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MARAJÓ

MARAJÓ
expedição a Ilha do Marajó
organização
ana clara marin

colaboração
luisa carrrasco

orientação
luis o. de faria e silva

148 x 210 mm
tiragem 500

mapa capa
pedro norberto
giulia ribeiro
MARAJÓ
expedição a Ilha do Marajó

workshop Arquiteturas Anfíbias


explorações e olhares através da arquitetura
para annabel
“Há um arquipélago do marajó imaginário dentro de todos
que, como eu, nasceram em um ambiente urbano”. Tunico
Quando eu era criança tive meu primeiro contato
com a Ilha de Marajó e o município de Chaves. Um
lugar isolado dos centros urbanos com localização
geográfica muito especial. É encravado na contra costa
da Ilha de Marajó, mais exatamente no encontro de dois
poderosos: o rio Amazonas e o oceano Atlântico.

Meu pai nasceu no Marajó e, por esse motivo, minha vivência


na ilha sempre foi intensa, me fazendo absorver muitos
hábitos dessa cultura, que ainda hoje, é essencialmente
regida pela natureza. Eles ainda pescam e caçam para
comer, escrevem cartas para se comunicar, acendem
velas para os santos, dormem e acordam no horário
determinado pelo cair da noite e nascer do sol.

O prazer de fotografar intensificou ainda mais essa relação,


me fazendo compreender quão essencial é o fazer coletivo
para a sobrevivência humana pois, ainda que a ilha
possua vasta área territorial, predominam os latifúndios
com atividade pecuarista, ocasionando baixa densidade
demográfica e, consequentemente, o isolamento entre as
comunidades marajoaras, sendo raros os investimentos
na agricultura familiar. Esses fatores ocasionam a escassez
de alimentos e tornam a atividade extrativista a principal
fonte de alimento e renda da maior parte da população.

Considerando que tal atividade sofre forte influência sazonal,


é possível compreender que em períodos de estiagem, ou
durante as grandes cheias – época em que os peixes se
refugiam nos campos marajoaras para se reproduzirem –,
que compreendem cerca de seis meses do ano, a dificuldade
de obter alimentos é ainda maior, sendo esses os momentos
de maior necessidade de integração coletiva entre as
pessoas que lá vivem. É comum após o retorno do “mato”,
com a caça em mãos, o pai de família dividir o alimento
rio Amazonas / foto: antônio pedro
excedente entre seus vizinhos, pois até a capacidade de
armazenamento de gêneros alimentícios, é comprometida
em função de, pelo menos no município de Chaves, a maior
parte da população não ter acesso a energia elétrica. Também,
por essa razão, é alto o consumo de produtos enlatados
e afins, que, com passar dos anos, tem elevado o número
de pessoas com doenças como diabetes e hipertensão.

A partir da constatação dessa realidade, surge o desejo


de promover ações no campo da cultura, educação e
meio ambiente, capazes de auxiliar no desenvolvimento
sócio-econômico do município, fazendo surgir a ONG
Cururuar Fluvilab, que busca mediar a interação entre
instituições como a Escola da Cidade, a Prefeitura Municipal
de Chaves e as comunidades ribeirinhas do Marajó,
em processos que ocasionem a melhoria da qualidade
de vida das pessoas que habitam o arquipélago.
O Arquiteturas Anfíbias se configura como uma das primeiras
investidas dessa relação, uma espécie de expedição, onde nos
empenhamos na promoção da troca entre o saber acadêmico
e o saber tradicional marajoara. Essa experiência propiciou aos
expedicionários da Escola da Cidade vivenciarem uma realidade
bastante adversa não que estão habituados na cidade de São
Paulo. Navegar na contra costa do Marajó, na maioria das vezes,
exige coragem e preparo físico para suportar o vertiginoso agito
das águas do rio Amazonas próximo ao seu encontro com o mar.

A pacatez das localidades ribeirinhas do Marajó nem de


longe lembra o alvoroço da grande São Paulo. Por outro
lado, foi justamente o domínio da natureza no fluir temporal,
que provocou encantamento no olhar entusiasmado
dos viajantes. Esse entusiasmo passou a ser refletido
nos olhos de cada marajoara que participou da vivência,
lançando luz na forma de ver a si e seu próprio lugar. rio Amazonas / foto: antônio pedro
É importante observar que, por diversas vezes, pessoas
que habitam lugares demasiadamente isolados, costumam
sentir abandono e descaso, por parte do poder público e da
sociedade como um todo. Na maioria dos casos, essa sensação
acaba gerando a deturpação de valores mediante sua própria
cultura e seu modo de vida. Cria-se a concepção de que o
bem-estar reside no concreto armado das construções, nas
camadas de asfalto das vias urbanas, nos medicamentos das
drogarias, etc... A experiência vivida durante o Arquiteturas
Anfíbias gerou inúmeras reflexões que permitiram aos
participantes questionarem esse pensamento e a ressignificá-
lo, constituindo valor aos recursos locais, bem como, ao
conhecimento gerado pela própria natureza, que esculpe
de forma laboriosa o terreno da ilha. A partir de então,
pensando sempre em conjunto, foram projetadas diversas
soluções viáveis sobre a construção de aparelhos públicos,
enriquecidos pelo uso inteligente dos recursos naturais da
região. O resultado apresentado na sede da prefeitura de
Chaves, aos gestores e membros da câmara de vereadores
do município, foi uma gama de projetos de estruturação
do núcleo central de Chaves, com base na realidade local e
respeito ao fluxo da natureza, que denotam quão preciosa
pode ser a união entre academia e administração pública.

Após o período de vivência no Marajó, o Arquiteturas


Anfíbias nos deixa o sentimento de que o encontro da
boa vontade política, com a curiosidade científica e
uma boa pitada de sonhos, é suficiente para realizar
políticas públicas humanizadoras, capazes de atuar de
forma eficaz e significativa na vida das pessoas.

Obrigada a Escola da Cidade, a Prefeitura Municipal


de Chaves e a todos os que contribuíram na
realização desse processo. Betânia Barbosa rio Amazonas / foto: annabel melo
workshop arquiteturas anfíbias alline nunes giulio michelino
espaço da cultura no Marajó/PA ana clara marin josé guilherme cury
annabel melo ju castro
julho/2018 annick matalon luis de faria e silva
antonio faria luisa carrasco
antônio valério (tunico) manoela ambrosio
antônio pedro marina keiko
betânia barbosa paulo von poser
domenico potenza pedro martins
eduardo amaral rita buoro
giovana tak victor minghini
participantes da viagem
skyline e horizonte de chaves / paulo von poser
16.07 chegada macapá
17.07 fortaleza de são josé
macapá - afuá
18.07 afuá
prainha de madeira
19.07 sumaúma
afuá - chaves
20.07 chaves
conhecendo a cidade
21.07 desenho coletivo orla
ave marela
22.07 tentativa de ir para arapixi
(não foi possível por causa da maré morta
_maré mais baixa que o de costume)
23.07 viagem de um dia inteiro de chaves para arapixi
24.07 arapixi
volta guiada pela vila
25.07 arapixi - chaves
produção projetual_escola pública
apresentação no palácio municipal_prefeito
chaves - afuá
26.07 afuá
festival do camarão
afuá - macapá
27.07 macapá
marco zero
macapá - são paulo
A jornada ao Marajó começou como um gigante mistério. Nós,
estudantes, tão acostumados a procurar e visitar as grandes
obras arquitetônicas, nos vimos subitamente sem referências.
Na verdade, eu acredito que mesmo os professores tinham
em si essa ansiedade pelo desconhecido. A viagem, afinal,
se deu pela intensa curiosidade sobre a cultura e ambiente
que encontrávamos, pela investigação calorosa de espaços
familiares, públicos e naturais.
Ao contrários das viagens itinerárias que todos nós havíamos
realizados junto à Escola, essa se diferenciou pela compreensão
da cultura pela vivência, e então, depois de imersos nesse
ambiente, observar sua arquitetura.
A cultura no marajó deve e vem em primeiro
plano, e as grandes obras arquitetônicas são as que
paulo von poser necessariamente gritam essa cultura. Luisa Carrasco
Em julho de 2018, o workshop Arquiteturas Assim, tivemos a oportunidade de observar a
Anfíbias foi realizado por meio de uma arquitetura e a maneira de lidar com a paisagem nas
viagem à ilha do Marajó, no Pará. bordas das águas do caudaloso rio Amazonas, com
sua diversidade de ecossistemas - contradizendo
A proposta da viagem foi a de um reconhecimento de
aquilo que se fala do bioma amazônico, por muito
possibilidades de projeto no estuário do rio Amazonas,
tempo equivocadamente apresentado como
sobretudo no que diz respeito aos seus espaços de
homogêneo e vazio. Luis de Faria e Silva
Cultura, numa compreensão abrangente desta.

orla de chaves / pedro martins


rio arapixi / antônio pedro
A viagem foi uma ação combinada da Plataforma No âmbito de um acordo que une a capacidade
habita-cidade e curso de Pós-graduação Habitação de avançar com pesquisas e desenvolver
e Cidade, da Associação Escola da Cidade, saberes associados à transformação antrópica
junto com a Prefeitura Municipal de Chaves, no da paisagem, este bioma que representa um
Marajó, PA representando uma consolidação da grande desafio para a perspectiva de um projeto
aproximação entre as instituições envolvidas. humano brasileiro pode deixar para trás a
série de equívocos a que se tem submetido
nos últimos tempos a maior extensão tropical
florestada do planeta. homogêneo e vazio. L.F.S
prefeito Bira / paulo von poser
amapá - AM

ilha do marajó
belém - PA

google earth / 2015


área da visita_norte da ilha / paulo von poser
caminho percorrido
macapá afuá chaves arapixi

alline nunes luisa carrasco paulo von poser alline nunes


google earth / 2018
M AC A PÁ
capital do Amapá
493 mil habitantes
62,14 hab/km ²
macapá, primeiro destino da viagem, funcionou
como um ponto de encontro, tanto dos integrantes
do grupo, como deste com a cultura nortista
é a única capital estadual brasileira que não possui interligação
por rodovia a outras capitais. acho que isso já diz o bastante.
Macapá. A orla de Macapá é produto da experimentação Próximo à margem, onde a cidade foi fundada, situa-
do “homem moderno” frente à força do rio Amazonas. se o Forte de São José de Macapá, que sediou por
Na procura de algo que contivesse aquele volume de anos a base militar da região. Para além da simetria e
água, toda a margem foi reconstruída, e em grande construções de estilo colonial, o forte foi o início de
parte pavimentada, tornando a várzea de lama um uma reflexão sobre o intenso sistema de exploração
espaço separado da cidade por pequenos muros, e da região do Amazonas. Luis de Faria e Silva
atrás desses, Macapá abriga locais de convivência.

forte de são josé de macapá / annabel melo


rio Arapixi
foto: antonio pedro

orla de macapá / rita buoro


Navegações. A navegação de Macapá em direção a Afuá
durou um belo pôr do sol e sua madrugada seguinte.
Havia uma ansiedade coletiva sobre o que seria estar
naquele mar sem fim que é o Rio Amazonas e, pouco
depois da partida, já nos encontrávamos no meio de
um horizonte infinito que nos abraçava por todos os
lados, onde o rio e a mata encontravam o céu.
Nas navegações, em uma profusão de redes
armadas umas praticamente sobre as outras, num
convívio intenso entre os participantes da vivência,
e também com os marinheiros (marítimos),
sobretudo estes sempre compartilhando visões
e memórias, deixando o estuário do Amazonas e
suas bordas povoarem as conversas e silêncios.

barco de linha / rita buoro

espaço do barco para lazer / rita buoro


redes armadas no barco / annabel melo
Momentos especiais foram vividos enquanto se
esperava a maré apropriada e com os movimentos
randômicos tanto da navegação como dos tripulantes
e marítimos, rápidos no fechar das lonas quando das
chuvas repentinas, surpreendentes no abri-las para a
estiagem súbita, misteriosos quando da abordagem de
pequenos barcos de onde vinham novos companheiros
de viagem e alguns víveres. Luis de Faria e Silva

orvalindo filhos, barco no qual viajamos pela ilha / annabel melo sr. manoel, marinheiro que nos acompanhou / alline nunes
parte de cima do barco usada para lazer / antônio pedro
desenho coletivo
AFUÁ
a nordeste do município de Chaves
38 mil habitantes
4,19 hab/km ²
google earth / 2001
podemos dizer que afuá está debruçada sobre as águas
Afuá. Afuá foi o primeiro município marajoara
que visitamos. Chegamos estáticos e ansiosos,
procurando absorver cada canto da paisagem.
Verde, amarela e vermelha, Afuá estava se
preparando para receber o grande festival
do camarão quando chegamos, colorindo
suas ruas. As construções em geral também
dispõe de muitas cores, combinando a paleta
das casas com as da floresta. A cidade de
passarelas de madeira que acorda com músicas
em seus auto-falantes nos recebeu de braços
abertos. Luisa Carrasco e Ana Clara Marin moradias / alline nunes

passarelas elevadas / alline nunes


passarelas menores conectam as casas a via / alline nunes
alline nunes

vão entre casas / ana clara marin alline nunes


um exemplo de casas coloridas comumente encontradas em afuá / ana clara marin
Relação com o rio. A cidade é extremamente próxima
do rio, se organizando por passarelas e espaços públicos
de madeira que contém o fluxo intenso de bicicletas, o
forte comércio de peixes e proporcionam deques que se
tornam praias de madeira onde se desfruta do sol e das
águas. Apesar do contato com a água ser basicamente
através desta praia de madeira (no qual permanece
seca durante as marés baixas) e de passarelas para
alcançar os barcos, a cidade não deixa de ter um vínculo
fortíssimo com a floresta. Em nossas caminhadas,
ouvimos histórias de plantas e óleos medicinais, caçadas
em família e tivemos contato com a intensa produção
de açaí em todos os cantos da cidade. Luisa Carrasco

orla de afuá / rita buoro


serrarias à beira rio / antônio pedro
paulo von poser
Vivência em Afuá. Chamou a atenção em Afuá o
desenho dos espaços públicos com plataformas em
madeira, bancos e estruturas de apoio. Há, na orla de
Afuá, uma rampa longa em madeira utilizada como
praia, comumente conhecida, inclusive, como “praia
de madeira”. Na cidade, circulam pedestres e bicicletas
nas vias em concreto armado e nas passarelas de
madeira - o uso de automóveis é proibido. (...)

meio de transporte / giovana tak

deque com quiosques / rita buoro pracinhas elevadas / ana clara marin
“praia de madeira” / rita buoro
“praia de madeira” / desenho coletivo
(...) Ouvimos relatos de algumas marés altas que cobrem
os caminhos e inundam as casas da vila e, o que poderia
ser visto como contratempo, começa a ser encarado
como oportunidade de explorar novos espaços públicos,
nos quais os habitantes passeiam pela vila inundada se
divertindo. A resiliência é encarada como forma de festa.

Ocasionalmente, algumas marés altíssimas, chamadas


“lançantes”, acabam por cobrir os caminhos em
Afuá quando, inclusive, inundam as casas da vila;
mas o que poderia ser visto como contratempo ou
problema é encarado como oportunidade ou momento
para se brincar – nessas situações, os habitantes
passeiam pela vila inundada, brincando com a água, e,
inclusive, em pequenas embarcações navegam nessa
condição excepcional. Revela-se, assim, resiliência
urbana na forma de festa. Luis de Faria e Silva

espaço de eventos “lagostão” / alline nunes


praças entre passarelas / rita buoro
raíz da árvore / alline nunes
Sumaúma. O maior contato do grupo com a Floresta
Amazônica foi em Afuá. Tomamos uma pequena
lancha para outro canto do município, que abrigava
somente algumas poucas casas e uma escola pública
abandonada. No final de uma trilha enlameada,
encontramos uma clareira que abrigava a Sumaúma,
ou a Muralha, como os locais a chamavam.

Foi ali, chegando na clareira, o momento mais


silencioso da viagem. É que não tinha o que falar.
A sumaúma parece, para nós presos nos prédios
paulistas, um milagre amazônico. Luisa Carrasco

altura da árvore / alline nunes grupo mostrando a escala da raíz da árvore


paulo von poser
Toda a enorme extensão da ilha do Marajó preserva
condições de escassa acessibilidade que protegem
seu equilíbrio natural original, exceto nas áreas
onde a presença de assentamentos humanos
recém-construídos é maior. Nestes territórios,
a simplicidade dos assentamentos tradicionais é
sobreposta pelas contradições de uma modernidade
agora completamente globalizada, que anulam a
harmonia dessas paisagens, até torná-la totalmente
desvinculada das próprias razões que a geraram.

base das casas feitas de concreto e revestida de azulejo / alline nunes


“Existem muitos ecossistemas que já são habitáveis ​​e
existem muitas civilizações que os utilizam: a própria
imagem do Jardim do Éden nada mais é do que um
ecossistema habitado sem esforço de adaptação. O
paraíso apresenta-se, na verdade, como uma imagem
de uma morada humana perfeita: aqui não é necessária
proteção climática e, portanto, nenhuma construção,
nenhum trabalho para produzir alimentos, não há
necessidade de defesa, sendo uma imagem que se
mantém com grande sucesso, dos jardins imperiais
do Oriente ao Club Mediterranée. Mas o Jardim do
muxarabi de madeira _ fechamento / alline nunes Éden é uma instituição frágil: basta introduzir um novo
construções de diferentes materialidades / rita buoro
conhecimento ou usar objetos existentes (por
exemplo, uma folha de figo) de uma nova maneira, e o
processo de deterioração começa. E é completamente
impossível prever uma expansão: no Jardim do Éden,
a explosão demográfica leva apenas à expulsão. O
Jardim do Éden é, portanto, um ecossistema habitável
antes do pecado original. Após a intervenção humana,
torna-se um ecossistema melhorado, mas esta
melhoria é, ao mesmo tempo, o primeiro estágio
de um processo de decadência. Não se melhora
um ecossistema (no que se refere à habitabilidade)
sem pagar um preço, o de acelerar o processo de
destruição de tal sistema”. Domenico Potenza

casa de concreto / ana clara marin depósito de madeiras a céu aberto / ana clara marin
serraria a beira rio / ana clara marin
Obra pública de expansão concebida pela secretaria
de infra estrutura do município de Afuá.

Construção de passarelas em concreto armado


em três diferentes travessias, com os valores
de 278, 105 e 10 metros de extensão.

Obra iniciada em Maio de 2018 com previsão de 180


dias e valor de contrato inicial de R$ 819.686,95.

Dados disponíveis em <afua.gov.pa.br> acesso em Fev. 2019

construção da passarela / ana clara marin fundação / rita buoro


fôrmas de madeira para a concretagem / ana clara marin
C H AV E S
sede do município
23 mil habitantes

1,61 hab/km ²

google earth / 2015


onde estavam os elementos da cultura material e
imaterial marajoara em chaves? quanto mais perguntava
menos entendia. tornei-me um chato perguntador
que não sabia ouvir as respostas. tunico
desenho coletivo em cima do barco estacionado / alline nunes
orla mais distante do centro / annabel melo troncos trazidos pelas marés / annabel melo

Chaves. Em Chaves, o rio Amazonas é particularmente Em suas praias o rio deposita frequentemente troncos
intenso: na maré baixa o rio recua aproximadamente 150 de árvores arrancadas, sobretudo pela força das
metros e o município ganha uma enorme praia de lama, pororocas, fenômeno em que uma grande onda se
onde acontecem muitas das atividades sociais e culturais. forma em função de a força das águas oceânicas
circunstancialmente vencerem a força do rio-mar
Amazonas e avançarem rio acima, revolvendo as
suas margens, removendo terras, assoreando e
modificando as áreas litorâneas. Luis de Faria e Silva
maré baixa e maré cheia do mesmo dia / ana clara marin
Trapiche. A porta de entrada e saída do município
de Chaves se dá por seu trapiche que funciona não
só como uma espécie de porto para a cidade, mas
também como o único abrigo do sol presente em
sua extensa praia. Por estar localizado em uma área
central, o movimento em seu entorno é extremamente
presente, sendo tocado também pelo constante
movimento das marés que alagam completamente
a orla, inundando toda a parte de baixo do trapiche,
comumente usada pelos moradores. Ana Clara Marin

embaixo do trapiche / rita buoro trapiche como o unico lugar de abrigo na orla / rita buoro
barcos esperando a maré alta / annabel melo
desenho coletivo
praça central chaves / antônio pedro
Cidade Chaves. A falta de árvores pela cidade,
torna-a extremamente quente durante o dia. Apesar
do clima bastante quente e úmido, o número de
casas de alvenaria existentes com acabamentos
inadequados para as elevadas temperaturas continua
a crescer, revelando uma valorização destas como
símbolo de status e não por conforto térmico
ou custo de construção. Ana Clara Marin

casa exemplo das características de chaves / ana clara marin mercado / giovana tak
Muro. Os muros de contenção junto aos barrancos Como imaginar transformações que resultem em
de Chaves-Sede, esforço de conter a força das águas, belas ruínas, destino aparentemente certo do que se
construídos, sobretudo junto à área central da cidade, estabelece nas margens daquele trecho do Amazonas?
já demonstram que não terão jamais capacidade
Essa parece ser uma questão colocada pelos
de reverter o que parece ser destino traçado de
ciclos da Natureza naquela região onde é inevitável
transformação contínua das margens marajoaras. Já
imaginar que, eventualmente, em algum dia a cidade
houve quarteirões que se desmancharam ao longo
ali estabelecida terá que mudar de lugar, aceitando
do tempo - algo a que se referem alguns moradores
essa relação com águas tão monumentais, que já
antigos e que está presente na memória da cidade.
modificaram a paisagem no período de vida de
muitos dos antigos moradores. Luis de Faria e Silva

extensão do muro pela orla / luis de faria e silva


moradores se apropriando do muro / rita buoro
rita buoro
Ave Marela. Em meus caminhos uma voz expressiva peixes com nomes sonoros, das marés, de lugares que
sempre ouvia “Ave Amarela!!! E de quando em quando ainda não conheci na ilha Mexiana, de suas aventuras,
uma saudação em francês, sempre um sorriso, de redes de pesca, de como era possível consertar isto
entre uma fagulha e outra da sua solda elétrica, ou aquilo no telhado do ginásio poliesportivo Gicamor
uma expressão característica, se referindo sempre a Pereira da Trindade, entre uma piada e outra contava de
“vizinha”, curioso me aproximei e comecei a ouvir. como tudo tinha mudado em poucos anos em Chaves.

Ave Amarela sempre me chamou de “Mestre” ou Um dia me convidou para subir no andar superior da
“Vossa Excelência “, eu menino do Grupo Escolar sua oficina de serralheria, subi os poucos degraus de
Magalhães Barata (um tesouro material que deveria ser madeira e encontrei mais uma dimensão da cultura
transformado em centro cultural) ouvia atento. Falava de em Chaves, nas paredes esqueletos de animais,

coleção de ossos do ave marela / giovana tak


espadas, uma coleção de objetos desconhecidos
ou transformados pelo tempo dos homens, um
gabinete de curiosidades, ou na descrição de Frank
Lestingan uma “oficina do cosmógrafo”. Tunico

ave marela / manoela ambrósio


Valtinho. Valter Abdon foi o cerimonialista na posse do
Prefeito e de sua equipe de Secretários Municipais no
início de janeiro de 2018. Eu, o perplexo representante
da pasta de Turismo, Cultura e Desporto, fui atropelado
por Valter Abdon, sua presença nos faz respirar cultura.
Dançarino, parteiro, ator, cerimonialista, compositor
e professor, surpreende, atropelam e apaixona no
primeiro contato. Intenso, teimoso defensor da
cultura marajoara chaviense, a do vaqueiro e do
pescador, mestre de ofício, contador de histórias,
sabedor dos segredos de plantas e ervas medicinais,
cavaleiro defensor do Boi bumba “Pingo de Ouro”.

Convidei para compor minha equipe, em nosso


abraço constante, sempre completava minhas frases
e argumentos, uma de suas sabedorias, de alma
livre e solta, fazia o quem entendia e sentia ser o
melhor para a cultura do município de Chaves.

Um Tesouro vivo.

Tunico

valtinho / giovana tak


participantes da viagem junto com valtinho, betânia, tunico, ju e ana
rio amazonas

rio arapixi

vila de
arapixi
google earth / 2001
ARAPIXI
parte do município de chaves
23 mil habitantes
1,61 hab/km ²
Vila historicamente importante do município, exemplo
significativo de comunidade ribeirinha, estabelecida junto
ao rio de mesmo nome, entremeada por dois igarapés.
Arapixi. A ida a Arapixi foi cercada de anseios e
mistérios que contribuíram para a criação imaginária
da vila. A maré morta que nos recebeu em Chaves,
não nos deixou atravessar suas águas durante a noite,
nos obrigando a pegar o barco pela manhã, mais uma
vez nos deixando a mercê do grande ciclo das marés.
A viagem foi iniciada na manhã seguinte, dia no qual
permanecemos no barco esperando a maré alta do fim
da tarde para adentrar ao rio Arapixi. O meticuloso
rio que adentra a ilha do marajó nos guia até a porta
da vila, sendo ela uma praça central com uma igreja,
praça central com igreja / ana clara marin primeiro sinal do homem em meio a floresta. (...)

annabel melo
foto aérea da vila de arapixi
(...) A vila de Arapixi não abraça o rio Amazonas, trazendo
uma relação particular das construções com o igarapé
que a cerca. A demora para chegar a este local, apesar
da distância não ser longa, revela um certo grau de
isolamento em relação a baía da ilha, no qual a única
maneira de chegar é por barcos (exceto nas épocas de
maré baixa quando é possível atravessar por dentro
da ilha de carro ou moto), tornando-os o meio de
transporte mais importante da região que acaba por
ser responsável não somente no transporte de pessoas
como também no abastecimento da vila . Ana Clara Marin

barcos menores param em qualquer lugar / alline nunes atracadouro para barcos / luis de faria e silva
proximidade das construções com o rio / alline nunes
casas encontradas em arapixi / ana clara marin

Morar em Arapixi. Mesmo instaladas em terras


acima do nível das águas altas, as casas do Arapixi são
construídas um pouco elevadas do solo e é perceptível
que os espaços entre as construções são frequentemente
encharcados - grandes cheias são insinuadas como
razão das pequenas palafitas e fica a impressão
de terras eventualmente alagáveis, transformadas
intermitentemente em charcos. Luis de Faria e Silva

marina keiko
manoela ambrosio

passarelas que ligam as casas / ana clara marin


palafitas a beira do rio Arapixi / ana clara marin
Festivais. Os festivais nas aglomerações humanas
visitadas no Marajó - Festival do Vaqueiro-Pescador
em Chaves, Festa de Santo Antônio no Arapixi, Festival
do Camarão em Afuá - deram um novo tempero à
experiência da viagem. De origem religiosa, evidenciada
atualmente apenas no nome da festa do Arapixi, os
festejos compõem atividades ligadas ao cotidiano dos
lugares - corridas de cavalos, rodeios e pescarias em
Chaves, a lembrança da fartura do camarão em Afuá
(que paradoxalmente não tem muito camarão nos seus
restaurantes durante o evento), dividem a atenção
com apresentações de cantores e músicos de ritmos
da região do Pará e mesmo de outras partes do Brasil,
com um aspecto que faz pensar nos carnavais de
rua, com muita embriaguez e pouco cuidado. É uma
Amazônia pop que se desvela, sobretudo em Chaves
e em Afuá, com produtos de camelôs em profusão,
música excessivamente alta mesmo quando não há o
menor sentido para tanto, clima de frenesi, exceção
talvez para o evento no Arapixi, de menor escala e
talvez por isso menos transformado pelos meios de
comunicação de massas, ainda que não imune a eles.

cartaz oficial do festival do camarão 2018 / <afua.pa.gov.br> acesso em Fev. 2019


festival do camarão 2017 / <diariodoamapa.com.br> acesso em Fev. 2019
Até que ponto essas festividades são resistências
de uma forma intrínseca da Cultura local? Será essa
excitação uma sobrevivência de algo que, quanto às
festividades na América do Sul, diz um viajante italiano
que percorreu a Amazônia e o vale do Orinoco no final
do século XIX: que durariam dois a três dias e quando
do dia final, dia do “enterro” (ou “enterro dos ossos”,
como se diz em São Paulo), dia em que o hábito seria
o de acabar “com as provisões que porventura tenham
sobrado dos dias precedentes, (...) [haveria] pessoas
que se sentiriam diminuídas caso não pudessem se
embebedar em dia tão solene” (STRADELLI, 2009,
pág. 85). Percebe-se, de qualquer maneira, o quanto
são importantes os festivais como manifestações
locais, palco de exposição de anseios e valores.

Quando acabam as festividades, o sossego


retorna e o transe de esquecimento dá lugar
ao ritmo dos ciclos naturais ilusoriamente
abafados pelo tumulto. Domenico Potenza

festival do vaqueiro e do pescador_competição do maior peixe / rita buoro


festival do vaqueiro e do pescador_corrida de cavalo na orla / rita buoro
Como pensar o espaço da Cultura no Marajó, na Amazônia? O artista
plástico e professor Paulo Von Poser, que foi um dos professores
envolvidos na viagem (foi, inclusive, definido como o seu “braço”,
ou seja, alavanca da produção - produção de desenhos individuais e
coletivos, numa apreensão sempre generosa da essência dos lugares),
nos últimos momentos da vivência, declarou - e aqui deixo registrado
- que o lugar da Cultura é todo o lugar e lugar nenhum, provocando
a lembrança de que a Cultura está nas pessoas, nos ritmos, no
inesperado. Acabou por reverberar uma reflexão sobre a construção
da ferrovia Madeira-Mamoré como trágico momento de ilusão da
imposição de vontades humanas desconectadas da natureza: “(...) é
possível perceber, nesse trânsito sutil entre natureza e cultura (...),
o fascínio que advém do espanto, os atrativos secretos da escuridão
e do medo, a força primitiva de lugares inomináveis, os sentimentos
solitários ante a infinitude ‘natural’, a surpresa permanente como
nova rotina (...)” (HARDMAN, 1988, pág. 100). Luis de Faria e Silva

barco de macapá para afuá / annabel melo


apresentação dos projetos do workshop para o
prefeito e seus vereadores no palácio municipal
Projeto. Por que lutar com as águas se elas são
a essência daquele lugar? Esse foi o princípio
básico das intuições de projeto que foram
desenvolvidas pelos integrantes da oficina
“Arquitetura Anfíbias” no que se refere aos espaços
públicos de Chaves-Sede. Luis de Faria e Silva

escolinha cedida para espaço de trabalho / domenico potenza palácio municipal de chaves / domenico potenza
mapa de chaves com divisões de trabalho / domenico potenza
Projetos. Acessos para a praia, sombras e
apoio para lazer na proximidade das águas,
além de estratégias para configurar piscinas
intermitentes foram pensados de maneira a
que possam ser remontados quando desfeitos
pelas marés e também relocados. Na área
central, arquibancadas e recepção da cidade
se reconfiguram de maneira a se tornarem
mais efetivas como quebra-marés, com
geometria apropriada e com usos combinados
de escadas e sombreadores, ainda que não
esteja descartada a ideia de que em algum dia
se tornarão ruínas (alguns trechos caídos do
muro já apresentam esse aspecto e poderiam
ser absorvidos e tratados como tal).

área mais afastada do centro com poucas construções


estrutura de apoio para a orla / grupo 4
Projetos. Acessos para a praia, sombras e apoio para
lazer na proximidade das águas, além de estratégias
para configurar piscinas intermitentes foram
pensados de maneira a que possam ser remontados
quando desfeitos pelas marés e também relocados.
Na área central, arquibancadas e recepção da
cidade se reconfiguram de maneira a se tornarem
mais efetivas como quebra-marés, com geometria
apropriada e com usos combinados de escadas e
sombreadores, ainda que não esteja descartada a
ideia de que em algum dia se tornarão ruínas (alguns
trechos caídos do muro já apresentam esse aspecto
e poderiam ser absorvidos e tratados como tal).

A velha escola que se propõe que seja convertida no


que se decidiu chamar de Casa da Memória, lugar
onde se poderá recontar as coisas da região e que um
dia, quiçá, será reabsorvido pelo Amazonas que está
na origem de tudo o que ali se percebe e recebe.

Também junto às casas chaveenses, entremeadas


de águas empoçadas como no Arapixi, a ideia é a de
garantir charcos com a função de jardins remediadores,
componentes de uma rede sanitária que mais cedo ou
mais tarde terá que ser enfrentada. Defende-se que área central
estruturas para conexão da cidade com o rio / grupo 3
coleta das áreas alagadiças para armazenamento e uso / grupo 2
esses canais serpenteiem os quintais das casas, facilitando
também a entrada dos ventos alísios tão presentes na
orla, deixando-a fresca, e que poderá também melhorar
as condições de conforto nas áreas mais interiores, hoje
frequentemente abafadas. Aponta-se para um raciocínio
renovado sobre a infraestrutura em Chaves, combinando
caminhos existentes, com algumas redes, e sistema
sanitário remediador de quintais verdes e produtivos.

Nos caminhos centrais, onde está o comércio local,


sugere-se a cobertura dos mesmos com pérgolas
de madeira, que poderão receber coberturas de
lonas para sombreamento, como acontece em
cidades no sul da Espanha, e plantas trepadeiras.

A área no entorno da cidade, equivalente ao que seria


antigamente um rossio, foi imaginada como base para
produção de alimentos e retiros de gado vindo tanto
do interior como das ilhas, com produção de leite e
derivados, mas também com agroflorestas associadas
ao sistema sanitário, que terão nelas um destino
adequado para vários insumos atualmente descartados

área majoritariamente residencial


A série de propostas aqui sintetizada tem a perspectiva
de configurar um projeto educativo. Assim, a
cidade ensina através de seus espaços públicos e
da inteligência associada à sensibilidade que nela se
materializam em estruturas para permitir a presença
humana, sempre em uma interação profunda com
os ciclos naturais, até mesmo com a consciência
da finitude da existência. Luis de Faria e Silva

estacionamento para barcos igarapé Miri / grupo 1


área próxima ao igarapé Miri, usado como estacionamento de barcos
estudo das áreas alagadiças com reservatórios / grupo 2
estudo da hidrografia de chaves / paulo von poser
manoela ambrosio
O Brasil é muito grande. As pessoas são mais ainda. Sai de
casa, vai ver gente, vai falar com gente, vai ouvir gente. Para
de ter tanto medo, medo de tudo. A gente não é o que acha
que é, a gente é o que é. E entre essas coisas tem um abismo.
Começa a olhar pra você com o que você é e não o que te
falta. E trabalha com o que você é e não com a imagem que
você faz de si ou que acha que os outros fazem. A sensação
engraçada da viagem toda é o vento. É o vento esses choques
na pele. Lembra disso. Essa sensação não tá por aí, foi só
aqui. Volto com a sensação de que tudo mudou. Tudo aqui
dentro mudou de lugar. Coincidências não são nada mais do
que um aviso de que alguma coisa maior tá acontecendo.
Isso foi uma aviso. O mágico. Os amantes. O enforcado. “As
únicas cartas que eu conheço são a do moço de cabeça pra
baixo e a do amor”. Isso é uma coincidência. Annabel Melo

“muralha” / annabel melo


janela do barco / annabel melo
pra sempre a rainha dos nossos coraçãoes marajoaras

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