duro sola relicta uiro. (v. 83-84)

“Se me perguntares onde está a mãe do belo Iulo:


morreu, deixada ao abandono por um marido insensível”.

Dido, como boa promotora..., vê parcialmente os fatos, mas é


interessante recordar que na Eneida se insinua um certo sentimento
de culpa do herói na perda da esposa, provocada, é verdade, por for-
ças divinas; é que a perda se dá quando Enéias se desvia inadvertida-
mente do caminho certo:

Hic mihi nescio quod trepido male numen amicum


confusam eripuit mentem. Namque auia cursu
dum sequor et nota excedo regione uiarum (II, v. 735-738)

“Aqui, não sei que nume nada amigo em minha agitação


confundiu e tirou-me a razão. Enquanto, na corrida, caminhos remotos
sigo e me afasto da direção conhecida...”

Portanto, Enéias reconhece que, na origem da perda, está um


erro provocado pela precipitação da fuga – como Orfeu, o troiano
falha... Virgílio justifica sua ação no episódio, mas a sombra que o
envolve permite, na leitura de Ovídio, a acusação de Dido! A perso-
nagem ovidiana exagera o erro, acusando Enéias de ter abandonado
propositalmente Creúsa!...
Por outro lado, a Dido das Heróidas prevê que Enéias será res-
ponsabilizado por sua morte: aqui, a rainha parece prenunciar a leitu-
ra de muitos estudiosos da epopéia!:

– 260 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Tu potius leti causa ferere mei. (v. 64)

“Tu, antes, serás apontado como a causa de minha morte”.

De fato, o próprio Enéias, como veremos no último item deste


capítulo, demonstrará seu sentimento de culpa diante de Dido, ape-
sar de sua ação se ter subordinado às ordens de Júpiter.
Em suma, Virgílio coloca seu herói em situações em que é obri-
gado a cometer atos ensombrecidos por conseqüências trágicas e cir-
cunstâncias delicadas do ponto de vista da responsabilidade indivi-
dual: a morte de Creúsa e de Dido, por exemplo; o poeta justifica
Enéias, mas o coloca num mundo (isto é, numa trama narrativa...)
que lhe impõe sobre os ombros ingente carga de dores e culpas.

6. A LUTA DO LIVRO V: RUPTURA DE EXPECTATIVA NA ESTRATÉGIA


INTERTEXTUAL

Nos jogos fúnebres em memória de Anquises, celebrados na


Sicília – e que ocupam a parte central do livro V da Eneida, espécie
de intervalo lúdico após a ação dramática do final do livro IV, plena
de tensão e tragicidade –100 Virgílio alude, sobretudo, aos jogos em
honra de Pátroclo, capitaneados por Aquiles na Ilíada. Era de se espe-
rar que o poeta latino, postando-se na tradição homérica, não deixas-
100
Como diz Quinn, em sua leitura crítica da epopéia, “um livro calmo (quiet) é clara-
mente desejável entre os livros 4 e 6 – uma diminuição da tensão como a que propor-
ciona o livro 3 entre os livros 2 e 4” (Op. cit., p. 151). Pode-se dizer, pois, que o episódio
dos jogos tem o mesmo papel estrutural de transição que na Ilíada, em que se passa de
uma série de cenas intensamente dramáticas, com a morte de Pátroclo, através de um
momento de alívio da tensão através dos jogos, ao patético e dramático episódio se-
guinte, que conta o resgate do corpo de Heitor. Sobre o assunto, veja-se GRANSDEN.
Op. cit., p. 83-84. O tom festivo e alegre com que Virgílio constrói as cenas dos jogos é
salientado por Heinze (Op. cit., p. 170), que observa a freqüência do adjetivo laetus
(doze vezes: v. 34, 40, 58, 100, 107, 210, 236, 283, 304, 515, 531, 577!). É, pois, eviden-
te o efeito de contraste com o livro IV.

– 261 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

se de utilizar em sua epopéia o célebre tema do livro XXIII da Ilíada;


sempre à sua maneira, contudo, citando, fundindo e transformando.
Recentemente, Cairns mostrou as semelhanças dos jogos virgilianos com
os do livro VIII da Odisséia; o paralelo é inegável, especialmente pela
alusão: três nomes que comparecem no livro V da Eneida parecem tra-
duzir nomes do livro VIII do poema homérico – Salius, equivalente
de Alioj;
(/ Euryalus; Nautes, quase homônimo de Nauteu/j.101 Con-
tudo, é discutível a consideração de que, estruturalmente, os jogos da
Odisséia é que evocam de perto os da Eneida, já que se colocam antes
da descida de Ulisses aos Infernos, como no caso da epopéia latina.102
Não se deve esquecer uma característica de Virgílio na alusão intertex-
tual: o poeta funde num só hipertexto, como já assinalamos, passagens
dos dois poemas homéricos que tenham, explícita ou implicitamente,
pontos semelhantes, situações ou personagens comparáveis.103 Apesar
das considerações de Cairns, para nós, Virgílio, evocando simultanea-
mente a Odisséia, pensa, sobretudo, nos jogos da Ilíada; assim, o episó-
dio da Eneida que elegemos para analisar, o da luta de boxe, é bastante
desenvolvido, como nesse último poema de Homero; na Odisséia, é
sumariado ao máximo.
Na Ilíada, narram-se duas lutas: a primeira, entre Epeu e Euríalo,
em quarenta e sete versos (v. 653-699); a segunda, entre Ulisses e
Ájax, em quarenta versos (v. 700-739). Virgílio concentra os dois
episódios num só, e sua luta ocupará um total de cento e vinte e três
versos (v. 362-484):

v. 362-367 Enéias anuncia o combate e os prêmios: ao vencedor, um


novilho adornado com ouro e fitas; ao vencido, uma espada e um
capacete.
v. 368-369 Ergue-se, provocando murmúrio geral, o forte Dares.

101
Virgil’s Augustan Epic, p. 230.
102
Idem, ibidem.
103
Euríalo, por exemplo, aparece nos jogos de uma e outra epopéia homérica, como o
próprio Cairns recorda.

– 262 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

v. 370-374 Caracterização: era o único que lutava com Páris;104 foi


quem matou o gigantesco Butes.
v. 375-377 Dares exibe os ombros largos, estende os braços e fere com
golpes as brisas: demonstração de força e autoconfiança.
v. 378-379 Não aparece desafiante.
v. 380-382 Dares, julgando-se vitorioso, segura com a mão esquerda
o chifre do touro.
v. 383-385 Dirige-se a Enéias, solicitando os prêmios.
v. 385-386 Os troianos aprovam a reivindicação.
v. 387-393 Acestes incita Entelo, outrora o mais bravo dos heróis, a
não esquecer a antiga fama.
v. 394-400 Entelo repele qualquer insinuação de ser vencido pelo
medo: é a velhice que o levou ao recuo inicial.
v. 400-403 Entelo exibe os cestos105 de Érix.
v. 404-405 Admiração geral.
v. 406-408 Estupor e recusa de Dares; Enéias examina os cestos.
v. 409-416 Entelo narra a história dos cestos: com eles, Érix combate-
ra contra Hércules; o velho os usava quando jovem.
v. 417-420 Proposta de Entelo: renuncia aos cestos de Érix e Dares,
aos troianos.
v. 421-423 Entelo se despe e vai para o meio da arena.
v. 424-425 Enéias arma os dois combatentes com cestos iguais.
v. 426-442 Descrição pormenorizada da luta que, de início, não tem
favorito.
v.443-448 Entelo desfecha um golpe, mas o adversário consegue es-
quivar-se; desequilibrando-se, Entelo cai por terra.

104
Aqui, Virgílio, excepcionalmente (contrastemos com IV. v. 215-216), segue outra tra-
dição que não a de um Páris efeminado e covarde.
105
Como diz De Gubernatis, para tornar mais terrível o duelo, os Antigos usavam de
recursos como o cesto metálico, “espécie de cilindro vazio que cobria os dedos e o dorso
da mão” (“Il Quinto Libro dell’ Eneide” In: Studi Virgiliani. Roma, Sapientia, 1932, p.
109).

– 263 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

v. 448-449 Símile: compara-se a queda de Entelo a um pinheiro que


tomba no Erimanto ou no Ida.
v. 450-452 Clamor emocionado dos teucros; Acestes levanta do chão
o amigo.
v. 453-460 Entelo reage, enraivecido e envergonhado, cobrindo o
adversário de golpes.
v. 461-464 Enéias intervém e põe fim ao combate.
v. 465-467 Enéias censura a insânia que se apoderou de Dares (conti-
nuar a luta quando os deuses mudaram de lado) e o incita a ceder ao
poder divino. Fim da luta.
v. 468-472 Os companheiros de Dares o arrastam em péssimo estado
para os navios, recebem seu prêmio e deixam a palma e o touro para o
vencedor.
v. 473-476 Entelo, dirigindo-se a Enéias e aos troianos, auto-exalta-se.
v. 477-481 Golpeia o animal com a destra, abatendo-o.
v. 482-484 Dedica a vítima, substituta de Dares, a Érix e depõe os
cestos.

Na primeira luta da Ilíada, temos:

v. 653 Aquiles propõe o embate.


v. 654-656 Exibe os prêmios: uma mula de seis anos para o vencedor,
uma copa dúplice (de/paj a)mfiku/pellon) para o vencido.
v. 657-663 Discurso de Aquiles aos aqueus, incitando os melhores no
pugilato a combater e anunciando os prêmios.
v. 664-675 Apresenta-se Epeu e lança um desafio: rasgará a pele e
quebrará os ossos de seu competidor (xro/a te r (h/cw su/n t )o)ste/ )
a) ra/ cw).
v. 676 Efeito da arenga de Epeu: silêncio geral.
v. 677-684 Euríalo, filho de Mecisteu, aceita o desafio e é encorajado
e equipado por Diomedes.

– 264 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

v. 685-691 A luta. Epeu golpeia o adversário, que sucumbe.


v. 692-694 Símile: Euríalo comparado a um peixe.
v. 694-699 Epeu, magnânimo, ergue o adversário, carregado, então,
em péssimo estado, pelos amigos, que recolhem seu prêmio.

Na segunda luta:

v. 700-705 Aquiles propõe os prêmios para um segundo embate: ao


vencedor, uma trípode que se pode colocar sobre o fogo; para o der-
rotado, uma mulher perita em muitos trabalhos.
v. 706-707 Aquiles se dirige aos argivos, incitando-os.
v. 708-709 Ájax Telamônio se levanta; também o faz Odisseu (notar
a contraposição das qualidades respectivas – me/gaj/polu/mhtij)
v. 710-711 Iniciam o combate.
v. 712-713 Símile: os lutadores comparados a vigas de uma casa.
v. 714-720 Apesar do empenho pela vitória, nem Odisseu consegue
derrubar Ájax nem este àquele.
v. 721 Enfadam-se os aqueus.
v. 722-724 Ájax se dirige a Odisseu: empenhem-se na luta e a Zeus de
decidi-la.
v. 725-727 Odisseu, usando de sua astúcia, faz o adversário tombar
por terra.
v. 728 Estupor da multidão.
v. 729-730 Odisseu não consegue levantar Ájax.
v. 731-732 Caem os dois por terra e se sujam de poeira.
v. 733-734 Quando se aprestam para continuar a luta, intervém
Aquiles.
v. 735-737 Arenga de Aquiles; com o empate, haverá prêmios iguais
para os dois competidores.
v. 738-739 Os contendores, concordando, se limpam da poeira e ves-
tem as túnicas.

– 265 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Vê-se que Virgílio segue a estrutura geral da primeira luta ho-


mérica: proposta do organizador dos jogos, que exibe os prêmios; apre-
sentação do primeiro combatente, que demonstra arrogância; luta feroz
e em princípio indecisa; decisão; estado lamentável do perdedor. Mas
seus acréscimos e desvios merecem atenção.
Virgílio nitidamente “moraliza” todo o episódio. Imaginemo-
nos na condição do leitor “atento”, impregnado de Homero; como na
Ilíada, o desafiador é arrogante e demasiado confiante na força física,
o que parece refletir-se no modo mesmo da apresentação para o com-
bate (En.,V, v. 375-377).
A altivez de Dares suscita o desejo de combater em Entelo; este
reprova a soberba do moço, que, por sua juventude, “exulta, confian-
te”; Entelo o chama improbus iste (v. 397), com a força depreciativa
desse demonstrativo. Há uma apreciação negativa do excesso de con-
fiança que o poeta parece julgar comum nos jovens;106 Virgílio, por
exemplo, oporá a juventude estouvada de Turno à maior maturidade
de Enéias, através da sábia enunciação de adjetivos, em sutil con-
traste:

Interea Turnum in siluis saeuissimus implet


nuntius et iuueni ingentem fert Acca tumultum (...)
Ille furens (et saeua Iouis sic numina poscunt)
deserit obsessos collis, nemora aspera linquit.
Vix e conspectu exierat campumque tenebat,
cum pater Aeneas... (XI, v. 896-904)

“Enquanto isso, a Turno, na floresta, absorve terrível


notícia: ao jovem reporta Aca o ingente tumulto (...)
Ele, furioso (e assim o exige a terrível vontade de Jove),
abandona as colinas sitiadas, deixa os bosques híspidos.
Mal saíra de vista, ocupando a planície,
quando o pai Enéias...”

106
Dares exulta, confiado em sua juventude (iuuenta, v. 430); por outro lado, o narrador
caracteriza Entelo como senior (v. 409).

– 266 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Nesse final do livro XI, o foco narrativo se centra nos dois ri-
vais, em clima de tensão, diante da possibilidade do confronto. No
momento em que se narram as ações diversas dos dois, a juventude de
Turno é relembrada (iuueni) – o moço age de forma impensada, im-
pulsiva, pondo a perder, ao abandonar o cerco, a estratégia que pode-
ria decidir a luta em seu favor; ao focalizar Enéias, o poeta lhe aplica
o epíteto de pater, pleno de conotações positivas na cultura romana,
de modo a contrapor à impulsividade do antagonista, a experiência e
ponderado equilíbrio do troiano. Veremos, no capítulo seguinte, que
Virgílio insiste nessa contraposição entre um Turno irrefletido, na
autoconfiança excessiva de sua juventude, e um Enéias mais maduro
e sensato. É mais um exemplo do modo sutil como Virgílio analisa
uma personagem ou apõe seu comentário: de forma indireta, deixan-
do que os epítetos, tais como enunciados, sugiram mais que explicitem
um sentido.
Na Ilíada, a arrogância do desafiante é premiada, pois o comba-
te termina com sua vitória. Epeu, porém, num gesto que revela gran-
deza de alma (mega/ qumoj Epeio\
) j, v. 694),107 ergue do solo o ven-
cido – detalhe que Virgílio deixará de lado. Daqui, um efeito
intertextual notável. O leitor que tenha em mente a cena homérica,
esperará que o desafiante também vença em Virgílio – é essa a expec-
tativa criada pela semelhança estrutural; na Eneida, porém, a soberba
de Dares, o desafiante, é punida pelo homem mais experiente. Entelo,
o velho aparentemente em desvantagem, vence após combater não
pelo prêmio (nec dona moror, v. 400)108, mas para castigar a arrogân-

107
Certamente, um dos exemplos de uso do epíteto adequado ao contexto: note-se que
Virgílio desenvolverá essa técnica; Homero, portanto, não apresenta apenas fórmulas
métricas mecanicamente aplicadas na caracterização das suas personagens, como os
estudiosos têm comprovado em tempos recentes. Pucci, por exemplo, menciona a de-
monstração de Norman Austin sobre o uso motivado do composto polumh/xanoj
(“de muitos expedientes”) na Odisséia, sempre empregado em relação a algum com-
portamento astuto, no contexto, do herói protagonista (Op. cit., p. 46, nota 8).
108
Id est non expecto, non moueor donis, como glosa Sérvio (edição THILO, v. II,
p. 625).

– 267 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

cia do rapaz. Com a quebra da expectativa criada pela alusão contí-


nua ao modelo, Virgílio realça o desvio do episódio homérico e sua
preferência por uma outra moralidade: o orgulho insensato, como no
caso de Turno, receberá punição.109 O efeito de surpresa é realçado
pela aparente desvantagem de Entelo por causa de sua idade; apesar
disso, a força bruta é vencida pela experiência.
Observou-se amiúde que os jogos do livro V da Eneida servem
como paradigma de conduta para as lutas posteriores no Lácio; de-
vem triunfar, pois, a sensatez, a autocontenção, a pietas (como ilustra
a corrida de barcos) sobre a força bruta jactanciosa. O combate de
Dares e Entelo bem o mostra. Quando o vencedor golpeia o vencido
impiedosamente, a ponto de deixá-lo sob perigo de vida, Enéias, sin-
tomaticamente chamado pater (v. 461), põe fim ao combate, impe-
dindo que a ira de Entelo vá mais longe:

Tum pater Aeneas procedere longius iras


et saeuire animis Entellum haud passus acerbis,
sed finem imposuit pugnae (V, v. 461-463)

“Então o pai Enéias ir mais longe a ira


e com acerbo ânimo enfurecer-se Entelo não permitiu,
mas pôs fim à luta...”

Na segunda luta dos jogos fúnebres em honra de Pátroclo,


Aquiles põe fim ao combate de Odisseu e Ájax não porque um deles
ameace aniquilar o outro, mas em razão do empate técnico que pare-
ce haver entre os contendores: a astúcia de um se equilibra com a
força e agilidade do outro. Virgílio faz intervir Enéias como o pruden-
te e sábio condutor de seu povo, que lhes apresenta um padrão ético
reiterado na epopéia: contenção e justa medida. Parcere subiectis,
prerrogativa de quem, podendo fazer uso da força, contém-na em jus-
tos limites, um lema da ideologia romana expresso por Anquises, pode
ser apontado como o conteúdo moral da cena.

109
Debellare superbos, dissera Anquises, é uma das artes do Romano (VI, v. 853).

– 268 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Nas Argonáuticas, similarmente, a luta entre Âmico e Pólux,


tema tratado também no idílio XXII de Teócrito, salienta a derrota
do arrogante e “bárbaro” rei dos bébricos110 pela habilidade técnica,
estratégica, de Pólux. Virgílio dá a palma da vitória não a tal habilida-
de, mas à experiência da idade, que repele a soberba e o excesso de
autoconfiança.
Relevemos, contudo, que a arte alusiva de Virgílio, compósita e
complexa, vai por nós analisada, aqui, num de seus aspectos; o episó-
dio da luta apresenta, por exemplo, várias alusões textuais ao poema
de Apolônio de Rodes. Apontaremos uma das mais significativas; o
poeta informa o leitor de que Dares vencera Butes, que se vangloria-
va de pertencer à família de Âmico:111

qui se
Bebrycia ueniens Amyci de gente ferebat (v. 372-373)

“que se dizia
proveniente da raça bébrica de Âmico...”

Com essa simples menção, o poeta evoca o combate mais de


uma vez narrado na tradição alexandrina, especialmente em Apolônio
de Rodes, e o leitor é levado a refletir sobre aquele contexto paradig-
mático. Dares carrega algo da mítica crueldade e muito da soberba do
rei dos bébricos; sua punição lembra a derrota do ancestral por Pólux,
vitória do civilizado sobre o bárbaro, do semideus (que, como Hércules,
livra o mundo de seres monstruosos) sobre o tirano impiedoso.
Mas o jogo sutilíssimo de alusões em Virgílio revela-nos ainda
uma surpresa digna de atenção, alusão erudita que passa despercebi-
da ao leitor comum. Foi revelada por Møland: o nome do desafiante,

110
“O mais arrogante dos homens” (u(peroplhe/staton a)ndrw=n – canto II, v. 4).
111
Descrição baseada na Ilíada, XXIII, v. 679-680: Euríalo, o menos afortunado dos
postulantes, é caracterizado como tendo vindo a Tebas para o funeral de Édipo (ver
Conington, v. II, p. 370). Note-se ueniens, que lembra, malgrado a diferença de senti-
do no contexto, o hålqe do texto homérico.

– 269 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Dares, por si só atesta a intencionalidade da alusão ao episódio homé-


rico, pois que se liga ao grego de/rw, que significa “tiro a pele ou o
couro”;112 ora, como vimos, a ameaça de Epeu ao possível rival é, jus-
tamente, além de quebrar os ossos, tirar-lhe a pele (Il. XXIII, v. 673).
Um caso curioso de intratextualidade fecha o episódio. O der-
rotado Dares é levado pelos companheiros aos navios em péssimo es-
tado:

Ast illum fidi aequales genua aegra trahentem


iactantemque utroque caput crassumque cruorem
ore eiectantem mixtosque in sanguine dentes
ducunt ad nauis (V, v. 468-471)

“Mas a ele, que arrastava os joelhos feridos,


com a cabeça pendendo de um lado para o outro e lançando
da boca sangue espesso e dentes misturados com sangue,
os fiéis companheiros conduzem aos navios...”

Por via intratextual, Virgílio cria sentido: como se os papéis se


invertessem, o soberbo Dares é que tem os joelhos aegra, como os de
um velho tal qual Entelo, de quem diz o poeta, descrevendo um passo
da luta:

sed tarda trementi


genua labant, uastos quatit aeger anhelitus artus. (v. 431-432)

“Mas, tremendo, os tardos


joelhos lhe vacilavam, respiração difícil agitava seus vastos membros.”

A tradução trai a retomada textual: mesmo sustantivo e adjeti-


vo juntos num mesmo verso – após a luta, Dares, o jovem soberbo,

112
Apud Enciclopedia Virgiliana, vol. I, p. 1000, verbete Darete. É interessante observar,
com Cairns, que Entelo, ao contrário de Dares, não reaparecerá na epopéia: similar-
mente, Epeu, o vencedor da primeira luta da Ilíada, modelo privilegiado do texto de
Virgílio, só aparece nos jogos (Op. cit., p. 225). Difícil não pensar que o poeta latino
reproduz, aqui, um traço da narrativa homérica.

– 270 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

tem a fraqueza dos velhos, que parecia, inicialmente, garantir sua vi-
tória sobre o rival. Mas há também um efeito de ironia a mais; ao se
apresentar para o combate, o exibicionismo de Dares é assim descrito:

Talis prima Dares caput altum in proelia tollit,


ostenditque umeros latos alternaque iactat
bracchia protendens et uerberat ictibus auras. (v. 375-377)

“Assim Dares ergue alto a cabeça preparando-se para a luta


e exibe as largas espáduas e os braços alternadamente move,
estendendo-os, e fere com golpes as brisas.”

Note-se que o poeta emprega o substantivo caput e o verbo


iactare próximos um do outro como na cena do transporte de Dares
(iactantem...caput); Virgílio joga com a ambigüidade do verbo (seu
sentido mais abstrato, “jactar-se” dá lugar ao mais concreto, literal-
mente, “arremessar várias vezes”), e sabemos que maestria não raro o
poeta demonstra na exploração de duplos sentidos e nuanças. Por-
tanto, gestos de Dares antes do combate (erguer alto a cabeça, esten-
der os braços) , ao final, como que se transformam no seu estado
miserável: a cabeça não mais se ergue alta, mas pende; não mais “se
jacta”, sua cabeça é que “se joga” para um lado e para o outro (utroque),
em movimento pendular, como alternadamente (alterna) estendia seus
braços... Tal leitura constrastiva é possibilitada por via intratextual;
Virgílio não explicita a saborosa contraposição. Se nossa leitura é cor-
reta, este seria mais um exemplo de ironia intratextual, acessível ape-
nas ao leitor atento; a pouca distância entre as duas cenas contrasta-
das deveria favorecer a associação.
Finalizemos estas considerações apontando um aspecto do epi-
sódio dos jogos: em sua celebração, Enéias, como que incorporando
em si mesmo a figura de Anquises, assume o papel de pater, de líder
respeitado de sua comunidade, após a perigosa estadia em Cartago e
antes do encontro com seu genitor – também nesse sentido o livro V
é um livro de passagem. Os apelativos e epítetos de Enéias ao longo
desse canto são mais que eloqüentes:

– 271 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

certus iter (v. 2); magnanime Aenea (v. 17); pius Aeneas (v. 26);
Aeneas...pater (v. 129-130); satus Anchisa (v. 244); pius Aeneas (v.
286); pater Aeneas (v. 348); pater optimus (v. 358); nate dea (v. 383,
474, 709); magnanimus Anchisiades (v. 407); pio Aeneae (v. 418);
satus Anchisa (v. 424); pater Aeneas (v. 461); maximus...Aeneas (v.
530-531); pater Aeneas (v. 545); pius Aeneas (v. 685); pater Aeneas
(v. 700); bonus Aeneas (v. 770); patris Aeneae (v. 827); pater (v.
867).

Note-se o contexto do último emprego: Enéias, percebendo que


a nau está sem piloto, toma o leme e conduz a embarcação; aqui, o
poeta o denomina pater – passagem de grande significação, sim-
bólica: finalmente, o herói, livre das tentações da paixão e do ócio em
Cartago, incorpora as funções de guia que, como se sabe, o pai Anquises
exercera até sua morte em Drépano, narrada no final do livro III.113 É
curioso contrastar: no livro IV, só uma vez o substantivo pater é
aplicado a Enéias e, mesmo assim, por Júpiter, em contexto que se
refere a paternidade concreta; admoestando o herói através de Mer-
cúrio, a menção acaba soando como crítica e reprovação (ele, que é
pai!):

Ascanioque pater Romanas inuidet arces (IV, v. 234)

“Pai, por inveja recusa a Ascânio as cidadelas romanas?”

Durante todo o livro IV, a Enéias não se aplica com reiteração


outro epíteto que não o de dux troianus (v. 124, 165; a acrescentar-se
o similar Dardanium ducem, de 224, que, no contexto, parece tão
irônico quanto o ofensivo uxorius com que Mercúrio repreende o he-

113
Comandante atento, que não dorme nas horas de risco (aproximavam-se os perigosos
escolhos das Sereias – v. 864-866) e vela sobre seus comandados como um pai sobre os
filhos. Como diz Quinn, “eis um verdadeiro comandante” (Op. cit., p. 159), digno de
ouvir as revelações de Anquises e de carregar o fardo dos destinos de Roma sobre seus
ombros.

– 272 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

rói)114. O nome de Enéias aparece várias vezes sem nenhum epíteto (v.
74, 117, 150, 191, 214, 260, 279, 304, 554), como se o herói tivesse
perdido algo de sua natureza épica nesse canto, e o poeta, portanto, lhe
negasse a expressão formular da tradição homérica...Só quando o troiano
deixa Dido para tornar à frota e cumprir as ordens dos deuses é que seu
epíteto heróico por excelência – pius – é enunciado (v. 393) – daí a força
dessa ocorrência, que se contrapõe fortemente aos vários passos em que o
nome do troiano aparece sem qualificação, como se o narrador manifes-
tasse quão grande vulto ganha, no episódio dos amores com Dido, a faceta
individual da personagem.Sob esse aspecto, o contraste com o livro se-
guinte não poderia ser maior. Aqui, Enéias se tornou o pai venerando
que é o arrimo não só de sua família como também da comunidade que
dirige. Portanto, resta-nos criticar com veemência a tradução de pater,
no livro V, por outra palavra que não “pai”. Perret, por exemplo, em sua
edição da Eneida, traduz por divin (v. 348), grand (v. 130, 461, 545 e
700), vénérable (v. 827) e héros (v. 867); o sintagma pater optimus (v.
358) se transforma em “le bon Énée”! – em nenhum dos passos, portan-
to, mantém-se esse elemento tão importante da significação: na celebra-
ção de jogos em honra de seu pai Anquises, Enéias mostra-se investido da
aura de respeito e do sentido de responsabilidade que cerca a imagem
paterna, como se, finalmente, assumisse uma faceta de sua missão antes
representada sobretudo pelo velho pai. Além disso, a tradução de Perret
é criticável por não reproduzir o estilo formular sistematicamente, ado-
tando quatro termos diferentes para traduzir o mesmo substantivo inten-
samente aplicado a Enéias. Louvável, por outro lado, a tradução de Luca
Canali, sempre por “pai” (padre); quanto ao grande Odorico Mendes, em
cinco dessas ocorrências “falha”! – não traduz, simplesmente o pater de
348, 545, 700, 827, 867!, perdendo, pois, esse importante elemento da
significação.

114
Na perífrase Dardaniusque nepos Veneris do verso 163, não nos parece haver nada de
heróico, em face do contexto – a ida à gruta onde o troiano e Dido se amarão; Virgílio
como que realça o lado “galante” de Enéias, mencionando sua descendência da deusa
do amor...

– 273 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Eis uma ilustração eloqüente da importância da análise literária


(que detectou efeito de sentido provocado pela reiteração lexical em
si e pelo contraste, no emprego do epíteto, com o livro anterior) para
a feitura e a crítica de traduções de uma obra como a de Virgílio.

7. O SILÊNCIO DE DIDO

Uma das passagens mais célebres de toda a Eneida é o encontro


de Enéias com a sombra de Dido no livro VI, baseada no episódio do
silêncio de Ájax diante de Ulisses na Nékuia, que o autor do tratado
Peri\ !!("youj
/ o considera “grandioso e mais sublime do que qualquer
discurso”115; similarmente, poder-se-ia dizer que Virgílio, com o silên-
cio de Dido, criou uma das cenas mais plenas de sentido (e de patéti-
co) de toda a epopéia. Para Eliot, é “uma das mais pungentes” bem
como “uma das mais civilizadas” da poesia universal.116
Uma análise que leve em conta fatores intratextuais não explí-
citos lança luz sobre as intenções do poeta; essa interpretação vem
sendo realizada, mas só hodiernamente se podem tirar todas as conse-
qüências de uma leitura mais radicalmente intertextual. Já Cartault
sintetizara bem o foco do episódio:

“O que é certo é que ele se propôs...dar uma contrapartida à famosa


cena de ruptura invertendo os papéis, isto é, atribuindo desta vez a
Enéias a ternura, a Dido a insensibilidade inflexível.”117

De fato, vários são os indícios dessa “inversão”; no canto VI,


inutil e tardiamente Enéias chora e demonstra amor:

115
IX, 2: h( tou= Ai antoj
/) e)n Nekui/# siwph\ me/ga kai\ panto\j u (yhlo/teron
lo/gou.
116
ELLIOT, T.S. “Que é um Clássico”. In: A Essência da Poesia. Estudos & Ensaios. Rio
de Janeiro, Artenova, 1972, p. 93.
117
Op. cit., vol. I, p. 456-457.

– 274 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

demisit lacrimas dulcique adfatus amore est (VI, v. 455)

“derramou lágrimas e falou com doce amor.”

No último apelo de Dido a um Enéias endurecido pelos ditames


dos fados, a rainha, na sua primeira alocução, recorrera inutilmente a
lágrimas:

Per ego has lacrimas (IV, v. 314)

“Eu, por estas lágrimas...”

Na segunda e derradeira, diante do herói, a rainha constata


amargamente, em interrogativa retórica, que ele não se deixou do-
brar por seu pranto:

nam fletu ingemuit nostro? (IV, v. 369)

“Pois gemeu com o nosso pranto?”

A partida de Enéias é vista como fuga; note-se o tom emocio-


nado da pergunta, com a partícula – ne acoplada ao pronome pessoal,
construção própria da linguagem afetiva, como se sabe:

“mene fugis?” (IV, v. 314)

E, de fato, o troiano partirá furtivamente de Cartago, seguindo


a recomendação do próprio Mercúrio:

Non fugis hinc praeceps, dum praecipitare potestas? (IV, v. 565)

“Não foges daqui às pressas, enquanto é possível apressar-se?”

Dirigindo-se aos companheiros, Enéias relata a visão do deus e


seu incitamento a “apressar a fuga” (festinare fugam, v. 575). Dido
lhe pagará na mesma moeda, fugindo... O herói, atônito, pergunta:

– 275 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Quem fugis? (VI, v. 466)

“De quem foges?”

O próprio narrador confirma que se trata de fuga (refugit) – e


precipitada, como a de Enéias, uma sutil conotação do verbo se
corripere,118 que gostaríamos de manter na tradução:

Tandem corripuit sese atque inimica refugit (VI, v. 472)

“Finalmente se retirou às pressas e, hostil, se refugiou...”

Nos Infernos, portanto, Dido pratica a ação que reprovou no


troiano como sinal de crueldade.
Mais importante, a última atitude de Enéias diante de Dido, no
livro IV, é...silêncio, seguido de uma inflexível imersão na ação con-
creta que transcende seus afetos mais íntimos:

At pius Aeneas, quamquam lenire dolentem


solando cupit et dictis auertere curas,
multa gemens magnoque labefactus amore
iussa tamen diuom exsequitur classemque reuisit. (IV, v. 393-396)

“Mas o pio Enéias, embora desejasse abrandar-lhe a dor,


consolando-a e, com palavras, afastar suas inquietações,
gemendo muito e abalado por grande amor,
cumpre, no entanto, as ordens dos deuses e torna à frota”.

Dido lhe recrimina a dureza, a falta de lágrimas e de compaixão:

num lacrimas uictus dedit aut miseratus amantem est? (IV, v. 370)

“Por acaso, vencido, verteu lágrimas ou se compadeceu da amante?”

118
“Corripere se dit de tout départ vif et prompt” (PLESSIS-LEJAY. Op. cit., p. 357, nota
6); “retirou-se prestes”, explica o Pe. Arlindo Ribeiro da Cunha (Vergilii. Aeneis. Braga,
Livraria Cruz, 1948, p. 379).

– 276 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Nos Infernos, Enéias finalmente chora e demonstra compaixão,


mas agora Dido é que permanecerá insensível. Note-se a retomada
intratextual:

quamquam lenire dolentem


solando cupit et dictis auertere curis (IV, v. 393-394)

Talibus Aeneas ardentem et torua tuentem


lenibat dictis animum lacrimasque ciebat. (VI, v. 467-468)

“Enéias tentava abrandar aquele ser inflamado e de olhar torvo


com tais palavras e provocar-lhe lágrimas.”

Note-se a nossa tradução para (lacrimas) ciebat, imperfeito de


conatu, como lenibat: Enéias é quem agora tenta comover Dido, que
responde com a mesma inflexibilidade do troiano por ocasião da última
entrevista. Para Sérvio, faz-se referência ao pranto de Enéias119 (de fato,
uma constante no episódio), interpretação seguida por Conington,
Forbiger, Cartault, Norden e Paratore, dentre outros. Ora, isso é
desconsiderar o imperfeito que está a indicar esforço, tentativa: Enéias
procura comover Dido, impeli-la às lágrimas; é claro que de fato a rai-
nha não chora, permanecendo inflexível (ao menos na aparência), por-
que é desse modo que dá a contrapartida a Enéias. A primeira leitura
perde este dado intratextual significativo – nos Infernos, cabe ao troiano
tentar sensibilizar a amante, e inutilmente, pois Dido permanecerá in-
flexível. No último encontro em terra, o herói se mantivera irredutível;
no último encontro permitido pelos fados, esse papel cabe à rainha.
Interpretam a expressão no sentido que adotamos Plessis-
Lejay;120 em face do paralelo entre os dois episódios, cerradamente
seguido por Virgílio, preferimos, contra a maioria dos maiores estu-
119
...sibi, non Didoni...: mas a seqüência da nota mostra que o próprio Sérvio tinha dúvi-
das a respeito da interpretação adequada (Op. cit,vol. II, p. 71).
120
Op. cit., p. 528-529, nota 10. Recentemente, Horsfall expressou sua opinião: “dois
imperfeitos conativos” (A Companion to the Study of Virgil, p. 132-133, nota 56).
Além dos argumentos intratextuais a favor dessa análise, apontemos: no início da cena,

– 277 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

diosos da Eneida, perfilar-nos ao lado da minoria que entende dessa


forma a locução que dá azo a discussões.121 Seja como for, deste a
Antigüidade, levanta-se a questão textual.
Como se observa geralmente, diante das palavras pungentes de
Enéias, Dido permanece dura como rocha, uma insensibilidade que
ela atribui ao próprio Enéias no livro IV:

Nec tibi diua parens generis nec Dardanus auctor,


perfide, sed duris genuit te cautibus horrens
Caucasus Hyrcanaeque admorunt ubera tigres (IV, v. 365-367)

Nos Infernos, Dido é que se iguala a uma rocha na sua inflexibi-


lidade: olhos desviados da pessoa que lhe dirige a palavra, aparentan-
do ausência de comoção:

Illa solo fixos oculos auersa tenebat


nec magis incepto uoltum sermone mouetur
quam si dura silex aut stet Marpesia cautes. (v. 469-470)

Enéias já fora representado em lágrimas (demisit lacrimas, v. 455), então que sentido
teria uma tentativa de arrancar de si mesmo lágrimas já presentes? (Plessis-Lejay); “se
Enéias já está em lágrimas e Dido enfaticamente não, então é muito difícil não aplicar
ciebat aos esforços de Enéias para comover Dido” (Horsfall, p. 132-133); illa e a seqüên-
cia expressam a inutilidade dos esforços de Enéias, pois Dido permanece insensível (Plessis-
Lejay); a recorrência a outros empregos, na epopéia, do verbo cieo, freqüentemente
invocada pelos defensores da atribuição dessas lágrimas a Enéias, não é decisiva (Horsfall).
121
As polêmicas...lágrimas do verso IV. 449, lacrimae uoluontur inanes, não pertencem a
Enéias, a nosso ver, por muitas razões, dentre as quais as intratextuais: Virgílio reserva
a manifestação da emoção do herói perante Dido para os Infernos, quando é tarde
demais, pois a sombra de Dido permanecerá ali, sangrando sempre da ferida, até a
purificação de sua alma, ao passo que o herói agora pertence a um outro mundo, o da
ação concreta em terra para o cumprimento dos destinos. Sobre as “inanes lágrimas”,
há extensíssima bibliografia; apontamos um estudo recente, que arrola vários argu-
mentos para a atribuição desse pranto a outra pessoa que não Enéias: HUDSON-
WILLIAMS. “Lacrimae Illae Inanes” In: MCAUSLAN, Ian-WALCOT, Peter (Ed.).
Virgil. Oxford, Oxford University Press, 1990, p. 149. Radicalmente contra essa inter-
pretação e asperamente contra o artigo citado, temos HORSFALL, N. A Companion
to the Study of Virgil, p. 125, n. 20 (“As lacrimae...são dele e somente dele”).

– 278 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“Ela, desviando-se, mantinha os olhos fixos no chão,


com o rosto não mais imóvel, diante daquela tentativa de diálogo,
do que se fosse dura rocha ou escolho do Marpeso.”

Por outro lado, na entrevista final do livro IV, Enéias permane-


ceu surdo a súplicas e lamentos; Virgílio de certa forma justificava
essa inflexibilidade atribuindo-lhe origem divina:

Sed nullis ille mouetur


fletibus, aut uoces ullas tractabilis audit;
fata obstant placidasque uiri deus obstruit auris. (IV, v. 438-440)

“Mas por nenhumas lágrimas ele se deixa mover


nem palavra alguma ouve, acessível;
os fados obstam, e um deus obstrui os ouvidos imperturbáveis do
herói”.

Virgílio nos parece apresentar uma visão de mundo bastante


melancólica: os destinos colocam seu herói numa situação que lhe
exige o sacrifício de sua própria afetividade; quando lhe será possível
dar vazão a esta, não encontrará receptividade, colhendo, assim, o
fruto amargo de uma renúncia comandada pelo próprio pai dos deu-
ses.
No livro VI, portanto, Enéias adota comportamento oposto ao
do último colóquio em Cartago; compadece-se da amante, o que, nas
palavras de Dido, não fazia anteriormente:

et miseratur euntem. (VI, v. 476)

“E se compadece da que se vai.”

Comparemos: num...miseratus amantem est? (IV, v. 370). Tar-


de demais, Enéias expressa diante de Dido aquela compaixão que a
rainha não encontrara em suas atitudes em Cartago.
No livro VI, o sentimento de culpa toma conta de Enéias; nas
palavras de Elliot:

– 279 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“O que mais importa é que Enéias não se perdoa, e isso, significativa-


mente a despeito do fato de estar perfeitamente ciente de que tudo que
fizera tinha sido de acordo com o destino, ou em conseqüência das
maquinações dos deuses...”122

Ora, um dos temas recorrentes do livro IV é o do sentimento


de culpa de Dido, que a leva ao suicídio, expresso com insistência;
sem nenhuma auto-indulgência, a rainha decreta:

Quin morere ut merita es (IV, v. 547)

“Antes morre, como mereceste.”123

Na descrição mesma dos gestos e atitudes de Enéias e Dido no


último encontro, percebemos a intenção de contraste com o compor-
tamento de ambos no livro IV; aqui, Enéias mantinha os olhos fixos
diante da explosão da rainha:

Dixerat. Ille Iouis monitis immota tenebat


lumina et obnixus curam sub corde premebat. (IV, v. 331-332)

“Dissera. Ele, advertido por Júpiter, mantinha imóveis


os olhos e, com esforço, a angústia no fundo do coração reprimia”.

Ora, nos Infernos, Dido é que, aparentando imperturbabilida-


de, manterá fixo o olhar em outra direção:

Illa solo fixos oculos auersa tenebat (v. 469)

A busca do efeito intratextual é patente: ille/illa; tenebat/tenebat.


E o leitor é levado a acolher outras sugestões: no livro IV, Enéias repri-
me a dor no peito e simula impassibilidade; no VI, Dido, que o poeta
mostra ainda sangrando da ferida, também simula indiferença, sofreando
no coração seus afetos mais íntimos. Note-se auersa; no livro IV, essa é
122
Op. cit., p. 93.
123
O poeta expressará, entretanto, no fim do canto, que a rainha não merecia tal morte
(merita nec morte peribat, “perecia de uma morte não merecida”, v. 696).

– 280 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

a atitude de Dido (v. 362). Portanto, se Enéias se mostra diverso do que


foi no episódio do livro IV,124 a rainha continua a mesma amante apai-
xonada, como que escravizada ao amor que a arruinou125; mas o poeta,
habilmente e por via intratextual, não explícita, apresenta as duas per-
sonagens numa situação de oposição inconciliável, em que o silêncio e
a fuga de um, Enéias, sua impassibilidade forçada e penosa, são agora
retomados pelo outro, Dido, selando a intransponibilidade do abismo
entre dois mundos antagônicos. Trata-se de um “pagar na mesma moe-
da” radical e patético, pois nenhuma alegria parece advir para Dido
dessa vingança última que acentua a impossibilidade de entendimento.
Vimos vários índices de que a situação retratada no livro IV se
inverte no livro VI, ainda que Dido continue a mesma, apesar das
aparências. Por outro lado, a hostilidade de Dido (inimica, VI, v. 472)
evoca a imprecação da rainha antes de sua morte: entre o povo
cartaginês e os descendentes de Enéias o ódio deverá ser eterno:

Tum uos, o Tyrii, stirpem et genus omne futurum


exercete odiis...
....Nullus amor populis nec foedera sunto. (IV, v. 622-624)

124
Quando já é tarde demais: Lyne estuda esse motivo, por ele denominado “‘too late’
phenomenon”, em outros episódios que envolvem Enéias (cf. Further Voices, p. 167 e ss.).
125
A ferida ainda recente (recens a uolnere, VI, v. 450), a mesma atitude hostil que
acompanhou suas recriminações a Enéias no livro IV. a fuga que recorda o símile da
corça, o comportamento mesmo, “vingativo”, da rainha, sua caracterização como
ardentem (VI, v. 467), que, marca aparente de ódio, recorda as imagens de fogo asso-
ciadas a sua paixão, mostra que ela continua amando ainda sob a aparente hostilidade:
amor e ódio são as faces do mesmo sentimento, eis um conhecido topos da literatura
latina. Notemos o emprego da palavra cura, plena de conotações amorosas nos elegíacos
e na própria epopéia; nos Infernos, o marido de Dido respondet curis (literalmente,
“corresponde a suas inquietações amorosas”, VI, v. 474), expressão difícil de interpre-
tar, mas que se esclarece se tivermos em conta as relações intratextuais que estamos
apontando. No episódio da última entrevista entre Dido e Enéias, fortemente evocado
nesse encontro último, como vemos, o troiano “com esforço, a angústia no fundo do
coração reprimia” (et obnixus curam sub corde premebat, IV. v. 332); agora, é a rainha
que sufoca a paixão não finda no peito...; o amor de Siqueu a consola. Mas a cura de
Dido ainda permanece, nessas regiões infernais em que os sofrimentos de amor nem
mesmo com a morte são abandonados: curae non ipsa in morte relinquont (VI, v. 444).

– 281 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Vós, então, ó Tírios, a essa estirpe e a toda a raça futura


persegui com ódios...
...Nenhuma amizade nem pactos haja entre os povos.”

A cena do último encontro nos Infernos ressalta o cumprimen-


to da imprecação de Dido; como nenhum amor (note-se a ambigüi-
dade da palavra amor,126 que traduzimos por “amizade”) é possível
entre Dido e Enéias, nenhum entendimento será jamais possível en-
tre cartagineses e enéadas...Virgílio, provavelmente seguindo o pre-
cedente de Névio,127 dá motivação mítico-lendária à feroz rivalidade
entre esses povos; o notável é que o faça de forma tão pouco artificial,
conferindo ao episódio uma carga afetiva e um sentido humano ma-
gistral. Enéias a dar vazão aos sentimentos que reprimira vai de en-
contro a uma Dido que se comporta agora como ele o fizera: a história
dessa relação é mesmo a de um irreconciliável desentendimento tra-
mado pelo destino. No livro IV, a rainha profetiza que de seus ossos
nascerá um vingador (“Aníbal”, pensaria imediatamente o leitor ro-
mano) para a afronta mortal recebida do troiano:

qui faces Dardanios ferroque sequare colonos (v. 626)

“que, com tochas e espada, persiga os colonos dardânios”.

Face ferroque: chama e ferida, portanto; Dido anuncia um vin-


gador que ameaçará com os elementos mesmos de sua morte e da
paixão devastadora; assim, em sua imprecação, procura tornar de mau
agouro para os descendentes dos troianos as circunstâncias do suicí-
dio. Desse modo, o livro mantém a cerrada coerência de imagens que
se vem apontando não apenas no livro IV mas no conjunto da epo-
péia. Ao que nos consta, os estudiosos não têm percebido esse aspec-

126
Virgílio elabora a etiologia das futuras guerras púnicas de forma brilhante, fazendo uso
da ambigüidade: sobre o amor impossível entre Roma e Cartago se entrevê a sombra da
relação de Dido e Enéias, amor tolhido pelo curso inexorável do fatum.
127
Ver Enciclopedia Virgiliana, v. II, p. 52, verbete Didone.

– 282 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

to da profética fala de Dido; Lyne, que analisa os versos, apresenta


outra leitura, escapando-lhe, a nosso ver, o essencial.128
Por outro lado, nossa análise desse aspecto do episódio de Dido
nos faz rejeitar com veemência a tese de Steven Farron de que “não
pretende ser senão uma história de amor que desperta compaixão e
não faz nenhum comentário a respeito de Enéias ou Roma...” 129
Virgílio, pois, retoma a célebre cena da Nékuia e, por via
intratextual, confere-lhe uma carga de significações que o original
não tinha. Uma releitura do livro XI da Odisséia certamente eviden-
cia que o poeta latino retirou vários elementos de Homero, além do
mais eloqüente silêncio, junto com o de Dido, da literatura universal,
mas a reelaboração operada por ele – inversão de papéis e o pungente
patético da incomunicabilidade, sem contar a dimensão histórica:
prefiguram-se as hostilidades inconciliáveis entre dois povos – dão
outra dimensão ao episódio.
Que o silêncio de Dido evoque o de Ájax, traz como óbvio efei-
to de leitura intertextual o fato de que Enéias surge como novo Ulisses,
semelhante e diverso. Mas é interessante apontar os elementos textu-
ais recuperados por Virgílio. Como Dido não vai ao encontro de Enéias,
ficando à parte, dele desviando-se (auersa nos parece ter esse senti-
do130), a sombra do guerreiro grego destaca-se do grupo:

oi h)/ d )Ai antoj


)/ yuxh\ Telamwnia/dao
no/sfin a) festh/kei (Od. XI, v. 543-544)

128
The Words and the Poet, p. 27-28.
129
FARRON, Steven. Vergil’s Aeneid. A Poem of Grief & Love. Leiden, E.J. Brill, 1993,
p. 70.
130
Geralmente interpretado como “hostil”, o adjetivo, para a maioria dos estudiosos indi-
caria o olhar oblíquo de Dido; mas a carga semântica originária deve estar presente,
seja como for. Perret interpreta auersa com toda sua carga verbal: “Elle, s’étant
détournée...” , no que é seguido por Heuzé: “Elle s’était détouneée” (Op. cit., p. 567);
trata-se do uso de particípio ao invés de verbo conjugado e coordenado a outro, bem
conhecido dos latinistas (ver, por exemplo: TRAINA, Alfonso- BERTOTTI, Tullio.
Sintassi Normativa della Lingua Latina. Bologna, Cappelli, 1992, p. 321, nota 1). Pre-
ferimos, como se vê, a última interpretação.

– 283 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Só a alma de Ájax Telamoníade


mantinha-se à parte...”

Enéias se dirige a Dido com palavras ditadas por doce (dulci)


amor, como fora amável Odisseu:

to\n me\n e)gw\n e)pe/essi proshu/dwn meilixi/oisin (v. 552)

“A quem me dirigi com palavras melífluas...”

De forma mais explícita do que em Virgílio, o próprio Odisseu


faz referência ao ressentimento que, apesar da morte, ainda toma conta
daquela alma:

“Aiåan, pai= Telamw=noj a)mu/monoj, ou)k a)/r e)) /mellej


ou )de\ qanw\ n lh/sesqai e)moi\ xo/lou ei)/neka teuxe/wn
ou )lome/nwn;” (v. 553-555)

“ ‘Ájax, filho do excelente Telamão, não te esquecerás


nem morto do rancor contra mim por causa das armas
funestas?’”

Enéias tenta se justificar perante Dido apontando a força dos


fados (iussa deum, VI, v. 461) que o impeliram a deixá-la; similar-
mente, Odisseu responsabiliza Zeus pelo que ocorrera:
“ou)de/ tij a)/ lloj
aitioj,
/) a)lla\ Zeu\j” (v. 558-559)

“Ninguém mais
é culpado senão Zeus”.

Em Virgílio, porém, como vimos, apesar de ter agido em cum-


primento de ordens divinas, contra a vontade (inuitus, VI, v. 460),
Enéias se sente culpado (Funeris heu tibi causa fui?, v. 458); na Odis-
séia, há um vislumbre de sentimento de culpa (assim deve ter inter-
pretado Virgílio), quando Ulisses expressa o desejo de não ter venci-
do a disputa com Ájax ao preço dessa morte:

– 284 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

w(j dh\ mh\ o)f


/ elon nika=n toi%= d e / l%! (v. 548)
) p) ) a)eq

“Pudesse eu não ter vencido a um tal preço!”

Enéias evidentemente não manifesta nenhuma espécie de arre-


pendimento, afinal é um zeloso cumpridor da vontade divina; e é por
isso, sem dúvida, que no livro IV, quando Virgílio narra a atitude
impassível de Enéias (não mais dirige a palavra a Dido, embora qui-
sesse consolá-la, e vai rever os navios para a partida), o troiano é
chamado, significativamente, pius (v. 393). Seu sentimento de dever
o leva a sufocar sentimentos e aspirações individualistas, a superar
sua subjetividade para se tornar o veículo mais adequado ao Fatum.
Por fim, o silêncio de Ájax é reproduzido no silêncio de Dido,
mas o texto homérico deixa aberta a possibilidade de uma comunica-
ção que só não houve porque Odisseu, segundo ele mesmo conta, em
sua ânsia de se dirigir a outras almas, não o quis:

e)/nqa x ) o(/mwj prose/fh kexolwme/noj, h)/ ken e)gw\ to/n·


a)lla\ moi h)/qele qumo\j e)ni\ sth/qessi fi/loisi
tw=n a)/llwn yuxa\j i)de/ein katateqneiw/twn. (v. 565-567)

“Então, ainda que irado, poderia ter-me dirigido a palavra e também eu


a ele,
mas desejava-me o coração em meu peito
ver as almas dos outros mortos.”

Esses versos de certa forma mitigam a hostilidade de Ájax: ape-


sar de tudo, poderia ter havido comunicação ao menos; assim, o si-
lêncio pleno de ressentimento e manifesto desprezo se relativiza; ora,
Virgílio elide essa espécie de acréscimo que nos parece subtrair algo
da maestria do texto grego, e torna a hostilidade de Dido total, como
será a dos cartagineses contra os descendentes de Enéias. Deixando
de lado a sugestão da imagem da corça ferida, por nós analisada em
outro capítulo, a maior intensidade do patético (Enéias, por exemplo,
chora e lamenta a perda da última oportunidade de diálogo), o pro-

– 285 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

cesso da inversão, soberbamente conduzido pelo poeta, o que mais


nos chama a atenção na reelaboração virgiliana é a maior radicalidade
conferida ao silêncio de Dido, que o Pseudo-Longino poderia ter cita-
do como exemplo igual ou superior de sublime.
E que nos seja permitida uma observação que diz mais respeito
à literatura comparada que à intertextualidade no sentido em que a
estamos entendendo aqui; no confronto com a narrativa em primeira
pessoa de Homero, a narrativa em terceira de Virgílio é notadamente
mais subjetiva e afetiva, em virtude do estilo subjetivo que é marca
virgiliana. Vejam-se sobretudo estes versos, em que o narrador supos-
tamente objetivo da épica incorpora o ponto de vista subjetivo de
Enéias:
Nec minus Aeneas casu percussus iniquo
prosequitur lacrimis longe et miseratur euntem. (VI, v. 475-476)

“Não deixa Enéias, abalado pela sorte iníqua,


de segui-la, de longe, com lágrimas e de se compadecer da que se vai.”

Chamar “iníquo” aquele casus é, evidentemente, acolher na


narração em terceira pessoa a perspectiva da personagem, como faz
tantas vezes Virgílio.131

131
Sobre o tema da subjetividade na epopéia de Virgílio (englobando, também, a intro-
missão explícita da subjetividade do narrador), são essenciais os estudos de HEINZE
(Op. cit., p. 363 e ss.); OTIS, no capítulo “The Subjective Style” de seu estudo sobre a
Eneida (Op. cit., p. 41-96); ANTONIO LA PENNA (“Virgilio e la Crisi del Mondo
Antico” In: VIRGILIO. Tutte le Opere. Firenze, Sansoni, 1989, p. XI-XCVI);
BONFANTI (Op. cit.: todo um livro dedicado à complexa e fascinante questão do
ponto de vista na epopéia virgiliana); e CONTE (“Saggio di Interpretazione dell’
‘Eneide’” In: Virgilio. Il Genere e i suoi Confini, p. 55-96). Acima de ocasionais diver-
gências na nomenclatura (Empfindung/Subiektivität; empaty/sympaty; commento
lirico...) e na concepção mesma do fenômeno, todos os ensaios mencionados apresen-
tam análises brilhantes desse aspecto da narrativa virgiliana.

– 286 –
IV – EFEITOS INTERTEXTUAIS NA
“ILÍADA” DE VIRGÍLIO
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

1. “ALIUS ACHILLES”

“Alius Achilles”, citação da Eneida, é, como se sabe, o título


de um estudo de Alfonso Traina1, que discute o sentido da expressão
da profecia da Sibila sobre as guerras que Enéias deverá enfrentar no
Lácio:

Bella, horrida bella,


et Thybrim multo spumantem sanguine cerno.
Non Simois tibi nec Xanthus nec Dorica castra
defuerint; alius Latio iam partus Achilles,
natus et ipse dea (VI, v. 86-90)

“Guerras, terríveis guerras,


e o Tibre espumando com muito sangue estou vendo.
Nem o Simoente nem o Xanto nem acampamentos dóricos
hão de faltar-te; já nasceu um outro Aquiles para o Lácio,
filho, ele também, de uma deusa...”

A Sibila anuncia ao herói troiano uma espécie de renascimento


da guerra em que seu povo fora vencido pelos gregos: haverá até mes-
mo um novo Aquiles, o arquiinimigo dos troianos. Insistindo na idéia
de uma suposta repetição da história, temos a indicação da causa dos
conflitos:

Causa mali tanti coniunx iterum hospita Teucris


externique iterum thalami. (VI, v. 93-94)

“A causa de tão grande mal para os teucros será de novo uma esposa
estrangeira
e, de novo, tálamos externos.”

1
“Ambiguità Virgiliana: Monstrum Infelix (Aen. 2, 245) e Alius Achilles (Aen. 6, 89)”
In: Poeti Latini (e Neolatini), p. 141.

– 289 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

É quase unanimidade entre os estudiosos que alius Achilles se


refere, na linguagem obscura da profetisa, a Turno.2 Entretanto, há,
para nós, ainda aqui, aquela ambigüidade que, a par da obscuridade,
é, para os Antigos, própria dos oráculos e vaticínios; a profecia mesma
é caracterizada pelo narrador assim:

Talibus ex adyto dictis Cumaea Sibylla


horrendas canit ambages antroque remugit,
obscuris uera inuoluens (VI, v. 98-100)

“Com tais palavras, do interior do santuário a Sibila de Cumas


prediz terríveis enigmas e remuge na caverna,
envolvendo o verdadeiro no obscuro.”

A obscuridade, que diz o certo em maneira sinuosa e enigmáti-


ca, era reconhecidamente uma característica dos vaticínios, como
demonstra este passo de Tácito: per ambages, ut mos oraculis (“de
modo enigmático, como é próprio dos oráculos”, Annales II, 54).
Para Traina, que desenvolve uma observação de Wagner,3 a
verdadeira ambigüidade das palavras da Sibila está no uso de alius, ao
invés de alter, geralmente explicado pelos comentadores como um
caso nada excepcional de confusão entre os dois pronomes, docu-
mentada em outros autores clássicos. O estudioso italiano, porém,
aprofunda a análise, detectando a “trágica ironia” da associação: a
Sibila se referiria, sim, a Turno, mas o antagonista de Enéias seria um
Aquiles “diverso”, “outro”, porque perdedor, pois que a história, como
sempre, não se repetirá...4
A observação parece mais que justa: Turno, de fato, cairá no
erro de se julgar o Aquiles que destruiria os troianos êxules, mas ao

2
Citemos Sérvio (Turnum significat), Cartault, Paratore, Conington, Forbiger e o próprio
Traina, que, apesar da acuidade de seu ensaio, afirma arriscadamente: “a referência a
Turno é indubitável (fuor di dubio)” (p. 146). Recentemente, Lyne: “É claro...que, para
a Sibila, Turno vai desempenhar o papel de um novo Aquiles” (Further Voices, p. 108).
3
TRAINA, p. 148.
4
Idem, p. 151.

– 290 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

final da epopéia veremos Enéias na posição do herói grego a vingar a


morte de um companheiro de armas no jovem soberbo. Entretanto,
cremos que a ambigüidade vai além e que, até certo ponto da trama,
Virgílio joga com essa incerteza; Enéias e Turno terão traços de Aquiles
e Heitor compartilhados, evocando um ou outro de acordo com os
vários contextos da narrativa, sem que possamos, portanto, cair no
esquematismo de críticos que, especialmente no passado, propunham
uma identificação sumária do tipo: Turno é Aquiles (ou, também
comumente, Turno é Heitor). Abaixo reproduziremos o que, a nosso
ver, é um exemplo do equívoco que tal postura pode acarretar:

“A identificação de Turno com Aquiles realça a intenção, muito nítida


nesta passagem, de assimilar a guerra que os troianos vão ter de susten-
tar a uma nova guerra de Tróia; ela é muito forçada; na verdade, Tur-
no, que defende sua noiva, não desempenha o mesmo papel que Aquiles,
que vem reclamar Helena, com a qual ele não tem nenhuma relação;
ela não é muito feliz, pois que reduz Enéias ao papel de Páris...o paralelo
é, além do mais, inexato, já que Páris raptou Helena sem nenhum direi-
to, ao passo que Lavínia é atribuída a Enéias pelo destino.” 5

Devemos observar que Virgílio procura explorar a ambigüidade


intertextual de uma personagem como Turno; assim, as referências a
suas origens...gregas parecem referendar o direito do rútulo em jul-
gar-se novo Aquiles. Amata, já sob o influxo de Alecto, tenta dissua-
dir Latino de entregar Lavínia a Enéias; pensando nos oráculos, que
advertiam sobre a necessidade de casar a filha com um estrangeiro, a
rainha alega a origem de Turno:

Et Turno, si prima domus repetatur origo,


Inachus Acrisiusque patres mediaeque Mycenae. (VII, v. 371-372)

“E Turno, se remontarmos à origem primeira de sua casa,


de Ínaco e Acrísio, seus antepassados, provém e da central Micenas...”

5
CARTAULT. Op. cit vol I, nota 4 da p. 435, p. 496. Também Pöschl nos parece
equivocado: “Assim, não é Heitor o verdadeiro modelo de Turno...mas Aquiles, como
já a Sibila o proclama...” (Op. cit., p. 211).

– 291 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ínaco e Acrísio foram reis lendários de Argos; quanto a Micenas,


deve-se acatar a sugestão de Forbiger: está por Argos, uma confusão co-
mum nos poetas.6 Quanto ao adjetivo mediae, que tem dado azo a dis-
cussão,7 vale a pena fazer uma associação intertextual que a nosso ver o
esclarece; de fato, Knauer, em sua monumental relação dos passos
homéricos reelaborados por Virgílio em sua epopéia, já apontara um pre-
cedente para a expressão – a fórmula me/son Argoj, )/ da Odisséia
(I, 344b; IV, 726b, 816b; XV, 80b), que, notemos, aparece sempre na
mesma posição de fim de verso em que comparecerá em Virgílio. Inter-
pretamos, pois, o sintagma assim: “de Micenas, que se encontra no cen-
tro da Grécia...”, como o fizera Bellessort. O caráter formular da expres-
são homérica deveria certamente facilitar sua evocação ao leitor diante
do sintagma virgiliano e, de certa forma, “dirigir” a interpretação.
O mais relevante, contudo, é que Turno tem raízes gregas e
pode se apresentar ao leitor, por momentos, como o novo Aquiles
que repetirá o massacre contra os troianos.
No entanto, se não levarmos em conta a complexidade da tra-
ma intertextual da Eneida, certamente perderemos grande parte das
reais intenções de Virgílio. Turno parece Aquiles, mas o paralelo só
parcial e ocasionalmente se sustém; os inimigos de Enéias o verão por
vezes como um Páris, mas esta é a visão superficial dos que não com-
preendem, por trás da teia obscura dos fatos cotidianos, o plano divi-
no tramado pelos arcanos do destino. Assim, o poeta joga com as
expectativas intertextuais do leitor, a de uma nova guerra de Tróia,
que acontecerá, entretanto, de forma diversa, inesperada – uma guerra,

6
urbes haud raro a poetis confunduntur (Op. cit., pars III, p. 52). Será coincidência que,
num dos poucos momentos em que Virgílio precisa a procedência espacial de uma
divindade, trata-se de Juno, neste mesmo livro VII, vindo de “Argos ináquia” (Inachiis
ab Argis, v. 286)? Ínaco, aqui estreitamente ligado a Argos, faz-nos mais ainda convic-
tos da interpretação Mycenae=Argos.
7
Perret traduz: “du coeur même de Mycènes” e tenta justificar essa leitura; Bellessort,
analiticamente, diz, em interpretação à qual nos associamos: “et ils viennent du milieu
de la Grèce, de Mycènes”; Canali surpreende com um “è patria proprio Micene”;
Conington explica: “the heart of Mycenae”.

– 292 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

na verdade, de tipo bem diverso, como veremos no item seguinte deste


capítulo; ao final, perceberemos quão cegos estavam os que reduziam o
herói troiano a Páris8 e viam em Turno o Aquiles vingador.9
Amata reduz Enéias a um pirata e a Páris:

Exsulibusne datur ducenda Lauinia Teucris,


o genitor, nec te miseret gnataeque tuique?
nec matris miseret, quam primo Aquilone relinquet
perfidus alta petens abducta uirgine praedo?
At non sic Phrygius penetrat Lacedaemona pastor
Ledaeamque Helenam Troianas uexit ad urbis? (VII, v. 359-364)

“A êxules teucros se dá Lavínia em casamento,


ó genitor, e não te compadeces da filha nem de ti mesmo?
Nem da mãe te compadeces, que, ao primeiro Aquilão, abandonará,
pérfido,10 demandando o alto-mar, depois de raptar a virgem, esse
pirata?
Mas não foi assim que o pastor frígio penetrou na Lacedemônia
e a ledéia Helena arrastou para cidades troianas?”

O substantivo praedo, insultuoso, retornará na boca dos inimigos


de Enéias: Mezêncio (X, v. 774), as matres que suplicam a Minerva
(XI, v. 484); a acusação de ser novo Páris também aparece em outros
contextos: expressa por Jarbas, o pretendente preterido pela rainha de
Cartago (IV, v. 215), e reiterada por Juno (VII, v. 321).11

8
Veja-se, entretanto, nossa observação mais além: apesar de tudo, tendo integrado à nar-
rativa a visão hostil a Enéias, o leitor é levado a associar, por exemplo, Enéias a Páris; na
primeira parte da epopéia, o paralelo parece ter algo de justo – mas aqui o troiano é
retratado, segundo veremos, com fraquezas que só mais tarde superará.
9
Boas observações em LYNE. Further Voices in Vergil’s Aeneid, especialmente à p. 109 e
seguintes.
10
Eis uma acusação que Dido lança mais de uma vez sobre Enéias; a nosso ver, temos aqui
uma linha temática que Virgílio desenvolverá ao longo da segunda parte da epopéia: a
lembrança sinistra da tragédia de Dido a pairar sobre Enéias; logo voltaremos ao assunto.
11
É bastante curioso que aqui Juno fale num alter Paris gerado por Vênus, não em um
alius Paris – a deusa, em seu ódio mortal aos troianos, mostra sua cegueira trágica na
própria expressão; Enéias não será a repetição exata de um Páris!

– 293 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na exaltada imprecação de Numano Rêmulo contra os troianos


sitiados, a sensação de que a história está se repetindo é salientada:

Non pudet obsidione iterum ualloque teneri,


bis capti Phryges...” (IX, v. 598-599)

“Não vos causa vergonha estar de novo presos num cerco e numa trin-
cheira,
frígios duas vezes capturados...”

Note-se o advérbio iterum, que estava presente na profecia da


Sibila. O equívoco de Numano é relevado pelo próprio Júpiter, pois
que, atendendo à prece de Ascânio, o deus permite que o rapaz (puer)
vingue as ofensas lançando no inimigo uma lança que acerta o alvo;
além disso, o cerco ao acampamento terminará sem derrota para os
troianos e com a fuga algo vexatória de Turno, motivada, de fato,
pelo mesmo tresloucado excesso de autoconfiança que vitimou
Numano. Como este, o rútulo também dá os troianos por vencidos
uma segunda vez: gentis bis uictae (XI, v. 402) denomina os troianos,
em erro de avaliação que mostra toda a sua cegueira, no discurso rís-
pido e pleno de orgulhosa auto-ilusão com que tenta rebater as acusa-
ções de Drances.
Turno se julgará o novo Aquiles; graças à estratégia intertextu-
al, Virgílio cria efeito de ironia trágica a partir dessa pretensão do
rútulo. No livro IX, ao sitiar o acampamento, na ausência de Enéias,
que lhe permite alguns feitos bélicos significativos, o rútulo replica a
Pândaro:

Incipe, si qua animo uirtus, et consere dextram,


hic etiam inuentum Priamo narrabis Achillem. (IX, v. 741-742)

“Inicia, se tens alguma bravura no coração, e maneja a destra;


dirás a Príamo que também aqui se encontrou um Aquiles.”

A nosso ver, a maior ironia advém do fato de que, no contexto


do livro IX, o papel de Aquiles é, no conjunto, assinalado a Enéias, já

– 294 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

que sua ausência do combate evoca a célebre ausência do herói grego,


que põe em risco o exército de seus compatriotas. No momento exato
em que Turno se vangloria de ser Aquiles redivivo, é a seu oponente
que o poeta atribui, na concepção do livro, papel semelhante ao do
herói grego. Por outro lado, se a não participação do adversário no
combate permite a aristeia de Turno, seu papel estrutural na perspec-
tiva intertextual, é, na verdade, o de Heitor...12 Como se vê, a estraté-
gia textual da epopéia incorpora a associação constante com a trama
homérica, estimulando um confronto que gera sentidos sobre a estru-
tura de superfície da leitura “linear”.
Da perspectiva intertextual de um Turno que se crê novo
Aquiles, Virgílio extrai efeitos de ironia, conforme temos visto. Ao
expressar, em assembléia presidida pelo rei Latino, sua não recusa de
um duelo com Enéias, o rútulo declara:

Ibo animis contra, uel magnum praestet Achillem


factaque Volcani manibus paria induat arma
ille, licet. (XI, v. 438-440)

“Ir-lhe-ei de encontro, animoso, ainda que se apresente como o grande


Aquiles
ou armas iguais, feitas pelas mãos de Vulcano, porte ele...”

A expressão magnum praestet Achillem tem recebido duas in-


terpretações diferentes: “supere o grande Aquiles” ou, como diz
Paratore, “apresente-se como um outro Aquiles”(alterum se exhibeat
Achillem);13 ao contrário do estudioso italiano, preferimos, como
Perret, por exemplo, a segunda interpretação, que nos parece refe-
rendada pelo adjetivo paria, aplicado às armas do herói grego: Turno,
com provável sarcasmo, mostra-se disposto a enfrentar Enéias em
combate singular, ainda que este iguale Aquiles como guerreiro se-
cundado por mãos divinas. Duas observações merecem registro: o

12
Ver KNAUER. Die Aeneis und Homer, p. 275.
13
Em seu comentário à Eneida (Op. cit., vol. VI, p. 174).

– 295 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

rútulo, aqui, pela primeira vez, ironicamente ou não, vislumbra seu


oponente como a encarnação de um Aquiles que ele mesmo, Turno,
julgava ser; por outro lado, imagina Enéias revestido das armas de
Vulcano, como de fato (sem que Turno tenha disso tomado conheci-
mento na narrativa) o troiano se apresentará... Involuntariamente, o
rútulo concede ao antagonista um papel na trama narrativa a se de-
senrolar que é, realmente, de forma genérica, o de Enéias: um Aquiles
vingador da morte de Palante, ainda que um Aquiles diverso.
Outro passo curioso a esse respeito é o incêndio dos navios por
Turno; como se sabe, no canto XVI da Ilíada, Heitor consegue atear
fogo à frota grega; Homero invoca as Musas para que lhe digam como
o troiano realizou a façanha:

Espete
/) nu=n moi, Mou=sai Olu/) mpia dw/mat’ e)x
/ ousai,
o(p
/ pwj dh\ prw=ton pu=r e)m
/ pese nhusi\n Axaiw=
) n (XVI, v. 112-
113)

“Dizei-me agora, Musas que habitais as moradas olímpicas,


como o primeiro fogo foi ateado às naus dos aqueus.”14

Virgílio também invocará as Musas – mas para perguntar que


deus afastou o fogo dos navios, isto é, frustrou a tentativa de Turno!:

Quis deus, o Musae, tam saeua incendia Teucris


auertit? tantos ratibus quis depulit ignis?
Dicite: prisca fides facto, sed fama perennis. (IX, v. 77-79)

“Que deus, ó Musas, tão ferozes incêndios desviou dos Teucros?


Quem tamanhos fogos afastou das naus?
Dizei: antiga é a tradição sobre o fato, mas perene a fama”.

14
Sintético talvez em excesso, Odorico (Iliada de Homero em Verso Portuguez. Rio de
Janeiro, Henrique Alvez de Carvalho (editor), 1874, p. 202) traduz:
Musas do Olympo, recontai-me como
O fogo se ateou na Argiva armada.

– 296 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Note-se a mesma invocação a Musas, no plural; em termos de


conteúdo, o contraste que cria ironia: sucesso num caso, ação frustra-
da no outro, por intervenção divina – o destino, por quem vela o pai
dos deuses, está claramente contra Turno. Este, que se julga Aquiles,
é apresentado, aqui, como um discutível Heitor... É preciso enfatizar
que tal efeito só é possível numa leitura intertextual?
Quando chega o momento da transformação dos navios em
ninfas, um prodígio vem causar admiração em troianos e rútulos – luz
intensa, nuvem imensa, coros do Ida e, sobretudo, uma voz que diz:

Ne trepidate meas, Teucri, defendere nauis


neue armate manus; maria ante exurere Turno
quam sacras dabitur pinus. Vos ite solutae,
ite deae pelagi; genetrix iubet. (IX, v. 114-117)

“Não vos preocupeis, teucros, em defender meus navios


nem armeis as mãos; a Turno, antes incendiar os mares
que os pinhos sagrados, conceder-se-á. Vós, ide, soltas,
ide, deusas do pélago; vossa genitora ordena.”

A cegueira de Turno é tal, que, diante desse prodígio que assus-


ta os aliados do rútulo, interpreta de forma totalmente equivocada a
mensagem divina: fora o próprio Júpiter (Iuppiter ipse, v. 128) o res-
ponsável, que dessa forma negaria a ajuda costumeira aos exilados.
Assim,Turno reconhece que os troianos são secundados pelo pai dos
deuses, que lhes presta de hábito auxílio – auxilium solitum (v. 129)!,
mas lhes estaria negando, com o incêndio da frota, a possibilidade de
escapar por mar. É significativo que nesse momento Turno se compa-
re aos gregos que estavam vingando o rapto de uma esposa:

Sunt et mea contra


fata mihi, ferro sceleratam exscindere gentem,
coniuge praerepta. Nec solos tangit Atridas
iste dolor solisque licet capere arma Mycenis. (IX, v. 136-139)

“Também eu, por minha vez, tenho meus


próprios destinos: com a espada, aniquilar uma nação criminosa

– 297 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

por me terem arrebatado a esposa. Não foi só aos Atridas que coube tal
dor nem só a Micenas é lícito pegar em armas”.

O próprio narrador julga o teor das palavras de Turno ao lhe


aplicar o epíteto audaci (v. 126)15 na introdução de seu discurso. Por
outro lado, a tentativa de incendiar a madeira consagrada aparece
como verdadeiro sacrilégio: Turno não é, aqui, o Aquiles que julgava
ser, mas um Heitor que desafia as leis divinas e fracassa, ao contrário
desse herói grego, que, no contexto evocado por Virgílio, tem suces-
so.16 Sua ação bélica, a tentativa de incendiar a frota, é , por si mesma,
uma impiedade, que o próprio narrador, dirigindo a interpretação do
episódio, denomina iniuria Turni (IX, v. 108), afinal se tratava de
navios consagrados a Cibele. A voz “horrenda” que no prodígio da
transformação dos navios em ninfas a todos aterroriza, procura tran-
qüilizar os troianos, assegurando:

Maria ante exurere Turno


quam sacras dabitur pinus. (IX, v. 115-116)

Os deuses, com exceção da desatrosa Juno, não apenas não secun-


dam a façanha abortada de Turno como também a condenam como
sacrilégio; assim, esvazia-se de significado heróico o que poderia apresen-
tar-se como ato de bravura digno de Heitor. Turno, nessa cena, aparece
como um patético e equivocado, ímpio e arrogante, falso Heitor.
Um paralelo intertextual interessante para essa expectativa que
o poeta cria de um Turno que poderia ser o novo Aquiles para os
troianos, aparece no primeiro livro da parte iliádica, posição impor-
tante, já que, no livro anterior, anunciara a Sibila um alius Achilles: o
leitor é levado à identificação provisória entre o rútulo e o grego. Como
este, Turno é o mais belo dentre os seus companheiros; essa caracte-

15
Várias vezes aplicado a Turno, com relevo de sua carga negativa (ver SCHENK, Peter.
Die Gestalt des Turnus in Vergils Aeneis. Königstein, Anton Hain, 1984, p. 28-35).
16
Analisamos outros efeitos intertextuais desse episódio no segundo capítulo deste tra-
balho.

– 298 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

rística física é apresentada numa estrutura sintática homérica, de for-


ma indireta:

Filius huic iuxta Lausus, quo pulchrior alter


non fuit excepto Laurentis corpore Turni.
Lausus, equom domitor debellatorque ferarum (VII, v. 649-651)

“Ao seu lado, o filho Lauso, belo como nenhum outro


havia, com exceção do laurentino Turno.
Lauso, domador de cavalos e debelador de feras”.

Tal apresentação de Turno, que se dá no catálogo dos italianos,


evoca a de Aquiles, no catálogo dos navios da Ilíada: ambas, portan-
to, em momento estratégico, no início da narrativa no caso do poema
grego, no início da parte bélica que o toma como modelo, no caso da
Eneida. Em Homero:

Nireu\j auå Su/mhqen a)g / e trei=j nh=aj e)i s


+ aj,
Nireu\j Aglai+
) hj ui)oj
\ Xaro/poio/ t’ a)/naktoj,
Nireu\j, o(j / ka/llistoj a) nh\r u (po\ Ilion
/) hålqe
tw=n a/) llwn Danaw= n met’ a)mu/mona Phlei+wna
(Il. II, v. 671-674)

“Nireu, então, de Sime conduzia três naves perfeitas,


Nireu, filho de Aglaia e do senhor Cáropo,
Nireu, o mais belo homem que veio sob Ílion,
dentre todos os outros dânaos, depois do irretocável Pelida”.

Notemos: a repetição do nome da personagem diretamente re-


presentado (Lausus, Nireu\j; a estrutura relativa acoplada ao nome
(quo, o(/j), o paralelo filius/ ui(o\j (com a indicação do parentesco; em
Virgílio, no contexto, se menciona o pai; em Homero, os dois
genitores), alter/ a)/ llwn. O nome de Turno como o da perífrase que
designa Aquiles enfecham a estrutura, na última posição do último
verso do trecho; curiosamente, Turno recebe apelativo, Laurentis
Turni, a contrabalançar o “Pelida” do texto grego.

– 299 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

O leitor informado tenderá, pois, a ver, aqui, em Turno a reen-


carnação de Aquiles, de quem o herói tem a juventude e a beleza
inigualável entre os pares. Mencionamos que Virgílio contrapõe o
epíteto pater de Enéias ao iuuenis de Turno; ora, ao rútulo esse adje-
tivo é aplicado treze vezes,17 em insistência plena de significação. Num
momento crucial do último livro, ao descrever Turno avançando pá-
lido para o combate singular firmado pelo pacto entre troianos e lati-
nos, Virgílio releva sobremaneira a juventude do herói:

pubentesque genae et iuuenali in corpore pallor. (XII, v. 221)

“Com as faces pubescentes e palidez no corpo juvenil”.18

Há em Turno um amor insensato pela guerra, que lhe fora


instilado pela nefasta Alecto, ao contrário do que ocorre com Enéias,
sobre o qual a deusa não agiu. Um paralelo intratextual interessante

17
HEUZÉ, P. Op. cit., p. 285. O autor observa que o epíteto é aplicado uma só vez a
Enéias (em IX, v. 88), ainda assim numa referência de Cibele ao período imediatamen-
te posterior à tomada de Tróia (p. 285-286, nota 287); ora, ao chegar a Cartago já sete
anos eram passados; na parte iliádica, portanto, ao se confrontar com o jovem Turno,
o contraste entre os dois deveria ser mais que evidente, e Virgílio acentua a diferença
em detrimento do rútulo.
18
Pubentes é palavra discutida pelos estudiosos (ver Perret, no terceiro volume de sua
edição do poema, p. 248). Paratore rejeita essa lectio, dos melhores manuscritos, aco-
lhendo tabentes (ver volume VI de sua edição, p. 223); de fato, as opiniões dos maiores
especialistas estão divididas. Para nós, não há “ilogicidade”, que tornaria “insustentá-
vel”, segundo Paratore, essa lição: Turno provoca piedade entre os seus não só por seu
abatimento mas pela pouca idade que torna o combate desigual; o poeta expressa que,
para os rútulos, a luta é desigual (impar pugna, XII, v. 216), pois deverá ser travada por
forças não equivalentes (non uiribus aequis, XII, v. 218). Devemos lembrar o episódio
da luta de boxe, em que o velho Entelo castiga a arrogância do jovem Dares, e pensar
como Virgílio, sem anacronismo; ao contrário do pensamento comum de nossa época,
explorado pela publicidade, que associa juventude a força de forma invariavelmente
positiva, o poeta, em sua epopéia, ainda que visivelmente atraído pela beleza e coragem
atribuídas constantemente aos heróis jovens, confere traços negativos, como a excessi-
va impetuosidade e autoconfiança, a essa faixa etária; ser mais jovem, portanto, não
significa, automaticamente, ter mais chance de vencer um combate.

– 300 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

revela esse aspecto da personagem do rútulo. A Juno, Alecto promete


acender os ânimos com o amor ao insano Marte19 (accendamque
animos insani Martis amore, VII, v. 550). Ora, após a ação de Alecto
sobre Turno, o rútulo toma das armas como que alucinado (Arma
amens fremit, VII, v. 460):

Saeuit amor ferri et scelerata insania belli (v. 461)

“Atiça-o furioso amor à espada e a celerada insânia da guerra”.

Notemos: amor ferri /Martis amore, insania/insani. Segue esse


verso o símile em que Turno é comparado à água fervente que tam-
bém furit – a ilustrar a ação a que Alecto se referia com accendam; o
importante a ressaltar é que o poeta destaca a ação enfurecedora da
deusa sobre Turno, que passa a encarnar o amor tresloucado pela
guerra;20 Enéias não sofreu a influência nefasta da deusa e, de fato, a
não ser pelo seu papel de vingador do jovem Palante, parece guerrear
apenas por necessidade, como que a contragosto.
Um curioso paralelo intratextual salienta a condenação do fu-
ror guerreiro do rútulo; no livro XII, em símile que já comentamos,
ele é comparado a um leão púnico que “ruge com boca cruenta” (fremit

19
Ou, se julgarmos que há hipálage: “com o amor insano a Marte”; mas talvez seja prefe-
rível ver em “Marte” metonímia: “amor à insana guerra”.
20
A fúria constante de Turno tem sido observada desde a Antiguidade; Fulgêncio (séc.
VI) vê a personagem como a representação alegórica do furor e propõe a etimologia
qow=roj nou=j, id est furibundus sensus (apud COMPARETTI, Domenico. Virgilio
nel Medioevo. Firenze, La Nuova Italia, 1981, vol. I, p. 137). A verdadeira etimologia
do nome é o grego tu/rannoj, atraves do etrusco, como relembra Cairns (Virgil’s
Augustan Epic, p. 67); observamos que em X, 448 o rútulo é mencionado com tal
termo (dicta tyranni), o que poderia ser uma prova de que o poeta, conhecendo a
etimologia, a ela se referiria sutilmente; entretanto, ressalte-se que o termo, apesar de
ser empregado na Eneida negativamente, sobretudo com referência a Pigmalião, o as-
sassino do irmão de Dido (I, v. 361) e ao cruel Mezêncio (VIII, v. 483), é aplicado pelo
rei Latino a Enéias (VII, v. 266) e pelo próprio narrador a Latino (VII, v. 342), obvia-
mente sem carga pejorativa (cf. Enciclopedia Virgiliana, tomo V*, verbete tyrannus,
p. 341-342).

– 301 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

ore cruento, XII, v. 8); ora, como vários estudiosos têm apontado, o
mesmo traço é atribuído, na profecia de Júpiter a Vênus do livro I, ao
Furor impius,21 que, sob a paz iniciada por Augusto, ficará encerrado
no templo da guerra, rugindo, hórrido, com a boca cruenta (fremet
horridus ore cruento, I, v. 296).22 A fúria guerreira ímpia, uma cons-
tante em Turno, que irrompe contra os destinos e só causa infelicida-
de para indivíduos e comunidades, deve ser substituída pelo novo
padrão de comportamento de um Enéias, fundado na observância da
pietas e na busca da paz firmada em compromissos a se respeitar reli-
giosamente.
Se Turno tem a juventude, a beleza e a ira furiosa de um Aquiles,
as grandes linhas narrativas da epopéia lhe reservam o papel de um
Heitor; é de se notar que episódios importantes associam Enéias, não
Turno, a Aquiles; aos troianos cabe o papel de seus antigos vencedo-
res:

– escudo ofertado pela mãe Vênus – escudo dado a Aquiles por sua
mãe Tétis;
– ausência de Enéias do campo – ausência de Aquiles;
– tentativa de incêndio dos navios por – incêndio dos navios gregos por
Turno Heitor;
– embaixada de Niso e Euríalo – “Dolonéia”;
– morte de Palante por Turno – morte de Pátroclo por Heitor;
– súplica das mulheres latinas, – Hécuba suplica, junto com as
acompanhada de Lavínia, a anciãs troianas, a Palas, que não
Palas Atena ouve sua prece;

21
Associação observada, dentre outos, por Pöschl, para quem “Turno é, ele mesmo, a
personificação do Furor impius” (Op. cit., p. 184).
22
Também Niso, ao massacrar o inimigo durante a embaixada a Enéias, é comparado a
um leão que ruge com a boca cruenta (fremit ore cruento, IX, v. 341) – a sede de
matança, como se sabe, porá a perder a ele e a seu companheiro Euríalo. Virgílio cele-
bra-lhes o heroísmo com sentida emoção (IX, v. 446-449), mas a condenação do
morticínio inútil e fatal é patente (sensit enim nimia caede atque cupidine ferri, v. 354:
“pois sentiu que se deixava levar por um excessivo desejo de matança”, em tradução
que desfaz a hendíadis difícil de verter...)

– 302 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

– conselho dos Latinos (Drances – conselho dos troianos (Antenor X


e Turno; dois pontos de vista Páris);23
inconciliáveis
– vingança de Enéias – vingança de Aquiles.

A prece das mulheres latinas a Palas, em episódio pleno de pa-


tético, contém amarga ironia, se o leitor tem em mente o texto evoca-
do; tais são as palavras aflitas das “mães”:

“Armipotens, praeses belli, Tritonia uirgo,


frange manu telum Phrygii praedonis et ipsum
pronum sternere solo portisque effunde ab altis.” (XI, v. 483-485)

“Armipotente24, senhora da guerra, virgem Tritônia,


quebra com tua mão o dardo do pirata frígio e a ele,
prono, lança por terra e, sob as altas portas, derruba-o.”

Na denominação, aqui cheia de desprezo, do inimigo, há forte


reminiscência da cena semelhante em Homero:

po/tni ) Aqhnai/
)/ h, ru( si/ptoli, di=a qea/ wn,
aå con dh\ e)/gxoj Diomh/deoj, h)de\ kai\ au)to\n
prhne/a do\j pese/ein Skaiw=n propa/ roiqe pula/wn (Il. VI,
v. 305-307)

23
Ilíada VII, v. 345 e ss.: Antenor propõe a devolução de Helena aos Atridas, no que é
contraditado por Páris. Como é de se esperar, no conjunto do episódio associações in-
tertextuais outras, de diferente procedência, vêm se acrescentar à que apontamos. De
passagem, assinalemos que a personagem Drances é modelada especialmente a partir do
Tersites homérico, um paralelo assinalado por uma alusão curiosa, dentre outros indícios,
que vale a pena ressaltar. Se Homero caracterizara Tersites como “o mais feio” dentre os
que tinham vindo para sitiar Tróia (aisxistoj
)/ de\ a\n h\r u (po\ Ilion
)/ hå lqe) (Il. II,
v. 216), Turno, significativamente, chama Drances foedissime (XI, 392); é notável que
tanto aisxro/
) j quanto foedus, empregados na forma superlativa por um e outro poe-
ta, referem-se não só a feiúra física como também à moral.
24
Valemo-nos do precedente de Odorico Mendes...

– 303 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Soberana Atena, protetora da cidade, luminosa entre as deusas,


quebra a lança de Diomedes e a ele,
prono, dá que caia diante das portas Céias”.25

Notável aqui a semelhança de andamento sintático e a quase


tradução do original, procurando Virgílio equivalências semânticas
como frange, telum, ipsum, portis, em posição semelhante ou igual à
do original, às vezes com som semelhante: pronum, também em iní-
cio de verso. Uma proximidade tão grande com o original homérico
nos faz refletir nas motivações do poeta. Além do efeito mais óbvio de
uma aparente repetição da guerra de Tróia, em que os latinos é que
desempenham o papel dos vencidos troianos, o confronto intertextu-
al origina efeito de ironia trágica. Ao se referir insultuosamente a Enéias
como a um Páris, as mulheres latinas cometem erro crasso, revelado
pela alusão – contexto e expressão verbal mostram que, na verdade, o
troiano é equiparável não ao pouco estimado troiano mas a Diomedes,26
um grego vencedor, a quem o próprio herói reconhecera como “o
mais forte da nação dos dânaos” (I, v. 96); cegas, no momento mesmo
em que atribuem a Enéias o papel do desprezado troiano (“pirata
frígio”), guerreiro de um povo outrora vencido, não vêem que os des-
tinos as colocaram na situação das troianas sitiadas pelos gregos ...
Neste episódio, do ponto de vista intertextual, pode-se apontar uma
elipse, já que o poeta não relata a reação da deusa, ao passo que o
leitor de Homero, bem se recordando de episódio tão célebre, asso-
ciando os dois textos e contextos, poderia concluir que a deusa tam-
bém negava às latinas seu apoio. Com isso, não queremos dizer que
um sentido da trama virgiliana deve ser buscado no confronto inter-
textual, como se um elemento não expresso no texto da epopéia de-

25
Odorico, concisamente:
“Honra das deusas,
De Ilio apoio, a Diomedes quebra a lança;
O pó morda, ó Minerva, às portas Sceas...”
26
A associação entre Diomedes e Enéias, presente não apenas aqui, tem conseqüências
outras que analisaremos no último item deste capítulo.

– 304 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

vesse necessariamente ser procurado...em outro texto!; na verdade,


um efeito de leitura não necessário à compreensão da trama vem se
acrescentar à leitura linear, tecendo sutis comentários sobre a ação
representada na estrutura de superfície.
O quadro dos episódios da segunda parte da Eneida que inten-
samente recordam episódios iliádicos, esboçado mais acima, é extre-
mamente sumário; cada episódio mereceria estudo à parte, dada a
complexidade da trama alusiva da Eneida. Poderíamos acrescentar
outros indícios de uma inversão de papéis: como os gregos, os troianos
estão num acampamento em terra supostamente estrangeira, em con-
flito com uma cidade; serão vencedores; terão os deuses ao seu lado
(no caso dos gregos, antes que os ultrajes perpetrados na tomada da
cidade atraíssem sobre eles a punição divina). Virgílio, contudo, mos-
tra aspectos sutis da diversidade sob a aparente igualdade de situação,
como já tivemos a ocasião de ilustrar: a terra estrangeira é, na verda-
de, o berço dos troianos; a guerra vai de encontro ao desejo de Júpiter,
pois que se trava entre povos destinados a se fundir harmonicamente;
Enéias e Turno são Aquiles e Heitor de outra cepa. A história, como
a “estória” homérica, não se repete...
Vemos que Virgílio, em alusões intra- e intertextuais, como que
comenta a guerra no Lácio, revelando, sob as aparências enganadoras,
a natureza diversa do conflito. Numano Rêmulo insultara os troianos
aludindo à derrota diante dos gregos; cercado por Turno e seus aliados,
os enéadas repetiriam a situação um dia enfrentada diante dos gregos:

Non pudet obsidione iterum ualloque teneri,


bis capti Phryges...? (IX, v. 598-599)

No livro XII, entretanto, depois que, com a morte de Camila, o


terror se apossou dos inimigos de Enéias, o rei latino assim define a
situação de seus comandados:

Bis magna uicti pugna (XII, v. 34)

“Duas vezes vencidos na grande batalha...”

– 305 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

É difícil não tirar as conseqüências da estratégia intertextual da


epopéia: os latinos é que são retratados aqui na situação que Numano
Rêmulo e Turno27 atribuíam aos troianos: duas vezes derrotados! Sérvio
explica o advérbio bis desta forma:

semel, cum est occisus Mezentius; iterum, cum interiit Camilla.28

“Uma vez, quando tombou Mezêncio; de novo, quando morreu Camila”.

Parece-nos, entretanto, que se trata de uma explicação dema-


siado clara para um enunciado algo obscuro: é impossível prová-la,
pois Virgílio não a explicitou; acima de tudo, o estudioso elude o es-
sencial – para o leitor intertextual, há efeito de trágica ironia, já que
vemos os inimigos dos troianos assumindo o papel que estes pareciam
desempenhar na trama dos acontecimentos. O leitor vê além das per-
sonagens e da superfície narrativa, graças ao jogo alusivo, como se as
artimanhas do destino lhe fossem reveladas à medida que os signos
intertextuais são decifrados. Referenda esta nossa análise, segundo
pensamos, um outro índice intratextual. Na profecia da Sibila, já por
nós comentada, que anuncia a repetição (aparente) da guerra de Tróia,
a profetisa antevê o Tibre manchado de sangue:

et Thrybrim multo spumantem sanguine cerno. (VI, v. 87)

No livro primeiro, Enéias recorda a imagem do Simoente rolan-


do sob suas águas os corpos e as armas de tantos varões (v. 100-101);
por sua vez, a Sibila previra outro Simoente e outro Xanto (VI, v. 88).
Ora, Latino, ao enunciar a dupla derrota, cujo sentido alusivo para o
leitor atento é inescapável, declara:

27
Como vimos, em sua intervenção no conselho presidido pelo rei Latino, Turno men-
ciona com desprezo o “povo duas vezes vencido” (gentis bis uictae, XI, v. 402): trágica
ironia, pois, na fabula virgiliana os oponentes de Enéias é que são duas vezes vencidos,
segundo o próprio Latino.
28
Edição THILO, v. II, p. 580.

– 306 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

recalent nostro Thybrina fluenta


sanguine (XII, v. 35-36)

“Aquecem-se as correntes do Tibre com nosso29


sangue...”

Se o Tibre comparece como o suposto novo Simoente ou Xanto,


o que se conclui da fala do rei é que houve inversão de expectativas,
novamente: não são os troianos mas os latinos, cujo sangue se mescla
às águas do rio, que parecem, de fato, reviver o triste destino de Tróia...
Assim, alguns dos presentes que a embaixada de Ilioneu ofertou
ao rei Latino se revelam ominosos: as insígnias e o cetro de Príamo
(VII, v. 246-248); de fato, se, como nas palavras do próprio rei alusi-
vamente se sugere, os latinos parecem repetir a saga dos troianos der-
rotados, seu papel nessa trama se assemelha à do velho governante de
Tróia...
Vale a pena terminar estas considerações com um excurso bre-
ve que visa advertir para a complexidade do jogo intertextual em
Virgílio e a necessidade de levá-lo em consideração na análise filológica.
Nossas análises têm procurado mostrar como ele é intenso e sutil,
criando múltiplos sentidos e mantendo com os hipotextos relações
nada esquemáticas. Vimos a falácia das equações fáceis: Turno é
Aquiles, ou Turno é Heitor; Virgílio, na verdade, em cada contexto,
extrai efeitos de sentido de determinada associação provisória; de certo
modo, a perspectiva intertextual assim criada, multiespecular, confe-
re ao texto um grau de complexidade que se vem somar a sua estrutu-
ra de superfície, ela mesma reconhecidamente nada simples. Um exem-
plo a mais dessa mutável e constante rede intertextual que vai se
desenrolando em novas configurações a cada verso da epopéia: no
importante momento do pacto entre Enéias e Latino, que sacramenta
o duelo entre o troiano e Turno, este último é assim descrito:

29
Note-se o relevo dado ao possessivo em disjunção.

– 307 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

bigis it Turnus in albis,


bina manu lato crispans hastilia ferro (XII, v. 164-165)

“Numa alva biga vai Turno,


brandindo na mão um par de lanças de largo ferro...”

Ora, no momento do ajuste final de contas, Turno é descrito


com o mesmo gesto de...Páris, quando este avança para o pacto que
regrará e santificará o duelo com Agamenão:

au)ta\ r o( dou=re du/w kekoruqme/na xalk%=


pa/ llwn (Il. III, v. 18-19)

“duas lanças de ponta de bronze,


brandindo...”

Notemos que Virgílio representa Turno também com um par


de lanças,30 ferro vem na mesma posição que o nome grego do mate-
rial da lança e se tem em crispans particípio presente como o verbo
equivalente do texto grego: a alusão é claríssima. É interessante ob-
servar que um comentador da Eneida, Henry, repeliu a interpretação
de crispans como “brandindo”, julgando-a inapropriada a um Turno
que se engaja pacificamente num compromisso31. Ora, o confronto
intertextual confirma o sentido tradicionalmente aceito e, além dis-
so, secunda uma leitura diversa da personagem: no contexto homéri-

30
Gesto não incomum em Homero; Turno, com seu heroísmo “arcaico”, aparece em sua
faceta homérica. Note-se o distributivo bina com o sentido de “o par”, em curiosa
reprodução do dual homérico (dou=re); como hastilia não é plurale tantum e não há
sentido distributivo (“dois de cada vez”), pode-se dizer, de forma chã, que, emprego
não raro na poesia, o distributivo está pelo cardinal correspondente; para nós, entre-
tanto, o confronto intertextual parece mostrar que Virgílio usa o distributivo como um
equivalente para a expressão dual do grego (duo, vestígio formal de dual, tornara-se
demasiado opaco e comum). Sobre o emprego do distributivo pelo cardinal, leia-se
LEUMANN-HOFMANN-SZANTYR. Lateinische Grammatik. Zweiter Band: Syntax
und Stilistik. München, C.H. Beck’sche, 1972, p. 212-213.
31
Apud Conington (Op. cit., vol. II, p. 39).

– 308 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

co, o gesto de Páris é desafiador, provocando para a luta os aqueus32


(v. 19-20). O leitor atento concluirá: também Turno, nesse momen-
to de acordo pacífico entre as partes, apresenta atitude agressiva e
reveladora de sua propensão natural para o conflito. É verdade que
cerca de cinqüenta versos depois, o rútulo aparecerá abatido e pálido
(XII, v. 119-221), o que se poderia invocar como argumento contrá-
rio ao que acabamos de dizer; entretanto, um dos traços de Turno,
como têm observado os estudiosos, é a facilidade com que vai de um
extremo a outro, da euforia guerreira excessivamente autoconfiante à
vontade de se matar, quando se vê ferido em sua honra e orgulho (X,
v. 680-686).
Ainda que se não aceite essa interpretação, resta o fato de que
Turno é associado a Páris, o desprezado frígio que para ele e Amata
Enéias estava a reviver, no contexto de um pacto, como no modelo
homérico, de forma não inócua. Sobre a interpretação acima, outra
objeção possível: o verso é repetição de I, 313, onde é aplicado a Enéias
que explora pela primeira vez o território de Cartago; para Henry, o
sentido de “brandindo” é também aqui “inapropriado”; Enéias, po-
rém, está em terra desconhecida e sem saber se ali habitam “homens
ou feras”(hominesne feraene, I, v. 308): é natural, portanto, seu gesto
agressivo, já que, sem saber onde pisa, o herói prefere estar pronto
para o ataque defensivo.33 Por outro lado, a associação de Enéias com

32
Argei/
) wn prokali/zeto pa/ ntaj a) ri/stouj
a)nti /bion maxe/sasqai e)n a) in$= dhi+oth=ti. (Il. III, v. 19-20)
“A todos os melhores dentre os aqueus, desafiava
para duelar face a face em terrível combate”.
Odorico, demasiado sucinto, traz:
“...os mais valentes
Um por um desafia.”
33
PÖSCHL (Op. cit., p. 194) nota a repetição e apresenta outra leitura do gesto de
Turno e Enéias: medo; mas o autor não atenta para a associação com Páris. É interes-
sante observar como os comentadores do texto tentam as mais diversas explicações;
para Sabbadini, no verso do livro I, o verbo indica que Enéias, “caminhando, comunica
um movimento oscilatório às lanças” (Op. cit., vol. I, p. 40).

– 309 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Páris faz pensar: após tal verso, aparece Vênus, com armas de uma
virgem espartana (!), como espartana era a Helena raptada por Páris;
por outro lado, Jarbas, que pretendia à mão de Dido (como Turno à
de Lavínia!), denomina-o, com desprezo, ille Paris (IV, v. 215: tam-
bém Amata definirá Enéias como novo Páris!); Dido recebe de pre-
sente dos troianos um véu de Helena (I, v. 648-652)! Virgílio parece
colocar Enéias em situação delicada também desse ponto de vista:
sua assimilação possível, a olhos hostis, ao polêmico guerreiro troiano,
ostentador daquela falta de fibra e virilidade de que Mercúrio acusará
Enéias em Cartago (uxorius, IV, v. 266). A nosso ver, até que novas
pesquisas intertextuais focalizem esse ponto específico, cautela se faz
necessária: repugnamos extrair sentido de determinada retomada tex-
tual (intertextualmente, de outro hipotexto; intratextualmente, em
reiteração lexical típica do estilo “formular”), se não encontramos ele-
mentos comprobatórios mais fortes.34

34
Tendo em vista a perspectiva intertextual, a epopéia de Virgílio oferece campo
amplíssimo à investigação de cenas e episódios específicos; este que apontamos é ape-
nas um exemplo de inúmeros outros temas de pesquisa que nos vêm à mente quando
mergulhamos em sua teia alusiva – nosso trabalho apresenta exemplos e sugestões de
uma linha de pesquisa de vastos horizontes. Quanto à possibilidade de um Enéias-Páris
na parte odissíaca, uma associação que retornará mais explícita, na visão dos inimigos
de Enéias, na parte iliádica do poema, gostaríamos de indicar alguns elementos para
uma futura análise. Assim, no livro IV, Enéias é visto adotando um tipo de comporta-
mento altamente dúbio, do ponto de vista da ideologia romana: passa o longo inverno
com Dido no luxo (luxu), segundo a Fama (IV, v. 193), e Mercúrio o encontra reves-
tido de presentes que, ofertados pela rainha, exibem uma riqueza bem distante do ideal
de simplicidade e frugalidade que Enéias encontrará nos domínios de Evandro, esse
paradigma da sã paupertas: espada de jaspe e manto de púrpura bordado com ouro (IV,
v. 261-264). Enéias, seduzido pelo luxo real da corte e pelo amor de Dido (!) se parece
muito, antes da visita do mensageiro de Júpiter, com a visão que se tinha de Páris:
dentre outras características negativas, um homem sem fibra e demasiado inclinado ao
amor (Pitágoras, por exemplo, apontava-o como modelo de intemperança: ver
GIAMBLICO. La Vita Pitagorica.VIII, 42, Milano, BUR, 1991, p.164-165). Mais
perturbadora analogia é o fato de que o amor de Dido e Enéias – ainda que povocado
por Vênus – será a causa lendária das guerras púnicas, como o rapto de Helena por
Páris fora o estopim da guerra de Tróia! As palavras de Jarbas convidam ao confronto:
rapto potitur (“apossa-se do produto da rapina”, IV, v. 217), em clara referência ao

– 310 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Mas eludir o parelo intertextual, equívoco fácil para os filólogos,


pode mostrar-se fatal à compreensão mesma do sentido literal: pen-
sando no original homérico, o sentido a dar a crispans se torna crista-
lino, o que já é ganho de compreensão, mesmo que o paralelo Turno-
Páris, a nosso ver, indiscutível, não seja levado em conta. Para o leitor
que não faz a associação com os versos homéricos, a atitude precisa
de Turno se torna mais difícil de determinar, haja vista a disparidade
de interpretações entre os filólogos que não recorrem ao paralelo.

2. GUERRA CIVIL

Um ponto complexo da estrutura da Eneida é sua expressão do


tempo: não apenas o tempo dos fatos efetivamente narrados mas o
vaticínio das profecias e oráculos bem como do escudo sobrenatural
do herói, que prevêem acontecimentos que pertencem ao passado
longínquo ou recente do leitor implícito e, mesmo, a seu futuro.35 Por

rapto de Helena por Páris. Sérvio, sem fazer a devida leitura intertextual, equivoca-se
profundamente: stupro fruitur: nam proprie raptus est inlicitus coitus; nec enim hic
rapuerat (“frui de relações desonrosas, pois que, em sentido próprio, “raptus” é o coito
ilícito; e, na verdade, ele não a raptara”, vol.I, p. 504). Jarbas define a ação de Enéias, o
amante da mulher que recusava suas propostas de casamento, como uma repetição do
rapto de Helena. É verdade que se trata, aqui, da visão de um inimigo do troiano, mas
a incorporação de seu ponto de vista à trama narrativa incita o leitor a ver o possível
paralelo entre as duas situações; seja como for, sobre Enéias paira a sombra de Páris.
Protagonista censurado vivamente pelo poeta, em amostra de suposta condenação de
Enéias na epopéia? Não exatamente: Virgílio retrata um herói incompleto, nesse pon-
to da narrativa, que exibe fraquezas a superar e que tomará consciência de sua missão
após a entrevista com seu pai nos Infernos. No entanto, para desenvolver mais profun-
damente o paralelo que esboçamos, tornam-se necessários novos estudos, sobretudo
uma análise mais detalhada da personagem homérica na Ilíada e na literatura greco-
latina.
35
Júpiter, por exemplo, diz ter concedido a Roma “império sem fim”: imperium sine fine
dedi, I, v. 279 – uma previsão que vai além do tempo do leitor contemporâneo e que,
de resto, a história comprovou ser falsa, desdizendo o pai dos deuses e do homens... Na
revista dos heróis romanos do livro VI (v. 756-886), trata-se de tempo posterior ao da

– 311 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

outro lado, Virgílio projeta, por vezes, sobre o passado lendário, fatos da
história recente ou contemporânea, conforme tem sido demonstrado
desde a Antiguidade, com não raros exageros, como já mencionamos.
A guerra no Lácio, aparente repetição do conflito entre troianos
e gregos, é retratada pelo poeta como uma espécie de guerra civil,36
esse espectro que acabara, supunha-se, de assolar a geração de Augusto,
deixando, contudo, a lembrança de um pesadelo ainda não totalmen-
te dissipado. Por via intertextual, julgamos nós, Virgílio aponta esse
aspecto da “Ilíada” de Enéias.
A guerra fora proibida pelo próprio rei dos deuses:

Abnueram bello Italiam concurrere Teucris.


Quae contra uetitum discordia? (X, v. 8-9)

“Proibira que a Itália movesse guerra aos teucros.


Que discórdia é essa contra meu veto?”

A palavra discordia merece relevo; antes de mais nada, pode-se


dar razão a Conington: a frase talvez seja ambígua, referindo-se à dis-
córdia dos homens entre si e à dos deuses, ao contrário do que afirma
Paratore, que se inclina a aplicar a palavra só aos deuses37. Mais que

narrativa mas anterior ao do leitor da epopéia; no episódio da descrição do escudo no


livro VIII (v.626-728), narram-se, para o leitor contemporâneo, fatos da história roma-
na remota e recente.
36
Ver CAMPS, W. Introduzione all’Eneide. Milano, Mursia, 1990, p. 120 e ss. Em seu
livro recente, já por nós citado, David Quint menciona esse aspecto da segunda parte
da epopéia: “espécie de guerra civil”, mas não explora o tema (Op. cit., p. 76). Horsfall
(A Companion to the Study of Virgil, p. 155) é taxativo: “A guerra na Itália...é...
essencialmente uma guerra civil”. Boas observaçõe sobre o tema, ainda que de forma
não exaustiva, em BARCHIESI (Op. cit., p. 84-90). Pelas análises que aqui apresenta-
remos, concluímos que esse aspecto do conflito no Lácio é fundamental, muito mais
relevante que uma suposta etiologia da Guerra Social (91-87 a.C.), que dele faria “um
protótipo e justificação da hegemonia romana sobre a Itália”, como se expressa West
(WEST, David. “The Deaths of Hector and Turnus” In: MCAUSLAN & WALCOT
(Ed.). Op. cit., p. 17).

– 312 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

bellum, a luta no Lácio será um conflito entre povos destinados a se


unirem para gerar a raça romana; na verdade, latinos e troianos,
graças à descendência dos últimos de Dárdano, têm laços de sangue
em comum – portanto, a falsa repetição da campanha de Tróia se
tinge dos sombrios contornos de uma guerra civil. Júpiter admoesta
os deuses: virá ainda o tempo em que será permitido extravasar os
ódios,38 o das guerras contra Cartago – contra um inimigo externo,
portanto:

Adueniet iustum pugnae (ne arcessite) tempus,


cum fera Karthago Romanis arcibus olim
exitium magnum atque Alpis immittet apertas:
tum certare odiis, tum res rapuisse licebit.
Nunc sinite et placitum laeti componite foedus. (X, v. 11-15)

“Virá o tempo justo da luta (não o antecipeis),


quando a feroz Cartago sobre as eminências romanas
grande ruína e os Alpes abertos lançará:
então será lícito rivalizar em ódios, então tudo perturbar.
Agora, deixai disso e, alegres, firmai o pacto desejado.”

Conflagrado o Lácio em guerra contra os troianos, o próprio


narrador, em intervenção não rara em Virgílio, comentará a impieda-
de de tal conflito:

37
CONINGTON. Op. cit., v. III, p. 235 (“‘Discordia’ ...includes the quarrels of the gods
as well as of the men”); PARATORE, v.V, p.215 (“il sostantivo sembra espressamente
riferito agli dei”). Observe-se, entretanto, que, em defesa da interpretação do estudioso
italiano, é possível invocar palavras do mesmo Júpiter nesse mesmo livro: “e a vossa
discórdia não tem fim” (nec uestra capit discordia finem, v. 106) – aqui, o possessivo se
aplica indubitavelmente só aos deuses. Mas uma outra interpretação é possível, para
secundar a afirmação de Conington: ainda que no contexto preciso, o da assembléia
divina, a “discórdia” faça referência à desunião entre os deuses, esse estado de ânimo
encontra seu correlato no desentendimento fratricida que, por obra de Juno, impulsio-
na latinos e troianos a uma guerra nefasta.
38
Note-se que as guerras púnicas surgem como conflito de proporções sobrenaturais,
envolvendo decisivamente os deuses no curso dos acontecimentos.

– 313 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ilicet infandum cuncti contra omina bellum,


contra fata deum peruerso numine poscunt. (VII, v. 583-584)

“Logo todos, contra os presságios, uma guerra infanda,


contra os fados dos deuses, em afronta a sua vontade, reclamam.”

Alecto, depois de criar o incidente que oporá os latinos aos


troianos, assim enuncia a Juno o resultado de sua ação:

En perfecta tibi bello discordia tristi (VII, v. 545)

“Eis consumada para ti, com sinistra guerra, a discórdia”.

Virgílio coloca no vestíbulo dos Infernos, em meio a vários ma-


les, a Discórdia:

et Discordia demens
uipereum crinem uittis innexa cruentis. (VI, v.280-281)

“e a Discórdia demente,
com sua cabeleira de víboras entrelaçada por fitas sangrentas.”

Vemos a Discórdia representada como uma das Fúrias, tal qual


Alecto, que agirá sobre Amata lançando-lhe no coração uma serpen-
te de sua cabeleira (VII, v. 346-348). Após agir sobre a rainha e Tur-
no, ambos entram numa espécie de delírio que é a característica da
Discórdia (demens): de Amata se diz que furit (VII, v. 377); de Tur-
no, amens (VII, v. 460), que é tomado pela “celerada insânia da guer-
ra” (VII, v. 46l). É uma força que enlouquece os homens e os faz
destruírem-se a si mesmos em combates sacrílegos, imergindo-os na-
quela espécie de histeria coletiva que Alecto provocará e cuja eclosão
nem o rei Latino nem o herói troiano poderão conter.
No escudo de Enéias, comparece a segunda personificação da
funesta divindade:

et scissa gaudens uadit Discordia palla (VIII, v.702)

– 314 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“E vai, em regozijo, com a veste rasgada, a Discórdia”.

No contexto, o tema é a guerra de Otaviano contra Marco


Antônio em Ácio – a Discórdia simboliza a guerra civil que traz cisão
no corpo social outrora unido (a veste rasgada). A nosso ver, Virgílio,
aqui, não esquece um dos aspectos mais trágicos da batalha de Ácio;
ainda que a ideologia augustana tenha propagado a noção de que
aquela guerra era o conflito entre as forças civilizadoras do Ocidente,
capitaneadas por Augusto, contra o Oriente e seus deuses monstruo-
sos, liderados por Cleópatra e Antônio – e o próprio Virgílio reflete
esse tema caro a Otaviano nesta passsagem mesma da epopéia –, o
poeta, entretanto, insere uma nítida alusão ao desentendimento en-
tre cidadãos romanos que estava na origem mesma do conflito. Ainda
que no contexto, como já vimos no segundo capítulo, Augusto pare-
ça combater a Discórdia como se ela estivesse do lado de Antônio,
essa menção mostra que Virgílio não teme aludir a um aspecto dessa
luta bastante espinhoso para a propaganda imperialista.
Uma alusão a uma guerra civil realmente vivida por Roma vem
reforçar as associações que estamos relevando. No livro VII, Juno, em
fala plena de furor, revela seu propósito de aniquilar os dois povos,
troianos e latinos, lançando-os numa guerra que terá como estopim o
matrimônio de Lavínia; ressaltemos estas palavras:

Hac gener atque socer coeant mercede suorum:


sanguine Troiano et Rutulo dotabere, uirgo,
et Bellona manet te pronuba. (VII, v. 317-319)

“A este preço para os seus entrem em acordo o genro e o sogro:


sangue troiano e rútulo terás por dote, virgem,
e Belona como prónuba te espera.”

Todo romano associaria “genro” e “sogro” a Pompeu e a César,


cuja filha Júlia, selando a união política dos dois poderosos, casara-se
com o primeiro, e ao conflito entre ambos, que fizera Roma mergu-
lhar em guerra civil. A alusão através dos apelativos remonta pelo

– 315 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

menos a Catulo,39 que, num poema ferino, atacara os dois ambiciosos,


num momento em que ainda uniam forças:

Eone nomine, urbis o potissimei,


Socer generque, perdidistis omnia? (XXIX, v. 23-24)

“Foi para isso, ó mais poderosos da Vrbe,


sogro e genro, que pusestes tudo a perder?”

Na própria Eneida, há tal associação; Anquises assim apresenta


a Enéias, no livro VI, as sombras que se tornarão, um dia, César e
Pompeu:

Illae autem paribus quas fulgere cernis in armis,


concordes animae nunc et dum nocte premuntur,
heu quantum inter se bellum, si lumina uitae
attigerint, quantas acies stragemque ciebunt,
aggeribus socer Alpinis atque arce Monoeci
descendens, gener aduersis instructus Eois! (VI, v. 826-831)

“Mas aquelas almas que vês brilhar em armas iguais,


concordes40, agora, e enquanto a noite pesar sobre elas,
ai!, quão grande guerra entre si, se os lumes da vida
alcançarem, quão grandes batalhas e matanças provocarão,
o sogro dos baluartes alpinos e da rocha de Moneco
descendo, o genro guarnecido pelas forças adversas do Oriente!”

Portanto, ecoam na fala de Juno as trágicas lembranças de uma


guerra civil recente e é um conflito semelhante a esse que a deusa

39
CAMPS. Op. cit., p. 121.
40
Concordes naquele momento: o desentendimento futuro provocaria a guerra civil;
nessa concepção, a discórdia em que os Estados se arruínam surge de uma discórdia
pessoal, não de projetos políticos divergentes e, muito menos, de forças econômico-
sociais antagônicas. Sintomaticamente, os grandes homens da república selavam suas
alianças políticas com casamentos, como se a criação de laços familiares fortes fosse a
melhor garantia de um entendimento na vida pública.

– 316 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

intenta provocar no Lácio. Já mencionamos e comentamos breve-


mente o símile do livro VII, que compara o surgimento das hostilida-
des no Lácio, por obra de Alecto, ao mar revolto, e vimos que está
ligado intratextualmente ao símile do livro I que compara a tempesta-
de marítima a um conflito civil: Juno, através de sua intermediária,
provoca uma espécie de guerra civil. Mais curioso é que, quando a
rainha dos deuses se dirige a Alecto enumerando-lhe as sinistras ha-
bilidades, as ações enunciadas são as de uma guerra civil, não de uma
guerra contra um inimigo externo:

Tu potes unanimos armare in proelia fratres


atque odiis uersare domos, tu uerbera tectis
funereasque inferre faces, tibi nomina mille,
mille nocendi artes. (VII, v. 335-338)

“Tu podes armar para os combates irmãos concordes


e mergulhar em ódios os lares, tu, nas casas, feridas
e funéreas tochas introduzir; tu mil nomes,
mil maneiras de fazer o mal tens.”

Note-se unanimos fratres, com o adjetivo em relevo pela disjun-


ção, e domos, palavra cheia de ressonâncias afetivas para o Romano;
em nenhum momento, explicita-se referência a conflito externo:
Alecto é a personificação da guerra entre concidadãos que deveriam
sempre constituir uma só alma. De novo, a conclusão que se impõe: a
guerra no Lácio é muito diversa da guerra de Tróia.
Quando a trégua entre as duas partes em luta é quebrada por
intervenção de Juturna, reiniciando-se a guerra de modo cruento,
Enéias, desarmado, indaga:

Quo ruitis? quaeue ista repens discordia surgit? (XII, v. 313)

“Para onde vos precipitais? Ou que discórdia é essa que surge de


repente?”

– 317 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Como nota Quinn,41 todo leitor de Virgílio se lembraria dos


versos em que Horácio fustiga os seus contemporâneos por causa da
guerra civil:

Quo, quo scelesti, ruitis? Aut cur dexteris


aptantur enses conditi? (Epodo VII, v.1-2)

“Para onde, para onde, sacrílegos, vos precipitais? Ou por que as destras
tomam de espadas que estavam embainhadas?”

Virgílio retoma Quo ruitis e a estrutura alternativa da pergun-


ta; é verdade que o verbo ruere aparece freqüentemente na Eneida,
mas a intenção alusiva aqui nos parece clara. Certamente o epodo de
Horácio, incisivo e cáustico, deve ter chamado a atenção do leitor
fatigado por anos de guerras internas; retomado nesse momento crucial
da epopéia, como que faz desse episódio da narrativa um exemplum
do triste histórico de discórdias civis que Roma enfrentaria ao longo
dos séculos. No “diálogo” com o epodo, o poeta ecoa a amargura de
Horácio, retratando aquela insânia funesta que assolava a Roma con-
temporânea (antes da pax de Augusto) na história mítico-lendária de
suas origens. Como na fala de Júpiter, também Horácio lembrara que
esse furor não estava dirigido a Cartago (v.5-6), o inimigo externo
arquetípico: contraponto entre dois tipos de guerra que será realçado
na Eneida, em admoestação amarga da loucura que leva uma nação a
se autodestruir. Evidentemente, Virgílio oporá ao pessimismo do
Horácio de então o otimismo (não desprovido de traços mais dúbios,
porém) da Idade de Ouro restaurada por Otaviano.42

41
Idem, p. 260. A relação já fora feita por CONINGTON (Op. cit., vol. III, p.433). Mas
é reconhecidamente difícil atribuir uma associação desse tipo ao verdadeiro precursor,
afinal temos mais de dois mil anos de crítica virgiliana!
42
Na profecia de Anquises, Augusto trará de volta a Idade de Ouro: aurea condet/ saecula
qui rursus Latio regnata per arua/ Saturno quondam (VI, v. 792-794): “que ao Lacio
antigo/ ha de os Saturnios seculos dourados/ restituir...” (Odorico Mendes); no epodo
de Horácio, os Romanos parecem condenados a repetir, em expiação coletiva, uma
luta fratricida que teve início na fundação mesma da cidade (v. 17-20).

– 318 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Se a guerra de Tróia parecia se repetir (mas a profecia da Sibila


era ambígua, pois anunciava um alius, não um alter Aquiles), o poeta,
contudo, salienta que o conflito no Lácio era uma afronta aos desígni-
os divinos, ao contrário da primeira, querida pelos deuses, como Virgílio
mais de uma vez explicita43, e suscitaria, na verdade, uma espécie de
guerra civil, brutalmente desnecessária, entre povos destinados a se
fundir numa única nação cujo ideal maior seria velar pela paz (paci
imponere morem, nas palavras de Anquises).
Se a metade odissíaca da Eneida, com a “tragédia” de Dido, evo-
cava, para o leitor contemporâneo de Virgílio, as sangrentas lutas con-
tra sua temida rival Cartago, a metade iliádica recordava-lhe as guerras
civis, cuja sombra pairava não apenas sobre a história mas sobre o pas-
sado recentíssimo de Roma – duas faces dos labores romanos a que,
segundo a ideologia da epopéia, só o comando de Augusto poria fim,
subjugando decisivamente o Furor impius que suscita as guerras.44

3. CAMILA E A SOMBRA DE DIDO

É conquista da crítica recente o estabelecimento de paralelos


entre a figura de Dido e a da amazona volsca Camila, cuja aristeia e
morte patética vão narradas no livro XI da Eneida; aqui, acrescenta-
remos às observações de outros estudiosos as nossas, sobretudo as re-
lações intratextuais que justificam essa aproximação.45

43
“O próprio Pai ministra ânimo e forças vitoriosas aos Dânaos/ele próprio incita os
deuses contra as armas dardânidas” (II, v.617-618), diz Vênus a Enéias. Efeito intra-
textual: tendo sido a guerra no Lácio pessoalmente proibida pelo mesmo pai dos deu-
ses, como vimos, releva-se a diferença entre os dois conflitos – o segundo não estava
nos planos de Júpiter, é ímpio e injustificável, ao contrário do primeiro. Juno, a instigadora
da nova guerra age, portanto, contra o destino e, presa ao antigo ódio, ilude-se com a
falsa reiteração de um conflito na verdade irrepetível.
44
I, v. 294-296.
45
Veja-se, sobretudo, Lyne (Further Voices in Vergil’s Aeneid, p. 136-137). A Enciclopedia
Virgiliana, no verbete Camilla (vol. I, p. 628-631), detém-se nas fontes literárias e

– 319 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Em primeiro lugar, a concepção da personagem carrega traços


de Dido; como esta, Camila é rainha, e o poeta, como fez com Dido,
reitera essa condição (reginam, XI, v. 703 e 801; regina, XI, 845). A
história de Camila é narrada por uma deusa, Diana (XI, v. 535-594),
como a de Dido, por Vênus (I, v. 340-368); ambas tiveram de aban-
donar sua terra natal, fugindo em exílio; a amazona segue o pai em
sua fuga:

Priuerno antiqua Metabus cum excederet urbe,


infantem fugiens media inter proelia belli
sustulit exsilio comitem (XI, v. 540-542)

“Partindo Métabo da antiga cidade de Priverno,


em fuga, em meio aos combates da guerra,
levou-a, criança pequena, como sua companheira de exílio...”

Dido é aconselhada pelo espectro de Siqueu a partir:

Tum celerare fugam patriaque excedere suadet (I, v. 357)

“Então a incita a acelerar a fuga e a partir da pátria”.

Como Dido tem sua irmã de confiança, Anna, que acaba de-
sempenhando o papel de nutriz de tragédia, Camila tem Acca, e a
semelhança de nomes é tanto mais significativa porque secundada
em relações intratextuais; assim, as duas se dirigem à respectiva com-
panheira da mesma forma: Anna soror (IV, v. 9); Acca soror (XI, v.
823), paralelo curioso, afinal Acca não é representada pelo poeta como
irmã de sangue mas como companheira dileta, apenas:

Tum sic exspirans Accam ex aequalibus unam


adloquitur, fida ante alias quae sola Camillae,
quicum partiri curas (XI, v. 820-822)

lendárias da construção da personagem e se cala totalmente sobre as relações com


Dido.

– 320 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“Então, expirando, a Acca, uma das suas companheiras de mesma


idade,
dirige a palavra, a ela, que, fiel a Camila mais que nenhuma outra,
partilhava de suas inquietações...”

Note-se o intrigante paralelo com:

cum sic unanimam adloquitur male sana sororem (IV, v. 8)

Virgílio retoma sic, una-, adloquitur de contexto semelhante: a


fala de Dido a Ana.
Ambas as personagens, representadas com qualidades masculinas,
segundo o ideário romano (uma fundadora e governante de cidade; a
outra, guerreira), são traídas pelo lado feminino que as leva à morte: Dido,
pela paixão; Camila, pelo desejo de possuir as belas vestes de Cloreu. O
poeta salienta a fatal ausência de cautela em uma e outra: se Dido, no
símile da corça, já por nós analisado, aparece vagando incauta (incautam,
IV, v. 70) por toda a cidade (totaque/urbe, IV, v. 68-69), Camila vai
incauta (incauta) pelas fileiras (totumque per agmen, XI, v. 781), parale-
lo reforçado pela iteração lexical. Quando, em momentos diversos, tom-
bam, uma e outra são amparadas pelas companheiras:

Concurrunt trepidae comites dominamque ruentem


suscipiunt (XI, v. 805-806)

“Acorrem, trépidas, as companheiras e à senhora que tomba


amparam...”

A cena faz parte do quadro patético da morte de Camila; Dido,


por sua vez, recebe tratamento semelhante quando desmaia depois de
frustrante entrevista com Enéias: Suscipiunt famulae (“Amparam-na
as criadas...”, IV, v. 391). No episódio do suicídio, após as últimas
palavras da rainha de Cartago, observa o poeta:

Dixerat, atque illam media inter talia ferro


conlapsam aspiciunt comites (IV, v. 663-664)

– 321 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Assim falara, e a ela, em meio a tais palavras sobre a espada


lançando-se, avistam as companheiras...”

Notemos: comites/suscipiunt- aspiciunt comites.


Se no símile da corça, a seta haeret no corpo do animal, em ferida
mortal, o dardo que atinge Camila faz o mesmo (hasta... haesit, XI, v.
803- 804). Virgílio apresenta ambas as personagens na agonia final:

Illa manu moriens telum trahit, ossa sed inter


ferreus ad costas alto stat uolnere mucro. (XI, v. 816-817)

“Ela, com a mão, moribunda, tenta arrancar o dardo, mas entre os ossos
a ponta de ferro permanece na ferida profunda, junto às costas”.

Essa morte dilatada por um gesto inutilmente heróico acentua


a tragédia de Camila, como a dolorosa e prolongada agonia de Dido:

Illa grauis oculos conata attolere rursus


deficit; infixum stridit sub pectore uolnus. (IV, v. 688-689)

“Ela, tendo tentado erguer de novo os olhos pesados,


desfalece; a ferida infligida sibila no fundo de seu peito”.

Em ambas, gesto que se perde em face do ferimento fatal (note-


se a força dos presentes stat e stridit e a inversão dos sujeitos mucro e
uolnus, encerrando o verso com sombrio eco – a realçar a inevitabili-
dade da morte, com a representação de um ferimento que dura
inalterado anulando a eficácia das reações de uma e outra).
A morte das heroínas provoca desgosto geral; em Cartago:

Lamentis gemituque et femineo ululatu


tecta fremunt, resonat magnis plangoribus aether (IV, v. 667-678)

“De lamentos e gemido e femíneo grito


fremem os tetos, ressoa com grande pranto o éter”.

– 322 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Efeito semelhante causa a morte de Camila:

Tum uero immensus surgens ferit aurea clamor


sidera (XI, v. 832-833)

“É então que, elevando-se, imenso clamor fere os dourados


astros...”

Se Cartago parece sucumbir ao inimigo externo, e Ana declara


que, com sua morte, a irmã destruiu também o seu povo e sua cidade
(IV, v. 682-683), a desaparição da guerreira volsca desbarata as tro-
pas aliadas aos latinos. Por outro lado, enfechando a história de ambas,
dá-se intervenção divina: Íris, enviada por Juno, livra Dido da agonia;
Ópis, mandada por Diana, vinga Camila.
Apresentamos os principais pontos de contacto entre as duas
personagens, assinalando algumas alusões intratextuais que nos pare-
cem evidenciar a intenção de traçar um paralelo entre elas. Há outras
semelhanças a assinalar. Como ocorrera com Dido, o poeta manifesta
simpatia por Camila, chamando-a infelix (XI, v. 563). Ambas rejei-
tam pretendentes: Dido se recusava a aceitar os pedidos de casamen-
to dos chefes de povos vizinhos (e chegava ao suicídio, na versão pri-
mitiva da lenda, para escapar a essas pressões), permanecendo fiel à
memória de Siqueu até a paixão por Enéias; Camila cultua a virginda-
de como devota de Diana:

Multae illam frustra Tyrrhena per oppida matres


optauere nurum; sola contenta Diana
aeternum telorum et uirginitatis amorem
intemerata colit. (XI, v. 581-584)

“Muitas mães, nas cidades tirrenas, em vão


desejaram-na como nora; dedicada só a Diana,
eterno amor às armas e à virgindade,46
intocada, cultua”.

46
Curiosa caracterização: o amor de Camila é integralmente (aeternum amorem) desvi-
ado dos homens para as armas e a sua própria condição.

– 323 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

É digno de nota que Dido fora comparada a Diana, e Enéias a


vira pela primeira vez após contemplar, entre as pinturas do templo
de Juno em Cartago, a imagem de Pentesiléia, a amazona que é o
grande protótipo da figura de Camila (I, v. 490-493);47 desse modo,
associa-se a rainha de Cartago às amazonas e a Camila.
Na descrição das personagens de Dido (no episódio da caça, o
que é sintomático) e Camila, notemos esta recorrência:

crines nodantur in aurum,


aurea purpuream subnectit fibula uestem (IV, v. 138-139)

ut fibula crinem
auro internectat (VII, v. 815-816)

“...como a fíbula seus cabelos


em ouro entrelaça”.

Apossa-se de Dido uma avassaladora paixão que é constante-


mente retratada como furor; também Camila é presa de fúria, ainda
que não amorosa mas guerreira: furens (XI, v. 709 e 762).
Se Dido arde por amor a Enéias e o poeta a mostra vagando
incauta e abrasada de paixão, Camila se descuida por amor às vestes
de Cloreu que a abrasa e lhe será funesto:

caeca sequebatur totumque incauta per agmen


femineo praedae et spoliorum ardebat amore (XI, v. 781-782)

“Cega, seguia-o, e, incauta por todas as fileiras,


ardia num femíneo amor à presa e aos despojos”.

Implicações do intertexto: Camila é levada à perda por uma


falta semelhante à de Dido: amor, mas, em seu caso, um desejo que
47
Às duas é conferido o epíteto de bellatrix, em posição inicial no verso (I, v. 493; VII, v.
805). Em VII, v. 648, Camila é chamada de “amazona”, como Pentesiléia faz parte do
grupo de amazonas visto por Enéias numa das pinturas do templo de Juno (I, v. 490-
492).

– 324 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

para o poeta é tipicamente feminino, ao contrário do amor às armas


que o poeta salientara na descrição da personagem, como, na apre-
sentação de Dido, mencionara-se uma fidelidade à memória do mari-
do morto que vemos quebrada no livro IV. Ambas as personagens
soçobram traídas por seu lado mais íntimo, que sufoca letalmente o
aspecto mais heróico e glorioso de sua ação; ambas as rainhas, ceden-
do ao coração de mulher,48 causam danos para a comunidade que as
tinha como sustentáculo. Ao contrário de um herói como Enéias,
ambas falham e, degradadas por uma fraqueza irreprimível, “involuem”.
Curiosamente, tanto Dido quanto Camila, porém, em suas últimas
palavras recuperam a antiga grandeza: a rainha de Cartago pronuncia
um conciso, sóbrio e orgulhoso epitáfio que recorda suas ações mais
grandiosas (IV, v. 651-658); a rainha dos Volscos só se preocupa em
advertir Turno, morrendo após pronunciar um breve e extraordinari-
amente objetivo recado ao rútulo (XI, v. 823-827), apresentando como
última imagem de si a de chefe militar responsável, não a da frágil
mulher que se deixara levar por uma fraqueza.49
Vemos como a associação torna plurissignificativo o texto, cri-
ando relações que cabe ao leitor interpretar. Para Lyne, o paralelo
tem um objetivo: associar as duas trágicas heroínas que sucumbiram
diante do avanço dos troianos,50 essas perdas que ensombrecem a epo-
péia e a livram do triunfalismo e da ideologia fácil. Assim, na parte
iliádica da Eneida, a sombra da odissíaca Dido paira sobre a narrativa,
através da relação intratextual, e recorda, além do sofrimento exigido
pelo cumprimento dos destinos, uma atitude diante da vida que o
poeta desvaloriza, contrapondo-a ao universo heróico: a entrega à
natureza mais individualística do ser, aos afetos que a razão heróica

48
Colhemos aqui um dado da ideologia romana, de resto difundido nos documentos
literários: não vá, pois, alguma feminista mais radical incriminar-nos, anacronicamente.
Sobre o tema, veja-se o que dizemos na página seguinte.
49
“Ela morre como a guerreira que foi em vida”, sintetiza Cartault (Op. cit., vol. II,
p. 805).
50
Op. cit., p. 137.

– 325 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

considera elementos desagregadores a serem sofreados. Que aqui se


trate de mulheres pintadas inicialmente com as cores das mais altas
qualidades heróicas mas que, por fraqueza, deixam-se dominar por
seu lado mais feminino e assim se perder inapelavelmente – eis uma
visão que poderia desagradar às feministas..., embora o poeta atribua
também a Turno essa danosa entrega aos sentimentos mais particula-
res. Seja como for, a ideologia romana costumava atribuir às mulhe-
res uma perigosa inclinação para o estado de natureza, um ceder fácil
aos afetos que parecem constituir ameça às estruturas sociais; a forte
repressão dessa sociedade patriarcal sobre as mulheres parece-nos re-
fletir esse medo, que se embasa, no fundo, no medo das próprias incli-
nações naturais, às quais a ideologia procura oferecer um freio
tranqüilizador. Ao abandonar Dido contra a vontade, reprimindo seu
amor, Enéias sofre, mas sobrevive e cumpre sua função no plano divi-
no, ao passo que Dido morre: porém, o que torna a visão de Virgílio
mais complexa, menos compactamente ideológica, é que, do lado de
Enéias também não há felicidade – este recebe, igualmente, seu qui-
nhão de dor por ter de renunciar ao amor que destrói Dido, cuja som-
bra, entrevista no episódio de Camila, conforme temos visto, pairará
como negra nuvem na segunda metade da epopéia.51 Assim parece
cumprir-se a trágica profecia da rainha:

Sequar atris ignibus absens


et, cum frigida mors anima seduxerit artus,
omnibus umbra locis adero. (IV, v. 384-386)

“Seguir-te-ei, ausente, com negros fogos,


e, quando a fria morte de minha alma separar os membros,
em todos os lugares, como sombra, estarei presente”.52

Deixamos para o final deste item aquela que nos parece ser a
confirmação definitiva do cumprimento das imprecações de Dido.

51
Vários exemplos em NEWMAN (Op. cit., p. 158 e ss.), que, entretanto, apresenta
alguns paralelos no mínimo discutíveis.

– 326 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Nossas considerações abandonam o paralelo entre a rainha de Cartago


e Camila, mas, ao mostrar novamente que a sombra da morte de Dido
paira sobre as vicissitudes de Enéias e os seus, de forma terrível, traz
provas suplementares do paralelo que acabamos de traçar.
Os conflitos no Lácio explodem de um modo inesperado: Alecto
atiça os cães de Ascânio, que caçava, contra um cervo especial: a
mascote de Sílvia, filha do responsável pelos rebanhos do rei Latino;
esta a causa do conflito no plano humano:

quae prima laborum


causa fuit belloque animos accendit agrestis. (VII, v. 481-482)

“tal foi a primeira causa


das penas e acendeu para a guerra os ânimos agrestes”.

Este passo das Saturnais de Macróbio revela que o episódio pro-


vocava espanto e crítica:

“Fez de um cervo ferido por acaso a causa de um tumulto; mas, quando


viu que este motivo era fútil e demasiado pueril, agravou o ressenti-
mento dos camponeses, para que seu ímpeto fosse suficiente para levar
à guerra”.53

Tibério Donato, parecendo defender o poeta de seus detratores,


justifica a reação dos camponeses como fruto de um traço da persona-
52
As mesmas conclusões se podem tirar do paralelo entre Dido e Turno, que analisare-
mos brevemente a seguir, e entre Dido e Palante / Amata, de que a crítica hodierna se
tem ocupado não raramente. Um outro exemplo do eco da tragédia de Dido sobre a
segunda parte da epopéia pode ser visto em Lyne (Further Voices, p. 125-132), que o
analisa brilhante e convincentemente.
53
V, 17, 2: Ceruum fortuito saucium fecit causam tumultus; sed, ubi uidit hoc leue
nimisque puerile, dolorem auxit agrestium, ut impetus eorum sufficeret ad bellum.
Eustácio, a personagem de Macróbio que tece tal comentário, atribui essa dificuldade
de Virgílio em inventar uma causa verossímil para a guerra à ausência de modelos
gregos (V, 17, 1) e lamenta: “preferiria que Marão também nesta passagem tivesse
encontrado em seu modelo maior ou mesmo em qualquer outro dos gregos algo que
pudesse seguir” (maluissem Maronem et in hac parte apud auctorem suum uel apud
quemlibet Graecorum alium quod sequeretur habuisse, V, 17, 4).

– 327 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

lidade desses homens, que, rudes e ignorantes (asperos et imperitos


animos – assim o estudioso interpreta agrestis)54, por um motivo fútil,
dispõem-se a dar seu próprio sangue.55 Mas também os estudiosos
modernos se vêem às voltas com esse episódio, “antiépico” para al-
guns,56 com a sua descrição graciosa e demasiado familiar do animal
de Sílvia, espécie de maneirismo alexandrino introduzido inadequa-
damente no tecido heróico da epopéia.
Cremos que a crítica elude o essencial; Lyne,57 a nosso ver, apre-
senta uma interpretação convincente e mais profunda do episódio,
embora não tire dela todas as conseqüências. A caçada do cervo re-
mete ao símile da corça, já por nós analisado; lá, um Enéias caçador
que sem saber crava na corça Dido a seta fatal; aqui, seu filho Ascânio,
também caçador,58 atinge um cervo que é retratado com toques hu-
manizantes: de novo, observemos, a tendência de Virgílio a ligar mo-
tivos, não raramente com alguma espécie de inversão, corresponden-
do a Dido retratada como animal, um animal retratado com
características humanas. Em ambos os casos, um ato a que está pre-
sente a ação divina (Cupido e Alecto, agindo por Vênus e Juno, res-
pectivamente) de terríveis conseqüências, próximas (morte de Dido/
conflito com os camponeses latinos) e remotas (hostilidade inconcili-
ável com Cartago/ guerras civis). Vejamos alguns índices intratextuais
que ligam o episódio do cervo à tragédia de Dido e ao símile da corça,
em especial. Vimos que, no livro VI, Dido é sutilmente representada
como uma corça que “errava numa grande floresta”(errabat silua in
magna, v. 451) e que a expressão recorda “errava nas florestas” (errabat
siluis, VII, v. 491), aplicada ao cervo de Sílvia; o cervo é ferido (saucius,
VII, v. 500, a recordar a saucia Dido de IV, v. 1); nos Infernos, Dido

54
De fato, o poeta denomina os camponeses de duros agrestis (VII, v. 504).
55
Apud SETAIOLI, Aldo. “Lettura del Settimo Libro dell’Eneide” In: GIGANTE,
Marcello (Org.). Lecturae Vergilianae. Napoli, Giannini, 1983, p. 240.
56
Ver SETAIOLI. Op. cit., p. 265.
57
Further Voices, p. 193-200.
58
Venantis Iuli, v. 493.

– 328 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

se refugia (refugit, VI, v. 472) junto a Siqueu, como o cervo se refugia


(refugit, VII, v. 500) na casa que lhe é familiar (nota intra tecta, VII,
v. 500); a seta lançada por Ascânio vem mencionada com a mesma
palavra na mesma posição final que a indicada no símile de Dido
(harundo, VII, v. 499; IV, v. 73).
Ascânio, como seu pai no livro IV, é posto numa posição delica-
da: atingindo com seu dardo um cervo, repete de certa forma uma si-
tuação (ali, em metáfora da paixão – Dido ferida de amor comparada a
uma corça ferida; aqui, ação concreta – um cervo ferido que recorda,
alusivamente, Dido apaixonada: Virgílio se compraz em tais contras-
tes) de trágicas conseqüências: estopim de furor bélico, como, no livro
IV, do furor amoroso de Dido. Concluamos: a sombra de Dido misteri-
osamente se abate nesse ponto da narrativa para mergulhar os troianos
naquela guerra que ela, ao se matar, desejara para Enéias:

at bello audacis populi uexatus et armis (IV, v. 615)

“audaz povo o ataque e vexe...”59

Foi Juno, por certo, quem, servindo-se de Alecto, provocou o


conflito vedado por Júpiter, mas que o impulso inicial seja dado por
um episódio que recorda a tragédia de Dido faz-nos pensar na maldi-
ção que a rainha lançara sobre Enéias e que atingiria os Romanos
com toda a intensidade de inúmeras batalhas sangrentas, quer duran-
te as guerras púnicas, quer durante as guerras civis, das quais o confli-
to provocado pela morte do cervo de Síllvia é, segundo tentamos de-
monstrar, um modelo arquetípico, mítico-lendário.

4. TURNO E DIDO

Se a sombra de Dido é evocada intratextualmente através de


Camila, também se pode percebê-la refletida na figura de Turno, cuja
59
Tradução de Odorico Mendes.

– 329 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“tragédia” relembra a da cartaginesa.60 Como Dido na primeira parte


da epopéia, Turno é o obstáculo de cuja morte Enéias, contra a von-
tade, torna-se, em certa medida, responsável. Partindo de Cartago,
contra a vontade (inuitus, VI, v. 460), Enéias condena a rainha ao
suicídio; na cena final da epopéia, como que incorporando Palante, o
troiano imola Turno, contra seu impulso inicial de clemência,
consubstanciado na hesitação diante da súplica do inimigo.
Com Dido, o rútulo partilha várias características; assim, am-
bos se distinguem pela beleza:

pulcherrima Dido (I, v. 496)

“a belíssima Dido...”
ante alios pulcherrimus omnis
Turnus (VII, v. 55-56)

“o mais belo dentre todos os outros,


Turno...”

Se Turno é presa de um furor ímpio, que não respeita um pacto


como o firmado no livro XII entre Enéias e Latino e despreza as ad-
vertências dos presságios divinos, Dido, no livro IV, é dominada pelo
furor amoroso. No terceiro capítulo deste trabalho, apontamos passos
em que o furor de Dido é explicitado; aqui, daremos uma amostra da
similar caracterização de Turno. No célebre símile que lhe é aplicado
no livro VII, o rútulo é comparado a água fervente que “se enfurece”61
(furit, v. 464) num caldeirão sob o qual se pôs fogo; outras passagens
a mencionar: furenti, IX, v. 691; furor, IX, v. 760; furiis, XII, v. 668.62
Como se vê, trata-se de verdadeiro leitmotiv: tanto Dido quanto Tur-
no são agitados por uma fúria incontrolável que os consome e, por
fim, perde.

60
Dentre os estudiosos que vêm apontando o paralelismo, destaca-se Pöschl, de quem
retomamos várias observações.
61
Odorico traduz fielmente: “enfurece”.

– 330 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Se Turno será constantemente associado ao fogo, Dido é con-


sumida pelo fogo da paixão (IV, v. 2); Ana lhe inflama de amor des-
medido o coração (impenso animum inflammauit amore, IV, v. 54); a
chama lhe devora as entranhas (IV, v. 66); a rainha se abrasa (uritur,
IV, v. 68) e vaga, abrasada, por toda a cidade (totamque incensa per
urbem / bacchatur, IV, v. 300-301). Diante da justificativa de Enéias
para a partida de Cartago, sua resposta é inflamada (accensa profatur,
IV, v. 364); ela mesma reconhece que se deixa abrasar pelo furor (heu
furiis incensa feror!, IV, v. 376). Em palavras de mau agouro, a rainha
diz que perseguirá Enéias com negros fogos (IV, v. 384) e, diante do
porto deserto, seu ódio desesperado a faz pedir por tochas que incen-
deiem a frota dos troianos (ferte citi flammas, IV, v. 594). Finalmen-
te, como já vimos, em sua prece final de vingança, prevê um vingador
que com a tocha e a espada persiga os dárdanos (IV, v. 626). Turno e
Dido, pois, são consumidos pelo fogo da mais avassaladora paixão,
bélica ou amorosa, um elemento destrutivo com que ameaçam Enéias
e os troianos (tanto um como outro, afinal, pensam em incendiar os
navios dos dárdanos; se Dido apenas concebe essa possibilidade, o
rútulo, como sabemos, tentará concretamente executar esse desígnio
ímpio de queimar uma frota consagrada a Cibele).
Ambos são levados à ruína pela ação divina: Dido, ferida pe-
las flechas de Cupido, entrega-se à paixão destruidora; Turno, inci-
tado por Alecto, carrega no peito a paixão insana por uma guerra
ímpia e contra o fatum. A ambos uma ave de mau agouro prenuncia
a morte;63 no templo dedicado ao marido Siqueu, Dido ouve-lhe a
voz a chamá-la e, sobre o teto, o queixume lúgubre de uma coruja:

62
Comparemos: se Dido observa que se deixa arrastar pelas fúrias (furiis incensa feror,
IV, v. 376), de Turno o poeta mostra um “amor agitado pelas Fúrias” (et Furiis agitatus
amor, XII, v. 668). A edição de Perret grafa com maiúscula o substantivo furiis só nessa
segunda ocorrência – incoerentemente; as de Mynors, Paratore e Sabbadini trazem
minúscula nos dois casos.
63
Ver Pöschl, Op. cit., p. 220, em nota.

– 331 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

hinc exaudiri uoces et uerba uocantis


uisa uiri, nox cum terras obscura teneret,
solaque culminibus ferali carmine bubo
saepe queri et longas in fletum ducere uoces (IV, v. 460-463)

“Daqui, parecia-lhe ouvir vozes e as palavras do marido


a chamá-la, quando a noite obscura cobria a terra,
e, solitária, dos tetos, em lúgubre canto, a coruja
amiúde se queixar e transformar em pranto seus longos pios.”

Sob a forma de uma ave, é enviada por Júpiter uma das Dirae a
Turno, para quebrantar-lhe as forças e abreviar o duelo com Enéias:

alitis in paruae subitam collecta figuram,


quae quondam in bustis aut culminibus desertis
nocte sedens serum canit importuna per umbras (XII, v. 862-864)

“Reduzida de repente à figura da pequena ave


que, por vezes, nos túmulos ou nos tetos desertos
pousada, tarde da noite canta importuna através das sombras...”

Trata-se da mesma espécie de ave que assombrava Dido, a co-


ruja;64 notemos a mesma imagem de um canto solitário na obscurida-
de da noite (sola bubo/culminibus desertis; nox...obscura/nocte...per
umbras) e a retomada de culminibus, espécie de “sinalizador” da asso-

64
“Una civetta”, como diz Paratore (Op. cit.,vol. VI, p. 264). Sérvio, entretanto, distin-
gue: noctuam dicit, non bubo; nam ait ‘alitis in paruae’: bubo autem maior est. (Op.
cit., vol. II, p. 646). Cremos que a semelhança com a cena do livro IV não deixa dúvida
de que se trata da mesma ave. A propósito, Conington, rejeitando a distinção feita por
Sérvio, lembra que o bubo, mencionado no episódio de Dido, era considerado um
pássaro de mau agouro (“very ill-omened bird”. Op. cit.,vol. III, p. 478). Forbiger dá
razão à recusa de Sérvio em aceitar que alitis paruae possa designar o bubo, mas reco-
nhece que a descrição virgiliana se ajusta mais a essa ave: Reliqua tamen buboni
accomodatiora; tentando reconciliar a contradição, aventa a hipótese de que a ave seja
retratada como “pequena” em relação à deusa (respectu deae): Op. cit., vol. III, p. 617.
Quanto à distinção entre “coruja” e “mocho” (noctua e bubo, respectivamente),
deixamo-la de lado: em nossa tradução, preferimos traduzir bubo pelo nome corrente
da ave que em nossa cultura evoca os tons sinistros da ave retratada por Virgílio.

– 332 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ciação entre os dois episódios da epopéia. Significativamente, ambas


são aterrorizadas pelos sinais divinos que revelam os desígnios dos
destinos: fatis exterrita Dido (“Dido, aterrorizada pelos fados...”, IV,
v. 450); di me terrent et Iuppiter hostis, (“são os deuses que me ater-
rorizam e Júpiter hostil”, XII, v. 895), diz Turno a Enéias.
Já comentamos, no segundo capítulo, o paralelo entre o símile em
que Turno é comparado a um leão (XII, v. 4-9) e aquele em que Dido é
comparada a uma corça (IV, v. 68-73): ambos como animais feridos por
quem os caçava. Se a ferida da rainha é mortífera (letalis harundo, IV, v.
73), a de Turno é “séria” (graui uolnere, XII, v. 5), a ponto de também
podermos pensar aqui num golpe fatal65 – o rútulo, assim, como Dido em
sua paixão, é representado ferido de morte por seu orgulho indomável,
que o levará, diante de sua recusa em renunciar à mão de Lavínia, a
enfrentar Enéias em duelo e perecer pela sua destra.
Se a irmã Ana compartilha da tragédia de Dido, a irmã Juturna
procura inutilmente salvar Turno da morte; ambas, como se sabe, ex-
pressam o desejo impossível de morrer junto com a pessoa querida.66 As
últimas palavras de Juturna ecoam por vezes as de Ana e da própria Dido;
se suas queixas diante da tragédia final do irmão recordam as de Ana,
certas expressões evocam frases marcantes da rainha de Cartago:

aut quicquam mihi dulce meorum


te sine, frater, erit? (XII, v. 882-883)

“Ou, de meu, haverá para mim algo de doce


sem ti, irmão?”

Si bene quid de te merui, fuit aut tibi quicquam


dulce meum (IV, v. 317-318)

65
Perret, por exemplo, em nota a sua tradução da Eneida (tomo III, p. 124), reflete a
incerteza que divide a crítica neste ponto: “a ferida, talvez mortal, de Turno...” (“La
blessure, peut-être mortelle, de Turnus...”).
66
Impossível para Ana, de quem a irmã escondeu cuidadosamente a intenção de matar-
se; impossível para Juturna, a quem Júpiter dotara de imortalidade.

– 333 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“Se fiz por merecer algum bem de ti ou se algo meu


te foi doce...”

O quae satis ima dehiscat


terra mihi manisque deam demittat ad imos? (XII, v. 883-884)

“Oh! profunda o bastante


que terra se abriria para mim e, deusa, me precipitaria para os manes
profundos?”

Sed mihi uel tellus optem prius ima dehiscat


uel pater omnipotens adigat me fulmine ad umbras (IV, v. 24-25)

“Mas que a terra antes se abra, profunda, para mim,


ou lance-me o pai onipotente, com um raio, para as sombras...”

Ambos, Dido e Turno, enfrentam a morte com a consciência


orgulhosa de que cumpriram um papel honroso; assim, se as últimas
palavras de Dido enumeram com sobriedade lapidar os feitos de que
se pode vangloriar a fundadora de uma cidade, Turno, diante da pers-
pectiva do trespasse, orgulha-se de deixar a vida com uma reputação
digna de seus antepassados:67

Sancta ad uos anima atque istius inscia culpae


descendam, magnorum haud umquam indignus auorum. (XII,
v. 648-649)

“Alma íntegra e desconhecedora de tal culpa, junto a vós


descerei, não indigno jamais de grandes antepassados.”

Dido decide morrer (decreuitque mori, IV, v. 475: a expressão


evoca a decisão refletida de um soberano ou, melhor ainda, a senten-
ça definitiva de um juiz rígido) e com fria objetividade organiza os
preparativos para o suicídio, demonstrando uma determinação fér-

67
Pöschl acena para a semelhança: “As palavras assemelham-se, em seu patos e função,
ao verso de Dido: Et magna mei sub terras ibit imago” (Op. cit., p. 210).

– 334 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

rea. Turno, por sua vez, expressa em dado momento um heróico des-
prezo pelo sacrifício de sua vida, numa expressão lapidar, assombrosa-
mente vigorosa, no contexto; rejeitando a fuga covarde, diz:

Vsque adeone miserum est? (XII, v. 646)

“A tal ponto é uma infelicidade morrer?”

A Dido como a Turno o orgulho impele para a morte, mais


honrosa que a vida manchada pela infidelidade a Siqueu, num caso,
mais digna que o comportamento vil na batalha, no outro.68 Em am-
bos, o heroísmo aflora em tais momentos, mostrando que, cegos por
um furor que os domina e arruína, conservam ainda algo da antiga
grandeza; aqui, Virgílio patenteia a superação de maniqueísmo ideo-
lógico,69 armadilha fácil num poema de exaltação do império: senti-
mos o verdadeiro fascínio de uma certa grandeza de alma que o poeta
faz vislumbrar nesses Enéias ‘involuídos’ que parecem ser essas trági-
cas personagens.
Em ambos, himeneus proibidos pelos fados. Um curioso detalhe
da narrativa releva esse aspecto da história de Dido. Já se observou
que se imanta de simbolismo a menção de um dos presentes entre-

68
Observemos, entretanto, que, acentuando o patético da situação de Turno no duelo
final, Virgílio o fará correr em fuga diante de Enéias (XII, v. 733-765: fuga, fugit, fuga,
fugit, fugiens: a reiteração mostra a importância do motivo nesse episódio), como Hei-
tor diante de Aquiles (Il. XXII, v. 136 e ss), apesar de suas palavras a Juturna, na
alocução plena de orgulho e nobreza guerreira: Terga dabo et Turnum fugientem haec
terra uidebit?: “Darei as costas e esta terra verá Turno em fuga?”, XII, v. 645). Do
confronto intratextual nasce ironia trágica: o rútulo será mesmo visto pelos seus com-
panheiros nessa situação desabonadora para seus ideais, constrangedora para sua auto-
estima.
69
É preciso dizer que rejeitamos toda visão demasiado negativa de Turno? As intenções
de Virgílio ficariam mais claras se o poeta, como fez com Dido, tivesse mostrado positi-
vamente o jovem rútulo antes da ação divina que o degrada, inoculando, em seu caso,
o veneno do furor bélico; porém, momentos como o que acima comentamos matizam
suficientemente os aspectos “demoníacos” da personagem.

– 335 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

gues pelos troianos à rainha: um manto que Helena trouxera de


Micenas ao partir para Tróia.70 Ora, tal oferta se revelará de mau
agouro, considerando-se o drama por que passará a rainha enredada,
como Helena, nas artimanhas de Vênus. Um detalhe parece-nos con-
firmar esse simbolismo: o poeta conta que Helena trouxera o manto

Pergama cum peteret inconcessosque hymenaeos (I, v. 651)

“Ao demandar Pérgamo e os ilícitos himeneus”.

Ora, da mesma espécie serão os himeneus pretendidos por Dido


e Turno: fonte de infelicidade,71 causa remota ou próxima de guerra,
afronta aos desígnios celestes. Insistindo numa união terminantemente
excluída pelos arcanos dos destinos, Dido e Turno se condenam ao
fracasso.72
70
Ver o artigo simbolistica, critica, redigido por Pöschl, da Enciclopedia Virgiliana (tomo
IV, p. 862). Sérvio pode ser considerado o predecessor dessa leitura simbólica do pre-
sente: “e note-se, já, um presságio da infelicidade futura, uma vez que recebe dons
pertencentes a uma adúltera” (et uide iam omen infelicitatis futurae, cum adulterae
suscipit munera). Op. cit., vol. I, p. 187. Modificaríamos apenas a explicação: “uma vez
que recebe dons que evocam a infelicidade trágica provocada por uma paixão ilícita,
estopim da guerra de Tróia, como a paixão por Dido será a causa primeira, mítico-
lendária...das guerras contra Cartago!”
71
Para si e para seu povo, como no caso de Dido. As mulheres latinas execram a guerra
sinistra e os himeneus (note-se) de Turno: dirum exsecrantur bellum Turnique
hymenaeos (XI, v. 217).
72
Relegamos para esta nota um breve excurso sobre o motivo dos dons ofertados a Dido,
entre os quais está, como se recordou, o fatídico manto de Helena. Vênus enviará
Cupido sob as feições de Ascânio para inflamar de amor Dido; observemos: donisque
furentem/incendat reginam (“e, com dons, incendeie a rainha em furor...”, I, v. 659-
660). Em leitura retrospectiva, quem não se lembrará da advertência de Laocoonte
diante do cavalo de madeira, dom a Minerva (dona Mineruae, II, v. 189): timeo Danaos
et dona ferentis (“temo os dânaos, ainda quando trazem presentes”, II, v. 49)? O eco
verbal donis furentem/dona ferentis faz pensar, bem como o ablativo donis, que tradu-
zimos literalmente, como instrumental; note-se, também, que no mesmo livro I, em
fala a Cupido, Vênus menciona Ascânio dona ferens (v. 679), o que ainda mais reforça
o eco textual que estamos apontando. Ora, Vênus como que faz de Dido uma cidade a
ser tomada e incendiada: “penso em capturar, antes, com dolos, e a cingir de chama/ a

– 336 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Já se disse que Dido e Enéias parecem estar em poemas diferen-


tes...; em análise anterior, mostramos como, de fato, a atmosfera ele-
gíaca cerca essa relação até mesmo no último encontro entre os dois,
nos Infernos; ora, também Turno parece estar numa epopéia diferen-
te, exibindo um suposto heroísmo guerreiro, ultrapassado, na verda-
de, e condenado, fonte de dores inúteis para si e os seus. Com Palante,
comporta-se, despojando o corpo de suas armas, de maneira absoluta-
mente “normal” no contexto homérico, mas explicitamente conde-
nada pelo narrador como desmedida de que ele se arrependerá (X, v.
501-505). Se a epopéia virgiliana incorpora a tradição homérica, su-
perando-a, isto é, filtrando-a sob o crivo de novos valores, éticos e
estéticos, um herói como Turno, representante de ideiais superados,
surge como arcaico: representante de uma caracterização literária que
agora é vista sob ângulo mais negativo que positivo. Daqui, a conclu-
são óbvia: os que tratavam o poeta como fiel e desonesto imitador de
Homero demonstraram ingente incompreensão e pouca sagacidade
na análise literária: não perceberam que dialética de confrontos e pa-
ralelos se instaura do diálogo intertextual!
Em sua relação trágica com Enéias, já o dissemos, Turno e Dido
se associam: o troiano abandona a rainha contra a vontade, reprimin-
do seu amor, o que lhe provoca a morte; quanto a Turno, Enéias se
sentirá no dever de matá-lo, embora seu primeiro impulso fosse de

rainha...” (...capere ante dolis et cingere flamma/ reginam meditor, II, v. 673-674). É
difícil não ceder à incitação do subtexto: Ascânio-Cupido se acerca de Dido como de
uma nova Tróia, cavalo de madeira que lhe trará o fogo (na perspectiva de Vênus, o da
paixão amorosa; na do conjunto da obra – em antecipação trágica – também o de sua
morte na pira). Notemos os “dolos” (além do passo já citado, temos dolos, em I, v. 682
e dolo em I, v. 684) de que faz uso Vênus; no episódio da queda de Tróia, tal como
narrada por Enéias no livro II, será um motivo recorrente o de que os habitantes da
cidade só foram derrotados graças às insídias e trapaças dos gregos (e, claro, a ira divi-
na). Lyne analisa com o costumeiro brilho as imagens de cerco militar que compare-
cem sutilmente no episódo do assédio a Dido por Vênus-Cupido bem como em outros
momentos do livro IV (Further Voices, p. 18-24), sem tirar todas as conclusões da
associação.

– 337 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

clemência: no item seguinte retornaremos à questão. Nos dois casos,


uma força superior (os destinos e o respeito aos laços da fides) leva
Enéias a tomar atitudes que contrariam seus impulsos primeiros e,
seja qual for seu grau de responsabilidade, levam Dido e Turno à morte.
Por fim, apresentaremos um paralelo que não tem sido aponta-
do pelos estudiosos da epopéia; vimos que no encontro último com
Dido, no livro VI, Enéias se compadece da iniqüidade do destino de
Dido:

Nec minus Aeneas casu percussus iniquo


prosequitur lacrimis longe et miseratur euntem. (VI, v. 475-476)

Observamos que em iniquus o narrador veicula, em terceira pes-


soa, a subjetividade da personagem em foco, pois é o julgamento de
Enéias que perpassa o enunciado dessa aparentemente objetiva ter-
ceira pessoa. Os aliados de Turno, incitados por Juturna, disfarçada
no guerreiro Camerto (XII, v. 222 e ss.), volúveis, põem de lado o
anseio pela paz e se preparam para o combate, julgando sem efeito o
pacto firmado entre Enéias e Latino; a sorte de Turno os comove:

Qui sibi iam requiem pugnae rebusque salutem


sperabant, nunc arma uolunt foedusque precantur
infectum et Turni sortem miserantur iniquam. (XII, v. 241-243)

“Os que já contavam com a cessação da luta e a salvação para seus


bens,
agora desejam armas e apregoam que o pacto
não tem efeito e se comovem com a sorte iníqua de Turno”.

Ao casus iniquus de Dido, segundo Enéias, a sors iniqua de


Turno, do ponto de vista dos latinos e rútulos: nos dois casos, Virgílio
abre espaço para a visão subjetiva que demonstra comiseração pelas

– 338 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“vítimas” maiores da Eneida, Dido e Turno, unidos por associações


intratextuais que nossa leitura não pode ignorar.73

73
Se o livro IV contém a tragédia de Dido, o XII relata o destino trágico de Turno. De
fato, como no primeiro se encontram vários elementos de uma tragédia típica, a
tragicidade que o leitor comum pode sentir ao longo das páginas do segundo, deveria
incitar-nos a pesquisar mais profundamente esse aspecto da narrativa virgiliana, que,
de novo, une as duas personagens. Apontamos um exemplo de ironia trágica: em sua
tentativa de reter Turno, assustada pelo curso dos acontecimentos, a rainha Amata
suplica-lhe que ele não lute com os troianos (unum oro: desiste manum committere
Teucris: “só isto peço: desiste de combater contra os teucros”, XII, v. 60). A seqüência
merece destaque:
Qui te cumque manent isto certamine casus,
et me, Turne, manent; simul haec inuisa relinquam
lumina nec generum Aenean captiua uidebo. (XII, v. 61-63)
“Seja qual for a sorte que te aguarda nessa luta,
também a mim, Turno, aguarda; ao mesmo tempo deixarei esta odiosa
luz e não verei, cativa, Enéias como meu genro”.

Amata, pois, tenta reter Turno com a perspectiva de que, morto o herói, também
ela morrerá, incapaz de suportar sua nova condição de sogra e (deturpando as inten-
ções do troiano!) cativa do inimigo odiado; ora, veremos que haverá inversão dessa
profecia: Amata morrerá primeiro, julgando que Turno tombou na batalha (pugnae
iuuenem in certamine credit/exstinctum, XII, v. 598-599); esse acontecimento provo-
ca verdadeira peripécia dramática: ao tomar conhecimento do suicídio da rainha, Tur-
no finalmente resolverá enfrentar Enéias em duelo, o que precipitará sua morte! Na
sua súplica, Amata acaba antecipando que as duas mortes se seguirão, mas não o golpe
irônico do destino, que faz com que sua morte não só preceda como também precipite
a de Turno, ao invés de a de Turno precipitar a sua...
A nosso ver, a análise do elemento trágico na segunda metade da epopéia, especial-
mente em sua relação com a “tragédia” de Dido, está a merecer um estudo mais apro-
fundado. A tragicidade da personagem Turno, com freqüência apontada pelos estu-
diosos, foi negada por Peter Schenk, com base em elementos da Poética de Aristóteles;
para o autor, Turno é retratado como absolutamente responsável por sua culpa, ao
contrário de Dido, o que faria dele, apesar de alguns traços positivos, uma personagem
nada simpática, criminosa, ímpia, com a qual o leitor não pode se identificar e, portan-
to, não lhe é possível apiedar-se de sua sorte. O último capítulo do livro de Schenk,
coroamento de suas análises, chama-se, sugestivamente, “O herói não trágico”: “der
Untragische Held” (Op. cit., p. 337-395). A questão crucial, aqui, segundo pensamos,
é distinguir com clareza um ponto na verdade polêmico: o da responsabilidade indivi-
dual das personagens que, como Dido e Turno, sofrem a ação de divindades que os

– 339 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

5. TRAMA ALUSIVA NA CENA FINAL DA EPOPÉIA74

Muitos leitores e estudiosos75 se mostram chocados com a fúria


de Enéias nos últimos livros da Eneida; a cena final, sobretudo, pare-
ce ir de encontro aos ideais de paz e conciliação que Enéias personifi-
ca. Diante de um Turno suplicante, desarmado e humilhado, o herói,
é verdade, hesita (o que talvez seja inconcebível no heroísmo homéri-
co), mas, num acesso de furor, imola o vencido; tivesse poupado o seu
oponente, e luz totalmente nova se lançaria sobre a Eneida, que se

instingam (Vênus, utilizando Cupido; Juno, servindo-se de Alecto: note-se o paralelismo,


já que as duas deusas se servem de forças irracionais e destruidoras, segundo o ideário
romano, para enlouquecer os mortais: a paixão amorosa e a fúria guerreira, ambos
retratados como furor). Por outro lado, pensando na obra de Schenk, indagaríamos se
é preciso que haja total concordância da narrativa com a teoria de Aristóteles a respei-
to da tragédia para termos o direito de afirmar que Turno é uma personagem “trágica”.
74
Para uma análise das alusões à Gigantomaquia no duelo final, um aspecto de que não
trataremos aqui, consulte-se HARDIE. Op. cit., p. 147-154.
75
Como resume Quinn, a cena “chocou mais de um dos comentadores de Virgílio” (Op.
cit., p. 223). Mas já Sérvio, a nosso ver, retratara o Enéias de toda esta cena tal como o
leitor contemporâneo de Virgílio deveria compreendê-lo: não um sangüinário enfure-
cido, como parte da crítica recente o pinta, mas um homem inclinado à clemência e
escrupuloso cumpridor dos deveres da pietas: et ex eo quod hosti cogitat parcere, pius
ostenditur, et ex eo quod eum interimit, pietatis gestat insigne: nam Euandri intuitu
Pallantis ulciscitur mortem (“não só se mostra compadecido, ao pensar em poupar o
inimigo, como também se distingue pela pietas: afinal, por consideração a Evandro,
vinga a morte de Palante”, Op. cit., vol. II, p. 649). Que Virgílio tenha colocado sua
personagem numa situação nada fácil, como o fizera no episódio de Dido, revela-nos
que, apesar de tudo, a epopéia virgiliana não é um todo ideologicamente maniqueísta e
sem arestas, pelo contrário; porém, fazer da Eneida uma obra que contenha elementos
anti-Augusto e anti-Enéias e transformar Virgílio num poeta antiimperialista, é desco-
nhecer elementos textuais relevantes, que aqui apontaremos, para não mencionar as
expectativas histórico-culturais do leitor implícito. Não é preciso defender assim o
poeta da pecha de propagandista descarado do regime imperial de Augusto e do poder
romano: a Eneida é suficientemente complexa e nuançada para evitar tal mal-entendi-
do; aliás, é a ausência mesma de esquematismo ideológico nessa obra que nos alerta
para não naufragarmos num dos dois extremos, como se devêssemos etiquetar Virgílio
como poeta de direita ou de esquerda! – a crítica séria deve se precaver contra as
seduções tanto de Cila quanto de Caribde...

– 340 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

concluiria sob o signo da reconciliação e da substituição da vingança


pelo perdão; mais próximos estaríamos de um heroísmo cristão a re-
jeitar decididamente antigos valores. Seja como for, é preciso procu-
rar compreender a cena em seu contexto e analisar as relações inter-
textuais que podem desvendar as intenções do poeta; esse tipo de
análise é relativamente recente nos estudos virgilianos e tem produzi-
do bons resultados.76
Deve-se resistir a explicar a morte de Turno como alusão a acon-
tecimentos da gesta de Augusto e interpretá-la como parte de um
roman à clef; de fato, Enéias, vingando Palante, age como Augusto
vingador de César: tratar-se-ia de ato movido pela mais estrita pietas,
como a propaganda otaviana proclamará; mas a complexidade de que
se reveste o episódio da epopéia, pleno de alusões inter- e intratextuais,
alerta-nos contra a excessiva simplificação, presente, sobretudo, quan-
do achamos que se descobriu a “chave” de leitura na associação a
fatos históricos contemporâneos do poeta.
A perspectiva da morte de Turno é o único consolo a manter o
velho Evandro vivo; Enéias, se quiser cumprir suas obrigações para
com o anifitrião e aliado, não tem alternativa:

quod uitam moror inuisam Pallante perempto,


dextera causa tuast, Turnum gnatoque patrique
quam debere uides. Meritis uacat hic tibi solus
fortunaeque locus; non uitae gaudia quaero,
nec fas, sed gnato manis perferre sub imos. (XI, v. 177-181)

“Se me demoro numa vida odiosa com Palante morto,


o motivo é tua destra, que Turno ao filho e ao pai
deve, como vês. Falta-te só isto a teus méritos

76
O primeiro nome a destacar é o de Knauer (Die Aeneis und Homer, p. 316 e ss.),
sempre fundamental pelo estudo sistemático das relações entre a epopéia de Virgílio e
a homérica; dentre os ensaios mais recentes, destacamos Lyne (Further Voices, p. 132-
139) e Quint (Epic and Empire, p. 65-83).

– 341 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

e à tua fortuna; não o desejo como uma alegria para a minha vida,
nem é lícito, mas para levá-la a meu filho entre os Manes profundos”.

A palavra-chave, a nosso ver, é dextera: com o pacto firmado


entre Enéias e os árcades, o troiano se encontra obrigado a vingar a
morte de Palante. Ao dirigir pela primeira vez a palavra ao rei árcade,
Enéias solicitara a fides que os empenharia num pacto de lealdade
mútua, selado pelo estreitar das destras, esse penhor sacrossanto para
os Romanos:

Accipe daque fidem (VIII, v. 150)

“Recebe e dá lealdade...”77

Por sua vez, Evandro aceita estabelecer esse verdadeiro pacto


com o recém-chegado:

quam petitis, iuncta est mihi foedere dextra (VIII, v. 169)

“... a destra que solicitais, de minha parte está unida em um pacto...”

É patente a identificação entre fides, o que Enéias pediu, e dextra,


o que Evandro smbolicamente lhe oferece: consuma-se uma aliança
de obrigações mútuas.78 No dia seguinte ao do primeiro encontro, no

77
Por suas conotações especiais na sociedade romana, o conceito de fides parece
intraduzível por uma só palavra; a tradução de Odorico, “fé”, desagrada-nos pela
aura católica que paira sobre o termo, desprovido da noção de ativo e objetivo com-
promisso a honrar nas relações entre os que empenham sua palavra. Por outro lado,
Accipe daque fidem é a reprodução exata de trecho da epopéia eniana (Annales,
fragmento 33): a citação de Ênio parece conferir nobreza solene às palavras de Enéias.
Uma breve mas bem feita análise do conceito de fides para os Romanos pode ser
encontrada em PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura
Clássica. II Volume: Cultura Romana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian [1984],
p. 320-326; para considerações mais profundas, veja-se o livro indicado na nota se-
guinte.
78
Este exemplo – a nosso ver claríssimo – do sentido simbólico da destra estendida não se
encontra entre os que cita Gérard Freyburger para provar a ligação estreita entre o ato

– 342 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

primeiro gesto compartilhado entre os dois, antes da proposta con-


creta de auxílio militar por parte de Evandro, os dois aliados se aper-
tam79 a mão direita: iungunt dextras (VIII, v. 467), ato pleno de signi-
ficado no contexto.80
Quando Enéias é informado da morte de Palante, vai imediata-
mente em busca de Turno, presa de um furor guerreiro digno de Aquiles;
nesse momento, vêm-lhe à mente os deveres para com Evandro, ex-
pressos pelo poeta como uma espécie de justificativa para o comporta-
mento arrebatado do troiano, objeto, porém, de tão freqüentes censu-
ras; menciona-se o simbólico aperto da mão direita, penhor da fides:

Pallas, Euander, in ipsis


omnia sunt oculis, mensae quas aduena primas
tunc adiit, dextraeque datae. (X, v. 515-517)

“Palante, Evandro, diante de seus próprios


olhos tudo está: aquela mesa, a primeira a que, estrangeiro,
então veio ter, e as destras estendidas.”

É, pois, notável a insistência de Virgílio na aliança concluída


entre Enéias e Evandro, através da palavra empenhada e da junção
das destras.

de dar a mão direita e o de empenhar sua palavra. Mas esse autor releva um dado
importantíssimo para a decifração de passagens da Eneida como de outras obras da
literatura latina: estender a mão direita não é um gesto desprovido de significado nem
mera saudação: é indissociável da garantia de fides (ver FREYBURGER, Gérard. Fides.
Étude Sémantique et Religieuse depuis les Origines jusqu’à l’Époque Augustéenne.
Paris, “Les Belles Lettres”, 1986, p. 136-138).
79
Entre os Romanos, esse gesto ritual era mais uma junção das destras que um aperto
propriamente dito, segundo Freyburger (Op. cit., p. 136, nota 155), nuança que é
difícil manter em português.
80
Significativamente, o primeiro contacto entre Enéias e os árcades, através de Palante,
é marcado pelo estreitar firme da destra do primeiro pelo segundo: Excepitque manu
dextramque amplexus inhaesit, VIII, v. 124 (“Recebeu-o com a mão e reteve-lhe, es-
treitando-a, a destra”) – é o primeiro sinal de uma hospitalidade cujos laços eram sagra-
dos para os Antigos. Vê-se que a imagem da coniunctio dextrarum, em signo de pacto,
é um dos motivos recorrentes deste livro VIII.

– 343 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na cena final, diante da súplica do rútulo, atitude carregada de


sentido, Enéias contém sua destra: dextramque repressit (XII, v. 939),
e a explicitação da palavra que é o signo da fides tão reiterada no livro
oitavo nos parece significativa, insinuando-se, pois, que o troiano, ao
hesitar, ameaça esquivar-se ao cumprimento do dever de lealdade
assumido com Evandro;81 no entanto, a vista do boldrié que o rútulo
arrebatara ao jovem, leva-o a cumprir suas obrigações para com o
velho e magoado pai.82 Por outro lado, Virgílio deixa claro que Enéias
faz de Turno vítima a ser sacrificada pelos manes mesmos de Palante,
encarnados no troiano:

Pallas te hoc uolnere, Pallas


immolat et poenam scelerato ex sanguine sumit. (XII, v. 948-949)83

81
Uma sutileza interpretativa que só a leitura rigorosamente intratextual possibilita e
referenda: é pela recordação precisa da cena entre o rei árcade e o herói troiano, da
compreensão da importância da palavra dextera tantas vezes reiterada no encontro
entre os dois chefes, que o leitor verá na expressão de Virgílio um duplo sentido, ou
melhor, um gesto que além da significação de superfície (Enéias hesita) se imanta de
outras conotações (Enéias por um momento não cumpre sua parte no pacto firmado
com Evandro). Novamente, o leitor mais “desatento”, que faz leitura mais linear, não
será por certo incapaz de compreender o significado mais imediato do texto, mas per-
derá uma nuança de sentido que nos parece bastante interessante, especialmente por
ajudar a motivar o polêmico ato de Enéias.
82
Quando remete ao pai o corpo de Palante, Enéias se autocensura em palavras amargas:
“É esta a força da palavra que empenhei?” (haec mea magna fides?, XI, v. 55; literal-
mente: “esta minha grande fides?”; notável o relevo do possessivo). O herói se sente,
pois, em falta para com Evandro, uma falha que só poderá corrigir com a morte de
Turno. É preciso insistir em que o poeta procura motivar fortemente o ato último de
Enéias?
83
Nessa concepção da morte de Turno como expiação de um crime, ecoam as palavras
de Diomedes aos embaixadores latinos, reportadas no livro anterior: os que atacaram
Tróia pagaram duramente o preço por esse crime (scelerum poenas expendimus omnes,
XI, v. 258), palavras que Turno deveria acolher como uma advertência. O grego, de
fato, tenta dissuadir os latinos de guerrear contra aquele povo: “mas guardai-vos de
recorrer a armas contra essas armas!” (ast armis concurrant arma cauete, XI, v. 293).
Implicações intratextuais: Turno, que insiste na hostilidade contra o enviado do desti-
no, atrai sobre si a punição que castigou os gregos.

– 344 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

“É Palante que através deste golpe, Palante,84


te imola e se vinga com teu sangue celerado”.

Suetônio nos revela que Augusto apontava como um dever ina-


lienável vingar seu pai adotivo César, assassinado nos Idos de Março:

Omnium bellorum initium et causam hinc sumpsit, nihil conuenientius


ducens quam necem auunculi uindicare, tuerique acta.85

“Tomou como pretexto para o início e a causa de todas essas guerras o


fato de não julgar nada mais imperativo que vingar o assassinato do tio
e velar por seus atos...”

Virgílio, porém, insistamos, por um série de alusões, torna mui-


to mais complexa a cena da morte de Turno, plena de sentidos gera-
dos pela inter- e intratextualidade.
Em primeiro lugar, a ira terribilis de Enéias (XII, v. 946-947)
evoca a mh=nin ou l ) ome/nhn de Aquiles, como o último verso da
epopéia a morte de Heitor: o troiano vinga Palante como Aquiles a
Pátroclo. Quanto a Furiis accensus (XII, v. 946), não há que se invo-
car a condenação evidente, na epopéia de Virgílio, dos comporta-
mentos movidos por um ímpeto furioso86 para detectar, no comporta-
mento de Enéias, como alguns estudiosos insistem em apontar, uma
censura velada ou uma sombra inquietante; o poeta, afinal, represen-
ta furores justificáveis, como o de Hércules contra Caco, que lhe rou-
bara parte do gado:

84
Essa repetição enfática do nome do jovem morto por Turno evoca o momento em que
o rútulo diz aos aliados que Palante lhe é devido, insistindo, pois, naquela luta desigual;
também ali, na fala do rútulo, o nome do jovem árcade é enfaticamente reiterado: solus
ego in Pallanta feror, soli mihi Pallas/ debetur (“só eu me lanço contra Palante, só a
mim Palante/ é devido...”, X, v. 442-443); assim, a retomada textual salienta que Enéias
paga na mesma moeda a crueldade de Turno diante do filho de Evandro.
85
Augustus, X. Aqui, reproduzimos o texto da Garnier; o da “Les Belles Lettres” apresen-
ta outra pontuação mas não resolve uma construção sintática especiosa; seja como for,
o sentido é claro.
86
De Dido, de Turno, de Amata, das guerras (Furor impius, I, v. 294).

– 345 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Hic uero Alcidae furiis exarserat atro


felle dolor (VIII, v. 219-220)

“Foi então que em fúrias ardera com negro


fel a dor do Alcides”.

Note-se que a fúria de Hércules, justa, responde à de Caco (At


furiis Caeci mens effera, v. 205), celerada; ao furor de Turno, respon-
derá o de Enéias. A associação do furor de Enéias ao de Hércules
lança luz positiva sobre a atitude do primeiro; como Hércules se abra-
sa com ira ardente (feruidus ira, VIII, v. 230) contra o celerado Caco,
também o troiano, accensus et ira (XII, v. 946), é retratado férvido de
cólera (feruidus, XII, v. 951) em seu duelo com Turno, após a visão
do fatídico boldrié. Como faz com a de Hércules, Virgílio motiva a ira
de Enéias, como que prenunciada pelo episódio do livro anterior. Note-
se este paralelo: se Caco é apresentado em seus aspectos monstruosa-
mente ígneos, também a fúria que Hércules lhe oporá será represen-
tada como fogo a abrasar o herói; similarmente, Turno é amiúde
associado ao fogo devorador, e seu antagonista Enéias, em sua vin-
gança, terá sua ação associada à do fogo. Apresentaremos uma breve
amostra. A respeito de Caco, diz o poeta:

Huic monstro Volcanus erat pater: illius atros


ore uomens ignis magna se mole ferebat. (VIII, v. 198-199)

“Deste monstro Vulcano era pai: seus negros


fogos vomitando87 da boca, avançava com massa ingente”.

87
Virgílio insiste nessa imagem: Incendia uana uomentem, em 259. Fundando-se na
aplicação dessa imagem do “vomitar fogos ou chamas” ao elmo (VIII, v. 620) e ao
escudo de Enéias (X, v. 271) e ao próprio Augusto, cujas têmporas “vomitam chamas”
(VIII, v. 680-681), Lyne vê nessa associação uma perturbadora further voice: Enéias,
com seu escudo, bem como Augusto, lembrariam o monstro Caco em seu uso de uma
força similar negativamente retratada (Further Voices, p. 27-33). Eis, pensamos, um
exemplo da excessiva simplificação a que a análise da reiteração lexical facilmente
conduz muitos, especialmente os que, sem distinguir o furor impius do furor iustus,
ambos retratados pelo poeta, e sem levar em conta o conjunto dos dados textuais e

– 346 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Eis, agora, algumas das expressões que atribuem o fervor da có-


lera a Turno, efeito, de resto, da tocha que szobre seu peito lançara
Alecto:

ignescunt irae (IX, 65); mens exaestuat ira (IX, 798); exarsit dictis
uiolentia Turni (XI, 376); feruidus (XII, 325); o verbo ardere, conju-
gado ou na forma participial, é aplicado a Turno várias vezes (IX,
v. 760; XII, 3, 71, 101, 325; em XII, 670, a seus olhos: ardentis ocu-
lorum orbis).

Especialmente impressionante é este retrato do rútulo ao se pre-


parar para o duelo final:

totoque ardentis ab ore


scintillae absistunt, oculis micat acribus ignis (XII, v. 101-102)

“e de toda sua face ardentes


centelhas jorram, nos olhos acres tremula fogo”.

Enéias, por sua vez , é retratado accensus e feruidus na cena


final, como vimos; após a morte de Palante, o troiano desencadeia
terrível mortandade, em reação de furor que parece a muitos chocan-
te, já que não se detém nem mesmo diante de um sacerdote de Apolo
e da Trívia; tomado pela ira, o herói é ardens (X, 514; ardenti, X,

intertextuais, utilizam a cena final da epopéia para distinguir uma condenação mais ou
menos velada de Enéias, já que Virgílio, ao longo de seu poema, traçaria o conflito
inconciliável entre a pietas civilizadora e o furor destrutivo. A questão é: em tais asso-
ciações devemos ver sempre uma relação de sentido que destaca semelhanças (Augusto
e Enéias com algo do monstruoso Caco)? Ou, levando-se em conta outros elementos
textuais, precisaremos atentar para as nuanças de um paralelismo formal que releva
também as diferenças, em diferentes contextos, da associação que, sem dúvida, é sem-
pre pertinente identificar? Lyne certamente, com seu brilho e solidez filológica, escapa
a visões simplificadoras, mas também cede ocasionalmente à tentação de isolar e dar
excessiva importância a certos aspectos textuais sem a contextualização adequada,
mutilando, assim, o sentido do todo.

– 347 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

552), combatendo o fogo com fogo, opondo sua fúria “justa” à insânia
bélica de Turno.
Notemos que, além da imagem do fogo que acompanha Turno,
também a idéia de um tamanho desmesurado, nesse ponto também
assimilável a Caco, ou, pelo menos, acima do normal: Palante, ao
enfrentar o rútulo, passa os olhos pelo seu corpo imenso (corpusque
per ingens, X, v. 446). O adjetivo volta na cena final, no momento
em que Turno tomba com os joelhos vergados (ingens...Turnus, v.
927); como a Enéias, dentre outros guerreiros, também é aplicado o
mesmo epíteto,88 devemos acrescentar que, no caso de Turno, o traço
é realçado: no livro IX, os troianos se abalam ao reconhecer sua face
odiosa e seu corpo imenso (immania membra, v. 734). Semelhante-
mente, nas cenas finais da epopéia também teremos um ingens Enéias,
mas com conotação positiva: o troiano se agiganta em sua fúria guer-
reira, favorecida pelos destinos e fundada no desejo da paz, para estar
à altura do antagonista também do ponto de vista heróico, no sentido
do heroísmo também físico de um Aquiles e de um Heitor ou de um
Hércules.
Observemos que quase todos os mais polêmicos atos de uma
suposta crueldade de Enéias são atenuados pelo poeta com uma esco-
lha vocabular significativa: se o troiano captura os quatro filhos de
Sulmão para os sacrificar a Palante,89 em imolação essencialmente

88
Ingentem Aenean (VI, v. 413; VIII, v. 367).
89
Augusto, como se sabe, após a guerra de Perúsia, teria sacrificado trezentos (!) notáveis
no aniversário dos Idos de Março, como sacrifício aos manes de César (ver Suetônio,
Augusto XV, que, porém, prudentemente não assume a informação, atribuindo-a a
alguns escritores: Scribunt quidam). É curioso que, mais inflexível que Enéias, Augusto,
sem hesitação, após a captura da cidade, se mostrara implacável, rejeitando até mesmo
as súplicas ou justificativas apresentadas pelos condenados à execução (“é preciso mor-
rer”, moriendum esse, dizia ele com férrea frieza!). O imperador se apoiava na mesma
noção sagrada de pietas que leva Enéias a sacrificar Turno, para justificar o que nos se
antolha bárbara crueldade. Mas não se deve usar esse paralelo para explicar a atitude
de Enéias: simplificações desse tipo são especialmente comuns na leitura dita “alegóri-
ca”, cujos abusos já mencionamos.

– 348 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

religiosa (immolet, X, v. 519), Virgílio dá a mesma conotação à morte


de Hemônides, o sacerdote (immolat, X, v. 541) e à de Turno (immolat,
XII, v. 949)90 – como se vê, sempre se trata de vingar ritualmente os
manes do filho de Evandro.
Troiano e rútulo, os heróis que dividem a cena como os dois
protagonistas da segunda parte da epopéia, deixam-se penetrar de uma
ira que é o móvel do furor guerreiro indispensável na batalha; mas,
através de uma série considerável de elementos textuais, a de um apa-
rece como justa e necessária, a do outro insana e demoníaca. Releve-
mos que Virgílio explicita o paralelo entre Enéias e Turno (ponto a
que logo voltaremos):

Aeneas Turnusque ruont per proelia; nunc, nunc


fluctuat ira intus, rumpuntur nescia uinci
pectora, nunc totis in uolnera uiribus itur. (XII, v. 526-528)

“Enéias e Turno se precipitam através dos combates; agora, agora,


agita-se dentro a ira; irrompem, não sabendo o que é se deixar vencer,
os corações; agora, com todas as forças se caminha para os golpes”.

Não podemos julgar, portanto, o episódio final com olhos mo-


dernos,91 se quisermos compreender as intenções do poeta; na Eneida,

90
Boas observações em HEUZÉ, P. Op. cit., p. 159-164. Sérvio já observara o caráter
sacro da morte de Turno, assim glosando as palavras de Enéias: te tamquam hostiam
inmolat Pallas (“A ti Palante imola como a uma vítima”: vol. II, p. 649, ad uersum XII,
949).
91
Estamos apontando, preferencialmente, elementos intertextuais para analisar o senti-
do da cólera do protagonista da Eneida, mas poderíamos também ressaltar as diferen-
ças de concepção entre nosso mundo e o da Antigüidade. Se Augusto justificava atos
de crueldade pela necessidade de satisfazer sua pietas, César aparecerá como clemente
por ter estrangulado seus raptores antes de crucificá-los! Suetônio relata o fato como
prova de que Júlio era por natureza muito brando até mesmo na vingança (et in
ulciscendo natura lenissimus – Diuus Iulius Caesar, LXXIV). De fato, Cícero louva a
clemência de César mais de uma vez; no Pro Marcello, a recondução de seu cliente ao
Senado leva o orador a expressar sua admiração por tamanha brandura, tão inusitada
e inaudita clemência (Tantam enim mansuetudinem, tam inusitatam inauditamque

– 349 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

mais de uma vez se retrata uma ira justa; quando os troianos sitiados
avistam Enéias, que retorna de sua viagem em busca de aliados, a
esperança faz revigorar a ira contra os inimigos: spes addita suscitat
iras (“a esperança suscita iras”, X, v. 263). Expressão similar compa-
rece no momento em que Enéias se arma para o duelo final:

Aeneas acuit Martem et se suscitat ira (XII, v. 108)

“Enéias atiça Marte e suscita em si a ira”.

Esta ira do herói é canalizada para a obtenção do pacto; trata-se


de refrear os soberbos para impor aquele regime da paz que Anquises
apontava como arte maior e característica do Romano; ao invés de
demonstrar alegria na carnificina, como faz Turno, Enéias se regozija
com a perspectiva do pacto que porá fim à guerra; longe estamos de
um herói homérico como Aquiles ou de um Turno:92

oblato gaudens componi foedere bellum (XII, v. 109)

“Alegrando-se por concluir a guerra com o pacto proposto”.

clementiam, I,1); ora, exageros retóricos à parte, parece-nos evidente que Cícero não
expressaria tal juízo, com tanta ênfase, se aos olhos da maioria os atos de César, após
sua vitória na guerra contra Pompeu, não parecessem exemplos de clemência excepci-
onal, rara. Ou seja, a vingança contra os inimigos aparece como conseqüência rotinei-
ra das vitórias militares (note-se inusitatam inauditamque). Refletindo em tais concep-
ções, que nos dão indicações sobre as expectativas do destinatário de sua época, é mais
fácil compreender como o leitor de Virgílio não deveria ficar tão chocado quanto mui-
tos de nós com a eliminação de Turno por Enéias na última cena da epopéia.
92
“O furor, tão necessário quando se combate, não é natural nos heróis virgilianos”, diz
Perret (vol. III de sua edição da epopéia, p. 128, nota 1); mas se deve ressalvar que
Turno conserva um furor sempre a ponto de se manifestar (obra, em última instância,
de Alecto); sob esse ponto de vista, é interessante comparar a cena do armar-se de
Enéias com a equivalente de Turno, que a precede: imagens, ritmos e sons se unem
para criar um retrato intensamente vivo do ardor guerreiro do rútulo, que parece se
comprazer com o morticínio, ao contrário de Enéias. É a Turno que se aplicam fórmu-
las como scelerata insania belli (VII, v. 461) e caedisque insana cupido (IX, v. 760).
Notemos a idéia do desvario e de um amor insano: assim como Dido se perde pela
paixão amorosa, Turno se condena pelo amor excessivo e gratuito a uma guerra ímpia.

– 350 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Note-se que este comentário se segue à cena, tradicional em


Homero, de preparação para a entrada em batalha; ora, pouco antes,
Virgílio descrevera o armar-se de Turno, que também se alegra... mas
à visão dos cavalos que fremem, um signo de sua paixão pela guerra:

poscit equos gaudetque tuens ante ora frementis (XII, v. 82)

“Pede os cavalos e se alegra vendo-os fremir diante de seus olhos...”

Aqui, vale a pena nos determos sobre uma fascinante aproxi-


mação intratextual: Turno é comparado a um cavalo em XI, v. 492-
497, como, na Ilíada, Páris (VI, v. 506-511) e Heitor (XV, v. 263-
268); no contexto, após a dissolução do conselho dos latinos,
interrompido pelo ataque de Enéias, Turno parte para o combate como
um cavalo que, rompidos os grilhões (abruptis uinclis, XI, v. 492),
finalmente se sente livre (tandem liber, v. 493). O rútulo parece, por-
tanto, sentir-se em seu natural apenas quando dá vazão a seu furor
bélico (poucos versos antes do símile, a palavra furens lhe é aplicada –
v. 486). Ora, ao avistar a terra itálica, após um longo périplo, Enéias
se depara com um presságio do que lhe aguarda naquele país:

Quattuor hic, primum omen, equos in gramine uidi


tondentis campum late, candore niuali.
Et pater Anchises “Bellum, o terra hospita, portas:
bello armantur equi, bellum haec armenta minantur.
Sed tamen idem olim curru succedere sueti
quadrupedes et frena iugo concordia ferre:
spes et pacis”ait. (III, v. 537-543)

“Aqui, quatro cavalos, primeiro presságio, sobre a grama vi,


pastando ao longo da vasta planície, de uma brancura de neve.
E o pai Anquises: ‘Guerra, ó terra hospedeira, trazes:
para a guerra se armam cavalos, com guerra ameaçam estes animais.
No entanto, os mesmos quadrúpedes se acostumam um dia a se atrelar
a um carro
e, no jugo, a suportar os freios em concórdia:
também há esperança de paz’, diz”.

– 351 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ora, Turno, em sua sanha guerreira, é comparado a um cavalo


totalmente livre de qualquer grilhão e, no contexto dos preparativos
para a batalha, seus cavalos, como os vistos por Enéias no presságio,
têm também uma brancura notável, que até supera a das neves:

qui candore niues anteirent (XII, v. 84)

“que superariam, em brancura, as neves...”

Embora o texto não seja mais explícito, é difícil resistir à asso-


ciação entre as duas passagens: o presságio interpretado por Anquises
anuncia Turno, com seus cavalos brancos e seu próprio arrebatamen-
to guerreiro, sem freios e sem objetivos superiores, em regozijo com a
liberdade de sua fúria insana.
A associação entre Turno, cavalos desenfreados e furor bélico
reaparece no símile em que o rútulo é comparado a Marte (XII, v.
331-340); a comparação retrata o comportamento de Turno após a
quebra do pacto; devemos notar:

sanguineus Mauors clipeo increpat atque furentis


bella mouens immittit93 equos, illi aequore aperto
ante Notos Zephyrumque uolant (XII, v. 332-334)

“O sangüíneo Marte faz ressoar seu escudo e os enfurecidos


cavalos arremete, movendo guerras; eles, na planície aberta,
mais que os Notos e o Zéfiro voam...”

93
Marte dá redéas soltas aos cavalos; recordemos a expressão habenas immittere, “soltar,
afrouxar as rédeas”. Da própria Eneida, poderíamos citar o passo em que as troianas,
instigadas por Íris, incendeiam os navios; o fogo se espraia como um cavalo sem freio:
Furit immissis Volcanus habenis, V, v. 662 (“Vulcano, com as rédeas soltas, se enfure-
ce...”). Notemos neste exemplo a associação de furor, fogo destrutivo e ausência de
peias, uma constante da caracterização de Turno. Furor, audácia e desenfreamento, na
epopéia marcas do rútulo, em Cícero caracterizam homens como os inimigos do Estado
Catilina (por exemplo: furor iste tuus... effrenata audacia – Primeira Catilinária, I, 1) e
Antônio (Noui hominis furorem, noui effrenatam uiolentiam – Filípicas XII, 11, 26:
“Conheço o furor desse homem, conheço a violência desenfreada”). Observe-se, so-
bretudo, uiolentia, palavra, na Eneida, só aplicada a Turno, segundo mencionamos.

– 352 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Notemos que aequore aperto evoca campo aperto, expressão


que aparecera no símile em que Turno é comparado a um cavalo.94
A esse respeito, é interessante recordar a imagem do Furor impius
encadeado no templo da guerra e tantas outras ligadas à idéia do “freio”
necessário (por exemplo, o controle de Éolo sobre os ventos, compa-
rados sutilmente a cavalos que, sem freios, destruiriam o universo numa
castástrofe final, I, v. 60-63, etc.).95 Por outro lado, na carnificina
geral do livro XII, Enéias, enraivecido pelas insídias e perfídias dos
inimigos, finalmente dá vazão a seus impulsos guerreiros, mas a ima-
gem que Virgílio atribui a sua ação no campo de batalha revela que o
troiano mantém o controle sobre eles:

irarumque omnis effundit habenas (XII, v. 499)

“E dá rédeas soltas às iras.”

Enéias, vê-se, controla seus impulsos como a um animal, dan-


do-lhes vazão apenas quando julga necessário; Turno, ao contrário, é
sempre presa de um furor que não consegue dominar, que, na verda-
de, domina-o. Nesse sentido, é interessante comparar o verso acima
citado com o passo em que Vênus, no livro II, censura Enéias por suas
indomitas...iras (notemos o plural do substantivo e a metáfora do
refreamento, como no contexto acima); na expressão, está clara a
idéia de sentimentos negativos a que se dão rédeas soltas (para conti-
nuar a empregar a linguagem metafórica). Vênus censura o filho pela
falta desse autocontrole que o troiano exibirá mais tarde; nesse ponto
do livro II, temos um Enéias que ainda não assimilou o novo heroísmo
que a epopéia propõe.

94
tandem liber equos campoque potitus aperto (XI, v. 493): “livre, finalmente, e se apos-
sando da planície aberta...”
95
Destaquemos a ameaça de Enéias, que se dispõe a destruir a cidade de Latino, se seu
povo não aceitar o freio e não se declarar pronto a obedecer: ni frenum accipere et uicti
parere fatentur (XII, v. 568). Aqui, recordamos a associação feita por Anquises entre
paz e cavalos sob o freio.

– 353 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ao voltar ao campo de batalha depois de ter sido atingido por


uma flecha traiçoeira, no momento em que, desarmado, tentava con-
ter a fúria bélica de todos, Enéias se encherá de ira, mas o poeta justi-
fica o furor do herói: indo em perseguição de Turno, é atacado insidi-
osamente por Messapo, em violação do pacto que estabelecera o duelo
único entre o troiano e o rútulo. Por outro lado, o carro deste último,
graças a Juturna, que viera em socorro do irmão, desvia-se sempre de
Enéias, impossibilitando o confronto decisivo que poderia pôr fim à
guerra; além disso, a agressão contra os juramentos solenes e sacros
proviera dos adversários. É significativo que antes da explosão de có-
lera do troiano, Virgílio o mostre dizendo estas palavras:

Cohibete iras! (XII, v. 314)

“Sofreai as iras!”

Ora, o substantivo irae aparecerá duas vezes em curto trecho


enfatizando que este é um motivo dominante no último livro: contra
seu gosto pessoal, Enéias vê-se impelido a armar-se de cólera para
revidar à insídia do inimigo:

Tum uero adsurgunt irae, insidiisque subactus,


diuersos ubi sensit equos currumque referri,
multa Iouem et laesi testatus foederis aras,
iam tandem inuadit medios et Marte secundo
terribilis saeuam nullo discrimine caedem
suscitat irarumque omnis diffundit habenas. (XII, v. 494-499)

“É então que se sublevam as iras e, provocado pelas insídias,


ao perceber os cavalos e o carro se afastarem e recuarem,
muitas vezes invocando Júpiter e os altares do pacto violado,
já irrompe, por fim, em meio aos inimigos e, secundado por Marte,
terrível, sem fazer distinção, feroz massacre
suscita e dá redéas soltas às iras.”

Notemos a enfática expressão tum uero: só nesse momento, ao


contrário do que ocorrera com os outros guerreiros, Enéias é domina-

– 354 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

do pela ira; em contraste com a atitude pacífica e legalística do troiano,


Turno, assim que aquele sai, ferido, do campo de batalha, entrega-se
a um massacre com o qual se regojiza (alacer!, XII, v. 337):

Multa uirum uolitans dat fortia corpora leto (v. 328)

“Voando, muitos corpos fortes de varões entrega à morte”.

Duas iras terríveis, portanto, mas a de Enéias, ao contrário da


de Turno, não lhe é natural: surge motivada por razões que o poeta
ressalta, canalizada para fins que transcendem a mera vingança pes-
soal; Virgílio, porém, não abdica de sua costumeira discrição – cabe
ao leitor, mais uma vez, fazer as associações e distinções.
Similarmente, no plano divino, se há a ira injusta de Juno, que
persegue sem tréguas um homem insigne por sua piedade, iniqüidade
que choca o poeta (Tantaene animis caelestibus irae?, I, v. 11), existe
a ira justa dos deuses, que castiga o descumprimento dos preceitos do
fatum:

fatalem Aenean manifesto numine ferri


admonet ira deum tumulique ante ora recentes (XI, v. 232-233)

“Que o predestinado Enéias é movido por um nume manifesto,


adverte-o a ira dos deuses e os túmulos recentes diante dos olhos”.

Nas palavras de Evandro a Enéias, vê-se que até mesmo o furor


pode ser justificado:96 para o rei árcade a Etrúria se rebelou contra o
cruel Mezêncio em “justas fúrias”(furiis...iustis, VIII, v. 494),97 uma
passagem de extraordinária importância para compreender o tão cri-
ticado furor de Enéias a partir da morte de Palante e seus sentimentos

96
Veja-se a análise de Cairns (Virgil’s Augustan Epic, p. 82-84).
97
Observemos que a caracterização iustis põe por terra a distinção reportada por Sérvio,
que a atribui a “alguns” (quidam), entre um furor positivo (pro bono et innocenti
motu) e furiae como expressão sempre negativa (semper pro malo) – ad uersum IV,
474 (Op. cit., vol. I, p. 550).

– 355 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

na cena final; há, pois, um furor que se justifica. Os etruscos, diz


Evandro, desejam até mesmo o suplício do tirano:

regem ad supplicium praesenti Marte reposcunt. (VIII, v. 495)

“O rei para o suplício reclamam, dispostos à guerra”.

Em seu discurso a Enéias, Evandro reproduz palavras de um


harúspice etrusco, que também menciona justo ressentimento (iustus
in hostem/fert dolor, VIII, v. 500-501) e ódio merecido (merita...ira –
ibidem) contra o tirano Mezêncio.98 Como observa Conway, o adjeti-
vo furens só é aplicado a Enéias após a morte de Palante (X, v. 604);99
por outro lado, a fúria se apossa de Enéias na cena final somente de-
pois que o troiano, avistando o boldrié do filho de Evandro, recorda a
terrível dor pela perda daquele puer (saeui monimenta doloris, XII, v.
945) – a cólera de Enéias se justifica pela necessidade de punir a cru-
eldade de Turno100 e cumprir o ato de pietas para com o velho pai; ao

98
Ferido por Enéias, na iminência do perdão ou do golpe final, Turno reconhece sua
culpa e a justiça do castigo: Equidem merui (XII, v. 931). Perret, a nosso ver equivoca-
damente, em longa nota comenta o passo e rejeita a idéia de um reconhecimento de
culpa por parte do rútulo (Op. cit., vol. III, p. 260-262). Pöschl, pelo contrário, assim
comenta a declaração do rútulo: “Pela primeira e única vez, Turno reconhece e con-
fessa, aqui, sua culpa contra Enéias...” (Op. cit., p. 223).
99
Apud QUINN. Op. cit., p. 224, nota 1.
100
Há que se atentar, também, para os aspectos religiosos que arrastam, por assim dizer,
Turno para o castigo: ao contrário de Enéias, o rútulo não respeita o pacto firmado entre
o troiano e o Latino junto aos altares da cidade (XII, v. 161 e ss.); rompida a trégua,
enquanto Enéias, desarmado, clama pelo cumprimento do tratado, Turno, na primeira
oportunidade que se lhe oferece, entrega-se ao massacre. Em dado momento, o próprio
rútulo expressará a consciência da culpa dos seus no rompimento do pacto, oferecendo-
se para expiar a falta coletiva: me uerius unum / pro uobis foedus luere (“é mais justo que
eu, unicamente, expie por vós o pacto...”, XII, v. 694-695). Discordando de Perret (Op.
cit., tomo III, p. 253), entendemos a expressão foedus luere como Sérvio: rupti foederis
poenas exsoluere (“expiar o castigo pelo rompimento do pacto”. Op. cit., tomo II, p. 633-
634), Forbiger (Op. cit., tomo III, p. 598: rupti foederis poenam luere), Conington (Op.
cit., vol. III, p. 465: poenas pro foedere rupto luere). Por outro lado, quando da morte de
Palante, o próprio Júpiter anuncia a morte próxima do rútulo:

– 356 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

mesmo tempo, é como que referendada, em nível intertextual, pela


semelhante cólera de Aquiles.
Por outro lado, o confronto intertextual que leve em conta os
contextos também atenua bastante o que de chocante haveria no
gesto último de Enéias, pois que o troiano, além de hesitar inicial-
mente, movido por uma súbita misericórdia, absolutamente ausente
em Aquiles no momento da morte de Heitor, não profere contra o
rival as ofensas terríveis do grego.101 Enéias parece matar Turno con-

Etiam sua Turnum


fata uocant metasque dati peruenit ad aeui. (X, v. 471-472)
“Também a Turno os seus
fados chamam e ele chegou ao termo do tempo concedido”.
Portanto, supondo que Enéias não o matasse, de qualquer modo o destino de Turno
estava selado: morte próxima, jovem (Sérvio comenta, sobre o uso do pretérito perfeito
em peruenit: “usou bem o tempo pretérito para expressar a chegada rápida da morte”:
bene ad exprimendum celerem mortis aduentum praeterito usus est tempore. Op. cit.,
tomo II, p. 440). Assim, vinda do próprio pai dos deuses, como consolação a Hércules,
no momento em que Turno matará um guerreiro bem mais moço e se vangloriará do
feito, o anúncio da morte do rútulo contém a sugestão de que seu fim próximo será a
justa punição por atitudes condenáveis como aquela.
Por outro lado, apressando o fim de Turno, Júpiter intervirá no duelo final do livro XII,
enviando a Dira, entidade punidora, que prostrará o rútulo e afastará sua irmã Juturna,
que tentava a todo custo livrá-lo do confronto final (XII, v. 843 e ss.). O próprio Júpiter
se mostra inimigo de Turno, como este mesmo reconhece: di me terrent et Iuppiter
hostis (XII, v. 895).
Sobre a culpa de Turno, pode-se ler o detalhado estudo de Peter Schenk sobre essa
personagem, já indicado por nós, com a ressalva de que o autor talvez subestime os
aspectos positivos do antagonista de Enéias.
101
Et iam iamque magis cunctantem flectere sermo/ coeperat (“e cada vez mais hesitante,
começavam a dobrá-lo essas palavras...”; XII, v. 940-941): antes da evocação da morte
de Palante, Enéias se inclina ao perdão, pois que a súplica do inimigo tem eficácia sobre
ele. O leitor intertextual lembraria as palavras de Heitor moribundo: Aquiles nunca se
deixaria persuadir por sua súplica, que pede não pela vida, como Turno, mas tão so-
mente que seu cadáver não seja presa dos cães e seja entregue aos seus para a cremação
ritual (Il., XXII, v. 338-343). Diante da intransigência do inimigo, que responde cruel-
mente a seu pedido, mostrando-se inflexível como antes, atitude oposta ao primeiro
impulso humanitário de Enéias, Heitor lhe diz que por certo não podia convencê-lo,
pois que ele tem no peito um coração de ferro: hå ga\r soi/ sidh/reoj e )n fresi\

– 357 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

tra seu impulso primeiro (a compaixão), cumprindo uma missão sa-


cerdotal de sacrificador aos manes de Palante; Aquiles dá vazão a um
furor vingativo sem peias, chamando Heitor de “cão” (kn/on, Il. XXII,
v. 345) e anunciando que seu cadáver será presa de cães e pássaros:

a) l la\ ku/ n ej te kai\ oi) w noi\ kata\ pa/ n ta da/ s ontai.


(XXII, v. 354)

“Mas cães e aves te devorarão todo”.

Aquiles, portanto, não só não esboça qualquer indulgência em


face do inimigo súplice como também o insulta nos últimos momen-
tos de vida; tais nódoas, atenuadas apenas no livro seguinte da Ilíada,
com a entrega do corpo de Heitor ao velho Príamo, não conspurcam
a imagem de Enéias, que, mesmo no ódio, parece controlar-se, isto é,
deixar-se dele possuir conscientemente para um fim que transcende
rancores pessoais: o cumprimento do pacto com Evandro a saciar os
manes do filho Palante.
Não podemos, portanto, concordar com Quinn, para quem
“mesmo assim a morte de Palante dificilmente pode justificar, por si
mesma, essa terrível cólera de Enéias”.102 Injustificável do ponto de
vista pessoal do leitor, sobretudo do leitor moderno, mas motivada
pelo poeta ao longo da narrativa. Virgílio, porém, insistamos, cheio
de nuanças, nunca é fácil e ideologicamente inteiriço; não negaremos

qumo/j (XXII, v. 357). Implicacão do intertexto: Enéias não demonstra a insensibilida-


de de Aquiles diante do inimigo caído, agravada, no grego, pelo fato de que Heitor
receber golpe fatal.
102
Op. cit., p. 272. Outras afirmações discutíveis: “Nós devemos condenar a raiva súbita
que leva Enéias a matar Turno quando está a ponto de poupá-lo – e quando sua morte
já não faz mais sentido, pois Turno reconhecera sua derrota...” (p. 273). Esta afirmação
de Putnam é bem ilustrativa da tendência de uma parte da crítica virgiliana em ver na
cena final da epopéia uma condenação do protagonista (e, por extensão, de Augusto...):
“É Enéias quem perde – deixando Turno vitorioso em sua tragédia, ao se submeter às
forças de violência e irracionalidade que o circundavam...” (apud WEST, D. Op. cit.,
p. 23, nota 9).

– 358 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

que o próprio fato de a morte de Turno concluir a epopéia, e com um


verso perturbador, lança uma sombra significativa sobre o todo, re-
cordando o fardo enorme de dores e sacrifícios que a trajetória de
Roma demandou aos homens. Quanto ao protagonista da epopéia,
empresta sua destra para Palante vingar-se, anulando-se mais uma
vez, como no episódio de Dido; aqui, o amor, ali a clemência cedem,
com trágicas conseqüências, a uma pietas inflexível. Além disso, o
rútulo recebe o golpe final após, suplicante e finalmente submisso,
implorar a um herói cuja inclinação pela concórdia e pela indulgência
nos acostumamos a admirar (no tratamento dado a Lauso, por exem-
plo); não há como não lembrar a prescrição de Anquises:

parcere subiectis et debellare superbos (VI, v. 853)

Ora, Turno se declara vencido (uicisti et uictum, XII, v. 936,


com notável ênfase; Turno é um dos uicti da epopéia) e sua súplica é
tão justificada que faz Enéias hesitar; mas a vista do boldrié, que re-
corda a notável superbia do rútulo e a necessidade de honrar o
compromissso com Evandro, impelem-no em outra direção. Portan-
to, intratextualmente a tensão entre duas atitudes possíveis: clemên-
cia ou punição; intertextualmente, a mesma dupla expectativa, pois
se a cena evoca Aquiles vingando em Heitor a morte de Pátroclo,
recorda também, nas palavras do rútulo, a súplica de Príamo que,
finalmente, conseguiu comover o antes inflexível Aquiles.
Temos apontado uma constante da Eneida: Virgílio coloca seu
protagonista em situações difíceis, delicadas e até polêmicas; justifica
o comportamento de seu herói (o que muitos críticos tendem a eludir
em sua leitura), mas resta o fato de que a Enéias não são poupados
esses momentos delicados e pouco confortáveis. Vimo-lo quebrando
a fides diante de Dido, por injunções do próprio Júpiter, velador dos
fados; assistimos a sua alternativa entre ceder ao instinto natural de
clemência ou, sacrificando o inimigo, cumprir a palavra empenhada
com Evandro – em obediência, pois, à mesma fides violada no episó-
dio da partida de Cartago! Um outro exemplo esclarecedor: Turno

– 359 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

mata Palante, em duelo desigual (uiribus imparibus, X, v. 459), um


jovem que atrai a simpatia do leitor por sua coragem e destino trági-
co; ora, Enéias mata Lauso, que tem as mesmas qualidades do árcade.
Mas, se Virgílio acena com o paralelo, não deixa de apontar as condi-
ções que justificam a atitude de Enéias: se Turno vai espontaneamen-
te ao encontro de Palante e expressa o desejo cruel de que o pai esti-
vesse ali para assistir à morte do filho (X, v. 443), Enéias só ameaça
Lauso ao se ver coberto por uma verdadeira chuva de dardos (sic
obrutus undique telis, X, v. 808) lançados pelos companheiros do jo-
vem; ainda assim, incita-o a não combater em um duelo que supera
suas forças (“Quo moriture ruis maioraque uiribus audes?”, X, v. 811:
“Para onde te precipitas, buscando a morte e ousando feitos maiores
que as tuas forças?”). Em suma, a atitude defensiva do troiano con-
trasta com a agressiva do rútulo. Além dessa diferença de comporta-
mento antes do confronto, a diversidade de atitudes depois; se Turno
calca o corpo com o pé esquerdo103 e arrebata-lhe o boldrié (X, v. 495-
497), Enéias, abalado emocionalmente com a morte de Lauso, de-
monstra profunda comiseração:

At uero ut uoltum uidit morientis et ora,


ora modis Anchisiades pallentia miris,
ingemuit miserans grauiter dextramque tetendit
et mentem patriae subiit pietatis imago:
“Quid tibi nunc, miserande puer, pro laudibus istis,
quid pius Aeneas tanta dabit indole dignum?
Arma, quibus laetatus, habe tua; teque parentum
manibus et cineri, si qua est ea cura, remitto.
Hoc tamen infelix miseram solabere mortem:
Aeneae magni dextra cadis”. Increpat ultro

103
Nitidamente simbólico, como observa Harrison In: VERGIL. Aeneid 10. With
Introduction, Translation, and Commentary by S. J. Harrison. Oxford, Clarendon Press,
1991, p. 197. Esse autor recorda que na Ilíada não é incomum ver o vitorioso calcar o
corpo do vencido; quanto a nós, observamos que Virgílio, com o ato em si, único na
Eneida, e com laeuo, que releva seu caráter ominoso, confere-lhe uma negatividade
evidente – só Turno é representado assim, e por seu tratamento “homérico” de Palante,
pagará caro...

– 360 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

cunctantis socios et terra subleuat ipsum


sanguine turpantem comptos de more capillos. (X, v. 821-832)

“Mas quando viu o semblante do que morria e seu rosto,


o rosto espantosamente pálido, o Anquisíades
gemeu,104 profundamente compadecido, e estendeu a destra,
e veio-lhe à mente a imagem da devoção paterna.
‘Que, agora, a ti, jovem digno de compaixão, por esse teu valor,
que dará o pio Enéias que possa ser digno de tão grande alma?
As armas que faziam tua alegria, conserva-as, são tuas; e dos teus ante-
passados
aos manes e à cinza te entrego, se é que tens, porventura, tal preocu-
pação.
Com isto, porém, ó infeliz, te consolarás da mísera morte:
à destra do grande Enéias tombas’. Toma a inicitativa de incitar
os companheiros hesitantes e da terra o ergue,
com o sangue desfigurando os cabelos bem penteados”.

Enéias ergue o corpo de Lauso, ao passo que Turno pisou o de


Palante – o simbolismo é evidente; em nível intertextual, se Turno se
comporta como guerreiro homérico, Enéias exibe uma das faces de
Aquiles que ficou apagada após a morte do árcade. De fato, se Enéias
em sua vingança se comportou como o feroz vingador de Pátroclo, ago-
ra, ao tratar com humanidade o corpo de Lauso, o troiano se comporta
como...o Aquiles humanizado que atende às súplicas de Príamo no epi-
sódio do resgate do corpo de Heitor ao velho rei. O paralelo é trazido à
tona por uma alusão importante, que está entre as poucas que a crítica
tem acrescentado à monumental relação das alusões homéricas que
Knauer apresenta em sua obra Die Aeneis und Homer;105 é Aquiles
quem coloca pessoalmente o corpo de Heitor sobre o leito fúnebre:

j lexe/wn e )pe/qhken a) ei/raj (Il. XXIV,


au\to/j to/n g ) Axileu\
)
v. 589)

104
Como depois da última entrevista com Dido: multa gemens (IV, v. 395): Enéias se
lamenta por causar dano a pessoas que não o mereciam.
105
FARRISON, S. J. Op. cit., p. 269.

– 361 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

“O próprio Aquiles, erguendo-o, depositou-o sobre o leito fúnebre”.

Aqui, o realce dado a au)to\j é significativo: chama a atenção


para a deferência de Aquiles.106 Ao que nos consta, nenhum estudioso
atentou para um detalhe do equivalente virgiliano: a presença de um
ipsum (literalmente: “o próprio”), fortemente em relevo, pois que em
fim de verso e após o verbo de que ele é regime. É claro que ipsum se
refere a Lauso, mas a coincidência não pode ser gratuita: é dessa forma
que Virgílio sutilmente acena ao leitor “informado” para o confronto
intertextual – ipsum evoca o pronome grego da passagem, ainda que
nela se refira a Aquiles. Ao longo de nossa pesquisa, acostumamo-nos a
tais sutilezas da estratégia intertextual de Virgílio, que aqui nos oferece
a imagem de um Enéias- Aquiles misericordioso após termos visto um
enfurecido e sanguinário Enéias – Aquiles vingador...
Notemos, porém, o patético traço final da cena: os cabelos do
jovem enfeiados pelo sangue – a beleza da juventude maculada pela
morte. É trágico que o jovem sucumba às mãos de Enéias; este, po-
rém, comporta-se dignamente, e por isso não é acusado de ter ultra-
passado a medida, ao contrário de Turno, que atrai, por seu excesso,
sua ub /( rij, punição vingadora (X, v. 501-505). Portanto, não se deve
pensar numa condenação de Enéias da parte do poeta, tanto mais que
vem à tona sua associação com a face mais branda de Aquiles; mas
não deixa de ser verdade que, novamente, Virgílio o põe numa situa-
ção delicada, matador de um jovem cuja virtus e pietas o comovem
profundamente.

106
Odorico, infelizmente, deixa passar a notação (para nós, a excessiva peocupação com
a concisão parece levar não raras vezes esse brilhante tradutor a tais lapsos; assim, na
leitura de sua tradução da Eneida, vemos com freqüência que sua versão empalidece
ao deixar de lado expressões do original que, sob a aparente banalidade, revestem-se de
simbolismo). Eis como traduz ele o verso homérico: “ (Lançam-lhe;) Achilles o ergue e
o põe num feretro”. Confrontando intertextualmente com sua tradução da Eneida:
aqui, ipsum se torna “o morto” – cremos que este é um exemplo da necessidade de o
tradutor utilizar em seu trabalho (que se torna, assim, mais laborioso ainda) parâmetros
intertextuais.

– 362 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Assim, se relevamos as motivações do gesto último de Enéias,


que liquida o jovem Turno, longe estamos de cair no outro extremo
de negar as sombras inquietantes de que o poeta reveste o fim de uma
epopéia nada triunfalista: dor e sacrifício não só permeiam a narrativa
do princípio ao fim como parecem atravessar toda a história de Roma,
segundo Virgílio, até que se realize essa espécie de fim da história que
é a volta dos séculos de ouro, com a paz de Augusto, vagamente pro-
fetizada. Se, para os troianos perseguidos pela ira de Juno, “tão grande
esforço exigia a fundação do povo romano”,107 o futuro da nova nação
seria maculado por guerras fratricidas e lutos ingentes, como o discur-
so de Anquises a Enéias revela: sintomaticamente, após a retumbante
revista dos futuros heróis de Roma e as solenes prescrições de Anquises
a seu filho e ao Romano em geral, espécie de fecho moralizante ao
que antes se narrara, segue-se o episódio do jovem Marcelo108, espe-
rança de sucessão de Augusto, morto jovem, porém, em 23 a.C. Ao
invés de pensar em verdadeiro acréscimo109 a um episódio já pronto,
isto é, em mera questão de composição mais tardia (o estado atual do
texto deixaria entrever o aspecto apositivo de um episódio que não se
integraria com perfeição ao restante, composto antes), preferimos ver
nesse passo, que, de fato, parece aposição ao que precede, um desta-

107
Tantae molis erat Romanam condere gentem, I, v. 33.
108
VI, v. 860-886; mas o bloco temático parece inicado antes, no verso 853, que exalta a
uirtus bélica de um outro Marcelo, ancestral do jovem sobrinho do imperador.
109
Defende esse ponto de vista Paratore (em seu comentário, vol. III, p. 359-360); mas
Norden, contra essa tese, como o próprio Paratore recorda, apontava, entre outros
argumentos, o fato de os encômios com freqüência terminarem pela morte de uma
personagem ilustre (Op. cit., p. 338); para ele, o episódio da revista dos heróis, planeja-
do tal como o temos, compreendia desde o início a morte de Marcelo (p. 339). Concor-
damos e lembramos que essa maneira de compor é virgiliana: longe de todo triunfalismo
vazio, trazer à tona a nota sombria que nos faz refletir sobre as misérias humanas (de
fato, o próprio Anquises, ao narrar as gestas gloriosas dos romanos, se referira às guerras
civis entre César e Pompeu, um exemplo pouco dignificante do ideal de paz prescrito
por Anquises como missão do Romano!). Por outro lado, o destaque dado ao ancestral
do jovem Marcelo é facilmente explicável não só pelos laços de parentesco entre os
dois como pelo efeito pretendido de contraste entre dois destinos tão diversos, apesar
das semelhanças iniciais.

– 363 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

que da carga de sofrimentos que a nação romana teria de carregar em


sua missão civilizadora – um dado totalmente em consonância com o
conjunto do poema. Que esse episódio sombrio venha precedido da
narração das gloriosas façanhas do outro Marcelo, eis de novo esta
faceta virgiliana tão presente em toda a epopéia: o efeito de contras-
te, que, aqui, acentua a tragicidade do destino do jovem Marcelo.
Mas os estudiosos têm relevado outras alusões de suma impor-
tância para a compreensão da cena final. Atentemos à ação de Turno:

Nec plura effatus saxum circumspicit ingens,


saxum antiquom ingens, campo quod forte iacebat
limes agro positus, litem ut discerneret aruis.
Vix illud lecti bis sex ceruice subirent,
qualia nunc hominum producit corpora tellus:
ille manu raptum trepida torquebat in hostem
altior insurgens et cursu concitus heros.
Sed neque currentem se nec cognoscit euntem
tollentemque manu saxumue immane mouentem;
genua labant, gelidus concreuit frigore sanguis. (XII, v. 896-905)

“Nada mais dizendo, avista uma pedra enorme,


pedra antiga, enorme, que jazia por acaso na planície,
limite imposto a campos para dirimir a disputa sobre terras.
Com dificuldade a ergueriam sobre os ombros doze corpos escolhidos
de homens quais a terra agora produz:
ele, arrebatando-a com mão trépida a brandia contra o inimigo,
o herói, mais alto se erguendo e incitado pela corrida.
Mas não se reconhece nem correndo, nem caminhando,
nem erguendo ou movendo, com as mãos, a pedra imensa;
Os joelhos vacilam, gélido o sangue se coagulou.”

Entre outras alusões homéricas,110 avulta a retomada de um


conhecido episódio homérico, em que Diomedes com uma enorme
pedra fere a...Enéias!:

110
Ver Knauer (Die Aeneis und Homer, p. 317 e ss.). Os versos 897-898, em especial,
evocam o episódio em que Atenas pega uma pedra para a lançar contra Ares na Ilíada,

– 364 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

o ( de\ xerma/dion la/be xeiri\


Tudei+dhj, me/ga e)r / gon, o(/ ou ) du/o g’ a)n/ dre fe/roien,
) ! o( de/ min r (e/a pa/lle kai\ oiÂoj. (Il. V, v. 302-304)
oiÂoi nu=n brotoi/ eis’

“Ele pegou com a mão uma pedra,


o Tidida, grande façanha, que não carregariam dois homens111
tais quais são agora os mortais. Mas ele facilmente a brandia, e
sozinho”.

XXI, v. 403-405. Para a análise do paralelo intertextual Turno-Diomedes, ver Lyne


(Further Voices, p. 132-139), a quem, em grande parte, seguimos.
111
Curiosa a substituição de dois por doze em Virgílio, que se costuma atribuir à tendência
para a hipérbole (para James Henry, um dos “monstruosos exageros” de Virgílio: apud
WEST, D. Op. cit., p. 18). De nossa parte, damos por certo que o poeta atribui, por
alusão, a Turno, façanha semelhante à de Diomedes e pensamos que talvez outra expli-
cação seja possível: do tempo da narrativa homérica ao tempo do poeta, séculos se passa-
ram e a humanidade teria prosseguido em seu caminho natural de decadência física;
assim, os dois homens que carregariam a pedra de Diomedes não seriam suficientes para
suportar a de Turno; desse modo, o poeta aderiria à concepção do enfraquecimento
progressivo da terra e dos homens...Sobre o esgotamento atual da terra e a maior força
dos homens primitivos, veja-se Lucrécio (De Rerum Natura, II, v. 1149 e ss.; IV, v. 923 e
ss., respectivamente); também Horácio faz uso desse topos, numa ode em que expressa
seu desgosto com as guerras civis, mas trata da degradação moral, não física:
Damnosa quid non inminuit dies?
Aetas parentum, peior auis, tulit
nos nequiores, mox daturos
progeniem uitisiorem. (Odes, III, 6, v. 45-48)

“O que, danoso, o tempo não degrada?


A geração de nossos pais, pior que a de nossos avós, deu à luz
a nós, mais vis ainda e logo geradores
de prole mais viciosa”.
Por fim, observemos que também Apolônio de Rodes utilizara o topos homérico, mas
duplicando-lhe a cifra; nas Argonáuticas, Jasão ergue uma pedra que quatro homens
robustos não conseguiriam levantar do solo um pouco que fosse (ou /) ke/ min a)n/ drej
/ ai )zhoi\ pi )surej gai /hj a)/ po tutqo\n a)/ eiran, III, v. 1366-1367). Mas aqui não é
clara senão em sentido intertextual a noção de que se trata de quatro homens contem-
porâneos; tal como está, o leitor comum (esquecido, por exemplo, do semideus Hércules,
que aparece, porém, na epopéia de Apolônio) pode pensar que também homens da
época de Jasão não conseguiriam alçar a pedra; ou seja, não é patente, como em Virgílio,
o contraste da época “presente” com a época heróica.

– 365 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Notemos, dentre outras reiterações, lexicais e sintáticas, que


a disjunção tão enfática ille..heros parece imitar o homérico o .( ..
Tudei/dhj. Turno, portanto, comparece aqui como um Diomedes
frustrado.112 Observemos a estratégia do poeta: para o leitor infor-
mado, que se recorda da Ilíada, cria-se a expectativa de um Enéias
ferido por Turno-Diomedes, uma repetição de episódio da guerra de
Tróia; novamente, criando extraordinário efeito de contraste, in-
vertem-se as coordenadas, já que o troiano não será atingido, e Tur-
no, como falso Diomedes, e falso Aquiles (e, por vezes, falso Hei-
tor!), fracassará. A figura de Enéias como que se resgata da imagem
da cena homérica: agora, secundado pelos deuses, vencerá. Por isso,
parece-nos muito relevante que Enéias, no livro primeiro, denomi-
ne Diomedes “o mais forte da raça dos Dânaos” (o Danaum fortissime
gentis, v. 96), ao passo que ele mesmo é chamado por Evandro, no
livro oitavo, de “o mais forte dos teucros” e “o mais forte chefe dos
teucros e dos ítalos” (fortissime Teucrum, v. 154; o Teucrum atque
Italum fortissime ductor, v. 513): na cena final da Eneida, ecoa o
combate iliádico entre esses dois mais bravos guerreiros rivais para
ressaltar a vitória final de Enéias sobre seu passado de troiano ven-

112
Já o vimos como um Heitor frustrado ao tentar incendiar os navios, paralelo salientado
pela alusão. Lyne mostra que no livro XII, o próprio Turno se apresenta como um novo
Diomedes, pois em sua resposta a Latino, que desejava impedir o duelo, o rútulo mos-
tra sua autoconfiança com palavras que evocam o duelo entre Enéias e Diomedes no
canto quinto da Ilíada:
longe illi dea mater erit, quae nube fugacem
feminea tegat et uanis sese occulat umbris. (XII, v. 52-53)
“Longe lhe estará a mãe, deusa, que ao fujão com nuvem
femínea cubra e se oculte ela mesma em sombras vãs.
Notemos o desprezo de Turno, revelado nos termos fugacem e feminea: o rútulo atri-
bui ao oponente um comportamento nada viril. Na Ilíada, narra-se que Enéias teria
morrido, atingido pela pedra que lhe lançara Diomedes, se Afrodite não o protegesse
dos dardos com seu manto e o retirasse da batalha (V, v. 311-318). Turno, pois, julga-
se na posição de um Diomedes a quem Enéias, finalmente, não escapará: esse dado
intertextual é importante para a interpretação da cena final, que volta a insistir no
paralelo (ver LYNE. Further Voices, p. 133-134).

– 366 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

cido pelos gregos.113 Assim, é significativo que na Eneida Diomedes,


não Aquiles, seja com freqüência evocado como representante
arquetípico do grego vencedor de Tróia; os embaixadores a ele envia-
dos pelos latinos chegam a lhe atribuir a queda da cidade:114

contigimusque manum qua concidit Ilia tellus. (XI, v. 245)

“E tocamos a mão pela qual sucumbiu a terra ilíaca.”

Em nível intratextual, há que se destacar uma retomada amiú-


de assinalada pelos estudiosos;115 Turno se aproxima da morte assim:

Ast illi soluontur frigore membra (XII, v. 951)

“Mas seus membros de frio desfalecem...”

Ora, no livro I, diante da morte que parece iminente (prasen-


temque uiris intentant omnia mortem, v. 91), Enéias se sente desfale-
cer:

Extemplo Aeneae soluontur frigore membra (v. 92)

“De repente, os membros de Enéias de frio desfalecem...”

O poema, portanto, termina numa espécie de Ringkomposition,


com Turno na condição de Enéias, tal como esse herói fora retratado
113
Analogamente, na prática dos psicólogos, a evocação de uma cena traumática, sob
certas condições, pode levar um paciente à superação de um trauma; mas o que são
lembranças individuais no paciente, na epopéia são reminiscências textuais, ecos tênu-
es, e como Virgílio não nos mostra seu protagonista depois da cena final, não podemos
levar muito adiante o paralelo. De resto, longe de nós colocar Enéias num divã e ceder
à fácil tentação de simplificada e anacronicamente aplicar às obras literárias da Anti-
güidade idéias que têm marcado fortemente a cultura moderna!
114
É bem verdade que Aquiles já estava morto quando Tróia finalmente sucumbiu, mas
foi esse guerreiro quem venceu o baluarte dos troianos, Heitor, precipitando a queda
da cidade; por isso, essa exaltação de Diomedes soa discutível.
115
Já Knauer (Die Aeneis und Homer, p. 320-321) ressaltou o paralelo.

– 367 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

ao leitor pela primeira vez na epopéia. Ferido pela lança de Enéias,


Turno tomba por terra de joelhos (duplicato poplite, v. 927), como o
Enéias ferido por Diomedes:

au)ta\r o(/ g ) h(/rwj


e)/sth gnu\c e)ripw\ n (Il. V, v. 308-309)

“Mas o herói
caiu de joelhos...”

Quando a Dira, em forma de ave, enviada por Júpiter, bate com


suas asas o escudo de Turno (XII, v. 866), o rútulo é presa de terror:

arrectaeque horrore comae et uox faucibus haesit. (XII, v. 868)

“Ergueram-se, de horror, os cabelos, e a voz prendeu-se na garganta”.

Turno, finalmente, reconhece que sua ação infringe os desígni-


os divinos, constituindo obstáculo aos fados de cuja remoção o pró-
prio Júpiter se encarrega, apressando-lhe o fim. Ora, frase semelhante
ou exatamente igual já fora aplicada a... Enéias por três vezes, em
contextos significativos. Na primeira ocorrência, Enéias se abala com
a aparição da sombra de Creúsa:

Obstipui, steteruntque comae et uox faucibus haesit. (II, v. 774)

“Fiquei estupefacto, os cabelos em pé, e a voz prendeu-se na garganta”.

Na segunda ocorrência, trata-se da reação de Enéias diante da


voz que sai do túmulo de Palinuro – e, aqui, repete-se o verso prece-
dentemente citado (III, v. 48= II, v. 774).116

116
A criticar as edições de Perret e Mynors, que, incoerentemente, põem vírgula após
obstipui somente no segundo passo. Nos textos de Paratore e Sabbadini, em ambos os
passos não se acrescenta a desnecessária pausa.

– 368 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Finalmente, no livro IV, diante da aparição de Mercúrio, que, a


mando de Júpiter, repreende e adverte o herói esquecido dos fados
em Cartago, Enéias se aterroriza, em reação representada com o mes-
mo verso que será aplicado a Turno (IV, v. 280 = XII, v. 868).
Devemos salientar que, em todos os três contextos, há um Enéias
que se abala diante da manifestação de fenômenos que chamam sua
atenção para atitudes contrárias aos destinos: o espectro de Creúsa
revela-lhe que nem os destinos nem Júpiter permitem que ela acom-
panhe o marido em exílio (II, v. 778-780); a voz do túmulo de Polidoro
adverte a Enéias que ele deve abandonar aquelas terras “cruéis”,
maculadas por ímpio crime (III, v. 41-45); Mercúrio incita o troiano a
partir de Cartago e a buscar a Itália, o reino que é devido a Ascânio
(IV, v. 265-276). Em todos os casos, contraria-se um desejo de Enéias:
respectivamente, sua vontade de levar consigo a esposa, de permane-
cer na Trácia, de ficar em Cartago – projetos que se chocam contra a
meta que o destino lhe assinalou.
Ora, a presença do eco textual desses três contextos, que sem-
pre tratam de Enéias e sua relação com os destinos, leva-nos a extrair
os efeitos da leitura intratextual: no final da narrativa, é Turno que se
confronta com a advertência divina, como Enéias o fizera antes e se
redimira, adequando-se aos desígnios celestes, renunciando a seus de-
sejos pessoais, o que Turno, até a cena final, parece incapaz de reali-
zar. Turno é, pois, representado, no último livro, como o Enéias
“na contramão” dos destinos, que vimos em momentos da primeira
metade do poema.117 Tragicamente, ao contrário do que ocorre
com o troiano, Turno se dá conta tarde demais da oposição de Jú-
piter, quando o castigo por suas atitudes ímpias se mostra ina-
diável.

117
No primeiro item deste capítulo, mencionamos um paralelo que está a merecer, como
dissemos, tratamento especial: no livro XII, é aplicado a Turno um verso que o associa
a Páris, mas esse verso fora, no primeiro livro, aplicado a Enéias, que parece ter algo de
Páris em sua estada em Cartago – novamente, o rútulo apresenta traços negativos que
Enéias possuía na primeira parte da epopéia e conseguira, com a ajuda divina, superar.

– 369 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Como Dido se assemelhava a Enéias118 e, “involuindo”,119 perdera-


se, Turno, comparável ao herói mas sem o favor dos deuses em sua luta
estéril contra os arcanos do destino, “involui” para o estado de um deses-
perado Enéias, que, este sim, curvando-se à missão divina, supera-se e
vence, vencendo-se.120 Nas queixas desesperadas do troiano aos deuses, o
herói expressara o desejo de morrer à mão de Diomedes:

o Danaum fortissime gentis


Tydide, mene Iliacis occumbere campis
non potuisse tuaque animam hanc effundere dextra (I, v. 96-98)

“ó mais forte dos Dânaos,


Tidida, não ter eu podido sucumbir nos campos ilíacos
e, pela tua destra, exalar esta minha alma!”

118
“Dido é, obviamente, um alter Aeneas”, diz, expressivamente, OTIS (Op. cit., p. 265);
mas teria sido melhor alius Aeneas...; o próprio estudioso não teme o paradoxo: “Enéias,
tão semelhante a Dido, é também muito diferente dela...” (p. 269).
119
Como diz Quinn de Enéias e da rainha: “He is an ascending character, Dido a descending
one” (Op. cit., p. 152). Se o livro IV narra, de fato, a queda fatal de Dido, cujo estatuto
“heróico” vai soçobrando ao longo do episódio, Turno não é apresentado ao leitor
antes da ação de Alecto, mas seus atos conservam, como não deixa de ser, no fundo, o
caso da cartaginesa, certo heroísmo que, equivocado nos fins e meios e em oposição ao
fatum, não provoca senão desnecessário sofrimento para si e os seus. Quanto a Enéias,
transcendendo-se, ao assumir o árduo fardo dos destinos de todo um povo, depura sua
ação das armadilhas das vicissitudes cotidianas; renunciando à paixão e à fúria bélica
sem sentido, funda um novo heroísmo. É, cremos, nessa direção que se deve encami-
nhar a discussão sobre uma suposta “evolução” do protagonista da Eneida, um dos
pontos polêmicos da crítica virgiliana; a análise da cena final parece-nos, junto com
outros argumentos, referendar a opinião dos que acreditam numa “evolução” ao longo
da epopéia, desde que não se confira ao termo uma densidade psicológica anacrônica.
120
Será mera coincidência que, ao fugir de Enéias, no livro XII, Turno é comparado a um
cervo acossado numa cena de caça (v. 749-755), à maneira de Dido, representada como
corça fugindo de um pastor que a persegue? Mais: no verso que traz a palavra ceruom
aparece o adjetivo puniceae (vermelha, a partir da idéia da púrpura fenícia), que evoca,
seja como for, Cartago. Faltam mais provas textuais; porém a surpreendente sutileza da
arte alusiva de Virgílio leva-nos a aventar a possibilidade de que neste símile condensado
o poeta evoque o símile do livro IV, associando o rútulo e a cartaginesa, ambos vítimas de
um Enéias “caçador” (no livro XII, uenator...canis, v. 751).

– 370 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Notemos Tydide em início de verso, separado por pausa , como


no contexto homérico (V, v. 303), em alusão discreta à luta que teria
sido o fim de Enéias, se Vênus não tivesse intervindo. Ao final da
epopéia, a sombra de Diomedes é evocada em Turno, para ser defini-
tivamente afastada com a vitória final de Enéias. Se, na Ilíada, Vênus
livra o troiano da morte que parecia certa, na Eneida nenhuma divin-
dade comparece para salvar o rútulo, um herói condenado desde o
momento em que se colocou no caminho não só de Enéias mas dos
destinos por que este vela. Enéias, no desespero da primeira cena em
que o poeta o apresenta na epopéia, lamenta não ter sucumbido pela
destra de Diomedes; na última aparição de Turno, o leitor verá o
rútulo tombando pela destra de Enéias-Diomedes.
Curiosos efeitos intertextuais reforçam a leitura de um Turno
que carrega, como Dido, algo do heroísmo de Enéias; entretanto,
ambos os antagonistas do troiano (pois nessa posição os colocam os
deuses) naufragam em seu papel heróico, vencidos por suas limita-
ções pessoais e seu furor incontrolável, que os tornam obstáculos ao
cumprimento dos destinos. Turno é apresentado, por vezes, como vi-
mos, na posição do “primeiro” Enéias, isto é, do Enéias que ainda
trilha o caminho da auto-superação. É patente, como revela a fre-
qüência com que a crítica o tem observado, que no livro II Enéias é
retratado como homem presa de inclinações no mínimo discutíveis
do ponto de vista do heroísmo exaltado pela epopéia virgiliana:
insciente de sua missão e tomado pelo sentimento de desespero, só
pensa em vingar-se na medida do possível e morrer às mãos dos inimi-
gos; desconhece a ação dos deuses na queda da cidade (é Vênus quem
tem de alertá-lo a esse respeito) e esquece-se da mensagem do espec-
tro de Heitor em seus sonhos. De fato, é como se o herói fosse sucum-
bir junto com a cidade, nada opondo de concreto como resistência
eficaz à ação destruidora dos gregos. Desse livro II ao livro VII, após o
abandono do desejo de morrer em Tróia e com o assumir das tarefas
de chefe de um povo em exílio, após a superação das provações de
Cartago e a revelação dos destinos através de seu pai, Enéias certa-

– 371 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

mente evoluiu; assim, é significativo que, na primeira cena em que


aparece Turno, seu antagonista da segunda parte da epopéia, este
seja retratado em ato que recorda o primeiro Enéias, tomado de con-
denável fúria bélica:

Arma amens fremit, arma toro tectisque requirit (VII, v. 460)

“Por armas freme, enlouquecido, armas no leito e na casa procura...”

Note-se a repetição de arma; temos a impressão de ouvir os


gritos exaltados a acompanhar os gestos frenéticos do rútulo. Ora, a
primeira reação de Enéias diante do quadro de uma Tróia conflagra-
da é pegar em armas, algo que o próprio protagonista comenta como
loucura, julgando-se a si mesmo ao contar o episódio diante de Dido:

arma amens capio (II, v. 314)

“Armas, enlouquecido, pego...”

Sua razão, já recuperada no momento em que o episódio é nar-


rado à rainha (como mostra esse distanciamento crítico de autojulga-
mento), censura um ato tresloucado, ao passo que o próprio narrador
qualifica como loucura a ação de Turno, que não passa jamais pelo
crivo da razão seus sentimentos impulsivos e é incapaz de julgar-se
com ponderação. Ao contrário de Enéias, Turno jamais analisa sua
fúria guerreira como algo negativo: sob tal aspecto, é durante toda a
segunda parte da epopéia um Enéias em seu estado mais rude, ainda
mais inconsciente, equivocado quanto aos arcanos dos destinos e presa
de incontrolável furor.
Também a situação em que são expressos os versos citados tem
certo paralelismo: a reação de Enéias surge-lhe ao ver Tróia em cha-
mas, e depois do sonho em que aparecera Heitor a lhe contar a situa-
ção da cidade e a fazer prescrições; a de Turno, após a ação de Alecto,
que em sonho lhe dera sua versão do estado de coisas no Lácio e fizera
prescrições.

– 372 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

No mesmo livro II, Enéias profere frase exclamativa que lembra


a de Turno, pela repetição enfática de arma:

Arma, uiri, ferte arma (II, v. 668)

“Armas, homens, trazei armas”.

Nesse segundo canto, Enéias é apresentado com traços que,


superados pelo protagonista, farão parte, porém, da caracterização de
Turno até o último livro: tomado pelo furor insensato, levado pelo
ódio e agindo de início contra os arcanos dos destinos ao resistir aos
gregos e não cumprir a prescrição do espectro de Heitor, Enéias pare-
ce tão fadado a uma ação ineficaz, porque de encontro ao plano divi-
no, quanto seu antagonista da segunda parte da epopéia. O furor con-
denável de Enéias nesse segundo livro é explicitado por várias vezes,
em repetição lexical significativa:

furor iraque mentem


praecipitant (II, v. 316-317)

“Furor e ira minha resolução


precipitam...”

A própria Vênus repreenderá esse furor: quid furis? (v. 595).


Outros exemplos:

Quaerenti et tectis urbis sine fine furenti (v. 771)

Talia iactabam et furiata mente ferebar (II, v. 588)

“Tais pensamentos revolvia e, pelo furor de minha mente, deixava-me


levar...”

O último verso merece destaque: furiata/ferebar; a nosso ver, o


poeta aproxima as duas noções (furor/deixar-se levar, precipitar-se
irrefletidamente) através da semelhança de sons entre as duas raízes,

– 373 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

talvez vendo nelas uma relação etimológica, como não é incomum


em sua obra. Assim, é notável que, no livro II, que traz um retrato da
fúria cega de Enéias, as ações do herói caracterizam-se pelo precipi-
tar-se irrefletido, com o verbo fero aparecendo mais de uma vez, na
forma médio-passiva ou com o pronome reflexivo; já citamos uma
ocorrência; acrescentemos:

in flammas et in arma feror (II, v. 337)

“Às chamas e às armas me lanço...”

Rursus in arma feror mortemque miserrimus opto. (v. 655)

“De novo às armas me lanço e a morte, misérrimo, desejo”.

meque extra tecta ferebam (v. 672)

“e para fora da casa me lançava”.

No livro XII em especial, os movimentos de Turno são quase


invariavelmente precipitados:

Haec ubi dicta dedit rapidusque in tecta recessit (XII, v. 81)

“Tendo dito isto, rápido voltou para sua morada...”

poscit equos atque arma simul saltuque superbus


emicat in currum et manibus molitur habenas.
Multa uirum uolitans dat fortia corpora leto (XII, v. 326-328)

“Pede cavalos e, ao mesmo tempo, armas e com um salto, soberbo,


pula para o carro e nas mãos maneja as rédeas.
Voando, muitos corpos fortes de varões entrega à morte”.

fert impetus ipsum (XII, v. 369)

“Move-o seu ímpeto...”

– 374 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Impetus fert ipsum: como Enéias em parte do segundo livro,


Turno é movido não pela razão, mas por um movimento impetuoso
da alma. No entanto, não simplifiquemos excessivamente: também
nos últimos momentos da epopéia a Enéias se atribui um ímpeto se-
melhante ao de Turno, mas secundado pelos deuses e pelo desígnio
de estabelecer a desejada paz. Para o paralelismo, dentre tantos indí-
cios textuais, destaquemos sese extulit, verbo composto de ferre, no
verso 441, momento em que Enéias retorna ao combate; uolat, no
verso 450, ecoando o uolitans atribuído a Turno; non segnius ambo/
Aeneas Turnusque ruont per proelia, versos 525-526 (“não menos
ativos, ambos,/ Enéias e Turno se precipitam através dos combates”).
Mas o caráter negativo da impetuosidade do rútulo é realçado; em
sua precipitação, Turno, ao invés da espada divina de seu pai, pegara
a arma comum de seu auriga Metisco, um terrível descuido que mos-
tra toda a fragilidade guerreira do rútulo:

Fama est praecipitem, cum prima in proelia iunctos


conscendebat equos, patrio mucrone relicto,
dum trepidat, ferrum aurigae rapuisse Metisci (XII, v. 735-737)

“É fama que, em sua precipitação, quando para os primeiros combates


montava nos cavalos atrelados, deixando a lâmina paterna,
enquanto se apressava, arrebatara a espada do auriga Metisco”.

Observemos praecipitem, trepidat, rapuisse: em seu arrebata-


mento, Turno se ajuda a caminhar para a derrota diante de Enéias,
que empunha armas divinas.
No livro IX, Turno, fervilhando de ódio em sua tentativa de
atacar o acampamento troiano, é comparado a um lobo faminto e
furioso121 diante da presa que lhe escapa:

121
Curiosamente, a imagem do lobo entre os antigos continha traços característicos de
Turno; de fato, segundo o Tratado de Fisiognomonia, “O lobo é um animal rapace,
iracundo, insidioso, audacioso, violento” (Lupus animal est rapax, iracundum,
insidiosum, audax, uiolentum, 126): notemos, sobretudo, audax e uiolentum, qualida-
des que Virgílio associa constantemente ao rútulo. Homens que têrm características

– 375 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Ac ueluti pleno lupus insidiatus ouili


cum fremit ad caulas uentos perpessus et imbris
nocte super media; tuti sub matribus agni
balatum exercent, ille asper et improbus ira
saeuit in absentis, collecta fatigat edendi
ex longo rabies et siccae sanguine fauces (IX, v. 59-64)
“E como um lobo, insidiando um redil repleto,
freme junto ao cercado, ventos suportando e chuvas
até depois da meia-noite; seguros sob as mães, os cordeiros
balem; ele, feroz e exasperado pela ira,
acomete contra os ausentes; insatisfeita há longo tempo, acossa-o
fome enraivecedora e fauces sedentas de sangue...”

Ora, no livro II, quando se retrata a resistência de Enéias e com-


panheiros ao ataque grego, o grupo de que faz parte o herói é compa-
rado ao mesmo animal:

Inde, lupi ceu


raptores atra in nebula, quos improba uentris
exegit caecos rabies catulique relicti
faucibus exspectant siccis, per tela, per hostis
uadimus (II, v. 355-359)

“Então, como lobos


predadores em meio a negra névoa, aos quais a ímproba raiva de seu
ventre

físicas do lobo têm, segundo o tratado, um perfil psicológico espantosamente seme-


lhante ao de Turno: “Homens assim são espertos, ímpios, alegrando-se com sangue,
inclinados à ira, de caráter tão vicioso que não aceitam o que lhes é dado ou ofertado
(lembremos das propostas conciliadoras de Latino a Turno, no conselho de seus alia-
dos, repelidas pelo rútulo), o que não lhes é dado, tomam à força (Huiusmodi homines
callidi, impii, gaudentes sanguine, ad iracundia faciles, moribus praui usque adeo sunt
ut quod datur uel offertur non accipiant, quod non datur rapiant, 126). O retrato se
ajusta, em grande parte, a Turno, com a exceção da característica callidi: falhando no
ataque ao acampamento troiano por puro desejo de matança (IX, v. 757-761), aban-
donando no meio uma emboscada a Enéias pouco antes de o troiano aparecer (XI, v.
901-905), esquecendo sua espada divina na precipitação da ida para o combate (XII, v.
735-737), Turno não parece nada esperto: seu ímpeto arrebatado e sua inclinação para
o furor guerreiro o impedem de agir ponderadamente. Todavia, vejam-se, mais além,
nossas considerações sobre certa pietas de Turno.

– 376 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

impeliu para fora, cegos, e seus filhotes, abandonados,


esperam com as fauces secas, pelos dardos, pelos inimigos,
vamos...”

Notemos a retomada lexical: rabies (edendi/uentri); improbus/


improba; siccae fauces/faucibus siccis.122
Na encarniçada e vã tentativa de responder ao ataque grego,
Enéias dirige-se aos jovens agrupados em torno a si e lhes infunde o
furor guerreiro (Sic animis iuuenum furor additus, II, v. 355: “Assim
se incitou no ânimo dos jovens o furor...”) – essa fúria vã que será a
marca maior de Turno... Parece-nos significativo que, novamente,
Enéias se mostre, no livro II, na narrativa de seus esforços vãos (por-
que contra o curso dos fata), sob uma roupagem que depois comporá
a caracterização de Turno, como se o rútulo encarnasse obstinada-

122
Notemos, porém, algumas diferenças no confronto: os troianos desesperados do livro II
são lobos a quem a necessidade de alimentar a si e aos seus filhotes impele ao inimigo;
no segundo símile, que retrata a tentativa de Turno de entrar no acampamento, há
referência a filhotes, mas esses são cordeiros ameaçados pelo lobo (no contexto, os
troianos a quem Turno insidia). Ora, podemos dizer que a presença dos filhotes famin-
tos no primeiro caso atenua, porque justifica com um instinto paternal (alimentar a
cria há muito tempo faminta) a atitude feroz do animal, seu comportamento agressivo;
no segundo, a presença da prole, balindo e sob o abrigo das mães, entre os que o lobo
acossa, ajuda a criar a imagem negativa do animal. Além disso, no segundo símile, é a
fome terrível do próprio lobo que é realçada, ao passo que no primeiro ganha vulto a de
seus filhotes (faucibus siccis/siccae fauces: será gratuita essa inversão?: não ousamos
afirmá-lo sem reservas, mas, em face da sutileza alusiva de Virgílio, comprovada a cada
nova leitura intertextual, julgamos provável que aqui o poeta “sinalize” o efeito preten-
dido com a associação dos símiles!), como se o poeta insinuasse, sutilmente, a partir do
confronto, que Turno, ao contrário dos troianos, age só por conta própria, para satisfa-
zer a seu próprio furor egoísta... Virgílio, de novo, associa símiles operando, porém,
sutis modificações de “inversão”; aqui, conferindo aos troianos do livro II uma luz mais
positiva que a lançada sobre Turno... Seja como for, o paralelo continua: Turno é posto
numa situação de ódio agressivo como aquela em que se encontraram Enéias e seus
companheiros de resistência; no caso dos troianos, em defesa desesperançada de sua
cidade; no caso do rútulo, em ataque autoconfiante aos defensores do acampamento.
Discordamos, pois, de Paratore, que não vê outro ponto de contacto entre os símiles
que não “o genérico rabies...e a imagem das siccae fauces” (em seu comentário, vol. V,
p. 142).

– 377 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

mente aspectos discutíveis da personagem de Enéias – aqui, uma fúria


inútil e contra os destinos – que este, herói de outro quilate, destina-
do a fins superiores aos meramente guerreiros, já superara então.
Tecemos uma comparação entre o Enéias do livro II e o Turno
do livro XII, paralelo ao qual logo voltaremos; se apontamos como o
troiano naquele momento de desespero, durante o saque de Tróia,
apresenta comportamentos condenáveis que depois veremos no rútu-
lo, somos levados a criticar esta afirmação de Lyne sobre Enéias no
livro II:

“A maior parte do livro mostra que Enéias pode esquecer tudo – dever
para com o destino, o apelo de sua família – quando presa de grande
paixão”.123

Nossa crítica: Lyne identifica aqui uma further voice sob a voz
épica de superfície, que condenaria Enéias mostrando-nos uma faceta
negativa de sua personalidade; ora, é evidente a condenação, mas
não de Enéias como personagem global, e sim do Enéias sem rumo do
contexto desse livro II:124 desobediente às recomendações de Heitor e
incapaz de perceber que, ao tentar defender a cidade em chamas, age
inutilmente contra os desígnios celestes por trás da ruína de Tróia e
contra seu próprio destino, que lhe reserva a tarefa de transportar
para a Itália os deuses derrotados e as sementes de uma civilização por
surgir.
Outro paralelo entre Enéias e Turno não tem sido, ao que nos
consta, observado. Dido acusa seguidamente o troiano de quebrar a
palavra empenhada (perfide, IV, v. 305 e 366), sacramentada pela
união das destras:

123
Further Voices, p. 185.
124
O livro de Lyne, por nós tantas vezes citado, repleto de análises instigantes, peca por
vezes pela não consideração de elementos textuais na operação de encontrar further
voices por todo o poema; sua interpretação do papel de Enéias na cena final nos pare-
ce, sobretudo, exibir essa deficiência.

– 378 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

nec te data dextera quondam ...(tenet)? (IV, v. 307)

“nem te retém a destra um dia estendida?”

Dido desce a súplicas invocando, dentre outros penhores, a des-


tra do herói:

Per ego has lacrimas dextramque tuam te (IV, v. 314)

“Eu, por estas lágrimas e a tua destra a ti (suplico)...”

A “fuga” de Enéias parece à rainha uma demonstração de que a


boa-fé é violada em toda parte:

nusquam tuta fides. (IV, v. 373)

“Em lugar algum a boa-fé está segura”.125

Com razão,126 Dido acusa Enéias de ter quebrado a palavra em-


penhada, santificada pela união das destras. Ora, a rainha Amata acu-
sará Latino de ter quebrado a palavra empenhada com Turno, esque-
cendo-se da destra estendida para o rútulo:

125
Infeliz, aqui, a tradução de Perret: “nulle part il n’est d’appui sûr”: perde-se a noção de
fides, tão importante no livro IV.
126
Virgílio não retrata em nenhuma cena um compromisso explícito de Enéias para com
Dido, mas é claro que havia entre os dois laços de “hospitalidade”, de notável impor-
tância para os Antigos. Somos levados, assim, a pensar na possibilidade de que o herói,
de fato, impulsionado por um decreto mais alto, tem de quebrar certas normas de
conduta (ele, o herói da pietas!) em sua verdadeira “fuga” de Cartago. No caso de
Dido, vimos no terceiro capítulo que a alusão a Catulo revela que Dido-Ariadne real-
mente foi traída na boa-fé por Enéias-Teseu; mesmo não invocando aspectos inter-
textuais, o fato de ter sido atendida a prece da rainha aos deuses, que clamava por
vingança justa contra Enéias, revela que o troiano infringiu mesmo compromissos hu-
manos sacramentados pelos deuses. (Teria violado um pacto de união amorosa? Veja-
se a nota seguinte.) Mas Virgílio deixa ao leitor atento a tarefa de tirar essas conclu-
sões, com sua discrição notável a respeito da “culpa” relativa de Enéias (ao passo que a
culpa de Dido é enunciada pelo próprio narrador, IV, v. 172!).

– 379 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Quid tua sancta fides? quid cura antiqua tuorum


et consanguineo totiens data dextera Turno? (VII, v. 365-366)

“E tua santa palavra? E a velha atenção para com os teus


e a destra estendida tantas vezes ao parente Turnxo?”

Em ambos os casos, invoca-se uma quebra da palavra empe-


nhada, ritualizada pelo estreitar das destras; em ambos os casos, a
cena que explicitaria a aliança não é mostrada ao leitor; curiosamen-
te, trata-se de ter de renunciar a um suposto127 compromisso conjugal
(Enéias a Dido; Turno a Lavínia) por injunções de um poder maior, o
dos destinos. O desfecho dos episódios constitui uma demonstração
do capacidade dos dois heróis em aceitar uma renúncia que o plano
divino exige dos mortais: Enéias obedientemente cede a seu desejo de
ficar em Cartago ao lado da rainha; Turno só renuncia a Lavínia tar-
de demais.

127
Enéias, em seca resposta a acusações de Dido, garante que nunca pretendeu assumir
um compromisso matrimonial: nec coniugis umquam/ praetendi taedas aut haec in
foedera ueni (“E jamais pretendi/ tochas nupciais nem vim para tal compromisso..., IV,
v. 338-339).” De fato, na cena da gruta, onde ocorre uma espécie de encenação defor-
mada de núpcias reais, o próprio poeta parece advertir que Dido injustificadamente
julga aquela união como legítima: nec iam furtiuom Dido meditatur amorem:/ coniugium
uocat, hoc praetexit nomine culpam (“e Dido já não pensa num amor furtivo;/ casa-
mento ela o chama, com este nome dissimulou sua culpa”, IV, v. 171-172). Mas a
alusão constante ao episódio de Ariadne e Teseu, que Catulo contrapõe às felizes bo-
das de Tétis e Peleu, faz pensar: de algum modo, um compromisso amoroso parece ter
sido violado – mas o poeta não explicita esse dado pouco dignificante para seu herói.
Similarmente, os laços entre Latino e Turno não são explicitados: apesar do que diz a
rainha, o poeta não retratou, em ponto algum da narrativa, Latino assumindo um
compromisso com Turno, em momento anterior à chegada dos troianos, para dar-lhe a
mão da filha em casamento. Na verdade o poeta relata que Turno era um dos muitos
pretendentes de Lavínia, favorecido pela rainha Amata (VII, v. 54-57), mas os prodígi-
os divinos a tal obstavam (sed uariis portenta deum terroribus obstant, VII, v. 58). Por
outro lado, o oráculo de Fauno adverte o rei: (natam) thalamis neu crede paratis, VII,
v. 97; literalmente: “não confies tua filha aos tálamos preparados”, uma expressão algo
obscura, graças à imprecisão do particípio paratis, mas que pode nos fazer pensar numa
união de alguma forma prevista (com que grau de formalização e engajamento?) entre
Turno e Lavínia.

– 380 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Na cena final, ressalta-se outra semelhança entre os dois rivais:


a preocupação piedosa com o velho pai; Turno implora a Enéias que
entregue a si ou a seu corpo aos seus, invocando a figura patética do
genitor:

Miseri te si qua parentis


tangere cura potest, oro (fuit et tibi talis
Anchises genitor), Dauni miserere senectae
et me seu corpus spoliatum lumine mauis
redde meis. (XII, v. 932-935)

“Se, de algum modo, te pode tocar


a preocupação com um pobre pai, rogo (também tinhas tal
genitor, Anquises), compadece-te da velhice de Dauno
e a mim ou, se preferes, a um corpo privado de luz
entrega aos meus”.

Turno, como Dido antes da “queda”, cultua a pietas familiar à


semelhança de Enéias,128 e esse conteúdo de sua súplica deveria tocar
um aspecto sensível do espírito de seu rival, que, porém, em obediên-
cia aos ditames da fides, sofreia a hesitação inicial e sacrifica o rútu-
lo.129 Logicamente, a presença de tantas semelhanças entre Turno e

128
Não acreditamos que se possa ver na súplica de Turno apenas uma peça retórica para
comover Enéias pelo seu lado mais sensível, o da pietas; porém, mesmo que suas palavras
sejam interpretadas de modo negativo, resta o paralelo: o rútulo tem um velho pai, como
o troiano na primeira metade da epopéia. O próprio Turno explicita o ponto de contacto:
fuit et tibi talis/ Anchises genitor, XII, v. 933-934). Quanto à devoção religiosa, marca
maior de Enéias, há dados textuais a opor a quem tece de Turno um retrato totalmente
negativo; em cena do duelo final com Enéias, suplica a Fauno e à Terra que retenham a
lança do troiano, que se fixara num tronco consagrado ao primeiro deus; pede-lhes o
benefício em nome de sua devoção para com eles: colui uestros si semper honores (“se
sempre honrei vosso culto”, XII, v. 778). Ora, essa súplica é atentida, o que atesta a
veracidade dessa afirmação de escrúpulo religioso! O rútulo encontra, pois, por sua devo-
ção, respaldo nos deuses de sua terra; no campo religioso, seu erro, tragicamente letal, é
colocar-se contra os desígnios do Fatum e quem os representa entre os homens.
129
Barchiesi (La Traccia del Modello, p. 106 e ss) analisa com brilho as alusões, nesta cena
final da epopéia, ao episódio final da Ilíada, que mostra outra face de Aquiles, a clemên-

– 381 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Enéias realça as diferenças entre os dois protagonistas da “Ilíada”


virgiliana: se o troiano é caracterizado, ao longo da epopéia, como
exemplo de homem “pio”, o rútulo, zombando dos presságios e adver-
tências divinas, conforme vimos, insistindo em himeneus vetados pe-
los destinos, torna-se ímpio em sua relação com o plano divino e,
assim, condena-se ao fracasso. Virgílio contrasta a ação de Enéias,
exercida na direção dos fata, à do jovem Turno, que, na sua irreflexão
e excessiva autoconfiança, opõe ao cumprimento dos desígnios celes-
tes uma ação inútil e fonte de sofrimento desnecessário para seu povo.
Ambos os heróis são filhos de deusas – e aqui voltamos ao tema
do primeiro item deste capítulo; como a Sibila anuncia, o novo Aquiles
é também filho de uma deusa (natus et ipse dea, VI, v. 90), se bem
que, a nosso ver, já o dissemos, ainda aqui a expressão da sacerdotisa
é ambígua, podendo ser compreendida de duas formas:
1. O outro Aquiles é filho de uma deusa como o primeiro herói;
pode ser Enéias, filho de Vênus,130 ou Turno, que é filho de Venília,
chamada diua mater por Juno (X, v. 76);131

cia, pois, como se sabe, o grego permite ao velho Príamo, cuja súplica ecoa nas palavras
de Turno, o resgate do corpo de Heitor. Portanto, nos últimos momentos da Eneida,
paira sobre a figura de Enéias a evocação simultânea de Aquiles vingador e Aquiles
misericordioso, num acréscimo de tensão para o leitor intertextual.
130
Denominado, nos livros anteriores, nate dea em I, v. 615; II, v. 289; III, v. 311 e 374;
IV, v. 560; V, v. 383, 474 e 709.
131
A rainha dos deuses defende Turno, em resposta a um discurso de Vênus; no contexto,
é, pois, significativo que Juno mencione a mãe divina do rútulo, como que em resposta
ao fato de Enéias ser o filho da sua rival; sob tal aspecto, parece insinuar, os dois têm os
mesmos direitos. Poder-se-ia argüir que Venília é propriamente uma ninfa, ao contrá-
rio de Vênus, verdadeira dea, mas em tal caso responderíamos que a prova de que
também se pode dizê-la “deusa” está na própria Eneida: Juno chama a irmã de Turno
“ninfa” (XII, v. 142), logo depois de o narrador chamá-la “deusa” (Extemplo Turni sic
est adfata sororem/ diua deam, v. 138-139: “Logo assim dirige a palavra à irmã de
Turno, a divina à deusa...”). Nota-se também a equivalência diua (aqui, Juno) e dea
(aqui, a ninfa Juturna). Em XII, v. 785, o próprio narrador a chama dea. Resumindo:
também a Turno se poderia aplicar o natus dea proferido pela Sibila, cujas profecias são
de fato ambíguas.

– 382 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

2. O outro Aquiles, um Aquiles perdedor, como perseguidor


(frustrado) dos troianos, é Turno.132
Para nós, Virgílio, como dissemos, joga com a expectativa in-
tertextual do leitor: quem reencarnará, de fato, o herói grego? Apa-
rentemente, Turno – ilusão dissipada com o último episódio da Eneida;
Enéias, porém, avulta, aqui, como um diverso Aquiles.
Como vemos, o princípio estético da Ringkomposition, freqüente
na poesia de fatura helenística, mas detectado por alguns estudiosos
até mesmo na Ilíada, na Eneida se reveste de simbolismo: é uma elo-
qüente demonstração do nível heróico a que se alçou o protagonista,
superando-se, bem como dos equívocos de um Turno desastradamente
desafiador dos destinos. Turno, por um breve mas luminoso momen-
to, é retratado como o Enéias desesperado do primeiro livro; Enéias,
como Aquiles vingador ou um triunfante Diomedes, o inimigo que
outrora o ferira num momento em que tudo conspirava contra a sua
Tróia. A “estória” que a epopéia virgiliana conta incorpora a narrati-
va homérica, retomando-a para a superar, como Roma, mais que Pér-
gamo rediviva, haveria de se pretender Tróia bem diversa, purificada
pela virtus dos latinos e secundada pelos deuses em sua missão civili-
zadora querida pelo destino. Virgílio, intra- e intertextualmente, con-
fere a seu texto uma riqueza de extratos semânticos inimaginável para
o leitor desinformado ou desatento e para o crítico incapaz de ver
quão equivocada a pecha de “imitador” sem viço de Homero, a nosso
poeta aplicada tão levianamente, tão freqüentemente, desde a Anti-
güidade; erro semelhante a evitar, todo cuidado é pouco antes de

132
Em Virgílio, como vimos, Turno é filho de uma ninfa, em perturbador paralelo com o
Aquiles da Ilíada, filho da ninfa Tétis! Além disso, a semelhança fônica Vênus-Venília
aproxima ainda mais os dois heróis semidivinos e os distingue, pois, como nota Robert
Schilling, “ainda que Juno finja acreditar em sua equivalência, a pálida Venília não
atinge por certo a estatura da aurea Vênus” (Enciclopedia Virgiliana, vol. V*, verbete
Venilia, p. 487). Na ação da Eneida, entretanto, Venília não desempenha papel algum;
o equivalente de Tétis será, como se sabe, Juturna, a irmã de Turno, uma outra...ninfa.
Enéias está melhor assistido...

– 383 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

atribuir apressadamente repetições de versos ou palavras a um estado


embrionário da composição de uma obra inacabada. Análises inter-
textuais (englobando todas as subespécies que aqui distinguimos) são
decisivas para redimir o poeta de tamanhas incompreensões.

– 384 –
CONCLUSÃO

Viemos, ao longo destas páginas, procedendo a leituras eminen-


temente intertextuais da Eneida. Cremos ter demonstrado com nossas
análises a sutileza e a riqueza dos processos alusivos dessa epopéia, que
a tornam polissêmica num sentido muitas vezes ignorado pelo leitor
comum. A nosso ver, trata-se de exemplo único, na literatura ociden-
tal, de exploração das possibilidades do jogo alusivo. Se temos com não
desprezível freqüência saborosas paródias que mantêm com seus mode-
los realção contínua de “distorção”, se temos intertextualidade com-
plexa, como no Ulisses de Joyce, para citar outro exemplo de explora-
ção intertextual sutil, não nos parece que haja obra mais intensamente
comprometida com o jogo alusivo do que a Eneida, nenhuma tão in-
tensamente polifônica na geração de sentido a partir do confronto en-
tre textos. Virgílio parece-nos ter sido um pioneiro, arriscando-se a pro-
vocar mal-entendidos que, de fato, ocorreram amiúde. E se ninguém
chamaria de plagiador a Joyce, a fortuna crítica do poeta romano, po-
rém, foi alvo de acusações descabidas suscitadas por sua técnica alusi-
va; para alguns, Virgílio teria sido mero plagiador ou poeta artificial
diante da “espontaneidade” e da genial criatividade de Homero.
É aquisição recente dos estudos sobre Virgílio que seu método
de composição, evidente sobretudo na Eneida, consiste também na
integração de outros textos, do próprio Virgílio, inclusive. Com nosso
estudo, esperamos ter revelado como essa técnica alusiva é fina,
enriquecedora, mas sutil a ponto de a epopéia possibilitar graus de
aproximação intertextual, da leitura mínima (pois que sem um certo
cabedal de infromações intertextuais o leitor não compreenderá par-
te da obra) e pobremente alusiva à (no outro extremo) “ideal” – e
para nós impossível – que levasse em conta todo o repertório de tex-
tos evocados e incorporados na obra. Cabe aos estudiosos, encami-
nhando-se sempre para o mais perto possível do segundo alvo, conti-
nuar a escavar na epopéia as alusões sutis e trazer à luz os significados
só revelados pelo confronto com a massa variada de outros textos
Paulo Sérgio de Vasconcellos

integrados. A nosso ver, ainda há enorme trabalho pela frente, já que,


apesar da quantidade ingente de ensaios sobre a Eneida, muito resta a
descobrir e analisar. Atenção semelhante precisa ser dirigida à obra
de poetas como Ovídio, que se comprazem na alusão que se dá, por
vezes, através de citação.
Por outro lado, vimos que, além da alusão a textos de outros
escritores, Virgílio extrai sentido da repetição lexical no corpo da pró-
pria Eneida; seu estilo “formular” serve também, com freqüência, à
significação. Quem condenava Virgílio por sua imitação de Homero
não compreendia que essa era apenas uma faceta de um processo de
composição complexo e criativo, essencialmemente “intertextual”.
Assim, sem que ninguém deva pensar em pobreza de meios expressi-
vos, também a citação de si mesmo e a associação intratextual estão
intensamente presentes em sua epopéia suscitando efeitos de leitura.
Virgílio, portanto, demonstra, na sua arte intertextual, que é
sempre um recurso possível para qualquer escritor, aquela caracterís-
tica que, a nosso ver, é apanágio do grande “poeta”, o criador de for-
mas e sentidos: extrair significado máximo de todos os recursos mate-
riais à disposição. Como poeta absolutamente engajado em seu ofício,
Virgílio é mestre em revestir de conotações os sons, o ritmo das quan-
tidades e da tonicidade, a sintaxe (explorando, por exemplo, a parataxe
do registro épico, sabiamente ordenando as palavras em hábil utiliza-
ção da relativa liberdade latina em sua colocação, “semantizando”
anacolutos e enjambements). Se um pouco de subjetividade nos é
aqui permitido, gostaríamos de registrar o ponto de vista pessoal de
um admirador de Virgílio e de sua Eneida. Há sempre um quê de
imponderável diante da emoção estética; podemos tentar com toda
objetividade analisar os recursos expressivos de um certo verso, son-
dar-lhe a construção, mas a beleza que nos fascina não se deixa con-
ter em leito de Procusto que a explique1 – contudo, certamente um

1
Como explicar a beleza de um verso como este, um dos que, em nossa vida de leitor de
poesia, mais nos têm assombrado de uma espécie de estremecimento estético: Ibant
obscuri sola sub nocet per umbram (VI, v. 268)? Certamente um conjunto de elemen-

– 386 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

ponto central da eficácia estética dos versos virgilianos reside em sua


capacidade de, nessa luta sem tréguas contra a arbitrariedade do sig-
no, que é a que trava todo poeta genuíno, conseguir investir de senti-
do a forma em seus vários níveis concomitantemente e em grau consi-
derável. Ora, a arte intertextual também serve à significação e à
natureza polissêmica de sua escrita.
Sentidos que se geram sem explicitação, no e do diálogo entre
um texto e outro, sutilmente se revelando ao leitor que traz consigo o
acervo de textos evocados e frui de conotações tênues, não explica-
ções matematicamente cristalinas que contentariam o cético mais
empedernido... Arte sutilíssima de dizer nas entrelinhas um “exce-
dente” de significado capaz de proporcionar um prazer estético tão
profundo (ou ainda maior) quanto o da leitura linear, que se contenta
com as riquezas mais seguras da superfície do texto.
Gostaríamos de terminar nossas considerações com uma breve
palavra sobre a necessidade de uma nova tradução da epopéia em
língua portuguesa. Se a experiência de um Odorico Mendes nos pare-
ce ter dado resultados que justificam sua tradução – concisa e ritmada,
capaz com freqüência de reproduzir com espantosa eficácia estruturas
fônicas e sintáticas do original – como o melhor “análogo” em portu-
guês para o texto virgiliano, cremos que décadas de estudos sobre a

tos contribuem para seu impacto: o ritmo pausado e solene dos espondeus, que nos
fazem talvez sentir o deslizar lento, nas trevas, de Enéias e a Sibila; a nasal do substan-
tivo final, que parece ecoar prolongadamente e compõe, com a aliteração da sibilante
(sola sub) e com o u tônico de obscuri e umbram mais o de sub, aveludada e misteriosa
musicalidade; a brilhante dupla hipálage, com efeitos sugestivos: de forma econômica,
duas leituras possíveis – a da lógica banal, que, justamente, vê aqui hipálage, e, pés
firmes no chão, afirma que, “obviamente”, as personagens é que marcham “solitárias”
pela noite, que, na verdade, é “obscura”... (já em Sérvio, que glosa: sub obscura nocte
soli ibant), assim mutilando a densidade poética das imagens tais como as relações
gramaticais entre os substantivos e adjetivos nos desenham: personagens humanas obs-
curas, como que fundidas às trevas de uma noite solitária (e que conotações não sur-
gem dessa humanização da noite, apesar do desgaste da expressão depois de mais de
dois mil anos!). Somamos a essas características do verso o contexto misterioso de uma
descida ao reino dos mortos...e podemos garantir que captamos sua magia?

– 387 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

Eneida apontaram leituras que precisam ser levadas em conta pelo


tradutor. Como exemplo mínimo, nós mesmos apontamos a impor-
tância, no contexto do livro V, da repetição da palavra pater, cuja
ressonância através de todo o canto é significativa. Ora, o nosso
Odorico Mendes não reproduz sistematicamente esse elemento im-
portante para a interpretação do texto. Mais grave nos parece a au-
sência, na tradução, de iterações de todo um verso, especialmente
quando, sob a aparente tessitura formular (já em si mesma um dado
textual relevante, a reproduzir no texto de chegada, pois que marca,
na tradição seguida por Virgílio, seu estilo como épico), escondem-se
paralelismos de sentido. Mencionamos que o verso XII, 868, aplicado
a Turno no final da epopéia, fora anteriormenete atribuído a Enéias
em IV, 280 e que este verso evoca outro, repetido por duas vezes,
também relacionado ao protagonista da epopéia (II, 774; III, 48); além
disso, defendemos que esses ecos criam efeitos de leitura que corrobo-
ram uma interpretação da trajetória das duas personagens em foco.
Ainda que não se aceite nossa análise, é óbvio que reiteração alguma
deve ser deixada de lado, tanto mais se de extensão considerável.
Ora, para os passos acima citados, a tradução de Odorico Mendes
apresenta quatro versos diferentes em português!2 Após nossos estu-
dos, julgamos que, sobretudo em Virgílio, deve-se buscar ao máximo
a reprodução do material lingüístico reiterado, da repetição de uma
simples palavra à de todo um verso ou grupo de versos. Por outro
lado, se se traduzir todo Virgílio, como fez Odorico,3 seria recomen-

2
Uma discutível opção pela uariatio... (preferimos tal explicação a outra: as dificuldades
de um esquema métrico rígido, justificativa que subestima a maestria do tradutor!).
Para efeito de comparação: Perret muda um verbo, desnecessariamente, impedindo,
assim, a repetição total de II, 774/III, 48 (mes cheveux se dressèrent, ma voix s’arrêta
dans ma gorge/mes cheveux se dressèrent, ma voix s’ étouffa dans ma gorge). Quanto
à outra reiteração, ele a mantém integralmente.
3
Seria interessante analisar sob esse ponto de vista também suas traduções de Homero
e, comparando-as com as da obra de Virgílio, analisar o grau de fidelidade da tradução
às relações intertextuais entre a obra do poeta latino e a de seu predecessor. Odorico
Mendes não pôde usufruir desse extraordinário instrumento de trabalho para o crítico
(e o tradutor!) que é a obra de Knauer, várias vezes citada por nós.

– 388 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

dável atentar para o fenômeno da autotextualidade, repetindo, por


exemplo, em determinado trecho da Eneida, o passo correspondente
das Geórgicas que o poeta está citando. Em resumo, as implicações
literárias da intertextualidade devem oferecer parâmetros para a tra-
dução ao invés de servir apenas a discussões filológicas infecundas
sobre prioridade de composição... A obediência a esses aspectos in-
tertextuais da obra pode até mesmo servir como um dos critérios para
avaliar o grau de “fidelidade à arte alusiva” de uma tradução de Virgílio
ou de qualquer outro poeta que, como ele, teça explicitamente, com
material lingüístico que de alguma forma evoque um hipotexto qual-
quer, o tipo de relações que estudamos em nossa pesquisa.
Assim, vislumbramos a perspectiva de uma tradução que, na
esteira da de um Odorico Mendes (embasada num profundo conheci-
mento filológico do texto, seguindo um padrão métrico, buscando
concisão e sobriedade, fiel o mais possível à forma), incorpore a rique-
za interpretativa sem dúvida acumulada de algumas décadas até o
presente, período em que os estudos sobre a Eneida de Virgílio – não
tenhamos pudor em afirmá-lo – realmente conheceram um ganho de
compreensão muito significativo, fazendo-nos aprofundar de fato nosso
conhecimento dessa obra desafiadora.

– 389 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

BIBLIOGRAFIA

Assinalam-se com asterisco as edições de autores gregos e lati-


nos cujo texto adotamos para a citação ao longo deste livro.

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MIRMONT, H. de la Ville de. Études sur l’ Ancienne Poésie Latine. Paris, Albert
Fontemoing, 1903.
MONTANARI, Franco (org.). La Poesia Latina. Forme, Autori, Problemi. Roma, La Nuova
Italia Sientifica, 1991.
NIEDERMANN, M. Phonétique Historique du Latin. Paris, Klincksieck, 1953.
NOUGARET, L. Traité de Métrique Latine. Paris, Klincksieck, 1948.
PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1983.
PARRY, M. L’Épithète Traditionnelle dans Homère. Paris, “Les Belles Lettres”, 1928.
PASQUALI, Giorgio. “Arte Allusiva”. In: Pagine Stravaganti. Firenze, Sansoni, 1968, v.
II.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. II Volume:
Cultura Romana. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian [1984].
PUCCI, Pietro. Odysseus Polytropos. Intertextual Readings in the Odyssey and the Iliad.
Ithaca and London, Cornell University Press, 1987.
TOLKIEHN, Johannes. Omero e la Poesia Latina. Bologna, Pàtron, 1991.
TRAINA, A. Poeti Latini (e Neolatini). Note e Saggi Filologici. Bologna, Pàtron, 1989.

– 396 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

VÁRIOS. Atti del Convegno Internazionalçe sul Tema: La Poesia Epica e la sua Formazione.
Roma, Academia Nazionale dei Lincei, 1979.
VEYNE, Paul. L’Élegie Érotique Romaine. Paris, Seuil, 1983.
WEST, D. & WOODMAN (org.). Creative Imitation and Latin Literature. Cambridge,
Cambridge University Press [1979].
WILLIAMS, Gordon. Tradition and Orginality in Roman Poetry. Oxford, Clarendon Press,
1985.

IV. TEXTOS GREGOS E LATINOS UTILIZADOS

ANONYME LATIN. Traité de Physiognomonie. Texte établi, traduit et commenté par


Jacques André. Paris, “Les Belles Lettres”, 1981.*
APOLLONII RHODI. Argonautica. Recognouit breuique adnotatione critica instruxit
Hermann Fränkel. Oxonii (Oxford), E Typographeo Clarendoniano (Clarendon
Press), 1989.*
APOLLONIO RODIO. Le Argonautiche. Introduzione e commento di Guido Paduano e
Massimo Fusillo. 2. ed., Milano, BUR, 1988. (Reproduz o texto da “Les Belles Lettres”,
com algumas modificações.)
AULO GELLIO. Notti Attiche. Traduzione e note di Luigi Rusca. Milano, BUR, 1992.
(Reproduz o texto da coleção de Oxford).*
CAMPOS, Haroldo de & VIEIRA, Trajano. MENIS A Ira de Aquiles. São Paulo, Nova
Alexandria, 1994.
CATULLE. Poésies. Texte établi et traduit par Georges Lafaye. 4. ed., Paris, “Les Belles
Lettres”, 1958.*
CÍCERO. “Pro Archia”. “Pro Marcello”. “Pro Ligario”. Tradução de Maximiano Augusto
Gonçalves. 4. ed., Rio de Janeiro, Livraria H. Antunes [s.d].*
____. Discours. Tome X: Catilinaires. Texte établi par Henri Bornecque et traduit par
Édouard Bailly. Paris, “Les Belles Lettres”, 1950.*
____. Philippiques V à XIV. Texte établi et traduit par Pierre Wuilleumier. Paris, “Les
Belles Lettres”, 1973.*
Tusculanes. Traduction nouvelle de Charles Appuhn. Paris, Garnier [s.d].*
ESIODO. Le Opere e i Giorni. Lo Scudo di Eracle. 5. ed., Milano, BUR, 1991.*
EURIPIDE – Medea. Troiane. Baccanti. 5. ed., Milano, BUR, 1992.*
GIAMBLICO. La Vita Pithagorica. Milano, BUR, 1991.*

– 397 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

GIOVENALE. Satire. 3. ed., Milano, BUR, 1982..*


HOMER. The Iliad. Translated by A. T. Murray. Cambridge, Mass., Harvard University
Press (Loeb), 1988, v. I; 1985, v. II.*
HORACE. Odes et Épodes. 5. ed., Paris, “Les Belles Lettres”, 1954.*
KROLL, W. Catull. 7. ed., Stuttgart, Teubner, 1989.
LONGINO. Del Sublime. Introduzione, traduzione e note di Francesco Donadi. Milano,
BUR, 1991. (Reproduz o texto da “Les Belles Lettres”).*
____. Do Subime. In: A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna. 2. ed., São Paulo,
Cultrix, 1985.
LUCRÈCE. De la Nature. Paris, Garnier [1954].
MACROBIO. I Saturnali. A cura di Nino Marinone. Torino, UTET, 1987.*
MORISSET, R. & THEVENOT, G. Tite-Live. Paris, Magnard [1983].*
ODORICO MENDES, M. Ilíada de Homero em Verso Portuguez. Rio de Janeiro, Henrique
Alves de Carvalho (editor), 1874.
OMERO. Iliade. Torino, Einaudi, 1990. (Reproduz o texto da Oxford Classical Texts.)
Odissea. Traduzione di G. Aurelio Privitera. [s.l.] Arnoldo Mondadori, 1993.*
ORAZIO. Epistole. Commento e note di Remigio Sabbadini. Torino, Loescher, 1970.
____. Le Lettere. Introduzione, traduzione e note di Enzo Mandruzzato. Milano, BUR,
1983. (Reproduz texto da coleção “Les Belles Lettres”, com ligeiras modificações.)*
OVIDE. Héroïdes. Texte établi par Henri Bornecque. Paris, “Les Belles Lettres”, 1965.*
____. L’ Art d’ Aimer. Texte établi par Henri Bornecque. Paris, “Les Belles Lettres”, 1924.*
____. Les Amours. Texte établi et traduit par Henri Bornecque. Paris, “Les Belles Lettres”,
1930.*
____. Les Métamorphoses. Paris, Garnier [1953].*
OVÍDIO. Os Remédios do Amor. Os Cosméticos para o Rosto da Mulher. Tradução,
introdução e notas de Antonio da Silveira Mendonça. São Paulo, Nova Alexandria,
1994.
____. Rimedi contro l’ Amore. 4. ed., Venezia, Marsilio, 1992. (Reproduz o texto da
Oxford.)*
PÉTRONE. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 3. ed., Paris, “Les
Belles Lettres”, 1950.*
PLAUTO. Casina. Milano, BUR, 1988.
____. Tutte le Commedie. A cura di Ettore Paratore. Roma, Newton, 1995, cinco volu-
mes.*
PROPERCE. Élégies. Texte établi et traduit par D. Paganelli. Paris, “Les Belles Lettres”,
1947.*

– 398 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

QUINTILIANUS, Marcus Fabius – Ausbildung des Redners. Herausgegeben und übersetzt


von Helmut Rahn. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1975.*
SAINT AUGUSTIN. Confessions. 4. ed., texte établi et traduit par Pierre de Labriolle.
Paris, “Les Belles Lettres”, 1947.*
SALLUSTE. Catilina. Jugurtha. Fragments des Histoires. Texte établi et traduit par Alfred
Ernout. Paris, “Les Belles Lettres”, 1967.*
SÉNÈQUE. Tragédies. Tome I. Texte établi et traduit par Léon Herrmann. Paris, “Les
Belles Lettres”, 1924.*
SOFOCLE. Antigone. Edipo Re. Edipo a Colono. 7. ed., Milano, BUR, 1993.*
SUÉTONE. Les Douze Césars. Texte établi, traduit et annoté par Maurice Rat. Paris,
Garnier [1954].*
____. Vies des Douze Césars. Texte établi et traduit par Henri Ailloud. 2. ed., Paris, “Les
Belles Lettres”, 1954, tomo I.
TACITE. Annales. Texte établi et, d’après Burnouf, traduit par Henri Bornecque. Paris,
Garnier [1947].*
TEOCRITO. Idilli e Epigrammi. Milano, BUR, 1993.*
TIBULLE. Tibulle et les Auteurs du Corpus Tibullianum. Texte établi et traduit par M.
Ponchont. Paris, “Les Belles Lettres”, 1950.*
TIBULLO. Le Elegie. A cura di Francesco della Corte. 2. ed., Milano, Fondazione Lorenzo
Valla-Arnoldo Mondadori, 1989.
VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par E. de Saint-Denis. Paris, “Les Belles
Lettres”, 1978.*
____. Georgiques. Texte établi et traduit par E. de Saint-Denis. Paris, “Les Belles Lettres”,
1982.*
WARMINGTON (ed.). Remains of Old Latin. Vol. I. Ennius and Caecilius. Cambridge,
Harvard University Press (Loeb), 1988.*

V. OUTROS

Em se tratando de léxicos, indicam-se apenas os dicionários


mencionados no livro.

BAILLY, A. Dictionnaire Grec Français. Édition revue par L. Séchan et P. Chantraine.


Paris, Hachette [s.d].
BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis, Vozes, 1991, v. 1.

– 399 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos

CAMÕES. Lírica. Seleção, prefácio e notas de Massaud Moisés. 5. ed., São Paulo, Cultrix,
1976.
____. Os Lusíadas. Comentados por Augusto Epifânio da Silva Dias. 3. ed., Rio de Janei-
ro, MEC, 1972.
DANTE. A Divina Comédia. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. Belo
Horizonte, Itatiaia, 1976.
____. Tutte le Opere. Roma, Newton, 1993.
ERNOUT & MEILLET. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Histoire des Mots.
Paris, Klincksieck, 1951.
GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin Français. Paris, Hachette [1981].
LEUMANN-HOFMANN-SZANTYR. Lateinische Grammatik. Zweiter Band: Syntax und
Stilistik. München, C.H. Beck’sche, 1972.
POKORNY, Julius. Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. Bern and München,
Francke, 1959, I. Band.
SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo Dicionario Latino-Portuguez. 7. ed., Rio de Ja-
neiro, Garnier [1910].
TRAINA, A. & BERTOTTI, T. Sintassi Normativa della Lingua Latina. Bologna, Cappelli,
1992.

– 400 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio

Ficha técnica

Mancha 11,5 X 19 cm
Formato 16 x 22 cm

Tipologia Goudy Old Style 12/15,

Arial Rounded MT 14/16 e Sgreek 12/15


Papel miolo: off-set 75 g/m2
capa: supremo 250 g/m2
Impressão da capa Quadricromia
Impressão e acabamento PROVO GRÁFICA
Número de páginas 404
Tiragem 500 exemplares

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