ILHÉUS – BAHIA
2005
MARIVALDA GUIMARÃES SOUSA
ILHÉUS – BAHIA
2005
13
Ilhéus-BA,
_____________________________________________
Maria de Lourdes Netto Simões – Profa Dra.
UESC/DLTA
(Orientadora)
_____________________________________________
Milton Araújo Moura – Prof. Dr.
UFBA-BA
_____________________________________________
Ada de Freiras Maneti Dencker - Profa Dra.
USP- SP
DEDICATÓRIA
In memorian
dedico.
15
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra Maria de Lourdes Netto Simões (adorável Tica), pela orientação,
amizade e apoio indispensáveis para uma caminhada acadêmica segura e, sobretudo, de vida.
A todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho, meus
sinceros agradecimentos.
RIO CACHOEIRA
Cada cidade ou região tem o seu rio, com sua gente, águas, bichos e
lendas. Escorrendo sentimentos líquidos, cada pessoa carrega no
coração o rio de sua cidade.
Cachoeira é como se chama o rio que atravessa a minha cidade. Já
teve lavadeiras e areeiros, quando ainda não existia a represa
próxima à Ponte Velha. Baronesas não ficavam entulhadas entre as
pedras pretas, espalhadas em vários trechos do rio. Bocas de vômito
não despejavam detritos nas águas claras. Lavadeiras estendiam
roupas que coloriam as inúmeras pedras. Cores e cantos davam um
belo visual ao velho rio.
Cyro de Mattos
Rio
Um rio.
Um outro rio...
No tempo
E no espaço
Alterações...
Mari Guimarães
17
RESUMO
ABSTRACT
Fountain of subsistence and literary creation, the Cachoeira river, valuable natural
patrimony from southern region of Bahia, is the theme is this study due the cultural and
environmental importance, and for touristic potential that presents, specially, at Banco da
Vitoria community, localized 8 km from Ilhéus to Itabuna. The exuberant paisagistic beauty
and the cultural wealth presents there, allowed the imaginary study fictionalized in dreadfull
tales related by local fishermen. The study presents the degradation level of Cachoeira river,
caused by pollution show the historic value (“Rio-caminho”); and the cultural potential.
Through oral literature (“Rio-recre(i)ação”). The dissertate text presets too ecological
reflections about the “Rio-provedor” transformation, environmental sustentation fountain, in
the actual “Rio-grande-lixeira” that was transformed, due the bad treatments that the river is
receiving along the basin. It´s concluded that such fact influence, mainly, in the touristics
sustentability of Ilheus, due the untreated sewerage throwing direct in he “Coroa Grande”
estuary affecting the beaches of Ilhéus. Based in this analyses the study report that the
protected environment (natural and cultural) constitute the main row material of a touristics
destination, and suggest a tourists route based in the Cachoeira river potential.
19
LISTA DE FIGURAS
Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII
Abstract . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VIII
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11
.
2. REVISANDO CONCEITOS em favor de um turismo cultural . . . . . . . . . . . . 25
.
2.1. Relacionando cultura e turismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . 26
3. DE RIO-PROVEDOR A RIO-GRANDE-LIXEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
3.1. Degradação e poluição dos rios: uma realidade global que se reproduz
localmente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
6. REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
.
7. APÊNDICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154
21
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Bahia possui uma área litorânea de mais de mil quilômetros de extensão. O impacto
dessa informação suscita a imagem de um magnífico postal turístico. Tal magnitude se revela
geográfica, situada em uma zona tropical, onde o sol brilha o ano todo, o que contribui
efetivamente para uma temperatura bastante agradável das suas águas marítimas e fluviais.
virtude de seu patrimônio natural cujo espaço é composto pela Mata Atlântica remanescente,
inúmeras praias de areias claras, densos coqueirais, grandes áreas de manguezais, rios,
grande vocação turística por uma série de características favoráveis, destacando-se também o
modus vivendi de sua população, pela singularidade de seus costumes, crenças e tradições.
Ilhéus faz-se notar também pela sua história (sede da Capitania de São Jorge dos Ilhéus, no
século XVI; centro irradiador da cultura do cacau, no século XIX), bem como pelas
manifestações culturais, com ênfase em sua literatura, que é reconhecida nacional e
Costa do Cacau. Localizada a 465 km de Salvador, capital do Estado, contando com o Porto
Internacional do Malhado, com o aeroporto Jorge Amado e uma malha rodoviária de acesso a
cercada pelas águas e pela Mata Atlântica. O centro da cidade fica situado em uma ilha que é
formada pela foz dos rios Almada, Cachoeira e Fundão, formando um complexo estuário
equilíbrio e manutenção dos recursos marinhos naquela localidade, pois são áreas de
devido à presença de uma extensa área de manguezais, matas ciliares e de restingas em seu
grande beleza cênica. O encontro das águas do mar com a foz dos três rios forma um amplo
espelho d’água que banha o bairro de Pontal e o Centro Histórico, onde ficam os principais
Naquele local, onde outrora funcionou a zona comercial de Ilhéus, estão instalados
diversos bares e restaurantes, formando um lugar bastante aprazível. Além disso, a Baía do
23
Pontal constitui-se em excelente área de lazer, pois apresenta grande potencialidade para a
prática de vários esportes náuticos como esqui, windsurfe, jet-ski, caiaque, regatas à vela ou a
remo, “banana boat” e ainda passeios de barco ou em chalanas, etc. Anualmente acontece no
local uma das etapas de natação do Pan-americano de Triathlon, um evento que gera grande
Não obstante, toda esse potencialidade natural para o turismo, a qualidade das águas
ali depositados. Trazidos pelos rios que deságuam diretamente no estuário, tais detritos
espalham-se, em seguida, pelas praias ilheenses, tornando-as inadequadas para o uso humano.
ilheenses, constitui-se apenas a ponta do iceberg que nesse estudo visamos abordar: O rio
através do turismo litorâneo de Ilhéus – BA, pois o rio Cachoeira, antes mesmo de ser um
grande valor ecológico para toda a Região Sul-baiana. Desse modo, o estudo do imaginário
das águas é abordado em duas vertentes principais: do ponto de vista ecológico que trata das
ponto de vista literário, que aborda o fazer literário das populações ribeirinhas do Banco da
Vitória, concernentes aos causos narrados oralmente pelos pescadores daquela localidade
(capítulo III). Nessa perspectiva, entendemos que os estudos turísticos podem contribuir para uma
investigação de problemas relacionados ao setor, podendo tornar-se um grande aliado para a
preservação do meio natural e cultural de uma destinação turística, podendo, inclusive, alertar ou
sugerir possíveis soluções nas tomadas de decisões daquilo que precisa ser potencializado ou
Embora haja indícios consistentes de que os três rios que compõem o estuário de
Ilhéus, local de maior apelo turístico em virtude da paisagem formada pelo rio e pela Mata
Rio Fundão
Baía do
Pontal
Aeroporto
Jorge Amado
Estuário
Coroa Grande (lixeira)
Rio do Engenho
longo de toda a bacia que abrange também os rios Salgado e Colônia, percorrendo uma área
25
de drenagem aproximada de 4.600 km, até chegar ao seu destino final, a Baía do Pontal. A
crescente degradação é provocada pela falta e pela deficiência de saneamento básico, pelos
dejetos orgânicos e inorgânicos e pela grande quantidade de lixo jogado em suas margens. Em
muitos locais desse percurso, é possível observar que a rede fluvial é utilizada para o
acelerado o ritmo de degradação do rio Cachoeira. A relação que se estabelece, nesse sentido,
parcela dessas pessoas sem renda e sem qualificação para outros serviços que, por um esforço
depositados.
conjuntura, requer esforços urgentes e determinação por parte de toda a sociedade envolvida, ainda que
o problema de poluição dos rios, decorrente das irrefletidas ações humanas, não se restrinja unicamente
à Região Sul-baiana, uma vez que esse comportamento vem se repetindo em nível mundial. É
importante observar que as dificuldades ambientais e socioeconômicas que advêm do elevado nível de
a sua importância para o desenvolvimento social da região, mas ao mesmo tempo constatando
o seu estado de degradação, o presente estudo se baseia na premissa de que o meio ambiente
reflexão se propõe a afirmar que a ausência e/ou a deficiência de estratégias que garantam a
comprometendo todo e qualquer projeto cultural e turístico. Assim sendo, parece imperativo
formam a base para que a atividade turística possa ser efetuada de forma sustentável.
A paisagem composta pelo rio Cachoeira e pela Mata Atlântica em seu entorno, no
originalidade do roteiro fica também por conta do valor cultural, engendrado pela presença
das fazendas de cacau, facilmente observáveis da rodovia, bem como pela riqueza cultural das
comunidades ribeirinhas instaladas entre o rio e a rodovia. Além disso, um fator importante
que agregaria valor à atividade turística naquela área é a riqueza do imaginário dessas
roteiro que pode ser explorado turisticamente tanto através da rodovia, como através do rio
como o seu estado de degradação atual, motivou e justificou o recorte da área delimitada por
também do turismo litorâneo de Ilhéus. Desse modo, a análise proposta tem como foco de
poluição das águas do rio Cachoeira e, por outro lado, objetiva sugerir sobre a formatação de
para o trecho que compõe a rodovia Ilhéus/Itabuna na BA-415. Tendo como objetivos
narrativas orais que abordam o imaginário do rio Cachoeira e da mata em seu entorno; e c)
como base os princípios ecosóficos, uma vez que estes envolvem uma re-articulação ético-
política dos três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da
pelos menos três fatores que são considerados indissociáveis: qualidade, continuidade e
equilíbrio (RATTO, 2004). Esses, por sua vez, estão atrelados a outros fatores mais gerais:
projeta, prioritariamente, assegurar uma melhor qualidade de vida para todos os habitantes de
uma destinação turística, bem como para os seus visitantes. Com efeito, não há mais como se
Elemento motivador deste estudo, o turismo é aqui abordado como uma atividade
produção e serviços, em cuja composição integra-se uma prática social com base cultural,
com herança histórica, a um meio ambiente diverso, cartografia natural, relações sociais de
hospitalidade, troca de informações interculturais” (MOESCH, 2000, p. 9; grifos nossos). Por
conta dessa demanda, o segmento turístico, de uma forma geral, implica em ações públicas e
turistas. Nesse sentido, o turismo pode ser abordado como uma atividade que pode
abordado, nesse estudo, como uma prática sociocultural que pode se tornar em um grande
turística.
pretendida para este trabalho, optamos por uma discussão mais ampla sobre a fundamentação
primeira etapa, foram realizadas pesquisas bibliográficas sobre turismo, visando observar a
sua inter-relação com os estudos sobre cultura e o meio ambiente, este na perspectiva da
poluição das águas dos rios em um contexto mundial e, em seguida, sobre o caso específico
do rio Cachoeira através das produções acadêmicas da UESC (ASSIS, 2001; GOMES, 2003;
PINHO, 2001) e também através de sites da internet. Na segunda etapa, foram efetuados
sobre a história local com enfoque maior no rio Cachoeira. Devido à escassez de material
sobre o assunto, encontramos muitas dificuldades nesta fase, principalmente por falta de
registros. Na terceira e última etapa, foi efetuado o trabalho de campo propriamente dito, com
29
prático de atender o nosso objeto de estudo: recolher as impressões sobre as condições atuais
contadores de causos, por se tratar de uma prática muito comum entre os pescadores e demais
grupos sociais que lidam diretamente com o rio, como os areeiros, as lavadeiras, etc. Como o
rio encontra-se muito poluído, as lavadeiras dificilmente foram encontradas. Desse modo,
optamos pelos pescadores, que apesar das condições das águas contaminadas do rio,
sobre as atuais condições do rio e 2) recolha do imaginário dos ribeirinhos, ficcionalizado sob
a forma de Literatura Oral. Para obtenção dos relatos, foi preciso, primeiramente, ganhar a
aquiescência dos moradores daquela comunidade. Para isso, foram efetuadas diversas visitas
idade acima dos cinqüenta anos, que se mostraram interessados em contar as suas
experiências de vida e também os causos vivenciados ou escutados dos mais velhos, quando
jovens. Os critérios para a seleção dos entrevistados foram respaldados pelo objetivo de se
Cachoeira num espaço de tempo entre dez e vinte anos, além da recolha das narrativas, como
já foi mencionado. Esse procedimento permitiu selecionar 6 pescadores, dentre os quais, uma
senhora de 92 anos, e um areeiro. Os demais entrevistados situados numa faixa etária entre 50
a 60 anos. Conforme mencionamos, não foi possível contactar as lavadeiras, visto que
tivemos dificuldades tanto em relação aos horários, bem como aos locais, por serem mais
geralmente nas quintas e sextas feiras, no período da tarde. Levando-se em conta os inúmeros
relatos aqui apresentados, advertimos que as datas de recolha das entrevistas não foram
registradas especificamente para não ficarem repetitivas, bem como pelo fato de que a falta de
registro individual das mesmas não altera qualitativamente o teor dos conteúdos apresentados.
contador. No período que antecedeu a recolha das narrativas, as entrevistas foram semi-
estruradas em observância dos dados pessoais dos entrevistados, fator importante para a
mata em seu entorno. Desse modo, as entrevistas foram tomadas sob a forma de anotações,
algumas vezes foram gravadas, mas como muitos não se mostraram à vontade, as anotações
foram priorizadas.
investigações acadêmicas que o turismo permite efetuar, em virtude de sua natureza inter,
multi e transdisciplinar (DENCKER, 1998), o que permite o avanço dos estudos turísticos
enquanto um fenômeno cultural. O texto faz uma revisão conceitual do turismo a partir de
31
uma visão cultural e assinala que a diversidade de definições, tipificações e formas de praticar
questões que envolvem a atividade turística têm em seu núcleo de discussões o ser humano.
diretamente subordinadas aos critérios de planejamento que, por sua vez, precisam ser
Aborda o rio Cachoeira como lugar de passagem (GILROY, 2001) para as primeiras
(CANCLINI, 2000), o ponto de entrecruzamento entre os mais variados grupos étnicos aqui
apresentados de uma forma simplificada: índios (que, quando não expulsos, foram
massacrados aos milhares), os negros (aqui trazidos como escravos), e o homem branco de
étnicos indígenas, fatos que alteraram para sempre o curso da história local (BARBOSA,
1997; BARROS, 1915; CAMPOS, 1981; FREITAS e PARAÍSO, 2001; SILVEIRA, 2002;
VINHÁES, 2001). O capítulo mostra ainda que o rio Cachoeira teve papel crucial na
formação das vilas e cidades da região ao longo de suas margens, um procedimento que
Cachoeira, devido ao mau uso e o mau gerenciamento dos recursos hídricos, tendo em vista
que as suas águas se tornaram receptoras de detritos domésticos e industriais de toda ordem.
todo o mundo, com grande repercussão em nossa região, apesar de ser considerada abundante
do rio Cachoeira em virtude dos inúmeros transtornos causados pelo seu atual estado de
importância para toda a Região Sul-baiana, sobretudo para as populações ribeirinhas cujo
águas do rio Cachoeira, visando a sua recuperação para o bem comum das comunidades
endógenas, bem como para os visitantes, tendo em vista a seu potencial para o turismo em
do Rio Cachoeira através da literatura oral – que aborda o imaginário do rio Cachoeira,
concernente aos causos narrados oralmente pelos pescadores que ocupam as suas margens,
diária, na intimidade com as águas do rio Cachoeira. A singularidade dessas narrativas não se
limita apenas ao seu valor estético, mas em sua força representativa, no valor sociocultural
que as revestem, pois evidenciam um ethos cultural característico do lugar. A análise decorre
de dois questionamentos principais: 1- de que modo a Literatura oral pode contribuir para o
localidade? 2- de que modo o estudo da Literatura oral pode contribuir para com a
(CASCUDO, 1984), como formas simples (JOLLES, 1975), ou ainda como literaturas da voz
(SANTOS, 1995, p. 39), isto é, um “discurso que um grupo social, uma coletividade, elabora
sobre sua própria cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual reforça e
prática social que está se perdendo por falta de tratamento adequado. O estudo assinala que a
turismo regional, por proporcionar uma experiência diferenciada ao turista que deseja
conhecer e vivenciar a cultura local. Por se tratar de um discurso que apresenta caráter de
etnotexto, a recolha e análise dessas narrativas podem contribuir para o entendimento de uma
turístico.
pessoa de seu coordenador, Prof. Dr. Neylor Calasans; outras, são de autoria do pesquisador
O roteiro utilizado nas entrevistas e os respectivos relatos obtidos nesta pesquisa são
sobre o imaginário dos ribeirinhos do Banco da Vitória, trabalho esse inserido no projeto
coordenado pela Profa Dra Maria de L. N. Simões, e que conta com o apoio financeiro da
FAPESB.
35
características e dimensões qualitativas e quantitativas tão diversas que demanda análises sob
sendo, a diluição de fronteiras disciplinares que abrangem tais estudos deve-se ao uso de
Literatura, dentre tantas outras, têm contribuído para o entendimento do turismo enquanto um
campo de conhecimento que encerra uma infinidade de discussões que dizem respeito às
turismo, como, aliás, é mais freqüentemente abordado, devido à sua inegável posição de
turismo, permitindo uma abordagem mais ampla do fenômeno em sua complexidade. Por
diversos olhares críticos, mas, por outro lado, também proporciona algumas dificuldades,
37
pois, conforme Dencker (op. cit., p. 28), o turismo tomado como “objeto de estudo de várias
tem demonstrado, as definições estão vinculadas às diferentes épocas, bem como às diferentes
áreas do conhecimento.
Segundo Oliveira (2000), entre o final do século XIX e início do século XX, muitas
antigas conceituações, o autor destaca a do economista austríaco Hermann von Schullard que,
estrangeiros para dentro e para fora de um país, cidade ou região” (idem, p. 31).
Como podemos observar, tal definição acha-se claramente vinculada ao foco de estudo
do referido economista, não obstante, ressalvando-se a data em que foi estruturada tal
envolve todos os aspectos realizáveis pela sociedade humana, vale reafirmar que as questões
que envolvem a atividade turística têm em seu núcleo de discussões o ser humano. No caso do
presente estudo que, em princípio, trata da relação do meio ambiente (natural/cultural) como
definidora desse meio. Assim, o turismo é aqui abordado como uma invenção cultural, um
produto resultante da própria necessidade de deslocamento que move a espécie humana desde
os seus primórdios.
impulsionadora e incessante, que determina, dentre outras coisas, a eterna busca pela
novidade bem como por melhores condições de vida. Aliás, dados históricos afirmam que,
desde as eras mais remotas, a história da humanidade está intrinsecamente ligada à sua
expandir o comércio com outros povos; depois, as viagens exploratórias, com a finalidade de
associadas ao prazer de viajar para se conhecer novos lugares, novas culturas. Nesse sentido, a
busca incessante pelo diferente, e não apenas pela diversidade, parece estimular o turista-
viajante a aspirar por novas experiências, novos conhecimentos, novas descobertas, num
exercício que permite defrontar hábitos, costumes, tradições, com o propósito de re-conhecer,
em si próprio e nos outros, as semelhanças e/ou diferenças culturais. Em suma, a ânsia pela
descortina pluralidades”.
39
também determina, conforme Carlos (1999), as formas de lazer não mais como uma atividade
espontânea, mas como mais uma necessidade cooptada pela sociedade de consumo que
transforma tudo o que toca em mercadorias. Nessa conjuntura, o turista vem se tornando cada
participando, desse modo, de um mundo fictício e mistificado de lazer, o que não é mau de
produzindo um “modelo geral do estar satisfeito como consumidor de lazer” (idem, p. 34,
grifos da autora).
Nesse sentido, conceber o turismo como uma invenção cultural humana determina
uma opção teórica que privilegia a cultura como ponto de partida de análise do presente
estudo. Importante ressaltar que o termo cultura aqui utilizado, numa perspectiva
superada idéia de hierarquização cultural. Na esteira dos Estudos Culturais, toda e qualquer
localização geográfica, porquanto cada cultura possui seus próprios critérios de avaliação,
uma vez que só a espécie humana apresenta em sua essência a capacidade de “ordenação (e
De acordo com Sahlins (idem), o crescente interesse epistemológico pela cultura nas
com o simbólico que, por sua vez, tem no imaginário um componente essencial. É desse
modo que as culturas geram símbolos os mais diversos que se manifestam por meio de
normas, valores, crenças, hábitos, costumes e tradições que constituem as identidades, uma
vez que conformam os “repertórios de ação e representação, adquiridos pelo homem enquanto
mais ampla, como um fenômeno que é instituído socialmente (CASTORIADIS, op. cit.), pois
que, mais do que permite, necessita de uma análise mais profunda no âmbito da subjetividade
constatação dessa realidade em nível global, na qual a atividade turística acha-se inserida, tem
do) planeta.
Ainda que subjacente a uma visão um tanto tecnicista, Moesch (2000), num esforço de
uma argumentação sistemática desses fatos, propõe uma definição mais abrangente do
turismo.
Tais considerações levam ao entendimento de que já está mais do que evidenciado que
não se pode compreender a atividade turística sem associá-la ao uso sustentável do patrimônio
planejamentos que viabilizem a preservação do meio natural e cultural, têm causado sérios
Conforme Rodrigues (1999, p. 55), o turismo é uma atividade que “produz espaços
natureza – através dos denominados ‘serviços’ do turismo”. É, pois, desse modo, que os
que é mais grave, na opinião da autora, é que a “produção espacial” para atender a demanda
alertam para a necessidade de se promover uma política de sustentabilidade que “precisa ser
pensar, que é a essência da natureza humana”, de modo que a sociedade do ter, caracterizada
pelo consumo desregrado e irresponsável, seja substituída pela sociedade do ser. Nesta
sociedade do ser, defende Rodrigues, “o que seria mais importante de ser contabilizado e que
As Três Ecologias adverte que o planeta Terra passa por um período de intensas
a vida em sua superfície. Por conseqüência desses acontecimentos, Guattari afirma que os
modos de vida humanos, individuais e coletivos, caminham também para uma progressiva
deteriorização.
tecnológico, produzido pelo perverso sistema capitalista, atingiu um nível tão intolerável que
interfere demasiadamente na vida humana. A produção em massa de bens materiais que visa
comportamentos gerada pelo consumo da mídia, dentre outros fatores, parece comprometer a
Segundo Guattari (op. cit), as pessoas parecem inertes ante a gravidade dos problemas
que o mundo vem enfrentando em nível global. A ameaçadora destruição progressiva do meio
despreparo das instâncias políticas e executivas para apreender essa problemática no conjunto
Nessa mesma linha de pensamento, Anthony Giddens (1991) enfatiza que a sociedade
vive as conseqüências geradas pela modernidade. Para Giddens, todas essas transformações
desastrosas que o mundo vem enfrentando constituem o “lado sombrio da modernidade”, uma
vez que o trabalho industrial não só submeteu aos seres humanos uma disciplina maçante,
43
Para enfrentar tais circunstâncias, Guattari (p. 8) propõe uma revolução em escala
planetária em que só uma ecosofia, “uma articulação ético-política entre os três registros
Nessa ótica, a questão fundamental seria reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-
grupo; a ecosofia mental, visando-se a re-inventar a relação do sujeito com o corpo, com o
fantasma (entenda-se aí, o inconsciente), com o tempo que passa, com os mistérios da vida e
conformismo das modas, as manipulações de opinião pela publicidade, etc. Desse modo, o
filósofo parece nos propor uma desrobotização gradativa e continuada do ser humano, pois
somente dessa forma o homem poderia enfrentar e resolver os desequilíbrios provocados pela
própria espécie.
(o capitalismo pós-industrial que o autor prefere qualificar como CMI – Capitalismo Mundial
absoluta e irreversível de regiões inteiras. Para o filósofo é preciso que se opere uma
tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial”.
ambientais.
Nessa perspectiva, De Masi (2000, p. 139) explica que “foi com o advento da indústria
dominante na vida humana, em relação à qual qualquer outra coisa – família, estudo, tempo
livre – permaneceu subordinada”. Ao que tudo indica, esse fato deve ter contribuído
industrial que tem delegado as tarefas repetitivas e cansativas às máquinas. Nesse contexto,
sua proposta é tornar o ócio uma ferramenta que promova a criatividade humana, de modo a
prazer e qualidade de vida, isto é, tornar o ócio uma atividade produtiva. Nesse caso, a
atividade turística parece encaixar-se perfeitamente como uma alternativa para o ócio criativo.
No entanto, faz-se necessário levar em consideração que se trata de um olhar bastante otimista
do sociólogo italiano, já que não condiz com a realidade que, por sua vez, tem se mostrado
Assim, o turismo, enquanto atividade de lazer e/ou de descanso surge como uma
alternativa que poderia preencher o tempo disponível das pessoas. Entretanto, contrapondo-se
a esta idéia, não podemos esquecer que a atividade turística, ainda em vias de
acha-se ainda restrita a quem possui condições de usufruir dessa prática mediante
remuneração. O que não acontece com a imensa maioria da população, pois o modelo de
economicamente, o que não implica em afirmar que tais condições não possam ser alteradas
Levando-se em conta todas essas considerações, Guattari (p. 8) afirma que o turismo
pode se resumir “quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas
Esta sensação de “viajar sem sair do lugar” pode ser decorrente do longo e contínuo
processo de mundialização cultural a que estamos todos submetidos conforme Ortiz (1998).
mundialização cultural, que supostamente atinge todo o mundo é, na opinião de Ortiz, “um
fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações culturais” (idem, p. 30), que
contribui para o aspecto homogeneizante dos lugares a serem visitados. Todavia, a idéia
totalizante de que o mundo pode estar subjugado a uma homogeneização cultural em nível
global, preconizada por Ortiz, é, do ponto de vista global, no mínimo, questionável. Para isso,
dessas condições, observáveis nas diversas culturas humanas, torna perceptível as grandes
disparidades socioeconômicas a que todos estamos sujeitos. Desse modo, deduzimos que
Stuart Hall, por sua vez, faz uma crítica às alarmantes proposições sobre a
homogeneização cultural em nível global. Hall, com base no argumento de Kevin Robin,
globo, é mais provável que se produza, nessas circunstâncias, novas identificações globais e
novas identificações locais, conforme adverte o autor. A globalização pode ainda se tratar de
pelas indústrias culturais das sociedades ‘ocidentais’ (incluindo o Japão) que dominam as
(1994) como a era dos excessos, devido à superabundância de fatos e de informações, o termo
produção desses não-lugares tem relações estreitas com o turismo contemporâneo. Para Augé,
47
o não-lugar se opõe ao lugar antropológico, pois esse, ao contrário do primeiro, visa a ser
produzidos e/ou transformados artificialmente para atrair os turistas. A autora afirma que a
‘indústria’ do turismo, voltada inteiramente para o lucro imediato, transforma tudo o que toca
em artificial, criando, desse modo, espaços sem memória, mundos fictícios e mistificados de
lazer
Mais adiante a autora explica como o espaço produzido pela ‘indústria’ turística perde
profundidade, sem história, sem identidade, sem memória, pois não há qualquer vínculo
28), o “produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais
que se realizam no plano do vivido, o que garante uma rede de significados e sentidos que são
precisam ser feitas, pois a elaboração de um plano estratégico que viabilize a sustentabilidade
culturais do lugar através de uma ação conjunta por parte de seus organizadores e habitantes.
financeiros, visando, na maioria das vezes, aos lucros imediatos. Não obstante, o que ocorre
com freqüência é uma busca desenfreada em se produzir mercadorias para serem consumidas
nas mais diversas situações. Nesse prisma, as manifestações culturais transformam-se também
recomenda Menezes (1999), a cultura precisa ser localizada na totalidade da vida social e não
performance.
Com base nessas reflexões, levamos em consideração que há ainda muitos turistas que
não se importam, e até mesmo preferem ter as suas viagens devidamente programadas, onde
tudo é controlado pelos profissionais do trade turístico a fim de se evitar quaisquer tipos de
os incomodar, entretanto, corre-se o risco de ficarem impassíveis, pois fica difícil estabelecer
possível que esses turistas estejam mais ansiosos por ‘comparecer’ aos locais predeterminados
(2000), cada vez mais, buscam a realização pessoal, pois desejam compreender a cultura e a
49
história dos lugares a serem visitados. São turistas que “mantêm viva a eterna chama interior
do viajante” e por isso trocam a simples curiosidade por inquietações individuais, pois
Nesse sentido, são turistas que estão sendo preparados para compreender que as
paisagens são ambientes construídos e que, por isso mesmo, demandam interpretação, pois
não se trata de um “suporte passivo, mas uma entidade ativa, integrante e testemunha de uma
225). Daí, o crescente número de turistas que procuram evitar a rigidez dos pacotes turísticos,
afinal, a vida cotidiana, por si só, já estabelece uma rotina bastante estressante.
espectador. De acordo com Tuan (1980, p. 12) “o mundo percebido através dos olhos é mais
abstrato do que o conhecido por nós através de outros sentidos.” Segundo o autor, o turismo
tem utilidade social e beneficia a economia dos destinos receptores, entretanto, não une
Desse modo fica subentendido que para se agregar valor turístico a uma determinada
paisagem, esta deve estar associada aos seus aspectos culturais, inclusive científicos, de modo
a oportunizar experiências diferenciadas a um turista que apresenta condições de compreender
Assim sendo, o que precisa ser feito para que ao turista-viajante seja possível
ultrapassar a contemplação da paisagem por si só? Afinal, o que esse turista, desejoso de
novas experiências, espera encontrar além de uma bela paisagem? Para que isso ocorra
habitantes locais que estão diretamente envolvidos nesses ambientes, o que pensam em
oferecer aos seus visitantes para que se sintam bem recebidos? Como inspirar boas impressões
sem correr o risco de se perder a naturalidade dos gestos cotidianos que delineiam, de certa
despreparadas em seu exercício de acolher os turistas estão sujeitas a ter a sua cultura não
apenas alterada, devido os contatos interculturais, mas devassada por visitantes mal-educados,
que não sabem respeitar nem as diferenças culturais nem tampouco as peculiaridades
procuram mostrar aos seus visitantes as peculiaridades naturais e culturais daquela localidade
aos turistas desejosos de encontrar algo diferente do seu local de origem. Estas questões
envolvem, certamente, grupos sociais distintos em seus mais diversos aspectos, sejam
Por outro lado, estudos recentes apontam que o turismo, além de promover o
pela preservação do meio natural e cultural de uma destinação turística. Contudo, como
qualquer empreendimento gerado sob a égide do capitalismo, e isso é um fato, requer grandes
recursos físicos, culturais e sociais das regiões receptoras. É preciso evitar que o turismo
destrua as bases que o fazem existir, adverte. Nesse sentido todos os cuidados devem ser
industrial, sempre acarretará impactos sobre o meio ambiente físico. É fato que os turistas, ao
se deslocarem, visitam o local para consumir o produto turístico. Desse modo, é inevitável
que a atividade turística não esteja associada aos impactos ambientais e culturais. Entretanto,
dos moradores a respeito do valor cultural que possuem, inclusive com ganhos em relação à
de seu patrimônio natural e cultural. Todas essas questões, evidentemente, estão relacionadas
de sua principal matéria-prima (o meio ambiente natural e cultural) ao mesmo tempo em que
promovem melhor qualidade de vida aos seus habitantes, garantem experiências marcantes
aos seus visitantes, contribuindo para o equilíbrio que garante a continuidade de diversas
públicos de apoio aos moradores bem como aos turistas (transportes decentes, segurança
eficiente, serviços bancários, comércio atrativo, postos de abastecimento, etc.) e serviços que
1999) de uma localidade, porque, à priori, beneficiam os residentes locais e, por conseguinte,
os seus visitantes que serão mais bem acolhidos. Tais prioridades comportam estratégias
Cooper et al (op. cit., p. 188) asseguram que “planos de melhoria ambiental para criar
conservação” são benefícios que o turismo pode trazer para uma localidade. Aliados a esses
mas, para que isso realmente ocorra, é bom lembrar que o planejamento turístico deve ser
53
abordado como um processo continuado, que precisa ser constantemente reavaliado, devido à
beneficiados.
Souza (op. cit.), em seu artigo “Como pode o turismo contribuir para o
mundo em nível global. Despido de sua carga ideológica capitalistófila, ou seja, livre de seu
superação de problemas sociais, em cujo âmbito uma sociedade se torna, para seus membros,
mais justa e legítima”. (idem, p. 18; grifos do autor). A fim de demonstrar a perspectiva de
socioespacial por abranger questões que relacionam conquistas nos mais diversos aspectos
que precisam ser resguardados em uma comunidade como o meio social (a cultura, a
análises diversas que direcionem a implantação de políticas adequadas, tendo em vista não só
turística, visando a rentabilidade dos empreendimentos do setor, mas, sobretudo, o bem estar
o turismo, tanto quanto qualquer outra atividade socioeconômica, também promove impactos
desgaste das paisagens que, em muitos casos, tem atingido proporções consideradas
irreversíveis.
provocado grandes preocupações no âmbito ecológico, visto que os turistas acreditam que
desgastante vida cotidiana, principalmente aqueles que vivem nos grandes centros urbanos.
turísticas, várias formas de turismo consideradas como alternativas têm surgido: ‘turismo
55
Entretanto, uma política de prevenção parece ser ainda a melhor opção. Do contrário, como
bem enuncia a sabedoria popular, “é melhor prevenir do que remediar”. Então, está mais do
que provado que é preciso incentivar políticas de prevenção antes mesmo de se pensar em
preservação. Para isso a educação ambiental, voltada para o estabelecimento de uma cultura
turística, por parte dos moradores e, por conseguinte, dos visitantes, pode ser a melhor e a
qualquer tipo de degradação. Conscientizar e despertar nas pessoas (habitantes locais, turistas,
viajantes, passantes) o desejo de proteger para manter, defender para resguardar um bem,
ao meio ambiente, inclusive com os que são provenientes dos segmentos turísticos, contribui
para o estabelecimento de ações que podem contribuir para serem altamente compensatórias,
tendo em vista a promoção de um turismo próximo do que pode ser considerado como uma
atividade socioeconômica sustentável, tendo como objetivo maior assegurar uma melhor
qualidade de vida para todos, das populações presentes e futuras. Somente dessa forma o
produtos turísticos, abalizados por uma infra-estrutura que seja capaz de atender à demanda,
de modo que se evite a sobrecarga de visitantes, cujos danos provocados aos atrativos naturais
e/ou culturais podem ser irreversíveis. Além disso, a falta de um planejamento turístico
adequado pode causar interferências no modus vivendi da população receptora de forma muito
lugar.
voltadas para o segmento turístico da Região Sul-baiana, elegemos o Rio Cachoeira como
não tratados, despejados diretamente ao longo de toda a bacia do Rio Cachoeira. Ao alcançar
a Baía de Pontal, onde o rio tem a sua foz, a poluição aquática se espalha ao longo do litoral
ilheense, tornando as praias impróprias tanto para as populações endógenas, como para os
seus visitantes. Desse modo, a problemática que se relaciona diretamente com o turismo local
diz respeito à degradação do meio ambiente como um todo, bem como da ausência de
veremos a seguir.
57
A História do Brasil, dita oficial, iniciou-se na Bahia por conta de um percurso que
da praia do Restelo, /*às margens do Tejo, que partiram as caravelas dos conquistadores
portugueses que tencionavam refazer a trilha marítima percorrida por Vasco da Gama em
direção às Índias. Foi a partir desse porto que os lusitanos cruzaram o Oceano Atlântico e
alcançaram a dita “ilha distante”, quando as naus portuguesas chegaram à costa brasileira e
ancoraram “em frente à boca de um rio”, dando início à colonização portuguesa no Brasil,
E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios
pequenos adiante por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças até
meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras, em frente da boca de um rio. E
chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos e dali avistamos
homens que andavam pela praia, cerca de sete ou oito, segundo os navios pequenos
disseram, por chegarem primeiro.
Ali lançamos fora os batéis e esquifes. E vieram logo todos os Capitães das naus a
esta nau do Capitão-mor e ali conversaram. E o Capitão mandou no batel em terra a
Nicolau Coelho para ver aquele rio. E assim que ele começou a ir para lá, acudiram
pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca
do rio, já lá estavam dezoito ou vinte (SIMÕES, H., 1999, p.115, grifos nossos)
Caminha pode ser analisada do ponto de vista de um testemunho1, ou seja, como um relato
em terras estranhas.
1
Vale aqui esclarecer o entendimento de testemunho como performances autoficcionais, porquanto no
testemunho, “a estratégia de construir uma experiência vivida e de exibi-la, como representativa de práticas e
usos socioculturais, é esgrimida, de forma mais ou menos consciente, como legitimação do discurso”
(RAVETTI, 2001, p.10, grifos da autora). Daí, a possibilidade da discussão sobre a Carta Caminha poder ser
considerada ficção (SIMÕES, 1995).
Apesar das descrições de deslumbramento feitas por Caminha, a ocupação portuguesa
em solo brasileiro, como é sabido, só se deu de fato por volta de 1530, com a implantação do
sistema das capitanias hereditárias, intentando-se resguardar toda a costa das invasões
francesas e holandesas, visto que as terras brasileiras já eram consideradas como patrimônio
lusitano.
privilegiados em recursos naturais. Nesse sentido, nossos rios serviram de caminho para as
expedições que, por sua vez, contribuíram para com a escravização dos índios, bem como
econômica e política dessas “novas terras”, dentre outras adversidades que foram e continuam
espaço físico e cultural das terras então colonizadas por dominação portuguesa. Disso
2000) entre as etnias envolvidas (brancas, indígenas e negras), apresenta até os dias atuais a
59
oficial, faz-se oportuno trazer à tona o pensamento de Ianni (2000) quando afirma que a
história dos povos está atravessada pela viagem, seja como realidade ou como metáfora.
sociólogo inglês Paul Gilroy utiliza a imagem de um navio em movimento pelo espaço
Atlântico entre a Europa, América e África para refletir sobre a dinâmica cultural da diáspora
negra - intensamente marcada pela violência histórica da escravidão desde que o primeiro
navio negreiro saiu da África em destino às terras que lhes seriam sempre alheias, nunca deles
próprios. Dentre outros aspectos, a obra discute vários temas relacionados às questões étnicas
estranhamento o fato de que apesar de o Brasil fazer parte desse espaço simbólico que autor
nomeou como Atlântico Negro, a realidade afro-brasileira, sobretudo a baiana, não foi
Com base nessas considerações, observamos que, nesse caso, a origem do Brasil,
enquanto nação, está vinculada a uma viagem incursionada através do Atlântico. Desse modo,
este espaço marítimo passa a representar aquilo que Bhabha (1998) designa como in-between,
nesse sentido que o Atlântico Sul passa a representar o caminho, o lugar de passagem, o local
articulados pelas diferenças entre as mais diversas e distantes culturas, o ponto de intersecção
africanos - em seu doloroso processo diaspórico -, somados ainda a dos povos sul-americanos
- que também na sua enorme diversidade contribuíram para a formatação de uma “nova
hierarquizantes de assimilação cultural, de absorção de uma cultura por outra, imposta pela
tidos como “inferiores”, agora estão sendo substituídos gradativamente pelos preceitos de
submetidos a constantes confrontações em sua dinâmica cultural. Isso, quando não anulados
confrontos entre as mais diversas identidades que, num jogo de amalgamentos culturais,
socioculturais, cujo formato dissonante parece permanecer até os dias atuais. Segundo Bosi
(1994, p.11), essas “ilhas sociais (Bahia, Pernambuco, Minas, Rio de Janeiro, São Paulo)
fronteiras territoriais demarcadas linearmente de estado para estado, como Bosi parece supor.
Como é sabido, as fronteiras, as demarcações territoriais e culturais são bem mais relativas do
que parece supor (BORDIEU, 2002). A prova disso é que o estado da Bahia, em sua extensa
localmente de região para região, dentro do próprio estado. Tais peculiaridades, provenientes
de um conjunto de ações humanas localizadas, são o que constituem o patrimônio cultural, dando
61
feições diferenciadas de lugar para lugar. Em contrapartida, são essas mesmas diferenças que
um produto turístico.
O fato é que essas diferenças acabaram por criar um país marcadamente multicultural,
o que tem contribuído de forma decisiva como mais um suporte de atração turística a ser
Região Sul-baiana apresenta, entre tantas outras localidades do Estado. São peculiaridades
históricas e culturais que foram edificadas com base nas relações interétnicas, exercidas pela
escravos negros africanos que, por sua vez, tiveram papel fundamental durante os ciclos
em relação ao termo, que consideramos pertinentes a este estudo. Segundo esse autor o
se encerrando nela. Assim sendo, ter noção das diferenças é ter respeito às necessidades
particulares de cada grupo que reivindica o seu reconhecimento, enquanto uma entidade
marcada por uma história e uma visão de mundo que lhe é própria; isso contribui para a
Diante do que foi exposto, há uma necessidade em se rever o foco pelo qual a
memória histórica e cultural da antiga Capitania de São Jorge dos Ilhéus foi escrita, tendo em
restringe apenas ao ciclo do cacau, apesar de tão amplamente divulgada pela literatura
regional.
Com efeito, retomar a história dita tradicional significa tomar conhecimento de uma
no tempo-espaço ocorrido, mesmo prevalecendo uma visão hegemônica, pode contribuir para
submetida e, dessa forma, re-focar o presente, visando a incluir uma parcela maior de atores
Em se retomando a História local, dados oficias informam que foi por volta de 1536
que a foz do rio Cachoeira se tornou o caminho de passagem para as primeiras incursões
européias nas terras ilheenses. Com efeito, as águas do rio Cachoeira testemunharam a
conhecido como Baía de Pontal. Movido pela necessidade de conhecer e tomar posse das
63
terras doadas por D. João III a Jorge de Figueredo Correia, a esquadra de Romero, após
aportar na ilha de Tinharé e fundar a vila no Morro de São Paulo (localizado ao sul de
Salvador, capital do Estado), optou por procurar um “local mais apropriado, apresentando
defesas naturais, grande fertilidade do solo e boa aguada” (BARBOSA, 1997, p. 26).
Nesse período, o vastíssimo lote da Capitania de São Jorge dos Ilhéus ocupava a
região central do Brasil e media cerca de cinqüenta léguas de largura em todas as direções,
localizando-se entre a Capitania da Bahia e a Capitania de Porto Seguro, tendo dois rios como
Trilhando o caminho marítimo até chegar à Baía de Pontal, o lugar escolhido para
sediar a capitania passou a ser a península abrigada por quatro ilhéus, pois oferecia uma
posição estrategicamente perfeita para a defesa de previsíveis invasões estrangeiras, já que era
um local resguardado pelo mar e pelos rios, dentre os quais o rio Cachoeira. Por outro lado,
era também necessário promover o povoamento rápido da costa, pois, como era de interesse
da metrópole, ficaria mais fácil resguardar extensões cada vez maiores do litoral. Sob esses
comercial, já que podiam contar com um porto para o escoamento do pau-brasil, da cana-de-
açúcar e, mais tarde, dos produtos de subsistência como a mandioca cultivada pelos índios e a
carne proveniente do sertão das Minas Gerais, que eram enviados para as capitanias vizinhas.
A região, densamente coberta por florestas, era povoada pelos Tupiniquins, mais para
a costa, e pelos temidos aimorés, em seu interior, o que configurou alguns problemas para a
penetração dos colonos naquelas terras. Conta-se que foi com o auxílio dos Tupiniquins que
Romero deu início à exploração do pau-brasil, cujos troncos eram transportados ao longo dos
2001).
Foi, portanto, naquele local, cercado pela abundância das águas, no cume do atual
outeiro de São Sebastião, que a Vila de São Jorge dos Ilhéus foi fundada, cujas magníficas
clima e a grande quantidade de rios existentes no local foram fundamentais para a construção
33), “toda a Capitania era abundantíssima de mananciais, sendo as chuvas mui freqüentes; e o
terreno, montuoso e coberto de vegetação vigorosa, prometia a esse distrito, quando bem
cultivado, toda a sorte de riqueza e de prosperidade”. Certamente que foi com esse intuito que
Nas incursões feitas pelas armadas locais, a título de exploração e aldeamento dos
índios, o rio Cachoeira tornou-se o rio-caminho, um dos principais canais de penetração para
conquista, seguiu-se a crescente ocupação com intensa devastação das florestas e aldeamento
dos índios. Nesse sentido, a fundação de vilas e arraiais ao longo ao longo do rio Cachoeira,
entre as vilas, tendo o porto de Ilhéus como escoadouro dos produtos vindos do sertão.
65
Nesse sentido, o rio Cachoeira foi palco de muitos fatos históricos importantes e, por
isso, que devem ser retomados e re-interpretados com a finalidade de valorizá-lo enquanto
patrimônio histórico da região. São fatos que ilustram a nossa História desde o período de
colonização, no século XVI, passando por períodos de decadência econômica da Capitania até
o período de implantação da lavoura cacaueira, no século XIX, que acabou por estabelecer
É fato que o rio Cachoeira também registrou a passagem de célebres figuras que
integram a história nacional, a exemplo dos três primeiros governadores Gerais, Tomé de
Souza, Duarte da Costa e Men de Sá. Esse último, então, se tornara dono da sesmaria do
florentino Lucas Giraldes, donos de seis engenhos, tornando-se mais tarde o terceiro donatário
Segundo Barros (1915), o rio Cachoeira começou a ser explorado, em sua parte mais
navegável, isto é, no trecho entre Ilhéus e o Banco da Vitória, por volta de 1553. Naquela
época, o Padre Luiz Soares de Araújo, referindo-se ao rio, escreveu a El-Rei, dizendo que
A vila possuía várias ruas: do porto, nova matriz, de São Sebastião, da cadeia, do
Colégio, de São Bento, e uma praça; travessas da matriz, de João de Sousa, e de
Inácio Jorge. Era o único núcleo de população da freguesia, porém às margens do
rio Cachoeira, - cujas fontes ainda não estavam descobertas, dizendo apenas que
procedia das minas, - havia moradores nos lugares denominados Cupipe, Maria
Jape, São João, Tanguape, Tabuná, Pasto, Matendipe, Camurupi, Bando do Furtado
e Pirataquicé. Navegavam-no sumacas, barcas, lanchas e canoas. [...] Noutro
tributário do Cachoeira, o Fundão, de curso mui breve, havia ainda moradores nos
sítios chamos Jaguaripe, Jacaraipe e São Francisco. Tanto no Sant’Ana como no
Fundão trafegavam canoas, barcos, e lanchas de pescaria. (CAMPOS, 1981, p. 35,
grifos nossos)
2
Ainda hoje podem ser observadas as ruínas do referido engenho de açúcar, que prosperou no início da
colonização às margens da Ribeira de Sant’Ana. Naquele local, bastante aprazível para visitações, conhecido
como povoado do Rio de Engenho, localizado a 20 km ao sul da atual Ilhéus, encontra-se a Capela de Santana,
considerada a terceira mais antiga do Brasil, construída no século XVI, em 1537, pelos jesuítas, tombada pelo
Serviço de Patrimônio, Artístico e Cultural do Brasil.
A incumbência de catequização indígena e educação religiosa dos colonos, inclusive
nos locais próximos ao rio Cachoeira, coube aos padres Manoel da Nóbrega, Leonardo Nunes
jesuítas. Segundo Campos (op. cit. p. 31), naquele período, era comum os padres saírem a
“percorrer as ruas do vilarejo tangendo uma campainha, e disciplinando-se pelos que estavam
em pecado mortal, pela conversão dos índios, e pelas almas do Purgatório, conforme
Também outros catequistas como Antonio Pires, João de Azpilcueta Navarro, Vicente
Rodrigues e outros se ocupavam dos índios que viviam nas margens do rio cachoeira, no seu
Espinosa, bandeirante que, em meados de 1553, embrenhou-se nas matas à procura de pepitas
de ouro, juntamente com o Padre Manoel da Nóbrega e sua equipe, em missão jesuítica,
trilharam caminhos pelo rio Cachoeira. Segundo Silveira (op. cit, p. 5), após uma intensa
rio de águas muito claras que correndo entre enormes pedras escuras formavam pequenas
cachoeiras”.
identificação dos transeuntes. Foi assim que nasceu a Villa das Árvores Ferradas, ponto de
expedições que saíam de Ilhéus passavam pela Vila de Nossa Senhora da Escada das
Olivenças (atual Olivença), no sentido leste-oeste; seguiam o curso dos rios, até chegar
naquele sítio. Por muito tempo a Vila de Ferradas foi utilizada como rota dos vaqueiros que
67
traziam gado do sertão mineiro para Ilhéus, intensificando o comércio em todo o seu percurso,
hoje um dos bairros periféricos dessa cidade que fica em torno de 30 km da costa ilheense.
A partir de 1570, é sabido que muitas entradas e bandeiras, utilizadas como formas de
penetração para o interior, passaram pelo rio-caminho em busca de pepitas de ouro e da prata
que, segundo as notícias que se espalhavam, brotavam com facilidade nas barrancas dos rios.
A busca pelas pepitas de ouro foi tão intensa nesse período que foi retomada e ressignificada
até mesmo um século depois sob o pretexto de existir uma Cidade Encantada, localizada
Fez limpa em várias caixas de açúcar e em muitos toros de pau-brasil, colocados nas
barrancas do rio. Não tardou a reação. Indignados, os habitantes se alçaram e
enfrentaram o inimigo. Durante muitas horas foi renhido o desforço contra os
invasores e atroz carnificina. Atônitos diante das sucessivas baixas, foram obrigados
a recolher-se aos seus barcos e velejar para o Norte (BARROS, 1915, p. 62).
Ainda por volta desse período, o rio Cachoeira foi palco de diversos outros episódios
Segundo Silveira (op. cit.), o capitão português João Gonçalves da Costa, que muito utilizou o
rio Cachoeira para fazer as suas incursões em direção ao sertão de Conquista (atual Vitória da
Conquista), foi o que mais se destacou pela as suas ações devastadoras contra os aimorés.
3
É possível que a Cidade Encantada não passe de uma re-visitação ao imaginário dos índios mexicanos que
contavam aos aventureiros espanhóis sobre a existência do El Dorado, a Cidade Perdida dos Incas toda
construída em ouro. O acrescentamento de detalhes fantásticos e mirabolantes, por conta da imaginação desses
aventureiros, deve ter exercido um grande fascínio sobre os europeus de modo a induzi-los a conhecer a América
e explorá-la (Vide El Dorado, 2005, s/p).
Também o sertanista João Amaro, contratado pelo Visconde de Barbacena, chefiando uma
entrada, exerceu “cruel matança de gueréns e pataxós praticadas ao longo das barrancas do
Esses episódios sangrentos causaram muitas reações nos jesuítas que intensificaram
cacaueira na região Sul-baiana, foi marcado por um grande marasmo comercial em virtude da
as maiores dificuldades foram atribuídas aos constantes avanços dos colonos europeus em
áreas indígenas e, como ficou evidenciado, houve muitos massacres. Além disso, o
De acordo com Adonias Filho, o ciclo do cacau iniciou-se efetivamente em 1746, com
teve um solo e um clima organicamente apropriados para ele. Como se sabe, o Theobroma
cacao, por ser uma planta que precisa de sombra e umidade, adaptou-se perfeitamente à
região, devido à boa distribuição das chuvas e à presença maciça da Mata Atlântica.
Aí, em todo esse tempo, nas funduras das grandes florestas, em todo o que foi uma
guerra contra a natureza, gerou-se uma violenta saga humana no ventre mesmo da
selva tropical. Saga que, fermentando matéria artística e ficcional, concorreu para
configurar o que realmente é um complexo de cultura regional. O cacau, à proporção
que altera a paisagem, a empurrar e diminuir a selva, a abrir fazendas, a estabelecer
um sistema de comércio, conforma culturalmente uma região (AGUIAR FILHO,
1976, p. 14).
homem grapiúna4 organizou o seu mundo e passou a ver o cacau como o “fruto de ouro”.
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Este tem por essência o imaginário que, por
sua vez, faz gerar normas, valores, crenças, tradições, etc.,que constituem as identidades,
uma forma simbólica, o El Dourado passou a existir, provocando migrações mais acentuadas
Através das narrativas literárias de diversos autores regionais, com ênfase nas obras de
Jorge Amado e Adonias Filho que percorreram o mundo, o cacau acabou por engendrar o
virtude do lucro gerado pela lavoura, refletindo tanto no interior, com a criação e
quais os sergipanos, bem como diversos grupos estrangeiros que aqui chegaram com o intuito
esses grupos instalavam-se ao longo dos rios. Com o passar do tempo, foram se formando as
1912, que nasceu o célebre filho de desbravadores de terras, o escritor Jorge Amado. Em sua
4
Termo popularizado por Jorge Amado em Gabriela cravo e canela (1958) para designar os grandes
plantadores de cacau. Grapiúna vem do tupi: guirá - gra por aglutinação = pássaro + pi = branco + una = preto
=> pássaro preto e branco. (Euclides Neto, 1997, p76)
extensa obra sobre a saga do cacau, Amado conta como os desbravadores se tornaram os
antropológico, o quanto as obras de Jorge têm contribuído para ampliar o conhecimento sobre
geral, muitos desses desbravadores chegavam por via marítima, a bordo de pequenos navios.
Muitos enfrentaram grandes obstáculos para adentrar as imensas e densas florestas. Isto,
naturalmente, exigia muita coragem desses aventureiros. Por um lado a presença ameaçadora
dos índios - os verdadeiros donos e, por isso mesmo, defensores do lugar. Dou outro, as feras
(onças, caititus, capivara, raposa, macacos, etc.), a grande quantidade de répteis existentes
(jacaré e inúmeros tipos de serpentes peçonhentas) e, como se não bastasse tudo isso,
achavam-se sujeitos às mais diversas epidemias, sendo a febre tifóide a mais temida. Por
estavam restritas aos vales dos rios, devido à necessidade de adaptação da árvore aos terrenos
e do grau maior de umidade. Além disso, os rios eram aproveitados como vias naturais de
escoamento dos frutos das roças, que eram transportados nos lombos dos burros, trazidos
pelos tropeiros5, até o porto fluvial do Banco da Vitória. De lá seguiam pelo rio Cachoeira até
Ilhéus. Em seguida, eram enviados para Salvador, de onde o cacau era exportado para a
como pouso de tropas em função do comércio dos chamados “frutos de ouro”. O Banco da
5
Pessoas que conduziam o cacau mole ou seco nos burros (EUCLIDES NETO, 1997, p.111)
71
Vitória foi uma dessas povoações que conheceu um surto de progresso no período, servindo
Região. No período que se seguiu à expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, o
estrada ligando Ilhéus a Vitória da Conquista e, por conseguinte, alcançar Minas Gerais. Este
traçado passava, nas proximidades do rio Cachoeira, na altura da Vila de Ferradas. Com a
abertura desta estrada, surgiram os primeiros comerciantes, passando, mais tarde, a ser
Segundo FREITAS e PARAÍSO (2001), a estrada era vista como promissora já que
acompanhava o percurso dos rios Pardo e Cachoeira, sendo abundante em águas e vários
aldeamentos, fatores considerados essenciais para oferecer boas condições de apoio aos
Segundo Campos (Op.cit., p 192), o capuchinho Frei Ludovico de Liorne, que se fixou
na Vila de Ferradas por volta de 1816, enfrentou muitos problemas quando o Conde dos
Arcos, o então governador, resolveu “mudar os índios gueréns aldeados em Almada para um
ponto da estrada de Ilhéus ao sertão da Ressaca, que então se abria na margem do rio
Cachoeira, [num] lugar denominado Ferradas, a oito léguas de Ilhéus e doze de Almada”.
Outras visitas ilustres, trazidas pelas águas do Atlântico, chegaram a Ilhéus, como o
linha sucessória que tinha o seu principado em Neuwied no Reno, em 1815. Motivado em
Para conhecer a Mata Atlântica de perto, o rio Cachoeira se configurou, mais uma vez,
em um caminho que permitiu, em 1817, aos bavaros naturalistas Johann Baptiste von Spix e
Carl Friedrich Phillipp von Martius adentrar as florestas em seu famoso itinerário
investigatório que envolveu todo o Brasil de norte a sul, oportunizando, assim, pesquisas
relatadas em Viagem pelo Brasil (SPIX E VON MARTIUS, 2005), uma obra que certamente
terras de Ilhéus em um livro intitulado Mato Virgem, uma obra manuscrita, ainda sem
situada à margem direita do rio Cachoeira, do proprietário suíço Barão Ferdinand von Steiger-
Munssingen, localizada nas proximidades do Banco da Vitória onde fez boas caçadas. A
beleza do local impressionou o arquiduque naquela época. Todavia, ainda hoje, apesar da
que podem desfrutá-la, ainda que rapidamente, ao passar pela movimentada rodovia
Ilhéus/Itabuna, na BA-415.
evento, Canoagem Rumo ao Mato Virgem, é evocativo às viagens dos dois naturalistas e
conta com o apoio da Marinha. Nesse evento são reunidos inúmeros pescadores em suas
Pernambuco, local onde fica sediada a Maramata, passam pela Baía de Pontal, seguindo pelo
estuário de Coroa Grande e depois pelo rio Cachoeira até o Banco da Vitória, trecho onde o
rio é navegável. Nesse percurso, podem ser vistas as ilhas fluviais Mutucujê e Frade, a Serra
Pelo valor histórico, bem como pela beleza paisagística, riqueza cultural de seus
local. Entretanto, obstáculos de ordem ecológica, com ênfase na poluição e degradação do rio
Cachoeira bem como do desmatamento das matas, além dos problemas de ausência de política
pública básica e a falta de infra-estrutura, são fatores que impedem a apropriação desse espaço
6 Trata-se de uma Fundação instituída e mantida pelo município de Ilhéus, cuja finalidade é produzir,
sistematizar e difundir conhecimentos na área de recursos ambientais, visando à sua preservação e utilização
auto-sustentável através de estudos, pesquisas, cursos, palestras, seminários, oficinas de trabalho, produção de
material informativo e também através eventos de massa, dentre outros. Vide www.maramata.org.br
3. DE RIO-PROVEDOR A RIO-GRANDE-LIXEIRA
3.1. Degradação e poluição dos rios: uma realidade global que se reproduz localmente
Por conta disso, os rios constituem-se em margens do habitat humano desde as mais
remotas civilizações. Por uma questão de sobrevivência e também pela própria comodidade, a
espécie humana sempre buscou viver próximo aos rios. As razões para esse procedimento
milenar são bastante elementares, uma vez que o homem aprendeu a lidar com as águas dos
rios em seu favor, dando-lhes diversas funções, dentre as quais a de rio-provedor, fonte
imprescindível de água doce, além de ser uma poderosa fonte de subsistência e também de
riquezas.
terras para o plantio, como no campo do imaginário, o rio-provedor surge como símbolo de
fertilidade, de renovação e, também, de morte. Sendo assim, o mesmo rio que alimenta,
refrigera, banha, transporta e é usado em muitas opções de lazer, é o mesmo que faz
sociedades inteiras padecerem. Como se sabe, muitos povos não foram capazes de fazer frente
às flutuações climáticas impostas pelas águas, ante as devastadoras inundações, bem como,
nos prolongados períodos de secas. Dessa forma, o rio que é provedor passa, por vezes, por
temporárias.
Assim, os rios têm fundamental importância histórica para o desenvolvimento da
humanidade, isto é, para a sua fixação em terras, viabilizando a criação de núcleos estáveis
que deram origem às primeiras cidades. Impulsionados por melhores condições de habitação e
próximas aos rios, para desenvolverem as suas civilizações, como o antigo Egito, que
floresceu às margens do Nilo e a Mesopotâmia que surgiu entre os rios Tigre e Eufrates. Essas
civilizações milenares, dentre tantas outras, tiveram as suas estruturas culturais, sociais,
muito desigual. Sendo assim, o volume de água existente em cada região, sob a forma de rios,
sociedades humanas. Sob esse aspecto, é possível afirmar que a insuficiência e ou a falta de
água potável em determinados locais do globo tenha motivado a dispersão de muitos povos
Nessa busca incessante por melhor qualidade de vida, a intimidade crescente com as
águas dos rios, seguramente, tornou possível vencer muitos temores, muitos obstáculos e foi
assim que o homem aprendeu a dominar os recursos hídricos com tanta inventividade.
Construiu diques, aquedutos e canais de irrigação que permitiram lidar com as enchentes,
transporte de água e secas prolongadas. Com isso, passou a irrigar terras desertas, ampliando
Desse modo, a condição de rio-provedor enquanto fonte de subsistência não ficou restrita à
expandiu, exigindo maior rapidez nos sistemas de produção, o qual acabou impulsionando a
revolução industrial que, através de uma economia densamente extrativa, conduziu a uma
acelerada degradação do meio ambiente em escala global. Também nesse processo, os rios
aparecem como provedores, porque foi a partir de seu potencial é que foram criadas as rodas
diversificadas, outros usos foram sendo impostos aos rios, todavia, sem qualquer preocupação
desconhecimento ou por descaso. Além disso, a elevada ocupação humana nas proximidades
dos rios, contribuiu muito para ampliar os impactos que passaram a interferir
urbanização desordenada.
animais ao longo dos mananciais, dos leitos dos rios e lagos e, ainda, por infiltração nos
lençóis d’água. É justamente neste ponto que os rios passaram a exercer funções
7
No ciclo hidrológico as águas dos oceanos e dos continentes se evaporam e se condensam sob a forma de
nuvens, voltando à Terra por precipitação, reabastecendo esses mesmos aqüíferos, além de manter, por
infiltração, o nível dos lençóis freáticos durante o ciclo. A redução do volume de água aproveitável da Terra
ocorre devido à poluição e à contaminação contínua das águas, ocasionando problemas no meio ambiente como
um todo.
mais variados tipos de lixo, tanto nas encostas como dentro deles, o homem colocou em
centros urbanos, se destaca tendo em vista o aumento proporcional de dejetos orgânicos, uma
vez que as cidades passaram a devolver um volume cada vez maior de águas usadas ou
incompletamente depuradas através dos esgotos e de usos industriais. Assim, a devolução dos
resíduos da vida coletiva é um problema tão antigo quanto o próprio homem. Desde as mais
antigas civilizações a atitude humana em relação aos detritos permanece a mesma: despejá-los
embora estes fatores não estejam dissociados -, o que ocorre é que com o evento da revolução
vertiginosamente, tornando esses impactos cada vez mais desastrosos. Deste modo, os
oceanos.
planeta, as águas que cobrem 3/4 da superfície terrestre estão nos mares e oceanos, de modo
que são impróprias para o consumo humano. Em contrapartida, quase toda a água doce do
mundo está concentrada nas geleiras, secundariamente, nos lençóis freáticos e só uma fração
mínima está disponível ao homem e aos outros organismos sob a forma de rios, lagos, lagoas,
bem como, na umidade do solo e na atmosfera. Nesse particular, o Brasil aparece com grande
vantagem, pois detém 13% das reservas de água doce do Planeta, todavia, com elevado índice
É certo que não faltam referências bibliográficas quando se trata deste assunto. No
entanto, questões que envolvem a poluição das águas dos rios e a desigual distribuição de
água doce no planeta nunca estiveram tanto em voga, face o risco iminente de sua
esgotabilidade. Inúmeras são as previsões relativas à escassez da água, não obstante, o volume
total de água no planeta permaneça o mesmo desde a sua criação, em virtude do ciclo
hidrológico. No entanto, essa resposta pode estar no mau uso e também do mau
gerenciamento dos recursos hídricos, por não se respeitar, por exemplo, os limites
têm se mostrado excessivamente apreensivos com a situação atual do planeta. O tema tem
água, com o lema Água, fonte de vida, visando a conscientizar a sociedade de que a água é
De uma maneira geral, todos esses eventos e campanhas têm ressaltado, em seu
faz imperativo encontrar meios de depuração das águas utilizadas, de transformar os detritos
tóxicos resultantes das indústrias e demais atividades humanas. Todavia, como esses
processos são muitos dispendiosos, ao homem parece mais fácil fingir que não está vendo os
devires que esses detritos, lançados indevidamente nos rios, são capazes de sobrecarregar a
seu tratamento, tanto em termos técnicos quanto financeiros pode vir a ser impraticável. Daí a
importância da prevenção.
De acordo com a "Previsão Ambiental Global 3", do Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA), apenas metade da população mundial tem acesso à água
Diante de dados tão significativos, o que está em jogo nos dias atuais é, além da
quantidade, a qualidade desse finito elemento que já é considerado escasso em muitas regiões
seu aspecto social, porque, além de viabilizar a sobrevivência humana, a água proporciona
Se um rio deixa de ser provedor e passa a ser utilizado como uma grande-lixeira –
como está acontecendo com tantos rios no mundo e, especificamente, no Rio Cachoeira - suas
águas tornam-se inviáveis para o consumo humano e industrial. Sem água de qualidade, a
funcionamento dos rios e demais fontes de água doce, pois a dinâmica desses ecossistemas
Conflitos gerados a partir desta realidade têm tomado grandes proporções de miséria
social em todo o mundo. A indigência hidrológica é uma forma de pobreza cruel, muito difícil
social e vice-versa, porque são indissociáveis. Embora essa afirmação pareça redundante,
torna-se incompreensível as razões pelas quais se pressupõe uma indiferença, ou até mesmo,
sobretudo quando se sabe que leis jurídicas foram criadas em prol de sua proteção.
A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral,
sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se
chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas
atualmente disponíveis.
A utilização da água implica em respeito à lei. Sua proteção constitui uma obrigação
jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não deve ser
ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.
resultantes das diversas atividades humanas. Trata-se, portanto, de um equívoco histórico que
de água potável em nível global (até mesmo em regiões tão abundantes em rios, como a
região Sul-baiana), porquanto os níveis de poluição e contaminação8 dos rios vêm atingindo
cultural para toda a Região Cacaueira do Sul da Bahia. De forma bastante evidenciada, o rio
tem sofrido exaustivamente, ao longo das duas últimas décadas, os maus tratos que lhe impôs
à condição de rio-grande-lixeira.
Se analisarmos com maior cuidado essas questões, nada fictícias (embora o rio
veremos que a poluição das águas dos rios e mananciais tem um efeito devastador na vida de
todos: homens, animais e plantas. Desse modo, não há como se desvencilhar de uma situação
que já é caótica para muita gente, seja pela ausência de água, seja pela sua qualidade e
também pelo nível de sua contaminação. Como os rios são águas em movimento, por onde
eles passam levam consigo o que lhes compõe a massa líquida. As propriedades químicas e
físicas da água contribuem para que isso aconteça, já que ela é considerada como um solvente
universal, devido a sua alta capacidade de dissolver uma grande diversidade de compostos,
orgânicos e inorgânicos.
A situação é ainda mais grave quando a drenagem do rio é do tipo exorréica, como o
rio Cachoeira que, em seu trajeto até alcançar o litoral ilheense, recolhe em seu leito toda a
sujeira depositada em suas águas ao longo das cidades que fazem parte do seu percurso (Fig.
02).
Elemento dos mais importantes para a manutenção da vida, hoje, mais do que nunca, o
homem depende da água para viver, pois com o desenvolvimento industrial e tecnológico,
cada vez mais surgem novas utilidades para esse finito elemento que possibilita diversas
atividades humanas, inclusive em função do lazer. Sendo assim, convém mencionar que em se
tratando de turismo, ao longo da história, os ambientes aquáticos são muitos valorizados como
fonte de entretenimento e, por isso mesmo, precisam estar em boas condições de preservação.
No caso do rio Cachoeira, há uma necessidade iminente de sua revitalização. Afinal, não há
mais como se pensar em se projetar uma destinação turística sem associá-la aos princípios de
sustentabilidade ambiental.
Numa perspectiva turístico-ambiental - grande filão que vem sendo explorado em todo
patrimônio natural acentuadamente aquático que possui. Potencial que poderia ser mais bem
principalmente as náuticas. Entretanto, os impactos causados pela poluição das águas do rio
Cachoeira, somadas às dos rios Almada e Fundão, que compõe o estuário de Coroa Grande,
composto de áreas de grande apelo visual, apesar dos altos índices de degradação: poluição de
suas águas e desmatamento em seu entorno. Tais procedimentos têm desencadeado grandes
desequilíbrios ecológicos naquela área. Um espaço que, se revitalizado, poderia ser utilizado
existentes (que ainda resistem), bem como pelo valor histórico que possui para a Região Sul-
baiana.
85
Figura 06: Canoagem Rumo ao Mato Virgem - Evento anual realizado pela
Universidade do Mar e da Mata - Maramata
Fonte: CKS
matéria-prima, ainda bruta, do turismo, pois reúne os elementos criados pela natureza que, por
suas peculiaridades, podem ser utilizados como atrativos turísticos. Desse modo, faz-se imprescindível
preservar justamente aquilo que transformou o local em uma atração. Em Ilhéus, é notório que a sua
principal matéria-prima, o meio ambiente aquático, não tem recebido os devidos cuidados para
visual é composto pela Mata Atlântica remanescente, um mar azul de águas (que um dia
foram) transparentes, margeado por quilômetros de belas praias de areias claras, densos
coqueirais, grandes áreas de manguezais, rios, cachoeiras, lagoas, enseadas, encostas, ilhas,
etc, dando uma impressão de paraíso terrestre, não condiz com a realidade vigente do ponto
de vista ecológico, pois apesar de toda a sua potencialidade ambiental o nível de poluição das
águas é bastante elevado.9. Isso, certamente frustra o turista que deseja ultrapassar a
preservação, tanto para as populações endógenas que o integram como para os visitantes que
desejam usufruí-lo de forma sustentável, isto é, sem degradar os recursos que o tornaram
9
Vide ASSIS, M. V. G. Impacto do despejo de esgotos domésticos e percepção ambiental. Estudo de caso:
estuário do Rio Cachoeira, Ilhéus, BA, 2001 (Monografia especialização em Oceanografia –UESC).
87
Figura 08: Córrego poluído que deságua diretamente nas praias ilheenses
Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas -UESC
sustentabilidade ecológica, é uma realidade flagrante por diversas razões: poluição das águas
10
Vide DÓRIA, M. A. A, Olivença: uma estância hidromineral? Ilhéus, 2003. CULTURA E TURISMO -
UESC (dissertação de mestrado).
poluição das praias e pelo excesso de lixo doméstico descartado nos rios e mananciais;
peixes e crustáceos, principalmente dos siris e caranguejos, assim como da fauna terrestre.
Um outro fator que contribui de forma incisiva para o aumento da poluição das águas
do estuário de Coroa Grande e, por conseguinte, das praias ilheenses, é o aterramento dos
ambiente como um todo. Um caso a ser citado é o da “Rua do Mosquito”, localizada ao lado
do terminal rodoviário de Ilhéus (Figs. 10 e 11). Naquele local vivem inúmeras famílias na
são depositados nas proximidades do estuário de Coroa Grande. É, pois, a partir dessas
pois compõem a base de uma cadeia alimentar que envolve inúmeros organismos, inclusive o
homem que fica no extremo desta cadeia. De acordo com Gomes (2005, s/p.), “a fauna
ciclo vital (moluscos, crustáceos) e aqueles que o freqüentam periodicamente para abrigo,
contaminação e a escassez das águas é a mais preocupante, já que o homem não é o único
89
usuário, pois os ecossistemas pedem por água mais limpa para a fauna aquática, aves e demais
Figura 10: Invasão dos manguezais – “Rua do Mosquito”, localizada ao lado do terminal
Rodoviário de Ilhéus
Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
)
Figura 11: Moradores da rua do mosquito; esgoto a céu aberto que cai diretamente no
estuário de Coroa Grande.
Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
Nesse sentido, embora seja óbvio, vale enfatizar que uma destinação turística não
condiz com miséria social, tampouco com o meio ambiente, sua principal matéria-prima, em
estado crescente de deterioração, de completo descaso por parte das autoridades relacionadas
ao setor de gerenciamento dos recursos hídricos, bem como dos organismos públicos e
privados responsáveis pela preservação do meio ambiente. Não é mais possível dissimular
que acontece em Ilhéus (e cidades circunvizinhas) não é muito diferente de outros lugares do
destinações turísticas que vem se prejudicando com o alto índice de poluição de suas águas.
Em Veneza, por exemplo, uma cidade de grande apelo turístico mundial, a poluição aquática e
atmosférica levou a Itália a declarar, em finais de 2001, emergência ambiental. Como se não
erosão de importantes edifícios históricos. Da mesma forma, no Egito, o rio Nilo - berço de
uma das mais antigas civilizações humanas - e na Índia, o rio Ganges - sagrado para os
hindus, encontram-se igualmente poluídos, devido aos resíduos orgânicos e industriais não
tratados, procedentes de hotéis, hospitais e sistemas de esgotos que são despejados em seus
respectivos leitos.
em nível global, apesar de todas as leis e artigos jurídicos de proteção às águas em vigor no
mundo inteiro que prevêem multas e punições para os órgãos públicos e privados que
exerçam mau gerenciamento dos recursos hídricos ou que poluem os rios e mananciais, como
Como compreender que aos rios, outrora provedores, fontes de vida e de sustentação deste
Talvez a visível abundância das águas tenha criado no homem, desde as épocas mais
remotas, a falsa idéia de sua inesgotabilidade. Juízo falso e comprometedor pelo qual nós,
destruímos as nossas próprias condições de vida, o nosso próprio habitat, tendo em vista os
altos índices de poluição do planeta, com ênfase no envenenamento das águas dos rios. A
forma tão desastrosa em nossa região, tendo no rio Cachoeira, um caso clássico a ser
analisado.
e criador do seu ambiente e isto lhe dá a devida responsabilidade pelas alterações boas e más
que tem provocado em seu habitat. Seria muito bom e sensato se essa liberdade de ação fosse
usada para o bem comum de todos. A natureza, em toda a sua grandeza agradeceria.
em seguida como esses assuntos estão inseridos na realidade diária das populações ribeirinhas
carentes que moram no Banco da Vitória, no município de Ilhéus, localizado na rodovia daBA
pelos relatos dos pescadores locais faremos uma avaliação mais detalhada sobre os danos
A Bacia do Rio Cachoeira é formada pelo próprio Cachoeira e pelos rios Colônia e
Salgado e está localizada na parte leste da região sudeste do sul da Bahia, entre as
limitada ao norte pelas bacias dos rios Almada e de Contas; ao sul, pelas bacias do rio Una; a
oeste pela bacia do rio Pardo; e a leste, pelo Oceano Atlântico (Fig. 12).
direta, água e alimento às populações mais carentes, ou ainda, dando suporte à pecuária, agricultura e uso industrial. Suas águas
banham vários municípios que nasceram nas proximidades de suas margens: Firmino Alves,
Itaju do Colônia, Itapetinga, Santa Cruz da Vitória, Itororó, Floresta Azul, Ibicaraí, Jussari,
Itapé e, finalmente, Itabuna até chegar em Ilhéus, desaguando no Atlântico (Fig. 13).
histórica e socioambiental para toda a Região Sul-baiana que apresenta como principais
duas últimas décadas, em uma grande-lixeira, ou seja, um enorme recipiente para toda
degradação, já que toda a rede fluvial é utilizada para o lançamento indevido de esgotos in
poluição das é ainda mais crítico, tendo em vista ao maior contingente populacional existente
nesses dois municípios, os quais somados totalizam cerca de 450 mil habitantes11.
bactérias e fungos que, por sua vez, desencadeiam o consumo elevado do oxigênio diluído nas
águas, agravando ainda mais a poluição do rio Cachoeira. Conhecido como eutrofização, este
(Fig. 14).
11
A contingência populacional e o índice de poluição são considerados diretamente proporcional quando se
verifica a ausência ou deficiência de saneamento básico o qual envolvem a construção de redes de esgoto com
sistema de tratamento, abastecimento de água e principalmente a remoção do lixo. Um problema que denuncia a
ineficiência e o descaso de políticas públicas em favor do meio ambiente e, por conseguinte, do cidadão. Desse
modo, o problema do rio Cachoeira não é de um município apenas, mas de toda a bacia que o compõe.
95
para a depuração da água, tendo em vista sua eficiência em absorver nutrientes e metais
pesados do ambiente (FIDELMAN, 2004). Por outro lado, o seu crescimento excessivo causa
inúmeros impactos, visto que acarretam o detrimento gradativo da fauna e da flora, atuando
ainda como verdadeiros criadouros de mosquitos que se reproduzem na base de suas folhas.
do problema.
água está sempre suja e empoçada é comum se observar uma enormidade de peixes
vezes, expressiva mortandade dos peixes, conforme podemos observar na Fig. 17.
lança toneladas de baronesas em toda a zona costeira da região, cobrindo extensos trechos de
praias, inviabilizando, assim, as atividades turísticas e de recreação nas áreas litorâneas (Fig.
18).
prejuízos ao setor turístico e demais setores associados. No entanto, o que agrava realmente a
situação é a quantidade de lixo que vem junto com as baronesas, conforme podemos observar
granito e gnaisse que tornam o seu leito encachoeirado (SILVEIRA, 2002). É, portanto, um
rio de leito rochoso que apresenta acentuada declividade e diversas corredeiras até às
proximidades do Banco da Vitória, em Ilhéus, onde a maré invade-o por vários quilômetros,
permitindo a navegação por barcos de médio porte até aquela localidade. As figuras 21 e 22
Figura: 16
Fonte:
Nos primórdios da civilização grapiúna, o rio era conhecido como Cachoeyra da Villa,
depois se tornou Cachoeiras do Itaúna que na linguagem tupi significa “pedra preta”.
Segundo Silveira (Op. cit.), o rio inspirou o nome da cidade de Itabuna, tendo em vista que o
município nasceu e cresceu ao longo de suas margens, tornando-se a quarta cidade mais
grave, tanto em termos de qualidade como de quantidade de água. Conforme Calasans (2004),
pra pouca água”. A redução do volume de suas águas tem se tornado incompatível com o
lançamento cada vez maior de efluentes não tratados ao longo da bacia (Fig. 24). Além disso,
com a deficiência dos serviços de limpeza urbana, muito lixo é levado pelas enxurradas para
problema de sua degradação precisa de uma solução, porque embora visivelmente condenado
pelas ações predatórias sofridas ao longo de toda a bacia, o rio Cachoeira ainda resiste.
Alimentado pelas chuvas, que ocorrem com maior intensidade durante a primavera e o
verão, é justamente aí que as suas águas se renovam e o rio cresce de forma surpreendente,
juntar uma grande multidão em torno do rio para apreciar a força de sua correnteza. E, assim,
Por diversas vezes o itabunense foi surpreendido com grandes enchentes, quase
sempre catastróficas, com destaque para as de 1914 e de 1967 pelo teor de destruição causado,
deixando parte das cidades ribeirinhas submersas. O que ocorre é que quando chove muito nas
provocando grandes inundações. Afinal, é o rio Cachoeira que drena as chuvas de toda a
região, desde as suas nascentes sertanejas até desaguar em Ilhéus. As figuras 25 e 26 dão a
dimensão do impacto e os estragos causados pelas enchentes do Cachoeira nos anos de 1967 e
2002.
Figura 25: Grande enchente de 1967 Figura 26: Grande enchente de 2002
Fonte: www.itabuna-ba.com.br Fonte: www.itabuna-ba.com.br
101
De acordo com Rocha (2003), o itabunense tem uma relação topofílica e, ao mesmo
tempo, topofóbica com o rio Cachoeira. Ou seja, ao rio são associados sentimentos e
de fertilidade, renovação e esperança, mas também, de destruição e morte, fazendo brotar aos
perplexidade humana ante o espetáculo que a natureza promove, da força indomável das
águas que tudo carrega: animais mortos, móveis, árvores arrancadas pela raiz, moitas imensas
de baronesas, caixotes, enfim, coisas que ficaram inadvertidamente ao alcance das águas,
inclusive pessoas que se afogaram tentando salvar objetos pessoais, ou por não resistir ao
fascínio das águas. Quando o rio Cachoeira se agiganta, segue espalhando a sua força
higiênica pelo caminho, em direção ao litoral. Invade a rodovia, fazendas, isola pessoas, deixa
vezes, impedem o trânsito entre as duas cidades. A força das águas modifica completamente a
Figura 27: Fazenda Monte Alto – Km 17BA 415 Figura 28: Fazenda Monte Alto – km 17 Ilhéus
Fonte CKS Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas -UESC
Conforme o relato de Seu Ozias Antério dos Santos, pescador há mais de 29 anos,
No diálogo encetado sobre as enchentes, Seu Ozias rememora o que o seu pai lhe
Na de 14 eu nem sonhava ainda... meu pai contou que a de 14 foi ainda a maior que
teve. Foi a que abriu esse ribeirão. A de 80 foi grande, mas nada se compara a
essas duas. Tá perto de vim outra... com certeza, nós já tamo até esperando... Olha,
minha comadre! Eu gosto mesmo é quando o rio tá cheio.
Quando o rio enche...! Dificilmente num morre uma pessoa. Aqui o povo acredita
que quando tem enchente, enquanto o rio não leva uma pessoa, ele não pára de
encher. Isso é uma realidade!
Entretanto, nos períodos de estiagem, o Cachoeira parece ‘clamar’ por água de tão
seco, no dizer dos ribeirinhos, pois é muito sofrimento para os peixes e também para eles
próprios que ficam sem a principal fonte de subsistência, além do mau cheiro que o rio exala
devido ao excesso de lixo atirado tanto nas margens como dentro do rio (Fig. 29).
Segundo Seu Miraldo, o rio Cachoeira já está morto, uma vez que o esgoto cai direto
no rio e mesmo pagando IPTU, o que considera um absurdo, não há rede de tratamento,
desabafa. Mas apesar da afirmação ressentida, nota-se que há esperança em vê-lo recuperado:
O rio ainda dá para ficar bem, embora as pessoas joguem lixo nas margens mesmo
tendo coleta de lixo. É ignorância. Pessoa que tem filho, tem neto... o lixo transmite
doença! E o poder público não entra com ação nenhuma. É só fazer propaganda
para conscientizar.
O perigo maior é a água que é contaminada. Os esgotos de Itabuna que cai no rio...
restos do matadouro é jogado no rio! Não tem fiscalização. A churrascaria de um
amigo nosso foi fechada por causa do esgoto a céu aberto.
D. Enedina, uma senhora de 92 anos, nascida e criada no Banco da Vitória, pela idade
e pela relação afetiva e de sobrevivência com o rio se constitui em uma especial testemunha
das alterações sofridas pelo rio Cachoeira ao longo de todos esses anos. Ela conta que
trabalhou muito na roça, mas como o dinheiro era pouco, para ajudar o marido a criar os oito
filhos, ela pescava e lavava de ganho no Cachoeira. A fartura era tanta que “se pegava pitu até
de mão”, isto é, sem qualquer utensílio de pesca como rede, jereré, tarrafa ou munzuá. Depois,
O rio hoje tá muito mudado. Naquele tempo era um rio bom. Tinha muito peixe.
Hoje tá escasso pra pessoa ganhar o pão. Água fedendo, as pessoas adoece, muita
poluição, muito esgoto sendo despejado... isso entristece. Antigamente todo mundo
ia lavar roupa no rio. Ficou perigoso por causa da sujeira e dos malandro.
Não há mais como mudar o rio. O esgoto cai direto no rio...
É em torno dessas agressões ecológicas que o rio Cachoeira, outrora fonte provedora
de vida e de sustentação, passou, devido ao mau uso de suas águas, à conseqüente condição de
higiene e lazer, apesar das más condições de suas águas. É ainda o rio que gera vidas e
vendedores ambulantes. Embora se sintam consternados, esses grupos sociais são movidos
por um sentimento de esperança pela recuperação do rio. Sentimento que se revela na voz
eloqüente e emocionada de Seu Tum, filho de D. Enedina que o criou graças aos recursos
retirados do rio. Seu Tum é testemunha diária dos impactos sofridos pelo Cachoeira.
O rio para mim é ... o que eu posso dizer...? ...É uma roça frutífera porque toda vez
que eu vou lá eu colho. Foi de lá que eu comecei, que eu criei família. Tenho tudo
de lá.
Ah! Eu queria que esse rio tivesse mais uma oportunidade de ficar limpo...! O rio
hoje não tem mais agasalho, não tem esconderijo para os peixes. As pessoas cortam
as árvores e os peixes vive no aberto. Peixes não dormem no aberto. Nosso rio está
de uma maneira não do modo que eu alcancei. Reduziu muito a quantidade de
peixes.
Antigamente tinha muito rubalo, tambaqui, crumatá, bagre africano, tucunaré
verdadeiro e o comum. O tilápio ta acabano porque o [tipo] que a CEPLAC botou
come os ovos das outras. Quando eu pego um eu abro a boca deles e tiro as ovas e
jogo no rio.
... Sinto hoje a falta de emprego... hoje o rio num dá mais para se lavar roupa. Cai
tudo dentro d’água. O sangue do matadouro cai todo no rio. Para mudar esse
problema que nós tamo acontecendo hoje era bom que tivesse uma fiscalização
desde Itaju donde ele nasce. A sujeira começa de Itabuna. Podia tirar aquela rede
de esgoto. A fiscalização do IBAMA. A gente vê fiscalização pra venda, pra
madeira, mas não tem pra água... A água tá preta, tá como se fosse um sumo
escuro. Quando chega o verão vai piorando. O peixe não dá para encontrar o
outro. Morre muito peixe. Morre o pitu, morre o camarão, o siri, o tilápio. Morre
quantidade de peixes. A água era limpa. Nós tinha de fartura. Nunca faltou nada
para o pescador. Hoje o pescador só pega se for ‘profissional’.
A exposição de Seu Tum demonstra a convicção de quem viu, ouviu e vivenciou uma
realidade que encontra ressonância nos testemunhos dos outros entrevistados, pelo simples
fato de tratar de experiências comuns, compartilhadas na dor da perda gradativa do rio. Nesse
sentido, um misto de aflição e impotência é o sentimento mais comum entre esses grupos
limpidez de suas águas que serviam para os mais longos e prazerosos banhos. Conta-se que a
água era tão limpa que até se podia beber, da fartura de peixes: robalo, tainha, tucunaré,
tilápia, pratibu, acari, piau, etc.; e de crustáceos em abundância: pitus, camarão, calambau,
curuca. Pescas de qualidade que podiam ser comercializadas sem medo de contaminação.
Há doze, quinze anos atrás eu pegava 15/20 kg de pitu por noite. Hoje não pego
nem 300 g. Nós não tem mais pitu aqui. Nem tem mais fartura de peixe.Já peguei
100 kg de peixe, hoje não pego mais nada. Tá ficando muito difícil. A multidão é
muita de pescadores. Muita gente com a situação ruim que corre para o rio.
Quando é questionado sobre a qualidade atual das águas e o que pode ser evitado para
não piorar ainda mais o nível de poluição, Seu Ozias responde que se sente muito mal, mas
que não tem jeito a dar, pesca ainda apesar de toda a sujeira que vem do lixo e do matadouro,
inclusive, fez denúncia no rádio de um curtume que jogava toda a sujeira no rio.
A senhora sabe... tem o IBAMA, mas não adianta nada... O rio não tem trato nem
pela prefeitura, nem pelo estado. Os esgotos é o que há de mais grave. É preciso
dar o tratamento básico no rio. Quando as autoridades limpar a cabeça do rio, ter
mais higiene... a sujeira vem toda para o Banco.
Na memória de muitos, o Cachoeira é o rio das margens adornadas por ingazeiras, dos
espécies silvestres como as lontras (tantas vezes confundidas com o nego d’água) e os jacarés
que eram vistos com freqüência nas proximidades ou dentro do rio. Há dez, vinte anos atrás,
adentrando-se um pouco mais na mata era possível ver com facilidade “uma enormidade de
bichos”: porcos-do-mato, raposas, antas, caititus, capivaras, pacas, cotias, preás, guaxinins,
sagüi e o jupará12. Todos eram passíveis de serem caçados, não como um esporte, mas como
fonte segura de alimentação. Por outro lado, várias espécies de serpentes peçonhentas se
constituíam em grande perigo para os passantes, sobretudo para os lavradores das roças de
cacau, causando-lhes por muitas vezes a morte. Contudo a recompensa maior se achava no
canto e na diversidade das aves: araras, papagaios, garças, perdizes, codornas, jacutingas,
12
Considerado como um dos principais disseminadores da lavoura cacaueira, pelo hábito de comer a polpa do
cacau e depois enterrar a semente.
13
Sobre a fauna, os dados foram recolhidos através de entrevistas conversacionais com os moradores do Banco
da Vitória, sendo posteriormente confirmados em Barbosa (1977).
Hoje, no entanto, segundo o relato dos entrevistados, a realidade que se observa é
bastante diferente devido aos impactos sofridos pela intensa e continuada degradação do rio,
bem como pelo desmatamento das matas ciliares, abrigo de muitas espécies, inclusive para o
Como bem rememora o ex-areeiro, Seu Pedro Silva, que criou os 15 irmãos tirando
areia do rio,
Antigamente, o rio era saudio, tanto que a gente tomava banho, bebia a água. No
rio dos anos 70 a gente sentia prazer, tinha muitos ingazeiros em suas margens.
Criei a minha família tirando areia do rio. Depois o rio foi ficando fundo demais, eu
tive que ir trabalhar no matadouro...Hoje as pessoas correm muito perigo de
doença: febre, gripe muita, muitas ostras que oferecem perigo da gente se cortar.
[referência aos caramujos]
Hoje eu fico triste só de ver o rio. Não posso sequer tomar banho. Antigamente se
podia até beber a água do rio de tão limpa que era. Dava para ver o fundo do rio, a
senhora acredita? A tristeza é muita, não posso nem pescar. O rio já teve muito
peixe, muito pitu, siri, calambau, beré, tucunaré, robalo.
profundo porque conhecem a natureza e ganham a vida com ela. Desse modo a topofilia que
também pelo fato de que o rio passa a ser um repositório de lembranças. No caso do rio
de revitalizá-lo.
cacaueira, iniciada no final dos anos 80. Tal crise foi desencadeada pelos baixos preços no
de bruxa”, doença provocada pelo fungo Crinipellis perniciosa. Assim, a lavoura que antes
transformadas em pastagens.
Nesse sentido, a crise da lavoura cacaueira por ser responsável pelo alto índice de
processo de ocupação/invasão das margens do rio Cachoeira. Não obstante, toda a sujeira que
se faz perceptível pela cor enegrecida e fetidez da água, inúmeras famílias sobrevivem
mediante ao que o rio ainda oferece, mesmo estando expostos a diversos tipos de doenças
infecciosas14, veiculadas pelas águas poluídas e/ou pelo consumo de peixes contaminados,
além do excesso de lixo exposto nas áreas próximas do rio. Trata-se de pessoas que vivem em
condições de absoluta indigência, onde as crianças são as maiores vítimas. É evidente que
Nesse contexto, a degradação contínua do rio Cachoeira alcança níveis que interferem
nos mais variados setores que estão relacionados às condições de vida de seus habitantes,
ribeirinhos. Entretanto, em maior ou menor grau, a poluição aquática atinge a vida de todos os
14
Dadas às condições atuais do rio Cachoeira, inúmeras doenças como cólera, disenteria, febre tifóide,
gastroenterite, giardise, hepatite infecciosa, leptospirose, salmonelose, escabiose, vários tipos de verminoses,
dentre muitas outras, podem chegar facilmente às populações mais carentes através de banhos, ingestão da água
ou de peixes contaminados.
ecosoficamente definidas, uma vez que se faz imprescindível a superação dos problemas
Esta é uma tarefa que certamente precisa ultrapassar a meta comum de conscientização
ambiental, da qual estamos tão habituados a ouvir: “que estamos destruindo o planeta”, “que
precisamos pensar nas gerações vindouras”, etc., até porque tais procedimentos não têm
Diante de tais constatações, o que precisa realmente ser feito a fim de reverter essa
humana ante os desastres ecológicos que nós próprios desencadeamos, a exemplo do que está
acontecendo com o rio Cachoeira, são aspectos extremamente intrigantes, já que envolve a
Evidentemente que não há nada de novo nessas discussões, mas em se tratando do rio
Cachoeira - uma unidade socioambiental de grande importância para toda a região - muitas
Bacia do Rio Cachoeira, por exemplo, foi implantado com o propósito de salvar os três rios que compõe a
bacia: Colônia, Salgado e o Cachoeira. O programa previa ações permanentes de educação ambiental às
retiradas de lixões de suas margens e de seus afluentes. Apesar de todos esses requisitos básicos, por
principalmente uma instituição de pesquisa e ensino e, apesar de ter a parte de extensão, não é
o seu papel executar as ações, porque na verdade isto depende muito da mobilização pública para que
Cachoeira. Afinal, de onde devem partir as primeiras ações que realmente viabilizem traçar
reafirmar a sua posição de agenciador político, papel imprescindível que precisa operar com
Um dado que nos intriga muito, em relação à ineficiência dos órgãos públicos ante a
degradação do rio Cachoeira, é que nos cursos de graduação e pós-graduação da UESC, nas
longo desses últimos anos, considerados os mais críticos de sua história. Cabe aqui uma
resposta que conhecemos é exatamente aquela que não podemos ou não mais deveríamos
las e, se possível, avaliar as sugestões que precisam ser efetuadas em favor das comunidades a
as conhecidas terras do cacau como o rio Cachoeira, esses cuidados deveriam ser, no mínimo,
do interesse de todos.
Diante dos desequilíbrios socioambientais que vêm se intensificando cada vez mais no
mundo, Guattari (2001) sugere que é preciso re-articular os três registros ecológicos, o do
meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana, para que seja possível re-
dos quais somos tão dependentes, seja de bens materiais ou imateriais. A reflexão do filósofo
implica em uma re-avaliação de tudo que a engenhosidade humana foi capaz de construir e,
que precisam ser reparados o quanto antes. Afinal, os exemplos negativos servem para que
Região Sul-baiana pode vir a ser uma boa motivação, um bom re-começo em prol de sua
111
defeitos, em um meio ambiente, que não são mais visíveis para o residente”.
seja notável pela ambiência e riqueza cultural, isso não é o bastante para transformá-la em
uma destinação turística bem sucedida. Conforme pudemos observar, além da falta de infra-
estrutura básica e aproveitamento adequado dos atrativos que possui, há uma negligência
generalizada com o meio ambiente, onde a pessoa humana é também parte integrante desse
meio. Com efeito, não há dúvida de que a poluição visível do rio Cachoeira, aliada às más
condições das comunidades ribeirinhas, fornece uma imagem bastante desfavorável aos
visitantes.
de muitas pessoas que dependem exclusivamente do rio para sobreviverem é muito penosa,
pois não há outras opções econômicas, outros recursos, e o rio é realmente parte integrante da
dessas comunidades. Trata-se, portanto, de cidadãos cujos direitos a uma vida digna parece ter
Uma localidade pode até ser detentora de um patrimônio natural e cultural expressivo,
como é o caso de Ilhéus. No entanto, para que esse potencial se transforme em patrimônio
turístico, em recursos que possam ser utilizados para atrair o turista, faz-se necessário, além
revitalização, uma vez que o rio tem dados sinais evidentes de esgotamento, inclusive
educação ambiental para a atividade turística, inclusive como uma forma de melhor conhecer,
dentre outras expressões artísticas se manifesta através da Literatura oral, onde o rio e mata
em seu entorno são tomados como cenários dos causos narrados pelos pescadores. Elementos
Um rio tem histórias para contar e verdades que não pode ocultar. Um rio que
reúne uma população inteira em seu entorno é o mesmo que é capaz de gerar um valor
simbólico, um sentimento de pertença ou até mesmo de indiferença ante uma realidade que
suas águas, atualmente escassas e fétidas, parece sugerir o fluxo contínuo da existência
humana em sua incansável luta pela sobrevivência. Apesar da desastrosa transformação do rio
que lhes foram e continuam sendo infligidos pelas ações antrópicas, o rio é tomado
rio que sustenta o imaginário dos poetas grapiúnas e de suas populações pesqueiras e
ribeirinhas, pessoas simples, na sua maioria, que nutrem um sentimento topofílico pelo rio
(TUAN, 1980). É o rio que carrega consigo a memória de muitos, daqueles que tiveram a
Telmo Padilha, Cyro de Matos, Valdelice Pinheiro, Ritinha Dantas, Hélio Pólvora, Anísio J.
se revela, dentre outras formas de expressão, através de narrativas orais, aqui abordadas como
Literatura Oral, uma prática social antiga que está se perdendo, tanto pela falta de tratamento
adequado que inclua a sua valorização, bem como pela falta de espaço e de tempo no agitado
transmitidos oralmente, estão sujeitos às peripécias imperativas do tempo, sob pena de serem
Nesse sentido, privilegiar a cultura, como foco de discussão nos estudos turísticos, pode
à Literatura oral, que ainda se faz presente nas áreas ribeirinhas, pode contribuir para a
compreensão das identidades culturais dessas comunidades e também para revitalizar suas
tradições.
Banco da Vitória, a opção por essa comunidade, mais especificamente neste capítulo, foi
dos fundamentais elementos que mais influenciam na competitividade turística. Nesse caso,
117
por se tratar de um cenário que é composto pelo rio Cachoeira e pela Mata Atlântica em seu
entorno, pode ser explorado turisticamente tanto através da rodovia (Fig. 30), como através do
rio em seu trecho mais navegável, no sentido Itabuna/Ilhéus ou vice-versa (Figs. 31 e 32).
Além disso, levamos em consideração que a paisagem demanda interpretações culturais, uma
vez que é parte integrante e testemunha de uma dinâmica sociocultural que se “gesta e se
da Vitória. Primeiro, saber que não basta a exuberância da paisagem para transformá-la em
uma destinação turística, pois a sua formatação é imprescindível, inclusive, em prol de sua
paisagem, a fim de torná-la diferenciada, mais duradoura e capaz de despertar emoções aos
visitantes, faz-se necessário evidenciar os seus aspectos culturais para que possa ser
humano em todas as suas instâncias enquanto cidadão, pois este é, antes de tudo, parte
integrante e decisiva desse meio. Quarto, a recolha e análise dessas narrativas podem
aliada à formatação da paisagem ao longo do rio Cachoeira no mencionado trecho daBA 415,
119
proporcionando uma experiência diferenciada ao turista que, conforme Simões (2001, s/p),
visitado; que interpreta e respeita a cultura local”. Nesse caso, o turismo, enquanto uma
atividade que proporciona intercâmbios culturais, assume papel de relevância, já que pode
instituído encontra-se indissociavelmente entrelaçado com o simbólico e este, por sua vez,
Desse modo, o rio Cachoeira é mais do que fonte de vida para aqueles que habitam
suas margens. É também fonte de criação literária. Isto ocorre quando o rio, juntamente com a
mata em seu entorno, ultrapassa a sua condição física e é percebido pelos ribeirinhos como
cenários ou como coadjuvantes na constituição de histórias que dão vida a seres assombrosos
como a mulher de sete metros, que fica vagando na rodovia Ilhéus/Itabuna; a dona das
águas, que impõe respeito ao rio; o nego d’água que assusta os pescadores quando distraídos;
os compadres que viraram biatatás e que dão carreira nas pessoas desavisadas; a caipora
Pertencentes ao vasto campo da cultura popular, no sentido daquilo que é feito pelo e
para o povo, estas manifestações atestam a riqueza cultural do Banco da Vitória, uma vez que
fato de estarem sujeitas a uma dinâmica que é própria da oralidade – pois apresentam menor
de elaboração das narrativas, inclusive na transcrição das mesmas, já que a passagem do vocal
para o escrito é, conforme Zumthor (1993), repleta de confrontações, mais do que transcrição,
é transcriação.
tratamento das narrativas nas concepções de Moreiras e Ravetti (2001) quanto à ótica do
performance, centrada no jogo de expressão e percepção entre o contador e o (s) receptor (es)
Na esteira dos Estudos Culturais, o conceito de etnotexto torna-se relevante, pois como
afirma Santos (Op. cit., p. 39), trata-se do “discurso que um grupo social, uma coletividade,
elabora sobre sua própria cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual
reforça e questiona sua identidade”. Desse modo, o etnotexto propõe uma leitura cultural do
texto literário. A Literatura Oral é, pois, um discurso que possui características de etnotexto.
Daí a pertinência do seu estudo, tanto no âmbito antropológico como no âmbito do estético.
A terminologia Literatura oral foi criada oficialmente por Paul Sèbillot, em 1881, com
o intuito de unir e definir as manifestações culturais transmitidas por processos não grafados.
Trata-se, portanto, de uma definição de fronteira que visa a diferenciar e limitar os campos de
ação do oral e do escrito. Desse modo, a Literatura oral se manifesta, conforme Cascudo
(1984), mediante um corpus extremamente amplo e variado: mitos, lendas, contos, causos,
adivinhas, canções, sagas, rezas, ritos e provérbios transmitidos exclusivamente por via oral,
Apesar de possuir um corpus tão extenso de análise, Cascudo (idem) apresenta quatro
identificar a data de seu surgimento; a persistência, pois são transmitidas de geração para
geração através dos séculos, onde são reformuladas, mas não esquecidas; o anonimato da
autoria, o que a faz de todos e de ninguém; e a oralidade, voz anônima do povo que tem na
sonoridade, na entonação e no ritmo, além dos gestos, os grandes aliados que reforçam o
significado da mensagem. Tais recursos são denominados por Zumthor (2000) como
elementos performáticos.
passaram a ser designados por Jolles (1976) como formas simples. Uma locução adjetiva que
parece atribuir uma certa depreciação ante a hierarquia dos gêneros, criada pela tradição
acadêmica. Todavia, o autor denuncia que, pelo fato de se tratar de manifestações artísticas
que “não são apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem
mesmo pela escrita” (idem, p. 20, grifo do autor), a história literária e a crítica literária
dessas formas, deixando-as para a etnografia ou outras disciplinas mais ou menos estanhas
outrora marginalizadas, atualmente são consideradas como uma importante fonte de estudo,
tanto nas vertentes da crítica literária, como no âmbito cultural, sobretudo em pesquisas que
humano em relação aos fenômenos naturais, bem como em relação à sua própria história,
tradições, hábitos, valores, medos, crenças e superstições que, estabelecidas pelo imaginário,
constituem a sua identidade. Pode mostrar, ainda, a utilidade e o sentido das instituições
Segundo Jolles, a força que impulsiona os estudos literários passa por critérios que
forma oral, tem sido um grande desafio para os teóricos da literatura desde o seu surgimento.
lingüista francês Paul Zumthor (2000), trata-se de Literaturas da voz (no plural), justamente
estabelecer uma situação comunicativa, coloca em ação simultânea o emissor, o texto (oral) e
o receptor. Assim, elementos subjetivos como a entonação e o ritmo da voz, as pausas, aliados
às várias formas do olhar e dos gestos, a memória do locutor, a finalidade da transmissão, bem
36).
enunciado é realmente percebido. No entanto, vale mencionar, que o termo não se restringe
em níveis diferenciados.
Todas essas considerações são necessárias, pois definem fronteiras que visam a
efemeridade se dilui graças à faculdade dos mecanismos de resistência das narrativas orais
processo comunicativo. É assim que a Literatura Oral se mantém e se propaga pelo mundo,
Segundo Jerusa Pires Ferreira (2000), Zumthor representa um divisor de águas nos
ampliou a noção de texto literário e criou uma plataforma de atuação em que a voz, o corpo, a
125
cultura, deixando-nos a percepção de que o texto se tece na trama das relações humanas.
Estabeleceu ainda diferença de conceitos entre oralidade e vocalidade, cuja posição teórica é
a de contemplar desde os textos tradicionais da voz viva aos que se transmitem pelos mais
designada como popular ganha mais força e prestígio no espaço acadêmico. A necessidade de
retorno às raízes de um mundo supostamente mais autêntico, com menor formalidade e maior
expressividade e liberdade criadora, desencadeia maior interesse por expressões com tais
características. Burke (1989) afirma que a pesquisa sobre cultura popular está muito além de
estudantes de literatura, portanto, perfeitamente cabível em relação aos estudos turísticos que
4.3. O fictício e o imaginário: tessitura e constituição nas narrativas orais dos ribeirinhos
do Banco da Vitória
manifestações observáveis. Nesse sentido, o termo imaginário não pode ser confundido com
conceitos como fantasia, faculdade imaginativa ou imaginação, pois estes termos envolvem
uma ampla carga de tradição, sendo freqüentemente justificados como faculdades humanas
distintas. Para Iser, o imaginário se apresenta de “modo difuso, informe, fluido e sem um
p.14). Iser também afirma que o imaginário existe na vida real, no entanto, precisa ser
ativado, uma vez que o imaginário “não é um potencial que ativa a si mesmo, mas uma
instância que precisa ser mobilizada por externo, seja pelo sujeito (Coleridge), pela
consciência (Sartre) ou pela psique e pelo sócio-histórico (Castoriadis), o que não esgota as
manifestações.
Castoriadis (1982), por sua vez, define imaginário como “criação incessante e
das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’. Aquilo que denominamos ‘realidade’
e ‘racionalidade’ são seus produtos.” (1982, p. 13). Para Castoriadis imaginário é sinônimo de
coisa inventada,
quer se trate de uma invenção ‘absoluta’ (uma história imaginada em todas as suas
partes), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já
disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações
‘normais’ ou ‘canônicas’. [...] Nos dois casos, é evidente que o imaginário se separa
do real, que pretende colocar-se em seu lugar (uma mentira) ou que não pretende
fazê-lo (um romance) (ibidem, p. 154)
É o que ocorre, por exemplo, quando narrativas são criadas para explicar um
fenômeno natural ou ainda para falar de algo que é inerente ao ser humano, como ditar
127
denominados por Jolles (1976) como formas simples (mitos, lendas, contos, causos, etc), uma
de contexto um para outro num processo de interação que funciona como uma matriz
causos narrados pelos ribeirinhos ultrapassam o mundo real em que estão inseridos, tornando-
se ficção que, em sua etimologia, significa fingimento, re-criação do real, coisa imaginária.
independentemente da nossa vontade. Por outro lado, o real é a “interpretação que os homens
atribuem à realidade. O real existe a partir das idéias, dos signos e dos símbolos que são
Trindade afirmam que o imaginário evoca e mobiliza as imagens de modo que utiliza o
simbólico para expressar-se e existir. Por conseguinte, o imaginário é uma das formas de
de uma coisa por aquilo que a significa, são fundamentais para a compreensão e o
1985, p.42)
ser elaborado posteriormente como desdobramento desta dissertação), aqui tomamos para
análise narrativas que sinalizam temáticas de interesse para turismo. Para compreender a
essência desse imaginário específico que se ficcionaliza nessas narrativas orais, abordamos
costumam contar causos que supostamente “aconteceram” dentro e/ou nas proximidades do
rio. Trata-se de narrativas orais que, em geral, abordam o cotidiano dessas pessoas; somando-
experiências vividas e/ou inventadas. São causos em que os contadores são, normalmente, as
conforme podemos observar no relato do Sr. Fernando Borges da Silva, mais conhecido como
Meu pai, era o maior mentiroso do mundo. Quando eu tinha uns 17 anos ele dizia
vultos vagando por ali. Dizia que tinha um padeiro que ia e vinha com um cesto
cheio de pão. Quando ele dizia que queria pão o padeiro nunca atendia e sumia
no km 18 daBA 415 é, de forma recorrente, o cenário dos causos narrados pelo Seu Pepeu.
Talvez pelo fato de se ter nas proximidades um cemitério naquela localidade, faça aflorar o
imaginário com causos que abordam vultos pela estrada, as ditas visagens. Durante as fases
Um fato curioso e que nos chamou a atenção é que os causos são quase sempre
vivenciados pelos pescadores. Em boa parte, testemunhas são solicitadas para comprovar os
fatos. A este respeito, pudemos observar também uma grande influência das religiões
religiosos, não poderiam mentir. Apesar disso, nunca desmentiam totalmente que foram
testemunhas visuais dos episódios narrados. Fato que poderemos constatar a seguir com o
causo narrado de forma muito espirituosa pelo Seu Osmário, pescador desde criança, naquela
localidade. Seu Tum, como é conhecido entre os seus companheiros, é um senhor de 54 anos,
O finado Vavá, pai de Alfredo, xingava muito. Ele era ferreiro. Ele usava um fole
pra fazer as peças dele. Ele tinha o costume de toda às seis horas ir tomar banho no
rio e ficar esquentando na Pedra de Guerra. Às 6:40, mais ou menos, estava tudo
escuro e apareceu pra ele a imagem de um homem dentro d’água. Ele tinha mais de
dois metros. Tava nu. Mas a gente só via da cintura pra cima. O homem tava assim
parado com os braços encruzados. Pergunta a Zé Evanildo e Jatobá que também
conhece esse caso. Todo mundo viu. Lorinho [o valentão do lugar] pegou o facão e
foi atrás do tal homem e não encontrou nada. Quando chegou lá não tinha mais
ninguém. Olha, eu sou evangélico e não posso contar uma coisa negativa. Eu
tenho que contar o testemunho que eu vi (grifos nossos).
A Pedra de Guerra a qual o Seu Tum se refere é, na voz dos moradores, um “lajedão
que vai até o Iguape”. Eles acreditam que se trata de uma rocha cuja dimensão alcança uma
média aproximada de uns 15 km. É nesse lugar que geralmente aparecem as assombrações, as
visagens. Foi ali, na Pedra de Guerra, que o Seu Tum se deparou por mais de uma vez com o
Nego D’água.
Para Seu Tum o Nego D’água, um ser aquático que vive no fundo do rio Cachoeira,
mas que gosta muito de ficar se esquentando em cima de um rochedo, existe de verdade, tanto
que a prova maior é que “ele tem volume” e molha quem está por perto.Também conhecido
como caboclo d’água, é uma assombração que se manifesta através de uma figura de
aparência humana distorcida, de cor escura, com a cabeça grande e redonda; é tronchudo, isto
é, de baixa estatura e muito forte, pois são capazes de virar as embarcações que lhes
desagradam; às vezes surgem, conforme os relatos, com uma grande cabeleira dura de tão
testa.
além disso, eles são muito ágeis, no entanto, se tornam razoáveis se receberem fumo ou pinga.
ribeirinhos daquela localidade. Conforme o relato de seus moradores, o Nego D’água tem
mãos e pés de pato e são bem escurinhos e adoram virar as canoas e desaparecer em
seguida16.
16
Vide SANTOS, R. S. 2004. O encanto da lagoa O imaginário histórico-cultural como elemento propulsor
para o turismo cultural na Lagoa Encantada. Ilhéus/UESC [Dissertação de Mestrado em Cultura & Turismo].
131
localizadas na região do Vale do Rio São Francisco, sendo uma das mais temidas
De uma forma geral, o Nego D’água apresenta características que se assemelham aos
Sacis pela forma endiabrada como agem, apavorando a todos que encontra pela frente, bem
como pela sua cor e agilidade de deslocamento. Apresenta semelhanças também com a
Caipora que, segundo Cascudo (1976) é uma figura indígena pequena e forte, coberta de
Segundo Seu Ozias, 59 anos, pescador a mais de 30 anos, o Nego D’água já o fez
Por causa do Nego d’água eu saí uma vez correndo assustado. Sempre ouvi falar do
carreira. Minha mulher falou: Ôxe! Já voltou da pescaria?!! É... Não tinha peixe...
Quando a gente é jovem, até o barulho de pau rangendo assusta nós. De dia, tudo
Por aqui aparece muito pau que range, parecendo a Caipora. Muitas vezes eu
deixei de entregar a comida de meu pai, que trabalhava na roça. E ele ficava lá com
fome. Tudo isso por causa do medo da Caipora. Se ela pegasse um...
floresta, por isso ele amedronta os caçadores com a fim de expulsá-los e proteger os animais.
É uma espécie de assombração que apronta toda sorte de ciladas, desorientando aqueles que
penetram a floresta através da simulação de ruídos: assobia, estala os galhos, dando falsas
Caipora
Essa história de se perder na mata por causa da Caipora, sabe por que é que
acontece? Não sabe menino, quando tá caçando passarinho? Pois ele se perde
porque enche os bolsos de pedra e sai com o badoque atrás dos passarinhos.
Quando vai ver, já tá perdido no mato e depois fica dizendo pra mãe que foi a
Caipora. Caipora, meu pai nunca contou pra nós. Mas meu pai já se perdeu na
mata.
perigo, bem como criar, inventar soluções para as ameaças que surgem em seu
limites de tempo e de espaço. Assume variantes que, conforme Cascudo (1986, p.34),
Há também quem afirme que o Nego d’água não passa de uma capivara ou uma lontra
livre imaginação.
133
Nesse contexto, há uma máxima popular que diz: “De noite, todos os gatos são
pardos”, isto é, na escuridão da noite, impossível se discernir o que se vê. À noite, para
Conforme Tuan (1980, p 12), “o mundo percebido através dos olhos é mais
abstrato do que o conhecido por nós através de outros sentidos. Os olhos exploram o
campo visual e dele abstraem alguns objetos, pontos de interesse, perspectivas”. Nesse
qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para
a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a
na cultura. (ibidem, p. 4)
Mas, em se tratando de um devaneio, por que o mesmo mito ocorre, apesar das
combinados através do imaginário específico de cada cultura? Ao que tudo indica, trata-se dos
e a oralidade).
De acordo com Cascudo (1976, p. 37), uma característica geral dos mitos e das
De uma forma emblemática, isto que dizer que os mitos andam, viajam por distâncias
incomensuráveis do imaginário humano, oralmente, de boca em boca, de geração para
geração.
Um outro aspecto que Cascudo chama a atenção é sobre o caráter híbrido dessas
narrativas, uma vez que se percebe a influência de diversas etnias que compõe o imaginário
da Literatura oral. Por isso, “um exame dos tipos fabulosos mostra a hibridez de todos, sua
confusão fisiológica, dando-os como somas espontâneas de reminiscências diversas.” (ibidem,
p. 185)
Por outro ângulo de análise, as obras do filósofo francês Gaston Bachelard que
elementos primordiais (ar, água, terra e fogo) contribuem para o entendimento dos
sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria (Martins Fontes, 2002), por exemplo,
Bachelard elaborou um estudo psicológico sobre as várias percepções das águas por
meio de textos míticos e literários (prosa e poesia). A água substancial como mestre do
A água, representada pelos rios, lagoas, mares, mangues, etc; o fogo que aparece
através de chamas e grandes fachos luminosos em outras histórias, como é o caso do mito do
Biatatá (que será apresentado a seguir); o ar que, além da sua necessidade básica, pode ser
considerado como o responsável direto pelas combustões provocadas pelos biatatás; e a noite,
135
a grande coadjuvante das estórias, um dos ingredientes básicos de que se utiliza a Literatura
Oral em suas manifestações, porque liberta a imaginação, o devaneio total, a fantasia. A noite
é, sem sombra de dúvida, o elemento primordial que faz aflorar os medos, as superstições, as
Iser (1999) como atos intencionais do fingir17 no jogo interativo entre o fictício e o imaginário
que possibilita a concretização do fictício, uma vez que possibilita a liberação do imaginário
de modo que, num processo de interação entre ambos a obra literária se concretize.
O mito do Biatatá18, que também faz parte do imaginário do Rio Cachoeira, é uma das
“Batatão”, “Cumadre Fulôzinha”, “João Galafuz”, “Mbaê-Tata”, cuja origem do nome vem
do tupi mboi (cobra) e tatá (fogo)– é, de uma forma geral, uma assombração que se manifesta
17
1. Seleção – faz incursões nos campos referenciais extratextuais, transgredindo-os ao recolher elementos que
serão reposicionados e incorporados ao texto, com a finalidade de engendrar novas formas. Esses elementos
selecionados continuam subordinados ao campo de referência que o originou. O ato de seleção invade também
outros textos (escritos ou orais, não importa), produzindo, desse modo, a intertextualidade.
2. Combinação – lida com as funções convencionais da denotação e da representação; é também onde ocorrem
as transgressões intratextuais de limites, que vai do léxico aos personagens. Em relação aos significados lexicais,
os agrupamentos estão indissociavelmente ligados, quer se trate de palavras cujos sentidos foram excedidos, quer
se trate de territórios semânticos no interior do texto cujos limites foram transpostos pelos personagens.
3. Auto-indicação ou autodesnudamento – ocasiona um ato de duplicação peculiar designado pela expressão
como se que, por sua vez, indica que o mundo representado no texto deve ser visto como se fosse um mundo,
embora não o seja, pois o mundo textual não significa aquilo que diz. O como se (fosse) “cria um espaço entre o
mundo empírico e sua transformação em metáfora para o que permanece não dito.” (ibidem, p. 70)
18
Sobre o mito de biatatá e suas variantes vide SOUSA, M.G. 2004. Literatura oral e o imaginário
de seu ambiente.
Os mais velhos sempre contavam que existia o biatatá, quando eu tinha uns 14 anos.
O problema do biatatá era o compadre e a comadre pecarem. Quando eles morrem
viram o biatatá e ficam batendo facho. Numa moita de bambu eu vi, junto com a
minha tia, por volta das 7:30, 8:00 da noite uma coisa facheando. Quando subiu na
moita eram duas tochas de fogo. Minha tia dizia que via sempre.
Muitas outras visagens aparecem no rio Cachoeira, como é o caso das canoas e
Antigamente o Banco tinha um gerador que funcionava até as dez da noite. Quando
eram dados dois sinais antes de desligar pra valer, todo mundo corria para casa,
pois na encruzilhada apareciam muitas visagens. Depois que o Seu Lindote, fiscal
do posto, morreu, sempre aparecia alguém no rio e desaparecia logo depois.
Alfredo é testemunha disso.
Um certo dia saímos, eu e Alfredo, de uma maré vazante e a lua tava clara e nós
vimos uma canoa enorme no meio do rio. Era a canoa de Seu Alagoano que tirava
areia do fundo do rio. Vimos a canoa solta no rio. – Vamos pegar aquela pra nós
ganhar um dinheiro? Disse pro Alfredo. Nós pelejamos pra pegar a canoa, mas a
agente nunca que conseguia pegar. Eu remava naquela direção e quando a gente
D. Enedina, uma senhora de 92 anos, também evangélica, conta que nunca viu nada de
estranho no rio Cachoeira, mas reafirma que o tio falava dos vultos de canoa que aparecia
deslizando sozinha sobre as águas. Uma canoa que por mais que se remasse nunca se
conseguia alcançar.
Meu tio contava que via umas coisas quando ia pescar. Diz que quando jogava a
tarrafa, outra logo aparecia. Aparecia também vultos de canoa... era as visagens!
137
De acordo com Seu Ozias, as visagens são almas penadas, pantomimas19 daqueles que
Contam que pessoas [que já morreram] do Banco costumam ficar em cima das
pedras. Eu mesmo já amanheci o dia, mas nunca vi nada... Hoje não aparece mais,
nada porque ninguém cumpre mais nada. Essas coisas com certeza existe. Quando
não existe a gente vendo, tem no sonho. Já vi contar que quando uma pessoa mata o
gente sente um arrepio. Muita gente contava de pessoas que morriam afogado ali no
Ainda em relação às visagens, Seu Pepeu esclarece, com muito humor, as situações em
que, tomado de medo durante as pescarias noturnas, era impossível não ficar imaginando
Uma noite, eu tava pescando ali por perto da Cordilheira, quando eu jogava a
tarrafa, fazia um barulho assim: toc-toc. E cada vez mais ia aumentando o toc-toc.
Eu já tava invocado. Fui ficando cabreiro, pois era bem enfrente ao cemitério.
Parei assustado! Quando tô assim parado, vi foi uma latinha que batia na pedra.
Sabe o que acontecia? Quanto mais eu chegava junto, mais a latinha batia na
pedra. O que é a imaginação, né? E eu pensando que era alma penada. Muita coisa
Uma vez ali mesmo, perto da Cordilheira, tinha uns dez dias após a enchente eu
que tinha pisado na cabeça de uma pessoa, pois tinha uns cabelos se mexendo.
Fiquei sem ânimo durante uns cinco minutos. O coração disparou! Quando fui
olhar... era um coco verde cheio de cabelo de tanto que ele ficou na água. Foi tudo
19
O sentido aqui empregado é o de almas que aparecem fazendo gestos aterrorizantes.
um susto. Nada foi real. Naquela época o rio era limpo, não tinha limo, não tinha
ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. A imaginação inventa mais que coisas e
perceber que a imaginação criadora de Seu Pepeu corresponde a uma espécie de botão
acionador que ativa o imaginário. Nessa perspectiva, o imaginário pode ser apreendido
1997, p. 24).
À noite eu sempre ouvia um barulho. Quando ia ver era uma capivara. Aqui tem
uma palha que tem um brilho à noite, chamada patioba. Quando o venço balança
realidade, mas que possui alguma conexão com ela. Aqui, a estratégia do imaginário é
tão somente deslocar a apreensão da realidade de tal modo que possibilite criar "novas
Por isso não exigem comprovação ou verificação com o real. É, portanto, outra
soluções, nem sempre práticas, para os acontecimentos que compõem o seu cotidiano.
determinado lugar.
memória, visto que o mesmo pode levar tanto ao conhecimento como à valorização do
patrimônio, principalmente por parte dos próprios habitantes locais. Desse modo,
principal cenário.
Minha mãe contava caso de lobisomem. Diz que tinha uma mulher... (isso foi no
tempo da quaresma e foi verdade mesmo) que tinha um marido e um nenenzinho.
Eles vinham passando pelo mato de noite. Tavam indo para a casa, eu acho. De
repente, o marido se afastou prá dentro do mato e sumiu, deixando a pobre sozinha.
Mas isso era para ele se espojar no lugar dos outros animais e virar o lobisomem.
Aí apareceu o cachorrão querendo engolir o menino. E a mulher subiu numa
árvore, assombrada gritando pelo marido pra socorrer ela e o menino e nada do
marido chegar. O menino tava enrolado em um xale e o cachorrão tentava pegar o
menino mas só conseguia arrancar os fiapos do xale. E ela ficou em cima da árvore
esperando que ele desistisse. Quando o marido apareceu o lobisomem já tinha ido
embora. Aí ela disse: “Mas fulano, onde é que tu tava, que te gritei tanto e tu não
apareceu? Bom, sei que quando foram dormir ela olhou para os dentes dele e viu
que tava cheio de fiapos do xale do menino. Ela saiu e pegou o machado e matou o
marido.
Também o Seu Pedro, ex-areeiro, mas ainda pescador, de 58 anos, nascido e criado no
De acordo com Cascudo (op. cit, p. 145), o lobisomem nos foi trazido pelos colonos
europeus. É, pois, um mito que aparece “em todos os países e épocas, com histórias
espelhadas, sob nomes vários, registrados nos livros eruditos”. O autor cita a tradição clássica
de Licaon, rei da Arcádia, que tentou matar Zeus e o deus o castigou, dando-lhe a forma
vulpina. Segundo a lenda, Licaon, tornado lobo, teria que se abster de comer carne humana
durante dez anos para voltar à forma humana. Nesse sentido, não há dúvida de que o mito,
Cascudo associa o mito também à história dos fundadores de Roma, Rômulo e Remo,
que teriam sido criados por Acca Laurentia, uma prostituta, loba, termo que designava as
mulheres que rondavam as vielas e lugares escuros em busca do amor furtivo. A loba de
Roma tornou-se sagrada e foi deificada através de festejos denominados como Lupercais, uma
manifestação de estilo orgiástico que incluía ritos de flagelação e que previam, inclusive, a
matança de lobos e cães, cujos sangues e peles adornavam os moços que saiam correndo e
se, nacionalizando-se, mas com os traços característicos que o fazem uno, inconfundível e
completo no quadro geral do fabulário popular” (CASCUDO, op. cit. 150). Alterações que
razões morais para o castigo divino. Todavia, no Brasil, a explicação portuguesa para o
fenômeno perdura, como por exemplo, o fato de uma mulher que possuir sete filhos, um deles
está condenado a virar lobisomem; justifica-se o castigo por relações incestuosas entre irmãos,
141
primos e, incluídos também nessa classe, os compadres. Nota-se, portanto, que o mito assume
importante papel social, enquanto provedor da ordem ética e moral entre as sociedades
humanas.
Já o causo da Mulher de Sete Metros, é uma lenda que se faz muito presente no
impressa em folhetos de cordel, isso não a exclui do corpus daquilo que denominamos como
Literatura oral (em princípio, restrita à oralidade), pois apresenta características próprias que
segundo Jolles (1976, p. 146), “se realizam na vida e na linguagem sob o domínio de uma
disposição mental” para a imitação de que resultam, de modo semelhante, os outros gêneros,
forma oral.
exemplo dos contos recolhidos e registrados por Charles Perrault, na França do século XVII,
bem como, os irmãos Grimm que, no século XIX, pesquisaram a Literatura Oral com o
objetivo de reafirmar a nacionalidade alemã. Este foi um período fortemente marcado pela
de identidade das nações européias. Algo muito parecido que está acontecendo na
da palavra oral ao texto escrito) ocasionam alterações tanto de forma como de conteúdo.
oralidade para a versão escrita sofreu diversas modificações e, por conseguinte, geraram
outras lendas: o Ipupiara – um monstro meio homem, meio peixe, afogador de índios; a Uiara
– versão portuguesa da sereia; e também uma variação da Iara, inclusive narrada por José de
Alencar em O Tronco do Ipê, em que figura uma moça de longos cabelos verdes e anelados,
que vive no fundo do lago; Até mesmo o poeta baiano Sosígenes Costa apropriou-se desse
tema ao escrever Iararana, um longo poema narrativo que cria um mito de fundação da
Região Cacaueira do Sul da Bahia. De acordo com Paes (1959, p.7) “Iararana é a falsa iara, a
iara branca, mestiça, nascida da violação da mãe d’água do Jequitinhonha por Tupã-Cavalo, o
centauro invasor”.
narrativa do Seu Nado, morador na referida comunidade que, apesar de não querer se
identificar, nos contou sobre a sua experiência imaginária na infância com a Mulher de Sete
Metros
Quando eu era menino, na base de uns 13 anos, eu tava na rua com outros meninos
conversando. E uma pessoa do grupo contou o caso da Mulher de Sete Metros que
aparecia na estrada pra pegar a gente. Quando deu o primeiro sinal que a luz ia
apagar, todo o mundo saiu na carreira pra casa. Quando eu tava voltando, que eu
fui atravessar a rodagem, vi uma figura enorme também atravessando. Saí correndo
disparado pensando que era a Mulher de Sete Metros. Cheguei em casa gritando:
“Me acode que a Mulher de Sete Metros quer me pegar!!” No outro dia, fui ver
que era o primo de um morador daqui que tinha chegado. Ele era muito alto e
cabeludo.
Não há dúvida de que a performance do contador, ao narrar este caso, fez toda a
Itabuna” do poeta Minelvino Francisco Silva (1997), que optamos por transcreve-lo na
íntegra a título da riqueza de significados que apresenta, bem como visando à divulgação de
Há, pois, nos textos apresentados sobre a Mulher de Sete Metros, a presença
efetivamente para o estudo e entendimento da mentalidade popular local, pois sua força viva e
sonora se faz presente na voz anônima do povo. Ao mesmo tempo, denuncia comportamentos,
Mais que isso, as narrativas aqui analisadas apresentaram soluções práticas do dia-a-dia dos
ribeirinhos que, muitas vezes, utilizavam-se de causos assombrosos para conter a criançada
longe de situações perigosas. Mantida pelas fontes perpétuas de seu imaginário, a prática de
No entanto, a riqueza desse imaginário não se esgotou. Pelo contrário, há ainda muitos
mistérios por se desvendar, muitas histórias a serem recuperadas e preservadas para que
possam despertar, nas gerações vindouras, a essência de uma cultura tão singular como a da
Região Sul-baiana, uma região que se destaca e se diferencia até mesmo das outras regiões do
Estado.
compartilhada com seus visitantes. Além disso, a Literatura oral do Banco da Vitória pode
vir a ser a oportunidade plausível de salvar do silêncio a história e a cultura dos grupos
de ouvir histórias da boca de um contador expressivo tem noção do prazer que é compartilhar
livre, especial, porque envolvente. Uma prática que possibilita o intercâmbio contínuo de
experiências entre o contador e o (s) ouvinte (s), todos envolvidos em um mundo fictício onde
região, das atuais condições de degradação em que o rio se encontra e, em decorrência disso,
sociais que dependem diretamente do rio para sobreviver, como os pescadores e as lavadeiras
importância do rio, tanto do ponto de vista ecológico como do ponto de vista afetivo, através
dos relatos dos ribeirinhos do Banco da Vitória. Ao recolhermos tais impressões, através das
também o elo afetivo estabelecido entre aqueles moradores e o rio. Todos esses fatores
Se, por um lado, o meio ambiente (natural e cultural) se constitui na principal matéria-
prima do turismo, então, podemos deduzir que, no sentido inverso, e com muito otimismo, o
rio Cachoeira. De que modo isso seria possível, se o rio já se encontra visivelmente
em que o rio corre paralelo a BA 415, da rodovia Ilhéus/Itabuna em seu trecho mais
navegável, isto é, entre o Banco da Vitória (Km 8), passando pelo estuário de Coroa Grande,
chegando até a Baía de Pontal (vide figuras: 01, 05, 06, 31 e 32, correspondentes ao roteiro).
Na verdade, esse roteiro já existe e é realizado sob a forma de um evento anual através
o referido percurso sem qualquer evocação cultural que proporcione aos visitantes o
conhecimento sobre a parte histórica do rio, que é extremamente rica, pois envolve épocas
aldeamento feito pelos jesuítas, do transporte do cacau efetuado pelo rio, quando sequer havia
a uma estrada, etc. (vide Capítulo Rio-caminho: mais um foco da história). Nem, tão pouco,
comunidades ribeirinhas que habitam aquelas áreas. Talvez pelo fato de se tratar de pessoas
de condições sociais muito humildes, e também pela falta de conhecimento formal, são
incluídos na programação desse evento de uma forma muito superficial, que se resume numa
Cachoeira que contemple o valor cultural do rio, incluindo-se aí, as populações ribeirinhas,
uma vez que o potencial paisagístico por si só torna-se insuficiente para se manter uma
IV
memória social e, ao mesmo tempo a valorização por parte dos habitantes locais. Nesse caso,
a riqueza cultural presentes naquele local, seja através dos fatos históricos ali ocorridos, seja
ficcionalizado nos causos narrados pelos pescadores locais, justificam a sua formatação.
Para a realização desse roteiro, passeios de barcos e chalanas, com estrutura adequada,
seriam programados, inclusive com guias turísticos treinados que pudessem contar os
episódios importantes sobre a história local. A bordo, contadores de causos seriam uma
estudantes poderiam utilizar tal roteiro para aulas-vivas de ecologia, biologia, geografia,
dentre outras; tudo isso seria formatado em virtude do potencial ecológico que o trecho
apresenta, pois o rio, apesar da poluição de suas águas, tendo a Mata Atlântica em seu
entorno, torna o percurso bastante atrativo, além da riqueza da biodiversidade ali presentes (as
matas ciliares em virtude de sua formatação turística, além de contribuir para a inclusão de
uma prática social como a contação de histórias realizadas pelos moradores locais. Nesse
Intercâmbio Universitário, treinando professores das redes pública e privada, tendo em vista a
projeto, uma vez que seriam necessários investimentos tanto por parte do poder público como
por parte da iniciativa privada. Além disso, seria imprescindível traçar estratégias de
revitalização do rio em toda a sua extensão, tendo em vista todos os fatores que levantamos,
com maior ênfase na questão do equilíbrio ecológico, pois sem ele não há sustentabilidade
ambiental e, nem tampouco, sustentabilidade turística. Sob esse aspecto, sem tratar a questão
relacionados ao setor, por isso mesmo deve alertar ou sugerir possíveis soluções na tomada de
decisões daquilo que precisa ser potencializado ou reconfigurado em uma destinação turística.
ao produto que se deseja oferecer aos visitantes, fazendo com que os mesmos levem a melhor
natural pode contribuir e muito para impedir que, no futuro, toda essa riqueza ambiental do
socioespacial das comunidades receptoras, mas somente quando esse é gestado com base nos
VI
quase cem quilômetros de praias exuberantes, o município conta com inúmeros atrativos
naturais, cuja paisagem, de grande beleza cênica, é constituída de restingas, recifes, ilhas,
baías e manguezais, além dos remanescentes da Mata atlântica como suas fazendas
centenárias de cacau, tendo ainda como vantagem as facilidades de acesso a esses recursos, o
que demonstra que, no âmbito paisagístico, existe um grande potencial turístico a ser
explorado. Entretanto, o mesmo não pode ser dito em relação ao equilíbrio ecológico desses
recursos naturais, considerando-se que a qualidade das águas, das quais dependem esses
interfere sobremaneira, na sustentabilidade ambiental de Ilhéus, uma vez que põe em risco as
sustentabilidade ambiental são flagrantes, não obstante o conhecimento comum de que a falta
de cuidados com o meio ambiente (natural e cultural) ocasiona desequilíbrios ecológicos que,
segmento, mas, interferem, principalmente, nas condições gerais de vida de seus habitantes.
Por outro lado, assim como o rio Cachoeira, há indícios de que os outros rios (Almada,
em grandes-lixeiras, pelas mesmas razões mencionadas. A obviedade desses fatos, por si só,
já isenta qualquer dúvida a respeito da poluição de pelo menos uma grande parte das praias
ilheenses. Isto, sem contar com os esgotos que escoam livre e diretamente nas praias, como é
o caso da Praia dos Marcianos, do Pontal, da Avenida, das Praias do Sul, principalmente.
IX
No caso específico do rio Cachoeira, foi verificado que as suas condições atuais de
básico e falta de remoção de lixo ao longo de toda a bacia do rio Cachoeira foi constatada
como problemas graves e sem perspectivas imediatas de solução. Além desses fatores, o
Conforme foi constatado, o fato de o rio Cachoeira receber, ao longo de toda a bacia,
esgotos e toda a forma de detritos orgânicos e inorgânicos, alterou a sua função principal
grande parcela da população que vive em seu entorno. Como mais um agravante, a indigência
Ilhéus. E aqui cabe uma observação que apesar de óbvia, se faz necessária: turismo não
lavadeiras. Assim, além de favorecer para um desequilíbrio social muito grande, o estado de
populações ribeirinhas, devido ao seu maior contato com o rio e consumo de peixes
ciliares, aliados à grande quantidade de lixo depositado em suas margens, são constatações
soluções, ou pelo menos a tentativa delas, não podem mais ser adiadas.
intensificada nos últimos dez, quinze anos -, e este processo é decorrente das ações antrópicas
X
resolução desses problemas não seja tão simples, a conscientização dessa grave situação e a
poluição do rio Cachoeira vem aumentando consideravelmente ao longo dos anos, conforme o
crescimento populacional das cidades que compõem a bacia, uma vez que implica numa
maior produção de dejetos e de águas residuais. Como o saneamento básico não tem
grande cuja tendência é aumentar sempre, tornando a situação cada vez mais insustentável.
como em Itabuna e em outras cidades circunvizinhas (aliás, esta é uma realidade geral na
areia, bem como aos alimentos servidos, em geral mariscos (com grandes chances de estarem
turistas.
cada grupo humano, de cada grupo social, pára que seja possível re-orientar o indivíduo
ecologicamente.
impõem a questão: até quando um ambiente natural, de beleza tão exuberante como o litoral
ilheense, resistirá a toda essa carga de detritos despejados em suas águas? A análise das
imagens paradisíacas, divulgadas pela mídia, ratificaram tal questionamento que trazemos
para essas reflexões conclusivas: quantos desses locais podem estar condenados a não mais
existirem daqui a dez, quinze anos, talvez? As imagens retratam espaços aparentemente
perfeitos para o chamado turismo de natureza, ou ecoturismo como preferem alguns. Locais
que só de olhar é um refrigério para alma, para revigorar as energias desfeitas, ou ainda para
instala: como usufruir deste paraíso, sem, no entanto, correr o risco de contaminação? Afinal,
quais são os limites de segurança que a saúde pública de uma destinação que, a exemplo de
Ilhéus, pretende apostar no turismo como uma atividade de soerguimento econômico sem, no
É certo que a situação ainda não é irreversível; mas o que os resultados da pesquisa
apontam é que se logo não forem tomadas medidas enérgicas, que atentem para a preservação
dos recursos naturais dos quais estamos tratando, essas previsões poderão vir a se confirmar.
Uma prova incontestável disso é que, pelo menos há uns vinte anos atrás, o rio Cachoeira não
Desse modo, é evidente que o problema de degradação e poluição das águas do rio
que precisa ser efetivado em todos os níveis sociais com base em princípios ecosóficos. Nesse
sentido, entendemos que o turismo pode contribuir para motivar a preservação tanto da
natureza como da cultura local, já que se trata de instâncias que são indissociáveis.
XIII
6. REFERÊNCIAS
Bibliográficas
AGUIAR FILHO, Adonias. Sul da Bahia: Chão de Cacau. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 1976. 113 p.
BARBOSA, Carlos Alberto Arléo e CONCEIÇÃO, Horizontina. Ilhéus. Ilhéus: EGBA, 1997.
84 p.
BARROS, Francisco Borges de. Memória sobre o município de Ilhéus. Typ. Baiana de
Cinncinnato Melchiase, 1915. 156 p.
BARROS, Sílvio Magalhães. Turismo, sociedade, meio ambiente e ecoturismo. In: LAGE,
Beatriz H. G. e MILONE, Paulo César (Org.) Turismo: teoria e prática. São Paulo: Atlas,
2000. pp. 85-93
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad: Myriam Ávila, Eliana Reis, Gláucia
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 394 p.
BORGES, Jorge Luis. Arte Poética. In: VERNIERI, Susana. O Capibaribe de João Cabral
em “O Cão sem plumas” e o “O Rio: duas águas?”. São Paulo: Annablume, 1999. p. 37.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 528 p.
CAMINHA, Pero Vaz de. A carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o
Achamento do Brasil. In: SIMÕES, Henrique Campos. As Cartas do Brasil. Ilhéus: Editus,
1999. pp. 47-111.
CAMPOS, Silva. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de Janeiro: conselho
Federal de Cultura, 1981. 536 p.
COOPER, Chris et al. Turismo: princípios e prática. Trad. Roberto Cataldo Costa. 2.ed.
Porto Alegre: Bookman, 2003. 559 p.
CRUZ, Anísio J.S. A flor do cacau. In: A cabeça d’água: contos. Ilhéus: Editus, 2001. pp.
13-50.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo: Entrevista a Maria Serena Palieri. Trad. Léa
Manzi, Rio de Janeiro: Sextante, 2000. p. 133-158
DORST, Jean. Antes que a natureza morra: por uma ecologia política. Trad. Rita
Buongermino. São Paulo, Edgard Blucher, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973. 395 p.
EUCLIDES NETO. Dicionareco das roças de cacau e arredores. Ilhéus: Editus, 1997, 128
p.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel
Moreira. São Paulo/Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001. p. 432.
GOMES, Maria Laura de Oliveira. Gestão das águas em Itabuna: a visão do poder público
e da sociedade. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) –
Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2003
GUATTARI, Felix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. Campinas: Papirus,
2001. 56p.
XVI
JOBIM, José Luís. Formas da teoria: sentidos, conceitos, políticas e campos de força nos
estudos literários. Rio de Janeiro: Caetés, 2002, 225 p.
JOLLES, André. Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável,
conto, chiste. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. 222 p.
MATOS, Cyro de. O mar na Rua Chile e outras crônicas. Ilhéus: Editus, 1999. 170 p.
______. Vinte poemas do rio. Ed. bilíngüe. Trad. De Manuel de Portela. Ilhéus: Editus,
2001. 86p.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Os “usos culturais” da cultura. Contribuição para uma
abordagem crítica das práticas e políticas culturais. In: YÁZIGI, E., CARLOS, A. F. A. E
CRUZ, R. C. (Org.). Turismo: espaço, paisagem e cultura. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
p. 88-99
MOESCH. Marutschka. A produção do saber turístico. São Paulo: Contexto, 2000. 140 p.
MOUSTAKI, Georges. As vozes do mar. In: Correio da Unesco. Ano 19 no 10/11. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1991. pp. 26-27.
OLIVEIRA, Heloísa Gama de. Construindo com a paisagem: um projeto para a serra do cipó.
In: MURTA, Stela Maris e ALBANO, Celina (org.). Interpretar o Patrimônio: um
exercício do olhar. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2002. pp. 225-239.
PAES, José Paulo. Iararana ou Modernismo visto do quintal. In: Iararana. São Paulo:
Cultrix, 1959, p. 3-19.
PELEGRINI FILHO, Américo. Ecologia, cultura e turismo. 2 ed. Campinas: Papirus, 1997,
190 p.
PINHO, Acácia. Estudo da qualidade das águas do Rio Cachoeira - Região Sul da Bahia.
2001. 110 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) –
Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2001.
RAVETTI, Graciela. Performances autoficcionais. Margens. Belo Horizonte/ Mar Del Plata;
(Caderno de Cultura), n. 1, pp. 10-11, mai. 2001.
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca. Escrituras da voz e memória do texto: abordagens atuais
da literatura popular brasileira. In: BERND, Zilá e MIGOZZI, Jacques. (orgs.). Fronteiras do
literário: literatura oral e popular Brasil/França. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1995. 143 p.
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino americano. In: Uma literatura nos
trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978. 212 p.
XVIII
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983.
110p.
SILVA, Minelvino Francisco. A mulher de sete metros que apareceu em Itabuna. In: BAHIA.
Secretaria da Cultura e Turismo. Coordenação de Cultura. Antologia Baiana de literatura de
cordel. Salvador: A Secretaria, 1997. pp. 53-56.
SILVEIRA, Adelindo Kfoury. Itabuna, minha terra. 2a ed. Itabuna: O Autor, 2002. 294 p.
SOUZA, Marcelo José Lopes de. Como pode o turismo contribuir para o desenvolvimento
local? In: RODRIGUES, Adyr Balastreri (Org.).Turismo e desenvolvimento local. 2 ed. São
Paulo: Hucitec, 1999. p. 17-22
VINHÁES, José Carlos. São Jorge dos Ilhéus: da capitania ao fim do século. Ilhéus:
Editus, 2001. 353, p.
WARNIER. Jean-Pierre. A art Zen contra Titanic. In: A Mundialização da Cultura. Trad.
Luís Felipe Sarmento. Lisboa: Notícias, 2000. p. 9 – 21.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. A “literatura” medieval. Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993. 324 p.
______. Performance, Recepção, Leitura. Trad. e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.
137 p.
Eletrônicas
CALASANS, N. É muito esgoto pra pouca água. Jornal a Região. Disponível em:
< http://www2.uol.com.br/aregiao/entrev/e-naylor.htm > Acesso em 7 de fev. de 2004
CONFAGRI. Disponível em:
< http://www.confagri.pt/Ambiente/Glossario/> Acesso em 15 de mai de 2005
ECOSFERA Poluição das águas e atmosférica: Itália declara estado de emergência ambiental em Veneza, 2001.
Disponível em:
< http://ecosfera.publico.pt/noticias/noticia332.asp > Acesso em: 15 de mai de 2005
EMASA
< http://www.emasa.com.br > Acesso em 22 de out. de 2004
Eichhornia crassipes sobre a zona costeira da Região Sul da Bahia, 2004. Disponível em:
< http://coastalzone.net/pdf/GCI_Fidelman_2004.pd > Acesso em 23 de mai. de 2005
JARDIM-LIMA, DAYSON. Lista vermelha dos rios poluídos - etapa 1 - consulta popular
nacional, 2003. Disponível em:
< http://www.jornaldomeioambiente.com.br/index_noticias> Acesso em 3 de jun. 2005
MACRÓFITAS AQUÁTICAS. Disponível em:
< http://www.ambientebrasil.com.br/ agua/doce/artigos/macrofitas.html > Acesso em 3 de
jun. 2005
APÊNDICE
XXIII
ROTEIRO ENTREVISTA
1. Sexo ( )M ( )F
3. End. _______________________________________________
5. Escolaridade. Qual a última série que o (a) senhor (a) concluiu? ______________
16. Alguém da sua família possuía ou possui o hábito de contar causos acontecidos aqui
nesse local?
13. Como antigamente: saudio, que a gente tomava banho, bebia a água. No rio dos anos 70
sentia prazer, tinha muitos ingazeiros em suas margens. - saudosismo
14.As pessoas correm muito perigo de doença: febre, gripe muita, muitas ostras que oferecem
perigo de se cortar com as ostras.
15. Nos anos 60 uma mulher foi tomar banho e o cabelo dela saiu com um nó que precisou
cortar o cabelo. Foi porque ela xingou muito a mãe... No rio tem uma Pedra de Guerra
[lajedão] que vai até o Iguape.
17. Aos 8 anos viu o diabo porque tinha xingado muito. Estava dormindo e acordou
assustado. De tanto medo, nunca mais xingou; aos 10 viu assombração: o lobisomem. Tinha o
costume de levantar de madrugada e sair de casa, perambulando pela rua. Naquele tempo a
luz do bairro só ficava acesa até as 10:00 da noite. Quando viu, correu ligeiro e ficou
assombrado. Era um bichão preto, de uns quatro metros, grande como um homem. ?Vi
somente uma vez. Nunca mais saí de casa tarde da noite. Pai e mãe falavam que tinha
lobisomem. Que na quaresma o bicho era um homem que só saía no escuro, que ele corria 7
léguas, tirava a roupa, se espojava no lugar de outros animais e virava bicho. Saía correndo
pelas sete encruzilhadas para no tempo certo desvirar, serão ele ficava lobisomem para
sempre.
XXV
Informações adicionais: “Antigamente o rio era estreito e fundo. De 1967 para cá,
depois da enchente – era ingazeira de um lado e do outro. Aos poucos, as areias e as
ingazeiras foram acabando
XXVI
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
A enchente de 67 inundou totalmente o Banco. Alagou totalmente a estrada. Foi quando o rio
enlargueceu, ficando mais raso.
Pedra de guerra – lajedo enorme- Marinha proibiu de detonar
XXVII
HISTÓRIA DE VIDA
Filho de pescadora (D. Enedina – 92 anos). Quando criança a mãe levava os oito filhos para
pescar. O pai era tropeiro, por isso a mãe pescava para sustentar a casa. Pescavam de jereré e
de tarrafa de tucum tingida com murta, depois vendiam camarão no bairro. Quando estavam
maiores vendiam na pista (Br 415). Continua pescando no Rio Cachoeira.
Foi para S. Paulo como “mecânico de fogão”. Vive até hoje assim. Tem seis filhos e pesca
para sobreviver desde os nove anos. No verão o rio vira lama e produz muitos micróbios, dá
urubu. Ficou enfermo de cólera e acha que foi da água suja do rio. Quando criança, o rio era o
banheiro.
FATOS CURIOSOS
Na década de 70 praticavam tourada na antiga praça da feira. [indícios de portugueses ou
espanhóis]
Antigamente o Banco tinha um gerador que funcionava até as dez da noite. Quando eram dados dois
sinais antes de desligar pra valer, todo o mundo corria para casa, pois na encruzilhada apareciam
muitas visagens. Depois que o Seu Lindote, fiscal do posto, morreu, aparecia alguém no rio e
desaparecia logo depois. Alfredo é testemunha disso.
Um certo dia saímos, eu e Alfredo, de uma maré vazante e a lua tava clara e nós vimos uma
canoa enorme no meio do rio. Era a canoa de Seu Alagoano que tirava areia do fundo do rio.
Vimos a canoa solta no rio. – Vamos pegar aquela pra nós ganhar um dinheiro? Disse pro
Alfredo. Nós pelejamos pra pegar a canoa, mas a agente nunca que conseguia pegar. Eu
remava naquela direção e quando a gente tava chegando pertinho a canoa sumia. A canoa
ficava invisível.
O finado Vavá, pai de Alfredo, xingava muito. Ele era ferreiro. Ele usava um fole pra fazer as
peças dele. Ele tinha o costume de toda às seis horas ir tomar banho no rio e ficar esquentando
na Pedra de Guerra (uma laje de mais de 30 metros). Às 6:40, mais ou menos, estava tudo
escuro e apareceu pra ele a imagem de um homem dentro d’água. Ele tinha mais de dois
metros. Tava nu. Mas a gente só via da cintura pra cima. O homem tava assim parado com os
braços encruzados. Pergunta a Zé Evanildo e Jatobá que também conhece esse caso. Todo
mundo viu. Lourinho [o valentão do lugar] pegou o facão e foi atrás do tal homem e não
encontrou nada. Quando chegou lá não tinha mais ninguém. Olha, eu sou evangélico e não
posso contar uma coisa negativa. Eu tenho que contar o testemunho que eu vi.
No rio também já apareceu o Nego d’água na Pedra de Guerra e na Laje das Freiras. Foi visto
duas vezes. Ele é um anão, escurinho e forte, careca e tem a cabeça redondinha. Tem mais de
vinte anos que eu vi. Quando você chega perto dele ele cai n’água espalhando muita água.
Quer dizer que ele tem volume, né? Essas coisas a gente via era com a lua clara.
Aparece também muito pau que range, parecendo a Caipora. Muitas vezes deixei de entregar
a comida de meu pai, que trabalhava na roça. E ele ficava lá com fome. Tudo isso por causa
do medo da Caipora.
Essa história de se perder na mata por causa da Caipora´-, eu porque é que acontece. Não sabe
menino, quando tá caçando passarinho? Pois ele se perde porque enche os bolsos de pedra e
sai com o badoque atrás dos passarinhos. Quando vai ver, já tá perdido no mato e depois fica
dizendo que foi a Caipora. Caipora, meu pai nunca contou pra nós. Mas meu pai já se perdeu
na mata.
XXVIII
Depois que Deus me deu o discernimento da escritura e uma pessoa de Ciência disse que a
gente era da geração do macacão, eu peguei a Bíblia para mostrar para ele que a gente não é
da geração de macaco.
Fomos criados no rio e vimos muita coisa por aqui... Tinha o areão. Areia que sumiu. Não
tivemos draga...
“Mas tivemos a draga humana. Eu mesmo já tirei muita areia” – Afirmou S. Pedro [impacto
das ações humanas]
NADO – Não quis se identificar. Um rapaz de aparentemente uns 33 anos de idade contou um
episódio sobre a Mulher de Sete Metros (mito criado pelo poeta Minelvino e que incutia medo
nas crianças...)
Quando eu era menino, na base de uns 13 anos, eu tava na rua com outros meninos
conversando. E uma pessoa contou o caso da Mulher de Sete Metros que aparecia na estrada
pra pegar a gente. Quando deu o primeiro sinal que a luz ia apagar, todo o mundo saiu na
carreira pra casa. Quando eu tava voltando, que eu fui atravessar a rodagem, vi uma figura
enorme também atravessando. Saí correndo disparado pensando que era a MSM. Cheguei em
casa gritando: “me acode que a MSM quer me pegar!!” No outro dia, fui ver que era o primo
de um morador daqui que tinha chegado. Ele era muito alto e cabeludo.
1. 10/06/1945 - 59 anos
2. R. da União, Sítio Beira Rio, Km 8, Banco da Vitória.
3. 2o ano primário.
4. Pescador por mais de 29 anos e continua pescando. A renda não é fixa, atualmente a
situação é bastante ruim, pois não há peixes.
5. Vive no Banco desde que nasceu. Veio para o sítio em 1969
6. Vantagens de morar no lugar - O melhor lugar que existe devido o contato com o rio;
conhece toda a região vendendo mariscos.
7. Cotidiano - É pescar. “Amanheceu o dia e eu não fui nas águas, fico desassossegado”.
8. Vive sossegado – vive só; sente que as pessoas não sã solidárias.
9. Não sai, bota o manzuá [armadilha] para pegar os peixes – coloca à tarde e tira pela
manhã;
XXIX
10. “O valor que o rio tem é igual a de uma roça que produz, valor maior que uma roça. É
natureza. Não botemos nada e lá a gente só faz colher. É uma obra de Deus que nos
serve para alimentar” – Criou toda a família, 8 filhos e dezesseis pessoas ao todo. “ O
rio é fonte de vida. E das melhores. Há muitos anos ele mais limpo, agora está
maltratado. Adoeci no rio por mode de resfriado.” - “Trabalhei em firma mas o salário
não dá. Hoje o rio ta fraco mas a gente arruma despesa”
11. Sente-se um pouco mal, mas não tem jeito a dar. “ Temos o IBAMA, mas não adianta
nada. O rio não tem trato nem pela prefeitura, nem pelo estado. [O que deve ser
evitado?] Os esgotos é o que há de mais grave. É preciso dar o tratamento básico no
rio. Quando as autoridades limparem a cabeça dório, ter mais higiene... a sujeira vem
toda para o Banco. [E apesar disso ainda pesca, com toda a sujeira que vem do lixo e
do matadouro; Fez denúncia no rádio de um curtume que jogava toda a sujeira no rio.
12. “Há 12,15 anos atrás eu pegava 15/20 kg de pitu por noite. Hoje não pego nem 300 g.
Nós não tem mais pitu aqui. Nem tem mais fartura de peixe.Já peguei 100 kg de peixe,
hoje não pego mais nada.táficando muito difícil. A multidão é muita de pescadores.
Muita gente com a situação ruim que corre para o rio”
13. Peixes ainda encontrados: tucumaré, pilape
14. A água desbota. Fica escura, verde, barrenta na cheia. Enverdece por causa do limo
nas pedras.
15. “Gostaria de ver ele com água. O rio seco é tristeza para nós. Com água o rio fica mais
limpo. O rio cheio não se pode facilitar. Quem não tem costume pega febre.”
16. “Os mais velhos sempre contavam que existia o biatatá quando eu tinha uns 14 anos.
O problema do biatatá era o compadre e a comadre pecarem. Quando eles morrem
viram o biatatá e ficam batendo facho. Numa moita de bambu eu vi, junto com a
minha tia, por volta das 7:30, 8:00 da noite uma coisa facheando. Quando subiu na
moita eram duas tochas de fogo. Minha tia dizia que via sempre.”
“Contam que pessoas (que já morreram) do Banco ficam em cima das pedras. Eu
mesmo já amanheci o dia, mas nunca vi nada... Umas 20 pessoas que morreu. Hoje
não aparece mais, porque antigamente era mais... as visagens apareciam. As pessoas
ficavam penando...Hoje, a devassidão tá demais. Ninguém tem mais o poder de ver
mais nada porque ninguém cumpre mais nada. Essas coisas com certeza existe.
Quando não existe a gente vendo, tem no sonho. Já vi contar que quando uma pessoa
mata o outro, aí nas encruzilhadas vira as pantomimas da pessoa. Quando a gente vê,
a gente sente um arrepio. Muita gente contava de pessoas que morria afogado ali no
poço da Pirataquissê,” aparecia muitas visagens.”
“Por causa do Nego d’água eu saí uma vez correndo assustado. Sempre ouvi falar do
Nego d’água. Aconteceu que um dia eu tava pescando e a rede enganchou na pedra.
Aí, eu mergulhei. Quando eu tava lá embaixo eu me lembrei do Nego e saí na carreira.
Minha mulher falou: Ôxe! Já voltou da pescaria?!! É... Não tinha peixe... Quando a
gente é jovem, até o barulho de pau rangendo assusta nós. De dia, tudo bem, todo
mundo tem coragem de olhar o que é, mas de noite...!!!”
“Quando o rio enche, dificilmente num morre uma pessoa. Aqui o povo acredita que
quando tem enchente, enquanto o rio não leva uma pessoa, ele não pára de encher. Isso
é uma realidade”
XXX
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
8. “O Rio hoje tá muito mudado. Naquele tempo era um rio bom. Tinha muito peixe.
Hoje tá escasso pra pessoa ganhar o pão. Água fedendo, as pessoas adoece, muita
poluição, muito esgoto sendo despejado... isso entristece. Antigamente todo
mundo ia lavar roupa no rio. Ficou perigoso por causa da sujeira e dos malandro.”
9. A relação com o rio é de subsistência. Quando era mais moça costumava ir de
canoa para Ilhéus, costumava fachear também, mas nunca viu nada estranho no
rio.
10. Tainha, robalo, carapeba, camarão. Hoje não tem mais em quantidade. A CEPLAC
11. “Limpo como era, onde todo mundo, as famílias iam e ficavam na beira do rio” –
RIO-RECREAÇÃO
12. “Meu tio contava que via umas coisas quando ia pescar. Diz que quando jogava a
tarrafa, outra logo aparecia. Aparecia também vultos de canoa... era as visagens”.
13. “Eu nunca vi nada!
14. Não há mais como mudar o rio. O esgoto cai no rio. [visão pessimista/ ausência de
esperança]
que tem um brilho à noite, chama patioba. Quando o venço balança parece uma pessoa
de branco vagando.
Meu pai, o maior mentiroso do mundo. Quando eu tinha uns 17 anos ele dizia que lá
em frente à (fazenda) Cordilheira, bem na beira da estrada, aparecia uns vultos vagando por
ali. Dizia que tinha um padeiro que ia e vinha com um cesto cheio de pão. Quando ele dizia
que queria pão o padeiro nunca atendia e sumia tudo.
Uma noite, eu tava pescando ali por perto, quando eu jogava a tarrafa, fazia um
barulho assim: toc-toc. E cada vez mais ia aumentando o toc-toc. Eu já tava invocado,
pois era bem enfrente ao cemitério. Parei assustado! Quando tô assim parado, vi foi
uma latinha que batia na pedra. Sabe o que acontecia? Quanto mais eu chegava junto,
mais a latinha batia na pedra. O que é a imaginação, né? E eu pensando que era alma
penada. Muita coisa acontece na beira do rio...
Dez dias após a enchente eu joguei a tarrafa em um canto e a dita enganchou e desci
cabreiro. Tive a impressão que tinha pisado na cabeça de uma pessoa, pois tinha uns
cabelos se mexendo. Fiquei sem ânimo durante uns cinco minutos. O coração
disparou! Quando fui olhar... era um coco verde cheio de cabelo de tanto que ele ficou
na água. Foi tudo susto. Nada foi real. Naquela época o rio era limpo, não rinha limo,
não tinha essa goga que tem hoje.