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Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc Ano IV • nº 13 • junho de 2005

O direito étnico à terra


E D I TOR I A L

Os Quilombolas
A Constituição de 1988 contemplou o direito à

A
análise da política étnica do governo mostra diferença e enunciou o reconhecimento dos direi-
o predomínio de ações focalizadas e pontu- tos étnicos. Além disso, no artigo 68 do Ato das Dis-
ais. Em relação aos quilombolas, constata- posições Constitucionais Transitórias, uma nova mo-
se que o Estado ainda não lhes assegurou
dalidade de apropriação formal de terras foi desti-
um recurso básico, ou seja, a territorialidade
nada a grupos sociais como os quilombolas, com base
que garante a sua reprodução física, social e
cultural. É extremamente pequeno o núme-
no direito à propriedade definitiva, e não por meio
ro de titulações realizadas em terras ocupa- da tutela, como acontece com os povos indígenas.
das por comunidades remanescentes de Esses processos de rupturas e de conquistas, que
quilombos. No governo Lula, ocorreram até levaram alguns juristas a falar em um “Estado
agora apenas duas titulações. Pluriétnico”, que confere proteção a diferentes ex-
Se, de um lado, há a mobilização do movi-
mento étnico, há também a forte ação de inte-
resses contrários ao reconhecimento das comu-
nidades quilombolas, que muitas vezes resul-
ta em famílias sendo despejadas de suas terras.
Os números do orçamento federal em rela-
ção à política étnica refletem o aspecto críti-
co da situação. O Programa Brasil
Quilombola só utilizou 12,17% dos R$ 15
milhões destinados ao Ministério do Desen-
volvimento Agrário para o pagamento de
indenizações e para o reconhecimento, de-
marcação e titulação das terras das comuni-
dades em 2004. É grande a preocupação
com o desempenho em 2005.
Neste artigo, o Inesc e a Fundação Boll bus-
cam politizar a questão e apresentar uma
análise que contribua para solucionar pro-
blemas que, historicamente, deixam o Esta-
do brasileiro em dívida com as comunida-
des remanescentes de quilombos.

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pressões étnicas, não resultaram, entretanto, na número inexpressivo de titulações realizadas funci-
adoção pelo Estado de uma política étnica e onou como justificativa para uma ação governamen-
tampouco de ações governamentais sistemáticas. tal específica. Nesta mesma data, o presidente Lula
Há enormes dificuldades de implementação de assinou o Decreto nº 4.887, regulamentando o
disposições legais dessa ordem, sobretudo em so- procedimento para identificação, reconhecimento,
ciedades autoritárias e de fundamentos coloni- delimitação, demarcação e titulação das terras ocu-
ais e escravistas como a brasileira. Têm prevale- padas por comunidades remanescentes de qui-
cido ações pontuais e relativamente dispersas, lombos. Esse ato do Poder Executivo teria cor-
focalizando fatores étni- respondido, portanto, à necessidade de uma inter-
cos, mas sob a égide de Desde janeiro de venção governamental mais acelerada e ágil, condi-
outras políticas governa- 2003, só ocorreram zente com a gravidade dos conflitos envolvendo as
mentais, tais como a po- duas titulações de comunidades remanescentes de quilombos, o que
lítica agrária e as políti- terras de exigia alguma resposta do governo federal.
cas de educação, saúde, comunidades Dez meses depois, em junho de 2004, pode-se
habitação e segurança remanescentes de relativizar a agilidade dessa iniciativa oficial, uma
alimentar. quilombos. vez que se constata que as discussões burocráticas
Inexistindo uma re- Entretanto, os enredam-se nos meandros de uma instrução
forma do Estado, coadu- interesses contrários normativa, aprovada em abril, para operacionalizar
ao reconhecimento e
nada com as novas dispo- os procedimentos de ação agrária.
à titulação das
sições constitucionais, a Desde janeiro de 2003, só ocorreram duas
comunidades
solução burocrática foi titulações de terras de comunidades remanescentes
quilombolas tiveram
pensada sempre com o uma atuação ágil, de quilombos. Acrescente-se que, no dia 13 de maio
propósito de articulá-las tanto dentro quanto último, completou dois anos o ato do Poder Execu-
com as estruturas admi- fora da burocracia tivo que instituiu o Grupo de Trabalho Inter-
nistrativas preexistentes, governamental ministerial – GTI - para propor nova regulamenta-
acrescentando à sua capa- ção ao reconhecimento das comunidades remanes-
cidade operacional atributos pretensamente ét- centes de quilombos, cujo resultado maior é o De-
nicos. Se porventura foram instituídos novos ór- creto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.
gãos públicos pertinentes à questão, sublinhe-se Nesse mesmo período, entretanto, os interes-
que a competência de operacionalização ficou in- ses contrários ao reconhecimento e à titulação das
variavelmente a cargo de aparatos já existentes. comunidades quilombolas tiveram uma atuação
Em 20 de novembro de 2003, Dia Nacional da ágil, tanto dentro quanto fora da burocracia go-
Consciência Negra, o reconhecimento público do vernamental.

Orçamento & Política Socioambiental: uma publicação trimestral do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria
com a Fundação Heinrich Böll. Tiragem: 1,5 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, Bl B-50 - Sala 435 Ed. Venâncio 2000 –
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Church Aid, Novib, Oxfam e Solidaridad. Editora responsável: Luciana Costa (DRT 258/82)

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Transferiu-se aos órgãos fundiários oficiais (Mi- de reconhecimento das comunidades quilom-
nistério do Desenvolvimento Agrário - MDA, bolas, consoante os artigos 8º e 11 do Decreto
Incra) a responsabilidade maior e quase exclusi- nº 4.887. De acordo com o art. 8º, deverá “opi-
va na montagem das peças técnicas concernentes nar” sobre o relatório técnico relativo aos tra-
aos processos de reconhecimento e titulação das balhos de identificação e de delimitação, pro-
comunidades remanescentes de quilombos. O duzido pelo Incra; e, pelo art.11, tomará as
pragma-tismo burocrático esbarra, no entanto, medidas cabíveis caso as terras ocupadas pelas
nas mesmas dificuldades operacionais de cumpri- comunidades remanescentes de quilombos es-
mento de metas do Pla- tejam sobrepostas às áreas de segurança nacio-
no Nacional de Reforma nal. Por essa via, administradores civis e milita-
Há um certo
Agrária. res, com atividades referidas a tal competência,
revigoramento de
Em segundo lugar, há uma antiga idéia de vêm desenvolvendo um “saber prático” sobre as
um certo revigoramento Estado-nação, que comunidades remanescentes de quilombos,
de uma antiga idéia de olha com como se bastassem uma breve visita a uma situ-
Estado-nação, que olha desconfiança os ação classificada como “remanescente de
com desconfiança os di- direitos étnicos, quilombo” ou um rápido sobrevôo para de
reitos étnicos, como se como se pronto se conhecê-la. Esse conhecimento
constituíssem uma ame- constituíssem uma impressionístico, burocraticamente construído,
aça à sociedade nacional. ameaça à sociedade mais se fundamenta nos ditames positivistas, que
A ampliação do projeto nacional historicamente diluíram os fatores étnicos na no-
Calha Norte e as posi- ção de “povo”, do que no conhecimento siste-
ções “nacionalistas” face ao aluguel da Base de mático, produzido a partir de demoradas inves-
Lançamento de Alcântara e face à homologa- tigações científicas. Em razão disso é que cons-
ção da demarcação da Terra Indígena Raposa tituem um sério obstáculo à efetivação dos dis-
Serra do Sol 1 bem ilustram isso. Tais formula- positivos legais que preconizam o reconhecimen-
ções tornaram-se absolutamente transparentes to das comunidades quilombolas.
durante os debates que marcaram o Seminário Pode-se registrar, também, a ação de interes-
Interministerial “Direitos Territoriais Quilom- ses contrários ao reconhecimento das comuni-
bolas e Ambiente, o Patrimônio da União e a dades quilombolas em conflito na esfera jurídi-
Segurança Nacional”, realizado pelo Ministério ca ou em casos de contestação das titulações já
de Desenvolvimento Agrário, em Brasília, no dia efetuadas, com famílias de remanescentes de
13 de abril de 2004, cujos participantes vincu- quilombos sendo despejadas de suas terras, por
lavam-se principalmente ao Ministério da De- força do deferimento de pedidos de liminares
fesa, ao Gabinete de Segurança Institucional da em ações de reintegração de posse movidas por
Presidência da República, à Secretaria Especial supostos proprietários.
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – No plano jurídico-formal são muitas as dis-
Seppir - e à Fundação Cultural Palmares. putas que todavia permanecem. De um lado, os
Para além desses debates, a Secretaria Execu- efeitos do Decreto nº 3.912, de 10 de setem-
tiva do Conselho de Defesa Nacional deverá se bro de 2001, fragilizaram bastante as reivindi-
manifestar formalmente sobre a decisão oficial cações do movimento quilombola, levando a

1
Para um aprofundamento, consultar Pacheco de Oliveira, João - “Roraima: os índios ameaçam a segurança nacional?” O Globo. Prosa e Verso. Rio de Janeiro, 6
de março de 2004.

junho de 2005 3
Fundação Cultural Palmares a registros de ter- tério fundamental para determinar os grupos aos
ras de comunidades remanescentes de quilombos quais se aplicam as disposições desta Convenção.”
que foram prontamente contestados2. De outro Para além disso, o art. 14 assevera o seguinte
lado, tem-se uma Ação Direta de Inconstitu- em termos de domínio: “Dever-se-á reconhecer aos
cionalidade referida ao Decreto nº 4.887, de povos interessados os direitos de propriedade e de
20 de novembro de 2003, perpetrada pelo Par- posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam.”
tido da Frente Liberal (PFL). O PFL tenta im- Sublinhando o direito de retorno às terras de
pugnar o uso da desapropriação na efetivação que foram expulsos, o art.16 aduz que: “sempre
do art.68, bem como se que for possível, esses povos deverão ter o direito
opõe ao critério de iden- Num sentido inverso de voltar a suas terras tradicionais assim que dei-
tificação dos remanes- ao dessa pressão por xarem de existir as causas que motivaram seu
centes de quilombos pela parte dos interesses translado e reassentamento.”
auto-atribuição, com o conservadores Esse direito de retorno se estende sobre um
objetivo de restringir ao simbolizados pelo sem-número de situações de comunidades
máximo o alcance do PFL, dispositivos quilombolas no Maranhão, Mato Grosso, Bahia,
dispositivo. A Advocacia- infraconstitucionais Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais,
Geral da União, através foram reforçados, que foram compulsoriamente deslocadas de suas
atendendo a
de seu titular, ministro terras por projetos agropecuários; projetos de
reivindicações dos
Álvaro Augusto Ribeiro plantio de florestas homogêneas (pinus, euca-
movimentos sociais
Costa, manifestou-se con- lipto); projetos de mineração; projetos de cons-
trariamente à Adin, em trução de hidrelétricas e de bases militares, e
12 de agosto de 2004, classificando a impug- agora descrevem uma trajetória de recuperação
nação de genérica e sem o cotejo analítico entre de terras que foram usurpadas e tidas como per-
as normas constitucionais e as atacadas, o que didas.
inviabilizaria a ação. De modo concomitante, têm-se tornado com-
Num sentido inverso ao dessa pressão por par- plexas as modalidades de classificação dos terri-
te dos interesses conservadores simbolizados pelo tórios quilombolas, exigindo novos tipos de
PFL, dispositivos infraconstitucionais foram refor- cadastramento e uma redefinição estrito senso
çados, atendendo a reivindicações dos movimen- da noção de imóvel rural. Bem ilustra isso a Por-
tos sociais. Assim, consolidando os direitos étnicos taria nº 06, de 1º de março de 2004, da Fun-
e evidenciando a ampliação do significado de “ter- dação Cultural Palmares - FCP, que instituiu o
ras tradicionalmente ocupadas”, o Brasil ratificou, Cadastro Geral de Remanescentes das Comu-
em junho de 2002, através do Decreto Legislativo nidades de Quilombos da FCP, nomeando-as de
nº 143, assinado pelo presidente do Senado Fe- “terras de preto”, “mocambos”, “comunidades
deral, a Convenção 169 da Organização Interna- negras” e “quilombos”. A diversidade de nome-
cional do Trabalho, de junho de 1989. Esta Con- ações chama a atenção para as particularidades
venção reconhece como critério fundamental os dos processos de territorialização, que estão se
elementos de auto-identificação étnica. Nos ter- tornando cada vez mais evidentes com o forta-
mos do art. 2º, tem-se: “A consciência de sua iden- lecimento do movimento quilombola. Os
tidade indígena ou tribal deverá ser tida como cri- locativos em torno do termo “preto” parecem

2
Ver Brito Pereira, Deborah M. D. “Breves considerações sobre o Decreto nº 3.912/01”, in O ’Dwyer, E.C.- Quilombos-identidade étnica e territorialidade. Rio
de Janeiro, ABA/FGV. 2002. p.281-289

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ganhar uma importância afirmativa, num mo- ou seja, 73 áreas tituladas em 16 anos, serão neces-
mento em que o próprio termo denota uma sários mais de quatro séculos para se completar o
maior força de expressão étnica, refletida in- reconhecimento das 2.228 áreas levantadas pelo
clusive nos resultados do censo demográfico3. Centro de Cartografia Aplicada e Informação Ge-
A própria necessidade de um cadastro à parte, ográfica da Universidade de Brasília (2005).
ao mesmo tempo que reconhece uma pluralidade O desempenho orçamentário do governo federal
de categorias de uso na vida social, que demandam em 2004 e 2005 é bastante sintomático desse qua-
reconhecimento formal, revela uma insuficiência dro. No Programa Brasil Quilombola, dos R$ 15
cadastral do Incra, bem milhões destinados ao Ministério do Desenvolvimen-
como das duas categorias to Agrário - MDA para o pagamento de indeniza-
Caso seja mantido o
censitárias oficialmente ções e para o reconhecimento, demarcação e titulação
atual ritmo, ou seja, 73
disponíveis, quais sejam: áreas tituladas em 16
das terras das comunidades em 2004, apenas 12,17%
“imóvel rural” , acionada anos, serão foram efetivamente utilizados. Em 2005, a se man-
pelo Incra, e “estabeleci- necessários mais de ter o desempenho verificado na tabela nº 1 (p. 12),
mento”, utilizada nos quatro séculos para se o quadro é ainda mais preocupante.
censos agropecuários da completar o
FIBGE. Aliás, desde reconhecimento das Os quilombos e o mercado de terras
1985 há uma tensão den- 2.228 áreas levantadas Os obstáculos e entraves à titulação das ter-
tro dos órgãos fundiários pelo Centro de ras das comunidades remanescentes de quilom-
para o reconhecimento Cartografia Aplicada e bos não podem ser reduzidos tão somente a “de-
de situações de uso cole- Informação Geográfica feitos” na engrenagem da máquina administra-
tivo da terra, ditadas res- da Universidade de tiva estatal. Há várias configurações nesse jogo
pectivamente por fatores Brasília de poder que transcendem a questões de
étnicos, por tradição e operacionalidade e a rubricas orçamentárias.
costumes, por práticas de autonomia produtiva e Uma delas concerne às relações de poder histo-
por mobilizações políticas para afirmação de direi- ricamente apoiadas no monopólio da terra e na
tos básicos. tutela de indígenas, ex-escravos e posseiros. Com
Pode-se constatar, a partir dessas iniciativas e da- fundamento nelas, interesses latifundiários e ou-
quelas que lhes opõem, que a aplicação do art. 68 tros grupos responsáveis pela concentração de
do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias terras rejeitam o reconhecimento de direitos ét-
- ADCT, que está para completar 17 anos, ocorre nicos por meio da “propriedade definitiva” das
de maneira intermitente. Os dispositivos de reco- terras das comunidades quilombolas.
nhecimento vêm sendo aplicados lenta e gradual- Os argumentos que compõem suas alegações
mente, mas com sucessivas interrupções temporári- não são de ordem demográfica, como no tratamen-
as ou longos intervalos caracterizados por total ces- to que dão às terras indígenas; isso é, não fazem
sação da aplicação, que evidenciam a inexistência uso da máxima: “muita terra para poucos pretos”.
de qualquer ação sistemática. Tem-se, pois, uma ação Não são também de ordens geográfica e agronô-
descontínua, eivada de polêmicas e de atos dúbios, mica, como no tratamento que dão às entidades
factíveis de contestação, e que determina o ritmo ambientalistas: “estão querendo tomar as terras
da titulação. Aliás, caso seja mantido o atual ritmo, férteis (a Amazônia) e ricas em minerais”, mas se

3
O IBGE utiliza comumente o termo “preto” como categoria censitária. Em conformidade com o Censo Demográfico de 2000, os que se declararam “pretos”
aumentaram 4,2%, enquanto os designados “pardos”, 0,5%.

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atêm ao princípio da propriedade e à sua história. Ainda que se possa dizer que o procedimento
Advogam uma dicotomia absoluta entre fazenda de “cadastrar” envolve todo um conjunto de no-
e quilombo, porquanto consideram que este este- ções que exige análise, cabe frisar que as estimati-
ve sempre localizado em lugares remotos e de mata, vas mencionadas no documento oficial que lança
distante da “civilização” e, portanto, do mundo o programa Quilombolas ultrapassam em quase
regido pelas grandes plantações4. três vezes o total usualmente apresentado pela
Nas peças técnicas dos processos judiciais, os ad- Fundação Cultural Palmares, ou seja, fala-se em
vogados desses interesses e os peritos por eles fi- pelo menos 5% do total de 850 milhões de hec-
nanciados se esmeram em tares do território brasileiro. Pode-se imaginar os
insistir que os quilombos, A “propriedade efeitos desse volume de terras de quilombo sobre
além de estarem fora dos definitiva” o estoque geral de terras disponíveis às transações
limites das fazendas, são idealmente tornaria de compra e venda. Isso num momento em que
em número extremamen- todos “iguais” nas se busca uma reestruturação formal do mercado
te reduzido e se localizari- relações de de terra, e quando o MDA admite que há 200
am tão somente no que mercado, com os milhões de hectares sobre os quais o cadastro do
hoje constituem os sítios quilombolas, Incra não possui qualquer informação.
históricos. A própria Ação emancipados de A expressão econômica desses mais de 30 mi-
qualquer tutela, se
Direta de Inconstitucio- lhões de hectares não pode ser menosprezada,
expressando através
nalidade movida pelo sobretudo se observarmos sua incidência nas re-
de uma via
PFL, buscando impugnar giões de colonização mais antiga, onde as terras
comunitária de
o Decreto nº 4.887/03, são mais valorizadas do que naquelas de ocupa-
acesso à terra
reproduz de maneira im- ção recente. Em algumas unidades da federa-
plícita semelhante argu- ção, como Maranhão e Bahia, a titulação das ter-
mentação. ras das comunidades quilombolas pode se cons-
Em contraposição a essas formulações, os movi- tituir num destacado instrumento de descon-
mentos quilombolas e os levantamentos oficiais in- centração da propriedade fundiária, contrapon-
dicam que o número de comunidades remanes- do-se frontalmente à dominação oligárquica.
centes de quilombos permanece ainda relativa- Não é por outra razão que os antagonismos so-
mente desconhecido, mas sempre crescente e ciais têm se acirrado nessas regiões, com comu-
abrangendo novas modalidades. Em conformida- nidades quilombolas praticamente cercadas e
de com as estimativas disponíveis, verifica-se uma com suas vias de acesso interditadas por interes-
tendência ascensional a cada nova iniciativa de ses latifundiários. A “propriedade definitiva”
cadastramento. O próprio folder do MDA sobre o idealmente tornaria todos “iguais” nas relações
Programa de Ação Afirmativa, intitulado “Quilom- de mercado, com os quilombolas, emancipados
bolas”, reitera que os dados oficiais apontam 743 de qualquer tutela, se expressando através de
áreas de comunidades remanescentes de quilom- uma via comunitária de acesso à terra.
bos, com 30 milhões de hectares, e complementa O fato da propriedade não ser necessariamente
a possível subestimação do seguinte modo: “No en- individualizada e aparecer sempre condicionada ao
tanto, estimativas não-oficiais admitem a existên- controle de associações comunitárias torna-a, entre-
cia de mais de 2 mil comunidades.” tanto, um obstáculo às tentativas de transações co-

4
Para um aprofundamento dessa interpretação, consultar Almeida, Alfredo W.B. “Os quilombos e as novas etnias”, in O’Dwyer, E.C. Quilombos – identidade
étnica e territorialidade. Rio de Janeiro, ABA/FGV.2002. p. 43-81.

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merciais e praticamente as imobiliza enquanto mer- Algumas indagações decorrentes: Por que a ex-
cadoria. As terras das comunidades quilombolas cum- cessiva burocratização do processo de reconheci-
prem sua função social essencial quando o grupo ét- mento das comunidades remanescentes de
nico, manifesto pelo poder da organização comuni- quilombos?5 Por que o governo não tem aventa-
tária, gerencia os recursos no sentido de sua repro- do a possibilidade de uma política étnica com ins-
dução física e cultural, recusando-se a dispô-los às trumentos, quadros técnicos e instituições volta-
transações comerciais. Representada como forma ide- dos para esta finalidade?
ológica de imobilização que favorece a família, a co-
munidade ou uma etnia Os riscos da estratégia governamental
determinada em detrimen- A questão quilombola atualmente aparece em
Mantidas como
to de sua significação mer- destaque como objeto da ação do Poder Executi-
eternas posseiras ou
cantil, tal forma de propri- com terras tituladas vo. Os debates no Legislativo arrefeceram ou qua-
edade impede que imensos sem formal de se cessaram no decorrer de 2003 e 2004 e prati-
domínios venham a ser partilha, as camente não se registra mais uma ação parlamen-
transacionados no merca- comunidades tar continuada. A capacidade de intervir na ques-
do de terras. Contraria, quilombolas sempre tão concentra-se nos centros de poder que
portanto, as agências imo- são mais factíveis de gravitam em torno da Presidência da República.
biliárias de comerciali- serem usurpadas. A unidade do discurso e dos procedimentos
zação, vinculadas a bancos Negar o fator étnico, burocrático-administrativos, além de ser deslo-
e entidades financeiras, do além de despolitizar cada pela força dos obstáculos antepostos à
mesmo modo que contra- a questão, facilitaria, titulação das terras das comunidades quilom-
ria os interesses latifundiá- pois, os atos bolas, tem sido recortada ou fragmentada em
rios, os especuladores, os ilegítimos de ações descontínuas e algo dispersas, criando di-
usurpação
“grileiros” e os que detêm o ficuldades para o propósito de rede e de articu-
monopólio dos recursos na- lação. Além do número de titulações ser
turais. inexpressivo nesses 15 anos, conforme já foi dito,
Mediante obstáculos dessa ordem, a titulação há dois anos o Estado não procede a qualquer
se mostra mais que essencial, posto que, histori- titulação. A titulação, finalidade fundamental,
camente, as famílias dessas comunidades têm sido tem sido gradativamente relativizada.
mantidas como posseiras. E é dessa forma que
aqueles interesses contrários ao reconhecimento Numa tentativa de descrever a estratégia ofi-
das comunidades remanescentes de quilombos cial, pode-se dizer o seguinte:
parecem pretender mantê-las. Mantidas como
eternas posseiras ou com terras tituladas sem for- 1- O eixo da ação governamental, de um lado,
mal de partilha, como no caso das chamadas “ter- em termos de retórica e de elaboração de novos
ras de preto” que foram doadas a famílias de ex- mecanismos jurídicos, tem deslocado a dimensão
escravos ou que foram adquiridas por elas, sem- étnica para os instrumentos de ação agrária, dei-
pre são mais factíveis de serem usurpadas. Negar xando aos órgãos fundiários oficiais as atividades
o fator étnico, além de despolitizar a questão, fa- fundamentais de reconhecimento das terras das
cilitaria, pois, os atos ilegítimos de usurpação. comunidades quilombolas. Discursivamente, in-

5
O texto do Decreto nº 4.887/03 sublinha a “autodefinição” (art. 2º), mas a Fundação Cultural Palmares tem retardado em demasia a emissão de certidões, mesmo
quando as comunidades, se reconhecendo como quilombolas, tenham enviado há meses a solicitação , como no caso daquelas de Alcântara.

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duz a pensar que os órgãos fundiários reuniriam • O primeiro organiza os instrumentos de in-
condições para executar com presteza uma políti- tervenção, produzindo-os, notadamente
ca étnica, “fazendo o que a Fundação Cultural através de Grupos de Trabalho Interminis-
Palmares anteriormente não teria feito ou não con- teriais, articulando-os e dotando-os da
seguiu fazer”. Entretanto, conforme já foi discuti- legitimação jurídica elementar (decretos,
do, as titulações não têm ocorrido e há obstáculos instrução normativa e demais medidas ad-
políticos de difícil transposição. Além disso, os ministrativas). Um dos exemplos seria o
poucos recursos orçamentários para executar as Grupo de Trabalho Interministerial de Po-
ações desapropriatórias requeridas pelas titulações, líticas para os Quilombos, que possui vári-
que representam a garan- os sub-grupos, sendo um deles o sub-gru-
tia efetiva da terra e a con- Os poucos recursos po do desenvolvimento que produziu uma
orçamentários para
solidação jurídica dos ter- “Proposta de Etnodesenvolvimento para as
executar as ações
ritórios, ou são Comunidades Quilombolas”, centrada em
desapropriatórias
contingenciados ou não necessidades consideradas básicas. Essas
requeridas pelas
são utilizados para o obje- titulações, que
práticas administrativas de criação de GTs
tivo-fim adequadamente. representam a produzem uma nova divisão do trabalho
Tratar os direitos co- garantia efetiva da burocrático-administrativo. Assim, para al-
letivos tão somente como terra e a gumas Secretarias e Fundações, agir signi-
direito agrário poderá consolidação jurídica fica solicitar a outras instituições que pas-
acarretar novos proble- dos territórios, ou sem a agir ou que procedam à intervenção.
mas na esfera jurídica, são contingenciados Um dos exemplos seria o Conselho Nacio-
forçando as comunida- ou não são utilizados nal de Combate à Discriminação, da Se-
des quilombolas a serem para o objetivo-fim cretaria Especial dos Direitos Humanos da
vistas como de “trabalha- adequadamente Presidência da República, que acolhe de-
dores rurais” e “possei- núncias e, de acordo com suas próprias
ros”, isso é, reeditando as categorias classifi- Resoluções, “exorta” outras secretarias e mi-
catórias externas e as condições como eram for- nistérios a tomarem medidas “urgentes e
malmente nomeadas antes do advento da iden- imediatas”6. Há órgãos, portanto, que têm
tidade quilombola e dos direitos que lhes como função animar os demais a tomarem
correspondem, com o risco de renovar e gerar as providências cabíveis.
conflitos étnicos. • Um outro plano, fundamentado no chamado
“planejamento participativo”, busca assegurar
2- De outro lado, em termos operacionais ou a participação de representantes quilombolas
de ações efetivas, o eixo da ação governamental em instâncias consultivas. No Ministério do
tem se deslocado, concentrando-se principal- Desenvolvimento Agrário - MDA, por exem-
mente na prestação de serviços básicos às co- plo, foram incluídos representantes dos
munidades quilombolas. quilombolas nos fóruns de consulta do Plano
Sob esse prisma, a estratégia governamental Plurianual 2004-2007 e no Conselho de De-
apresenta certa operacionalidade e pode ser des- senvolvimento Rural Sustentável, além de seis
crita segundo três planos de ação, que se integrantes da Comissão Nacional de Articu-
entrecruzam: lação das Comunidades Negras Rurais
6
Conferir Resoluções do CNCD/SEDH/PR nº 01 e nº 03, de 25 de junho de 2003

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Quilombolas – CONAQ - terem participa- Proep, do Ministério da Educação, que é res-
do de reuniões em Brasília junto a membros ponsável pela construção de escolas, disponi-
do GTI e do Programa de Ações Afirmativas bilização de materiais didáticos e capacitação de
do MDA. professores.
• O terceiro plano organizativo busca imple- Quanto à linha de crédito para a piscicultu-
mentar ações de “política social” para as co- ra, registra-se a atuação do Programa Nacional
munidades remanescentes de quilombos, con- de Apoio à Agricultura Familiar – Pronaf - jun-
firmando que operacionalmente o eixo da to a 20 comunidades quilombolas que há dez
ação sofre um des- anos cultivam peixes no Quilombo de Itacoã,
locamento da ques- no município de Acará, no Pará.
A ênfase da ação
tão da terra para a Depreende-se, desses planos organizativos,
governamental nos
de prover serviços serviços básicos,
um certo descompasso entre a principal finali-
básicos às comuni- mediante a dificuldade dade do art.68, que permanece postergada, e o
dades quilombolas. de garantir os direitos ritmo de cumprimento da obrigação do Estado
étnicos à terra, pode de assegurar os direitos básicos a toda a popula-
Assim, no que se re- estar se constituindo ção. Eis algumas indagações: a ênfase da ação
fere à política de segu- numa medida governamental nos serviços básicos, mediante a
rança alimentar, tem-se compensatória, dificuldade de garantir os direitos étnicos à ter-
a informação de distri- traduzida pela ra, pode estar se constituindo numa medida
buição de cestas de ali- consigna de “fazer o compensatória, traduzida pela consigna de “fa-
mentos pelo Projeto que é possível”? zer o que é possível”? Quais as implicações de se
Fome Zero, que alcan- “deixar para depois” a titulação definitiva das
çou em 2004 pelo menos 86 comunidades em terras das comunidades quilombolas?
55 municípios de 18 unidades da federação. O Sob o ponto de vista da ênfase nas políticas
número de famílias atendidas por essa ação é su- sociais, as comunidades quilombolas estariam se
perior a 13 mil. tornando “beneficiárias” de programas, proje-
No que se refere a garantir às comunidades tos e planos governamentais e passando a ser
quilombolas energia elétrica, sistema de sanea- classificadas como “público alvo” (conforme o
mento básico e ambiental (água tratada, redes folder “Quilombolas”, do MDA), englobadas por
de esgoto, coleta de lixo) e habitação adequada classificações mais abrangentes, que designam os
(substituindo as moradias de barro e pau-a-pi- respectivos programas e projetos, quais sejam:
que por casas de alvenaria com banheiros e sis- “pobres”, “população carente”, “excluídos”, “po-
temas hidráulicos), tem-se o “acordo de coope- pulação de baixa renda”, “população vulnerá-
ração técnica entre a Fundação Nacional de Saú- vel” e “desassistidos”.
de – Funasa - e a Fundação Cultural Palmares”, Nesse quadro, os quilombolas correm o risco
bem como a implementação do Projeto de de serem submetidos aos mecanismos gerais des-
Estruturação do Sistema Nacional de Vigilân- sas políticas que privilegiam a iniciativa indivi-
cia e Saúde - Vigisus II, com recursos do Banco dual em detrimento do grupo ou da etnia. Essa
Mundial. estratégia poderia ser aproximada daquela do
Em relação às escolas profissionalizantes em Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
comunidades quilombolas, tem-se a parceria vimento – PNUD, para quem a pobreza mundi-
entre a Funasa, do Ministério da Saúde, e o Pro- al deve ser combatida com o multiculturalismo,
grama de Expansão da Educação Profissional - expresso por políticas afirmativas.
junho de 2005 9
Quilombola torna-se, assim, um atributo que Analisando a trajetória dos quilombolas nas duas
funciona como agravante da condição de “pobre”. últimas décadas, pode-se ressaltar, entretanto, que
Ser “pobre” numa sociedade autoritária e de fun- não há correlação direta entre crise econômica, en-
damentos escravistas como a brasileira implica em tendida como “empobrecimento de populações
ser privado do controle sobre sua representação e trabalhadoras”, e o advento da identidade coleti-
sua identidade coletiva. Ser considerado “pobre” va e da consciência étnica. Não podem ser aplica-
é ser destituído de identidade coletiva. Além dis- das mecanicamente aos quilombolas as interpre-
so, na figura do “pobre necessitado”, definido como tações correntes, que asseveram a tendência do
necessitando mais urgen- agravamento da pobreza em países com Índice de
temente de serviços bási- Pode-se destacar que Desenvolvimento Humano – IDH - já reduzido e
cos, o quilombola fica in- os quilombolas, pelo o aumento da vulnerabilidade dos grupos sociais
serido no problema geral critério político- discriminados, ou mesmo que afirmam que as po-
da saúde das “populações organizativo, têm líticas de inspiração neoliberal enfraqueceram as
trabalhadoras” e, sutil- assegurado uma entidades representativas de trabalhadores, sindi-
mente, são deslocados os distinção em termos catos e associações.
critérios étnicos e de iden- étnicos e suas A situação concreta exige uma leitura mais
tidade que alicerçam as so- demandas cuidadosa ao se tentar encaixar tais agentes so-
transcendem às
lidariedades e que estru- ciais nas resultantes das políticas neoliberais,
necessidades físicas
turam sua ação coletiva implementadas desde 1989-90, quais sejam:
objetivada em movimen- “mais pobres, mais desorganizados, mais vulne-
to social. Isso ocorre mesmo quando se observa que ráveis e em descenso político”. Ao contrário, tem
as associações de quilombolas e os próprios movi- sido nos últimos 16 anos que os quilombolas têm
mentos também estão envolvidos na distribuição objetivado sua ação em movimento social, con-
de cestas básicas, o que aparentemente poderia es- solidando o advento de sua própria identidade
tar fortalecendo-os. como sujeito de direito. Em verdade, tornaram-
A função da mediação de lideranças, que se se menos vulneráveis, mais organizados e encon-
firmaram nas lutas pelos territórios étnicos, esta- tram-se em assenso político ou num processo de
ria passando por uma transformação, na qual o fortalecimento de sua existência coletiva, com
Estado passa a ser objeto de demandas pontuais mobilizações apoiadas em laços de coesão e soli-
para o atendimento de necessidades. Como dariedade. A trajetória dos movimentos sociais
atendê-las sem proceder a uma hierarquização das mostra-se bem distinta daquela dos sindicatos.
comunidades quilombolas com critérios explíci- Pode-se destacar que os quilombolas, pelo cri-
tos, que assinalem quais delas encontram-se em tério político-organizativo, têm assegurado uma
situação mais crítica e conflitiva? Como definir a distinção em termos étnicos e suas demandas
prioridade da ação governamental, que atualmen- transcendem às necessidades físicas. Em inúme-
te aparece concentrada no atendimento de umas ras situações controlam efetivamente o acesso aos
poucas comunidades? Tais indagações são perti- recursos naturais imprescindíveis, preservando-
nentes à efetivação de políticas governamentais. os e mantendo uma sustentabilidade constante,
Na interpretação da antropóloga Ilka além de deterem um patrimônio intangível,
Boaventura, os quilombolas constituem uma como por exemplo o conhecimento de espécies
nova “clientela” de políticas sociais e assim pas- vegetais com propriedades medicinais e do
sam a ser vistos e classificados pelos quadros da ecossistema de referência. Os próprios confli-
burocracia. tos, de certo modo, evidenciam isso. Os antago-
10 junho de 2005
nistas tentam usurpar suas terras porque são as gurada de maneira definitiva, os elementos
mais preservadas, guardando uma semelhança identitários e os fatores étnicos correm o risco
com terras indígenas. de se diluírem nas chamadas “políticas de de-
Os quilombolas não podem ser reduzidos me- senvolvimento local sustentável”, tal como for-
canicamente à categoria “pobres” e tratados com muladas pelas agências multilaterais8. Com isso,
os automatismos de linguagem que os classifi- desloca-se a questão do art.68 das origens e fins
cam como “carentes”, de “baixa renda” ou na da política étnica para suas bordas, ficando as
“linha de indigência” 7. Insistir nisso significa comunidades remanescentes de quilombos
uma despolitização ab- imprensadas entre duas ordens de iniciativas:
soluta. Afinal, as comu- planos “desenvolvimentistas” e medidas de po-
Como se não bastasse
nidades remanescentes lítica social.
a morosidade do
de quilombos não são o Estado brasileiro no A despolitização do fator étnico concorre
“reinado da necessida- reconhecimento e na para diluir a identidade coletiva e para eliminar
de” nem tampouco um proteção das terras o que é considerado como significante pelas pró-
conjunto de “miserá- indígenas, foi divulgado prias comunidades quilombolas. São menospre-
veis”, já que os quilom- que existem cerca de zadas suas condições reais de existência e seu sis-
bolas se constituíram 55 casos de unidades tema de representação dos recursos naturais e
enquanto sujeitos, do- de conservação que da vida social. O único contraponto a essa
minando essa necessi- incidem sobre terras homogeneização seriam as mobilizações étnicas,
dade e instituindo um ocupadas ou que continuam afirmando um critério político-
“reinado de autonomia reivindicadas por organizativo próprio e distintivo, com deman-
e liberdade.” Tal relati- comunidades e povos das específicas que apontam para a impres-
vização nos leva a uma indígenas cindibilidade dos fins e para o imperativo de se
leitura mais crítica do sair das bordas e ir ao âmago do problema, como
termo “necessidade” e certamente menos a lembrar permanentemente que o Estado não
economicista. Está em jogo um dado de consci- lhes tem assegurado o recurso básico essencial,
ência dos agentes sociais, que concorre para o isso é, a territorialidade que garante a sua re-
advento da identidade coletiva quilombola. Nes- produção física e cultural.
se sentido, há uma falsa polêmica em pauta que
deve ser submetida a uma análise crítica, capaz Alfredo Wagner Berno de Almeida
de evidenciar um consenso, mesmo na divergên- Antropólogo
cia. Se para uns “não adianta titular sem propi-
ciar condições de desenvolvimento”, para outros
“não adiantam obras de infra-estrutura sem a
titulação definitiva”. Em comum, está o fato de
que as medidas assistenciais e humanitárias só
alcançarão sua plenitude se forem efetivados os
direitos étnicos à terra.
Para além desses jogos de poder, cabe reite-
rar que, como a territorialidade não lhes é asse-
7
As agências multilaterais utilizam internacionalmente o padrão de um dólar por dia para a classificação de “indigência” e de dois dólares/ dia para a classificação
de “pobreza”. Com a adoção dessas “linhas”, enfatizando a renda, são realizadas as comparações devidas e avaliada a intensidade da intervenção.
8
Ver Almeida, Alfredo W.B. “Distinguir e mobilizar: duplo desafio face às políticas governamentais”. Revista Tipiti. São Luís, julho de 2002. p.6-7.

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T abela 1

Orçamento Quilombola 2004/2005


2004 2005
Autorizado Liquidado %Exec. Autorizado Liquidado %Exec.
PROGRAMAS E AÇÕES 2004 10/03/2005 2005 20/05/2005
GESTÃO DA POLÍTICA DE PROMOÇÃO IGUALDADE RACIAL 14.845.486 12.457.380 83,91% 12.222.664 1.744.293 14,27%
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - SEPPIR 13.693.486 11.305.380 82,56% 12.222.664 1.744.293 14,27%
Apoio a Iniciativas para a Promoção da Igualdade Racial 2.050.000 1.350.000 65,85% 2.900.000 0 0,00%
Gestão e Administração do Programa 7.164.886 6.376.780 89,00% 5.842.664 1.744.293 29,85%
Publicidade de Utilidade Pública 1.174.600 574.600 48,92% 1.174.600 0 0,00%
Capacitação de Agentes Públicos em Temas Transversais - 0 175.400 0 0,00%
Fomento à Edição, Publicação e Distribuição
de Material Bibliográfico e audiovisual sobre Igualdade Racial - 0 800.000 0 0,00%
Fomento à Qualificação de Afro-Descendentes em Gestão Pública 1.000.000 700.000 70,00% 1.000.000 0 0,00%
Apoio a Cons. e Org. Gov. de Promoção da Igualdade Racial - 0 330.000 0 0,00%
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL 1.152.000 1.152.000 100,00% - 0 0,00%
Atendimento às Comunidades Quilombolas 1.152.000 1.152.000 100,00% - 0 0,00%
CULTURA AFRO-BRASILEIRA 16.426.549 7.520.892 45,78% 15.739.757 1.452.496 9,23%
MINISTÉRIO DA CULTURA 16.426.549 7.520.892 45,78% 15.739.757 1.452.496 9,23%
Gestão e Administração do Programa 3.387.730 3.169.729 93,56% 3.485.938 884.208 25,36%
Promoção e Intercâmbio de Eventos Culturais Afro-Brasileiros 305.000 249.699 81,87% 450.000 205.787 45,73%
Construção Centro Nac. Informação de Referência da Cultura Negra 20.000 0 0,00% 200.000 0 0,00%
Implantação da Rede de Comunicação 966.278 965.210 99,89% 866.278 4.697 0,54%
Implantação de Unidades do Centro Nacional de Cidadania Negra 8.000.000 0 0,00% 5.940.000 0 0,00%
Capacitação Recursos Humanos em Cultura e Patrimônio Afro-Brasileiro 150.000 149.615 99,74% 550.000 1.289 0,23%
Etnodesenvolvimento das Comunidades Remanescentes de Quilombos 1.013.428 885.985 87,42% 763.428 68.968 9,03%
Fomento a Projetos da Cultura Afro-Brasileira 1.070.685 888.991 83,03% 2.070.685 268.931 12,99%
Pesquisas sobre Cultura e Patrimônio Afro-Brasileiro 497.428 381.618 76,72% 397.428 0 0,00%
Preservação de Bens Culturais Materiais e Imateriais
do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico Afro-Brasileiro 1.016.000 830.045 81,70% 1.016.000 18.616 1,83%
BRASIL QUILOMBOLA 19.419.868 4.857.480 25,01% 30.462.763 328.188 1,08%
MINISTÉRIO DA SAÚDE - 0 293.200 0 0,00%
Atenção à Saúde das Populações Quilombolas - 0 293.200 0 0,00%
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA 3.000.000 2.175.005 72,50% 7.029.000 180.000 2,56%
Capacitação de Agentes Representativos
das Comunidades Remanescentes de Quilombolas - 0 1.000.000 0 0,00%
Fomento ao Desenvolvimento Local para
Comunidades Remanescentes de Quilombolas 3.000.000 2.175.005 72,50% 6.029.000 180.000 2,99%
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO 1.410.000 855.071 60,64% 2.275.000 0 0,00%
Apoio à Ampliação e Melhoria da Rede Física Escolar 710.000 432.817 1.243.000 0 0,00%
Apoio à Capacitação de Professores do Ensino Fundamental
para Atuação nas Comunidades Remanescentes de Quilombolas 300.000 237.098 79,03% 632.000 0 0,00%
Apoio à Distribuição de Material Didático e Paradidático para o
Ensino Fundamental em Comunidades Remanescentes de Quilombolas 400.000 185.156 400.000 0 0,00%
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 15.009.868 1.827.404 12,17% 20.865.563 148.188 0,71%
Apoio ao Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Quilombolas 1.000.000 366.856 36,69% 1.000.000 0 0,00%
Pagamento de Idenizações aos Ocupantes
das Terras Demarcadas e Tituladas aos Remanescentes de Quilombos 11.664.124 0 0,00% 14.440.347 0 0,00%
Reconhecimento, Demarcação e Titulação de Áreas remanescentes de Quilombos 2.345.744 1.460.548 62,26% 5.425.216 148.188 2,73%
GESTÃO DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 1.000.000 1.000.000 100,00% 1.000.000 12.001 1,20%
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 1.000.000 1.000.000 100,00% 1.000.000 12.001 1,20%
Promoção da Igualdade de Raça, Gênero e Etnia no Desenvolvimento Rural 1.000.000 999.999 100,00% 1.000.000 12.001 1,20%
COMUNIDADES TRADICIONAIS 86.370 74.370 86,11% 767.686 12.037 1,57%
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE 86.370 74.370 86,11% 767.686 12.037 1,57%
Gestão Ambiental em Terras Quilombolas 86.370 74.370 86,11% 767.686 12.037 1,57%
TOTAL 51.778.273 25.910.122 50,04% 60.192.870 3.549.015 5,90%
Fonte: SIAFI/STN - Base de Dados: Consultoria de Orçamento/ CD e Prodasen
Elaboração: INESC
Notação das colunas: % Execução - Obtido através da divisão da despesa autorizada pela despesa liquidada.
Nota: A liquidação da despesa constitui a verificação do direito adquirido pelo credor, tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.

12 junho de 2005

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