Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EFEITOS TEXTU
INTERTEXTU AIS N
TEXTUAIS A
NA
ENEID
ENEIDAA DE VIRGÍLIO
VIRGÍLIO
USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
VENDAS
LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: (011)3818-3728/3796
HUMANITAS -DISTRIBUIÇÃO
Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Telefax: (011)3818-4589
e-mail: pubfflch@edu.usp.br
http://www.fflch.usp.br/humanitas
EFEITOS INTER
EFEITOS TEXTU
INTERTEXTU AIS N
TEXTUAIS A
NA
ENEID
ENEIDAA DE VIR GÍLIO
VIRGÍLIO
2001
404p.
ISBN 85-7506-023-6
CDD 873
HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp.br
Telefax: 3818-4593
Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento
Coordenação Editorial
Ma Helena G. Rodrigues – MTb 28.840
Projeto Gráfico
Walquir da Silva – MTb 28.841
Diagramação
Selma Ma Consoli Jacintho – MTb 28.839
Projeto de Capa
Diana Oliveira dos Santos
Revisão de Provas
Edison Luís dos Santos
Revisão
Autor
SUMÁRIO
Prólogo ............................................................................................................ 7
–6–
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
PRÓLOGO
–7–
Paulo Sérgio de Vasconcellos
–8–
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
–9–
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 10 –
I – IMITATIO E INTERTEXTUALIDADE
NA LITERATURA LATINA
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
1. IMITATIO E INTERTEXTUALIDADE
1
Desde aqui, será bom esclarecer que não trataremos em especial, neste trabalho, da
característica intertextual de toda obra literária, que mantém sempre com um conjun-
to de textos relações genéticas de que o escritor pode estar mais ou menos consciente;
nesse sentido, toda obra literária é “de segundo grau”, diálogo pacífico ou tenso com
uma tradição. Ficarão fora de nosso campo de interesse a “arquitextualidade” e a pro-
blemática do gênero – não porque se trate de questões menores para a compreensão de
Virgílio (nada estaria mais longe da verdade), mas porque restringiremos nosso estudo
à análise de aspectos menos evidentes dessa relação dialética com modelos – a geração
de sentidos, marca virgiliana que, apesar de permear toda a Eneida, é ainda hoje pouco
conhecida. Por outro lado, também não nos ocuparemos do caráter intertextual e
dialógico de todo código lingüístico. É fácil notar como a língua reutiliza de várias
formas, em novas unidades, enunciados prévios, criando jogos complexos de significa-
ção a partir das relações entre o já dito e o que se diz; mas convém não esquecer que a
linguagem poética, centro de nossos estudos, é singular, marcada por ritmo, figuras de
linguagem, esquemas sonoros, etc. que fazem do verso uma unidade mais perdurável
na memória coletiva e, em seu reemprego, mais facilmente identificável. Além disso,
poemas como os homéricos (ou, pelo menos, seus trechos mais prezados) eram estuda-
dos nas escolas romanas e confiados à memória, de tal forma que sua citação, mais ou
menos disfarçada, dificilmente passaria despercebida. Outros aspectos da questão se-
rão aflorados nas páginas que seguem. Para resumir: nosso foco em certos aspectos da
intertextualidade são uma consciente renúncia ao que não é essencial às nossas análi-
ses nem pode aqui ser tratado em profundidade.
– 13 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
2
No mesmo poema, Horácio observa que ainda em seu tempo permaneciam vestígios
da rusticidade inicial das letras latinas antes do contato com a Grécia: hodieque manent
uestigia ruris (“ainda hoje permanecem vestígios de rusticidade”, v. 160).
– 14 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 15 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
5
Denominam-se assim os poemas recitados ao som da flauta pelos antigos Romanos em
época remota, já que Catão o Censor (séc. III a.C.) a eles se refere como costume dos
antepassados. Nada temos desses cantos bem como não possuímos o testemunho origi-
nal de Catão, reproduzido, na verdade, por Cícero, em duas passagens das Tusculanas:
Quamquam est in Originibus, solitos esse in epulis canere conuiuas ad tibicinem de
clarorum hominum uirtutibus... (I, 2)
“Embora se leia nas Origens que os convivas costumavam cantar, nos banquetes, ao
som da flauta, os feitos de bravura dos homens ilustres...”
...grauissimus auctor in Originibus dixit Cato, morem apud maiores hunc epularum
fuisse, ut deinceps, qui accubarent, canerent ad tibiam uirorum laudes atque uirtutes.
(IV, 2)
“...Catão, autor digno do maior crédito, disse, nas Origens, que era costume dos nossos
antepassados, nos banquetes, após se acomodarem à mesa, cantar ao som da flauta os
louvores e os feitos de bravura dos varões.”
Testemunhos desse mesmo costume – louvar em versos os antepassados durante os
banquetes – encontram-se também em Horácio (Odes IV, v. 29-32); Tácito (Annales
III, 5) e Sérvio (Ad Aen. I, 641).
– 16 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
6
Ver fr. 343 de Lucílio; quanto aos passos de Horácio e Macróbio, ei-los:...alter Homerus,/
ut critici dicunt (“...um segundo Homero,/ como dizem os críticos” – HORÁCIO.
Epístolas II, 1, 50); Homerus uester Mantuanus (“...esse vosso Homero mantuano” –
MACRÓBIO. Saturnais. I, 16, 43).
7
Nas Tusculanas (III, 19), por exemplo, Cícero, numa referência depreciativa aos
poetae noui, contrapõe Ênio, “poeta egrégio” (poetam egregium) aos “cantores de
Euforião” (cantoribus Euphorionis: há uma nuança pejorativa nesse substantivo,
com sua idéia de repetição), que, segundo o orador, desprezavam o pater das letras
latinas. Sobre o pouco apreço em que o orador tinha os neotéricos, tem-se boa
síntese em PARATORE. História da Literatura Latina. Lisboa, Calouste Gulbenkian,
1983, p. 311-312.
8
Veja-se GENTILI, B. et alii. Storia della Letteratura Latina. Roma-Bari, Laterza,
1990, p. 261. Um panorama sucinto da influência de Cícero poeta sobre Virgílio
– 17 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
se pode ler na Enciclopedia Virgiliana. Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 1984,
vol. I, p. 776-777.
9
Não queremos dizer que uma tradução não seja uma obra original, um ato criativo,
mas que um tradutor, por mais criativo que seja, tem, do ponto de vista do diálogo
com o texto de partida, menor liberdade: Virgílio, que não se apresenta como tradu-
tor, não é obrigado, por exemplo, a seguir as grandes articulações da epopéia homé-
rica (embora não raro o faça) como Lívio Andronico, que traduz a Odisséia (além
do mais, para servir como texto escolar!). Virgílio transforma seu modelo como
quer; Lívio, se tivesse assumido a mesma atitude, teria criado um texto que não
ousaria senão por alguma intenção especial chamar Odisséia; o autor da Eneida é
Virgílio, mas o da epopéia homérica, mesmo sob vestes latinas, ainda é Homero, não
Lívio – embora pudesse, talvez, o tradutor de hoje, consciente da natureza intertex-
tual de sua tarefa, revoltar-se contra esse “preconceito”, afinal trata-se da mesma
relação dialética que todo criador mantém com seus modelos, ainda que em outro
grau e meta diversa.
– 18 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
10
Vita Donati 46, apud TOLKIEHN. Omero e la Poesia Latina. Bologna, Pàtron, 1991,
p. 49, n. 125. A citação completa: Asconius Pedianus libro, quem contra obtrectatores
Vergili scripsit, pauca admodum obiecta ei proponit eaque circa historiam fere et quod
pleraque ab Homero sumpsisset; sed hoc ipsum crimen sic defendere adsuetum ait:
“cur non illi quoque eadem furta temptarent? uerum intellecturos facilius esse Herculi
clauam quam Homero uersum subripere.” (“Ascônio Pediano, no livro que escreveu
contra os detratores de Virgílio, faz-lhe muito poucas objeções e geralmente a propósi-
to da história e por ter tomado quase tudo de Homero; mas diz que o próprio poeta
costumava se defender de tal acusação assim: ‘Por que não tentavam eles também esses
mesmos furtos? Compreenderiam, então, que é mais fácil surrupiar de Hércules sua
clava que de Homero um verso’”). A expressão “surrupiar a clava de Hércules, um
verso de Homero” deveria ser proverbial, como se depreende deste passo das Saturnais,
em que um dos convivas defende Virgílio: cum tria haec ex aequo impossibilia putentur,
uel Ioui fulmen uel Herculi clauam uel uersum Homero subtrahere... (“...sendo consi-
deradas igualmente impossíveis três coisas: tirar de Júpiter seu raio, ou de Hércules a
clava, ou de Homero um verso...”, V, 3, 16).
11
Angústia da Influência. Rio de Janeiro, Imago, 1991.
– 19 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
12
Vita, 44.
13
Omnes inter se consono murmure Vergilium non minus oratorem quam poetam
habendum pronuntiabant (V, I, 1).
14
Vnde enim Veneto rusticis parentibus nato, inter siluas et frutices educto, uel leuis
Graecarum notitia litterarum? (“Pois como um vêneto, filho de pais camponeses,
criado entre florestas e arbustos, poderia ter conhecimento, por mais vago que fosse,
das letras gregas?”, V, 2, 1).
– 20 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 21 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
15
V, 14, 1.
– 22 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
16
Ad Aen. III, 10: aqui, o autor imitado é Névio (edição THILO, vol. I, p. 336).
17
“Essa relação entre poesia e erudição que constitui uma das características mais
importantes da criação poética alexandrina...”, como dizem KÖRTE & HÄNDEL.
In: La poesía Helenística. Barcelona, Labor, 1973, p. 19.
– 23 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
18
Sobre um outro aspecto da questão intertextual na Antigüidade, o problema da
reutilização dos lugares-comuns, veja-se nossa observação mais além.
19
Horácio o denomina horridus (“rude”, “tosco”) e cita a decadência de seu prestígio
como resultado da influência da elegância grega sobre a rusticidade das letras lati-
nas antes de seu contacto com as artes gregas (Ep. II, 1, v. 157-159).
20
Ainda que os dois luminares da época de Augusto superem o alexandrinismo estrito
(Virgílio, por exemplo, compõe uma epopéia longa e na tradição homérica, o que re-
pugnaria a Calímaco), “não renunciam, de fato, às conquistas técnicas dos poetae noui
nem à poética de Calímaco, de quem aceitam os elementos essenciais – sobretudo o
refinamento formal, a erudição literária e mitológica, a destinação elitista da poesia...”
(GENTILI, B. et alii. Op. cit., p. 270).
– 24 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
21
No campo dos estudos virgilianos, destacam-se nomes como Georg Knauer, Gian Biagio
Conte, Alessandro Barchiesi, Philip Hardie, Francis Cairns, R. O. A. M. Lyne e Nicholas
Horsfall – com obras que citaremos ao longo de nosso trabalho: todos exploram as rela-
ções intertextuais em nível muito acima da mera coleta de “fontes”.
– 25 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
22
Vita Donati, 45. O nome varia de acordo com a tradição manuscrita. O texto
reproduzido na Enciclopedia Virgiliana (vol. V**, p. 439) traz Omoioteleu/
( twn.
Quanto a seu autor, é certo que se trata de mais um dentre os muitos obtrectatores
do poeta; a coletânea serviria, então, para o acusar de plágio.
23
“A Literatura Comparada”. In: COUTINHO, E. & CARVALHAL, T. (Org.). Li-
teratura Comparada.Textos Fundadores. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 62.
24
“A Crise da Literatura Comparada”. In: Idem, ibidem, p. 111.
25
Dois pequenos exemplos representativos de toda uma tendência antivirgiliana.
Para August Wilhelm von Schlegel (1767-1845), Virgílio “não é mais do que um
– 26 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 27 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
28
“Arte Allusiva”. In: Pagine Stravaganti. Firenze, Sansoni, 1968, p. 275.
29
Idem, ibidem, p. 276.
30
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La Littérature au Second Degré. Paris, Seuil, 1982,
p. 443.
31
Idem, ibidem, p. 276.
– 28 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
32
De passagem, façamos uma ressalva à tradução de Tassilo Orheu Spalding; seu texto
traz:
“Aquele vendeu sua pátria por ouro e lhe impôs um senhor todo-poderoso; aquele
outro, mediante certa soma, estabeleceu leis e aboliu-as...”
Como se depreende com facilidade pelo exame do contexto, a referência é a um só
personagem, não a dois (“aquele...aquele outro...”); hic se conecta com o outro hic
que inicia o verso da seqüência. Talvez o tradutor se tenha dexado extraviar pelo
comentário de Sérvio, que, artificialmente, separa os enunciados, vendo neles alu-
sões a diferentes personalidades (ver edição THILO, vol. II, p. 87-88).
33
Idem, ibidem, p. 278. Por outro lado, os estudiosos invocam, desde Sérvio, um curioso
precedente ciceroniano: nas Filípicas (XIII, II, 5), aparece a expressão leges refixistis
(“abolistes as leis”), com referência à abolição das leis de Antônio. Se aceitarmos que
Varo, no De Morte (Caesaris) retoma Cícero, poderemos vislumbrar um exemplo in-
– 29 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
trigante de efeito intertextual, afinal, nas Filípicas, fala-se das leis de Antônio, abolidas
por terem sido impostas à força e contra os auspícios (per uim et contra auspicia). Varo
remete, portanto, a todo um contexto de pesadas acusações contra aquele político
polêmico, ao mesmo tempo em que amplia a acusação contida na expressão original:
Antônio teve leis abolidas mas ele mesmo aboliu leis ou as fez, movido não pela genu-
ína sede de justiça dos senadores romanos (de que fala Cícero), mas pela mais deslavada
corrupção... Seja como for, um dado é incontestável: a retomada textual está a apontar
uma alusão a Marco Antônio neste ponto da Eneida, um dado importante numa epo-
péia que celebra Augusto.
34
Norden critica a sugestão serviana de que se trataria de alusão a Tiestes ou a Cíniras,
o pai de Mirra; para ele se trata simplesmente de referência geral a um tema caro à
poesia helenística, a danação dos impudicos (NORDEN, Eduard. Op. cit., p. 292).
Seja como for, não se percebe alusão a personagens não míticas, num contexto em
que o poeta mescla mito e homens comuns.
– 30 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“arte alusiva” que é a criação de sentido. Seja como for, suas refle-
xões, que tinham sido prenunciadas, sobretudo, por filólogos ale-
mães, foram de grande influência e consagraram a expressão “arte
alusiva” aplicada ao jogo intertextual. É curioso, por fim, observar
que o artigo de Pasquali se centra em exemplos de Virgílio; de fato,
nenhum escritor latino radicalizara a tal ponto o princípio da
alusividade e, por isso, sua obra interessa sobremaneira aos que se
ocupam da questão.
Num ensaio independente do de Pasquali, Jackson Knight,
partindo de estudos sobre poetas da literatura universal, reconheceria
a “imitação como lei universal da poesia”,35 prenunciando a teoria de
Harold Bloom. Para ele, mais que tentativa de emulação, a imitatio é
exercício de admiração por um modelo e meio de oferecer ao leitor
aquele prazer do reconhecimento de que já falava Aristóteles – e é
digno de nota que estudiosos modernos da intertextualidade não dei-
xam de relevar esses pontos.
O mérito maior de Knight é combater enfaticamente a idéia de
uma inferioridade imediata de Virgílio em razão de suas imitações
múltiplas de outros poetas e definir esse processo alusivo como ele-
mento estrutural da arte virgiliana, a que ele nomeia “integração”,
“arte integrativa”, o poeta latino faria parte daqueles criadores que
“integram...sua obra com derivações de outras obras originais”.36
35
É desse pressuposto, assim enunciado pelo Padre Spinoza (1894-1961), que parte o
estudo de Knight. A frase está em Virgilio Romano. Milano, Longanesi, 1949, p. 116.
Spinoza condena os paralelos típicos que se fazem entre Homero e Virgílio e, baseado
nos estudos de Victor Bérard, relembra que mesmo Homero imitou as suas “fontes”
(apud ZIOLKOWISKI, Op. cit., p. 52-53).
36
Idem, ibidem, p. 121. Devo ao Prof. Dr. Antonio da Silveira Mendonça, a observação
de que nas próprias Saturnais parece enunciar-se tal idéia; de fato, para Eustácio, “o
que tomou dos gregos Virgílio inseriu em seu poema como se ali tivesse brotado” (carmini
suo tamquam illic nata conseruit, Sat.V, 2,2): supera-se, aqui, a redução das relações
intertextuais à mera imitatio superficial ao se reconhecer que o poeta integra na estru-
tura da obra as alusões.
– 31 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
37
Idem, ibidem, p. 126.
38
Desde que não se caia no psicologismo falseador e se tenha consciência da imprecisão
dos termos, não censuramos o uso de expressões do tipo “intenções do poeta”, de que
nós mesmos lançaremos mão: trata-se de fórmula cômoda a que parece impossível
renunciar. Não queremos ressuscitar o “Autor”, cuja morte se anunciou há bastante
tempo...
– 32 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
39
Quem primeiro empregou o termo “intertextualidade” (intertextualité) foi Julia Kristeva,
na década de sessenta. Em seu Shmeiotikh /, recherches pour une sémanalyse. Citan-
do Bakhtin, a autora diz:
“todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transforma-
ção de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de
intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla”. (Citamos da
edição em português: Introdução à Semanálise. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 64.)
Poderíamos mais precisamente dizer que estamos escolhendo o aspecto da
intertextualidade que será o nosso objeto de estudo.
– 33 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
40
É a útil, se bem que imperfeita, metáfora desenvolvida por Genette, como se sabe;
adotamos aqui, também, o sentido que dá às expressões “hipertexto” e “hipotexto”.
Ver GENETTE. Op. cit., p. 7-17 (sobretudo).
41
“Transtextualidade” (transtextualité) é o termo mais geral da nomenclatura adota-
da pelo autor e inclui a noção de architextualité (Op. cit., p. 7); nossas análises
contemplarão, sobretudo, as relações entre um texto (o “hipertexto”) e outro (o
“hipotexto”), no domínio do que Genette denomina hypertextualité (p. 11-12),
mas não se restringirão a esse aspecto da “transtextualidade”, como se verá. De
resto, observemos que essa nomenclatura apenas nos interessa na medida em que
pode servir para lançar luz sobre a complexa rede intertextual da Eneida.
– 34 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
42
Suasoriae 3, 7 apud RUSSEL. “De Imitatione”. In: WEST & WOODMAN (Org.).
Creative Imitation and Latin Literature. Cambridge, Cambridge University Press, 1979,
p. 12.
– 35 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
43
E não sempre, pois se pode, por exemplo, parodiar um mau verso citando-o de alguma
forma.
44
Muitas vezes, mostrando diante da tradição cultural um distanciamento crítico que se
pode eivar de ironia ou sarcasmo. Nas artes contemporâneas, de fato, a relação dos
criadores com a tradição cultural revela uma filtragem ativa, crítica e pessoal das obras
do passado.
45
DANTE. Tutte le Opere. Roma, Newton Compton, 1993, p. 35.
46
DANTE ALIGHIERI, A Divina Comédia. Tradução, introdução e notas de Cristiano
Martins. Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, p. 88.
– 36 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 37 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
47
GRANSDEN, K. W. Vergil’s Iliad. An Essay on Epic Narrative. Cambridge, Cambridge
University Press, 1984, p. 04. Aqui, entretanto, é preciso fazer uma ressalva a que
voltaremos no capítulo seguinte: a decodificação das alusões na Eneida comporta “graus”:
se a leitura absolutamente não alusiva é praticamente impossível, pois que a trama
intertextual atinge também a estrutura de superfície da obra (pensemos na pretensão
de Turno em se julgar uma espécie de Aquiles redivivo, mas morrendo como Heitor),
a alusão geradora de sentido pode alcançar uma sutileza extraordinária sem que seu
desconhecimento prejudique a compreensão das linhas gerais da trama, embora se
deva renunciar, nesse caso, ao ganho de sentido que a detecção e interpretação da
alusão proporcionam.
– 38 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
do”48 são múltiplas, como veremos, e nem sequer podem ser cataloga-
das de modo esquemático em sua totalidade, pois as possibilidades do
jogo intertextual são virtualmente ilimitadas.
48
Não é satisfatória a metáfora comercial, empregada freqüentemente no texto de Russel:
enfatiza em demasia o produto da “imitação”, em detrimento do verdadeiro diálogo
que o intertexto gera entre imitado e imitador.
49
Op. cit., p. 16.
50
Veja-se, por exemplo, como no livro X, 1, 85-86 de sua Institutio Oratoria, Quintiliano,
ao tratar de Virgílio, o maior escritor latino, na sua opinião, relaciona-o a Homero,
atribuindo ao mantuano um honroso segundo lugar nesse confronto tradicional.
– 39 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
vez mais gloriosa... e cita, nesse contexto farsesco, versos de uma com-
posição séria, a tragédia Andrômaca de Ênio, que seu público deveria
reconhecer:
51
Na comédia, mais precisamente, o velho Nicobulo é escarnecido ora como nova Tróia,
ora como Príamo, sem que Plauto harmonize as duas idéias. Como exemplos do pri-
meiro caso, citemos: ego erum expugnabo meum (“tomarei de assalto o meu patrão”),
v. 929, contraposto a Atridae...Priami patriam Pergamum... decumo anno post
subegerunt, (“Os Atridas subjugaram, após dez anos, a pátria de Príamo, Pérgamo”),
v.925-928, e Nostro seni huic stolido, ei profecto nomen facio Ilio (“Quanto a este
nosso velho tolo, sem dúvida farei com que receba o nome de Ílio...”), v. 945; como
exemplo de Nicobulo tratado simplesmente como Príamo, veja-se: Sed Priamum
adstantem eccum ante portam uideo (“Mas eis que vejo Príamo em pé diante da por-
ta”), frase de Crísalo ao avistar Nicobulo...
52
Ver LEUMANN. “La Lingua Poetica Latina”. In: LUNELLI, Aldo (Org.). La Lingua
Poetica Latina. 3. ed., Bologna, Pàtron, 1988, p. 142.
– 40 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
53
“...o arquitexto, ou, se se prefere, a arquitextualidade do texto /.../ isto é, o conjunto das
categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros
literários, etc. – de que depende cada texto particular” (Op. cit., p. 07).
54
Conscientemente ou não, quando um jovem poeta (e pensemos, propositalmente, em
alguém fora do meio acadêmico) resolve escrever um poema, conscientemente ou não,
sob a página por ele preenchida com seus versos, hão de ecoar, de alguma forma, pági-
– 41 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
nas e páginas de outros poetas, séculos e séculos de tradição estética, todo um conhe-
cimento assimilado de forma mais ou menos difusa. Não existe criação do nada, aqui,
não existem personas individuais e palavras únicas em discurso monológico – está-se
fadado a alguma espécie de diálogo com o passado, por mais que seu peso sobre nós
possa parecer sufocante, por mais que sintamos vertigem diante da sombra dos mortos,
vivos nas páginas dos livros, a espreitar-nos em sua cômoda situação de predecessores.
Não somos nós os primeiros, e os que virão depois enfrentarão a mesma encruzilhada
da criação de alguma forma prenunciada, ou influenciada, pela configuração astral de
um céu sempre mutável e sempre o mesmo. Pensemos no caso de nosso jovem poeta,
um adolescente, que decida expressar no papel os sentimentos (o que, pelo menos em
nossa adolescência, era a concepção difusa de poesia entre as pessoas “comuns”). Ao
escrever seus versos, esse jovem, sem perceber, estará empregando uma série de regras
para a composição poética, um conjunto de normas não sistematizadas mas de algum
modo introjetadas a partir de um acervo de textos do passado que ele talvez jamais
tenha lido. Todos trazemos, então, à folha de papel nossas regras de criação, extraídas
de uma tradição poética formada, em última instância, por um conjunto de textos
exemplares. Escrever versos é, como toda atividade cultural, uma atividade social, por
menos que se esteja ciente do grau em que se é determinado pelo discurso do outro.
55
“Imitazione e Arte Allusiva. Modi e Funzioni dell’Intertestualità”. In: CAVALLO,
Guglielmo et alii (direttori). Lo Spazio Letterario di Roma Antica. Roma, Salerno [1989]
p. 94-95.
56
Op. cit., p. 95.
– 42 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
são aqui nos interessa para definirmos nosso campo de ação. Estuda-
remos as transformações de sentido operadas na Eneida pela incorpo-
ração de outros textos cujas “vozes” se fazem ouvir na rica polifonia
de seu discurso; deverá explicitar-se, assim, a referência a textos par-
ticulares, num diálogo suscitado pela recorrência.
Antes de passar à exemplificação, parece-nos útil também uma
breve menção ao livro de Cairns sobre os gêneros e topoi na literatura
greco-latina;57 essa obra, densa e proveitosa, tem sido hoje revalorizada,
como merece.58 Cairns trata da “composição genérica”, em que um
conjunto de unidades de conteúdo, não a métrica ou outro dado for-
mal do poema, define o tipo de composição, reelaborado pelos escri-
tores ao longo dos séculos. Entendido esse critério e conhecidos os
principais gêneros detectáveis pelo estudo contrastivo, tem-se um
método utilíssimo para analisar sobretudo aqueles poemas cuja estru-
tura e temática têm desafiado críticos e leitores; de fato, freqüente-
mente, como demonstram as análises de Cairns, a dificuldade advém
da complexa relação de determinado texto com o gênero ou gêneros
que norteiam sua composição. Aqui, estamos, obviamente, no terre-
no da intertextualidade; mas não faz parte das investigações desse
autor o que preferencialmente nos interessa: a retomada explícita,
porque textual, de obra anterior por determinada composição a ela
formalmente ligada, processando-se a filiação entre os textos não por
categorias abstratas de composição (por exemplo, no gênero
propemptikón, a presença de um destinatário que parte, o receptor
que a ele dirige a palavra, etc., como elementos primários, mais os
tópicos secundários), mas por referências textuais concretas,
detectáveis. O hipertexto dialoga, pois, não apenas com uma tradição
genérica, consolidada num conjunto de textos que materializam re-
57
CAIRNS, Francis. Generic Composition in Greek and Roman Poetry. Edinburgh,
Edinburgh University Press, 1972.
58
Em nosso país, destaca-se a divulgação promovida por Francisco Achcar em seu pri-
moroso livro: ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar – Comum. Alguns temas de Horácio
e sua presença em português. São Paulo, Edusp, 1994.
– 43 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 44 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 45 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
59
Ver LUCRÈCE. De Rerum Natura. (Comentário de Enout-Robin.) Paris, “Les Belles
Lettres”, 1962, tomo II, p. 163-164, ad uersum 1011.
– 46 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
60
Contribui para reforçar na forma a impressão de estatura descomunal o ritmo predomi-
nantemente espondaico (dez espondeus contra seis dátilos e dois troqueus), vale dizer,
mais vagaroso.
– 47 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
61
Hic: Sed Tityos nobis hic est, v. 1005; Hic Acherusia fit stultorum denique uita, v.
1036; a expressão in uita comparece quatro vezes: nos versos 992, 995, 1008 e 1027.
62
Note-se que illic aparece três vezes nesse passo da elegia: nos versos 73, 77 e 81.
– 48 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
acrescenta, por fim, que no Tártaro deve estar quem ultrajou seu amor;
desse modo, o motivo sofre a necessária mudança para adequar-se ao
contexto elegíaco. Eis a imprecação, em enunciado optativo,
comuníssimo nas elegias de Tibulo:
63
HARDIE, Philip. Virgil’s Aeneid: Cosmos and Imperium. Oxford, Clarendon Press,
1989, p. 178.
– 49 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
64
Reproduzimos o texto, sem modernizar a ortografia, como se vê, tal qual se apresenta
nesta edição: ODORICO MENDES, Manuel. Virgilio Brazileiro. Rio de Janeiro, W.
Remquet, 1858, p. 129.
– 50 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
65
Apud Saint-Denis: VIRGILE. Géorgiques. Paris, “Les Belles Lettres”, 1982, p. 101-
102, nota ao verso II, 490.
66
Op. cit., p. 39, nota 02.
67
Tema lucreciano por excelência: Epicuro é o grande Prometeu do espírito a redimir
a humanidade de suas angústias mais viscerais e perturbadoras.
– 51 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
68
Vale a pena destacar mais uma expressão confirmadora da relação intertextual com
Lucrécio; os versos virgilianos atque metus omnis et inexorabile fatum/ subiecit pedibus
strepitumque Acheruntis auari ecoam o lucreciano Et metus ille foras praeceps
Acheruntis agendus (“É preciso perseguir e expulsar aquele medo do Aqueronte..., De
Rer. Nat. III, v. 37). O filósofo, na mais integral ortodoxia epicurista, tenta demonstrar
que a alma, composta de átomos, é mortal; dissolvidos os elementos que a compõem,
nenhuma sensibilidade é mais possível; dessa forma, o temor de castigo no além é
absurdo. Virgílio, por sua vez, ainda que exaltando a libertação desse medo ao Aqueronte,
visada por Lucrécio, rejeita aspectos de sua doutrina, contrapondo-lhe um ideal diver-
so.
69
Mas, ressalve-se, não se trata de ateísmo, ao contrário do que se ouve dizer demasiadas
vezes! – se bem que os incautos se possam apoiar no precedente do próprio Cícero, para
quem a doutrina epicurista desemboca na negação da divindade.
– 52 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“Muito no mar...”
70
“Imitazione e Arte Allusiva” (Op. cit., p. 109).
– 53 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
71
O mais completo – e modelar – comentário ao livro VI, o de NORDEN, não menciona
o passo catuliano, mas um verso de Pacúvio, como reminiscência no verso de Virgílio
em pauta; o paralelo estabelecido por Conte e Barchiesi é, porém, absolutamente con-
vincente.
– 54 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
72
Tradução concisa de Odorico Mendes.
– 55 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
73
Op. cit., p. 109.
74
Parcialmente analisado em VEYNE, Paul. L’ Élégie Érotique Romaine. Paris, Seuil,
1983, p. 72. Há tradução em português, que, infelizmente, apresenta vários erros, a
ponto de, em dados momentos, comprometer a compreensão do original: A Elegia
Erótica Romana. São Paulo, Brasiliense, 1985.
– 56 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
75
É difícil entender como Francesco della Corte, em sua edição de Tibulo, pôde preferir
a lição et à te (teneam) de alguns manuscritos, minoritários que sejam. Conforme
analisamos em trabalho anterior, já citado aqui, há jogo fônico com a segunda pessoa,
obsessivamente reiterada (te/spectem/te/teneam/deficiente), à semelhança do que ocor-
re, por exemplo, no poema LI de Catulo, no proêmio do De Rerum Natura, nas invectivas
de Dido a Enéias, para citar casos mais célebres. A reelaboração de Ovídio parece-nos
referendar a lição te teneam: ilustração de como o estudo da intertextualidade pode
fornecer elementos para o estabelecimento filológico dos textos. Veja-se TIBULLO.
Le Elegie. A cura di Francesco della Corte. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Arnoldo
Mondadori, 1989, p. 60.
– 57 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 58 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
76
De fato, Dido, no livro IV, tem traços fortes de personagem elegíaca, conforme vere-
mos.
– 59 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 60 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 61 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
77
Primeiramente, Dido perde os sentidos, deixando Enéias impossibilitado de dirigir-lhe
a palavra; depois, salienta o poeta que o herói renuncia a tal, um silêncio que lhe será
retribuído no livro VI. Às preces feitas através de Ana, Enéias fica impassível, pois um
deus tapara suas orelhas (placidasque uiri deus obstruit auris, IV, v. 440).
– 62 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
78
Deve-se observar que essa leitura escapa muitas vezes ao leitor comum, embora seja
fundamental para a compreensão do silêncio de Dido no livro VI.
– 63 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
79
Para Conington, no passo da Eneida em questão, hic pode ser o advérbio; a maioria dos
comentadores nem ventila a hipótese.
– 64 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
80
Note-se o relevo de iterum: expresso duas vezes e antes de cesura (pentemímera e
heftemímera, respectivamente).
– 65 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 66 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
tura latina, por Ênio, num passo dos Annales, em referência ao ge-
neral Pirro.81 A primeira interpretação – e seria mais prudente se
deter nela: Lucrécio faz uso de um sintagma próprio da poesia épi-
ca.82 Ernout e Robin comentam, justamente, que “a perífrase perten-
ce ao estilo épico”.83 Lucrécio descreve a façanha intelectual de
Epicuro, em sua luta contra a superstição, como uma batalha épica; o
grego é uma espécie de herói, redentor da humanidade como Hércules,
que vence luta titânica contra um monstro que sujeitava vergonhosa-
mente todos os homens. Mas a interpretação pode ir mais longe, apoi-
ada na alusão a Ênio: Epicuro é um guerreiro como Pirro; assim,
81
FARRELL, Joseph. Vergil’s Georgics and the Traditions of Ancient Epic. New York-
Oxford, Oxford University Press, 1991, p. 34-35, nota 17.
82
O próprio Virgílio o empregará, denominando o guerreiro Ácron, no livro X da Eneida,
um Graius homo – v. 720.
83
LUCRÈCE. Op. cit., tomo I, p. 27.
84
FARRELL. Op. cit., p. 35.
85
Ver o comenário de ERNOUT & ROBIN. In: LUCRÈCE. Op. cit., p. 30.
– 67 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 68 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“De minha parte, não ataco nem julgo que se devam destruir
os versos de Lívio, que, bem me lembro, a mim, uma criança,
como carrasco Orbílio ditava; mas que pareçam elegantes
e belos e não distantes da perfeição, causa-me espanto.
Se neles alguma palavra eventualmente brilha, formosa,
– 69 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Em Homero:
Andra
)/ moi ennepe,
/) Mou=sa, polu/tropon (o(j
\ ma/la polla\ )
– 70 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
89
Noctes Atticae, XVIII, 9, 9.
90
Da raiz * seku- (latim sequi; alemão sagen, etc.): cf. POKORNY, Julius.
Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. Bern und München, Francke, 1959, I.
Band, p. 896-897.
91
In: Études sur l’Ancienne Poésie Latine. Paris, Albert Fontemoing, 1903, p. 139.
92
Apud GENTILI, B. et alii. Op. cit., p. 79.
93
Ver GÉLIO. Noctes Atticae, XVII, 21, 45.
– 71 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 72 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
94
Apud GÉLIO. Noctes Atticae, XVIII, 9, 3. É o fragmento 322-323 do livro X dos
Annales, na edição de WARMINGTON. Remains of Old Latin.Vol. I: Ennius and
Caecilius. Cambridge, Harvard University Press (Loeb), 1988, p. 118.
95
“Ennius’ Annales”. In: BOYLE, A.J. (Org.). Op. cit., p. 42.
– 73 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Ilat
/( , ) a) risth=ej maka/rwn ge/noj... (Argonáuticas, IV, v. 1773)
96
Parece consagrada essa palavra para designar um poema alexandrinizante de tema
mitológico, relativamente curto em comparação com uma epopéia tradicional, espécie
de epopéia em miniatura, e caracterizado, dentre outros traços, por alusões eruditas e
forte presença de discursos diretos e monólogos bem como de digressões e descrições
(ver Enciclopedia Virgiliana, vol.II, p. 340, verbete epillio).
97
Ver o comentário de KROLL (Catull. 7. ed., Stuttgart, Teubner, 1989, p.140-196),
bem como o denso ensaio de David KONSTAN, “Neoteric Epic: Catullus 64”. In:
BOYLE, A. J. Op. cit., p. 59-78.
– 74 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 75 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 76 –
II – FORMAS E PROCESSOS
ALUSIVOS NA ENEIDA
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
1
Na escola do grammaticus, espécie de ensino secundário, depois de o mestre ter lido e
explicado determinado texto (poetarum enarrationem: “explicação dos poetas”, nas
palavras de Quintiliano – Inst. Orat. I, 4, 2), os alunos o liam em voz alta e se esforça-
vam por decorá-lo (ver MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüida-
de. São Paulo, E.P.U., 1990, p. 430).
2
Santo Agostinho retrata situação que certamente vinha se repetindo há séculos: a
predominância do texto literário também no aprendizado do idioma. Obrigado a apren-
der grego através de Homero, mesmo sem conhecer previamente o vocabulário da
língua, de uma forma não natural e sob ameaça constante de punição, a suavidade do
poeta lhe parecia, quando criança, amarga como fel: Nam et Homerus peritus texere
tales fabellas et dulcissime uanus est et mihi tamen amarus erat puero (“Pois também
Homero é hábil em compor tais histórias e frívolo de um modo incomparavelmente
doce, e, no entanto, para mim, uma criança, era amargo”, Confissões, I, XIV, 23).
3
Segundo Donato (Vita 26), tal foi o sucesso das Bucólicas, que freqüentemente eram
cantadas nos teatros; Sérvio (Ad Buc. 6, 11 – apud Enciclopedia Virgiliana, vol. V**,
p. 451) menciona a recitação no palco da sexta bucólica pela famosa Licóride, a aman-
te de Marco Antônio e do poeta Cornélio Galo.
– 79 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 80 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
4
Um pequeno exemplo: no livro X, queixando-se a Júpiter, Vênus lamenta a repetição
da guerra de Tróia e, depois de mencionar Diomedes, diz: Equidem, credo, mea uolnera
restant (“Certo me aguardam, penso, outras feridas”, X, v. 29, na tradução de Odorico
Mendes); o leitor desinformado não saberá que a deusa fora ferida pelo Tidida, em
episódio da Ilíada, e não entenderá o que ela teme ou finge temer. Contentar-se com o
esclarecimento de uma nota de rodapé, como faz o leitor comum, não basta, pois,
geralmente, em tais circunstâncias, o comentador apõe informação sumária que não
leva em conta os aspectos propriamente literários da alusão: pára-se, pois, no meio do
caminho...
– 81 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
5
CAMPS, A. “Lettura del Primo Libro dell’ Eneide”. In: Lecturae Vergilianae. Napoli,
Giannini, 1983, p. 25.
– 82 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
6
Aqui, o autor parece confundir alusão intertextual com alusão a fatos históricos do
passado e da atualidade do poeta; concordaríamos neste ponto, se, ao invés de “cir-
cunstâncias históricas”, lêssemos “literatura anterior ao poeta e a ele contemporânea”,
isto é, a tradição literária em que se insere Virgílio.
7
Idem, p. 25-26.
– 83 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
8
Será preciso dizer que atribuímos outro valor à noção de imitatio tal como desde a
Antigüidade se vem conceituando o termo?
– 84 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
9
LYNE, R. O. A. M. Further Voices in Vergil’s Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1992,
p. 103.
10
Divergimos em parte desse estudioso ao questionar sua afirmação de que o leitor tem
de estar conciente de textos e contextos evocados (“To read the Aeneid is to be
constantly aware of other texts in and behind the new creation”, p. 103). Para ajudar o
leitor, o poeta lhe lançaria “sinais” que apontam para o confronto intertextual; de fato,
tais “sinais” existem, e nós mesmos apontaremos alguns, dirigidos ao leitor atento,
capaz de compreender a alusão e extrair dela sentidos, mas, para nós, esse é o grau
“ideal” de leitura intertextual, não necessariamente inscrito na estrutura da obra como
indispensável à significação; ou seja, com suas constantes alusões, cuja teia sutilíssima
perpassa todo o poema, várias camadas de sentido se somam ao sentido linear, possibi-
litando graus de aproximação intertextual. O próprio Lyne, de resto, mitigará a afirma-
ção acima transcrita dizendo, mais de uma vez, que se pode ler a epopéia sem prestar
ouvidos a essas vozes sub-reptícias sob o tecido narrativo de superfície, mensagens que,
por vezes, estariam em conflito com sua ideologia explícita.
– 85 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
1. CITAÇÃO E CONDENSAÇÃO
11
“A bibliografia virgiliana é tão vasta que, se é muito difícil, para não dizer impossível,
poder-se vangloriar de ter dela conhecimento exaustivo, não é também fácil dela co-
nhecer completamente setores específicos...”, declara Giancotti (In: GIANCOTTI,
Francesco. Victor Tristis. Lettura dell’Ultimo Libro dell’ “Eneide”. Bologna, Pàtron,
1993, p. 2, nota 2).
– 86 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“De um lado, pode querer dizer que Enéias, exatamente como a mecha
de cabelos, é obrigado a obedecer à vontade do destino; por outro /.../
pode-se pensar que Virgílio queira deixar entender que, como a mecha,
Enéias se encaminha para a deificação...”13
12
NORDEN, Eduard. Op. cit., p.154.
13
Enciclopedia Virgiliana, verbete Catullo. Granarolo não diz que a segunda hipótese
fora já proposta por Thorton em 1962 (cf. HIGHET, Gilbert. The Speeches in Vergil’s
Aeneid. Princeton, Princeton University Press, 1972, p. 202, nota 18).
14
CARTAULT, A. L’Art de Virgile dans l’Énéide. Paris, Bibliothèque de la Faculté de
Lettres de l’Université de Paris, 1926, v. I, p. 510.
– 87 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
texto”.15 Por outro lado, Nicholas Horsfall julga que há, nessa trans-
posição virgiliana, “intenção literária pelo menos em parte humorísti-
ca”.16 A diversidade de interpretações revela quanto de enigmático e
desafiador pode haver na trama intertextual da Eneida.
Nossa interpretação só pode ser anunciada aqui; compreender-
se-á melhor nossa leitura quando analisarmos o conteúdo elegíaco do
livro IV da Eneida, cujos ecos ressoam no encontro do livro VI. Em
resumo, tudo o que diz respeito à história de amor entre Dido e Enéias
é filtrado pelo código elegíaco (e trágico), desse modo incorporado ao
épico; a reminiscência catuliana, em passagem que encerrará o episó-
dio das relações entre os dois amantes, selando o fim definitivo de uma
paixão que obstaculizava o cumprimento dos destinos, faz comparecer,
num vislumbre, a atmosfera elegíaca que tinha dominado o livro IV,
repleto de expressões do código da poesia elegíaca. Sua inserção num
contexto diverso, em que adquire novo sentido, é belo índice da mu-
dança de estatuto do herói Enéias: Dido permanece sempre a “ferida”
por amor, um ponto a que voltaremos com mais detalhes, mas Enéias
superou-se, e, ao invés de sucumbir ao mero papel de amante elegíaco,
ameaça que parece pairar sobre ele no livro IV e que o impediria de
alçar-se ao nível do herói épico, transcendeu sua subjetividade, assu-
mindo objetivamente a tarefa de tornar-se veículo do divino, executor
piedoso, ainda que sofrido, dos destinos. O código elegíaco é integrado
na estrutura da epopéia e ultrapassado pelo código épico; está presente
com toda a força poética que lhe conferiu Virgílio, mas submetido à
visão de mundo da ação heróica, unificadora ideológica da obra.17
Por vezes, Virgílio traduz verso grego da forma mais fiel; um
exemplo extremo é esta espécie de transcrição de nomes próprios gre-
gos em latim:
15
Op. cit., p. 107.
16
HORSFALL, N. Virgilio: L’Epopea in Alambico. Napoli, Liguori, 1991, p. 63.
17
Sem fácil monologismo, porém: vozes dissonantes ganham seu espaço na estrutura da
epopéia. Sobre este último ponto, vejam-se as análises, muitas vezes brilhantes, em que
pese aos ocasionais exageros, de LYNE, R. O. A. M. Op. cit. (a ler de forma crítica).
– 88 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Alkandro/
)/ n te Noh/mona/ te Pru/tani/n te. (V, v. 678)
n q ) Alio/
/(
– 89 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
20
Op. cit., p. 710.
21
Como era de se esperar, houve mesmo quem o considerasse espúrio (ver FORBIGER,
Albertus. Vergili Maronis Opera. Editio quarta, Lipsiae, I. C. Hinrichs, MDCCCLXXV,
pars III, p.311).
– 90 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Aeole, namque tibi diuom pater atque hominum rex (I, v. 65)
– 91 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
passagens de muitos versos mais que Marão transpôs dos Antigos para sua obra com
mudança de poucas palavras”).
23
Nossa edição, da UTET, traz diuum; parece-nos evidente, porém, que a melhor lição é
mesmo diuom.
24
Em Virgílio, os recursos épicos da tradição (epíteto, fórmula, etc.) tendem a se motivar:
uma repetição, por exemplo, mais que marca de estilo formular, pode gerar sentido; um
epíteto, ao invés de ser empregado mecanicamente, chama a atenção, pelo contexto
em que aparece, para um aspecto do personagem, etc. Há algum tempo, costumava-se
– 92 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
obra de Ênio, porém, faz que não possamos afirmar com certeza o
caráter “neutro” de tal alusão; pelo que nos é dado julgar, parece ser
simples marca genérica.
Uma das formas de citação em Virgílio é a “condensação”, es-
pécie de contaminatio em miniatura; o primeiro nome é sugerido por
Farrell, que exemplifica com dois versos homéricos reduzidos a um
por Virgílio:
enq’
/) ar
/) ehn
)/ Glau/kh te Qa/leia/ te Kumodo/kh te,
( h te bow=pij(Il. XVIII, v. 39-40)
Nhsai/h Speiw/ te Qo/h q )Ali/
opor Virgílio a Homero sob tal aspecto de suas respectivas obras, mas recentemente os
estudiosos têm mostrado algo semelhante em passagens do poeta grego.
25
Op. cit., p. 94.
– 93 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
26
No primeiro caso, pronome; no segundo, advérbio com valor temporal: mas se trata da
mesma raiz demonstrativa.
– 94 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
27
Literalmente: “Abrandam-se as ondas e, sob o eixo toante,/ aplaina-se a túmida super-
fície das águas, fogem do vasto éter os nimbos”.
28
Os dois primeiros versos retomam I, v. 357-358, em que também se mostra a dor de
Aquiles, mas aqui ressentido pela atitude de Agamenão, que lhe tomara Briseida. O
contexto e as outras alusões, porém, revelam que é a outra passagem da Ilíada que
Virgílio tem em mente.
29
“(O urrar medonho) ouviu-lhe a augusta madre/ Com seu pae no aqueo pego, e ulula
e geme” (Odorico Mendes).
– 95 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 96 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
30
Literal e prosaicamente: “Qual Apolo, quando a Lícia hibernal e a corrente do Xanto/
abandona e visita a materna Delos/ e instaura coros; ao redor dos altares, mesclados,/
fremem os cretenses e os dríopes e os agatirsos pintados; / ele caminha pelos jugos do
Cinto e com tenra fronde/ os cabelos ondulantes ajeitando ata e os envolve em ouro,/
dardos ressoam-lhe nos ombros: não menos valoroso que ele ia/ Enéias, beleza tão
grande brilha em sua face egrégia!”
31
NOUGARET, L. Traité de Métrique Latine.Paris, Klincksieck, 1948, p. 50, § 125.
Sobre o tema, pode-se consultar este ensaio de Janssen, com as notas de Lunelli: “Le
Caratteristiche della Lingua Poetica Romana” In: LUNELLI, Aldo (Org.). Op. cit., p.
88 e ss.
– 97 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
mollique fluentem
a b
fronde premit crinem (v. 147-148)
A B
32
Nenhum dos fragmentos de Ênio trazem esse esquema; encontrá-lo-emos, antes de
Virgílio, em Catulo e em Lucrécio; certos fragmentos poéticos de Cícero trazem esque-
ma similar, mas não o autêntico verso aureus, segundo CONRAD, Carl. “Traditional
Patterns of Word-Order in Latin Epic from Ennius to Vergil” In: Harvard Studies in
Classical Philology, vol. 69, 1965, p.236. Sobre o tema, consulte-se NORDEN, E. Op.
cit., p. 392-398.
– 98 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
oiÂoj d e) k
) nhoi=o quw/deoj eiåsin Apo/
) llwn
Dh=lon a) n h ) g
) aqe/hn h)e\ Kla/ron h)/ o(/ ge Puqw\
h)/ Luki/hn eu)rei=an e)pi\ Ca/nqoio r (ov=si!
toi=oj a) na\ plhqu\n dh/mou ki/en, wå rto d a ) ) uth\
keklome/nwn a)/ mudij. (Argonáuticas, I, v. 307-311)
33
CLAUSEN, Wendell. Virgil’s Aeneid and the Tradition of the Hellenistic Poetry.
Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1987, p. 22.
34
Um poeta como Virgílio reveste maximamente de sentido os recursos formais a sua
disposição, por isso devemos sempre estar atentos: etiquetar como mero “adorno” po-
ético certas construções refinadas pode ser enganoso. Carl Conrad, no artigo já citado,
analisa alguns efeitos de sentido que surgem do emprego da “Golden Line” ou de es-
quema semelhante (p. 235-241).
– 99 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
eklagcan
/) d ) ar
)/ ) o)is / wn (I, v. 46)
+ toi\ e )p ) w)m
– 100 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
36
Em Ovídio, por exemplo: Phoebus adest: sonuere lyrae, sonuere pharetrae / signa deum
nosco per sua (“Febo me assiste: ressoaram as liras, ressoaram as fáretras/ reconheço o
deus por seus sinais”, Remedia Amoris, v. 705); note-se o mesmo verbo empregado por
Virgílio – sonare. Na própria Eneida, a aljava de Apolo em fuga ressoa: Agnouere
deum.../pharetramque fuga sensere sonantem (“Reconheceram o deus.../ e sentiram o
ressoar da fáretra em sua fuga” IX, v. 659-660).
– 101 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
37
Em grande parte precedido por Otis, que fala dos “omninous overtones of the Homeric
Apollo about to shoot his pestilential arrows”(p. 74); “Dido has indeed been ‘shot’ by a
cruel hunter but he is Aneas, not the light hearted Cupid”(p. 75). OTIS, Brooks.
Virgil. A Study in Civilized Poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963.
– 102 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 103 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
illa pharetram
fert umero (I, v. 500-501)
“ela a fáretra
leva nos ombros...”
Ironia trágica, por via intratextual: num símile do livro IV, que
haveremos de comentar mais detalhadamente, Dido será comparada a
uma corça caçada por um pastor, ferida de morte por uma seta, numa
inversão temática que salienta a queda sofrida pela personagem, sua de-
gradação de ser ativo a passivo, de caçadora a caça, exemplo da funcio-
nalidade semântica do símile nessa epopéia requintada, alexandrinizante.
Para o leitor de Apolônio, contudo, esse jogo intratextual reproduz, com
toques originais, um dado intertextual; de fato, nas Argonáuticas, Medéia,
um dos “modelos” da complexa Dido, é primeiramente comparada a
Ártemis caçadora, diante de cujo carro as feras tremem:
– 104 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
38
É digno de nota que esses símiles aplicados a Medéia comparecem nos livros III e IV; na
Eneida, os “equivalentes” surgem nos livros I e IV; ora, se tivermos em mente que os
livros II e III trazem a narrativa de Enéias, quebrando a ordem cronológica dos aconte-
cimentos, poderemos dizer que, abstraindo-se desse “interlúdio”, o poeta segue o exemplo
de Apolônio: um símile em cada livro, em sucessão que vai dos aspectos positivos da
situação do personagem (Dido em seu papel de rainha e fundadora de uma comunida-
de) aos negativos (a mulher devastada por uma paixão que a arruína); a distância,
porém, desafia a atenção do leitor mais experimentado, que deve associar as duas ima-
gens separadas por centenas de versos para saborear-lhes o confronto.
– 105 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
39
É a leitura mais óbvia, aparentemente: Enéias celebra suas proezas bélicas como o
próprio poeta canta arma uirumque.
40
Citado por Paratore, em seu comentário ao livro IV, no volume II de sua edição da
Eneida, p. 185, e por BUSCAROLI, Corso. Il Libro di Didone. Milano, Dante Alighieri,
1932, p. 54.
41
Para quem o sentido é o de narrar com o tom da epopéia.
42
Paratore aventa a hipótese de que convirjam os dois sentidos: a feição épica dos fatos
narrados e a suavidade da voz: “Talvez seja exata uma interpretação que leve em conta
ambos os sentidos”, diz.
43
Forbiger (1873), tomo II, p. 427-428, retomando Wagner.
44
Inst. Or.VIII, 6, 38.
45
Thesaurus Linguae Latinae. Lipsiae, Teubner, MDCCCCVI-MDCCCCXII, v. III,
p. 267, B.
46
Op. cit., vol. II, p. 218, nota ao verso III, 438.
– 106 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
II, 124 (canebant), 176 (canit), 239 (canunt: canto religioso -sacra);
III, 155 (canit), 183 (canebat), 366 (canit), 373 (canit), 438 (cane),
444 (canit), 457 (canat), 559 (canebat); V, 524 (cecinerunt); VI, 76
(canas), 99 (canit), 345 (canebat); VII, 79 (canebant), 271 (canunt),
398 (canit: o sujeito é Amata, que simula estar possuída por Baco);
VIII, 49 (cano), 340 (cecinit), 499 (canens), 534 (cecinit), 656 (canebat
– no escudo de Enéias, representa-se o ganso que revelou aos Romanos
a chegada funesta dos gauleses)48; IX, 621 (canentem); XI, 399 (cane);
XII, 28 (canebant), 864 (canit: o canto funesto da Dira).49
47
Idem, ibidem, vol. III, p. 216, nota ao verso IX, 621.
48
Sérvio aponta a matiz do verbo no contexto: quasi praediuinabat: nam ‘canere’ et
dicere et diuinare significat (“como que pressagiava, pois canere significa tanto ‘dizer’
quanto ‘pressagiar’ ”, op. cit., vol. II, p. 295).
49
Notável a freqüência, como se vê: a Eneida é um poema religioso; quanto à presença
maior no canto III, basta lembrar a temática do livro para entender-lhe a motivação:
vagam por mares e terras os troianos, buscando em profecias e oráculos o esclarecimen-
to da vontade divina sobre o destino de sua peregrinação.
– 107 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
50
Expressão de LEJAY-PLESSIS. Oeuvres de Virgile. Paris, Hachette, 1930, p. 393.
51
Pois Dido menciona guerras (bella); está em foco aqui a destruição de Tróia, que per-
mitiu a Enéias, em sua inútil resistência, alguns feitos bélicos, e não a narrativa subse-
qüente, no livro III, dos labores por terra e mar, em que não há propriamente guerras e
que tem outro ponto de partida: a narrativa de Odisseu aos feácios, esta, sim, em
primeira pessoa.
52
VIII, v. 499-520. Ver KNAUER, Georg. Die Aeneis und Homer. Göttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1964, p. 172.
– 108 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 109 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
54
Facta infecta loqui (Tebaida III, v. 430), apud CONINGTON. Op. cit., volume I,
p. 270. Parece-nos que, aplicado a esse ser monstruoso, o verbo expressa sua divindade
(de fato,Virgílio a representa como filha da Terra, IV, v. 178); nesse caso, de novo
“sacred utterance”.
55
Conington percebera a possibilidade dessa relação, num comentário demasiado breve,
que merecia desenvolvimento: “Virg. may have been identifying the narrative of Aeneas
with his own heroics” (Op. cit., volume II, p. 250, nota ao verso 14).
– 110 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
du/natai ga\r,
Palla\j Aqhnai/
) h! se\ d )o)durome/nhn e)leai/rei!
h)/ nu=n me proe/hke tei\n ta/ de muqh/sasqai (Od. IV, v. 827-829)
56
HEINZE, Richard. Virgils Epische Technik. Stuttgart, Teubner, 1957, p. 188. Como
se sabe, dentre os estudos de conjunto sobre a Eneida, este é um dos melhores, senão o
melhor, apesar de ultrapassado em alguns pontos – segue sendo modelar, malgrado o
passar do tempo. Sinal evidente de sua importância: recentemente, foi traduzido para
o inglês, demonstrando que suas análises continuam a despertar interesse.
57
Cumpre observar, sem nos determos na análise, que o episódio da aparição de Alecto a
Turno se apóia em outras retomadas de Homero, mais um exemplo da complexidade
da técnica alusiva virgiliana. Evoca o poeta, sobretudo, a cena iliádica do sonho envia-
– 111 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
do por Zeus a Agamenão (II, v. 16-34), incitando-o a armar o exército para combater
os troianos: era chegada a hora de tomar a cidadela de Príamo. Ora, Agamenão é
enganado por Zeus, que deseja trazer desgraça para os aqueus para honrar o ausente
Aquiles, e é chamado “tolo” (o, v. 38) pelo próprio narrador. A evocação sugere para-
lelos intertextuais: se Zeus faz Agamenão acreditar em uma falsidade – afinal Tróia não
cairia ainda – iludindo-o sobre os decretos divinos, Turno, sob a influência concreta de
Alecto – que lhe lança uma tocha sobre o peito – acreditará numa quimera ao pensar
que pode impedir a união de Enéias e Lavínia. Sobre esse confronto, veja-se KNAUER.
Die Aeneis und Homer, p. 236-237, a quem seguimos de perto nas observações desta
nota.
58
Damos por rejeitada em definitivo a hipótese de que as linhas (conservadas por Sérvio
e por uma das Vitae) que constituiriam inicialmente o incipit da epopéia, seriam, se
virgilianas de fato, mantidas pelo poeta em sua edição, caso tivesse ele vivido para
revisar e publicar o poema. De nossa parte, somos avessos até mesmo a admitir a auten-
ticidade desses versos, que, porém, Perret e Odorico Mendes incorporaram a suas edi-
ções da Eneida. Boa síntese das discussões travadas a respeito pode-se ler no comentá-
rio de Paratore, volume I, p. 123-125. Recentemente, Horsfall expressou a recusa taxativa
da autoria virgiliana desses versos: “Nunca foram escritos por Virgílio...” (HORSFALL,
Nicholas. A Companion to the Study of Virgil. Leiden, E. J. Brill, 1995, p. 24).
– 112 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Andra
/) moi e)n/ nepe, Mou=sa, polu/tropon, o)j / ma/la polla\
pla/gxqh, epei\ ) Troi/hj iero\( n ptoli/eqron e)p / erse!
pollw=n d a ) )nqrw/pwn iden )/ a)/stea kai \ no/on e)/gnw,
polla\ d o ) /( g e
) n/) po/nt% pa/ qen a)l
/ gea o)n/ kata\ qumo/n,
a)rnu/menoj h)n/ te yuxh\n kai\ no/ston e (tai/rwn.
a)ll )ou d) w
) â j e (ta/ rouj e)rru/sato, i(e/meno/j per!
– 113 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 114 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
59
CAIRNS, Francis. Virgil’s Augustan Epic. Cambridge, Cambridge University Press,
1990, p.191.
– 115 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
I, 119; II, 668; IV, 495; VI, 814; IX, 620, 777; XI, 124, 125 (armis),
696, 747.
60
Sérvio, edição THILO, volume I, p. 6. Esse “quiasmo” estrutural já se reflete na própria
proposição: arma contrapõe-se a multum ille et terris iactatus et alto (parte odissíaca),
seguido de multa quoque et bello passus (parte iliádica: arma). Ver TRAINA. “Tre
Versioni del Proemio dell’Eneide” In: Poeti Latini (e neolatini). Note e Saggi Filologici.
Bologna, Pàtron, 1989, III serie, p. 118.
61
Também o princípio de Os Lusíadas é com freqüência interpretado como hendíadis,
até mesmo por estudiosos do gabarito de José Maria Rodrigues (ver FRANCA, Rubem.
As Armas & Os Barões. Recife, Unicap, 1973, p. 12; o autor dedica seu ensaio a esse
tema, aventando, com notável cautela, a hipótese de que não haja tal figura nesse
célebre início da epopéia portuguesa).
– 116 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
62
Veja-se o anúncio da Eneida em Propércio II, 34, especialmente o verso 63, em que
arma é a mesma metonímia que emprega Virgílio.
– 117 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
63
Dentre outros, observou-o QUINN, Kenneth. Virgil’s Aeneid. A Critical Description.
London and Henley, Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 41.
64
Na tradução enxuta de Haroldo de Campos: CAMPOS, Haroldo & VIEIRA, Trajano.
MHNIS. A Ira de Aquiles. São Paulo, Nova Alexandria, 1994, p. 31.
– 118 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
65
CAIRNS, F. Virgil’s Augustan Epic, p. 202. De fato, a Eneida também narra a história
da ira de Juno, cujo furor contaminará Dido (aqui, com a ajuda de Vênus, natural, pois
que o meio de que se servirá Juno é a paixão amorosa) e Turno (com o auxílio de
Alecto, já que se trata de inocular no jovem rútulo o amor a uma guerra celerada,
verdadeiro conflito civil). Apoiando-se nas paixões humanas, que beiram a loucura,
Juno age, portanto, semeando o sentimento maior que a move em sua perseguição aos
troianos; só no final da Eneida, veremos a esposa de Júpiter renunciar aos seus ódios,
acatando o desejo de Júpiter e, finalmente, pela primeira vez, demonstrando o senti-
mento que detestava ver nos seus inimigos: alegria (laetata, v. 841; notemos que no
livro I e no VII, a ação nefasta da deusa se desencadeia ao ver os troianos laeti). Como
a Ilíada termina com o fim da terrível cólera de Aquiles (contra Agamenão e, depois,
contra o cadáver de seu inimigo Heitor), a Eneida concluirá com a deusa reprimindo
sua fúria (pelo menos até às guerras púnicas); no livro XII, Júpiter a exorta: Verum age
et inceptum frustra summite furorem (“Mas, vamos!, submete um furor em vão desen-
cadeado!”, v. 832).
66
Mas é interessante relevar que memorare significa, ao mesmo tempo, “lembrar”e “refe-
rir”, como o grego; ressaltou-o Benveniste (apud DETIENNE, Marcel. Os Mestres da
Verdade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Zahar, s.d., capítulo II, nota 3, p. 79). Na
própria epopéia, o verbo aparece empregado com outro sentido que o de “lembrar”(VIII,
v. 79).
– 119 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Arxo/
) menoj se/o Foi=be palaigene/wn kle/a fwtw=n
mnh/somai (I, v. 1-2)
67
“Metrical Imitatio in the Proem of the Aeneid” In: Harvard Studies in Classical Philology,
vol. 91, 1987, p. 261-271.
68
No caso da Eneida, Virgílio realça o último substantivo do verso fazendo-o vir num
sintagma que é o mais longo dos três coordenados, isto é: genus Latinum (cinco síla-
bas), Albanique patres (seis), altae moenia Romae (sete). “A primeira frase de Virgílio
termina com o enfático Romae – o clímax de uma tríade ascendente...tendo cada
membro uma sílaba a mais que o precedente”, nas palavras de QUINN. Op. cit., p. 41.
Que a “Aquiles”corresponda “Roma”, no proêmio virgiliano, é significativo: mais que
um herói em particular, mais que Enéias, cujo nome aparecerá pela primeira vez só no
verso 92, o poema tem em vista a perspectiva de uma cidade que representa um mode-
lo de civilização; o troiano é, por certo, seu herói arquetípico, mas a obra não se centra
na mera narrativa das aventuras de um varão. Enéias, ao contrário de Aquiles ou
Ulisses, carrega sobre os ombros o peso de um futuro que faz de sua gesta um paradigma
cuja transcendência a trama nunca perde de vista. Assim, seus amores com Dido terão
como efeito a guerra contra Cartago; suas lutas no Lácio serão o protótipo das guerras
civis: em suma, sua “estória”, na perspectiva do leitor, se torna história.
– 120 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Atrei/
) dhj te a)/ nac – Albanique patres
– – –
(primeira palavra) (segunda) (terceira)
– 121 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
mh=nin a)e
/ ide qea/
70
Não nos é possível desenvolver a contento, aqui, um tema fascinante: há, nas próprias
epopéias homéricas, um jogo intertextual comparável com o da Eneida. Os proêmios
da Ilíada e da Odisséia têm elementos lingüísticos (lexicais, sintáticos) semelhantes,
atribuíveis, sem dúvida, a uma tradição épica, mas é difícil escapar à observação de que
o confronto entre eles faz relevar contrastes de sentido bastante significativos. Aponte-
mos os paralelos mais evidentes:
– Ambos se iniciam por uma palavra que define o tema central, no caso acusativo
(mh=nin, a)n/ dpa; compare-se com o virgiliano arma uirumque);
– Um adjetivo de quatro sílabas modifica esse substantivo inicial (ou )lome/nhn,
polu/tropon);
– O sintagma substantivo/adjetivo é desenvolvido por oração adjetiva (h(\ muri / )
Axaioi=
) \ ma/ la polla/; em Virgílio: Troiae qui primus ab oris);
j... o(j
– Em ambos os proêmios, presença marcante de quantificadores (muri,/ ) polla/ j;
polla/, pollw= n, polla/ );
– Invocação à Musa.
Deixamos para o fim, e destacamos, o paralelo mais interessante, a nosso ver. Nos dois
proêmios homéricos há referência a sofrimentos. Entretanto, enquanto na Ilíada se
menciona um Aquiles que foi o causador de dores sem conta em seus companheiros,
na Odisséia se fala das dores que o próprio protagonista sofreu. Num caso, a expressão
é a)l / hke; no outro, pa/ qen a/)lgea. Comparando-se as duas, nota-se o con-
/ ge ) e)q
traste evidente dos dois processos verbais, distinguindo enfaticamente a saga dos pro-
tagonistas. Será que Virgílio, poeta impregnado de Homero, não terá lido o predecessor
– 122 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
com mais atenção que muitos estudiosos ao longo dos séculos? Não teria ele percebido
que nas epopéias homéricas há uma espécie de jogo alusivo passível de se transformar
numa técnica compositiva? Mera especulação, mas faz pensar...
71
Op. cit., p. 120-127.
– 123 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
72
Op. cit., p. 11. Tratar-se-á de erro de revisão?
73
Além do já citado Caro, Albini e Bacchielli tentaram a difícil empresa. No campo da
concisão, ambos perdem para Odorico: onze versos contra nove. Sobre o primeiro,
consulte-se TRAINA (Op. cit., p. 124-126); quanto ao segundo, sua tradução está no
volume indicado a seguir: VIRGILIO. Eneide. Versione poetica, introduzione e
commento di Adriano Bacchielli. Torino, Paravia, 1991, p. 19.
– 124 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
74
Op. cit., p. 7-14.
– 125 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
75
Dezoito, precisamente, segundo o cômputo de POMATHIOS, Jean-Luc. Le Pouvoir
Politique et sa Représentation dans l’ Énéide de Virgile. Bruxelles, Latomus, 1987,
p. 132.
– 126 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 127 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 128 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
4. INTRATEXTUALIDADE
76
MOSKALEW, Walter. Formulaic Language and Poetic Design in the Aeneid. Leiden,
Brill, 1982, p. 73.
77
Idem, p. 79.
– 129 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 130 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
ção possível, que deve ser justificada pela adequação ao contexto ge-
ral e apoiada por indícios seguros, sob pena de se perder na excessiva
divagação, risco a que nem mesmo o próprio Moskalew escapa.78
Enfim, coerência e apoio no texto: eis as diretrizes que não po-
demos deixar de seguir, se quisermos evitar os excessos de interpreta-
ção, especialmente freqüentes nos que operam a leitura dita “simbóli-
ca” da Eneida. Deve-se, acima de tudo, resistir à tentação de ver, em
toda e qualquer repetição, um efeito de sentido, uma operação
interpretativa que vem, por vezes, em certos autores, acompanhada
de considerações tão forçadas e artificiais que comprometem e
distorcem o sentido da obra em seu conjunto.
Impossível negar, contudo, que Virgílio parece comprazer-se em
extrair sutis sugestões da auto-alusão no corpo de sua Eneida; é o caso
do símile aplicado a Turno em XII, v. 4-9, que evoca o célebre símile
de IV, 68-73, em que Dido é comparada a uma corça79 ferida. Lyne
comenta a relação, se bem que suas ilações nos pareçam, em mais de
um ponto, exageradas.80 Analisemos a passagem; Turno, exaltado pelo
78
Ao que parece, o abuso interpretativo na consideração da recorrência verbal atinge um
dos estudos sobre a Eneida que vem influenciando a muitos, The Poetry of the Aeneid,
de Michael Putnam, ao qual, infelizmente, não tivemos acesso. Críticos profundos e
ponderados, porém, têm criticado esse aspecto da obra; a título de exemplo, citamos
CONTE, G. B. Virgilio. Il Genere e i suoi Confini. Modelli del Senso, Modelli della
Forma in una Poesia Colta e ‘Sentimentale’. Milano, Garzanti, 1984, p. 156.
79
Notemos, de passagem, que a escolha do animal não parece gratuita; é verdade que
Virgílio retoma Apolônio, como logo veremos, mas é significativo que Dido seja associ-
ada com Diana (no símile de I, v. 498-504), a lua (por exemplo, no símile de VI, v. 453-
454: a primeira visão que de Dido tem Enéias nos Infernos comparada à de alguém que
vê ou crê ter visto a lua em meio às trevas) e a corça. Nas palavras de Junito Brandão
(Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis, Vozes, 1991, vol. I), Diana-Ártemis “esta-
va estreitamente ligada a Hécate e a Selene, personificação antiga da Lua”(p. 122), e a
corça era o seu animal predileto (p. 121).
80
LYNE, R.O.A.M. Words and the Poet. Characteristic Techniques of Style in Vergil’s
Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1989, p. 163. Pöschl, bem antes de Lyne, apontava
essa ligação Turno-Dido e tecia sobre ela comentários interessantes, aos quais voltaremos
no último capítulo deste trabalho (cf. PÖSCHL, Viktor. Die Dichtkunst Vergils. Bild
und Symbol in der Äneis. Innsbruck-Wien, Margarete F. Rohrer, 1950, p. 183-184).
– 131 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Em Odorico Mendes:
81
A nosso ver, a boa tradução se enfraquece no verso final: Odorico perde a seqüência
uiolentia Turno, associação significativa para a caracterização do personagem.
82
Uma tradução autenticamente poética deverá manter o delicado jogo fônico do último
verso: haeret lateri letalis harundo, em que os sons comparáveis se agrupam em quiasmo;
– 132 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
além disso, em haeret harundo e lateri letalis (como, no verso anterior, em siluas
saltusque) temos a chamada “aliteração com vogal interposta variável”, um esquema
sonoro que talvez provenha da linguagem sacerdotal e se tornaria uma das marcas da
língua da épica, segundo CECCARELLI, Lucio. L’Alliterazione a Vocale Interposta
Variabile in Virgilio. Roma, Japadre, 1986, p. 3. Sua definição do fenômeno: “aquela
variedade particular de aliteração caracterizada pela mudança da vogal ou do ditongo
intermédio entre consoantes iguais” (ibidem). O autor, entretanto, não considera haeret
harundo em sua análise das aliterações desse tipo na passagem em foco (p. 89-90),
provavelmente por levar em consideração que o h inicial é marca de aspiração, e não
propriamente consoante, como já pensavam os gramáticos latinos antigos (nota
aspirationis; ver NIEDERMANN, M. Phonétique Historique du Latin.Paris,
Klincksieck, 1953, p. 99). Mas nenhum critério técnico eludirá o fato de que essa
associação de sons comparece próxima de duas outras aliterações “com vogal interpos-
ta variável”.
83
Words and the Poet, p. 163.
– 133 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 134 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
88
Cremos que essas nossas considerações servem de alerta contra a tendência a distinguir
um paralelo demasiado cerrado entre Dido e Turno (no quarto capítulo deste trabalho,
nós mesmos afloraremos o tema) e a julgar que o poeta traçou deste último um retrato
muito positivo; retornaremos à questão, ao analisar os efeitos intertextuais na caracte-
rização de Turno.
89
Já em Apolônio de Rodes, seguido de perto por Virgílio no livro IV, encontramos a
associação entre a ferida de amor e o fogo. Atingida por Cupido, eis o estado de Medéia:
be/loj d e ) n) edai/eto kou/rv / ne/rqen u(po\ kradi/v, flogi\ eikelon
)/ (“A seta ar-
dia/ no fundo do coração da moça, semelhante a uma chama...”: Argonáuticas III, v. 286-
287). Na epopéia de Virgílio, porém, as imagens perpassam todo o episódio e se revestem
de significação surpreendente: “Essas seqüências de imagens de fogo e ferida...(...) intro-
duzem, entre outras coisas, um sentimento de trágica inevitabilidade. A ferida de amor
de Dido se transforma...na ferida do suicídio, e o fogo de seu amor se transforma...nos
fogos de sua pira”, diz LYNE (Further Voices, p. 120, nota 31), retomando belas observa-
ções de Pöschl e Otis. É interessante notar, por outro lado, que Ovídio relacionara de
perto a imagem da ferida de amor com a ferida concreta do suicídio de Dido, já propondo,
portanto, essa leitura do episódio, como o revela a epístola de Dido a Enéias, uma de suas
Heróidas:
Nec mea nunc primum feriuntur pectora telo;
Ille locus saeui uulnus amoris habet. (VII, v. 189-190)
“Nem é agora a primeira vez em que meu peito é ferido:
esse lugar conserva a chaga de um amor cruel”.
Lembremos que as metáforas para a paixão de Dido aparecem logo no início do livro
IV:
At regina graui iamdudum saucia cura
uolnus alit uenis et caeco carpitur igni. (v. 1-2)
– 135 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
estudiosos do poeta que, no livro VI, quando Enéias revê Dido nos
Infernos, ainda sangrando da ferida, Virgílio sugere, pela intratextua-
lidade, em discreta alusão, a comparação inicial da rainha com
um...animal ferido. Vimos que no símile do livro IV a corça é retrata-
da em fuga por selvas e florestas (illa fuga siluas saltusque peragrat);
no livro VI, além da referência a uolnus, devemos observar atenta-
mente estas palavras:
refugit
in nemus umbriferum (v. 472-473)
“Refugiou-se
numa floresta umbrosa...”
Por fim, observemos que a concepção do amor como ferida e fogo é um topos de larga
difusão no Ocidente; no mito, Eros-Cupido é freqüentemente representado portando
a tocha além das setas que ferem. Quanto à recorrência da metáfora na tradição literá-
ria (mas até em letras de música popular a vemos, mais ou menos explícita), recorde-
mos um exemplo mais que célebre, o soneto de Camões:
“Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente...”
Quando, na ópera de Wagner, Parsifal recebe de Kundry o primeiro beijo de amor, o
herói exclama, transtornado, que a ferida arde em seu flanco (“Die Wunde! – Die
Wunde! – / Sie brennt mir hier zur Seite”).
O tema, a história desse topos, está a merecer toda uma pesquisa específica.
– 136 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
90
Com o verbo errare, Virgílio pode estar, também, aludindo à etimologia que os Antigos
já propunham: Dido significaria “a errante”, nome que lhe teria sido dado pelos líbios
em referência ao exílio que a levou às terras africanas. De fato, na prece do rei Jarbas a
Júpiter, fala-se na femina...errans (IV, v. 211): essa recorrência faz pensar. Sabemos
que o poeta se compraz em evocar etimologias; por outro lado, aceitando-se tal motiva-
ção para o emprego desse verbo, não se invalida a alusão intratextual proposta – estamos
acostumados com a habilidade de sua arte.
– 137 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
91
Ver sua útil “lista de repetições” (p. 184-245).
92
A retomada da imagem realça a idéia de que nos Campi Lugentes os mortos por amor
conservam as marcas da paixão que os arruinou: nem aqui deixam de sofrer (por isso,
lugentes, particípio presente, em sintagma quase intraduzível com campi). Como diz
Virgílio, curae non ipsa in morte relinquont (“Não os abandonam os sofrimentos amo-
rosos – curae – nem mesmo na morte”, VI, v. 444). De fato, a ferida de Dido é recens,
como se depreende da atitude mesma da rainha, ponto a que voltaremos no capítulo
seguinte.
93
Ceruus animal est timidum, uelox, iracundum, incautum (“O cervo é um animal me-
droso, veloz, iracundo, incauto...”), reza um tratado de fisiognomonia (e note-se
incautum: no verso 70 do livro IV, tem-se incautam!): ANONYME LATIN. Traité de
Physiognomonie. Paris, “Les Belles Lettres”, 1981, § 121, p. 135.
– 138 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
94
Further Voices, p. 196-197.
95
Ferus nos parece um dos exemplos mais significativos, em toda a epopéia, do estilo
subjetivo de Virgílio a contaminar a terceira pessoa da narrativa.
96
O verbo fobe/w, além de “assustar”, pode ter esse sentido (ver BAILLY, A. Dictionnaire
Grec Français. Paris, Hachette [s.d.] p. 2088) – talvez essa tenha sido, pelo menos, a
“leitura” de Virgílio, que retrata o animal em fuga.
– 139 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
97
Notemos a expressiva paranomásia uolnus/uoltus; são expressões assim que fazem pa-
recer intraduzível, em todo seu vigor poético, uma obra como a Eneida.
98
Cremos que esse é um dos trunfos tangíveis da chamada crítica simbólica da Eneida,
tantas vezes demasiado inventiva em suas ilações... Além da obra de Pöschl já citada,
pode-se mencionar, com reservas, o estimulante livro indicado a seguir: THOMAS, Joël.
Structures de l’ Imaginaire dans l’Énéide. Paris, “Les Belles Lettres”, 1981.
– 140 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
99
Apud MACRÓBIO, Saturnais, VI, 2, 25.
100
Op. cit., p. 300-301.
– 141 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Aos templos dos deuses, nós, infelizes, para quem seria o último
aquele dia, velamos com festiva fronde através da cidade”.
101
Op. cit., p. 301.
– 142 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
102
Tema tratado à exaustão na bibliografia crítica do poema. Mais recentemente, podem-
se ler as páginas de Moskalew (Op. cit., p. 136-139).
– 143 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Note-se:
VIII X
flammas flamma
uomunt uomit
uertice a uertice
– 144 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
103
Não compreendemos por que a edição de Perret não coloca vírgula após natoque, se a
inseriu após populoque; mesma discrepância na edição de Mynors. As edições de Remigio
Sabbadini e de Paratore coerentemente apresentam vírgula em ambos os versos.
– 145 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
104
Aberração para os Romanos não só por se tratar de uma bárbara (e todo o episódio
elabora a oposição entre o mundo civilizado de Augusto e a barbárie capitaneada por
seu adversário), mas por ser mulher; certamente Antônio deveria parecer, na visão
propagada pela ideologia augustana, tão uxorius quanto o negligente Enéias do livro
IV...Os estudiosos de Virgílio têm apontado o primeiro motivo (aliança com uma es-
trangeira) como motivação da censura explícita do poeta; Sérvio, porém, aponta como
razão maior o fato de uma mulher acompanhar o exército (mulier castra sequebatur),
apenas roçando, a nosso ver, o dado a levar em conta – a reprovação romana à subor-
dinação do homem à mulher, aqui levada a extremas conseqüências, pois que se trata
de partilhar a condução da guerra, assunto masculino por excelência na ideologia ro-
mana. Há que valorizar uma e outra explicação, em nada excludentes. Camões parece-
nos explicitar a dependência, considerada vergonhosa, de Antônio, mostrando o capi-
tão “Romano injusto... preso da Egípcia linda e não pudica” (Os Lusíadas, II, 53, v. 4-8;
modernizamos a ortografia da edição de Epifânio Dias).
105
Boa análise da ideologia que ressuma da descrição da batalha de Ácio no escudo em
QUINT, David. Epic and Empire. Princeton, Princeton University Press, 1993, p. 21-48.
– 146 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
to”. Assim, Augusto tem a seu lado políticos que são como familiares
seus e, como aliado, todo um povo (populo/sociis), como chefe prote-
tor de uma comunidade em peso unida em torno a si106 – eis as
inferências extremas do jogo alusivo.
Neste ponto, faz-se necessária uma advertência. Não cremos
que se deva ler a Eneida como “alegoria” cerrada de fatos contempo-
râneos à época do poeta, como se começou a fazer desde cedo e ainda
hoje se faz; a epopéia não é um “roman à clef”, e interpretá-la nesse
sentido leva aos absurdos de um Drew, que chega a identificar Acates
com Agripa, Mnesteu com Mecenas, Mezêncio com Sexto Pompeu...107
Edoardo Coleiro, que nos fornece essas referências, já que não tive-
mos acesso ao velho livro de Drew (criticado, aliás, em várias outras
obras de estudiosos da Eneida), não aceita esses desvios interpretativos
mas propõe também sua leitura alegórica; em livro recente, chega a
106
O leitor é levado a se esquecer de que se tratava de guerra civil e, como apregoava a
ideologia augustana, associa o conflito a uma guerra externa, com as forças do Ociden-
te, representantes da ordem, combatendo contra as forças desagregadoras do Oriente.
Veja-se QUINN. Idem ibidem. É verdade que, no meio da luta, Virgílioretrata a Dis-
córdia junto a Marte, as Dirae e Belona (v. 700-703), em alusão a guerras civis, mas,
após mencionar a presença dessas divindades, o poeta introduz Apolo, que intervém
para secundar a ação de Augusto. Para nós, habilíssimo escamoteamento da verdade
incômoda para a ideologia augustana, já que Otávio aparece como que combatendo
contra a própria guerra civil, como se esta fosse, de fato, um flagelo das hostes de
Antônio, um inimigo externo como os povos orientais que fogem diante da interven-
ção do deus. Corroborando essa leitura, temos, além da união concorde de todo o
Estado – povo e Senado – ao lado de Augusto, a descrição do triunfo do vencedor: toda
a cidade fortemente unida na alegria geral, no aplauso e no agradecimento aos deuses
(v. 717-718), ambiente muito diverso do que se esperaria de um quadro de pós-guerra
civil. Para interessante contraste, recordemos o final dramático e lutuoso do De
Coniuratione Catilinae, de Salústio (LXI), em que à alegria do exército vencedor se
mesclam dor e luto (Ita uarie per omnem exercitum laetitia, maeror, luctus atque gaudia
agitabantur: “Assim, por todo o exército, propalavam-se, confundidos, a alegria, a tris-
teza, o luto e o júbilo”), por encontrarem-se entre os que tombaram amigos e familiares.
Em Virgílio, que tantas vezes lhe dá voz, nenhuma concessão ao sofrimento dos venci-
dos nesse episódio triunfalista.
107
Apud COLEIRO, Edoardo. Tematica e Struttura dell’ Eneide di Virgilio. Amsterdam,
Grüner, 1983, p. 108.
– 147 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
dizer, por exemplo, que a “guerra de Turno contra Enéias (...) repre-
senta a guerra civil entre Otaviano e Antônio”,108 além de estabelecer
a equação Enéias= Augusto, só aceitável se relativizarmos o sinal
gráfico, isto é, rejeitarmos a equiparação absoluta, e Amata como “ale-
goria de Cleópatra”!109
É evidente que a Eneida contém muitas alusões a fatos contem-
porâneos; aliás, várias referências devem a nós ser obscuras por causa
da distância que nos separa da época de Virgílio; é mais evidente ain-
da que Enéias lembra Augusto em uma série de traços, mas querer
interpretar a sua saga como relato criptográfico das gestas do impera-
dor é, a nosso ver, absurdo e só pode mesmo suscitar os equívocos dos
estudiosos “alegorizantes” mais radicais. Preferimos a cautela de um
Camps, que, apresentando alguns dos “ecos de história romana” (é o
título de um capítulo de sua obra sobre a Eneida), reconhece que tais
“reflexos, normalmente, não são o resultado de um processo sistemá-
tico”.110
Concluindo, também por via intratextual Virgílio associa
Augusto a Enéias como a Anquises e Ascânio, luminares da gens;
tenhamos em mente, todavia, que a epopéia do protagonista exalta o
fundador do império de forma muito mais sutil e profunda, literária,
do que o faria uma narrativa disfarçada e fiel de sua trajetória política.
5. AUTOTEXTUALIDADE
108
Op. cit., p. 19.
109
Idem, p. 21.
110
CAMPS, W.A. Introduzione all’Eneide. Milano, Mursia, 1990, p. 128.
– 148 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 149 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
111
Virgílio parece ter evitado usar uma forma de sequi como o particípio sequens das
Geórgicas, por já ter empregado o mesmo verbo um verso acima (sequiturque, em
referência a Iulo – II, v. 724). É um exemplo de sua notória predileção pela uariatio.
112
Numa tradução francesa literal, nec respexi é assim vertido: “Et je ne tournai-pas-la-
tête-pour voir” (sic). In: VIRGILE. Livres I, II et III de l’Énéide. Expliqués littéralement
par M. Sommer. Paris, Hachette [s.d.], p. 89.
– 150 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
maestusque Creusam
nequiquam ingeminans iterumque iterumque uocaui. (v. 769-770)
“e aflito Creúsa
em vão, sem cessar, de novo e de novo chamei”.
– 151 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
113
Trata-se do que os alemães denominam “Du-Stil”, que insistiria sobre o prestígio do
destinatário, segundo ÉVRARD-GILLIS. La Récurrence Lexicale dans l’Oeuvre de
Catulle. Paris, “Les Belles Lettres”, 1976, p. 75.
– 152 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Em Odorico Mendes:
Nas Geórgicas:
– 153 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
114
“Reprodução” é, no original italiano, doppione. Heurgon sumariza a comparação que
se tem feito entre os dois episódios. Ver Enciclopedia Virgiliana, tomo I, p. 932, verbete
Creusa.
– 154 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“Que fazer? Para onde se lançar, arrebatada pela segunda vez sua
esposa?
Com que pranto comover os Manes, que numes, com sua voz?”
– 155 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 156 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Em Odorico Mendes:
– 157 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
educunt fetus, aut cum liquentia mella – Geórg.: educunt fetus; aliae
purissima mella, v. 163;
stipant et dulci distendunt nectare cellas – Geórg.: stipant et liquido
distendunt nectare cellas, v. 164.
– 158 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
118
Outro exemplo semelhante, envolvendo, também, uma retomada, na epopéia, do poe-
ma anterior: no livro XII da Eneida, Turno (v. 103-106) e Turno e Enéias (v. 715-724)
são comparados a touros; no primeiro caso, o rútulo é comparado ao animal que se
prepara para um combate; no segundo, rútulo e troiano a animais em disputa pelas
fêmeas do rebanho, em versos que ecoam, como os comentadores observam (Conington,
por exemplo), uma passagem das Geórgicas (III, v. 219 e ss.) onde é implícita a
humanização de touros descritos na mesma situação. Na epopéia, símiles que compa-
ram homens a animais, técnica homérica tradicional; nas Geórgicas, humanização
implícita dos últimos, para ilustrar o poder universal do impulso amoroso. Interessa-
nos ressaltar que o elo a ser feito entre as duas obras não é incitado apenas pela relação
de inversão na técnica da similitude, mas, sobretudo, pelos vários ecos textuais que
unem, na memória do leitor intertextual, os textos e contextos. Como fizemos acima
com a descrição das abelhas nas Geórgicas, poderíamos também aqui apontar os vários
índices da antropomorfização dos touros nesse poema; citemos somente este, bastante
eloqüente: o animal vencido se retira “dos reinos de seus ancestrais” (regnis excessit
auitis, III, v. 228). A relação “autotextual” incita-nos a comparar: como os touros das
Geórgicas, os heróis da Eneida também travam luta pelo poder, por um regnum, de
certa forma consubstanciada na disputa pela mão da filha de Latino, por mais que
oblitere esse aspecto a transcendentalização do papel de Enéias, artífice de uma missão
divina, secundada pelos destinos. Pode-se ver uma análise da inter-relação entre esses
textos dos dois poemas virgilianos em NEWMAN, J. The Classical Epic Tradition.
Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 1986, p. 131-133.
119
Só no livro I, que é o que nos ocupa aqui, temos: regina, nos versos 303, 496, 522, 697,
728; reginam, em 594, 674; além disso, note-se: regit, no verso 340; in regia, v. 631;
regali luxu, v. 637; regalis mensas, v. 686.
– 159 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
120
Ver LYNE. Further Voices in Vergil’s Aeneid, p. 7, nota 9.
121
Non coeptae adsurgunt turres, non arma iuuentus
exercet portusue aut propugnacula bello
tuta parant; pendent opera interrupta minaeque
murorum ingentes aequataque machina caelo. (IV, v. 86-89)
– 160 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
6. “CORREÇÃO” ESTÉTICA
– 161 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 162 –
)
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
125
Op. cit., p. 154.
126
Op. cit., vol. III, p. 48.
127
ERNOUT & MEILLET. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Paris,
Klincksieck, 1951, p. 1122.
128
ERNOUT-MEILLET, p. 611.
– 163 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 164 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
132
Veja-se APOLLONIO RODIO. Le Argonautiche. Introduzione e commento di Guido.
Paduano e Massimo Fusilo. 2. ed., BUR, 1988, p. 83, nota aos versos 23-227, e HEINZE.
Op. cit., p. 366-368, nota 2 (sobre a tendência geral à uariatio em Virgílio e o prece-
dente de Apolônio).
– 165 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
133
Uma amostra de “métodos inescrupulosos no uso da língua artística”, segundo COR-
TE, Francesco della. Disegno Storico della Letteratura Latina. Torino, Loescher, 1984,
p. 50.
134
Et multa huius modi Vergilius cum aspera inuenerit mutat (Ed. THILO, tomo II, p.
353).
– 166 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“Lendo Virgílio a Ênio, tendo alguém lhe perguntado o que estava fa-
zendo, respondeu: ‘Procuro ouro no esterco’ ”.
“Ájax não mais resistia: era dominado pela força dos dardos;
domava-o o desígnio de Zeus e os ilustres troianos
a lançar projéteis; terrivelmente, ao redor de suas têmporas, o brilhante
casco, atingido, ressoava; era sem cessar atingido
nos adornos bem feitos; ele sentia cansaço no seu ombro esquerdo
por segurar sempre, firme, o escudo cintilante; e não conseguiam,
ao seu redor, demovê-lo cobrindo-o de dardos.
Era-lhe sempre difícil a respiração, e o suor
de todos os membros do corpo corria, abundante, nem lhe era possível
retomar alento: por toda parte um mal sucedia a outro mal”.
135
Apud Enciclopedia Virgiliana, v. V**, p. 453.
– 167 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
136
Sat.VI, 3, 3.
137
Ou Célio, pois o nome é objeto de controvérsia. Veja-se Marco Scaffai, na edição da
obra de TOLKIEHN (Op. cit., nota ao capítulo XXIII, p. 106).
138
Veja-se “Virgil’s Aeneid” In: BOYLE (Org.). Op. cit., p. 105, nota 15.
– 168 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
139
Relacionam caua a tempora, dentre outros, Conington, Perret, Luca Canali, Forbiger;
um forte argumento para tal é a presença dessa expressão no mesmo livro IX, v. 633.
140
Macróbio arrola, com razão, o passo virgiliano como exemplo de imitatio de Ênio;
criticamos, pois, Conington, que declara, em nota ao verso IX, 806, não haver nos
versos de Ênio “nada que pareça ter influenciado Virgílio particularmente em sua re-
produção de Homero”(Op. cit., vol. III, p. 229).
– 169 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
conueniunt...tela strepit...galea
tinnit...umbo nec sufficit...umbo
ingeminat...et Troes et ipse/fulmineus
Mnestheus
quatit aeger anhelitus
7. IRONIA
141
Veja-se a edição das Saturnais que temos utilizado, p. 691, nota 3.
– 170 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
142
A citação do verso virgiliano aparece em CXII, 2; a história começa a ser narrada em
CXI.
– 171 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Na Eneida:
– 172 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 173 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
143
BEYE, Charles R. Ancient Epic Poetry. Homer, Apollonius,Virgil. Ithaca and London,
Cornell University Press, 1993, p. 33.
– 174 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 175 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
148
Op. cit., p.41.
149
Sérvio, porém, lia deuinctus (Op. cit., vol. II, p. 259).
– 176 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
150
Observação de Warde Fowler, reportada em BAILEY, Cyril. Religion in Virgil. Oxford,
Clarendon Press, 1935, p. 135.
151
Canali, grande tradutor, perde o tom irônico, de velada malícia: “Se avevi un tale
pensiero,/ anche allora mi era consentito armare i teucri”; também Annibal Caro: “Se
t’era grado...”. Perret e Odorico traduzem com a adequada fidelidade, em consonância
– 177 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
com a discrição virgiliana; este último traz: “Se igual empenho houveras...” Entre os
comentadores, perdem a força maliciosa do destaque dado a similis, Sabbadini: “se tu
mi avessi pregato anche allora”(Eneide, vol. VIII, p. 47) e Conington: “had you felt the
same anxiety, meaning, had you made the same request”. Este último também elude a
malícia de troianos, interpretando-o como um (estranho) plural para designar somente
Enéias, “em exagero retórico” (Op. cit., p. 124) – eis um exemplo de como o excessivo
e descabido pudor dos estudiosos é capaz de cegar os mais finos intérpretes de Virgílio...
– 178 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
152
Este paralelo e o seguinte constam da lista de Homerzitate de Knauer (Op. cit., p. 407).
– 179 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Em Odorico Mendes:
153
“Nem um pouco”, em nossa tradução, tem tão somente a função de ressaltar que Virgílio
parece ter “traduzido” o por nihil.
154
Na seqüência, explicita o paralelo: Nec solos tangit Atridas/iste dolor (“Não só aos
Atridas um tal ressentimento atinge...”).
– 180 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
155
Op. cit., vol. II, p. 322.
156
GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin Français. Paris, Hachette [1981] p. 396.
– 181 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
8. ELIPSE
157
Alguns exemplos curiosos são apontados em LEE, Guy. “Imitation and Poetry of Virgil”
In MCAUSLAN, I, & WALCOT, P. (Org.). Virgil, p. 1-13.
– 182 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 183 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
158
Esse paralelo se reforça com a perspectiva intertextual global dos seis primeiros livros,
fundados sobre a Odisséia: logo no início da narração, Juno avista a frota troiana e
resolve provocar uma tempestade para destruí-la, como, no poema grego, Possêidon vê
Odisseu perto da terra dos feácios e provoca uma tempestade (Od. V, v. 286-295) que
a Eneida ecoará intensamente; na seqüência, Virgílio aludirá constantemente ao epi-
sódio homérico, marcando o início de sua narrativa com o sinete da Odisséia, como é
mais do que sabido. O curioso é que o efeito maior da ação vingativa de Juno – a
tempestade – é combatido pelo equivalente latino do deus do mar, Netuno, que sereniza
as águas revoltas (I, v. 124-156). Em leitura intertextual, o confronto é inevitável: ao
contrário de Ulisses, Enéias e os seus não têm nenhuma impiedade contra uma divin-
dade a expiar, pelo contrário: vagam por mares e terras por causa do ódio de uma deusa
ofendida em sua vaidade e orgulho – nenhuma ação contra ela foi pelos êxules come-
tida, e o próprio narrador se espanta com a perseguição a um herói tão insigne por sua
devoção (I, v. 8-11). Virgílio, curiosamente, poderia ter investido seu Netuno do papel
que coube a Juno: perseguir os troianos, já que, no mito da fundação da cidade, o deus
castigara Tróia pela perfídia de Laomedonte; na narrativa da queda de Tróia por Enéias,
vemo-lo destruindo os fundamentos mesmos da cidade (II, v. 610-612). Entretanto, o
– 184 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
poeta, ao longo da epopéia, mostra um Netuno que não só não guarda rancor algum
contra os exilados como também vela pessoalmente por Enéias; atendendo ao pedido
de Vênus, que lhe pede travessia segura até a Itália (V, v. 796-798), o deus recorda que
já salvou Enéias, quando este lutava contra Aquiles em duelo desigual (V, v.804- 810).
Atente-se para estas palavras de Netuno, que contrastam com o tratamento recebido
por Odisseu:
saepe furores
compressi et rabiem tantam caelique marisque.
Nec minor in terris, Xanthum Simoentaque testor,
Aeneae mihi cura tui. (V, v. 801-804)
Ora, Netuno declara que, assim como por terra se preocupou com Enéias (e segue a
referência ao episódio em que o salvou da morte iminente), tem agido para proteger o
troiano da fúria do céu e do mar – portanto, ao contrário de Odisseu, o troiano conta com
a proteção do deus! E se lembramos do símile aplicado a Netuno que acalma a tempesta-
de provocada por Juno – um velho piedoso fazendo aplacar o furor da populaça (furor
arma ministrat, I, v. 150; cf.:furores), é difícil não concluir que Virgílio, da forma discreta
que lhe é característica, operando com sutis associações intratextuais, sugere que Netuno
acalma a fúria dos elementos para auxiliar Enéias. Para quem não relê a passagem do livro
I fazendo, em leitura retrospectiva, a relação com o passo do livro V mencionado acima,
perde-se esse dado curioso, pois parecerá a esse leitor “linear” que o deus se irrita simples-
mente pela invasão dos ventos tempestuosos em seus domínios. Se nossas observações
procedem, estão equivocadas afirmações como estas, comuns na análise da intervenção
de Netuno: “Se ele intervém, não é absolutamente por interesse pelos troianos, que ele
finge ignorar, mas porque exerce funções que não é permitido a subalternos usurpar”
(CARTAUT – Op. cit., vol I, p. 102): crítico fino, Cartault não pôde, porém, beneficiar-
se da atenção mais cuidadosa que só recentemente vem recebendo a análise intertextual,
que nos vai acostumando com a sutileza desafiadora da trama da Eneida. Seja como for,
essa espécie de amor paternal que Netuno demonstra por Enéias contrasta vivamente
com a perseguição que Possêidon move a Ulisses – especialmente porque é revelada na
parte odissíaca da epopéia, plena de alusões às peregrinações do grego.
Para uma leitura simbólica da cena da tempestade na Eneida, veja-se Pöschl (Op. cit., p.
41 e ss.); um breve confronto Enéias-Odisseu é traçado por Lyne (Further Voices, p. 104-
107).
– 185 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
e)n/ qa d e
) p
) a
) k
) th=j nhi+ kathgago/mesqa siopv=
neuen. (Od. X, v. 140-141)
nau/loxon e)j lime/na, kai/ tij qeo\ j hgemo/
(
159
KNAUER- “Vergil and Homer”. In: TEMPORINI-HAASE (Ed.). Aufstieg und
Nierdergand der Römischen Welt. Einunddreissigster Band. Berlin-New York, Walter
de Gruyter,1981, p. 878.
– 186 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
160
Para Geymonat, trata-se, simplesmente, de uma “implícita, mas não menos evidente,
homenagem a Homero” (Enciclopedia Virgiliana, vol. III, p. 327, verbete Malea).
161
Mas é preciso observar que Sérvio(-Dan.), em nota ao verso III, 204 (p. 378), apresenta
três versos em que se menciona o cabo Málea na narração que Enéias faz de seus
errores a Dido: postos à parte no manuscrito original do poema, teriam sido cancelados
na edição canônica. Se Forbiger e Mario Geymonat duvidam da autenticidade desses
versos (cético também se mostra Conington, segundo o qual eles não se adaptam bem
ao contexto), julgando-os obra de um interpolador, Paratore e Sabbadini, dentre ou-
tros, consideram-nos autênticos (ver Enciclopedia Virgiliana, vol. III, p. 327). Aceita a
hipótese da interpolação como a mais provável, é muito verossímil que a estranheza
quanto à elipse virgiliana tenha levado algum interpolador a preencher a lacuna paten-
te na narrativa das peregrinações marítimas de Enéias.
– 187 –
III – EFEITOS INTERTEXTUAIS NA
“ODISSÉIA” DE VIRGÍLIO
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
1
“The Aeneid as Odyssey” é o título de um capítulo que se encontra às páginas 177-214
de seu Virgil’s Augustan Epic, por nós já citado. Já no início do capítulo, Cairns estabe-
lece sua tese: a Eneida seria “não uma obra bipartida dividida por tema principal (isto
é, viagens ou batalhas) mas uma Odisséia unitária com episódios iliádicos importantes”
(p. 178).
2
Sed et haec et talia pueris decantata praetereo. Iam uero Aeneis ipsa nonne ab Homero
sibi mutuata est errorem primum ex Odyssea, deinde ex Iliade pugnas? Quia operis
ordinem necessario rerum ordo mutauit, cum apud Homerum prius Iliacum bellum
gestum sit, deinde reuertenti de Troia error contigerit Ulixi, apud Maronem uero
nauigatio bella quae postea in Italia sunt gesta praecesserit (V. 2, 6). É curioso notar
que Macróbio cria em seu próprio texto um quiasmo (errorem ex Odyssea...ex Iliade
pugnas) a reforçar a idéia de uma inversão estrutural, requerida pelo próprio assunto da
epopéia latina, feita por Virgílio na ordem dos poemas homéricos.
– 191 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
3
Nam prius de erroribus Aeneae dicit, post de bello (Op. cit., vol. I, p. 6)
4
Vt in principio diximus, in duas partes hoc opus diuisum est: nam primi sex ad imagi-
nem Odyssiae dicti sunt...hi autem sex qui sequuntur ad imaginem Iliados dicti sunt...
(Vol. II, p. 124, ad uersum VII,1).
5
V. Pöschl (Op. cit., p. 41).
– 192 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
6
Já o notara, dentre outros, Hardie: “Claramente, sugere-se a distribuição de Mar para a
metade odissíaca da Eneida e de Terra para a metade iliádica” (Op. cit., p. 306).
7
Op. cit., p. 85.
– 193 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
I VII
8
DUCKWORTH, George. Structural Patterns and Porportions in Vergil’s Aeneid.Ann
Arbor, The University of Michigan Press, 1962, p. 8. Antes de Duckworth, Conway e
Pöschl, especialmente, trataram do tema das correspondências entre o primeiro e o
sétimo livro.
– 194 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 195 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
9
A expressão “antidestino” é de Otis: “Counter-Fate” (OTIS, Brooks. Virgil. A Study in
Civilized Poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963, p. 223, dentre outras).
– 196 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 197 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Ad quem tum Iuno supplex his uocibus usa est (I, v. 64)
Aqui, como por mão divina, a natureza mostra sua face mais
benévola aos recém-chegados. Curiosamente, Camões em sua epo-
péia explora o uso de tais imagens: a expedição do Gama chega à
Índia, após tempestade, ao raiar do dia:
– 198 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
e)n/ qa d a
) p) robri/cantej e)mei/namen Hw= ) di=an.
håmoj d h ) r) ige/neia fa/ nh r (ododa/ ktuloj Hw/
) j,
dh\ to/t ) e)gw\n e (ta/rouj proi+hn ej) dw/ mata Ki/rkhj (Od. XII, v. 7-9)
10
Os Lusíadas de Camões. Comentados por Augusto Epifânio da Silva Dias. 3. ed., MEC,
1972, p. 48. Para o comentador, a infidelidade do poeta tem o objetivo de dar “interes-
se poético ao resto da viagem” – dotar de aura simbólica a chegada, que inaugura uma
nova era de difusão da doutrina cristã e da civilização européia, completamos nós.
11
“...transformou o começo da Odisséia 12, que segue a Nékyia, no começo de seu sétimo
livro”, que se sucede à descida de Enéias ao Hades (KNAUER, Georg. “Vergil and
Homer”, p. 878).
– 199 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 200 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Na tradução de Odorico:
– 201 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“A causa de tão grande mal para os teucros será de novo uma esposa
estrangeira e de novo tálamos externos”.
– 202 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
15
Op. cit., p. 182.
16
Para Cairns, essas críticas a Odisseu não invalidam sua tese: Enéias seria um Odisseu
de outra estampa (Op. cit., p. 193).
– 203 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
17
Op. cit., p. 184-185.
– 204 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
18
Op. cit., p. 193.
19
Dentre tantos estudiosos sérios da Eneida que dão como evidente esse dado estrutural,
mencionemos Otis, cuja obra, um dos estudos fundamentais da epopéia, apesar de ter
sido escrita há mais de trinta anos, traz capítulos intitulados “The Odyssean Aeneid”
(p. 215) e “The Iliadic Aeneid” (p. 313). Mais recentemente, após inventariar os diver-
sos modelos que tentam explicar a estrutura da epopéia, um estudioso conclui: “a úni-
ca divisão manifestamente clara a nossos olhos continua sendo a divisão em duas par-
tes” (LESUEUR, Roger. L’Énéide de Virgile. Essai sur la Composition Rythmique d’une
Épopée. Toulouse, Association des Publications de l’Université de Toulouse-Le Mirail,
1975, p. 26); esse estudioso, entretanto, propõe outra divisão possível (ver a nota 22).
– 205 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
20
Eis, por certo, um tema a aprofundar em pesquisa específica: até que ponto Virgílio não
leu Homero muito mais sutilmente do que se tem imaginado, percebendo em seu mo-
delo associações intratextuais complexas? Em todo caso, a técnica intertextual virgiliana
é demasiado elaborada e singular para podermos atribuir a outro poeta que não a ele
essa arte de compor original e, com toda probabilidade, de inédita radicalidade na
história da epopéia.
21
Digna de atenção especial a hipótese de que Virgílio, fazendo sua leitura pessoal da
obra homérica, pode ter percebido relações intertextuais mais sutis entre a Odisséia e a
Ilíada e procurado reproduzi-las na estrutura de seu poema. É um campo a ser explora-
do e cujo estudo pode fornecer argumentos para a defesa da estrutura bipartida da
Eneida. Apontemos um exemplo: se, como já se vem observando, o papel de mensagei-
ro dos deuses é deixado para Íris na Ilíada e para Hermes na Odisséia, na metade
odissíaca da Eneida o mensageiro é Mercúrio (Hermes), que anuncia a Enéias as or-
dens de Júpiter (IV. v. 222) ou incita o troiano a fugir de Cartago o mais depressa
possível (IV. v. 448), ao passo que na metade iliádica a mensageira é Íris, que ora se
dirige a Turno, a pedido de Juno (IX, v. 2), ora a Juturna, a mando de Júpiter (IX, v.
803). É verdade que Íris também aparece na primeira parte da Eneida, mas não como
portadora de mensagem divina: em IV. v. 694 e ss., é enviada por Juno para abreviar a
agonia de Dido; em V. v. 606 e ss., disfarça-se em Beroé para incitar as troianas a
incendiar a frota. Virgílio, como era de se esperar, revela-se um leitor atento de Homero.
22
Lesueur nega a existência dessa estrutura e propõe para a parte odissíaca uma compo-
sição “embrassée”, em que os livros I-III e V-VI enquadrariam o livro IV. central
(LESUEUR, Roger. Op. cit., p. 68-106). Tal análise, porém, parece-nos pouco convin-
cente, ao contrário de suas interessantes e consistentes observações sobre o ritmo ternário
que seria freqüente na construção dos episódios como na própria expressão lingüística
da epopéia.
– 206 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
23
É claro que a determinação dos temas centrais de cada tríade é discutível. Para nós, o
esquema acima tem a vantagem de ressaltar o papel preponderante de Dido e Turno,
que, com Enéias, dividem ou dominam a cena em amplos blocos narrativos. Em todo
caso, a proposta de Duckworth supera a de autores como Pöschl: I-IV (Ilíada troiana),
V-VIII (Odisséia de Enéias), IX-XII (Ilíada latina) – ver Enciclopedia Virgiliana, vol.
II, p. 244. Dentre outras críticas possíveis a esse esquema, apontemos que ele não leva
em conta o caráter nitidamente odissíaco do livro III, a massa de alusões a esse poema
homérico no primeiro canto, bem como a concentração, nessa segunda parte, de tema
iliádico por excelência (guerra contra uma cidade) apenas no segundo. Por outro lado,
analisando o simbolismo trevas/luz, que é tão marcante na epopéia, Pöschl vê na pro-
gressão das tríades de livros este “ritmo”: trevas-luz-trevas (Die Dichtkunst Virgils, p.
280); ora, autores como Perret relevaram a visão trágica e sombria do poeta ao longo
da obra e que contamina até mesmo a profecia aparentemente otimista de Anquises e
a revista dos heróis no livro VI (o exemplo maior é o episódio do jovem Marcelo).
Quanto à noção de que os livros pares são mais sombrios que os ímpares, ressalvas são
necessárias, afinal, um livro como o III, por exemplo, finda com a morte de Anquises,
episódio que, na visão de Enéias, foi sua maior provação (Hic labor supremus, v. 714),
e o livro VII retrata a ação da terrível Alecto sobre Amata, Turno e os latinos, que
desemboca numa guerra funesta.
24
Op. cit., p. 13. Dessa forma, Virgílio evitaria uma dura quebra entre as duas metades da
epopéia, diz Duckworth; mas é preciso acrescentar: não apenas com a subdivisão em
três partes como também por meio das correspondências entre os livros de uma e outra
seção. Lesueur entretanto, vê incompatibilidade entre as duas divisões propostas (Op.
cit., p. 36).
– 207 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
25
OTIS pode servir de exemplo de afirmações que precisam sofrer ressalvas: “O nostos
da Odisséia, que é realmente a imemorial história da volta ao lar de um homem, foi,
assim, transformado no que era quase seu oposto, o progresso de um homem distante
de seu lar, distante do centro emocional de toda sua vida afetiva, em direção a uma
nova, desconhecida e até mesmo temível meta...”(Op. cit., p. 224-225). Do ponto de
vista individual, descreve-se bem a saga de Enéias; mas se pensarmos na função provi-
dencial que o transcende como mero indivíduo, a ida ao Lácio desse herói responsável
pela sobrevivência e transfiguração do destino de sua raça é também um nóstos.
– 208 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
26
Sobre essa análise da personagem homérica, pode-se consultar BUFFIÈRE, F. Les Mythes
d’Homère. Paris, “Les Belles Lettres”, 1973, p. 772 e ss. Com os neoplatônicos, Odisseu
se transformará em imagem acabada do sábio perfeito (p. 386).
27
“Aeneas Patiens” é o sugestivo título de um artigo de Francesco della Corte In: Atti
del Convegno Nazionale di Studio su Virgilio. Torino, Regione Piemonte, 1984,
p. 55-65.
– 209 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
28
Esse juízo estava difundido na Antigüidade, a ponto de alguns, como Varrão, dize-
rem que os troianos não tinham sido, em rigor, vencidos, pois, pegos de surpresa
través de ardis, não houvera rendição aos inimigos. Veja-se o comentário de Sérvio
(–Danielino): Varro et ceteri inuictos dicunt Troianos, quia per insidias oppressi
sunt; illos enim ‘uinci’ adfirmant qui se dedunt hostibus (“Varrão e outros chamam
invictos os troianos, já que só foram subjugados através de uma cilada; de fato, afir-
mam que são vencidos apenas os que se entregam aos inimigos”: Op. cit., vol. II, p.
516, ad uersum XI, 306).
– 210 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
29
A expressão comparece muitas vezes; a título de exemplo: Il. I, v. 145; II, v. 244; III,
v. 205 e 314; etc.; Od. I, v. 196, 398; II, v. 27; etc.
30
Op. cit., p. 195. Veja-se também o verbete Ulisse na Enciclopedia Virgiliana, 1990,
v. V*, p. 359.
– 211 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
e)n d o) r
/) oj aut) $=,
Nh/riton einosi/
) fullon a)riprepe/j! a)mfi\ de\ nh=soi
pollai\...
Douli/xio/n te Sa/ me te kai\ u(lh/essa Za/ kunqoj. (IX, v. 21-24)
– 212 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
31
No verso seguinte, o comentário de Enéias explicita o efeito que o poeta pretendeu
com a cena: o de horror diante de tanta abominação: At me tum primum saeuos
circumstetit horror (“Mas então, pela primeira vez, violento horror me envolveu”).
32
Observemos que o corpo do rei é retratado, magistralmente, como um corpo decapita-
do abandonado na costa:
– 213 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
em que se deve entender obtruncat (p. 151) – infelizmente, os tradutores não parecem
cientes da importância intratextual desse detalhe.
33
A expressão lapidar, concisa e veemente, deve ter se popularizado até se tornar prover-
bial, sugere Paratore (no vol. I de seu comentário, p. 252), que invoca o fato de compa-
recer tal e qual no Satiricon, XXXIX, 3; aqui, porém, é possível outra explicação: no
contexto, Trimalcião recita o sic notus Ulixes? e comenta: Quid ergo est? Oportet
etiam inter cenandum philologiam nosse (“E então? Deve-se até mesmo em meio a um
jantar ter conhecimento das letras”). O novo-rico quer obviamente demonstrar cultu-
ra citando seu Virgílio...
– 214 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
34
Sêneca faz ecoar a Eneida, em sua tragédia Troades (As Troianas); Andrômaca chama
Odisseu machinator fraudis et scelerum artifex (“maquinador de fraude e artífice de
crimes”, v. 750).
35
Ecoando o retrato virgiliano de Ulisses, Dante o mostra no oitavo círculo do Inferno,
expiando, entre os embusteiros, o “ardil do cavalo” de madeira (“l’agguato del caval” –
canto XXVI, v. 59 do “Inferno” da Divina Comédia). Quanto a Camões, nos Lusíadas
– 215 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
ei m)/ Oduseu\
/) j Laertia/dhj, o(/j pa=si do/loisin
a)nqrw/poisi me/lw, kai\ meu kle/oj ou)rano\n i(/kei. (IX, v. 19-20)
– 216 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
37
A indicação do precedente homérico remonta pelo menos a Sérvio, que, porém, como
acontece com freqüência em seu comentário, não extraiu todas as conseqüências do
paralelo apontado. Por outro lado, não entendemos como Quinn (Op. cit., p. 281) vê
em sum pius Aeneas apenas um eco de uma passagem de Édipo Rei: “o( pa= si kleino\j
Oidi) /pouj kalou/menoj” (“eu, o chamado Édipo, conhecido de todos”, v.8). Quinn,
na verdade, não detecta o cerne do processo alusivo de Virgílio na Eneida; de fato, o
crítico parece ver em tais alusões apenas dois aspectos: o prazer do leitor no reconheci-
mento e a dívida de gratidão para com o predecessor que o poeta admira (veja-se
p. 281, nota 1).
38
Sérvio comenta bem: a relativa explicita o sentido de pius: hoc est sum pius.
– 217 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
39
Vale a pena observar que a frase final scelerum poenas expendimus omnes é quase sem-
pre interpretada como se omnes se conectasse a poenas, o que é mais do que provável.
Cremos, porém, que é possível entender esse adjetivo como uma retomada enfática do
pronome quicumque (literalmente: “quem quer que...pagamos todos”), o que daria rele-
vo ainda maior à advertência de Diomedes. Teríamos, assim, uma ambigüidade sintática,
não única em Virgílio. A objeção de Sérvio à interpretação de omnes como referindo-se
aos gregos é absurda: “omnes” non potest ad Graecos referri, quia non omnes pertulere
supplicia (“ ‘omnes’ não pode se referir aos gregos, porque nem todos sofreram suplícios”;
ora, o comentador se esquece do pronome quicumque, com o qual Diomedes deixa claro
que todos os que profanaram Tróia têm sido castigados pelos deuses.
– 218 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 219 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Ilio/
) qen me fe/rwn a)/ nemoj Kiko/nessi pe/lassen,
Isma/r%!
) e)/nqa d )e)gw\ po/lin e)/praqon, w)/lesa d )au)tou/j·
(IX, v.39-40)
41
“Vergil and Homer” In: TEMPORINI-HAASE (Ed.). Op. cit., p. 878.
42
Op. cit., p. 878.
– 220 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
3. A CANÇÃO DE IOPAS
– 221 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 222 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
43
Macróbio VII, I, 14; Sérvio (ad uersum II, 742). Paratore, em sua edição da Eneida,
resume o estupor de muitos: “espanta que não se cantem empresas heróicas mas, justa-
mente, temas cosmogônicos” (v. I, p. 236, nota ao verso 742).
44
Pöschl sugere que o canto de Iopas faz referência sutil “aos destinos de Dido e Enéias”(Op.
cit., p. 248); o autor se apóia, sobretudo, na identificação de Dido com Diana e a lua, e
de Enéias com Apolo e o sol. O paralelo, instigante, tem fundamento, mas não se deve
forçar o texto numa leitura cerradamente simbólica ou alegórica.
45
“The Structural Function of the Song of Iopas” In: Harvard Studies in Classical Philology,
vol. 93, 1993, p. 315-334.
– 223 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
46
Reveladoras as repetições multa super...super multa, em quiasmo, e nunc...nunc...nunc;
o ritmo sincopado; o uso do freqüentativo (rogitans).
47
Anáfora (unde...unde); interrogativas indiretas (quid tantum Oceano properent se
tingere soles..., quae tardis mora noctibus obstet); elipses (unde hominum genus et
pecudes, unde imber et ignes.../cf. nunc quales Diomedis equi, nunc quantus Achilles).
48
Na proposição às Metamorfoses, que começam com o surgimento do mundo e do
homem, Ovídio pede o favor dos deuses para seu relato, que vai da “primeira origem do
universo”(primaque ab origine mundi, I, v. 3) até seu próprio tempo.
49
Veja-se o artigo de Brown, p. 322.
50
Julgamos desnecessário dizer que, além de Homero e Apolônio, Virgílio retoma Lucrécio
e sua própria poesia (Buc. VI, Geórg. II, v. 475-482): inter- e autotextualidade vêm se
– 224 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
4. O EPISÓDIO DE AQUEMÊNIDES
associar a relações intratextuais delicadas; como assinalamos mais de uma vez, a técni-
ca alusiva do poeta é complexa e desafia esquemas.
51
“Mais de três quartos do primeiro livro da Eneida são modelados sobre a Odisséia;
nenhum livro contém um número tão elevado de correspondências”, observa Gennaro
d’Ippolito (Enciclopedia Virgiliana, vol. III, p. 823).
52
Retomando a personagem, Ovídio (Metamorfoses XIV. v. 160 e ss.) o mostrará dizen-
do ter sido “abandonado” pelos companheiros gregos (relictus, v. 178). Pode-se pensar
que na Eneida haja uma velada censura ao comportamento dos gregos, especialmente
– 225 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Ille haec deposita tandem formidine fatur. (III, v. 612; II, v.76)55
– 226 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
manuscritos nem é referido ali por Sérvio; a edição de Mynors nem o traz. Parece-nos,
todavia, que faltam provas definitivas para expurgá-lo.
56
Garantia de boa-fé no empenho da palavra, o estender da destra, aqui, mostra a retidão
dos troianos – mesmo com um antigo inimigo mortal, selam um pacto de proteção.
– 227 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
57
Op. cit., vol. I, p. 171.
– 228 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Sérvio explica assim o uso de infelix, que aqui teria sentido pe-
jorativo:
“O epíteto foi posto para preencher o verso, à maneira grega, sem levar
em consideração o contexto, já que Enéias, incoerentemente, chama
58
Quoniam apud hostes loquitur, quaerit fauorem eius uituperatione, quem scit odio
esse Troianis (vol. I, p. 445).
– 229 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Ulisses infeliz; a não ser que, sendo pio, até mesmo do inimigo se com-
padeça, ao sofrer ele próprio os mesmos errores.”59
59
Epitheton ad inplendum uersum positum more Graeco, sine respectu negotii. nam
Aeneas incongrue infelicem Ulixen dicit; nisi forte quasi pius etiam hostis miseretur,
cum similes errores et ipse patiatur (p. 454).
60
Outro caso curioso de intratextualidade envolvendo o episódio de Aquemênides é
analisado em OTIS, p. 263-264.
61
Como o próprio Paratore em seu comentário (vol. II, p. 172), apesar da boa análise do
episódio em seu conjunto.
– 230 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
soa por Enéias a Dido, ou seja, no livro I e IV, que narram a estada em
Cartago, Enéias continua considerando os gregos, e Odisseu em espe-
cial, exemplo de malícia extremada, inteligência a serviço da perfídia,
pois essa é a imagem que sobressai de seu relato. Na verdade, a recon-
ciliação simbólica virá depois, na parte iliádica da epopéia, com os
gregos capitaneados por Evandro a vir em socorro de Enéias; a pró-
pria Sibilia em sua profecia enuncia o inusitado do fato:
– 231 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
62
Na Eneida, Dido lança tais queixas a Enéias, cujas intenções de fuga pressentiu; quan-
to a Ariadne, como se sabe, seus lamentos não têm outro destinatário senão a natureza
que a circunda e os deuses que ouvirão sua súplica, uma vez que só se da conta do
abandono ao despertar, quando Teseu já partira.
63
É curioso que Virgílio insista na suposta perfidia de Enéias, já que os troianos possuíam
tal fama, cujo arquétipo mítico é a perfídia de Laomedonte: o pai de Príamo recebera o
auxílio de Apolo e Netuno para a construção de Tróia, mas não pagou a recompensa
acertada com os deuses, que se vingaram. Pode-se considerar essa reiteração do epíteto
perfidus como a reutilização de um topos freqüente na poesia amorosa; contudo, é
intrigante que a rainha de Cartago recrimine o fundador da raça romana por um defei-
to de caráter que os Romanos considerarão característica dos cartagineses. Trata-se da
chamada fides punica: ver Salústio, Bellum Iugurthinum CVIII, 3, e, especialmente,
Tito Lívio XXI, 4, 9: Aníbal tinha “uma perfídia mais do que púnica” – perfidia plus
quam Punica. Se o arquiinimigo dos Romanos, prenunciado por Dido como seu vinga-
dor, assinalava-se por tal fama, não achamos inverossímil que Virgílio tenha acentua-
do a quebra da palavra no livro IV para motivar, mítico-lendariamente, os males que
essa perfídia causaria aos Romanos; assim, os enéadas, sofrendo a justiça divina que
paga na mesma moeda, haveriam de expiar a antiga falta do troiano... Enéias, por outro
lado, voltará a ser chamado pérfido pela rainha Amata, em VII, v. 362, alusão à velha
fama da perjura Tróia. Sobre o tema, veja-se a Enciclopedia Virgiliana, vol. IV. verbete
perfidus.
– 232 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
“Nem uma deusa é tua mãe nem Dárdano o autor de tua raça,
pérfido, mas gerou-te, eriçado de duros rochedos,
o Cáucaso, e ofereceram-te os úberes tigresas da Hircânia.”
– 233 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 234 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 235 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
64
“Se Enéias é infeliz, não é somente por causa da cólera de Juno; ele expia a morte de
Dido...”, diz, com excelência, Cartault (Op. cit., vol. I, p. 333).
65
Equivalente romano das Eumênides ou Erínias, também chamadas Fúrias (Alecto,
Megera e Tisífone – no Tártaro de Virgílio, representa-se a ultrix Tisiphone, VI, v.
570-571), segundo Steven Farron (Enciclopedia Virgiliana, vol. II, verbete furie, p.
620).
– 236 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
cuja punição ele mesmo tem de velar! Trata-se, por certo, de punição
por uma falta de Enéias, mas esta é mitigada pela subordinação do
herói às ordens de Júpiter. Mais que Enéias, Júpiter é que aparece sob
uma luz nada límpida...
O paralelo perturbador vem reforçado pela alusão sutil: as
imprecações de Ariadne e Dido terminam ambas por uma estrutura
sintática exatamente igual, precedidas por pausa:
66
Ver o comentário de Paratore, v. II, p. 239. Para observações filológicas mais comple-
tas, Forbiger, v. II, p. 521-522; este aceita o verso como está e propõe também uma
explicação literária para a construção.
– 237 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
67
Páginas brilhantes foram consagradas a esse tema por Marzia Bonfanti, no capítulo II
de seu Punto di Vista e Modi della Narrazione nell’Eneide. Giardini, Pisa, 1985, p. 85-
159. Recentemente, Cairns apresentou análise detalhada da tradição elegíaca no epi-
sódio (Virgil’s Augustan Epic, p. 129-150).
68
GUILLEMIN, A. -M. L’Originalité de Virgile.Paris, Les Belles Lettres, 1931, p. 73.
69
“O livro no seu conjunto é uma tragédia à parte, como dizia Leo, a única tragédia
romana digna de ser colocada ao lado das tragédias gregas” (BUCHNER, Karl. Virgilio,
Il Poeta dei Romani. Brescia, Paideia, 1986, p. 459), afirmação acolhida por Pöschl
(Op. cit., p. 129). Veja-se também Heinze (Op. cit., p. 119 e ss.) – para citar alguns dos
maiores estudiosos de Virgílio.
70
Relevemos a peripécia, a figura da irmã Ana e da “nutriz de Siqueu” (v. 632), verdadei-
ras confidentes de tragédia, o anúncio da morte futura da protagonista, a ironia trágica,
os efeitos de contraste, a ambigüidade prenunciatória, a fortíssima presença de diálogos
– 238 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Com scaenis, o poeta deixa claro que não alude simplesmente a mitos, mas a tragédias
que retratam esses mitos. Dido se sente perseguida por causa de uma culpa trágica,
umaubrij
\( funesta a expiar.
71
Confissões I, 13, 20 e 21.
– 239 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
72
Ainda que, em última instância, o amor de Dido fora obra de Vênus, através de Cupido,
fica patente que a rainha continua responsável por sua conduta; o próprio narrador
chama de culpa a ligação de Dido com Enéias após o episódio da gruta (IV. v. 172).
73
Entretanto, observa Cairns (Virgil’s Augustan Epic, p. 139-140), já nas palavras de
Vênus, disfarçada em caçadora, a Enéias (v. 335-369), enfatiza-se o amor de Dido a
Siqueu (amore, v. 344; amorum, v. 350; amantem, v. 352). Parece prenunciar-se, por-
tanto, a futura perda de estatuto heróico de Dido, traída em seus afetos mais femini-
nos; entregando-se a eles, a amante de elegia avultará sobre a fundadora de um futuro
império. No mesmo passo, contrapõe-se, por via intratextual, esse amor conjugal de
Dido ao amor ao ouro de Pigmalião: magno miserae dilectus amore, v. 344/auri caecus
amore, v. 349; no livro IV, o amor-paixão por Enéias degradará a rainha como a cupidez
cegara o irmão.
– 240 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
male sana, v. 8; furentem, v. 65, 283, 465 e 548; furens, v. 69; demens,
v. 78; furori, v. 91 e 433; furorem, v. 101; furenti, v. 298; furiis, v.
376; furias, v. 474; furores, v. 501; insania, v. 595; furibunda, v. 646.
74
Improbe Amor, quid non mortalia pectora cogis? (“Ímprobo Amor, a que não obrigas
os corações mortais?”, IV. v. 412), esse o verso que antecede à representação da rainha
como uma humilhada suplicante (supplex, v. 414) – eis a que a paixão a obriga (cogitur,
v. 414).
75
Não se trata de mero tour de force a provar a riqueza verbal do poeta; com a repetição,
realça-se a idéia contida no último verso do símile, a da permanência da seta no flanco
do animal, isto é, a fixidez obsessiva de um sentimento que levará Dido à morte: haeret
lateri letalis harundo. Causa espanto, portanto, que se tenha apontado a passagem
como sinal da incompletude da redação, em virtude de uma suposta “inabilidade”
verbal do poeta, que o levaria a repetir exaustivamente o mesmo conceito!
– 241 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
76
Sobre tal concepção “pessimista” no conjunto da obra de Virgílio, pode-se consultar:
LANA, Italo. “Virgilio e la Felicità”. In: Atti del Convegno Nazionale di Studi su
Virgilio. Torino, Regione Piemonte, 1984, p. 35-53 (“...na poesia de Virgílio, ao lado
do Amor, sentam-se a morte e o silêncio, não a felicidade”, p. 37). Mais minucioso e
profundo, o ensaio de Giovanni D’Anna. “La Concezione dell’Amore in Virgilio”. In:
Virgilio. Saggi Critici. Roma, Lucarini, 1989, p. 21-31. Considerações sempre interes-
santes no polêmico mas meritório livro de Paul Veyne, já citado, que estuda particular-
mente a elegia amorosa latina.
77
Virgílio desenvolve um motivo da poesia helenística; no idílio XI de Teócrito, Polifemo
se exorta a voltar às atividades rotineiras, esquecendo, assim, a paixão não correspondida
por Galatéia (v. 72-75). Veja-se Heinze (Op. cit., p. 130, nota 6 em especial).
78
Também se pode interpretar thalamo como “em seu quarto” e, com verossimilhança,
pensar que Dido se demora não porque dorme até mais tarde mas porque perde tempo
– 242 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
adornando-se; ainda assim, age negligentemente. Bacchielli traduz por “letto”; Perret,
por “chambre”– dois exemplos da dupla interpretação possível.
79
Vol. I, p. 487.
– 243 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
80
O paralelo é o argumento decisivo, a nosso ver, para corroborar a leitura de mollis
como acusativo que qualifica medullas, ao invés de nominativo relacionado com
flamma. É a interpretação de Sabbadini, Perret, Forbiger (com ampla argumenta-
ção), Buscaroli, dentre outros; porém Conington, Luca Canali, na edição de Paratore,
Odorico e Tassilo Orpheu Spalding, em suas traduções, preferem a outra interpreta-
ção. Sérvio, como não é incomum em seu comentário, acolhe as duas, sem se decidir:
utrum ‘mollis flamma’, an ‘mollis medullas’? (vol. I, p. 476). Pensamos que, se é
possível pensar num tipo de ambigüidade que aparece não raramente na Eneida, o
cotejo com o hipotexto decide a questão, assumindo-se como verdadeira a tese de
que Virgílio incita ao reconhecimento e, amiúde, ao confronto com o modelo evoca-
do. Em todo caso, temos mais um exemplo de como a intertextualidade fornece
argumentos para a discussão filológica.
– 244 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
81
Choca, sobretudo, a referência a Ascânio, em contraste brutal com a ternura de-
monstrada pelo menino no livro I (amor maternal em que se mescla erotismo, pois
trata-se de um falso Ascânio, na verdade o próprio Cupido encarregado de ferir
Dido de amor).
– 245 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
82
CANALI, Luca. L’ Eros Freddo. Roma, Ateneo, 1976, p. 76. Também se expressam no
mesmo sentido Cartault: “é uma espécie de loucura furiosa na qual sua razão soçobrou”
(Op. cit., vol. I,p. 305) e Quinn, comentando o suicídio da rainha: “a piedade que ela
desperta é mesclada de horror; é mais a piedade que sentimos por aqueles que estão
loucos do que a piedade mais pura que sentimos pelo sofrimento inocente” (Op. cit., p.
152).
83
Catulo e Ovídio, por exemplo, parecem encenar “suas” emoções e dá-las em espetácu-
lo ao leitor, com doses inegáveis de humor e autozombaria: longe estamos, aqui, da
seriedade trágica do episódio de Dido. Pusemos entre parênteses o possessivo e gostarí-
amos de fazer o mesmo com o prefixo “auto”, para distinguir, na medida do possível,
autor de carne e osso, esse imponderável, e eu-poético.
– 246 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
84
Virgílio segue Apolônio (III, v. 744-751); este contrapõe o calmo silêncio da noite, a
induzir ao sono, à vigília ansiosa de Medéia. O poeta latino, entretanto, organiza suas
imagens de forma particular, mais simbólica; enquanto Apolônio fala dos navegantes
(nauti/loi), que observam as estrelas, do viajante (o(di/thj) e do guardião das portas
(pulawro\j), que desejam o sono, do torpor que se apossa até mesmo da mãe que
perdeu os filhos (tina pai/dwn/ mhte/ra teqnew/twn), isto é, centra-se no ponto de
vista humano, Virgílio, a não ser por um impreciso fessa corpora, só trata dos astros e
dos animais, contrapondo mais decididamente o repouso da natureza aos tormentos de
Dido, o ciclo natural à aberração antinatural do amor-paixão.
– 247 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
cia, de uso certamente não comum com tal sentido e, pela reiteração,
cria efeitos de leitura: Enéias, já se libertando da sedução do amor,
pode-se integrar ao ciclo natural, enquanto Dido, escravizada ainda à
paixão, aliena-se do estado de natureza, isola-se num tormento feroz
que nenhum repouso conhece, nenhum dom da natureza pode miti-
gar. A escolha do verbo – que significa “gozar de”, realçando a “idéia
da ação benéfica do sono”–85 acentua o contraste com a atormentada
vigília de Dido.
No início do livro IV, Virgílio opõe, de forma sutil, o repouso do
herói à inquietação noturna de Dido: At, primeira palavra do livro, é
adversativa que contrasta com o quieuit do verso anterior, última
palavra do terceiro livro. Enéias, após terminar sua longa narração,
descansa, mas a rainha não é capaz de fazer o mesmo:
85
BUSCAROLI, Corso. Op. cit., p. 366.
– 248 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 249 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Sérvio menciona extulerat (do verbo effero, que, como se sabe, significa “erguer” –
sentido de superfície, aqui – mas também “levar para ser enterrado” – sentido velado,
em ambigüidade não incomum nesse poeta sutil!) como exemplo da adequação ao
episódio. Há, porém, outros traços mais evidentes a se apontar: o tom melancólico de
todo o enunciado, em que aos “mortais” (relevo da transitoriedade da vida humana,
bem pertinente no contexto lutuoso) “infelizes” (e a tristeza será sentimento dominan-
te na seqüência), o novo dia traz uma luz paradoxal, pois que, embora “benéfica e
criadora” (não é fácil traduzir alma), ao invés de sanar as dores dos homens, apenas os
acorda para os trabalhos e as penas cotidianas (labores, com sua carga negativa – tanto
mais numa epopéia em que o tema das “penas” do herói é uma constante!). A Aurora
é, pois, representada como portadora de dura labuta renovada (referens) todos os dias
aos míseros mortais.
Mais um exemplo possível de associação entre a descrição do dia nascente e a
trama; ao amanhecer de um dia crucial, que verá o estabelecimento do pacto entre
Enéias e Latino para o duelo com Turno, temos estes belos versos marcando a passa-
gem do tempo:
Postera uix summos spargebat lumine montis
orta dies, cum primum alto se gurgite tollunt
solis equi lucemque elatis naribus efflant (XII, v. 113-114)
“Mal o dia seguinte espargia de luz o alto dos montes,
surgindo, quando do abismo profundo se elevam
os cavalos do sol e sopram a luz das narinas alçadas...”
Cerca de cinqüenta versos depois, o rei Latino aparecerá solenemente, num carro
puxado por quatro cavalos, trazendo nas têmporas raios dourados, que imitam os do
sol, seu avô. Latino encarna o Sol, numa quadriga (quadriiugo uehitur curru, XII, v.
162, especifica o poeta; Turno, que o acompanha, vai numa biga, bigis, v. 164), como
a de seu antepassado, evocada no símile (solis equi; Ovídio dá os nomes desses quatro
animais, abarcados com a mesma perífrase de Virgílio em início de verso: ...Pyrois et
Eous et Aethon,/ Solis equi, quartusque Phlegon – Metamorfoses, II, v. 153-154:
“Piroente e Eous e Etão,/ cavalos do sol, e o quarto, Flegonte...”).
Lyne traz outro exemplo curioso: no livro VIII, a noite que desce é assim descrita:
“Cai a noite e abraça a terra com suas negras asas”(Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur
alis: v. 369); ora, segue-se At Venus e a narrativa da sedução de Vulcano, incitando-
nos a ver no amplectitur do verso 369 uma conotação erótica: a noite abraça a terra
como Vênus e Vulcano se unirão num amplexo carnal. O que torna essa leitura con-
vincente é o fato de que a raiz do verbo amplectitur comparece no substantivo amplexus,
– 250 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
duas vezes expresso (VIII, v. 388 e 405), na cena dos amores entre os dois deuses (ver
LYNE. Further Voices, p. 38).
Não temos conhecimento de um estudo que analise sistematica e contrastivamente
as notações de tempo desse tipo em Homero, Apolônio de Rodes e Virgílio (no contex-
to latino, seria interessante pesquisar também a épica anterior): cremos que o tema
está a merecer um aprofundamento detalhado, que seria, sem dúvida, muito frutuoso.
87
Versos imitados de Homero:
Hw\
) jd e ) k ) lexe/wn par a ) g
) auou= Tiqwnoi=o
/ nuq, ) i(n/ a) qana/toisin fo/wj fe/roi h)de\ brotoi=si! (Il. XI, v. 1-2)
o)r
“A Aurora, do leito do glorioso Titono,
alçou-se para levar a luz aos imortais e aos mortais”.
Quanto a croceum cubile, em especial, retoma outro passo homérico, mostrando
que Virgílio realiza também aqui um tipo freqüente de condensação:
) \ j de\ kroko/peploj e)ki/dnato pa= san e)p )aiåan. (Il. XXIV. v. 695)
Hw
“A Aurora, com seu manto açafrão, espalhava-se sobre toda a terra.”
Notemos que o composto poético kroko/peploj era difícil de se manter em latim,
pela menor flexibilidade da língua na formação de tais palavras, que Aristóteles julgava
próprias da alta poesia. Há relativamente poucos compostos na Eneida, como revela a
ampla pesquisa de Cordier (Études sur le Vocabulaire Épique dans l’Enéide. Paris, “Les
Belles Lettres”, 1939).
– 251 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
88
Emprestamos à tradução de Odorico Mendes “recendentes” e “arvoredo”.
– 252 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
DIDO:
v. 9 a 29 – diálogo com Ana;
v. 305 a 330 – diálogo com Enéias;
v. 365 a 387 – palavras dirigidas a Enéias, que não responderá;
v. 416 a 436 – palavras dirigidas a Ana;
v. 478 a 498 – idem;
v. 534 a 552 – monólogo;
v. 590 a 629 – monólogo;
v. 634 a 640 – palavras dirigidas a Barce, a velha nutriz de Siqueu;
v. 651 a 662 – monólogo final, antes do suicídio.
ENÉIAS:
v.333-361 – resposta a Dido (curiosamente, introduzida assim: Tan-
dem pauca refert)
v. 573 a 579 – incitamento aos companheiros para a partida.
89
“O quarto canto é dedicado a Dido; a tal ponto ela domina a cena, que o herói do epos
aparece como deuteragonista”, diz Heinze, p. 119.
90
O heroísmo de Enéias, aqui, é de outra natureza, feito de renúncia e auto-superação.
– 253 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Ai! que deveria fazer? Com que palavras, agora, da rainha enfurecida
ousaria acercar-se? Por onde começar?”
91
Op. cit., p. 127-128.
92
Hic amor faz pensar: será demasiado supor que o poeta aluda ao conhecido anagrama
de Roma, a pátria dos descendentes de Enéias? Neste caso, expressar-se-ia de forma
curiosa a relação de oposição inconciliável entre o amor de Dido e Roma.
– 254 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
93
Apontemos uma associação entre os dois personagens, evidenciada intratextualmente;
signos claros de uma consciência culpada, à noite a imagem de Anquises aparece para
aterrorizar Enéias, ao passo que Dido tem a impressão de ouvir a voz do marido Siqueu
no templo a ele dedicado. Notemos o paralelismo: quotiens umentibus umbris / nox
operit terras (“todas as vezes que, com suas sombras úmidas, a noite cobre a terra...”,
IV. v. 351-352) / hinc exaudiri uoces et uerba uocantis/ uisa uiri, nox cum terras obscu-
ra teneret (“daqui, parecia-lhe ouvir vozes e as palavras/ do marido a chamá-la, quando
a noite obscura cobria a terra...”, IV. 460-461). Em Enéias e Dido, pois, um sentimento
de culpa se revela em perturbadoras aparições noturnas de Anquises e Siqueu, pai e
marido, respectivamente, a advertir contra a quebra da pietas. No quarto capítulo
deste trabalho, voltaremos ao paralelo Dido-Enéias.
– 255 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
94
Como sempre Virgílio não explicita, sugere; que esse luxo de Enéias revela a decadên-
cia do herói, vê-se pelas palavras da Fama: o monstro denigre os amantes dizendo,
entre outras coisas, que passam o inverno na luxúria: luxu (v. 193). A essa palavra, que
Plessis-Lejay glosa molliter uiuendo (Op. cit., p. 405) e que é geralmente traduzida
nesse sentido, não falta, por certo, a idéia da vida luxuosa.
95
Na proposição, menciona-se que da gesta de Enéias provirão “os muros da alta Roma”
(altae moenia Romae, I, v. 7) – o uso do mesmo epíteto, agora aplicado a Cartago, faz
– 256 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
pensar: é como se Mercúrio, nas entrelinhas, lembrasse que o troiano deve contribuir,
sim, para a fundação de uma cidade, mas esta é Roma, não Cartago!
96
E. THILO, v. I, p. 514, ad uersum 266.
97
“...she is the ‘lover’, not the ‘beloved’” (Virgil’s Augustan Epic, p. 137).
98
QUINN, K. Op. cit., p. 410. Clausen também apresenta a mesma interpretação (Op.
cit,p. 23-24). Nega, porém, taxativamente a possibilidade dessa segunda leitura e, con-
seqüentemente, da ambigüidade, Horsfall, comentando o verso IV. 124, que é repro-
duzido integralmente no contexto que estamos analisando (ver HORSFALL, N. A
Companion to the Study of Virgil, p. 229).
99
Um verdadeiro topos da poesia amorosa, e elegíaca, em particular, é o da inversão de
papéis: o homem apaixonado se torna objeto passivo da amada, como um escravo
diante do patrão. Lucrécio, no livro IV do De Rerum Natura, aponta que “a vida (do
apaixonado) transcorre sob o arbítrio de uma outra pessoa” (alterius sub nutu degitur
– 257 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 258 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 259 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 260 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 261 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
101
Virgil’s Augustan Epic, p. 230.
102
Idem, ibidem.
103
Euríalo, por exemplo, aparece nos jogos de uma e outra epopéia homérica, como o
próprio Cairns recorda.
– 262 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
104
Aqui, Virgílio, excepcionalmente (contrastemos com IV. v. 215-216), segue outra tra-
dição que não a de um Páris efeminado e covarde.
105
Como diz De Gubernatis, para tornar mais terrível o duelo, os Antigos usavam de
recursos como o cesto metálico, “espécie de cilindro vazio que cobria os dedos e o dorso
da mão” (“Il Quinto Libro dell’ Eneide” In: Studi Virgiliani. Roma, Sapientia, 1932, p.
109).
– 263 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 264 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Na segunda luta:
– 265 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
106
Dares exulta, confiado em sua juventude (iuuenta, v. 430); por outro lado, o narrador
caracteriza Entelo como senior (v. 409).
– 266 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Nesse final do livro XI, o foco narrativo se centra nos dois ri-
vais, em clima de tensão, diante da possibilidade do confronto. No
momento em que se narram as ações diversas dos dois, a juventude de
Turno é relembrada (iuueni) – o moço age de forma impensada, im-
pulsiva, pondo a perder, ao abandonar o cerco, a estratégia que pode-
ria decidir a luta em seu favor; ao focalizar Enéias, o poeta lhe aplica
o epíteto de pater, pleno de conotações positivas na cultura romana,
de modo a contrapor à impulsividade do antagonista, a experiência e
ponderado equilíbrio do troiano. Veremos, no capítulo seguinte, que
Virgílio insiste nessa contraposição entre um Turno irrefletido, na
autoconfiança excessiva de sua juventude, e um Enéias mais maduro
e sensato. É mais um exemplo do modo sutil como Virgílio analisa
uma personagem ou apõe seu comentário: de forma indireta, deixan-
do que os epítetos, tais como enunciados, sugiram mais que explicitem
um sentido.
Na Ilíada, a arrogância do desafiante é premiada, pois o comba-
te termina com sua vitória. Epeu, porém, num gesto que revela gran-
deza de alma (mega/ qumoj Epeio\
) j, v. 694),107 ergue do solo o ven-
cido – detalhe que Virgílio deixará de lado. Daqui, um efeito
intertextual notável. O leitor que tenha em mente a cena homérica,
esperará que o desafiante também vença em Virgílio – é essa a expec-
tativa criada pela semelhança estrutural; na Eneida, porém, a soberba
de Dares, o desafiante, é punida pelo homem mais experiente. Entelo,
o velho aparentemente em desvantagem, vence após combater não
pelo prêmio (nec dona moror, v. 400)108, mas para castigar a arrogân-
107
Certamente, um dos exemplos de uso do epíteto adequado ao contexto: note-se que
Virgílio desenvolverá essa técnica; Homero, portanto, não apresenta apenas fórmulas
métricas mecanicamente aplicadas na caracterização das suas personagens, como os
estudiosos têm comprovado em tempos recentes. Pucci, por exemplo, menciona a de-
monstração de Norman Austin sobre o uso motivado do composto polumh/xanoj
(“de muitos expedientes”) na Odisséia, sempre empregado em relação a algum com-
portamento astuto, no contexto, do herói protagonista (Op. cit., p. 46, nota 8).
108
Id est non expecto, non moueor donis, como glosa Sérvio (edição THILO, v. II,
p. 625).
– 267 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
109
Debellare superbos, dissera Anquises, é uma das artes do Romano (VI, v. 853).
– 268 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
qui se
Bebrycia ueniens Amyci de gente ferebat (v. 372-373)
“que se dizia
proveniente da raça bébrica de Âmico...”
110
“O mais arrogante dos homens” (u(peroplhe/staton a)ndrw=n – canto II, v. 4).
111
Descrição baseada na Ilíada, XXIII, v. 679-680: Euríalo, o menos afortunado dos
postulantes, é caracterizado como tendo vindo a Tebas para o funeral de Édipo (ver
Conington, v. II, p. 370). Note-se ueniens, que lembra, malgrado a diferença de senti-
do no contexto, o hålqe do texto homérico.
– 269 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
112
Apud Enciclopedia Virgiliana, vol. I, p. 1000, verbete Darete. É interessante observar,
com Cairns, que Entelo, ao contrário de Dares, não reaparecerá na epopéia: similar-
mente, Epeu, o vencedor da primeira luta da Ilíada, modelo privilegiado do texto de
Virgílio, só aparece nos jogos (Op. cit., p. 225). Difícil não pensar que o poeta latino
reproduz, aqui, um traço da narrativa homérica.
– 270 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
tem a fraqueza dos velhos, que parecia, inicialmente, garantir sua vi-
tória sobre o rival. Mas há também um efeito de ironia a mais; ao se
apresentar para o combate, o exibicionismo de Dares é assim descrito:
– 271 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
certus iter (v. 2); magnanime Aenea (v. 17); pius Aeneas (v. 26);
Aeneas...pater (v. 129-130); satus Anchisa (v. 244); pius Aeneas (v.
286); pater Aeneas (v. 348); pater optimus (v. 358); nate dea (v. 383,
474, 709); magnanimus Anchisiades (v. 407); pio Aeneae (v. 418);
satus Anchisa (v. 424); pater Aeneas (v. 461); maximus...Aeneas (v.
530-531); pater Aeneas (v. 545); pius Aeneas (v. 685); pater Aeneas
(v. 700); bonus Aeneas (v. 770); patris Aeneae (v. 827); pater (v.
867).
113
Comandante atento, que não dorme nas horas de risco (aproximavam-se os perigosos
escolhos das Sereias – v. 864-866) e vela sobre seus comandados como um pai sobre os
filhos. Como diz Quinn, “eis um verdadeiro comandante” (Op. cit., p. 159), digno de
ouvir as revelações de Anquises e de carregar o fardo dos destinos de Roma sobre seus
ombros.
– 272 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
rói)114. O nome de Enéias aparece várias vezes sem nenhum epíteto (v.
74, 117, 150, 191, 214, 260, 279, 304, 554), como se o herói tivesse
perdido algo de sua natureza épica nesse canto, e o poeta, portanto, lhe
negasse a expressão formular da tradição homérica...Só quando o troiano
deixa Dido para tornar à frota e cumprir as ordens dos deuses é que seu
epíteto heróico por excelência – pius – é enunciado (v. 393) – daí a força
dessa ocorrência, que se contrapõe fortemente aos vários passos em que o
nome do troiano aparece sem qualificação, como se o narrador manifes-
tasse quão grande vulto ganha, no episódio dos amores com Dido, a faceta
individual da personagem.Sob esse aspecto, o contraste com o livro se-
guinte não poderia ser maior. Aqui, Enéias se tornou o pai venerando
que é o arrimo não só de sua família como também da comunidade que
dirige. Portanto, resta-nos criticar com veemência a tradução de pater,
no livro V, por outra palavra que não “pai”. Perret, por exemplo, em sua
edição da Eneida, traduz por divin (v. 348), grand (v. 130, 461, 545 e
700), vénérable (v. 827) e héros (v. 867); o sintagma pater optimus (v.
358) se transforma em “le bon Énée”! – em nenhum dos passos, portan-
to, mantém-se esse elemento tão importante da significação: na celebra-
ção de jogos em honra de seu pai Anquises, Enéias mostra-se investido da
aura de respeito e do sentido de responsabilidade que cerca a imagem
paterna, como se, finalmente, assumisse uma faceta de sua missão antes
representada sobretudo pelo velho pai. Além disso, a tradução de Perret
é criticável por não reproduzir o estilo formular sistematicamente, ado-
tando quatro termos diferentes para traduzir o mesmo substantivo inten-
samente aplicado a Enéias. Louvável, por outro lado, a tradução de Luca
Canali, sempre por “pai” (padre); quanto ao grande Odorico Mendes, em
cinco dessas ocorrências “falha”! – não traduz, simplesmente o pater de
348, 545, 700, 827, 867!, perdendo, pois, esse importante elemento da
significação.
114
Na perífrase Dardaniusque nepos Veneris do verso 163, não nos parece haver nada de
heróico, em face do contexto – a ida à gruta onde o troiano e Dido se amarão; Virgílio
como que realça o lado “galante” de Enéias, mencionando sua descendência da deusa
do amor...
– 273 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
7. O SILÊNCIO DE DIDO
115
IX, 2: h( tou= Ai antoj
/) e)n Nekui/# siwph\ me/ga kai\ panto\j u (yhlo/teron
lo/gou.
116
ELLIOT, T.S. “Que é um Clássico”. In: A Essência da Poesia. Estudos & Ensaios. Rio
de Janeiro, Artenova, 1972, p. 93.
117
Op. cit., vol. I, p. 456-457.
– 274 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 275 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
num lacrimas uictus dedit aut miseratus amantem est? (IV, v. 370)
118
“Corripere se dit de tout départ vif et prompt” (PLESSIS-LEJAY. Op. cit., p. 357, nota
6); “retirou-se prestes”, explica o Pe. Arlindo Ribeiro da Cunha (Vergilii. Aeneis. Braga,
Livraria Cruz, 1948, p. 379).
– 276 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 277 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Enéias já fora representado em lágrimas (demisit lacrimas, v. 455), então que sentido
teria uma tentativa de arrancar de si mesmo lágrimas já presentes? (Plessis-Lejay); “se
Enéias já está em lágrimas e Dido enfaticamente não, então é muito difícil não aplicar
ciebat aos esforços de Enéias para comover Dido” (Horsfall, p. 132-133); illa e a seqüên-
cia expressam a inutilidade dos esforços de Enéias, pois Dido permanece insensível (Plessis-
Lejay); a recorrência a outros empregos, na epopéia, do verbo cieo, freqüentemente
invocada pelos defensores da atribuição dessas lágrimas a Enéias, não é decisiva (Horsfall).
121
As polêmicas...lágrimas do verso IV. 449, lacrimae uoluontur inanes, não pertencem a
Enéias, a nosso ver, por muitas razões, dentre as quais as intratextuais: Virgílio reserva
a manifestação da emoção do herói perante Dido para os Infernos, quando é tarde
demais, pois a sombra de Dido permanecerá ali, sangrando sempre da ferida, até a
purificação de sua alma, ao passo que o herói agora pertence a um outro mundo, o da
ação concreta em terra para o cumprimento dos destinos. Sobre as “inanes lágrimas”,
há extensíssima bibliografia; apontamos um estudo recente, que arrola vários argu-
mentos para a atribuição desse pranto a outra pessoa que não Enéias: HUDSON-
WILLIAMS. “Lacrimae Illae Inanes” In: MCAUSLAN, Ian-WALCOT, Peter (Ed.).
Virgil. Oxford, Oxford University Press, 1990, p. 149. Radicalmente contra essa inter-
pretação e asperamente contra o artigo citado, temos HORSFALL, N. A Companion
to the Study of Virgil, p. 125, n. 20 (“As lacrimae...são dele e somente dele”).
– 278 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 279 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 280 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
124
Quando já é tarde demais: Lyne estuda esse motivo, por ele denominado “‘too late’
phenomenon”, em outros episódios que envolvem Enéias (cf. Further Voices, p. 167 e ss.).
125
A ferida ainda recente (recens a uolnere, VI, v. 450), a mesma atitude hostil que
acompanhou suas recriminações a Enéias no livro IV. a fuga que recorda o símile da
corça, o comportamento mesmo, “vingativo”, da rainha, sua caracterização como
ardentem (VI, v. 467), que, marca aparente de ódio, recorda as imagens de fogo asso-
ciadas a sua paixão, mostra que ela continua amando ainda sob a aparente hostilidade:
amor e ódio são as faces do mesmo sentimento, eis um conhecido topos da literatura
latina. Notemos o emprego da palavra cura, plena de conotações amorosas nos elegíacos
e na própria epopéia; nos Infernos, o marido de Dido respondet curis (literalmente,
“corresponde a suas inquietações amorosas”, VI, v. 474), expressão difícil de interpre-
tar, mas que se esclarece se tivermos em conta as relações intratextuais que estamos
apontando. No episódio da última entrevista entre Dido e Enéias, fortemente evocado
nesse encontro último, como vemos, o troiano “com esforço, a angústia no fundo do
coração reprimia” (et obnixus curam sub corde premebat, IV. v. 332); agora, é a rainha
que sufoca a paixão não finda no peito...; o amor de Siqueu a consola. Mas a cura de
Dido ainda permanece, nessas regiões infernais em que os sofrimentos de amor nem
mesmo com a morte são abandonados: curae non ipsa in morte relinquont (VI, v. 444).
– 281 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
126
Virgílio elabora a etiologia das futuras guerras púnicas de forma brilhante, fazendo uso
da ambigüidade: sobre o amor impossível entre Roma e Cartago se entrevê a sombra da
relação de Dido e Enéias, amor tolhido pelo curso inexorável do fatum.
127
Ver Enciclopedia Virgiliana, v. II, p. 52, verbete Didone.
– 282 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
128
The Words and the Poet, p. 27-28.
129
FARRON, Steven. Vergil’s Aeneid. A Poem of Grief & Love. Leiden, E.J. Brill, 1993,
p. 70.
130
Geralmente interpretado como “hostil”, o adjetivo, para a maioria dos estudiosos indi-
caria o olhar oblíquo de Dido; mas a carga semântica originária deve estar presente,
seja como for. Perret interpreta auersa com toda sua carga verbal: “Elle, s’étant
détournée...” , no que é seguido por Heuzé: “Elle s’était détouneée” (Op. cit., p. 567);
trata-se do uso de particípio ao invés de verbo conjugado e coordenado a outro, bem
conhecido dos latinistas (ver, por exemplo: TRAINA, Alfonso- BERTOTTI, Tullio.
Sintassi Normativa della Lingua Latina. Bologna, Cappelli, 1992, p. 321, nota 1). Pre-
ferimos, como se vê, a última interpretação.
– 283 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Ninguém mais
é culpado senão Zeus”.
– 284 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 285 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
131
Sobre o tema da subjetividade na epopéia de Virgílio (englobando, também, a intro-
missão explícita da subjetividade do narrador), são essenciais os estudos de HEINZE
(Op. cit., p. 363 e ss.); OTIS, no capítulo “The Subjective Style” de seu estudo sobre a
Eneida (Op. cit., p. 41-96); ANTONIO LA PENNA (“Virgilio e la Crisi del Mondo
Antico” In: VIRGILIO. Tutte le Opere. Firenze, Sansoni, 1989, p. XI-XCVI);
BONFANTI (Op. cit.: todo um livro dedicado à complexa e fascinante questão do
ponto de vista na epopéia virgiliana); e CONTE (“Saggio di Interpretazione dell’
‘Eneide’” In: Virgilio. Il Genere e i suoi Confini, p. 55-96). Acima de ocasionais diver-
gências na nomenclatura (Empfindung/Subiektivität; empaty/sympaty; commento
lirico...) e na concepção mesma do fenômeno, todos os ensaios mencionados apresen-
tam análises brilhantes desse aspecto da narrativa virgiliana.
– 286 –
IV – EFEITOS INTERTEXTUAIS NA
“ILÍADA” DE VIRGÍLIO
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
1. “ALIUS ACHILLES”
“A causa de tão grande mal para os teucros será de novo uma esposa
estrangeira
e, de novo, tálamos externos.”
1
“Ambiguità Virgiliana: Monstrum Infelix (Aen. 2, 245) e Alius Achilles (Aen. 6, 89)”
In: Poeti Latini (e Neolatini), p. 141.
– 289 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
2
Citemos Sérvio (Turnum significat), Cartault, Paratore, Conington, Forbiger e o próprio
Traina, que, apesar da acuidade de seu ensaio, afirma arriscadamente: “a referência a
Turno é indubitável (fuor di dubio)” (p. 146). Recentemente, Lyne: “É claro...que, para
a Sibila, Turno vai desempenhar o papel de um novo Aquiles” (Further Voices, p. 108).
3
TRAINA, p. 148.
4
Idem, p. 151.
– 290 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
5
CARTAULT. Op. cit vol I, nota 4 da p. 435, p. 496. Também Pöschl nos parece
equivocado: “Assim, não é Heitor o verdadeiro modelo de Turno...mas Aquiles, como
já a Sibila o proclama...” (Op. cit., p. 211).
– 291 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
6
urbes haud raro a poetis confunduntur (Op. cit., pars III, p. 52). Será coincidência que,
num dos poucos momentos em que Virgílio precisa a procedência espacial de uma
divindade, trata-se de Juno, neste mesmo livro VII, vindo de “Argos ináquia” (Inachiis
ab Argis, v. 286)? Ínaco, aqui estreitamente ligado a Argos, faz-nos mais ainda convic-
tos da interpretação Mycenae=Argos.
7
Perret traduz: “du coeur même de Mycènes” e tenta justificar essa leitura; Bellessort,
analiticamente, diz, em interpretação à qual nos associamos: “et ils viennent du milieu
de la Grèce, de Mycènes”; Canali surpreende com um “è patria proprio Micene”;
Conington explica: “the heart of Mycenae”.
– 292 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
8
Veja-se, entretanto, nossa observação mais além: apesar de tudo, tendo integrado à nar-
rativa a visão hostil a Enéias, o leitor é levado a associar, por exemplo, Enéias a Páris; na
primeira parte da epopéia, o paralelo parece ter algo de justo – mas aqui o troiano é
retratado, segundo veremos, com fraquezas que só mais tarde superará.
9
Boas observações em LYNE. Further Voices in Vergil’s Aeneid, especialmente à p. 109 e
seguintes.
10
Eis uma acusação que Dido lança mais de uma vez sobre Enéias; a nosso ver, temos aqui
uma linha temática que Virgílio desenvolverá ao longo da segunda parte da epopéia: a
lembrança sinistra da tragédia de Dido a pairar sobre Enéias; logo voltaremos ao assunto.
11
É bastante curioso que aqui Juno fale num alter Paris gerado por Vênus, não em um
alius Paris – a deusa, em seu ódio mortal aos troianos, mostra sua cegueira trágica na
própria expressão; Enéias não será a repetição exata de um Páris!
– 293 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Não vos causa vergonha estar de novo presos num cerco e numa trin-
cheira,
frígios duas vezes capturados...”
– 294 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
12
Ver KNAUER. Die Aeneis und Homer, p. 275.
13
Em seu comentário à Eneida (Op. cit., vol. VI, p. 174).
– 295 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Espete
/) nu=n moi, Mou=sai Olu/) mpia dw/mat’ e)x
/ ousai,
o(p
/ pwj dh\ prw=ton pu=r e)m
/ pese nhusi\n Axaiw=
) n (XVI, v. 112-
113)
14
Sintético talvez em excesso, Odorico (Iliada de Homero em Verso Portuguez. Rio de
Janeiro, Henrique Alvez de Carvalho (editor), 1874, p. 202) traduz:
Musas do Olympo, recontai-me como
O fogo se ateou na Argiva armada.
– 296 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 297 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
por me terem arrebatado a esposa. Não foi só aos Atridas que coube tal
dor nem só a Micenas é lícito pegar em armas”.
15
Várias vezes aplicado a Turno, com relevo de sua carga negativa (ver SCHENK, Peter.
Die Gestalt des Turnus in Vergils Aeneis. Königstein, Anton Hain, 1984, p. 28-35).
16
Analisamos outros efeitos intertextuais desse episódio no segundo capítulo deste tra-
balho.
– 298 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 299 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
17
HEUZÉ, P. Op. cit., p. 285. O autor observa que o epíteto é aplicado uma só vez a
Enéias (em IX, v. 88), ainda assim numa referência de Cibele ao período imediatamen-
te posterior à tomada de Tróia (p. 285-286, nota 287); ora, ao chegar a Cartago já sete
anos eram passados; na parte iliádica, portanto, ao se confrontar com o jovem Turno,
o contraste entre os dois deveria ser mais que evidente, e Virgílio acentua a diferença
em detrimento do rútulo.
18
Pubentes é palavra discutida pelos estudiosos (ver Perret, no terceiro volume de sua
edição do poema, p. 248). Paratore rejeita essa lectio, dos melhores manuscritos, aco-
lhendo tabentes (ver volume VI de sua edição, p. 223); de fato, as opiniões dos maiores
especialistas estão divididas. Para nós, não há “ilogicidade”, que tornaria “insustentá-
vel”, segundo Paratore, essa lição: Turno provoca piedade entre os seus não só por seu
abatimento mas pela pouca idade que torna o combate desigual; o poeta expressa que,
para os rútulos, a luta é desigual (impar pugna, XII, v. 216), pois deverá ser travada por
forças não equivalentes (non uiribus aequis, XII, v. 218). Devemos lembrar o episódio
da luta de boxe, em que o velho Entelo castiga a arrogância do jovem Dares, e pensar
como Virgílio, sem anacronismo; ao contrário do pensamento comum de nossa época,
explorado pela publicidade, que associa juventude a força de forma invariavelmente
positiva, o poeta, em sua epopéia, ainda que visivelmente atraído pela beleza e coragem
atribuídas constantemente aos heróis jovens, confere traços negativos, como a excessi-
va impetuosidade e autoconfiança, a essa faixa etária; ser mais jovem, portanto, não
significa, automaticamente, ter mais chance de vencer um combate.
– 300 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
19
Ou, se julgarmos que há hipálage: “com o amor insano a Marte”; mas talvez seja prefe-
rível ver em “Marte” metonímia: “amor à insana guerra”.
20
A fúria constante de Turno tem sido observada desde a Antiguidade; Fulgêncio (séc.
VI) vê a personagem como a representação alegórica do furor e propõe a etimologia
qow=roj nou=j, id est furibundus sensus (apud COMPARETTI, Domenico. Virgilio
nel Medioevo. Firenze, La Nuova Italia, 1981, vol. I, p. 137). A verdadeira etimologia
do nome é o grego tu/rannoj, atraves do etrusco, como relembra Cairns (Virgil’s
Augustan Epic, p. 67); observamos que em X, 448 o rútulo é mencionado com tal
termo (dicta tyranni), o que poderia ser uma prova de que o poeta, conhecendo a
etimologia, a ela se referiria sutilmente; entretanto, ressalte-se que o termo, apesar de
ser empregado na Eneida negativamente, sobretudo com referência a Pigmalião, o as-
sassino do irmão de Dido (I, v. 361) e ao cruel Mezêncio (VIII, v. 483), é aplicado pelo
rei Latino a Enéias (VII, v. 266) e pelo próprio narrador a Latino (VII, v. 342), obvia-
mente sem carga pejorativa (cf. Enciclopedia Virgiliana, tomo V*, verbete tyrannus,
p. 341-342).
– 301 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
ore cruento, XII, v. 8); ora, como vários estudiosos têm apontado, o
mesmo traço é atribuído, na profecia de Júpiter a Vênus do livro I, ao
Furor impius,21 que, sob a paz iniciada por Augusto, ficará encerrado
no templo da guerra, rugindo, hórrido, com a boca cruenta (fremet
horridus ore cruento, I, v. 296).22 A fúria guerreira ímpia, uma cons-
tante em Turno, que irrompe contra os destinos e só causa infelicida-
de para indivíduos e comunidades, deve ser substituída pelo novo
padrão de comportamento de um Enéias, fundado na observância da
pietas e na busca da paz firmada em compromissos a se respeitar reli-
giosamente.
Se Turno tem a juventude, a beleza e a ira furiosa de um Aquiles,
as grandes linhas narrativas da epopéia lhe reservam o papel de um
Heitor; é de se notar que episódios importantes associam Enéias, não
Turno, a Aquiles; aos troianos cabe o papel de seus antigos vencedo-
res:
– escudo ofertado pela mãe Vênus – escudo dado a Aquiles por sua
mãe Tétis;
– ausência de Enéias do campo – ausência de Aquiles;
– tentativa de incêndio dos navios por – incêndio dos navios gregos por
Turno Heitor;
– embaixada de Niso e Euríalo – “Dolonéia”;
– morte de Palante por Turno – morte de Pátroclo por Heitor;
– súplica das mulheres latinas, – Hécuba suplica, junto com as
acompanhada de Lavínia, a anciãs troianas, a Palas, que não
Palas Atena ouve sua prece;
21
Associação observada, dentre outos, por Pöschl, para quem “Turno é, ele mesmo, a
personificação do Furor impius” (Op. cit., p. 184).
22
Também Niso, ao massacrar o inimigo durante a embaixada a Enéias, é comparado a
um leão que ruge com a boca cruenta (fremit ore cruento, IX, v. 341) – a sede de
matança, como se sabe, porá a perder a ele e a seu companheiro Euríalo. Virgílio cele-
bra-lhes o heroísmo com sentida emoção (IX, v. 446-449), mas a condenação do
morticínio inútil e fatal é patente (sensit enim nimia caede atque cupidine ferri, v. 354:
“pois sentiu que se deixava levar por um excessivo desejo de matança”, em tradução
que desfaz a hendíadis difícil de verter...)
– 302 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
po/tni ) Aqhnai/
)/ h, ru( si/ptoli, di=a qea/ wn,
aå con dh\ e)/gxoj Diomh/deoj, h)de\ kai\ au)to\n
prhne/a do\j pese/ein Skaiw=n propa/ roiqe pula/wn (Il. VI,
v. 305-307)
23
Ilíada VII, v. 345 e ss.: Antenor propõe a devolução de Helena aos Atridas, no que é
contraditado por Páris. Como é de se esperar, no conjunto do episódio associações in-
tertextuais outras, de diferente procedência, vêm se acrescentar à que apontamos. De
passagem, assinalemos que a personagem Drances é modelada especialmente a partir do
Tersites homérico, um paralelo assinalado por uma alusão curiosa, dentre outros indícios,
que vale a pena ressaltar. Se Homero caracterizara Tersites como “o mais feio” dentre os
que tinham vindo para sitiar Tróia (aisxistoj
)/ de\ a\n h\r u (po\ Ilion
)/ hå lqe) (Il. II,
v. 216), Turno, significativamente, chama Drances foedissime (XI, 392); é notável que
tanto aisxro/
) j quanto foedus, empregados na forma superlativa por um e outro poe-
ta, referem-se não só a feiúra física como também à moral.
24
Valemo-nos do precedente de Odorico Mendes...
– 303 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
25
Odorico, concisamente:
“Honra das deusas,
De Ilio apoio, a Diomedes quebra a lança;
O pó morda, ó Minerva, às portas Sceas...”
26
A associação entre Diomedes e Enéias, presente não apenas aqui, tem conseqüências
outras que analisaremos no último item deste capítulo.
– 304 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 305 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
27
Como vimos, em sua intervenção no conselho presidido pelo rei Latino, Turno men-
ciona com desprezo o “povo duas vezes vencido” (gentis bis uictae, XI, v. 402): trágica
ironia, pois, na fabula virgiliana os oponentes de Enéias é que são duas vezes vencidos,
segundo o próprio Latino.
28
Edição THILO, v. II, p. 580.
– 306 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
29
Note-se o relevo dado ao possessivo em disjunção.
– 307 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
30
Gesto não incomum em Homero; Turno, com seu heroísmo “arcaico”, aparece em sua
faceta homérica. Note-se o distributivo bina com o sentido de “o par”, em curiosa
reprodução do dual homérico (dou=re); como hastilia não é plurale tantum e não há
sentido distributivo (“dois de cada vez”), pode-se dizer, de forma chã, que, emprego
não raro na poesia, o distributivo está pelo cardinal correspondente; para nós, entre-
tanto, o confronto intertextual parece mostrar que Virgílio usa o distributivo como um
equivalente para a expressão dual do grego (duo, vestígio formal de dual, tornara-se
demasiado opaco e comum). Sobre o emprego do distributivo pelo cardinal, leia-se
LEUMANN-HOFMANN-SZANTYR. Lateinische Grammatik. Zweiter Band: Syntax
und Stilistik. München, C.H. Beck’sche, 1972, p. 212-213.
31
Apud Conington (Op. cit., vol. II, p. 39).
– 308 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
32
Argei/
) wn prokali/zeto pa/ ntaj a) ri/stouj
a)nti /bion maxe/sasqai e)n a) in$= dhi+oth=ti. (Il. III, v. 19-20)
“A todos os melhores dentre os aqueus, desafiava
para duelar face a face em terrível combate”.
Odorico, demasiado sucinto, traz:
“...os mais valentes
Um por um desafia.”
33
PÖSCHL (Op. cit., p. 194) nota a repetição e apresenta outra leitura do gesto de
Turno e Enéias: medo; mas o autor não atenta para a associação com Páris. É interes-
sante observar como os comentadores do texto tentam as mais diversas explicações;
para Sabbadini, no verso do livro I, o verbo indica que Enéias, “caminhando, comunica
um movimento oscilatório às lanças” (Op. cit., vol. I, p. 40).
– 309 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Páris faz pensar: após tal verso, aparece Vênus, com armas de uma
virgem espartana (!), como espartana era a Helena raptada por Páris;
por outro lado, Jarbas, que pretendia à mão de Dido (como Turno à
de Lavínia!), denomina-o, com desprezo, ille Paris (IV, v. 215: tam-
bém Amata definirá Enéias como novo Páris!); Dido recebe de pre-
sente dos troianos um véu de Helena (I, v. 648-652)! Virgílio parece
colocar Enéias em situação delicada também desse ponto de vista:
sua assimilação possível, a olhos hostis, ao polêmico guerreiro troiano,
ostentador daquela falta de fibra e virilidade de que Mercúrio acusará
Enéias em Cartago (uxorius, IV, v. 266). A nosso ver, até que novas
pesquisas intertextuais focalizem esse ponto específico, cautela se faz
necessária: repugnamos extrair sentido de determinada retomada tex-
tual (intertextualmente, de outro hipotexto; intratextualmente, em
reiteração lexical típica do estilo “formular”), se não encontramos ele-
mentos comprobatórios mais fortes.34
34
Tendo em vista a perspectiva intertextual, a epopéia de Virgílio oferece campo
amplíssimo à investigação de cenas e episódios específicos; este que apontamos é ape-
nas um exemplo de inúmeros outros temas de pesquisa que nos vêm à mente quando
mergulhamos em sua teia alusiva – nosso trabalho apresenta exemplos e sugestões de
uma linha de pesquisa de vastos horizontes. Quanto à possibilidade de um Enéias-Páris
na parte odissíaca, uma associação que retornará mais explícita, na visão dos inimigos
de Enéias, na parte iliádica do poema, gostaríamos de indicar alguns elementos para
uma futura análise. Assim, no livro IV, Enéias é visto adotando um tipo de comporta-
mento altamente dúbio, do ponto de vista da ideologia romana: passa o longo inverno
com Dido no luxo (luxu), segundo a Fama (IV, v. 193), e Mercúrio o encontra reves-
tido de presentes que, ofertados pela rainha, exibem uma riqueza bem distante do ideal
de simplicidade e frugalidade que Enéias encontrará nos domínios de Evandro, esse
paradigma da sã paupertas: espada de jaspe e manto de púrpura bordado com ouro (IV,
v. 261-264). Enéias, seduzido pelo luxo real da corte e pelo amor de Dido (!) se parece
muito, antes da visita do mensageiro de Júpiter, com a visão que se tinha de Páris:
dentre outras características negativas, um homem sem fibra e demasiado inclinado ao
amor (Pitágoras, por exemplo, apontava-o como modelo de intemperança: ver
GIAMBLICO. La Vita Pitagorica.VIII, 42, Milano, BUR, 1991, p.164-165). Mais
perturbadora analogia é o fato de que o amor de Dido e Enéias – ainda que povocado
por Vênus – será a causa lendária das guerras púnicas, como o rapto de Helena por
Páris fora o estopim da guerra de Tróia! As palavras de Jarbas convidam ao confronto:
rapto potitur (“apossa-se do produto da rapina”, IV, v. 217), em clara referência ao
– 310 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
2. GUERRA CIVIL
rapto de Helena por Páris. Sérvio, sem fazer a devida leitura intertextual, equivoca-se
profundamente: stupro fruitur: nam proprie raptus est inlicitus coitus; nec enim hic
rapuerat (“frui de relações desonrosas, pois que, em sentido próprio, “raptus” é o coito
ilícito; e, na verdade, ele não a raptara”, vol.I, p. 504). Jarbas define a ação de Enéias, o
amante da mulher que recusava suas propostas de casamento, como uma repetição do
rapto de Helena. É verdade que se trata, aqui, da visão de um inimigo do troiano, mas
a incorporação de seu ponto de vista à trama narrativa incita o leitor a ver o possível
paralelo entre as duas situações; seja como for, sobre Enéias paira a sombra de Páris.
Protagonista censurado vivamente pelo poeta, em amostra de suposta condenação de
Enéias na epopéia? Não exatamente: Virgílio retrata um herói incompleto, nesse pon-
to da narrativa, que exibe fraquezas a superar e que tomará consciência de sua missão
após a entrevista com seu pai nos Infernos. No entanto, para desenvolver mais profun-
damente o paralelo que esboçamos, tornam-se necessários novos estudos, sobretudo
uma análise mais detalhada da personagem homérica na Ilíada e na literatura greco-
latina.
35
Júpiter, por exemplo, diz ter concedido a Roma “império sem fim”: imperium sine fine
dedi, I, v. 279 – uma previsão que vai além do tempo do leitor contemporâneo e que,
de resto, a história comprovou ser falsa, desdizendo o pai dos deuses e do homens... Na
revista dos heróis romanos do livro VI (v. 756-886), trata-se de tempo posterior ao da
– 311 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
outro lado, Virgílio projeta, por vezes, sobre o passado lendário, fatos da
história recente ou contemporânea, conforme tem sido demonstrado
desde a Antiguidade, com não raros exageros, como já mencionamos.
A guerra no Lácio, aparente repetição do conflito entre troianos
e gregos, é retratada pelo poeta como uma espécie de guerra civil,36
esse espectro que acabara, supunha-se, de assolar a geração de Augusto,
deixando, contudo, a lembrança de um pesadelo ainda não totalmen-
te dissipado. Por via intertextual, julgamos nós, Virgílio aponta esse
aspecto da “Ilíada” de Enéias.
A guerra fora proibida pelo próprio rei dos deuses:
– 312 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
37
CONINGTON. Op. cit., v. III, p. 235 (“‘Discordia’ ...includes the quarrels of the gods
as well as of the men”); PARATORE, v.V, p.215 (“il sostantivo sembra espressamente
riferito agli dei”). Observe-se, entretanto, que, em defesa da interpretação do estudioso
italiano, é possível invocar palavras do mesmo Júpiter nesse mesmo livro: “e a vossa
discórdia não tem fim” (nec uestra capit discordia finem, v. 106) – aqui, o possessivo se
aplica indubitavelmente só aos deuses. Mas uma outra interpretação é possível, para
secundar a afirmação de Conington: ainda que no contexto preciso, o da assembléia
divina, a “discórdia” faça referência à desunião entre os deuses, esse estado de ânimo
encontra seu correlato no desentendimento fratricida que, por obra de Juno, impulsio-
na latinos e troianos a uma guerra nefasta.
38
Note-se que as guerras púnicas surgem como conflito de proporções sobrenaturais,
envolvendo decisivamente os deuses no curso dos acontecimentos.
– 313 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
et Discordia demens
uipereum crinem uittis innexa cruentis. (VI, v.280-281)
“e a Discórdia demente,
com sua cabeleira de víboras entrelaçada por fitas sangrentas.”
– 314 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 315 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
39
CAMPS. Op. cit., p. 121.
40
Concordes naquele momento: o desentendimento futuro provocaria a guerra civil;
nessa concepção, a discórdia em que os Estados se arruínam surge de uma discórdia
pessoal, não de projetos políticos divergentes e, muito menos, de forças econômico-
sociais antagônicas. Sintomaticamente, os grandes homens da república selavam suas
alianças políticas com casamentos, como se a criação de laços familiares fortes fosse a
melhor garantia de um entendimento na vida pública.
– 316 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 317 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Para onde, para onde, sacrílegos, vos precipitais? Ou por que as destras
tomam de espadas que estavam embainhadas?”
41
Idem, p. 260. A relação já fora feita por CONINGTON (Op. cit., vol. III, p.433). Mas
é reconhecidamente difícil atribuir uma associação desse tipo ao verdadeiro precursor,
afinal temos mais de dois mil anos de crítica virgiliana!
42
Na profecia de Anquises, Augusto trará de volta a Idade de Ouro: aurea condet/ saecula
qui rursus Latio regnata per arua/ Saturno quondam (VI, v. 792-794): “que ao Lacio
antigo/ ha de os Saturnios seculos dourados/ restituir...” (Odorico Mendes); no epodo
de Horácio, os Romanos parecem condenados a repetir, em expiação coletiva, uma
luta fratricida que teve início na fundação mesma da cidade (v. 17-20).
– 318 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
43
“O próprio Pai ministra ânimo e forças vitoriosas aos Dânaos/ele próprio incita os
deuses contra as armas dardânidas” (II, v.617-618), diz Vênus a Enéias. Efeito intra-
textual: tendo sido a guerra no Lácio pessoalmente proibida pelo mesmo pai dos deu-
ses, como vimos, releva-se a diferença entre os dois conflitos – o segundo não estava
nos planos de Júpiter, é ímpio e injustificável, ao contrário do primeiro. Juno, a instigadora
da nova guerra age, portanto, contra o destino e, presa ao antigo ódio, ilude-se com a
falsa reiteração de um conflito na verdade irrepetível.
44
I, v. 294-296.
45
Veja-se, sobretudo, Lyne (Further Voices in Vergil’s Aeneid, p. 136-137). A Enciclopedia
Virgiliana, no verbete Camilla (vol. I, p. 628-631), detém-se nas fontes literárias e
– 319 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Como Dido tem sua irmã de confiança, Anna, que acaba de-
sempenhando o papel de nutriz de tragédia, Camila tem Acca, e a
semelhança de nomes é tanto mais significativa porque secundada
em relações intratextuais; assim, as duas se dirigem à respectiva com-
panheira da mesma forma: Anna soror (IV, v. 9); Acca soror (XI, v.
823), paralelo curioso, afinal Acca não é representada pelo poeta como
irmã de sangue mas como companheira dileta, apenas:
– 320 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 321 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Ela, com a mão, moribunda, tenta arrancar o dardo, mas entre os ossos
a ponta de ferro permanece na ferida profunda, junto às costas”.
– 322 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
46
Curiosa caracterização: o amor de Camila é integralmente (aeternum amorem) desvi-
ado dos homens para as armas e a sua própria condição.
– 323 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
ut fibula crinem
auro internectat (VII, v. 815-816)
– 324 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
48
Colhemos aqui um dado da ideologia romana, de resto difundido nos documentos
literários: não vá, pois, alguma feminista mais radical incriminar-nos, anacronicamente.
Sobre o tema, veja-se o que dizemos na página seguinte.
49
“Ela morre como a guerreira que foi em vida”, sintetiza Cartault (Op. cit., vol. II,
p. 805).
50
Op. cit., p. 137.
– 325 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Deixamos para o final deste item aquela que nos parece ser a
confirmação definitiva do cumprimento das imprecações de Dido.
51
Vários exemplos em NEWMAN (Op. cit., p. 158 e ss.), que, entretanto, apresenta
alguns paralelos no mínimo discutíveis.
– 326 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 327 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
54
De fato, o poeta denomina os camponeses de duros agrestis (VII, v. 504).
55
Apud SETAIOLI, Aldo. “Lettura del Settimo Libro dell’Eneide” In: GIGANTE,
Marcello (Org.). Lecturae Vergilianae. Napoli, Giannini, 1983, p. 240.
56
Ver SETAIOLI. Op. cit., p. 265.
57
Further Voices, p. 193-200.
58
Venantis Iuli, v. 493.
– 328 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
4. TURNO E DIDO
– 329 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“a belíssima Dido...”
ante alios pulcherrimus omnis
Turnus (VII, v. 55-56)
60
Dentre os estudiosos que vêm apontando o paralelismo, destaca-se Pöschl, de quem
retomamos várias observações.
61
Odorico traduz fielmente: “enfurece”.
– 330 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
62
Comparemos: se Dido observa que se deixa arrastar pelas fúrias (furiis incensa feror,
IV, v. 376), de Turno o poeta mostra um “amor agitado pelas Fúrias” (et Furiis agitatus
amor, XII, v. 668). A edição de Perret grafa com maiúscula o substantivo furiis só nessa
segunda ocorrência – incoerentemente; as de Mynors, Paratore e Sabbadini trazem
minúscula nos dois casos.
63
Ver Pöschl, Op. cit., p. 220, em nota.
– 331 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Sob a forma de uma ave, é enviada por Júpiter uma das Dirae a
Turno, para quebrantar-lhe as forças e abreviar o duelo com Enéias:
64
“Una civetta”, como diz Paratore (Op. cit.,vol. VI, p. 264). Sérvio, entretanto, distin-
gue: noctuam dicit, non bubo; nam ait ‘alitis in paruae’: bubo autem maior est. (Op.
cit., vol. II, p. 646). Cremos que a semelhança com a cena do livro IV não deixa dúvida
de que se trata da mesma ave. A propósito, Conington, rejeitando a distinção feita por
Sérvio, lembra que o bubo, mencionado no episódio de Dido, era considerado um
pássaro de mau agouro (“very ill-omened bird”. Op. cit.,vol. III, p. 478). Forbiger dá
razão à recusa de Sérvio em aceitar que alitis paruae possa designar o bubo, mas reco-
nhece que a descrição virgiliana se ajusta mais a essa ave: Reliqua tamen buboni
accomodatiora; tentando reconciliar a contradição, aventa a hipótese de que a ave seja
retratada como “pequena” em relação à deusa (respectu deae): Op. cit., vol. III, p. 617.
Quanto à distinção entre “coruja” e “mocho” (noctua e bubo, respectivamente),
deixamo-la de lado: em nossa tradução, preferimos traduzir bubo pelo nome corrente
da ave que em nossa cultura evoca os tons sinistros da ave retratada por Virgílio.
– 332 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
65
Perret, por exemplo, em nota a sua tradução da Eneida (tomo III, p. 124), reflete a
incerteza que divide a crítica neste ponto: “a ferida, talvez mortal, de Turno...” (“La
blessure, peut-être mortelle, de Turnus...”).
66
Impossível para Ana, de quem a irmã escondeu cuidadosamente a intenção de matar-
se; impossível para Juturna, a quem Júpiter dotara de imortalidade.
– 333 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
67
Pöschl acena para a semelhança: “As palavras assemelham-se, em seu patos e função,
ao verso de Dido: Et magna mei sub terras ibit imago” (Op. cit., p. 210).
– 334 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
rea. Turno, por sua vez, expressa em dado momento um heróico des-
prezo pelo sacrifício de sua vida, numa expressão lapidar, assombrosa-
mente vigorosa, no contexto; rejeitando a fuga covarde, diz:
68
Observemos, entretanto, que, acentuando o patético da situação de Turno no duelo
final, Virgílio o fará correr em fuga diante de Enéias (XII, v. 733-765: fuga, fugit, fuga,
fugit, fugiens: a reiteração mostra a importância do motivo nesse episódio), como Hei-
tor diante de Aquiles (Il. XXII, v. 136 e ss), apesar de suas palavras a Juturna, na
alocução plena de orgulho e nobreza guerreira: Terga dabo et Turnum fugientem haec
terra uidebit?: “Darei as costas e esta terra verá Turno em fuga?”, XII, v. 645). Do
confronto intratextual nasce ironia trágica: o rútulo será mesmo visto pelos seus com-
panheiros nessa situação desabonadora para seus ideais, constrangedora para sua auto-
estima.
69
É preciso dizer que rejeitamos toda visão demasiado negativa de Turno? As intenções
de Virgílio ficariam mais claras se o poeta, como fez com Dido, tivesse mostrado positi-
vamente o jovem rútulo antes da ação divina que o degrada, inoculando, em seu caso,
o veneno do furor bélico; porém, momentos como o que acima comentamos matizam
suficientemente os aspectos “demoníacos” da personagem.
– 335 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 336 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
rainha...” (...capere ante dolis et cingere flamma/ reginam meditor, II, v. 673-674). É
difícil não ceder à incitação do subtexto: Ascânio-Cupido se acerca de Dido como de
uma nova Tróia, cavalo de madeira que lhe trará o fogo (na perspectiva de Vênus, o da
paixão amorosa; na do conjunto da obra – em antecipação trágica – também o de sua
morte na pira). Notemos os “dolos” (além do passo já citado, temos dolos, em I, v. 682
e dolo em I, v. 684) de que faz uso Vênus; no episódio da queda de Tróia, tal como
narrada por Enéias no livro II, será um motivo recorrente o de que os habitantes da
cidade só foram derrotados graças às insídias e trapaças dos gregos (e, claro, a ira divi-
na). Lyne analisa com o costumeiro brilho as imagens de cerco militar que compare-
cem sutilmente no episódo do assédio a Dido por Vênus-Cupido bem como em outros
momentos do livro IV (Further Voices, p. 18-24), sem tirar todas as conclusões da
associação.
– 337 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 338 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
73
Se o livro IV contém a tragédia de Dido, o XII relata o destino trágico de Turno. De
fato, como no primeiro se encontram vários elementos de uma tragédia típica, a
tragicidade que o leitor comum pode sentir ao longo das páginas do segundo, deveria
incitar-nos a pesquisar mais profundamente esse aspecto da narrativa virgiliana, que,
de novo, une as duas personagens. Apontamos um exemplo de ironia trágica: em sua
tentativa de reter Turno, assustada pelo curso dos acontecimentos, a rainha Amata
suplica-lhe que ele não lute com os troianos (unum oro: desiste manum committere
Teucris: “só isto peço: desiste de combater contra os teucros”, XII, v. 60). A seqüência
merece destaque:
Qui te cumque manent isto certamine casus,
et me, Turne, manent; simul haec inuisa relinquam
lumina nec generum Aenean captiua uidebo. (XII, v. 61-63)
“Seja qual for a sorte que te aguarda nessa luta,
também a mim, Turno, aguarda; ao mesmo tempo deixarei esta odiosa
luz e não verei, cativa, Enéias como meu genro”.
Amata, pois, tenta reter Turno com a perspectiva de que, morto o herói, também
ela morrerá, incapaz de suportar sua nova condição de sogra e (deturpando as inten-
ções do troiano!) cativa do inimigo odiado; ora, veremos que haverá inversão dessa
profecia: Amata morrerá primeiro, julgando que Turno tombou na batalha (pugnae
iuuenem in certamine credit/exstinctum, XII, v. 598-599); esse acontecimento provo-
ca verdadeira peripécia dramática: ao tomar conhecimento do suicídio da rainha, Tur-
no finalmente resolverá enfrentar Enéias em duelo, o que precipitará sua morte! Na
sua súplica, Amata acaba antecipando que as duas mortes se seguirão, mas não o golpe
irônico do destino, que faz com que sua morte não só preceda como também precipite
a de Turno, ao invés de a de Turno precipitar a sua...
A nosso ver, a análise do elemento trágico na segunda metade da epopéia, especial-
mente em sua relação com a “tragédia” de Dido, está a merecer um estudo mais apro-
fundado. A tragicidade da personagem Turno, com freqüência apontada pelos estu-
diosos, foi negada por Peter Schenk, com base em elementos da Poética de Aristóteles;
para o autor, Turno é retratado como absolutamente responsável por sua culpa, ao
contrário de Dido, o que faria dele, apesar de alguns traços positivos, uma personagem
nada simpática, criminosa, ímpia, com a qual o leitor não pode se identificar e, portan-
to, não lhe é possível apiedar-se de sua sorte. O último capítulo do livro de Schenk,
coroamento de suas análises, chama-se, sugestivamente, “O herói não trágico”: “der
Untragische Held” (Op. cit., p. 337-395). A questão crucial, aqui, segundo pensamos,
é distinguir com clareza um ponto na verdade polêmico: o da responsabilidade indivi-
dual das personagens que, como Dido e Turno, sofrem a ação de divindades que os
– 339 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 340 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
76
O primeiro nome a destacar é o de Knauer (Die Aeneis und Homer, p. 316 e ss.),
sempre fundamental pelo estudo sistemático das relações entre a epopéia de Virgílio e
a homérica; dentre os ensaios mais recentes, destacamos Lyne (Further Voices, p. 132-
139) e Quint (Epic and Empire, p. 65-83).
– 341 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
e à tua fortuna; não o desejo como uma alegria para a minha vida,
nem é lícito, mas para levá-la a meu filho entre os Manes profundos”.
“Recebe e dá lealdade...”77
77
Por suas conotações especiais na sociedade romana, o conceito de fides parece
intraduzível por uma só palavra; a tradução de Odorico, “fé”, desagrada-nos pela
aura católica que paira sobre o termo, desprovido da noção de ativo e objetivo com-
promisso a honrar nas relações entre os que empenham sua palavra. Por outro lado,
Accipe daque fidem é a reprodução exata de trecho da epopéia eniana (Annales,
fragmento 33): a citação de Ênio parece conferir nobreza solene às palavras de Enéias.
Uma breve mas bem feita análise do conceito de fides para os Romanos pode ser
encontrada em PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura
Clássica. II Volume: Cultura Romana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian [1984],
p. 320-326; para considerações mais profundas, veja-se o livro indicado na nota se-
guinte.
78
Este exemplo – a nosso ver claríssimo – do sentido simbólico da destra estendida não se
encontra entre os que cita Gérard Freyburger para provar a ligação estreita entre o ato
– 342 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
de dar a mão direita e o de empenhar sua palavra. Mas esse autor releva um dado
importantíssimo para a decifração de passagens da Eneida como de outras obras da
literatura latina: estender a mão direita não é um gesto desprovido de significado nem
mera saudação: é indissociável da garantia de fides (ver FREYBURGER, Gérard. Fides.
Étude Sémantique et Religieuse depuis les Origines jusqu’à l’Époque Augustéenne.
Paris, “Les Belles Lettres”, 1986, p. 136-138).
79
Entre os Romanos, esse gesto ritual era mais uma junção das destras que um aperto
propriamente dito, segundo Freyburger (Op. cit., p. 136, nota 155), nuança que é
difícil manter em português.
80
Significativamente, o primeiro contacto entre Enéias e os árcades, através de Palante,
é marcado pelo estreitar firme da destra do primeiro pelo segundo: Excepitque manu
dextramque amplexus inhaesit, VIII, v. 124 (“Recebeu-o com a mão e reteve-lhe, es-
treitando-a, a destra”) – é o primeiro sinal de uma hospitalidade cujos laços eram sagra-
dos para os Antigos. Vê-se que a imagem da coniunctio dextrarum, em signo de pacto,
é um dos motivos recorrentes deste livro VIII.
– 343 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
81
Uma sutileza interpretativa que só a leitura rigorosamente intratextual possibilita e
referenda: é pela recordação precisa da cena entre o rei árcade e o herói troiano, da
compreensão da importância da palavra dextera tantas vezes reiterada no encontro
entre os dois chefes, que o leitor verá na expressão de Virgílio um duplo sentido, ou
melhor, um gesto que além da significação de superfície (Enéias hesita) se imanta de
outras conotações (Enéias por um momento não cumpre sua parte no pacto firmado
com Evandro). Novamente, o leitor mais “desatento”, que faz leitura mais linear, não
será por certo incapaz de compreender o significado mais imediato do texto, mas per-
derá uma nuança de sentido que nos parece bastante interessante, especialmente por
ajudar a motivar o polêmico ato de Enéias.
82
Quando remete ao pai o corpo de Palante, Enéias se autocensura em palavras amargas:
“É esta a força da palavra que empenhei?” (haec mea magna fides?, XI, v. 55; literal-
mente: “esta minha grande fides?”; notável o relevo do possessivo). O herói se sente,
pois, em falta para com Evandro, uma falha que só poderá corrigir com a morte de
Turno. É preciso insistir em que o poeta procura motivar fortemente o ato último de
Enéias?
83
Nessa concepção da morte de Turno como expiação de um crime, ecoam as palavras
de Diomedes aos embaixadores latinos, reportadas no livro anterior: os que atacaram
Tróia pagaram duramente o preço por esse crime (scelerum poenas expendimus omnes,
XI, v. 258), palavras que Turno deveria acolher como uma advertência. O grego, de
fato, tenta dissuadir os latinos de guerrear contra aquele povo: “mas guardai-vos de
recorrer a armas contra essas armas!” (ast armis concurrant arma cauete, XI, v. 293).
Implicações intratextuais: Turno, que insiste na hostilidade contra o enviado do desti-
no, atrai sobre si a punição que castigou os gregos.
– 344 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
84
Essa repetição enfática do nome do jovem morto por Turno evoca o momento em que
o rútulo diz aos aliados que Palante lhe é devido, insistindo, pois, naquela luta desigual;
também ali, na fala do rútulo, o nome do jovem árcade é enfaticamente reiterado: solus
ego in Pallanta feror, soli mihi Pallas/ debetur (“só eu me lanço contra Palante, só a
mim Palante/ é devido...”, X, v. 442-443); assim, a retomada textual salienta que Enéias
paga na mesma moeda a crueldade de Turno diante do filho de Evandro.
85
Augustus, X. Aqui, reproduzimos o texto da Garnier; o da “Les Belles Lettres” apresen-
ta outra pontuação mas não resolve uma construção sintática especiosa; seja como for,
o sentido é claro.
86
De Dido, de Turno, de Amata, das guerras (Furor impius, I, v. 294).
– 345 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
87
Virgílio insiste nessa imagem: Incendia uana uomentem, em 259. Fundando-se na
aplicação dessa imagem do “vomitar fogos ou chamas” ao elmo (VIII, v. 620) e ao
escudo de Enéias (X, v. 271) e ao próprio Augusto, cujas têmporas “vomitam chamas”
(VIII, v. 680-681), Lyne vê nessa associação uma perturbadora further voice: Enéias,
com seu escudo, bem como Augusto, lembrariam o monstro Caco em seu uso de uma
força similar negativamente retratada (Further Voices, p. 27-33). Eis, pensamos, um
exemplo da excessiva simplificação a que a análise da reiteração lexical facilmente
conduz muitos, especialmente os que, sem distinguir o furor impius do furor iustus,
ambos retratados pelo poeta, e sem levar em conta o conjunto dos dados textuais e
– 346 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
ignescunt irae (IX, 65); mens exaestuat ira (IX, 798); exarsit dictis
uiolentia Turni (XI, 376); feruidus (XII, 325); o verbo ardere, conju-
gado ou na forma participial, é aplicado a Turno várias vezes (IX,
v. 760; XII, 3, 71, 101, 325; em XII, 670, a seus olhos: ardentis ocu-
lorum orbis).
intertextuais, utilizam a cena final da epopéia para distinguir uma condenação mais ou
menos velada de Enéias, já que Virgílio, ao longo de seu poema, traçaria o conflito
inconciliável entre a pietas civilizadora e o furor destrutivo. A questão é: em tais asso-
ciações devemos ver sempre uma relação de sentido que destaca semelhanças (Augusto
e Enéias com algo do monstruoso Caco)? Ou, levando-se em conta outros elementos
textuais, precisaremos atentar para as nuanças de um paralelismo formal que releva
também as diferenças, em diferentes contextos, da associação que, sem dúvida, é sem-
pre pertinente identificar? Lyne certamente, com seu brilho e solidez filológica, escapa
a visões simplificadoras, mas também cede ocasionalmente à tentação de isolar e dar
excessiva importância a certos aspectos textuais sem a contextualização adequada,
mutilando, assim, o sentido do todo.
– 347 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
552), combatendo o fogo com fogo, opondo sua fúria “justa” à insânia
bélica de Turno.
Notemos que, além da imagem do fogo que acompanha Turno,
também a idéia de um tamanho desmesurado, nesse ponto também
assimilável a Caco, ou, pelo menos, acima do normal: Palante, ao
enfrentar o rútulo, passa os olhos pelo seu corpo imenso (corpusque
per ingens, X, v. 446). O adjetivo volta na cena final, no momento
em que Turno tomba com os joelhos vergados (ingens...Turnus, v.
927); como a Enéias, dentre outros guerreiros, também é aplicado o
mesmo epíteto,88 devemos acrescentar que, no caso de Turno, o traço
é realçado: no livro IX, os troianos se abalam ao reconhecer sua face
odiosa e seu corpo imenso (immania membra, v. 734). Semelhante-
mente, nas cenas finais da epopéia também teremos um ingens Enéias,
mas com conotação positiva: o troiano se agiganta em sua fúria guer-
reira, favorecida pelos destinos e fundada no desejo da paz, para estar
à altura do antagonista também do ponto de vista heróico, no sentido
do heroísmo também físico de um Aquiles e de um Heitor ou de um
Hércules.
Observemos que quase todos os mais polêmicos atos de uma
suposta crueldade de Enéias são atenuados pelo poeta com uma esco-
lha vocabular significativa: se o troiano captura os quatro filhos de
Sulmão para os sacrificar a Palante,89 em imolação essencialmente
88
Ingentem Aenean (VI, v. 413; VIII, v. 367).
89
Augusto, como se sabe, após a guerra de Perúsia, teria sacrificado trezentos (!) notáveis
no aniversário dos Idos de Março, como sacrifício aos manes de César (ver Suetônio,
Augusto XV, que, porém, prudentemente não assume a informação, atribuindo-a a
alguns escritores: Scribunt quidam). É curioso que, mais inflexível que Enéias, Augusto,
sem hesitação, após a captura da cidade, se mostrara implacável, rejeitando até mesmo
as súplicas ou justificativas apresentadas pelos condenados à execução (“é preciso mor-
rer”, moriendum esse, dizia ele com férrea frieza!). O imperador se apoiava na mesma
noção sagrada de pietas que leva Enéias a sacrificar Turno, para justificar o que nos se
antolha bárbara crueldade. Mas não se deve usar esse paralelo para explicar a atitude
de Enéias: simplificações desse tipo são especialmente comuns na leitura dita “alegóri-
ca”, cujos abusos já mencionamos.
– 348 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
90
Boas observações em HEUZÉ, P. Op. cit., p. 159-164. Sérvio já observara o caráter
sacro da morte de Turno, assim glosando as palavras de Enéias: te tamquam hostiam
inmolat Pallas (“A ti Palante imola como a uma vítima”: vol. II, p. 649, ad uersum XII,
949).
91
Estamos apontando, preferencialmente, elementos intertextuais para analisar o senti-
do da cólera do protagonista da Eneida, mas poderíamos também ressaltar as diferen-
ças de concepção entre nosso mundo e o da Antigüidade. Se Augusto justificava atos
de crueldade pela necessidade de satisfazer sua pietas, César aparecerá como clemente
por ter estrangulado seus raptores antes de crucificá-los! Suetônio relata o fato como
prova de que Júlio era por natureza muito brando até mesmo na vingança (et in
ulciscendo natura lenissimus – Diuus Iulius Caesar, LXXIV). De fato, Cícero louva a
clemência de César mais de uma vez; no Pro Marcello, a recondução de seu cliente ao
Senado leva o orador a expressar sua admiração por tamanha brandura, tão inusitada
e inaudita clemência (Tantam enim mansuetudinem, tam inusitatam inauditamque
– 349 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
mais de uma vez se retrata uma ira justa; quando os troianos sitiados
avistam Enéias, que retorna de sua viagem em busca de aliados, a
esperança faz revigorar a ira contra os inimigos: spes addita suscitat
iras (“a esperança suscita iras”, X, v. 263). Expressão similar compa-
rece no momento em que Enéias se arma para o duelo final:
clementiam, I,1); ora, exageros retóricos à parte, parece-nos evidente que Cícero não
expressaria tal juízo, com tanta ênfase, se aos olhos da maioria os atos de César, após
sua vitória na guerra contra Pompeu, não parecessem exemplos de clemência excepci-
onal, rara. Ou seja, a vingança contra os inimigos aparece como conseqüência rotinei-
ra das vitórias militares (note-se inusitatam inauditamque). Refletindo em tais concep-
ções, que nos dão indicações sobre as expectativas do destinatário de sua época, é mais
fácil compreender como o leitor de Virgílio não deveria ficar tão chocado quanto mui-
tos de nós com a eliminação de Turno por Enéias na última cena da epopéia.
92
“O furor, tão necessário quando se combate, não é natural nos heróis virgilianos”, diz
Perret (vol. III de sua edição da epopéia, p. 128, nota 1); mas se deve ressalvar que
Turno conserva um furor sempre a ponto de se manifestar (obra, em última instância,
de Alecto); sob esse ponto de vista, é interessante comparar a cena do armar-se de
Enéias com a equivalente de Turno, que a precede: imagens, ritmos e sons se unem
para criar um retrato intensamente vivo do ardor guerreiro do rútulo, que parece se
comprazer com o morticínio, ao contrário de Enéias. É a Turno que se aplicam fórmu-
las como scelerata insania belli (VII, v. 461) e caedisque insana cupido (IX, v. 760).
Notemos a idéia do desvario e de um amor insano: assim como Dido se perde pela
paixão amorosa, Turno se condena pelo amor excessivo e gratuito a uma guerra ímpia.
– 350 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 351 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
93
Marte dá redéas soltas aos cavalos; recordemos a expressão habenas immittere, “soltar,
afrouxar as rédeas”. Da própria Eneida, poderíamos citar o passo em que as troianas,
instigadas por Íris, incendeiam os navios; o fogo se espraia como um cavalo sem freio:
Furit immissis Volcanus habenis, V, v. 662 (“Vulcano, com as rédeas soltas, se enfure-
ce...”). Notemos neste exemplo a associação de furor, fogo destrutivo e ausência de
peias, uma constante da caracterização de Turno. Furor, audácia e desenfreamento, na
epopéia marcas do rútulo, em Cícero caracterizam homens como os inimigos do Estado
Catilina (por exemplo: furor iste tuus... effrenata audacia – Primeira Catilinária, I, 1) e
Antônio (Noui hominis furorem, noui effrenatam uiolentiam – Filípicas XII, 11, 26:
“Conheço o furor desse homem, conheço a violência desenfreada”). Observe-se, so-
bretudo, uiolentia, palavra, na Eneida, só aplicada a Turno, segundo mencionamos.
– 352 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
94
tandem liber equos campoque potitus aperto (XI, v. 493): “livre, finalmente, e se apos-
sando da planície aberta...”
95
Destaquemos a ameaça de Enéias, que se dispõe a destruir a cidade de Latino, se seu
povo não aceitar o freio e não se declarar pronto a obedecer: ni frenum accipere et uicti
parere fatentur (XII, v. 568). Aqui, recordamos a associação feita por Anquises entre
paz e cavalos sob o freio.
– 353 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Sofreai as iras!”
– 354 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
96
Veja-se a análise de Cairns (Virgil’s Augustan Epic, p. 82-84).
97
Observemos que a caracterização iustis põe por terra a distinção reportada por Sérvio,
que a atribui a “alguns” (quidam), entre um furor positivo (pro bono et innocenti
motu) e furiae como expressão sempre negativa (semper pro malo) – ad uersum IV,
474 (Op. cit., vol. I, p. 550).
– 355 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
98
Ferido por Enéias, na iminência do perdão ou do golpe final, Turno reconhece sua
culpa e a justiça do castigo: Equidem merui (XII, v. 931). Perret, a nosso ver equivoca-
damente, em longa nota comenta o passo e rejeita a idéia de um reconhecimento de
culpa por parte do rútulo (Op. cit., vol. III, p. 260-262). Pöschl, pelo contrário, assim
comenta a declaração do rútulo: “Pela primeira e única vez, Turno reconhece e con-
fessa, aqui, sua culpa contra Enéias...” (Op. cit., p. 223).
99
Apud QUINN. Op. cit., p. 224, nota 1.
100
Há que se atentar, também, para os aspectos religiosos que arrastam, por assim dizer,
Turno para o castigo: ao contrário de Enéias, o rútulo não respeita o pacto firmado entre
o troiano e o Latino junto aos altares da cidade (XII, v. 161 e ss.); rompida a trégua,
enquanto Enéias, desarmado, clama pelo cumprimento do tratado, Turno, na primeira
oportunidade que se lhe oferece, entrega-se ao massacre. Em dado momento, o próprio
rútulo expressará a consciência da culpa dos seus no rompimento do pacto, oferecendo-
se para expiar a falta coletiva: me uerius unum / pro uobis foedus luere (“é mais justo que
eu, unicamente, expie por vós o pacto...”, XII, v. 694-695). Discordando de Perret (Op.
cit., tomo III, p. 253), entendemos a expressão foedus luere como Sérvio: rupti foederis
poenas exsoluere (“expiar o castigo pelo rompimento do pacto”. Op. cit., tomo II, p. 633-
634), Forbiger (Op. cit., tomo III, p. 598: rupti foederis poenam luere), Conington (Op.
cit., vol. III, p. 465: poenas pro foedere rupto luere). Por outro lado, quando da morte de
Palante, o próprio Júpiter anuncia a morte próxima do rútulo:
– 356 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 357 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 358 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 359 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
103
Nitidamente simbólico, como observa Harrison In: VERGIL. Aeneid 10. With
Introduction, Translation, and Commentary by S. J. Harrison. Oxford, Clarendon Press,
1991, p. 197. Esse autor recorda que na Ilíada não é incomum ver o vitorioso calcar o
corpo do vencido; quanto a nós, observamos que Virgílio, com o ato em si, único na
Eneida, e com laeuo, que releva seu caráter ominoso, confere-lhe uma negatividade
evidente – só Turno é representado assim, e por seu tratamento “homérico” de Palante,
pagará caro...
– 360 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
104
Como depois da última entrevista com Dido: multa gemens (IV, v. 395): Enéias se
lamenta por causar dano a pessoas que não o mereciam.
105
FARRISON, S. J. Op. cit., p. 269.
– 361 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
106
Odorico, infelizmente, deixa passar a notação (para nós, a excessiva peocupação com
a concisão parece levar não raras vezes esse brilhante tradutor a tais lapsos; assim, na
leitura de sua tradução da Eneida, vemos com freqüência que sua versão empalidece
ao deixar de lado expressões do original que, sob a aparente banalidade, revestem-se de
simbolismo). Eis como traduz ele o verso homérico: “ (Lançam-lhe;) Achilles o ergue e
o põe num feretro”. Confrontando intertextualmente com sua tradução da Eneida:
aqui, ipsum se torna “o morto” – cremos que este é um exemplo da necessidade de o
tradutor utilizar em seu trabalho (que se torna, assim, mais laborioso ainda) parâmetros
intertextuais.
– 362 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
107
Tantae molis erat Romanam condere gentem, I, v. 33.
108
VI, v. 860-886; mas o bloco temático parece inicado antes, no verso 853, que exalta a
uirtus bélica de um outro Marcelo, ancestral do jovem sobrinho do imperador.
109
Defende esse ponto de vista Paratore (em seu comentário, vol. III, p. 359-360); mas
Norden, contra essa tese, como o próprio Paratore recorda, apontava, entre outros
argumentos, o fato de os encômios com freqüência terminarem pela morte de uma
personagem ilustre (Op. cit., p. 338); para ele, o episódio da revista dos heróis, planeja-
do tal como o temos, compreendia desde o início a morte de Marcelo (p. 339). Concor-
damos e lembramos que essa maneira de compor é virgiliana: longe de todo triunfalismo
vazio, trazer à tona a nota sombria que nos faz refletir sobre as misérias humanas (de
fato, o próprio Anquises, ao narrar as gestas gloriosas dos romanos, se referira às guerras
civis entre César e Pompeu, um exemplo pouco dignificante do ideal de paz prescrito
por Anquises como missão do Romano!). Por outro lado, o destaque dado ao ancestral
do jovem Marcelo é facilmente explicável não só pelos laços de parentesco entre os
dois como pelo efeito pretendido de contraste entre dois destinos tão diversos, apesar
das semelhanças iniciais.
– 363 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
110
Ver Knauer (Die Aeneis und Homer, p. 317 e ss.). Os versos 897-898, em especial,
evocam o episódio em que Atenas pega uma pedra para a lançar contra Ares na Ilíada,
– 364 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 365 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
112
Já o vimos como um Heitor frustrado ao tentar incendiar os navios, paralelo salientado
pela alusão. Lyne mostra que no livro XII, o próprio Turno se apresenta como um novo
Diomedes, pois em sua resposta a Latino, que desejava impedir o duelo, o rútulo mos-
tra sua autoconfiança com palavras que evocam o duelo entre Enéias e Diomedes no
canto quinto da Ilíada:
longe illi dea mater erit, quae nube fugacem
feminea tegat et uanis sese occulat umbris. (XII, v. 52-53)
“Longe lhe estará a mãe, deusa, que ao fujão com nuvem
femínea cubra e se oculte ela mesma em sombras vãs.
Notemos o desprezo de Turno, revelado nos termos fugacem e feminea: o rútulo atri-
bui ao oponente um comportamento nada viril. Na Ilíada, narra-se que Enéias teria
morrido, atingido pela pedra que lhe lançara Diomedes, se Afrodite não o protegesse
dos dardos com seu manto e o retirasse da batalha (V, v. 311-318). Turno, pois, julga-
se na posição de um Diomedes a quem Enéias, finalmente, não escapará: esse dado
intertextual é importante para a interpretação da cena final, que volta a insistir no
paralelo (ver LYNE. Further Voices, p. 133-134).
– 366 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 367 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“Mas o herói
caiu de joelhos...”
116
A criticar as edições de Perret e Mynors, que, incoerentemente, põem vírgula após
obstipui somente no segundo passo. Nos textos de Paratore e Sabbadini, em ambos os
passos não se acrescenta a desnecessária pausa.
– 368 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
117
No primeiro item deste capítulo, mencionamos um paralelo que está a merecer, como
dissemos, tratamento especial: no livro XII, é aplicado a Turno um verso que o associa
a Páris, mas esse verso fora, no primeiro livro, aplicado a Enéias, que parece ter algo de
Páris em sua estada em Cartago – novamente, o rútulo apresenta traços negativos que
Enéias possuía na primeira parte da epopéia e conseguira, com a ajuda divina, superar.
– 369 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
118
“Dido é, obviamente, um alter Aeneas”, diz, expressivamente, OTIS (Op. cit., p. 265);
mas teria sido melhor alius Aeneas...; o próprio estudioso não teme o paradoxo: “Enéias,
tão semelhante a Dido, é também muito diferente dela...” (p. 269).
119
Como diz Quinn de Enéias e da rainha: “He is an ascending character, Dido a descending
one” (Op. cit., p. 152). Se o livro IV narra, de fato, a queda fatal de Dido, cujo estatuto
“heróico” vai soçobrando ao longo do episódio, Turno não é apresentado ao leitor
antes da ação de Alecto, mas seus atos conservam, como não deixa de ser, no fundo, o
caso da cartaginesa, certo heroísmo que, equivocado nos fins e meios e em oposição ao
fatum, não provoca senão desnecessário sofrimento para si e os seus. Quanto a Enéias,
transcendendo-se, ao assumir o árduo fardo dos destinos de todo um povo, depura sua
ação das armadilhas das vicissitudes cotidianas; renunciando à paixão e à fúria bélica
sem sentido, funda um novo heroísmo. É, cremos, nessa direção que se deve encami-
nhar a discussão sobre uma suposta “evolução” do protagonista da Eneida, um dos
pontos polêmicos da crítica virgiliana; a análise da cena final parece-nos, junto com
outros argumentos, referendar a opinião dos que acreditam numa “evolução” ao longo
da epopéia, desde que não se confira ao termo uma densidade psicológica anacrônica.
120
Será mera coincidência que, ao fugir de Enéias, no livro XII, Turno é comparado a um
cervo acossado numa cena de caça (v. 749-755), à maneira de Dido, representada como
corça fugindo de um pastor que a persegue? Mais: no verso que traz a palavra ceruom
aparece o adjetivo puniceae (vermelha, a partir da idéia da púrpura fenícia), que evoca,
seja como for, Cartago. Faltam mais provas textuais; porém a surpreendente sutileza da
arte alusiva de Virgílio leva-nos a aventar a possibilidade de que neste símile condensado
o poeta evoque o símile do livro IV, associando o rútulo e a cartaginesa, ambos vítimas de
um Enéias “caçador” (no livro XII, uenator...canis, v. 751).
– 370 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 371 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 372 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 373 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 374 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
121
Curiosamente, a imagem do lobo entre os antigos continha traços característicos de
Turno; de fato, segundo o Tratado de Fisiognomonia, “O lobo é um animal rapace,
iracundo, insidioso, audacioso, violento” (Lupus animal est rapax, iracundum,
insidiosum, audax, uiolentum, 126): notemos, sobretudo, audax e uiolentum, qualida-
des que Virgílio associa constantemente ao rútulo. Homens que têrm características
– 375 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 376 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
122
Notemos, porém, algumas diferenças no confronto: os troianos desesperados do livro II
são lobos a quem a necessidade de alimentar a si e aos seus filhotes impele ao inimigo;
no segundo símile, que retrata a tentativa de Turno de entrar no acampamento, há
referência a filhotes, mas esses são cordeiros ameaçados pelo lobo (no contexto, os
troianos a quem Turno insidia). Ora, podemos dizer que a presença dos filhotes famin-
tos no primeiro caso atenua, porque justifica com um instinto paternal (alimentar a
cria há muito tempo faminta) a atitude feroz do animal, seu comportamento agressivo;
no segundo, a presença da prole, balindo e sob o abrigo das mães, entre os que o lobo
acossa, ajuda a criar a imagem negativa do animal. Além disso, no segundo símile, é a
fome terrível do próprio lobo que é realçada, ao passo que no primeiro ganha vulto a de
seus filhotes (faucibus siccis/siccae fauces: será gratuita essa inversão?: não ousamos
afirmá-lo sem reservas, mas, em face da sutileza alusiva de Virgílio, comprovada a cada
nova leitura intertextual, julgamos provável que aqui o poeta “sinalize” o efeito preten-
dido com a associação dos símiles!), como se o poeta insinuasse, sutilmente, a partir do
confronto, que Turno, ao contrário dos troianos, age só por conta própria, para satisfa-
zer a seu próprio furor egoísta... Virgílio, de novo, associa símiles operando, porém,
sutis modificações de “inversão”; aqui, conferindo aos troianos do livro II uma luz mais
positiva que a lançada sobre Turno... Seja como for, o paralelo continua: Turno é posto
numa situação de ódio agressivo como aquela em que se encontraram Enéias e seus
companheiros de resistência; no caso dos troianos, em defesa desesperançada de sua
cidade; no caso do rútulo, em ataque autoconfiante aos defensores do acampamento.
Discordamos, pois, de Paratore, que não vê outro ponto de contacto entre os símiles
que não “o genérico rabies...e a imagem das siccae fauces” (em seu comentário, vol. V,
p. 142).
– 377 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
“A maior parte do livro mostra que Enéias pode esquecer tudo – dever
para com o destino, o apelo de sua família – quando presa de grande
paixão”.123
Nossa crítica: Lyne identifica aqui uma further voice sob a voz
épica de superfície, que condenaria Enéias mostrando-nos uma faceta
negativa de sua personalidade; ora, é evidente a condenação, mas
não de Enéias como personagem global, e sim do Enéias sem rumo do
contexto desse livro II:124 desobediente às recomendações de Heitor e
incapaz de perceber que, ao tentar defender a cidade em chamas, age
inutilmente contra os desígnios celestes por trás da ruína de Tróia e
contra seu próprio destino, que lhe reserva a tarefa de transportar
para a Itália os deuses derrotados e as sementes de uma civilização por
surgir.
Outro paralelo entre Enéias e Turno não tem sido, ao que nos
consta, observado. Dido acusa seguidamente o troiano de quebrar a
palavra empenhada (perfide, IV, v. 305 e 366), sacramentada pela
união das destras:
123
Further Voices, p. 185.
124
O livro de Lyne, por nós tantas vezes citado, repleto de análises instigantes, peca por
vezes pela não consideração de elementos textuais na operação de encontrar further
voices por todo o poema; sua interpretação do papel de Enéias na cena final nos pare-
ce, sobretudo, exibir essa deficiência.
– 378 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
125
Infeliz, aqui, a tradução de Perret: “nulle part il n’est d’appui sûr”: perde-se a noção de
fides, tão importante no livro IV.
126
Virgílio não retrata em nenhuma cena um compromisso explícito de Enéias para com
Dido, mas é claro que havia entre os dois laços de “hospitalidade”, de notável impor-
tância para os Antigos. Somos levados, assim, a pensar na possibilidade de que o herói,
de fato, impulsionado por um decreto mais alto, tem de quebrar certas normas de
conduta (ele, o herói da pietas!) em sua verdadeira “fuga” de Cartago. No caso de
Dido, vimos no terceiro capítulo que a alusão a Catulo revela que Dido-Ariadne real-
mente foi traída na boa-fé por Enéias-Teseu; mesmo não invocando aspectos inter-
textuais, o fato de ter sido atendida a prece da rainha aos deuses, que clamava por
vingança justa contra Enéias, revela que o troiano infringiu mesmo compromissos hu-
manos sacramentados pelos deuses. (Teria violado um pacto de união amorosa? Veja-
se a nota seguinte.) Mas Virgílio deixa ao leitor atento a tarefa de tirar essas conclu-
sões, com sua discrição notável a respeito da “culpa” relativa de Enéias (ao passo que a
culpa de Dido é enunciada pelo próprio narrador, IV, v. 172!).
– 379 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
127
Enéias, em seca resposta a acusações de Dido, garante que nunca pretendeu assumir
um compromisso matrimonial: nec coniugis umquam/ praetendi taedas aut haec in
foedera ueni (“E jamais pretendi/ tochas nupciais nem vim para tal compromisso..., IV,
v. 338-339).” De fato, na cena da gruta, onde ocorre uma espécie de encenação defor-
mada de núpcias reais, o próprio poeta parece advertir que Dido injustificadamente
julga aquela união como legítima: nec iam furtiuom Dido meditatur amorem:/ coniugium
uocat, hoc praetexit nomine culpam (“e Dido já não pensa num amor furtivo;/ casa-
mento ela o chama, com este nome dissimulou sua culpa”, IV, v. 171-172). Mas a
alusão constante ao episódio de Ariadne e Teseu, que Catulo contrapõe às felizes bo-
das de Tétis e Peleu, faz pensar: de algum modo, um compromisso amoroso parece ter
sido violado – mas o poeta não explicita esse dado pouco dignificante para seu herói.
Similarmente, os laços entre Latino e Turno não são explicitados: apesar do que diz a
rainha, o poeta não retratou, em ponto algum da narrativa, Latino assumindo um
compromisso com Turno, em momento anterior à chegada dos troianos, para dar-lhe a
mão da filha em casamento. Na verdade o poeta relata que Turno era um dos muitos
pretendentes de Lavínia, favorecido pela rainha Amata (VII, v. 54-57), mas os prodígi-
os divinos a tal obstavam (sed uariis portenta deum terroribus obstant, VII, v. 58). Por
outro lado, o oráculo de Fauno adverte o rei: (natam) thalamis neu crede paratis, VII,
v. 97; literalmente: “não confies tua filha aos tálamos preparados”, uma expressão algo
obscura, graças à imprecisão do particípio paratis, mas que pode nos fazer pensar numa
união de alguma forma prevista (com que grau de formalização e engajamento?) entre
Turno e Lavínia.
– 380 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
128
Não acreditamos que se possa ver na súplica de Turno apenas uma peça retórica para
comover Enéias pelo seu lado mais sensível, o da pietas; porém, mesmo que suas palavras
sejam interpretadas de modo negativo, resta o paralelo: o rútulo tem um velho pai, como
o troiano na primeira metade da epopéia. O próprio Turno explicita o ponto de contacto:
fuit et tibi talis/ Anchises genitor, XII, v. 933-934). Quanto à devoção religiosa, marca
maior de Enéias, há dados textuais a opor a quem tece de Turno um retrato totalmente
negativo; em cena do duelo final com Enéias, suplica a Fauno e à Terra que retenham a
lança do troiano, que se fixara num tronco consagrado ao primeiro deus; pede-lhes o
benefício em nome de sua devoção para com eles: colui uestros si semper honores (“se
sempre honrei vosso culto”, XII, v. 778). Ora, essa súplica é atentida, o que atesta a
veracidade dessa afirmação de escrúpulo religioso! O rútulo encontra, pois, por sua devo-
ção, respaldo nos deuses de sua terra; no campo religioso, seu erro, tragicamente letal, é
colocar-se contra os desígnios do Fatum e quem os representa entre os homens.
129
Barchiesi (La Traccia del Modello, p. 106 e ss) analisa com brilho as alusões, nesta cena
final da epopéia, ao episódio final da Ilíada, que mostra outra face de Aquiles, a clemên-
– 381 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
cia, pois, como se sabe, o grego permite ao velho Príamo, cuja súplica ecoa nas palavras
de Turno, o resgate do corpo de Heitor. Portanto, nos últimos momentos da Eneida,
paira sobre a figura de Enéias a evocação simultânea de Aquiles vingador e Aquiles
misericordioso, num acréscimo de tensão para o leitor intertextual.
130
Denominado, nos livros anteriores, nate dea em I, v. 615; II, v. 289; III, v. 311 e 374;
IV, v. 560; V, v. 383, 474 e 709.
131
A rainha dos deuses defende Turno, em resposta a um discurso de Vênus; no contexto,
é, pois, significativo que Juno mencione a mãe divina do rútulo, como que em resposta
ao fato de Enéias ser o filho da sua rival; sob tal aspecto, parece insinuar, os dois têm os
mesmos direitos. Poder-se-ia argüir que Venília é propriamente uma ninfa, ao contrá-
rio de Vênus, verdadeira dea, mas em tal caso responderíamos que a prova de que
também se pode dizê-la “deusa” está na própria Eneida: Juno chama a irmã de Turno
“ninfa” (XII, v. 142), logo depois de o narrador chamá-la “deusa” (Extemplo Turni sic
est adfata sororem/ diua deam, v. 138-139: “Logo assim dirige a palavra à irmã de
Turno, a divina à deusa...”). Nota-se também a equivalência diua (aqui, Juno) e dea
(aqui, a ninfa Juturna). Em XII, v. 785, o próprio narrador a chama dea. Resumindo:
também a Turno se poderia aplicar o natus dea proferido pela Sibila, cujas profecias são
de fato ambíguas.
– 382 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
132
Em Virgílio, como vimos, Turno é filho de uma ninfa, em perturbador paralelo com o
Aquiles da Ilíada, filho da ninfa Tétis! Além disso, a semelhança fônica Vênus-Venília
aproxima ainda mais os dois heróis semidivinos e os distingue, pois, como nota Robert
Schilling, “ainda que Juno finja acreditar em sua equivalência, a pálida Venília não
atinge por certo a estatura da aurea Vênus” (Enciclopedia Virgiliana, vol. V*, verbete
Venilia, p. 487). Na ação da Eneida, entretanto, Venília não desempenha papel algum;
o equivalente de Tétis será, como se sabe, Juturna, a irmã de Turno, uma outra...ninfa.
Enéias está melhor assistido...
– 383 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 384 –
CONCLUSÃO
1
Como explicar a beleza de um verso como este, um dos que, em nossa vida de leitor de
poesia, mais nos têm assombrado de uma espécie de estremecimento estético: Ibant
obscuri sola sub nocet per umbram (VI, v. 268)? Certamente um conjunto de elemen-
– 386 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
tos contribuem para seu impacto: o ritmo pausado e solene dos espondeus, que nos
fazem talvez sentir o deslizar lento, nas trevas, de Enéias e a Sibila; a nasal do substan-
tivo final, que parece ecoar prolongadamente e compõe, com a aliteração da sibilante
(sola sub) e com o u tônico de obscuri e umbram mais o de sub, aveludada e misteriosa
musicalidade; a brilhante dupla hipálage, com efeitos sugestivos: de forma econômica,
duas leituras possíveis – a da lógica banal, que, justamente, vê aqui hipálage, e, pés
firmes no chão, afirma que, “obviamente”, as personagens é que marcham “solitárias”
pela noite, que, na verdade, é “obscura”... (já em Sérvio, que glosa: sub obscura nocte
soli ibant), assim mutilando a densidade poética das imagens tais como as relações
gramaticais entre os substantivos e adjetivos nos desenham: personagens humanas obs-
curas, como que fundidas às trevas de uma noite solitária (e que conotações não sur-
gem dessa humanização da noite, apesar do desgaste da expressão depois de mais de
dois mil anos!). Somamos a essas características do verso o contexto misterioso de uma
descida ao reino dos mortos...e podemos garantir que captamos sua magia?
– 387 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
2
Uma discutível opção pela uariatio... (preferimos tal explicação a outra: as dificuldades
de um esquema métrico rígido, justificativa que subestima a maestria do tradutor!).
Para efeito de comparação: Perret muda um verbo, desnecessariamente, impedindo,
assim, a repetição total de II, 774/III, 48 (mes cheveux se dressèrent, ma voix s’arrêta
dans ma gorge/mes cheveux se dressèrent, ma voix s’ étouffa dans ma gorge). Quanto
à outra reiteração, ele a mantém integralmente.
3
Seria interessante analisar sob esse ponto de vista também suas traduções de Homero
e, comparando-as com as da obra de Virgílio, analisar o grau de fidelidade da tradução
às relações intertextuais entre a obra do poeta latino e a de seu predecessor. Odorico
Mendes não pôde usufruir desse extraordinário instrumento de trabalho para o crítico
(e o tradutor!) que é a obra de Knauer, várias vezes citada por nós.
– 388 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
– 389 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
BIBLIOGRAFIA
– 391 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
1985, libro primo e secondo; 1987, libro terzo; 1985, libro quarto; 1968, libro quinto; 1987,
libro sesto; 1973, libro settimo; 1987, libro ottavo; 1968, libro nono; 1970, libro decimo;
1965, libro undecimo; 1967, libro dodicesimo.
SPALDING, Tassilo Orpheu.Virgilio. Eneida. São Paulo, Círculo do Livro [s.d.].
THILO, Georg (editor). Seruii Grammatici qui feruntur in Vergili carmina. Hildesheim, Georg
Olms, 1986, v. 1 (Aeneidos Librorum I-IV commentarii) e II (Aeneidos Librorum VI-XII
commentarii).*
VIRGILE. Livres I, II e III de L’ Énéide. Paris, Hachette [s.d.].
– 392 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
CORTE, Francesco della (org.). Enciclopedia Virgiliana. Roma, Enciclopedia Italiana, 1984-
1991, cinco volumes.
____. La Mappa dell’Eneide. Firenze, La Nuova Italia, 1985.
D’ANNA, Giovanni. Virgilio. Saggi critici. Roma, Lucarini, 1989.
DUCKWORTH, George. Structural Patterns and Proportions in Vergil’s Aeneid. Ann Harbor,
University Michigan Press, 1962.
FARRELL, Joseph.Vergil’s Georgics and the Traditions of Ancient Epic. The Art of Allusion in
Literary History. New York, Oxford University Press, 1991.
FARRON, Steven.Vergil’s Aeneid: a Poem of Grief & Love. Leiden, Brill, 1993.
FUNAIOLI, G. L’ Oltretomba nell’Eneide di Virgilio. Palermo, Remon Sandron, 1924.
GIANCOTTI, F. Victor Tristis. Lettura dell’ Ultimo Libro dell’ Eneide. Bologna, Pàtron, 1993.
GIGANTE, Marcello (org.). Lecturae Vergilianae. Le Bucoliche. Napoli, Giannini, 1988;
____. Le Georgiche. Napoli, Giannini, 1982;
____. L’Eneide. Napoli, Giardini,1983.
GILLIS, Daniel. Eros and Death in the Aeneid. Roma, L’ “Erma” di Bretschneider, 1983.
GRANSDEN, K. W. Virgil’s Iliad. An Essay on Epic Narrative. Cambridge. Cambridge University
Press, 1984.
GRIMAL, Pierre. Virgile ou la Seconde Naissance de Rome. Paris, Arthaut, 1985. (Tradução
portuguesa: Virgílio ou o Segundo Nascimento de Roma. São Paulo, Martins Fontes, 1992.)
GUILLEMIN, A. M. L’Originalité de Virgile. Paris, “Les Belles Lettres”, 1931.
____. Virgile, Poète, Artiste, Penseur. Paris, Albin Michel, 1989.
HARDIE, Philip. The Epic Successors of Virgil. A Study in the Dynamics of a Tradition.
Cambridge, Cambridge University Press, 1993.
____.Virgil’s Aeneid. Cosmos and Imperium. Oxford, Clarendon Press, 1989.
HARRISON, E. L. “Vergil and the Homeric Tradition” . In: Papers of the Liverpool Latin
Seminar, v. III, 1981, p. 209.
____. “Structure and Meaning in Vergil’s Aeneid” . In: Papers of the Liverpool Latin Seminar,
1976, p. 101.
HEBEL, Udo. Intertextuality, Allusion and Quotation, An International Bibliography of
Critical Studies. Westport, Greenwood Press, 1989.
HEINZE, Richard. Virgils Epische Technik. Stuttgart, Teubner, 1957. (Traduzido para o in-
glês: Virgil’s Epic Technique. London, Bristol Classical Press, 1993.)
HELLEGOUARCH, Joseph. “Fabricator Poeta: Existe-il une Poésie Formulaire en Latin?” . In:
Revue des Études Larines. Paris, “Les Belles Lettres”, 19856, tomo LXII, p. 166.
HERRMANN, L. “Le Poème 64 de Catulle et Virgile”. In: Revue des Études Latines. Paris,
“Les Belles Lettres”, 1930, tomo VIII, p. 211.
HEUZÉ, Philippe. L’image du Corps dan l’Oeuvre de Virgile. Roma, École Française de Rome,
1985.
– 393 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
HIGHET, Gilbert. The Speeches in Vergil’s Aeneid. Princeton, Princeton University Press,
1972.
HORSFALL, Nicholas. Virgilio: l’Epopea in Alambico. Napoli, Liguori, 1991.
KNAUER, Georg. Die Aeneis und Homer. Studien zur Poetischen Technik Vergils mit Listen
der Homerzitate in der Aeneis. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1964.
KNIGHT, Jackson.Virgilio Romano. Milano, Longanesi, 1949.
LESUEUR, Roger. L’Énéide de Virgile. Étude sur la Composition Rythmique d’une Épopée.
Toulouse, Association des Publications de l’Université de Toulouse-le Mirail, 1975.
LYNE, R.O.A.M. Further Voices in Vergil’s Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1992.
____.Words and the Poet. Characteristic Techniques of Style in Vergil’s Aeneid. Oxford,
Clarendon Press, 1989.
MCAUSLAN, Ian & WALCOT, Peter (ed.). Virgil, Oxford, Oxford University Press, 1990.
MELLINGHOFF-BOURGERIE, V. Les Incertitudes de Virgile. Contributions Épicuriennes à
la Théologie de l’ Énéide. Thèse de 3º. Cycle. Paris, Paris IV, 1971.
MONTI, Richard. The Dido Episode and the Aeneid. Leiden, Brill, 1981.
MOSKALEW, Walter. Formular Language and Poetic Design in the Aeneid. Leiden, Brill,
1982.
NEGRI, Angela. Gli Psiconimi in Virgilio. Roma, Ateneo, 1984.
NEWMAN, John K. The Classical Epic Tradition. Wiscosin, The University of Wiscosin Press,
1986.
NOVARA, A. Poésie Virgilienne de la Mémoire. Questions sur l’ Histoire dans l’ Énéide 8.
Clermont-Ferrand, Adosa [1986].
O’HARA, James. Death and Optimistic Prophecy in Vergil’s Aeneid. Princeton, Princeton
University Press, 1990.
OROZ, José.Virgilio. Salamanca, Universidad Pontificia di Salamanca, 1990.
OTIS, Brooks.Virgil, a Study in Civilized Poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963.
PASQUALI, Giogio. “Arte allusiva” . In: Pagine stravaganti. Firenze, Sansoni, 1968, v. II.
PERRET, Jacques. “Optimisme et Tragédie dans l’ Éneide” . In: Revue des Études Latines.
Paris, “Les Belles Lettres”, 1967, tomo XLV, p. 342.
POMATHIOS, Jean-Luc. Le Pouvoir Politique et sa Représentation dans l’Énéide de Virgile.
Bruxelles, Latomus, 1987.
PÖSCHL, Viktor. Die Dichtkunst Virgils. Bild und Symbol in der Äneis. Innsbruck-Wien,
Margarete Friedrich Rohrer, 1950. (Tradução em inglês: The Art of Virgil. Image and
Symbol in the Aeneid. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1966.)
PUCCIONI, Giulio. Saggi Virgiliani. Bologna, Pàtron, 1985.
QUINN, Keneth. Virgil’s Aeneid, a Critical Description. London and Henley, Routledge
& Kegan Paul, 1968.
– 394 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
QUINT, David. Epic and Empire. Princenton, Princeton University Press, 1993.
SCHENK, Peter. Die Gestalt des Turnus in Vergils Aeneid. Königstein, Anton Hain, 1984.
SLAVITT, David. Virgil. Yale, Yale University Press, 1991.
TEMPORINI, H. & HAASE, W. (ed.). Aufstieg und Niedergang des Römischen Welt.
Einunddreissigster Band, 2. Teilband. Berlin-New York, Walter de Gruyter, 1981.
THOMAS, Joël. Structures de l’Imaginaire dans l’Énéide. Paris, “Les Belles Lettres”, 1981.
VÁRIOS. Atti del Convegno Mondiale Scientifico di Studio su Virgilio (1981). Milano,
Mondadori, 1984.
____. Atti del Convegno Nazionale di Studio su Virgilio. Torino, Regione Piemonte, 1984.
Vergiliana. Recherches sur Virgile. Leiden, Brill, 1971.
WEBER, Clifford. “Metrical Imitatio in the Proem of the Aeneid”. In: Harvard Studies in
Classical Philology, v. 91, 1987, p. 261.
ZIOLKOWSKI, Theodore. Virgil and the Moderns. Princeton, Princeton University Press,
1993.
– 395 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
COUTINHO, Eduardo & CARVALHAL, Tania (org.). Literatura Comparada. Textos Fun-
dadores. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Zahar
[s.d.].
ELLIOT, T. S. A Essência da Poesia. Estudos & Ensaios. Rio de Janeiro, Artenova, 1972.
ÉVRARD-GILLIS, Janine. La Récurrence Lexicale dans l’Oeuvre de Catulle. Étude
Stylistique. Paris, “Les Belles Lettres”, 1976.
FRANCA, Rubem. As Armas & Os Barões. Recife, Unicap, 1973.
FRÄNKEL, Herman. Poesia y Filosofia de la Grecia Arcaica. Madrid, Visor, 1993.
FREYBURGER, Gérard. Fides. Étude Sémantique et Religieuse depuis les Origines jusqu´à
l’ Époque Augustéenne. Paris, “Les Belles Lettres”, 1986.
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La Littérature au Second Degré. Paris, Seuil, 1982.
GENTILI et alii. Storia della Letteratura Latina. Roma-Bari, Laterza, 1990.
KÖRTE & HÄNDEL. La Poesia Helenistica. Barcelona, Labor, 1973.
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo, Perspectiva, 1974.
LUNELLI, Aldo (org.). La Lingua Poetica Latina. Bologna, Pàtron, 1988.
MAINGUENAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas, Pon-
te-Unicamp, 1989.
MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. São Paulo, E.P.U., 1990.
MIRMONT, H. de la Ville de. Études sur l’ Ancienne Poésie Latine. Paris, Albert
Fontemoing, 1903.
MONTANARI, Franco (org.). La Poesia Latina. Forme, Autori, Problemi. Roma, La Nuova
Italia Sientifica, 1991.
NIEDERMANN, M. Phonétique Historique du Latin. Paris, Klincksieck, 1953.
NOUGARET, L. Traité de Métrique Latine. Paris, Klincksieck, 1948.
PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1983.
PARRY, M. L’Épithète Traditionnelle dans Homère. Paris, “Les Belles Lettres”, 1928.
PASQUALI, Giorgio. “Arte Allusiva”. In: Pagine Stravaganti. Firenze, Sansoni, 1968, v.
II.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. II Volume:
Cultura Romana. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian [1984].
PUCCI, Pietro. Odysseus Polytropos. Intertextual Readings in the Odyssey and the Iliad.
Ithaca and London, Cornell University Press, 1987.
TOLKIEHN, Johannes. Omero e la Poesia Latina. Bologna, Pàtron, 1991.
TRAINA, A. Poeti Latini (e Neolatini). Note e Saggi Filologici. Bologna, Pàtron, 1989.
– 396 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
VÁRIOS. Atti del Convegno Internazionalçe sul Tema: La Poesia Epica e la sua Formazione.
Roma, Academia Nazionale dei Lincei, 1979.
VEYNE, Paul. L’Élegie Érotique Romaine. Paris, Seuil, 1983.
WEST, D. & WOODMAN (org.). Creative Imitation and Latin Literature. Cambridge,
Cambridge University Press [1979].
WILLIAMS, Gordon. Tradition and Orginality in Roman Poetry. Oxford, Clarendon Press,
1985.
– 397 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
– 398 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
V. OUTROS
– 399 –
Paulo Sérgio de Vasconcellos
CAMÕES. Lírica. Seleção, prefácio e notas de Massaud Moisés. 5. ed., São Paulo, Cultrix,
1976.
____. Os Lusíadas. Comentados por Augusto Epifânio da Silva Dias. 3. ed., Rio de Janei-
ro, MEC, 1972.
DANTE. A Divina Comédia. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. Belo
Horizonte, Itatiaia, 1976.
____. Tutte le Opere. Roma, Newton, 1993.
ERNOUT & MEILLET. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Histoire des Mots.
Paris, Klincksieck, 1951.
GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin Français. Paris, Hachette [1981].
LEUMANN-HOFMANN-SZANTYR. Lateinische Grammatik. Zweiter Band: Syntax und
Stilistik. München, C.H. Beck’sche, 1972.
POKORNY, Julius. Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. Bern and München,
Francke, 1959, I. Band.
SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo Dicionario Latino-Portuguez. 7. ed., Rio de Ja-
neiro, Garnier [1910].
TRAINA, A. & BERTOTTI, T. Sintassi Normativa della Lingua Latina. Bologna, Cappelli,
1992.
– 400 –
Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio
Ficha técnica
Mancha 11,5 X 19 cm
Formato 16 x 22 cm
– 401 –