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INTRODUÇÃO

Consideradas um gênero menor e desmerecendo, muitas vezes, a atenção dos

especialistas, as composições orais que são ouvidas, contadas, recitadas ou cantadas pelo

povo pertencem ao patrimônio cultural imaterial de uma nação.

Transmitidas de geração em geração, as canções de domínio público sofreram

transformações como supressões, adições e, até mesmo, invenções, mas, ainda assim,

sobreviveram até a contemporaneidade, sobretudo graças ao seu resguardo na memória da

população.

As letras das cantigas que constituem o corpus deste trabalho, colhidas por meio da

divulgação do trabalho de Carlos Farias e o Coral das lavadeiras de Almenara,

ambientam-se em espaços abertos, em plena comunhão com a natureza, à beira de riachos.

Encenam freqüentemente episódios do cotidiano das Lavadeiras representadas por meio de

um eu lírico, uma voz feminina, que está lavando roupa, conversando com suas amigas, ou

com sua mãe, a narrar diversas situações em que é protagonista.

Os versos destas canções permitem o diálogo com o sincretismo que caracteriza a

religiosidade popular brasileira, além de evocar elementos da diversidade e riqueza do

folclore e da cultura da região onde as lavadeiras habitam.

Considerando que cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a

experiência histórica das gerações anteriores e da ação criativa de cada indivíduo e que o

homem apreende o mundo por meio de seus paradigmas, tendo como conseqüência a

propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural,

tendência esta denominada etnocentrismo, torna-se comum, a partir deste ponto-de-vista, a


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crença de que a própria sociedade em que o indivíduo se encontra inserido seja o centro da

humanidade, ou mesmo a sua única expressão.

Entretanto, embora as manifestações culturais do Vale do Jequitinhonha nos saltem

aos olhos devido a sua diversidade e riqueza, representando uma parte do patrimônio

nacional, a população deste local possui poucos registros oficiais que possam detalhar sua

existência ao longo dos séculos.

Dessa forma, é instigante o fato de que um grupo de pessoas submetido a situações

tão adversas, como o das Lavadeiras, continue mantendo práticas e modos de viver

seculares.

Torna-se necessário, portanto, atentar para a preservação do acervo musical e

cultural que este grupo de mulheres representa a fim de garantir sua sobrevivência material

e espiritual, impedindo que a região perca esta manifestação da cultura popular.

O presente trabalho tem como um dos objetivos estabelecer diálogo entre o grupo

das Lavadeiras de Almenara e textos que fazem referência entre a hipermodernidade e as

identidades móveis que caracterizam a contemporaneidade.

A temática do repertório musical do corpus da presente dissertação permite ao

leitor/ouvinte que reflita sobre a conservação de práticas seculares e a resistência quanto

aos efeitos do capitalismo na vida cotidiana daquelas pessoas que, mesmo sobrevivendo à

margem de parafernálias eletrônicas e do consumo desenfreado, pertencem à

hipermodernidade porque este é o tempo em que vivem.

Apesar de a Arte, de forma geral, ser considerada, dentre as atividades humanas,

uma das mais importantes, até recentemente as cantigas de trabalho das Lavadeiras eram

vistas apenas como manifestações populares folclóricas e regionais.


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Entretanto, pode-se dizer que atualmente o etnográfico é cada vez mais incorporado

e legitimado pela população na mesma proporção em que se deu a percepção de que o

Brasil é pródigo em manifestações de arte popular.

As Lavadeiras de Almenara são indivíduos que, na contramão da tão alardeada

tendência de automatizar os ambientes, permanecem atreladas às suas raízes identitárias.

Depois de relegadas ao exótico e ao pitoresco, suas cantigas se destacam por serem únicas

e conservarem traços autóctones de uma identidade brasileira fragmentada e diluída em

tempos de massificação cultural.

As propostas que se delinearão nos capítulos que formam este trabalho dizem

respeito a questões que concernem à identidade e gênero; à hipermodernidade, bem como a

relação intrínseca das cantigas com a memória e a tradição cultural.

Ao eleger a natureza como temática de muitas das canções, há nesta escritura

metafórica, evidenciada nos versos, a transgressão do ideal romântico de feminilidade e do

estereótipo feminino que ainda perduram nos nossos dias. Ainda que se cante o amor como

sendo o anseio maior, nas entrelinhas há a revelação dos desejos e do erotismo que foram

negados a essas mulheres de serem exibidos explicitamente.

As lavadeiras-cantoras que pertencem ao Coral formado por Carlos Farias fazem

parte de um grupo que garante seu próprio sustento com a dignidade do trabalho e não têm

condições de se restringirem às regalias de uma esfera doméstica e confortável, pois

precisam se preocupar com sua própria sobrevivência material, uma vez que nem sempre

podem contar com o marido como o provedor.

Atuando como mão-de-obra em um ofício pesado, sustentando muitas vezes suas

famílias, as Lavadeiras não estão atreladas aos costumes e ao moralismo castrador da

sociedade no que tange à livre iniciativa e à espontaneidade das mulheres.


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As mulheres-lavadeiras estão, portanto, livres das máscaras da sociedade, libertas

dos artifícios e estereótipos do decoro e da feminilidade, características interpretadas como

indícios de fragilidade e incapacidade para a vida prática.

Apesar da progressiva anulação do trabalho manual e/ou artesanal pela tecnologia,

percebemos claramente que as Lavadeiras não tiveram radicalmente alteradas, pelo

capitalismo, as relações sociais, econômicas e culturais exercidas por elas na região em que

vivem.

Ao contrário, detecta-se a resistência em terem suas formas de vida modificadas,

em meio às mudanças bruscas e às novas exigências do mercado, reconstruindo novas

práticas, como a gravação dos dois CDs (Batukim brasileiro e Aqua) e as apresentações do

Coral, ou seja, o reconhecimento de seu acervo cultural, porém mantendo velhos costumes,

uma vez que tomam consciência do valor que representam.

Certamente são diversas as possibilidades de diálogo deste corpus com algumas

áreas do conhecimento humano que se desvelarão ao longo do presente trabalho. E, por sua

vez, múltiplas as possibilidades de abordagens interdisciplinares.

Entretanto, considerando-se a necessidade do aprofundamento em determinados

pontos a serem desenvolvidos ao longo dos capítulos, optou-se pelo tratamento pontual

acerca de algumas questões consideradas mais pertinentes para o que se propõe

desenvolver.

A presente dissertação está dividida em três capítulos de desenvolvimento, a saber:

O canto das lavadeiras de Almenara: uma contextualização; A hipermodernidade e o

feminino (subdividido em A fragmentação das novas identidades sob o impacto da

globalização e do consumismo e A construção do sujeito solitário em virtude da

fragilidade dos vínculos humanos); e, finalmente, o terceiro capítulo, Perspectivas

utópicas nos caminhos e descaminhos da hipermodernidade nas cantigas das lavadeiras


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(que, por sua vez, subdivide-se em As confluências do passado e do presente em O canto

das lavadeiras).

Além dos já referenciados CDs/livros de Carlos Farias e o Canto das lavadeiras de

Almenara, o trabalho fundamenta-se em uma extensa referência bibliográfica em que se

destacam os valorosos trabalhos de Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Gilles Lipovetsky e

Humberto Maturana, nos quais se discutem questões acerca de identidade e de cultura.

Após serem relegadas ao exótico e ao pitoresco, as cantigas presentes nos dois

CDs/livros se destacam devido à singularidade e à conservação de traços autóctones de

uma identidade brasileira fragmentada e diluída em tempos de massificação cultural.

Na valorização e na reverência pelo meio primordial que possibilita a concretização

de seu trabalho, a água e, sobretudo, pela certeza do mérito de seu ofício, muitas vezes

considerado humilde e desqualificado, estas mulheres resistem mantendo suas práticas de

trabalho, e seu cotidiano, perfeitamente integradas à natureza.

Ao tratarem da temática de sua vivência e de sua prática cotidiana, este grupo

demarca seu território e sai da margem em que permaneceu ao longo da história sem

perder sua autenticidade e originalidade. Na árida paisagem do sertão mineiro, essas

mulheres são partes integrantes deste cenário em que a opulência da cultura contrasta com

a miserabilidade econômica.

Na pretensão de contribuir para a preservação da identidade cultural do grupo de

mulheres que pertencem ao Coral das lavadeiras de Almenara, nada é mais salutar que a

concretização deste trabalho proposto.


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1 O CANTO DAS LAVADEIRAS DE ALMENARA: UMA


CONTEXTUALIZAÇÃO

Em uma lavanderia comunitária, na cidade mineira de Almenara, um coral de

lavadeiras foi fundado em 1992, por iniciativa do cantor e pesquisador cultural Carlos

Farias, contando com o apoio de outras pessoas da comunidade do Bairro São Pedro. Essa

iniciativa empreendida para a preservação do patrimônio cultural imaterial do país,

possibilitando sua expressão, pode ser considerada um exemplo bem sucedido de

transformação social por meio da arte. No CD/livro Batukim brasileiro, encontramos a

seguinte informação:

O cantor, psicólogo e pesquisador cultural Carlos Farias presidiu


a Casa de Cultura de Almenara – MG – no biênio 92-93 e naquela época
fundou o Coral das Lavadeiras, juntamente com outras pessoas da
comunidade, ao perceber que as mulheres integrantes da lavanderia
comunitária do Bairro São Pedro cantavam muito bem, enquanto
trabalhavam. Seriam lavadeiras-cantoras ou cantoras-lavadeiras?
O repertório era constituído basicamente de canções de domínio
público: batuques, cirandas, cantigas de roda, folias, modinhas. A esse
repertório, Carlos Farias acrescentou várias canções resgatadas por ele
mesmo do folclore do Vale, em suas andanças pela região a partir de
1985.
Dentre as mais de cinqüenta mulheres integrantes da ASLA –
Associação Comunitária das Lavadeiras de Almenara, cerca de vinte e
cinco delas, dentre adolescentes e senhoras maduras, aderiram com
entusiasmo à idéia de se reunirem regularmente para os ensaios. Poucas
semanas depois, o grupo já estava se apresentando em eventos de
Almenara e região, com retumbante sucesso. Foi assim na cidade de
Jequitinhonha, em 1992, durante o aniversário da cidade. No ano
seguinte, o grupo se apresentou no FESTIVALE – Festival da Cultura
Popular do Vale do Jequitinhonha, realizado em Minas Novas e no 7º
FESCAL – Festival da Canção de Almenara, recebendo fartos elogios do
público.
Como todo grupo informal e sem recursos oficiais, o Coral das
Lavadeiras de Almenara (formado por mulheres de baixíssima renda
familiar) passou por várias mudanças ao longo deste tempo, mas nunca
deixou de existir.
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Parte dos recursos obtidos com a venda dos CDs pertence às Lavadeiras. Além do

resgate de um acervo de canções de domínio público, enriquecendo o patrimônio cultural

de nosso país, o projeto em execução contribui para a sensibilização de indivíduos e

entidades no sentido de se mobilizarem para a busca da preservação da cultura de sua

região. A iniciativa ainda promove a inclusão social e a melhoria das condições de vida

destas mulheres.

O grupo formado pelas cantoras-lavadeiras se apresentou em Portugal, Espanha e

em diversas cidades brasileiras, no espetáculo intitulado ―Batendo roupa, cantando a vida”.

Ao som de instrumentos musicais como violões, além de outros de sopros e percussões, o

repertório é formado por antigas canções em ritmos como batuques, moçambiques,

modinhas, sambas de roda, chulas de terreiro, rezas e toadas de influência indígena,

africana e portuguesa – herança de colonizadores, canoeiros e ribeirinhos que, guardadas

na memória das lavadeiras, agora se materializam e se conservam no coletivo. Estas

cantigas revelam a rica diversidade cultural brasileira e estão registradas nos CDs/livros

Batukim brasileiro (2001) e Aqua (2004), produzidos por Carlos Farias.

Almenara, cidade em que as lavadeiras residem, pertence à vasta região cortada

pelo Rio Jequitinhonha, no nordeste mineiro, e atualmente tem, apesar do baixo IDH de

alguns municípios situados na mesma região, se destacado pela riqueza das manifestações

artísticas.

A origem de Almenara tem suas raízes históricas ligadas às expedições que

cortaram a região em busca de ouro por volta de 1727, comandadas pelo bandeirante

paulista Sebastião Lima do Prado. Em 1811, o alferes Julião Fernandes Leão, a mando da

Coroa Portuguesa, instalou quartéis de vigilância no Baixo Jequitinhonha com o pretexto

de impedir o contrabando de ouro e de diamante pelo rio, naquela época navegável e única
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via de acesso ao litoral. O governo do Brasil colônia intensificava a ocupação do interior

do país e povos indígenas resistiam bravamente à tomada de suas terras sendo, portanto,

um obstáculo aos colonizadores.

Com a criação dos quartéis de São Miguel, da Água Branca, da Vigia e do Salto

Grande, lideranças indígenas sucumbiram à força avassaladora dos colonizadores. A

floresta atlântica que cobria toda a região também foi exterminada e em seu lugar surgiram

grandes fazendas para a criação de gado, uma das principais atividades econômicas da

região. Os primitivos quartéis transformaram-se nas atuais cidades de Jequitinhonha,

Joaíma, Almenara e Salto da Divisa, respectivamente.

O antigo distrito de São João da Vigia emancipou-se de Jequitinhonha em 1938,

ocasião em que teve alterada sua denominação para Almenara, palavra de origem árabe

que significa farol, torre de vigilância para os navegantes, coerente com o sentido

originário que servia exatamente como posto de vigilância da rota do ouro.

Almenara conta, atualmente, com pouco mais de trinta e seis mil habitantes. Grande

parte é formada por indivíduos com condições precárias, migrantes da zona rural e de

outras localidades, em busca de melhores condições de vida. Apesar da crise econômica

que assola o país, e o Vale do Jequitinhonha em especial, é uma das cidades mais prósperas

da região. O Rio Jequitinhonha, mesmo assoreado, é uma bela paisagem natural da cidade.

A valorização da música das lavadeiras-cantoras contribuiu para o surgimento de

iniciativas semelhantes no Vale do Jequitinhonha e em outras regiões do país. Vários

grupos surgiram com o mesmo propósito de divulgação da cultura sertaneja e outros,

ainda, reproduzem o repertório musical entoado pelas Lavadeiras. Representantes de um

manancial de sabedoria construída pela cultura popular, contando histórias e versos,

retratando nos trechos das cantigas elementos da região que habitam, como a poeira do
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sertão, a pedra do rio, o sabiá e outros pássaros, a religiosidade, pequenas amostras do

cotidiano mineiro, o repertório musical das lavadeiras-cantoras é fonte inesgotável de

riqueza poética.

Todavia, apesar da abundância nas manifestações culturais, o Vale do

Jequitinhonha é conhecido por seus contrastes. Vale esclarecer que:

Jequitinhonha é um nome de origem indígena. ―Jequi‖ é o nome de um


instrumento utilizado pelos índios, antigos habitantes do Vale, para pegar
peixe; e ―onha‖ quer dizer peixe. O jequi tem onha, isto é, está cheio de
peixe. Essa é a origem do nome do famoso rio do Vale. (CODEVALE,
1977)

De acordo com Lalada Daglish (2008) ―A maioria das cidades do Vale foi criada

em virtude da exploração de minerais, surgindo daí o nome de cidades como Minas Novas,

Diamantina, Pedra Azul, Berilo, Turmalina, Malacacheta etc‖. (DAGLISH, 2008, p.60)

Entretanto, o garimpo predatório na região de extração de ouro e de diamantes, o

desmatamento irresponsável e a prática secular do uso do fogo para limpar as pastagens

secaram e contaminaram com mercúrio centenas de afluentes do Rio Jequitinhonha ao

longo dos seus 1.100 km de extensão, desde a nascente no Serro à foz em Belmonte. A

negligência de atitudes ecologicamente corretas afetou a vida humana e o ecossistema do

Jequitinhonha.

O esgotamento das jazidas de minérios fez com que as comunidades rurais do Vale

passassem a desenvolver atividades agropecuárias de subsistência cultivando alimentos em

lavouras comunitárias de cana-de-açúcar, milho, feijão e mandioca. Segundo Daglish

(2008), ―Por ser empregada tecnologia arcaica em terras não muito férteis, esta produção

se tornou insuficiente para o sustento das famílias, levando estes pequenos proprietários a

procurar outras frentes de trabalho para sobreviver‖. (DAGLISH, 1998, p.61)


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As tecnologias arcaicas empregadas para o cultivo de terras não muito férteis

contribuíram para que a produção se tornasse insuficiente até mesmo para o autoconsumo e

o sustento das famílias. Assim, outras frentes de trabalho surgiram. Conforme as palavras

de Daglish: ―As mudanças climáticas ocorridas no Vale nas últimas quatro décadas, que

provocaram longas estiagens, são tidas, em parte, como responsáveis pela falta de trabalho

e a conseqüente migração maciça da população masculina da região‖. (DAGLISH, 2008,

p.61)

A paisagem de abundância das águas foi substituída pelo assoreamento e, em

muitos pontos, o Rio Jequitinhonha pode ser atravessado a pé. A cidade de Almenara já

teve a maior praia fluvial do Brasil, mas a diminuição do volume do rio retirou-lhe esse

atrativo.

Em depoimento colhido de uma ceramista moradora de uma localidade chamada

Coqueiro Campo, Lalada Daglish (2008) escreve:

Rosa Gomes Ferreira, uma das ceramistas mais antigas de


Coqueiro Campo, acredita que a escassez de chuvas e as extensas
plantações de eucaliptos, cultivadas na região a partir da década de 1970,
para alimentar de carvão as siderúrgicas, ―chuparam‖ as águas do lençol
freático e fizeram desaparecer os córregos e as ―pequenas grotas‖, fontes
das águas que serviam às pequenas plantações familiares. A artesã afirma
que, antes do eucalipto, era comum observar nas matas locais animais
como paca, tatu, veado, entre outros; explica que agora nem passarinho
faz ninho nessas árvores. (DAGLISH, 2008, p.61)

Os eucaliptos plantados na região ocuparam o lugar da vegetação nativa

desencadeando um processo de degradação do ambiente, implicando seriamente nas

relações não somente entre fauna e flora, como também nos recursos hídricos de toda a

região. Este processo acarretou mudanças na população humana, sobretudo a masculina,

que teve que se deslocar para outras regiões em busca de melhores condições de

sobrevivência de acordo com Daglish (2008):


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Em virtude dessa migração masculina, principalmente a partir da


década de 1970, a mulher se tornou responsável pela criação dos filhos,
buscando no artesanato uma fonte de renda para sustentar a família.
Trabalhar na roça, cuidar dos filhos e fazer cerâmica se tornaram
atividades diárias na vida da população feminina do Vale. O artesanato,
por ser uma atividade que não requer nenhuma formação específica, e
que pode ser desenvolvida paralelamente às atividades do lar, proliferou
entre as mulheres, tornando-as, em muitos casos, arrimo das famílias.
(DAGLISH, 2008, p.62)

Situação semelhante pode ser verificada no cotidiano das lavadeiras. Em visita a

Almenara, em janeiro de 2008, em convivência por oito dias com estas mulheres, em

entrevistas ou mesmo em visitas as suas moradias e à lavanderia comunitária, certificou-se

que, apesar das atividades ligadas ao Coral, para algumas delas o ofício de lavar roupas

persiste juntamente ao cultivo de pequenas lavouras de subsistência.

Entoar cantigas enquanto se faz a lavagem de roupas sempre fez parte do cotidiano

das lavadeiras. Porém, ao serem elevadas à categoria de arte, essas cantigas possibilitaram

a projeção, graças ao trabalho de Carlos Farias, dessas mulheres complementando a renda

familiar por meio da exteriorização artística.

O perfil da região foi alterado, uma vez que grupos surgiram com o mesmo

propósito de divulgar a cultura regional. Benefícios financeiros oriundos das vendas dos

CDs e de shows realizados por Carlos Farias e o Coral das lavadeiras puderam ser

verificados, refletindo na diminuição da migração das famílias às quais pertencem as

mulheres cantoras.

Apesar de indícios de modernidade ser encontrados no Vale, sobretudo no processo

de ocupação da terra pela cafeicultura e pela pecuária capitalistas, ocasionando um

empobrecimento ainda mais significativo dos pequenos lavradores e uma intensa migração

em direção a outras localidades da região Sudeste, verifica-se inúmeras práticas de


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resistências culturais com as expressões musicais, a cerâmica e as festas populares que se

mantém vivas pela população.

Os habitantes do Vale do Jequitinhonha, devido às mudanças processadas ao longo

de suas existências, decorrentes de seus sucessivos contatos com o capitalismo, em

crescente processo de perdas de suas condições originais de sobrevivência, foram, pouco a

pouco, alterando a sua realidade social, uma vez que as transformações no cotidiano de

suas vidas são inevitáveis.

Submetidos a situações tão adversas vivenciadas pela maioria da população local,

alguns grupos, como o das Lavadeiras, resistem e continuam mantendo práticas e modos

de viver seculares. Contrariando os prognósticos de a região tornar-se um enorme deserto,

sem vida humana e sem as suas variadas formas de manifestação cultural que emocionam a

todos que por ali passam, temos a preservação da memória cultural popular.

É necessário salientar que o surgimento de práticas de resistência, evidenciadas no

valoroso trabalho de Maria Izabel Vieira Botelho (1999), proporcionou a preservação de

práticas tradicionais e seculares, alcançando bons resultados. No caso do Vale do

Jequitinhonha, os resultados foram bastante efetivos, uma vez que o artesanato, a música e

outras manifestações culturais são valorizados por artistas e intelectuais que dirigem o

olhar à arte popular brasileira.

A valorização desta cultura deve-se, sobretudo, à consciência dos próprios artistas

quanto à importância do seu papel. Procurando formas alternativas de sobrevivência ao

mesmo tempo em que se mantêm a preocupação com a dilapidação daquilo que em seu

local de origem é sagrado, a natureza, evitam a mutilação desta e, conseqüentemente, deles

próprios, uma vez que se constituem nos sujeitos desta investida.

Nota-se que os mecanismos de produção utilizados pelas Lavadeiras, embora

arcaicos (elas, até pouco tempo, lavavam as roupas à beira do rio, usando as pedras para
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esfregá-las), garantiram e ainda garantem a sobrevivência material das famílias a que

pertencem.

Em 1990 foi construída, pela Prefeitura Municipal de Almenara, a primeira

lavanderia comunitária. Mesmo com o empréstimo do local e do fornecimento gratuito de

água e de energia elétrica, algumas lavadeiras preferem as margens do rio para exercerem

seu ofício, desprezando inclusive a facilidade trazida pela modernidade que são os

tanquinhos elétricos que agora fazem parte do ambiente de trabalho da lavanderia.

Entretanto, a dilapidação da natureza se faz presente, sobretudo no assoreamento do

rio, bem como a sensação de não-pertencimento daqueles que tiveram suas práticas sociais

alteradas em função da hipermodernidade trazida, sobretudo, pela mídia e pelas inovações

tecnológicas.

Sabe-se que as práticas sociais são moldadas por sucessivas experiências e

vivências. Os locais não são estanques; a sociedade em que as Lavadeiras estão inseridas

não é ilhada, apresentando, assim, características favoráveis e desfavoráveis a elas.

A transformação das práticas cotidianas decorrentes do capitalismo acarreta a

aquisição de novos conhecimentos e modos de vida prática impregnados de eliminação,

supressão e, portanto, da destruição dos elementos genuínos constitutivos das práticas

correntes.

A interferência do sistema capitalista no Vale do Jequitinhonha foi realizada sob a

égide do mecanismo de destruição e de recriação. Destruição do cerrado; recriação por

meio de sua substituição pelo eucalipto. Destruição de algumas das práticas culturais e

econômicas seculares; recriação por meio da indústria do artesanato e de iniciativas como

o Coral das Lavadeiras de Almenara.

Contudo, ao movimento de destruição contrapõe-se um movimento de recriação, de

resistência, recuperando a participação efetiva do indivíduo nesse processo que pode ser
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apreendido por meio da observação de um projeto tão bem sucedido como o realizado com

as Lavadeiras. Ao manterem sua cultura, exportam-na por meio de uma arte retratada por

um povo isolado geográfica e culturalmente, esquecido pelas autoridades e, por muito

tempo, submetido à servidão e ao abandono social.

Esclarece-se que as fontes destas informações foram colhidas nos CDs/livros

Batukim brasileiro (2001) e Aqua (2004), bem como em anotações e registros de viagem

realizada em janeiro de 2008 ao Vale do Jequitinhonha, onde se colheu por meio de

entrevistas e depoimentos das lavadeiras, de Carlos Farias, de jornalistas e de artesãos da

região, o conteúdo aqui registrado.


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2 A HIPERMODERNIDADE E O FEMININO

Criado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky, o termo hipermodernidade delimita

o momento atual vivido pela sociedade humana. Considerando o prefixo hiper como

elemento que designa o excesso, a hipermodernidade seria a exacerbação dos valores

criados na modernidade.

Surgido em meados da década de 70, o termo ganhou destaque na obra Os tempos

hipermodernos, de Gilles Lipovetsky. A efemeridade das coisas, bem como seu caráter de

urgência elevados de forma exponencial, o movimento constante e as mudanças aceleradas

são marcadas pela flexibilidade e pela fluidez na tentativa de se acompanhar uma intensa

velocidade.

No presente trabalho a palavra hipermodernidade será utilizada no sentido de se

procurar abranger as mutações sofridas nas instituições que se constituem como alicerces

da sociedade e da cultura. Frente a essas transformações, encontram-se as conquistas da

ciência e da informática, bem como as do universo feminino - a liberdade sexual, o acesso

ao mercado de trabalho e o declínio do patriarcado.

Os significados e as conseqüências dessas novas referências são pertinentes na

presente dissertação. Assim, não se pretende tecer digressões em torno do conceito

hipermodernidade. Esse termo será tomado como denominação de uma mudança de época,

que encontra nas novas formas institucionais seu impacto mais direto, um dos dispositivos

para as ―novas‖ subjetivações que se refletem na arte.

Portanto, tomando como subsídio Debord (1997), é oportuno explicitar alguns

pontos que confluem nas manifestações artísticas como as formas atuais de vivência do
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sagrado na liquefação da cultura, na estetização do corpo e na cultura do narcisismo face à

sociedade do espetáculo.

Diversas denominações foram dadas a esse conjunto de transformações da

sociedade nos últimos tempos, demonstrando que a questão da pós-modernidade ainda não

está definida.

Por conseguinte, as expressões sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997),

sociedade pós-industrial (BELL, 1977), sociedade de risco (BECK, 1992), modernidade

tardia (GIDDENS, 2002), pós-modernidade (LYOTARD, 2002), modernidade líquida

(BAUMAN, 2001), sociedade programada (TOURAINE, 1994), sobremodernidade

(AUGE, 1994), capitalismo desorganizado (OFFE, 1989), sociedade em rede

(CASTELLS, 1999), capitalismo tardio (JAMESON, 1996), sociedade do controle

(DELEUZE, 1992) ou fim da história (FUKUYAMA, 1992) não significam,

necessariamente, termos equivalentes.

Essa pluralidade terminológica, embora esteja associada a maneiras de se conceber

a sociedade contemporânea, remete a universos de referência distintos, a debates

diferenciados e a filiações epistemológicas não-coincidentes. Embora as nomeações

suscitem divergência, pode-se concordar com a assertiva de que o novo sempre apresenta

como pano de fundo o antigo. Assim, o termo pós-modernidade faz alusão à modernidade,

representando, por um lado, uma ruptura e, por outro, uma reação frente ao projeto

moderno.

Pode-se situar como marco do que se denomina pós-modernidade, os anos de 1950,

pois são correspondentes ao seu período culminante. Nos anos de 1960 começarão as

reações que vão desencadear o que hoje é denominado como pós-moderno, com sua nova

configuração global, política, econômica e científica, em meio a um sentimento de

desilusão com o mundo diante das conseqüências do combate entre as nações.


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De acordo com Chevitarese (2001), a cultura sofreu um processo de desencanto

acompanhado da crise de conceitos fundamentais ao pensamento moderno, tais como

verdade, razão, legitimidade, universalidade, sujeito e progresso.

Essa crise foi acentuada nas décadas de 1960 e 1970, e evidenciada pelos

movimentos estudantis na Europa, pela contracultura de resistência dos movimentos

pacifistas (movimento mundial de hippies) e devido às artes inspiradas na teoria do

absurdo de Nietzsche (que enfatiza o caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar

com ela a partir do pensamento racional).

A partir do início da década de 70, constatou-se uma avalanche de mudanças de

ordem cultural, política e econômica. A razão não produziu a tão desejada e esperada

emancipação da sociedade humana, deflagrando a crise dos paradigmas da ciência

moderna, acentuada pelo fracasso do socialismo, pela queda do muro de Berlim e pela

consolidação do capitalismo como o modo de produção hegemônico do planeta.

Para se adentrar na relação entre hipermodernidade e feminino, faz-se necessário

retomar, ainda que brevemente, a trajetória da mulher na civilização ocidental tomando

como ponto de partida o século XVII, quando os ideais de igualdade começaram a

despontar na Europa. O empirismo racional nesse século ocupa o lugar do platonismo e um

novo universo mental se descortina. Nesse universo, a condição feminina foi questionada e

remetida a padrões de anatomia e de fisiologia.

Teresa de Lauretis em A tecnologia do gênero diz que ―O conceito de gênero como

diferença sexual e seus conceitos derivados - a cultura da mulher, a maternidade, a escrita

feminina, a feminilidade etc. – acabaram por se tornar uma limitação, como que uma

deficiência do pensamento feminista‖. (LAURETIS, p.206)

A diferença sexual consiste na tese de que a sexualidade é composta por dois sexos

diferenciados marcados pela essência biológica. A mulher estaria mais próxima da


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natureza e da paixão, destinada ao espaço privado como a casa e, conseqüentemente, à

maternidade. Ao homem, dotado de racionalidade, caberia o espaço público.

A estas duas categorias imutáveis, homens e mulheres, priorizam-se o anatômico e

desprezam-se as diferenças. Assim as diferenças sexuais separam os papéis reservados para

cada sexo. A mulher seria o complemento do homem, dividindo com ele, embora não de

forma igualitária, o prazer carnal e o papel social. Ou inferiorizada ou idealizada, a partir

dessas duas deduções de feminilidade (anatômica e cultural), foram subtraídas as relações

de poder, submissão, complementaridade ou exclusão da mulher na sociedade moderna.

O movimento feminista foi o marco significativo nas mudanças ocorridas no campo

da sexualidade feminina. Simone de Beauvoir na obra O segundo sexo, publicada em 1949,

propõe que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher, provocando, dessa forma, um

questionamento acerca do deslocamento da naturalização da condição feminina.

Essa desnaturalização representou uma ruptura na história das mulheres, sobretudo

uma mudança em suas vidas, em suas escolhas profissionais, em seus desejos e em suas

relações amorosas que puderam seguir diferentes caminhos, podendo hoje abrir um leque

de possibilidades. Kehl (1998) amplia esta questão dizendo o ―que o sujeito pode se tornar,

sendo (também) mulher‖ (KEHL, 1998, p.15)

A família, a estrutura de base da sociedade, pauta-se em três fundamentos: a

autoridade do marido, a subordinação das mulheres e a dependência dos filhos. De acordo

com Kehl (1998), tem-se com isso um movimento de dualidade entre duas posições: as

feministas querem a vida pública e as mães de família a interiorização do privado.

Isto se deu, conforme Áran (2003), devido à crise da forma burguesa da família

nuclear (monogâmica e heterossexual); à entrada da mulher no mercado de trabalho; à

separação da sexualidade da reprodução e a uma política de visibilidade da

homossexualidade.
28

Todos esses fenômenos indicam o surgimento de uma nova cartografia da relação

entre os sexos que redefinem a questão da diferença, configurando um novo topos para

pensar formas de subjetivação.

No campo da filosofia e da história contemporânea se articula uma tese que enfatiza

a desconstrução da referência do sistema de oposições, organizadoras do pensamento. A

condição pós-moderna se caracterizaria pelo apagamento das fronteiras identificatórias, o

que permitiria uma circulação de desejos e posições sociais em que não haveria mais

diferença entre os sexos. (LOYOLA, 1998).

Considerando que a identidade se constrói por meio da memória individual e

coletiva, no caso do Coral das lavadeiras de Almenara é possível perceber inúmeras

interfaces retratadas nas cantigas, revelando novas construções identitárias que inscrevem a

mulher como sujeito do processo social.

O desenvolvimento do conceito de gênero, no âmbito dos estudos femininos,

promove uma desconstrução das categorias "sexo feminino/sexo masculino", apontando a

naturalização de aspectos sociais antes fundidos com os aspectos biológicos nestas duas

categorias.

No combate às explicações biologicistas, antes hegemônicas, num primeiro

momento, conforme apresentado acima, foi preciso demonstrar que anatomia não era

destino e que o corpo feminino não determinava a condição social da mulher. O objeto de

estudo destas análises — a construção social dos gêneros — precisava se libertar da

categoria das diferenças biológicas cujo significado principal se constitui nas diferenças

genitais. As relações sexuais/de gênero são enfocadas como um campo de luta estruturado,

fundamentalmente, pelas recorrentes diferenças de poder entre homens e mulheres.

Gênero é um conceito que se refere à construção social do sexo. Significa dizer que

a palavra sexo designa a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a


29

atividade sexual propriamente dita. O conceito de gênero distingue a caracterização de

masculino e feminino que acompanham nas culturas a presença de dois sexos na natureza.

A espécie humana é formada por machos e fêmeas, mas a qualidade de ser homem e ser

mulher é condição realizada pela cultura.

Esta formulação representa um avanço, pois com ela a definição tradicional de

papéis sexuais é abandonada e se valoriza cada vez mais a dimensão de relatividade entre a

anatomia e os fatores culturais.

O conceito de gênero tem como origem a noção de cultura. Essa noção aponta para

o fato da vida social, e os fatores que a organizam como, por exemplo, tempo, espaço ou a

diferença entre os sexos, são produzidos e sancionados socialmente através de um sistema

de representações. A cultura apresenta-se como um todo integrado; cada domínio pode ser

objeto de concepções peculiares, contudo elas mantêm entre si um encadeamento que não é

de simples justaposição, ao contrário, integram um sistema interdependente que provê a

coerência de um determinado paradigma.

Assim, o conceito de gênero é profundamente devedor da idéia de arbitrariedade

cultural. A dimensão biológica que a espécie poderia oferecer para o fenômeno da

diferença ente os sexos é limitada para explicar a intensa variedade dos comportamentos e

concepções relativas aos sexos.

Pode-se afirmar que a cultura nacional e a experiência artística (re) nascem de um

trabalho de (re) invenção, ou seja, de um continuum. Nessa repetição, as imagens tornam-

se figuras e ganham o estatuto de saber, constituindo-se num pensamento que modela o

imaginário dos sujeitos coletivos.

Portanto, a releitura do projeto da modernidade, da dinâmica da memória, da

autoridade cultural e dos trânsitos trans/interculturais a partir de um pensamento figural,

trata-se de uma estratégia de reflexão capaz de interpretar as experiências da criação


30

artística como testemunho cultural e identitário. Nesse processo de (re) construção da

identidade vale lembrar a definição da qual se vale Stuart Hall acerca da identidade

cultural:

Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada no


nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem dos
genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. É impermeável a algo tão
―mundano‖, secular e superficial quanto uma mudança temporária de nosso local de
residência. (...) Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno
redentor. (HALL, 2003, p.28).

O conceito de identidade cultural vem se ajustando a diversas posições e políticas

ligadas a projetos de definição do popular e do nacional no ocidente. Esse conceito torna-

se problemático à medida que as crises epistemológicas, de valores e também as

disciplinares, estabelecidas pela modernidade tardia, proliferam.

Neste contexto, as questões de origem e de autoria refletem questões culturais mais

amplas, já que o lugar de periférico sempre foi o da relativização de posições (o entre-

lugar), em oposição ao conceito de unidade imposto pela colonização. A necessidade de

multiplicar a linguagem e os pontos de vista se instauram na defesa de um lugar pensante

particular, original e originário, que se faz cada vez mais importante para a compreensão

de um mundo inserido nos deslocamentos.

Cabe ao intelectual, em um mundo cada vez mais permeado pelo midiático,

enunciar crítica e ficcionalmente este deslocamento. No entanto, se questiona a respeito da

pertinência desses conceitos e da atualidade dessas reflexões.

Uma possível justificativa se evidencia no esgotamento do projeto de modernidade,

pressentido, principalmente, no movimento de redefinição do conceito de nação e de

fronteiras nacionais no momento atual do capitalismo tardio. A união de países em blocos

econômicos que possam fazer frente a um império, que vem tentando se tornar

hegemônico, relativiza antigas rivalidades e propõe o convívio com as diferenças.


31

Por outro lado, a invasão desses países por aqueles que trazem o híbrido na sua

formação, forçam as fronteiras de antigas noções de unidade, pureza e nação. Este processo

consta nos debates culturais contribuindo para a reflexão sobre aquilo que os latino-

americanos acumularam em séculos de dominação. Como nos esclarece Coutinho:

A mudança de foco verificada no seio de estudos latino-americanos, que


passaram da preocupação com a construção de uma identidade nacional para respaldar
a identidade de um país para a preocupação com a representação da diversidade ou
heterogeneidade desses países, é talvez o traço mais relevante desses estudos nas duas
últimas décadas. E o melhor exemplo dessas mudanças pode-se observar na
historiografia literária, que deixou de lado o seu cunho de compilação progressiva do
veio canônico de uma literatura nacional e passou a contemplar as diferentes formas
de produção cultural que floresceram naquele contexto. Como a ―identidade‖ não pode
mais ser vista em termos ontológicos, mas antes como um conceito múltiplo e em
constante mutação, e a ―nação‖ se revelou um constructo como outros, baseado, por
exemplo, em referenciais de outra sorte, tais como a etnia, a religião ou a língua. A
História Literária abandonou seus pilares tradicionais e se tornou a articulação de
sistemas ao mesmo tempo imbricados, superpostos e dinâmicos. É como uma
disciplina marcada pelo signo da pluralidade e do dinamismo que ela vem realizando
hoje, na América Latina, sua tarefa de reconfiguração de identidades. (COUTINHO,
2003, p.67-8).

Acredita-se que o deslocamento ou descentramento de identidade seja um fator

importante para a compreensão de parte da literatura brasileira contemporânea. Desta

forma, pode-se estabelecer a premissa de que a identidade brasileira tende a ser cambiante

e intercambiante, com transições complexas entre o ―eu‖, o ―nós‖ e os ―outros‖ e fronteiras

difusas.

Identidades são processos que se manifestam lingüística e literariamente. Por

conseguinte, será necessário enfrentar certas ―narrativas do eu‖ (cf. Stuart Hall) cômodas,

ultrapassadas e ineptas a propósito da suposta democracia étnica brasileira. A alteridade

possibilita, então, a consciência da singularidade e da diferença, enquanto o sentido de

pertencimento permite a identidade e o reconhecimento de um conjunto de significados

compartilhados e estabelecimento de margens entre o ―eu‖, o ―nós‖ e os outros.


32

Em literatura, entendemos por discurso feminino o uso específico que certas autoras

fazem do código da língua, na intenção de representação do mundo. Assim, enunciado e

enunciação registram uma posição social peculiar, portanto distinta daquela ocupada pelo

homem.

Em se tratando de Brasil, a mulher apenas recentemente conquistou seu espaço

como escritora. Porém, até hoje, a produção literária feita por mulheres ainda é

pejorativamente classificada como sub-produção desprovida de um valor literário

significativo. Complementa Helena Parente:

O estereótipo do feminino frágil e não afeito à atividade intelectual, é


fomentado através da inoculação das características do altruísmo e da docilidade. O
enobrecimento e endeusamento da ―rainha do lar‖ tem por corolário a sedução do
encargo que lhe é confiado de educadora da prole, tornando-a ainda mais responsável
pela formação de cidadãos capazes de engrandecer a pátria.
(...) Através da visão do sentimento materno como fazendo parte da essência
feminina, fundamentou-se a base supostamente científica das concepções
essencialistas. Devido a tais concepções, a identidade feminina forjada pelo regime
patriarcalista não admitia questionamentos nem contestações, já que as desigualdades
pareciam justificadas sob a alegação de fazerem parte da essência do masculino
(superior e dominador) e feminino (inferior e subordinado). Uma vez considerados
naturais e inatos esses valores da cultura eram tidos por imutáveis e, portanto,
inquestionáveis. (CUNHA, 2001, p.24).

A respeito da distinção da literatura produzida por mulheres do acervo global,

esclarece-se que são, antes de tudo, textos literários como os demais. Não se trata,

portanto, de separá-los, mas de caracterizá-los no que eles possuem de comum entre si e de

diferente dos demais.

Com a intenção de se evitar ao máximo o resvalamento para o domínio do

feminismo, torna-se necessário, neste momento, definir os conceitos de feminino como o

que se refere ao sexo feminino, trazendo sua marca; e o de feminismo, movimento político

que luta pelos direitos da mulher.


33

Ocorre vez por outra de um discurso feminino ser também feminista, porém não o

será necessariamente. Mas para que se entenda a pertinência do discurso feminino, não se

pode ignorar a problemática da mulher na sociedade contemporânea. É a partir de sua

posição (com relação à do homem) que lhe é permitido perceber e representar este mundo

onde vive; o olhar feminino é peculiar em função de uma diferença de ângulo, pois o

homem sempre esteve no centro das decisões, comandando o mundo e a mulher só

recentemente emergiu da atmosfera doméstica, que funcionava como uma redoma ou uma

prisão, e começa agora a tomar consciência da vida lá fora. Quanto a esse aspecto elucida

Helena Parente:

O que importa ressaltar no vasto campo dos estudos das vozes femininas na
literatura brasileira, no presente ou no passado, é sua perfeita sintonia com o novo
espírito crítico desta mutante era pós-moderna.
Entre as características mais evidentes de nosso tempo fragmentado e
multidirecionado, por certo destaca-se a forte tendência contestatória. Todos os
valores, princípios, conceitos, concepções, palavras de ordem, enfim, toda a visão de
mundo vigente até então, passou a ser questionada, posta em dúvida, à proporção que
as grandes certezas de outrora se transformaram nas aflitivas perguntas sem respostas
que ainda hoje nos desnorteiam. Na arena das discussões e das polêmicas, tantas vezes
nervosas e irritadas, avulta a questão da sobrevivência e da derrubada do cânone
literário, que antes servira de baliza e medidor para autorizar a admissão da obra e
para sua avaliação. Essa atribuição decisória de caráter absoluto se incorpora às
estratégias da classe dominante, detentora do poder, da palavra e do sentido.
A partir da segunda metade do século XX, com a dissolução da hegemonia
dos critérios hierarquizantes que excluíam a obra literária e artística produzida por
segmentos alteritários, abriu-se o espaço para que se fizessem ouvir as vozes
marginalizadas, inicialmente de negros e mulheres, ao lado da emergência dos
escritores terceiromundistas, além dos demais grupos excluídos da cultura dominante.
No Brasil, ao sabor do fluxo daquelas águas, floresceu a produção literária feminina,
tendo sido as autoras logo reconhecidas, sem que precisassem mais se defrontar com
críticas desairosas, chacotas e difamações que tantas de suas antecessoras foram
obrigadas a suportar. Os tempos haviam mudado e a mulher já estava começando a
ocupar seu lugar no mundo regido pelos critérios masculinos. (CUNHA, 2001, p.22).

O discurso feminino é, ainda hoje, alvo de polêmicas e muitos homens se recusam a

aceitar sua existência. Como é fruto de discriminação social, aceitá-lo implica em

corroborar esta discriminação. No entanto, é um fato consumado, sobretudo entre as

próprias escritoras como constata Helena Parente Cunha:


34

Os atuais estudos de gênero rechaçam todo e qualquer tipo de essencialismo,


atribuindo ao ser homem e ser mulher uma construção discursiva, resultante de uma
aquisição cultural. Uma das tendências do pós-modernismo consiste em historicizar
esses valores e focalizar os vários segmentos alteritários a partir de um ângulo
contextualizado.
A fala da mulher, uma vez introduzida no discurso hegemônico, carreia a
desorganização na ordem simbólica. Ao se tornar sujeito do discurso, a mulher entra
em conflito com as cláusulas da passividade e obediência. (CUNHA, 2001, p.24).

Voltando ao corpus deste trabalho, o Coral das lavadeiras de Almenara, constata-

se que mais do que um motivo, a representação do amor, dos desejos e dos anseios

pessoais contidos nas letras, deve ser tratado nas cantigas das Lavadeiras como significante

estruturador dos sentidos dos versos.

Deste modo, a relação mulher/sociedade não reverencia o binômio original

eu/outro, pois colocando em jogo a questão do feminino, a mulher se inscreve e se vê

inscrita nas letras com traços enaltecedores no lugar dos depreciativos que geralmente lhe

atribuem o discurso masculino por quem é falada.

A visão binária a que o feminino é submetido encontra, portanto, seu contraponto

suplementar, surpreendente e inquietante, na fala da mulher que irrompe o discurso no

grupo mineiro das Lavadeiras. Pode-se dizer sem melindres que os cantos entoados pelas

Lavadeiras do Vale são a genuína representação da difícil história da mulher, no seu

caminho de silêncio e de solidão, por onde traça a busca de identificar-se a si mesma

perante o outro.

A discussão em torno das novas possibilidades identitárias construídas a partir do

fascínio pelo novo, pela velocidade, pelo consumo e pela lógica de mercado, tem ocupado

intelectuais em várias áreas acadêmicas e encontra, cada vez mais, espaço de expressão na

literatura que catalisa e expõe uma determinada lógica social.

As novas faces do indivíduo contemporâneo, o que elas diferem daquelas que as

antecederam, na sua maneira de ser, de fazer, de sentir, são questões cruciais que permeiam
35

a contemporaneidade. Mas será possível falar de uma metamorfose da identidade

contemporânea e o que a caracteriza?

Elódia Xavier, em Declínio do patriarcado (1998), elucida a respeito do drama da

mulher liberada na sociedade contemporânea. Com a família, ―lugar de adestramento

social‖ em crise, a célula mater da sociedade, segundo a Igreja, multifacetada, e o sistema

de gêneros desfeito, devido à perda da autoridade paterna, ocorre a quebra hierárquica dos

velhos ordenamentos sociais. Segundo a autora, essa mulher divide-se ―entre viver seu

‗destino de mulher‘ e realizar sua ‗vocação de ser humano‘, ambição tornada possível

graças à evolução dos costumes, buscando uma solução para sua ‗plenitude existencial‘‖.

(XAVIER, 1998, p.63)

São suas as palavras:

A ótica feminista deslocada do centro percebe o que o olhar anestesiado pela


cultura patriarcal ignora. O feminismo, enquanto modo peculiar de ler o mundo,
entende a realidade como um constructo; dentro desta concepção, o sexo (fato
biológico) não predetermina o gênero (fato construído). Além disso, com sua postura
antipatriarcal, o feminismo se ocupa em demolir a hegemonia de um gênero sobre o
outro. Todo e qualquer texto, de autoria feminina ou não, que analise e desconstrua as
noções patriarcais de gênero, faz uma leitura feminista. (XAVIER, 1998, p.65)

Na pós-modernidade, o encadeamento entre passado, presente e futuro dissolve-se.

O momento presente se evidencia por meio de fragmentos e não há lugar para conceitos

absolutos.

A maneira de se constituir o tecido social será afetada por essa crise paradigmática

e outras formas de se conceber o mundo e de vivenciar o cotidiano são proporcionadas

pelos rearranjos culturais.

Se antes crenças e valores eram explicados de forma estática, em contextos

unívocos, agora se vive o império da multiplicidade de discursos. Não há mais trilhos a

seguir, mas uma diversidade de trilhas que beira o infinito, relativizando as certezas e

fomentando a angústia da escolha.


36

2.1 A fragmentação das novas identidades sob o impacto da globalização e do


consumismo

Clifford Geertz adota o conceito de cultura a partir das reflexões elaboradas por

Max Weber, para quem o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele

mesmo teceu. Para Geertz, a cultura é definida por essas teias e pela análise destas. Desta

forma, torna-se relevante investigar como homens e mulheres, inseridos em uma ―teia de

significados‖, absorvem, e de que forma, todo esse conjunto de situações.

Do ponto de vista da subjetividade, deveriam ocorrer alterações que, de certa

forma, seriam incorporadas às suas práticas culturais. Parte-se do pressuposto de que

ocorre uma transfiguração do habitus, tal como define Bourdieu, como um:

(...) sistema de disposições adquiridas, duráveis e transferíveis predispostas


para funcionar como princípios geradores e organizadores de práticas e representações
(...) Através do habitus a estrutura da qual ele é o produto governa a prática, não de
forma mecânica e determinista, mas através de constrangimentos e limites impostos
pelas condições de existência. (BOURDIEU, 1974, p.60).

Sendo, portanto, um princípio gerador que se pretende durável, mas também

flexível, capaz de adotar improvisações reguladas e inovações às exigências postas pelas

situações concretas, o habitus não é algo repetitivo, mas sim repleto de possibilidades

criativas.

O habitus vem a ser, portanto, um princípio gerador que leva a cabo a interação

entre dois sistemas de relações, as estruturas objetivas e as práticas. Segundo Bourdieu: ―O

habitus completa o movimento de interiorização de estruturas exteriores, ao passo que as

práticas exteriorizam os sistemas de disposições incorporadas‖. (BOURDIEU, 1974, p.61).


37

A utilização do conceito de habitus parece bastante útil para a apreensão da

dinâmica, do conteúdo e das mudanças desencadeadas a partir da pós-modernidade. Isso

porque as disposições adquiridas, duráveis e mutáveis fornecem suportes necessários –

uma vez que são passíveis de transformação – para orientar as práticas nas quais esses

sujeitos se inserem alternadamente.

A possibilidade de o habitus incorporar novos elementos, conforme as necessidades

objetivas garante, portanto, a inserção social. Além disso, ao mudar as condições objetivas

e o habitus, muda-se a forma de viver e de compreender o mundo social. Nessa direção é

que se afirma que as transformações ocorridas são incorporadas tanto objetiva quanto

subjetivamente. Portanto, correspondem a toda prática social.

A relação das mulheres lavadeiras, com a natureza, é caracterizada pela harmonia, o

que garante a preservação do ecossistema. A terra apresenta, para elas, um significado mais

amplo e não somente o seu espaço de trabalho e meio de vida. É um espaço onde se

definem as relações dos homens entre si.

Nesta acepção, as práticas cotidianas, permeadas por laços sociais e políticos,

reafirmam a valorização da ajuda mútua e da solidariedade entre os membros da família,

entre os vizinhos e entre aqueles que pertencem ao lugar, que é a comunidade. Os códigos

que regem a vida, de forma geral, são elaborados no interior das relações camponesas

interdependentes que visam preservar a expressão da identidade rural, como se pode

observar pela cooperativa das lavadeiras de Almenara, citada no início deste trabalho.

Stuart Hall nos elucida a questão da crise de identidade do sujeito que, se antes, em

uma sociedade moderna, possuía uma fronteira bem demarcada social e culturalmente,

hoje apresenta um deslocamento e uma fragmentação quanto à cultura, classe e, dentre

outras, etnia e nacionalidade. Para o autor:


38

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,


está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades,
que compunham as paisagens sociais ―lá fora‖ e que asseguravam nossa conformidade
subjetiva com as ―necessidades‖ objetivas da cultura, estão entrando em colapso,
como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio sucesso de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-
se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 2005, p.12).

A reflexão elaborada por Mike Featherstone (1997) centra-se na percepção de que

os espaços globais são esferas distintas dos lugares; naqueles predomina a identificação

ampliada e anônima despojada de características locais, familiares, com singular

importância nas sociedades modernas pautadas pela globalização, com forte predomínio da

hegemonia ocidental. Segundo Fearthestone:

O estoque comum de conhecimentos à disposição, no que se refere ao grupo


de pessoas que são os habitantes e o entorno físico, é relativamente fixo, segundo se
pressupõe, isto é, trata-se de algo que persistiu ao longo do tempo e pode incorporar
rituais, símbolos e cerimônias que ligam as pessoas a um lugar e a um sentido comum
do passado. (FEATHERSTONE, 1997, p.126).

Embora não se tenha feito nenhuma distinção entre espaço e lugar, usando-se,

indiscriminadamente, a denominação espaço, lugar, local, para se referir onde os as

lavadeiras vivem ou passam, por determinado tempo, suas vidas, a definição de espaços e

lugares precisa ser trabalhada, afinal, são sinônimos designativos, onde as pessoas

reconhecem e são reconhecidas.

Reafirmando essa idéia, diz Featherstone:

A relação dos camponeses com a terra constitui-se em um forte elemento para pensar
a sua real condição econômica e simbólica. Ela não é apenas o lugar de produzir a
vida material; tem a dimensão de território que extrapola os limites físicos,
geográficos. É o lugar onde o sagrado encontra, cotidianamente, pequenas formas de
se fazer presente, por meio de pequenos ritos. (FEATHERSTONE, 1997, p.128).

De acordo com Otávio Ianni, para o camponês:


39

A terra não é um fato da natureza, mas produto material e espiritual do trabalho


humano. A relação do camponês com ela compreende um intercâmbio social
complexo, que implica a cultura. Jamais se limita à produção de gêneros alimentícios,
elementos artesanais, matérias-primas para a satisfação de suas necessidades de
alimentação, vestuário, abrigo, etc. Muito mais que isso, a relação do camponês com a
terra põe em causa também a sua vida espiritual. A noite e o dia, a chuva e o sol, a
estação de plantio e a de colheita, o trabalho de alguns e o mutirão, a festa e o canto, a
estória e a lenda, a façanha e a inventiva. São muitas as dimensões sociais e culturais
que se criam e recriam na relação do camponês com a sua terra, lugar. (IANNI, 1986,
p.182).

A propriedade privada, a terra, representa a forma de recuperação da ocupação

territorial e as sucessivas alterações provocadas pela ação desenvolvimentista do

capitalismo na região do Vale do Jequitinhonha.

A indústria doméstica foi sendo transformada em artesanato para consumo nas

grandes cidades, mas ao mesmo tempo recupera-se a forma de criação e de ideação

presentes na memória coletiva.

Ao ver a alteração do resultado do seu trabalho, os camponeses foram resgatando os

seus antigos conhecimentos, imprimindo-os nas suas manifestações culturais hoje

reconhecidas e valorizadas e até mesmo, no caso das Lavadeiras, como complemento de

sua renda e transcendência à condição de opressão, uma vez que se tornaram artistas

reconhecidas como as ―lavadeiras-cantoras‖, gravam CDs e se apresentam pelo país afora

na divulgação de suas cantigas antes circunscritas à beira do rio.

Dadas as exigências do presente, filtram-se as imagens contidas no passado e, com

base neste, recuperam-se os objetos, a memória coletiva e cultural conservadas por

parentes e amigos, pessoas do mesmo grupo social na manutenção de práticas seculares

como as cantigas denominadas de trabalho, pois são entoadas no momento em que as

roupas são lavadas.

De acordo com Canclini (2003), nas classes populares encontra-se às vezes uma

extraordinária habilidade manual conseguida no trabalho que desempenham, pois soluções


40

técnicas apropriadas a seu estilo de vida são desenvolvidas. Mas, acrescenta o autor,

dificilmente esse resultado pode competir com o daqueles que dispõem de um saber

acumulado historicamente. Assim:

Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais


representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo
que os fabrica. Constituem-se, nesse sentido, seu patrimônio próprio. Também podem
alcançar alto valor estético e criatividade, conforme se comprova no artesanato, na
literatura e na música de muitas regiões populares. Mas têm menor possibilidade de
realizar várias operações indispensáveis para converter esses produtos em patrimônio
generalizado e amplamente reconhecido: acumulá-los historicamente (sobretudo
quando são submetidos à pobreza ou repressão extremas), torná-los base de um saber
objetivado (relativamente independente dos indivíduos e da simples transmissão oral),
expandi-los mediante uma educação institucional e aperfeiçoá-los através da
investigação e da experimentação sistemática. Sabe-se que alguns desses pontos se
realizam em certos grupos – por exemplo -, a acumulação e transmissão histórica
dentro das etnias mais fortes -; o que aponto é que a desigualdade estrutural impede de
reunir todos os requisitos indispensáveis para intervir plenamente no desenvolvimento
do patrimônio em sociedades complexas. (CANCLINI, 2003, p.196).

Ao lugar caberia a experiência, enquanto ao espaço restaria aquilo que não pode ser

compartilhado, experimentado coletivamente, pois se trata de vivências individuais, sem

significado para a coletividade. Dessa forma, tudo que ocorre fora dos seus locais de

origem passa, a partir de então, a ser designado ―espaço de passagem‖, já que se pressupõe

o retorno das pessoas. As experiências concretizadas em seus locais, com ―senso de lar‖,

denominam-se ―lugar de origem‖.

Os recursos impressos na memória coletiva e apropriados pelas populações do

Vale, no momento de modificação de uma arte regional, como a música das Lavadeiras,

alcançando projeções nacionais, reforçam a idéia de que o passado só aparece a partir das

estruturas ou configurações sociais do presente e de que as memórias, embora pareçam ser

exclusivamente individuais, são peças de um contexto social que não só contém as pessoas

como é anterior a elas mesmas.


41

O local de origem, a terra natal se constitui em atividade material para as

Lavadeiras do Vale. Por meio do espaço, existe toda uma concepção de mundo, de idéias,

de valores e de representações.

Entretanto, à terra enquanto objeto delineável, acrescenta-se uma dimensão que,

necessariamente, irá fundir-se ao processo de constituição da produção de idéias, do

pensamento. É a terra simbólica, que traz consigo a compreensão de mundo, que extrapola

a sua natureza material – meio de produção, instrumento para realização do trabalho

familiar e para a apropriação de seus frutos – e alcança a dimensão indelineável,

introspectiva, do sagrado. Para Maria Izabel Vieira Botelho:

A terra é, para o camponês, o meio através do qual retira a sua sobrevivência


cotidiana, materializando a sua vida e formulando as suas representações. Cria-se
assim o elo homem-terra.
A existência camponesa, intrinsecamente vinculada àquilo que da terra advém,
engendra o sentimento de preservação e conservação daquilo que lhes dá a vida.
Assim, a terra é algo que é, ao mesmo tempo, tocável e intocável, material e
simbólica, natureza sagrada. (BOTELHO, 1999, p.44).

Portanto, a terra, compreendida dessa maneira, não pode significar apenas a

produção de alimentos e de matéria-prima para o artesanato, visto que condensa uma

dimensão que é vivida e representada e que não comporta a idéia de propriedade a ser

trocada como mercadoria.

Bachelard, em A poética do espaço (1990), amplia o significado da palavra terra. O

autor sublinha a importância da casa – abrigo acolhedor – para todos os indivíduos:

A casa, na vida do homem, afasta contingência, multiplica seus conselhos de


continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através
das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro
mundo do ser humano. (BACHELARD, 1990, p. 23).

A terra e os mananciais, além de serem um meio de produção, lugar do trabalho

agrícola ou solo onde se distribuem recursos animais e de coleta, representam dimensões


42

sócio-político-cosmológicas mais amplas. Almenara, a cidade das lavadeiras-cantoras,

situa-se no nordeste de Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha. A região do Vale é

cortada, horizontalmente, pelo rio Jequitinhonha, que prossegue seu curso pelo Estado da

Bahia e despeja suas águas no Oceano Atlântico, na cidade de Belmonte.

Conhecida também como ―Vale da Fome‖, a região é considerada uma das mais

pobres do país e ainda tem na migração sazonal um recurso subsidiário fundamental

para assegurar a sobrevivência do camponês.

A partir dos anos 60 e 70 que tal prática torna-se mais expressiva, uma vez que a

investida capitalista em algumas atividades que contam com a ação estatal, no sentido de

construir as condições gerais de produção para os ―produtores em potencial‖, rompeu o

equilíbrio regional e acentuou, por conseguinte, as migrações.

Dentro deste questionamento sobre a terra, inserem-se as noções de territorialidade

e de fronteira. A noção de território é uma representação coletiva, uma ordenação do

espaço. A transformação da categoria espaço em território é um fenômeno de

representação através do qual os grupos humanos constroem sua relação de materialidade,

num ponto em que a natureza e a cultura se fundem.

A noção de território é, sem dúvida, formada por um dado imediato de

materialidade, mas esse é apenas um componente, já que todas as demais representações

sobre o território são abstratas.

A fronteira, parte do patrimônio material e ideológico que determina as relações da

sociedade com seu espaço pode ser definida, ao mesmo tempo, como construção

ideológica, cultural, política e como o conjunto dos fenômenos concretos identificáveis no

campo das representações.

Dessa forma, na raiz da percepção do território está a construção básica da

identidade coletiva e, por extensão, a sede do estabelecimento da diferença, o limite para a


43

construção da alteridade enquanto uma situação antagônica por definição. Portanto, se o

território é a representação coletiva fundamental da sociedade, a fronteira é o

estabelecimento da diferença.

A sociedade em que as Lavadeiras estão inseridas possui um território tradicional,

em que os seus limites são conhecidos por todos aqueles que dela participam. À medida

que os resultados da ação do capitalismo sobre a arte produzida pelas lavadeiras vão ao

encontro de uma dilapidação das suas condições de vida, abre-se um espaço para o

reconhecimento de outra forma de agir, até então, incongruente com as suas.

Porém, o agir desconhecido inseriu-se pelas sendas deste mundo, modificando-o.

Assim, demanda uma reestruturação sob novas bases e esse refazer irá constituir um novo

sujeito.

Nesse sentido, desencadeiam-se modificações no habitus, pois, enquanto princípio

gerador que supõe esquema durável, mas também flexível, capaz de adotar improvisações

reguladas e inovações às exigências postas pelas situações concretas, o habitus apresenta-

se como recurso de sobrevivência diante das sucessivas mudanças concretas impressas na

vida cotidiana. A utilização do conceito acima referenciado pode sugerir certo

conformismo, num quadro de poucas saídas reais, para uma população em processo de

contínuas perdas ao longo da história.

Entende-se também que as mudanças no habitus não são decorrentes apenas de

situação-limite; todos estão, permanentemente, em contato com uma nova realidade que

carece de novas maneiras de nela agir. Entretanto, existem formas éticas de gerar

desenvolvimento que levam em consideração as tradições morais e culturais próprias de

cada grupo, como o bem sucedido projeto idealizado por Carlos Farias.
44

2.2 A construção do sujeito solitário em virtude da fragilidade dos vínculos humanos

Para Max Weber, a modernidade teria como referência a civilização baseada na

economia de mercado, no valor de troca, na propriedade privada, na racionalidade

instrumental, na quantificação, na legitimidade burocrática, no espírito de cálculo racional

e no desencantamento do mundo.

Walter Benjamin concebe a modernidade de uma maneira bem negativa e

desalentada, como uma catastrófica e infernal danação.

Berman, por sua vez, considera a modernidade como a experiência vital de tempo e

de espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e dos perigos da vida, que é

compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo. De acordo com o autor: ―Ser

moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, alegria, poder,

crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor, mas, ao mesmo

tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que somos‖. (BERMAN, 1996,

p.105).

Dessa forma, pode-se inferir que a modernidade apresenta dois pólos ambivalentes

e opostos: um de construção e outro de destruição. Destruir e criar são, portanto, partes

inerentes e intrínsecas ao processo de modernidade.

Com a anulação do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia, vemos

negativamente o capitalismo em sua capacidade destrutivamente transformadora, o que

confere, por exemplo, a alteração das relações sociais e de trabalho na região onde as

Lavadeiras vivem. O popular, em sua tentativa de sobrevivência, é obrigado a fundir-se à

força opressora da tecnologia.


45

Segundo Octavio Ianni (1997), a globalização é um fato e, de acordo com suas

palavras:

[o] globalismo pode ser visto como uma configuração histórico-social no


âmbito da qual se movem os indivíduos e as coletividades, ou as nações e as
nacionalidades, compreendendo grupos sociais, classes sociais, povos, tribos, clãs e
etnias, com suas formas sociais de vida e trabalho, com as suas instituições, os seus
padrões e os seus valores. Juntamente com as peculiaridades de cada coletividade,
nação ou nacionalidade, com as suas tradições ou identidades, manifestam-se as
configurações e os movimentos do globalismo. São realidades sociais, econômicas,
políticas e culturais que emergem e dinamizam-se com a globalização do mundo, ou a
formação da sociedade global. (IANNI, 1997, p.218)

Esclarece-se que, neste trabalho, considera-se a definição de globalização elaborada

por Lombardi (2001), ou seja, a vida em um mundo que tende ao rompimento e à

dissolução das fronteiras da economia, da cultura e da sociedade.

Existe uma nova (des) ordem uma vez que as categorias tempo e espaço foram

abaladas, bem como passado e presente, biografia e memória, identidade e alteridade.

Assim, de acordo com Ianni, o problema agora é compreender a realidade agora desenhada

em níveis micro, macro e metateórico.

As Lavadeiras, ao verem suas formas de vida modificadas, em meio às

transformações bruscas e às novas exigências do mercado, reconstroem novas práticas,

alterando-as, mas em contrapartida, mantendo velhos costumes como o contato com a

natureza e com a liberdade de expressão a que estavam habituadas.

Alguns teóricos, como Walter Benjamin, apresentam a faceta desestruturadora da

modernidade e sua influência negativa sobre tudo e sobre todos, ou seja, um perigo para os

homens. Outros, entretanto, salientam a possibilidade de reação daqueles que

incondicionalmente estão suscetíveis às ações da modernidade.

A abordagem deste trabalho intenciona incorporar as duas vertentes, visto que cada

uma aponta elementos bastante ricos para reflexão. Segundo Botelho:


46

(...) acredita-se que, em processo crescente de desestruturação fomentado pela


modernidade, as pessoas procurem formas e vias de assegurar valores, crenças e
práticas que são sedimentadoras de sua identidade. Sem elas, sim, poder-se-ia pensar
num caos absoluto. A desestruturação abarcaria todos e tudo, sem a menor chance de
reação por parte daqueles que sofrem a ação da onda modernizante. (BOTELHO,
1999, p.5).

Nessa capacidade de reação à pós-modernidade existem duas dimensões: uma que

ressalta o lado perverso do processo e investe no valor histórico e cultural da tradição e

outra que releva as artimanhas humanas, reais e simbólicas, construídas dentro do contexto

de modernidade existente nas mais diversas sociedades.

Um dos aspectos mais relevantes sobre o qual a sociedade atual encontra-se

estruturada é o poder que o masculino exerce sobre a mulher. Segundo Humberto

Maturana, a diminuição da diferença entre homens e mulheres deve partir de uma

convivência mutuamente acolhedora e libertadora. Atribui o autor ao vocábulo matrístico a

conotação de uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que

implica a coerência sistêmica acolhedora e libertadora fora do autoritário e do hierárquico.

Porém, matrístico não significa matriarcal, em que as mulheres exerceriam, tal

como ocorre com os homens, o papel dominante na sociedade. Matrístico é uma expressão

que designa uma cultura em que homens e mulheres se inseririam em um modo de vida

centrado na cooperação não-hierárquica, mas de participação e de confiança.

Questiona-se no decorrer do estudo de Maturana a participação da mudança

emocional na transformação cultural. Além disso, o autor tece considerações a respeito das

relações homem-mulher de uma maneira independente das particularidades da perspectiva

patriarcal.

Em uma reflexão sobre a espécie de mundo em que vivemos, e estabelecendo um

convite a fazê-lo por meio do exame dos fundamentos emocionais do nosso viver, o autor

justifica sua tese: ―A vida humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional
47

que constitui, a cada instante, o cenário básico a partir do qual surgem nossas ações‖.

(MATURANA, 2004, p.29).

Quanto à forma de organização das sociedades, temos a citação de Maturana:

[...] os membros de diferentes culturas vivem, movem-se e agem de maneira


distinta, conduzidos por configurações diferentes em seu emocionar. Estas
determinam neles vários modos de ver e não ver, distintos significados do que fazem
do que não fazem, diversos conteúdos em suas simbolizações e diferentes cursos em
seu pensar, como modos distintos de viver. [...] são os variados modos de emocionar
das culturas o que de fato as torna diferentes como âmbitos de vida diversos.
[...] se levarmos em conta os fundamentos emocionais de nossa cultura [...]
poderemos entender melhor o que fazemos ou não fazemos como seus membros. E, ao
perceber os fundamentos emocionais de nosso ser cultural, talvez possamos também
deixar que o entendimento e a percepção influenciem nossas ações, ao mudar nosso
emocionar em relação ao nosso ser cultural. (MATURANA, 2004, p.30).

Considerando que o linguajear tenha surgido no entrelaçamento com o emocionar, para o

autor o humano surge quando nossos ancestrais começaram a viver no conversar como uma

maneira cotidiana de vida que se conservou, geração após geração, pela aprendizagem dos filhos.

Assim, todo o viver humano consiste na convivência em conversações e redes de

conversações, pois o que nos constitui como seres humanos é nossa experiência no conversar:

―Todas as atividades e afazeres humanos ocorrem como conversações e redes de conversações.

Aquilo que um observador diz que um Homo sapiens faz fora do conversar não é uma atividade ou

afazer tipicamente humano‖. (MATURANA, 2004, p.31).

Partindo desse pressuposto, a cultura é definida como o que conotamos na vida cotidiana,

quando falamos de cultura ou de assuntos culturais. É uma rede fechada de conversações que

constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de

emoções e ações:

Desse modo, uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador


fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua
participação nas conversações que a constituem e definem. Daí se segue, também, que
nenhuma ação e emoção particulares definem uma cultura, porque esta, como rede de
conversações, é uma configuração de coordenações de ações e emoções.
(MATURANA, 2004, p.33).

Porém, o pertencimento a uma cultura não é uma propriedade intrínseca dos

indivíduos que a realizam. Dessa forma, o ser humano pode pertencer a diferentes culturas
48

em diferentes momentos do seu viver. Quando uma rede de conversações deixa de ser

preservada, a cultura desaparece ou sofre modificações.

Com as Lavadeiras de Almenara, houve uma mudança ao mesmo tempo em que

ocorreu uma preservação de alguns valores da cultura matrística - que serão retomados no

capítulo 4 do presente trabalho - Perspectivas utópicas nos caminhos e descaminhos da

hipermodernidade na cantiga das lavadeiras.

De acordo com Maturana (2004), se o indivíduo não puder compreender que suas

emoções constituem e guiam suas ações na vida, conseqüentemente não terá elementos

conceituais para entender a participação de suas emoções no que lhe permite tornar-se

membro de uma cultura e o curso de suas ações nela. E, finalmente, se não entender que o

curso das ações humanas segue o das emoções, não poderá compreender a trajetória da

história da humanidade.

À denominada cultura patriarcal em que estamos inseridos, e que contém as

características que predominam no mundo atual como a valorização da guerra, a

competição, as hierarquias, o poder e, dentre outros, a justificação racional do controle e da

dominação dos outros por meio da apropriação da verdade; faria oposição a uma cultura

denominada matrística pré-patriarcal européia. Sendo definida, segundo o autor, por

padrões bem diferentes, pois não havia hierarquia, propriedades, exclusão, o bom e o mau;

e os seres, apesar de suas diferenças, eram, nesta cultura, considerados iguais.

Elucida a respeito desta tese Maturana:

Não há dúvida de que a presença dessas palavras (acréscimo nosso:


participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração),
em nosso falar moderno, indica que as coordenações de ações e emoções que elas
evocam ou conotam também nos pertencem nos dias de hoje, apesar de nossa vida
agressiva. Contudo, em nossa cultura reservamos o seu uso para ocasiões especiais,
porque elas não conotam, para a atualidade em que vivemos, nosso modo geral de
viver. Ou então as tratamos como se evocassem situações ideais e utópicas, mais
adequadas para as crianças no jardim de infância, do que para a vida séria dos adultos
– a menos que as usemos nessa situação tão especial que é a democracia.
(MATURANA, 2004, p.42).
49

Quando o indivíduo adquire a identidade individual e o que se denomina

consciência individual e social, aprende a viver o fluxo emocional da sua cultura, o que lhe

faz parecer natural, adequado e evidente, todas as ações contraditórias e binárias que a

caracterizam, em um contínuo esforço pela apropriação e controle da conduta dos outros,

lutando sempre contra novos inimigos.

Desta forma: ―O pensamento patriarcal é essencialmente linear, ocorre num

contexto de apropriação e controle, e flui orientado primariamente para a obtenção de

algum resultado particular porque não observa as interações básicas da existência. Por isso,

o pensamento patriarcal é sistematicamente irresponsável. (MATURANA, 2004, p.47).

Em geral, não vemos essa interdependência entre a mudança no emocionar e a


modificação cultural, porque não estamos habitualmente conscientes de que toda
cultura como uma rede de conversações, é um modo específico de entrelaçamento do
linguajear e do emocionar. Também não é fácil para nós, humanos patriarcais
modernos, compreender a mudança no emocionar implicada na adoção de novas
maneiras de viver: estamos acostumados a explicar o que fazemos ou o que nos
acontece com argumentos racionais que excluem a perspectiva do emocionar. Mas não
é raro observar que uma pessoa pode viver uma grande transformação em seu
emocionar, em relação alterações em seu modo de vida. (MATURANA, 2004, p.53).

Enfim, para o senso comum, as transformações no emocionar ocorrem quando há

mudanças no trabalho, na situação econômica ou na vida mística. O sujeito solitário em

virtude da fragilidade dos vínculos humanos é a marca do nosso tempo em que vigoram as

relações binárias e contraditórias de apropriação e de exclusão, de inimizade e de guerra,

de hierarquia e de subordinação, de poder e de obediência.

As relações que esse sujeito constrói com o mundo natural também foram

modificadas. A confiança ativa na harmonia espontânea de toda a existência se

transformou na desconfiança ativa nessa harmonia e para um desejo de dominação e de

controle.
50

A perda do sagrado se manifesta nesse sujeito devido às relações com a vida que se

deslocaram da confiança na fertilidade espontânea de um mundo sagrado, que existe na

legitimidade da abundância harmônica e do equilíbrio natural de todos os modos de vida,

para a busca ansiosa da segurança. Esta traz consigo a unidirecionalidade, obtida pela

valorização da procriação, da apropriação e da explosão demográfica.

A solidão do homem e a fragilidade que permeiam os laços humanos é intensificada

pelo desejo constante de sempre se ter mais, desencadeando um consumismo egoísta

irresponsável, bem como o desejo de posse masculino no que tange à propriedade, e aí se

incluem a mulher e os filhos e, finalmente, o temor da morte como fonte de dor e perda

total.

O indivíduo é o espelho de sua cultura. Ele é o somatório dos valores de sua cultura

e da sua vida pessoal, individual. Logo, as idéias e as crenças desses indivíduos, centradas

na apropriação, são consideradas como se formassem sua própria identidade. Dessa forma,

tomando e defendendo o seu próprio modo de viver como o único verdadeiro, ocorre a

negação do outro, a negação da alteridade, tornando-se ainda mais frágeis os vínculos

humanos.
51

3 PERSPECTIVAS UTÓPICAS NOS CAMINHOS E DESCAMINHOS DA


HIPERMODERNIDADE NAS CANTIGAS DAS LAVADEIRAS

Uma das manifestações culturais mais marcantes em todo o Vale do Jequitinhonha

é, sem dúvida, resultante das diversificadas formas de trabalho, cuja manutenção e

preservação devem-se às várias gerações de famílias que, durante séculos, asseguraram

parte da reprodução dos grupos sociais presentes em toda a região. Por meio dos trabalhos

em couro, barro, taquara, fios de algodão e madeira, a população pobre que residia no meio

rural produzia bens imateriais e materiais como os de utilidade doméstica local e regional.

Dentro dessa cultura, permaneceram as cantigas seculares entoadas pelas lavadeiras

no momento em que exerciam seu ofício sobrevivendo até os dias de hoje, apesar de se

viver a era dos produtos eletrônicos e da fragmentação da identidade face à modernização.

Neste trabalho optou-se por um recorte das manifestações populares presentes em

todo o Vale do Jequitinhonha a fim de se priorizar o corpus que consiste nas cantigas

presentes no repertório das Lavadeiras de Almenara.

Reconhecidas a riqueza e a variedade das várias formas de manifestação da cultura

material da região, a análise que se pretendeu fazer neste trabalho centrou-se na cultura

imaterial que, se não for preservada como a exemplar iniciativa do pesquisador e

folclorista Carlos Farias, desaparecerá sem talvez deixar vestígios.

A opção pelo Coral das Lavadeiras de Almenara deveu-se à possibilidade de

compreender algumas alterações que se foram processando ao longo das mudanças

impressas nas práticas dos indivíduos, com implicação da contínua perda do contato com a

natureza, estendendo-se à terra e aos rios.


52

Os grandes projetos de desenvolvimento implementados no Vale do Jequitinhonha,

a partir dos anos sessenta do século passado, provocaram modificações nas práticas

culturais, sobretudo na cerâmica, desencadeando outras ações, que visavam à preservação

cultural, como as iniciativas individuais, no caso do Coral das Lavadeiras. Iniciativa esta

que logrou êxito proporcionando às mulheres oprimidas, que fazem parte do grupo, o

reconhecimento de sua cultura, a elevação da auto-estima e a melhoria material de suas

condições de vida.

No Dicionário do folclore brasileiro, de Cascudo, encontramos o seguinte verbete

para cantiga de trabalho:

Com melodia do próprio cantador, fala de seu trabalho [...] no interior do


Brasil há cantigas para quase todas as tarefas ligadas ao trabalho no campo: do
lenhador, do plantador, do colhedor de cacau, do pilador de café, e por aí afora.
Cantam as lavadeiras quando vão para a beira do rio com a trouxa de roupa na cabeça;
canta a rendeira quando trança os bilros com destreza ao fazer sua renda. (CASCUDO,
200, p.108).

A música é a expressão essencial na expressão do folclore, juntamente com o verso

e o acompanhamento instrumental. A música folclórica é espontânea, criada e aceita

coletivamente pelo povo, transmitida oralmente para outros membros da comunidade e tem

função relacionada aos interesses da vida do grupo como se pode exemplificar abaixo na

citação:

A música folclórica pode ter raízes na música erudita, cantadas nas casas
senhoriais e mantidas ao longo do tempo nos ouvidos do povo, como a modinha, os
romances, as xácaras, de tempos medievais, ainda cantadas pelo país. É música aceita
por quem ignora os aspectos teóricos da arte musical, depois transformada ou
acrescida de novos aspectos, que correspondem às necessidades funcionais da
coletividade. (CASCUDO, 2000, p.205).

Quanto à distinção entre a música folclórica e a popular percebe-se que a


segunda é conservada na memória de um povo, em diversos países, e sua origem
costuma ser bem antiga, enquanto que a primeira é a música anônima, de transmissão
oral, antiga, e que constitui o patrimônio comum do povo de uma determinada região.
Vale ressaltar que, devido ao uso, a expressão música popular é empregada como
sinônimo escrito de música folclórica.
Um problema que se impõe, ao estudar o fenômeno da música popular, é o da
criação coletiva e do anonimato. É evidente que uma peça musical popular qualquer
53

teve um autor, foi composta por alguém; freqüentemente, recolhendo documentação


no interior do país, o investigador depara com informadores que cantam ou tocam as
próprias produções, sendo indiscutível que por esse fato elas não deixam de ser
perfeitamente folclóricas. São folclóricas não pela Antigüidade e larga difusão do
documento em si mesmo, mas pelo gênero, pelas suas peculiaridades rítmico-
melódico-harmônicas e jeito típico de interpretar do informador; tudo isso é que é
tradicional e faz parte do patrimônio de conhecimentos do povo. Quando o documento
persevera na memória popular e tende a tradicionalizar-se, caminha para o anonimato.
E em seu processo de propagação intervém, realmente, a coletividade, para recriá-lo à
sua feição, impondo o seu gosto, suas predileções e idiossincrasias. A multiplicidade e
a diversidade das versões com que se apresenta um mesmo documento atestam essa
colaboração popular. O documento é conservado, modificando-se; e essas
modificações visam conformá-lo às tendências do grupo, podendo grupos diversos
fixar versões diversas do mesmo documento, de acordo com o tipo de expressão
musical predominante em cada um.
[...] Convém observar, entretanto, que, se não temos elementos de prova para
atribuir Antigüidade considerável a qualquer de nossos cantos populares, por outro
lado já estamos em condições de constatar, hoje, a permanência de muitos deles,
encontrados em uma determinada região, ou cobrindo várias regiões, repetidos pelos
mais diversos informadores. Isso se observa, principalmente, em relação aos cantos
infantis ou de trabalho, cantos que integram os autos populares ou estribilhos de
cantos para dançar. (CASCUDO, 2000, p. 407).

No Coral das Lavadeiras, há a afirmação do valor do que é produzido de forma

imaterial, a música, e do produto do seu trabalho concreto, dos seus atributos, que se

constituem na lavagem das roupas. Desse modo, a mercadoria, fruto do trabalho, não

representa nada sem aquela que o produziu. Maria Aparecida Moraes Silva observa que,

neste caso, não existe o fetiche da mercadoria que assume o lugar das pessoas. Não se trata

de uma relação entre coisas, e sim entre pessoas. ―A coisa só tem valor porque a pessoa a

possui. É a pessoa que transmite o valor à coisa‖. (SILVA, s.d., p.99).

Nem todos os bens produzidos pelos artistas do Vale se destinam ao consumo

imediato e necessário à subsistência. As Lavadeiras, por exemplo, recuperam uma

dimensão da produção de bens culturais imateriais situados para além de sua utilidade. É

algo parecido com o mesmo destino encontrado por esses bens fora de seu espaço de

produção, ou seja, nos centros urbanos no qual o produto da população economicamente

menos favorecida ganha a qualidade de arte com a gravação dos CDs/livros e de shows em

casas de cultura e em outros espaços.


54

Assim, buscou-se compreender qual seria o significado da produção de bens que

extrapolasse o uso imediato da necessidade cotidiana para uma população que, pensava-se,

estava voltada e absorvida pela luta incansável pela sobrevivência. O que moveria, então, a

elaboração de bens que também não se destinavam à exposição em suas casas, uma vez

que essa manifestação cultural era desprovida do caráter utilitário imediato?

Não se pretende, aqui, fazer uma reconstituição etnográfica da música e da cultura

da região, mas trazer elementos relacionados a essa prática dentro de um contexto mais

amplo de entendimento, acerca dos fenômenos culturais da população rural do Vale do

Jequitinhonha, em especial, de Almenara.

Sabe-se que toda a região do Vale foi, durante séculos, povoada por índios. Sabe-

se, também, que os primeiros colonizadores e aventureiros que habitaram a região, os

portugueses à procura de ouro e de pedras preciosas, permaneceram durante muito tempo

isolados de outras povoações e, de certa forma, influenciaram e enriqueceram a cultura do

Vale com resquícios das manifestações medievais oriundas de Portugal.

Sabe-se, também, que aos elementos índio e branco português, somou-se o escravo

negro, proporcionando-se, dessa forma, um verdadeiro caldeirão cultural. Certamente a

abundância desta cultura se estendeu às novas gerações que foram se constituindo durante

anos, a partir, inclusive, das miscigenações ocorridas.

A permanência desses três elementos formadores da cultura da região, e seus

desdobramentos étnicos subseqüentes, marcou toda a forma de vida das populações locais,

inclusive na sua relação com a terra e com o rio. As marcas profundas da vida simbolizada

transparecem em todas as práticas culturais e, no caso das cantigas, a riqueza que

representam se evidencia.

Um fato que se sobressai no contexto da produção artística, no Vale, é que nem

sempre o que se produziu esteve vinculado à necessidade cotidiana. Nesse sentido,


55

compreende-se outro significado proveniente da relação do homem com a natureza,

impregnada de ritos e simbologias que transparecem de forma efetiva nas cantigas

entoadas pelas Lavadeiras.

Embora na maioria das vezes, não tenham a compensação financeira merecida ou

suficiente para a manutenção de sua sobrevivência, os artistas do povo, cada vez mais,

contam com o apreço e o reconhecimento de uma parcela da chamada elite cultural

brasileira.

Como o artista não vive de mecenato, há a necessidade de se validar perante algum

público para a veiculação de sua cultura. E, ainda que a arte popular seja alvo de muitos

preconceitos, e aí se inclui a música, essa mentalidade aos poucos vai se transformando no

sentido de se reconhecer que os artistas são referência da raiz da identidade brasileira.

Relegados ao descaso, são representantes de uma cultura popular que se esvairá

caso nada seja feito por parte de iniciativas públicas ou até mesmo privadas. Como esses

profissionais são freqüentemente mal remunerados e têm poucas oportunidades para se

apresentar, a fama, as homenagens e os louros que recebem não são suficientes para tirá-

los de uma situação precária.

Recorrendo-se a Sébastien Charles, analisa-se o poder que a mídia possui de formar

o discernimento e o espírito crítico favorecendo, desta forma, a liberdade individual e o

gosto pela iniciativa. Porém, com muita freqüência, a lógica da mercantilização faz com

que a reflexão seja abandonada em favor da emoção, e a teoria, em favor do uso prático:

―Em vez de promover uma cultura de qualidade, ela (a mídia) nos proporciona variedades

insípidas, multiplica os programas esportivos e deixa para o horário mais tardio possível,

quando não a suprime, a programação de caráter minimamente cultural‖. (CHARLES, In:

Lipovetsky, p.44).
56

Analisar a dialética espacial que movimenta os processos culturais significa

descobrir a mecânica da cena pública e analisar como se organiza a vida cultural, com o

objetivo de recuperar a materialidade da atividade intelectual evidenciando os vínculos

entre a produção estética e simbólica em seu suporte material.

Assim, a mídia, de acordo com Charles é tomada pela lógica hipermoderna e pode

favorecer tanto os comportamentos responsáveis quanto os irresponsáveis:

O futuro da hipermodernidade depende de sua capacidade de fazer a ética da


responsabilidade triunfar sobre os comportamentos irresponsáveis. Estes não vão
desaparecer sozinhos, pois se inscrevem necessariamente na lógica da
hipermodernidade. De fato, são os próprios mecanismos do individualismo
democrático que explicam tanto a responsabilidade de uns quanto a irresponsabilidade
de outros, daqueles que preferem corromper a autonomia que herdaram,
transformando-a em egoísmo puro. Esses últimos, preocupados com o próprio
conforto e felicidade, retiram-se do social para o privado, aliás com a consciência
absolutamente limpa, já que as instâncias tradicionais de socialização, desacreditadas
pelo avanço do individualismo, não desempenham mais o papel normativo.
Não exageremos, porém, a força desse fenômeno: os comportamentos
responsáveis continuam atuais. Eis talvez o fato mais espantoso: emocional e
individualista, a sociedade de consumo de massa permite que um espírito de
responsabilidade, dotado de geometria variável, coabite com um espírito de
irresponsabilidade incapaz de resistir tanto às solicitações exteriores quanto aos
impulsos interiores. O fato é que a lógica binária de nossas sociedades seguirá
ampliando-se e que a responsabilidade de cada um ganhará cada vez mais
importância. Nenhuma sociedade jamais possibilitou que se exercessem uma
autonomia e uma liberdade individual tão grande, nem jamais o destino dessa
sociedade esteve tão ligado aos comportamentos daqueles que a compõem.
(CHARLES, In: Lipovetsky, p.46).

A multiplicidade de imagens identitárias, em consonância com a perda das

referências que asseguravam um mundo estável, bem como a derrubada de verdades

eternas somadas à rapidez das mudanças, produziram identidades móveis, fragmentadas ou

estilhaçadas e pertencentes a um mundo onde as concepções de espaço e de tempo não são

mais absolutas, resultando na ênfase no transitório, no efêmero, no descontínuo, no

caótico.
57

Pode-se afirmar que a manifestação de novas concepções de vida e de arte ocorreu,

de forma efetiva, nas primeiras décadas do século XX, no confronto entre o novo e a

tradição, entre as formas culturais e ideológicas do passado.

Cada vez mais distante da religião, a arte tornou-se mais autônoma e, de certa

forma, foi beneficiada com o aparecimento da produção artística para o mercado.

Terry Eagleton (1993) considera que a arte nesse período deixa de servir ao poder

político ao mesmo tempo em que se liberta das suas funções ideológico-cristãs, do tribunal

e do Estado, passando a reger-se por suas próprias leis. O significado da arte tornou-se,

então, meramente suplementar, instintivo, uma espécie de válvula de escape.

Entretanto, sua independência em relação ao ético e ao político é paradoxal, devido

à sua integração ao mercado consumidor e, conseqüentemente, à sua transformação em

mercadoria.

Com o fim da Modernidade, as manifestações culturais e estéticas ampararam-se na

fragmentação, na efemeridade, na descontinuidade e no particular em detrimento do geral,

características estas semelhantes às da hipermodernidade.

A arte, dessa forma, deixa de ser representação e passa a ser criação, no sentido

estrito do termo. São peculiaridades significativas das novas linguagens no campo da

música, por exemplo, a utilização de harmonias dissonantes e a escritura atonal e, na área

da literatura, a quebra da sintaxe, a procura de narrativas conscientes da temporalidade, da

transitoriedade da vida, voltadas para o registro da intensidade e da experiência interior.

O artista estava, assim, liberto das leis que não correspondessem às da sua

interioridade e de seu arbítrio. Passa a valer tudo o que possibilitava o sucesso, o bem-estar

pessoal e o livre acesso ao que o mundo poderia oferecer.

Tudo isto acarretou a dessacralização da racionalização das visões de mundo e a

substituição do sagrado. Dessa forma, a racionalidade passa a ocupar o que pertencia ao


58

mundo dos nossos antepassados, aos símbolos e afirmações de fé, embasados, em sua

maioria, pela tradição judaico-cristã.

A humanidade, desde as duas Guerras Mundiais encontrava-se em processo de

mudança de paradigmas e de transformações culturais. As promessas de um mundo melhor

e racional foram frustradas pela industrialização descontrolada, pelas sucessivas agressões

à natureza ao mesmo tempo em que se tomava consciência dos perigos do seu

aproveitamento desmedido e, sobretudo, pelo consumismo desenfreado. Segundo Bauman:

O consumismo torna-se, destarte, um dos anteparos de sustentação dessa


sociedade. Vamos às compras pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos
meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de
imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem
que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de
nos desfazer dos que não mais queremos; pelos meios de extrair mais satisfação do
amor e pelos meios de evitar nossa ―dependência‖ do parceiro amado. (BAUMAN,
2001, p.88)

O pensamento perde o fundamento de certeza e a verdade passa a ser alcançável

apenas em um contexto parcial e localizado. No campo da ética, prioriza-se o

individualismo enquanto a dimensão espiritual passa a sofrer o impacto desse arranjo

contemporâneo.

Para Bingemer (2003), a religião na contemporaneidade desempenha mais o papel

de cultura e força civilizatória do que propriamente de credo. Nesse sentido, o pluralismo

que caracteriza a globalização, afeta não apenas os terrenos econômicos e sociais, mas

também, político, cultural e religioso.

De acordo com Bauman (2001), o declínio do sagrado, das tradições, dos direitos

cotidianos e das obrigações que não permitiam iniciativas fora do previsto proporciona

sentido dinâmico à modernidade do mundo previsível e administrável, denominada

―modernidade sólida‖.

Na contemporaneidade os sólidos se liquefazem, as instituições se desmaterializam

e as tradições são derrubadas. Diz Bauman:


59

Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam,


transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; são filtrados, destilados,
diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos
obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. De acordo com
sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem
sólidos, são alterados – ficam molhados ou encharcados. (BAUMAN, 2001, p.08)

Fatos ocorridos a partir de meados do século passado e que se estendem aos dias de

hoje colocam em xeque as exigências da ordem capitalista. Mudanças sociais são

reivindicadas e o sistema capitalista contestado. Minorias se rebelam contra o preconceito,

as restrições sexuais (incluindo a emancipação da sexualidade feminina) e toda forma de

miséria cotidiana.

Concomitantemente, houve um substancial avanço na tecnociência e o cotidiano foi

invadido por inúmeros objetos que alteram a vivência da realidade. A televisão favorece a

desterritorização à medida em que transmite algo que acontece a milhares de quilômetros

em que o sujeito se situa.

Além disso, o celular e a internet cada vez mais popularizados trazem novas

realidades e formas de relacionamento que, por sua vez, proporcionam configurações

singulares na contemporaneidade, tendo como principal característica a impermanência

(seja ela de consumo, de afeto ou de crenças).

Guy Debord (1997) afirma que os indivíduos são obrigados a contemplar e

consumir passivamente imagens do que lhes falta na vida real devido ao empobrecimento

da existência e à alienação. São suas as palavras: ―(...) quanto mais ele contempla, menos

vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos

compreende sua própria existência e seu próprio desejo‖. (DEBORD, 1997, p.44)

Devido à cultura do espetáculo, ao gigantismo da imagem, a mídia torna-se

imperiosa e impositiva. Logo, não é mais necessário pensar e refletir: basta ver, pois a

imagem fala por si só.


60

Com a velocidade vertiginosa das alterações socioculturais o indivíduo sente-se

perdido e confuso na medida em que seu mundo também modifica rapidamente fazendo

com que todas as certezas se evaporem. Complementa Bauman:

Ser moderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser incapaz de
parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos e continuaremos a nos mover
não tanto pelo adiamento da satisfação, como sugeriu Max Weber, mas por causa da
impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação: o horizonte da
satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranqüila
movem-se rápido demais. (BAUMAN, 2001, p.37)

Muitas e cada vez mais complexas são as transformações vivenciadas na

hipermodernidade. Novas configurações que se apresentam exigem um aparato de

percepções que o indivíduo muitas vezes não detém, pois as transformações ocorrem em

velocidade muito superior à capacidade humana para refletir sobre elas.

Baseado no consumismo, o sistema capitalista utiliza-se da construção de

subjetividades como meio de produção. O que se apresenta hoje é a criação de

consumidores para produtos (sem outro sentido que não o de preencher a carência de quem

consome), e não o contrário.

Félix Guattari, no livro Micropolítica: cartografias do desejo (1986), discorre a

respeito:

A produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer


produção. As forças sociais que administram o capitalismo hoje entendem que a
produção de subjetividade talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de
produção, mais essencial até que o petróleo e as energias, visto que produzem
esquemas dominantes de percepção do mundo. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.40)

O crescente poder dos meios de comunicação propiciou a criação do fenômeno da

industrialização da subjetividade com a permanente invenção de objetos que serão

consumidos.

Assim, as subjetividades necessitam construir incessantemente seus referenciais de

identidade cada vez mais frágeis, instáveis e inconsistentes.


61

A sociedade atual pode, então, ser caracterizada pela cultura do narcisismo na

sociedade do espetáculo. Os destinos do desejo humano resvalam por atitudes de

exibicionismo e individualismo exacerbados em detrimento das trocas interpessoais. Na

sociedade narcísica do espetáculo, a falta de solidariedade e o autocentramento acarretam a

perda da noção de alteridade ao passo que promove o enaltecimento de si mesmo.

William Cesar Castilho Pereira (2004) diz que os indivíduos percebem o mundo

como espelhos de si mesmos e ―não se interessam por eventos externos, a não ser que estes

promovam um reflexo de sua própria imagem. Impera uma cultura terapêutica, que cultua

o corpo esteticamente disciplinado‖. (PEREIRA, 2004, p.131)

A hegemonia da aparência vive seu apogeu: o sujeito vale pelo que aparenta ser.

Diante da efemeridade dos acontecimentos, valoriza-se a personalidade centrada no eu, a

busca máxima de prazer, a ressacralização do corpo, venerado em verdadeiros cultos. O

hedonismo suplanta a dicotomia entre o sagrado e o profano.

A preocupação excessiva com a estética, a supervalorização do corpo são marcas da

contemporaneidade. O corpo torna-se um produto que pode ser comercializado, explorado

enquanto imagem, produzindo subjetividades que apresentam mensagens subliminares, ou

mesmo explícitas, de êxito que gera lucratividade.

Com uma valorização sem precedentes sobre o corpo, tem-se, segundo Jurandir

Freire Costa (2004), a ―moral das sensações‖. Para o autor:

(...) a noção de moral das sensações compreende a satisfação com dois ideais
de prazer difundidos na cultura atual. O primeiro corresponde, aproximadamente, ao
que o senso comum crítico ou ordinário chama de ―hedonismo‖ ou ―narcisismo‖. Esse
é o sentido menos evidente e mais pedestre da expressão. Admite-se, sem fundamento
empírico, que a maior parte dos sujeitos, hoje, condicionou a satisfação ou auto-
realização pessoal ao gozo do êxtase sensorial.
62

Todo este processo de valorização do corpo acarreta uma vivência de perda e de

proliferação de apelos ao consumo e ao sucesso, tornando os vínculos humanos precários e

vulneráveis.
63

3.1 As confluências do passado e do presente em O canto das lavadeiras

As lavadeiras-cantoras de Almenara, no Vale do Rio Jequitinhonha, região nordeste

do Estado de Minas Gerais, são guardiãs de antigas canções – batuques, afoxés, sambas,

modinhas, toadas e cantigas de roda – cuja origem vem se perdendo na memória do tempo.

São cantos de trabalho, lúdicos e de louvação, herança de antigos canoeiros,

ribeirinhos, caboclos, tropeiros e colonizadores. Retratos poéticos da alma de Minas

Gerais, eles mostram uma fusão rítmica de elementos negros, indígenas e portugueses,

reveladores de nossa brasilidade.

Vigia foi o primeiro nome da cidade de Almenara por onde passavam frotas de

canoas, em um tempo em que o rio era a principal via de ligação entre o interior e o litoral.

Hoje, assoreado, o Jequitinhonha apenas é navegável bem perto da foz, em Belmonte,

Bahia.

Rio abaixo, rio acima, no vai-e-vem de vidas e águas, transportando precisões e

novidades, os canoeiros cantavam velhas cantigas. Entre secas e enchentes, abriram-se

novos caminhos. Mãos treinadas no laço, na enxada, no pilão e no fogão, transfiguram a

matéria, revelando-lhe oculta beleza.

E as lavadeiras do Jequitinhonha entoam seu canto: do rio ao mar distante, para

além de Belmonte, com banzo de preto velho, lembrança de escravos e proezas lusitanas

como se constata na cantiga ―Lá evém o navio de guerra!‖.

Se em uma das manifestações do sincretismo religioso presente nas

cantigas,―Iemanjá‖ não deixar o barco virar, toma-se um ―pilãozinho de ouro‖ tudo e vai
64

―cessar areia do mar‖ como quem cessa farinha. Enquanto se canta o beira mar, dos

cancioneiros lá no ―Largo da Vigia‖, passam as pedras do rio, cada uma um desafio.

Mas diz outro verso que ―o facão bateu embaixo e a bananeira caiu‖. E o rio,

descendo ribanceira, cai e vira cachoeira. As lavadeiras batem roupa e conservam,

cantando, a história de nosso povo. Uma dessas, por nome Maria, ―lavava os paninho do

seu bento fio‖.

Ciência que a muitos falta é a do corte do alecrim: alecrim da beira d‘água não se

corta de machado: ―se corta de faca fina, alecrim dos namorado‖. Não zelar do amor que se

tem é pecado sem perdão: ―quem tem seu amor e não zela, eu trato e levo pra mim‖. Em

um lugar onde a natureza sempre ensina, ―tico-tico fez o ninho, marimbondo quer tomar;

quem é dono não ciúma, quem é não quer ciumar‖.

Moço de apreciada figura? ―Rapazinho de boa altura, vestido de amarelo, 38 na

cintura‖. E o clarão da lua inspira versos: ―Se eu soubesse escrever n‘água como escrevo

no areião, eu tinha teu nome escrito dentro do meu coração‖. Se é caso de amor secreto,

todo cuidado é pouco: ―Não encosta na parede, que a parede tem ouvido; não quero que

ninguém saiba que tenho amor escondido‖.

Saudades de Portugal, última faixa do disco Aqua, é afetuosa viagem à Ilha da

Madeira, que recebeu com carinho o Batukim brasileiro, merecido sucesso inaugural de

Carlos Farias e suas Lavadeiras. Aí se diz: ―Vou-me embora pra Madeira, terra boa d‘eu

morar; esta roda bem cantada faz quem tem paixão chorar‖.

Permanece a lembrança de viagem dilatada a terras e tempos distantes. Lavadeira

cantando na beira do rio é memória antiga do povo que mora no Vale do Jequitinhonha e

em outros rincões desse Brasil ainda tão rural.

Há neste retrato do cotidiano, na sutileza de harmonias, na simplicidade de

melodias e na riqueza de ritmos um lenitivo para uma vida árdua e dura. A canção, solitária
65

ou coletiva, vai transformando a amargura em música. E esta é o combustível que se usa

para criar os filhos, administrar magros orçamentos e ainda amar um homem.

No CD Aqua (2004), de Carlos Farias e o Coral das Lavadeiras, encontram-se dois

exemplos de cantigas que remetem à Virgem Maria. São respectivamente as canções

Senhora Santana, um bendito de origem medieval, de acordo com as informações contidas

no encarte do CD/livro, bem como o trecho introdutório da música Mestra Diôla, que

consiste em um trecho do Bendito de Nossa Senhora da Conceição adaptado por Carlos

Farias.

Segundo o encarte acima citado, ―Santana era a mãe de Maria e avó de Jesus.

Segundo Frei Chico Van der Poel, o culto à Senhora Santana teve início na Idade Média.

No sincretismo religioso brasileiro ela equivale a Nanã Burukê, considerada a avó dos

orixás, na cultura yorubá. Existem muitas variações melódicas e longos versos sobre o

mesmo tema‖.

A seguir, têm-se as transcrições do trecho do Bendito de Nossa Senhora da

Conceição e a música Senhora Santana:

Encontrei Nossa Senhora


Com seu raminho na mão
Eu pedia ela um gainho
Ela me disse que não

SENHORA SANTANA – Bendito, de origem medieval


Informante: Valdênia Lavadeira

Senhora Santana ao redor do mundo


Aonde ela passava deixava uma fonte

Quando os anjos passam bebem água dela


Ó que água tão doce, ó Senhora tão bela!

Encontrei Maria na beira do ri


Lavando os paninho do seu bento fi

Maria lavava, José estendia


O menino chorava do fri que sentia

Calai meu menino, calai meu amor


66

Que a faca que corta não dá tai sem dor

No Brasil, folclore e religião costumeiramente estão interligados. Temos registros

em nosso país de um catolicismo tradicional, rural, impregnado de conteúdos e de

expressões populares.

Desde o início da colonização portuguesa, estabeleceu-se no território brasileiro a

mentalidade de unidade religiosa, condicionando e favorecendo a influência dominante do

catolicismo cujos valores penetraram em todos os setores da vida social.

Festas cíclicas, homenagens a santos padroeiros nas principais praças das

cidadezinhas, rezas e rezadoras, novenas, romarias, procissões e formas variadas de

devoções são algumas das inúmeras práticas que podem ser citadas. Algumas expressões

religiosas, inclusive, identificam o calendário folclórico brasileiro com a própria religião

presente no Brasil. O religioso-popular e o sincretismo religioso marcam sua presença em

eventos realizados durante todo o ano em diversas regiões do país.

O culto à Virgem Maria foi trazido praticamente com as caravelas portuguesas a

partir do descobrimento das nossas terras. É curioso observar que, embora a Bíblia ofereça

poucas passagens em que a Virgem seja citada, ou seja, poucas informações sobre Ela, mas

que se encontram presentes na Legenda aurea, há um culto intenso de romeiros e devotos

que a veneram, além de peregrinações e romarias a santuários religiosos dedicados a Nossa

Senhora.

No trecho do bendito de Nossa Senhora da Conceição, temos uma imagem da

Virgem bem próxima dos apelos da humanidade. Pede-se a Ela um galhinho do raminho

trazido nas mãos e a Virgem responde que não. Trata-se de uma ladainha entoada nas

procissões.
67

A fonte é referenciada na canção Senhora Santana. A abundância deste manancial

de águas é cultuada: ―Senhora Santana ao redor do mundo/ Aonde ela passava deixava

uma fonte/ Quando os anjos passam bebem água dela/ Ó que água tão doce, ó Senhora tão

bela!‖.

Segundo o Dicionário de símbolos, Chevalier & Gheerbrant (2003), Santana e,

mais freqüentemente, Nossa Senhora são responsáveis e protetoras dos mananciais em

cujas águas jorram virtudes curativas válidas para as mais variadas doenças, desde a febre

até moléstias cutâneas.

As fontes são comumente associadas à vida, à imortalidade, à juventude, ou ainda,

ao ensinamento (fonte de sabedoria). Por meio das fontes se dá a primeira manifestação, no

plano das realidades humanas, da matéria cósmica fundamental, sem a qual não seria

possível assegurar a fecundação e o crescimento das espécies. A água viva que delas corre

é, como a chuva, o sangue divino, o sêmen do céu, é um símbolo de maternidade.

Representando quadros sagrados da vida de Maria, em Senhora Santana tem-se o

recorte do cotidiano de uma mãe ocupada em lavar os paninhos que seu filho utilizava.

José, pai de Jesus, o ―bento filho‖, ocupava-se em estendê-los. O menino Jesus chorava de

frio enquanto as roupinhas secavam estendidas. Eis um retrato próximo à realidade de

inúmeras mães brasileiras e das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha.

A singeleza dos atos, bem como os parcos recursos materiais desta santa família,

evidencia-se na dramaticidade da cena em Senhora Santana. A privação de conforto e de

abundância e, sobretudo, a lição de vida apresentada no momento em que se pede ao

menino para calar o choro porque, assim como a faca que corta não o faz sem dor, a vida é

feita de sofrimentos e sacrifícios fazem parte dos ensinamentos presentes na letra desta

canção.
68

Trata-se de um alento para as mulheres que se consolam quanto à impossibilidade

de transcendência da condição material miserável. Pode-se pensar que, ao vislumbrarem o

quadro de uma santa mulher que também sofre privações junto a seu bebê, encontrem

consolo e forças para suportarem as mesmas agruras.

No desenvolvimento deste presente trabalho, em alguns momentos se estabeleceu o

contraste entre fecundidade e privação. No Vale do Jequitinhonha esta dicotomia entre a

riqueza cultural e a miserabilidade econômica da maioria da população que nele habita se

manifesta de forma evidente. Santa Ana, ou Santana, que de acordo com a Legenda áurea

é casada com Joaquim, mãe da Virgem Maria e avó materna de Jesus Cristo, protetora das

mulheres casadas e das grávidas, faz brotar as fontes sagradas e milagrosas cuja

abundância de águas é aproveitada também pelos anjos. Conforme a letra de Senhora

Santana, ―Quando os anjos passam bebem água dela/ Ó que água tão doce, ó Senhora tão

bela‖ e, ao mesmo tempo, sua filha Maria, no plano terreno, lava, ela mesma, as roupinhas

―do seu bento fio‖.

Em relação ao bendito de Nossa Senhora da Conceição, temos também uma santa

tão próxima da humanidade ao ponto de negar um galho do raminho a quem o cobiça:

―Encontrei Nossa Senhora/ com seu raminho na mão/ “Eu pedi ela um gainho,/ Ela me

disse que não‖.

Vale esclarecer que benditos são cantos religiosos entoados em uníssono nas

procissões que são feitas pelos fiéis seguindo andores dos santos do dia. As procissões

religiosas que datam no Brasil a partir de 1549, conforme atesta Luis Weckmann, na obra

La herencia medieval del Brasil, são até hoje praticadas em todo o território nacional.

Tem-se nestas duas canções uma amostragem da cultura cristã trazida pelos

colonizadores portugueses, que encontraram um terreno fértil no Brasil.


69

Algumas denominações precisam de muita cautela para ser usadas, haja vista que,

sem esse cuidado, podem ser empregadas para encobrir a realidade em lugar de desvelá-la,

além de poderem se transformar em instrumento de hierarquização e discriminação entre

pessoas, objetos ou atos.

É esse o caso dos termos cultura popular e cultura erudita. A visão capitalista pode

dissociar os trabalhos intelectual e manual vinculados, respectivamente, à elite e ao povo.

É inegável que essa é uma classificação um tanto quanto discriminatória, pois confina as

criações populares em um gueto, resultando, geralmente, em reserva de mercado para a

produção de origem erudita, dirigida geralmente à camada social dominante.

Recorre-se, neste momento, a algumas definições neste campo realizadas por

alguns autores como Alfredo Bosi em Dialética da colonização, que define a cultura

recorrendo ao conceito antropológico, ou seja, ―como conjunto de modos de ser, viver,

pensar e falar de uma dada formação social‖. (BOSI, 1999, p.319). Bosi descarta o

conceito mais restrito de cultura que se constitui em ―apenas o mundo da produção escrita

provinda, de preferência, das instituições de ensino e pesquisa superiores.‖ (BOSI, 1999,

p.319)

Continua o autor:

Mas, se nos ativermos fielmente à concepção antropológica do termo cultura,


que é, de longe, a mais fecunda, logo perceberemos que um sem-número de
fenômenos simbólicos pelos quais se exprime a vida brasileira tem a sua gênese no
coração dessa vida, que é o imaginário do povo formalizado de tantos modos diversos,
que vão do rito indígena ao candomblé, do samba-de-roda à festa do Divino, das
Assembléias pentecostais à tenda de umbanda, sem esquecer as manifestações de
piedade do catolicismo que compreende estilos rústicos e estilos cultos de expressão.
(BOSI, 1999, p.322-323)

Para Bosi, não existe separação entre uma esfera puramente material da existência e

uma esfera simbólica e assim define cultura popular:

Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação


homem-mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de
70

parentesco, a divisão de tarefas durante a jornada e, simultaneamente, as crenças, os


cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo, a bebida, os provérbios, os modos
de cumprimentar, as palavras tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de
sentar, o modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as
festas de padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de plantar feijão, milho
e mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir e de
consolar... (BOSI,1999, p.324)

É inegável constatar que, independente da sua raiz, da sua origem, a arte popular

representa a cultura de um povo. Por que em geral, a arte popular não é tão valorizada

quanto a erudita? Enumerar motivos, listar razões e hipóteses que respondam sem maiores

problemas a diferença, sem ser a clássica ―uma possui estudo, a outra não‖, demanda

complexidade. De saída, vê-se às voltas com a nomeação dos termos dessa equação. Arte

popular, primitiva, ingênua (ou naïf) e artesanato.

Para o leigo, muitas vezes essas palavras são vistas como sinônimos. Para quem

busca aprofundar-se no tema, no entanto, fica evidente de que se trata de categorias

distintas ainda que nem sempre se chegue a um acordo sobre o uso de cada um dos termos.

Seria, no mínimo, politicamente incorreto, hoje, designar a produção popular de

ingênua. Afinal, o fato de esses artistas normalmente não terem uma educação formal não

faz necessariamente com que eles tenham uma visão ingênua do mundo.

Em relação ao termo primitivo, é plausível afirmar que já traz consigo a idéia de

que a história da arte pode ser representada como uma caminhada rumo ao progresso. A

posição mais evoluída é ocupada pela arte de hoje, contemporânea e os artistas primitivos

estariam no começo dessa linha, em uma posição menos evoluída. Nada mais contestado

pelas atuais teorias da arte do que essa idéia de evolução. Por se tratar de um produto

cultural, ao nos referirmos às artes popular e erudita, não é possível afirmar que uma seja

melhor do que a outra.

Teixeira Coelho, em seu Dicionário crítico de política cultural reflete acerca da

complexidade do assunto:
71

O conceito de cultura popular é, hoje, extremamente controvertido. As


concepções do dedutivismo e do indutivismo sumarizam, em grande parte, as diversas
correntes que discutem sobre o tema. Para os dedutivistas, não há propriamente uma
autonomia da cultura popular, subordinada que está à cultura da classe dominante,
cujas linhas de força regem a recepção e a criação populares. Para os indutivistas, pelo
contrário, a cultura popular é um corpo com características próprias, inerentes às
classes subalternas, com uma criatividade específica e um poder de impugnação dos
modos culturais prevalentes sobre o qual se fundaria sua resistência específica. Se para
os dedutivistas só se pode conhecer aquilo que é chamado de cultura popular a partir
das lentes da cultura dominante, para os indutivistas somente é possível apreender a
natureza dessa cultura mediante seus próprios depoimentos diretos, expressos em suas
obras ou em declarações explícitas de seus produtores.

Lucia Santaella, por sua vez, discorre a respeito das transformações da cultura

sofridas no século XX que, antes, estava delineada em pólos opostos. De um lado se

encontrava a cultura erudita das elites e do outro a cultura popular produzida pelas classes

dominadas. Entretanto, a mídia, segundo a autora, exerceu um papel importante nas

transformações ocorridas:

O advento da cultura das massas a partir da explosão dos meios eletrônicos de


difusão – rádio e televisão - produziu um impacto até hoje atordoante naquela
tradicional divisão da cultura em erudita, culta, de um lado, e cultura popular, de
outro. Ao absorver e digerir, dentro de si, essas duas formas de cultura, a cultura de
massas tende a dissolver a polaridade entre o popular e o erudito, anulando suas
fronteiras. Disso resultam cruzamentos culturais em que o tradicional e o moderno, o
artesanal e o industrial mesclam-se em tecidos híbridos e voláteis próprios das culturas
urbanas. (SANTAELLA, 2004, p.52)

Quanto ao termo artesanato, os especialistas parecem concordar, não é sinônimo de

arte popular. Normalmente, ele é associado a objetos utilitários, confeccionados um a um,

manualmente, por uma pessoa que domina aquele processo. Nesta perspectiva, o artista

popular surge no campo do trabalho artesanal, mas não se confunde com ele. Diz Cascudo

a respeito: ―Embora por tradição o artesão preserve formas e estilos, pode também evoluir

e acompanhar as necessidades de melhor uso dos próprios objetos, contribuindo para a

formação de novos conceitos sociológicos.‖ (CASCUDO, 2000, p.26)


72

Pode-se dizer que o interesse pela arte popular está ligado à busca pelo exótico e

por características regionais, que em tempos de globalização cultural parece não mais fazer

sentido.

Entretanto, a receptividade positiva do público quanto ao Coral das Lavadeiras

pode ser um indicativo de uma nova tendência nacional de permitir que as manifestações

culturais possam transcender seus centros habituais de produção artística e serem

reconhecidas nos demais espaços.

O Vale do Jequitinhonha apresenta uma geografia que diz respeito à vegetação do

cerrado e à presença do rio. Apresenta, também uma geografia humana muito característica

com a miscigenação entre o índio que habitava às margens do rio, o branco português

aventureiro e colonizador e o negro africano escravizado.

Cada um desses elementos possuía uma língua diferente, hábitos e costumes

diversos, uma verdadeira riqueza humana. É uma região que tem em sua história o

sincretismo religioso e a manutenção de práticas culturais seculares.

As Lavadeiras utilizam em suas cantigas a presença da água que se confunde com a

história de suas vidas, o desejo de amar, os pequenos relatos do seu cotidiano que ao

mesmo tempo são tão grandiosos. Mas tudo isso não significa que a questão das fronteiras

tenha sido banida.

Os cantos de trabalho das Lavadeiras de Almenara, assim como os de caráter lúdico

e até mesmo os de louvação, são heranças de antigos colonizadores, canoeiros, ribeirinhos

e tropeiros que viveram na região isolada, por muitos anos, geográfica e culturalmente.

Retratando poeticamente Minas Gerais, encontram-se neles verdadeiras fusões rítmicas de

elementos negros, indígenas e portugueses, reveladores de nossa brasilidade.


73

Ao se analisar mais de perto o conteúdo das letras das músicas que fazem parte dos

dois CDs/livros do grupo, vislumbrou-se o estabelecimento de uma estreita relação com o

folclore e elementos culturais da região do nordeste de Minas Gerais.

Na resistência ao tempo, à mudança dos costumes, a toda parafernália eletrônica

que avassaladoramente depaupera as iniciativas de preservação de uma identidade

autóctone, pasteurizando as formas artísticas e culturais de expressão, encontra-se o grupo

de lavadeiras-cantoras em cujas cantigas o feminino se destaca em suas vozes femininas

presentificadas.

A proposta neste momento será a contemplação da abordagem das letras das

canções que apresentam diálogo com os elementos folclóricos e culturais mineiros em uma

abordagem multicultural. Pode-se pensar também, devido à temática que apresentam, em

um Neotrovadorismo inconsciente, intuído por meio dos sentidos se considerada a

simplicidade dos delicados sentimentos que se transformam em matéria das cantigas.

Nelas se reconhecem similitudes com os temas tão caros ao repertório das cantigas

medievais trovadorescas em que se nota o lamento feminino expresso por meio do eu

lírico. São jovens exprimindo seus desejos amorosos de encontrar o amigo, a dor da

saudade causada por sua ausência e a forte presença da natureza, confidente das queixas e

esperanças da amiga que aguarda seu namorado, convergentes nas duas produções.

Como ilustração tem-se a canção Rua das pedrinhas, colhida e adaptada por Carlos

Farias. Nela se percebe claramente o intertexto que se pode estabelecer com inúmeras

produções de amigo galaico-portuguesas em que a natureza é confidente do eu lírico,

representado por uma jovem e bela moça, que aguarda novas do namorado, e indaga à

natureza seu paradeiro.

As cantigas pertencentes ao grupo das Lavadeiras serão transcritas para facilitar a

visualização das mesmas na sua análise.


74

RUA DAS PEDRINHAS – roda


DP – informante: Crisolina Guimarães e Lia Lavadeira
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Lá na rua das pedrinhas oi cio


Onde eu fui fazer minhas queixa oi cio
As pedrinhas responderam oi cio
O amor é firme não lhe deixa só

Eu subi num pé de rosa oi cio


Só pra vê se te enxergava oi cio
Cada rosa que eu tirava oi cio
Era um suspiro que eu dava oi cio

Fui na fonte beber água oi cio


Não fui por água beber oi cio
Eu fui ver as piabinhas oi cio
No fundo d‘água correr oi cio

Por baixo da água é lodo oi cio


Por baixo do lodo é peixe oi cio
Meu benzinho fica ciente oi cio
Que por outra não lhe deixo oi cio

A folha da bananeira oi cio


Virou pau e virou vento oi cio
O olhar desse menino oi cio
Não me sai do pensamento oi cio

A folha da bananeira oi cio


Não se ―bana‖ sem o vento oi cio
Toda moça sossegada oi cio
Não se perde o casamento oi cio

Eu joguei o limão verde oi cio


Na corrente do riacho oi cio
Quanto mais o limão desce oi cio
Mais meu bem bonito eu acho oi cio

Não te dou meu coração oi cio


Porque não posso tirar oi cio
Se eu tirar eu sei que morro oi cio
E não poderei te amar oi cio

Cravo branco no cabelo oi cio


É sinal de casamento oi cio
Menina guarda seu cravo oi cio
Que ainda não chegou seu tempo oi cio

Meu anel de trinca-trinca oi cio


Bateu na pedra e trincou oi cio
Vai falar pra minha mãe oi cio
Que minha hora já chegou oi cio
75

O eu lírico se dirige à Rua das pedrinhas para se queixar da ausência amorosa.

Porém, as pedrinhas, como em um encantamento, tranqüilizam a voz feminina

respondendo-lhe que ―O amor é firme/ não lhe deixa só‖.

A natureza se evidencia nos demais versos da canção Rua das pedrinhas. O pé de

rosa é meio para que o feminino lamentoso possa enxergar seu bem. A cada rosa colhida,

um suspiro era dado, tão ao gosto do ideal romântico a respeito do comportamento

feminino.

A água, a fonte, símbolos ligados à feminilidade, são meios para que vidas se

manifestem como as piabinhas que nadam nelas. A fonte seria a valorização feminina,

sensual e maternal, a despertadora da libido.

Nas cantigas de amigo galaico-portuguesas as referências às fontes são constantes.

São lugares de encontros amorosos, símbolo da fecundidade e da doação feminina. Há,

portanto, um erotismo manifestado por meio da voz feminina.

A folha da bananeira é referenciada como símbolo da fugacidade das coisas. A

transitoriedade do amor pode ser entendida nas mudanças pelas quais a folha passou

virando ―pau‖ e depois ―vento‖: ―A folha da bananeira (oi cio)/ Virou pau e virou vento (oi

cio)‖.

Nos demais versos desta estrofe, têm-se a lembrança da figura amada sempre

evocada na presença da natureza: ―O olhar desse menino (oi cio)/ Não me sai do

pensamento (oi cio)‖.

A bananeira ainda oferece, metaforicamente, mensagens, ensinamentos para o eu

lírico. Assim como a folha da bananeira ―não se ‗bana‘ sem o vento‖, ―toda moça

sossegada/ não se perde o casamento‖.

É importante lembrar que a bananeira faz parte das denominadas simpatias

realizadas pelas moças solteiras que, na noite de São João, comemorada no dia 24 de
76

junho, inserem na planta uma faca para terem uma letra, o nome do noivo e futuro marido,

―escrita‖ devido à ação do tanino.

Limão verde, elemento presente em diversas cantigas de roda, desce da corrente do

riacho. Ao contemplar o limão descendo, mais uma vez o eu lírico pensa no amado:

―Quanto mais o limão desce (oi cio)/ Mais meu bem bonito eu acho (oi cio)‖. Nas

crendices populares, o limão afasta malefícios, o mau augúrio.

A estrofe seguinte é de uma beleza ímpar. Assim como as demais, composta em

sete sílabas métricas, redondilhas maiores, portanto, tem-se a cortesia amorosa presente nas

cantigas de amor trovadorescas. O eu lírico feminino pensa, em um sacrifício máximo,

como convém à vassalagem amorosa do amor cortês, presentear seu amado com seu

coração e só não o faz porque assim morrerá e não poderá mais amá-lo: ―Não te dou meu

coração (oi cio)/ Porque não posso tirar (oi cio)/ Se eu tirar eu sei que morro (oi cio)/ e não

poderei te amar (oi cio).

A natureza ensina mais de uma vez. O cravo branco, quando preso aos cabelos, nos

penteados, relaciona-se ao casamento. Entretanto, há uma advertência: a moça deve

guardar seu cravo ―que ainda não chegou seu tempo‖. Pode-se interpretar que o cravo

simbolicamente se corresponde ao órgão sexual feminino. Assim, a virgindade e a

castidade deverão ser preservadas porque ainda não há maturidade da menina a que a

canção se refere.

De acordo com Câmara Cascudo (2000), o cravo era uma flor muito popular na

Europa do século XV. O cravo branco era a flor tradicional dos amantes, indispensável no

código de sinais dos namorados, como se pode verificar na quadrinha folclórica abaixo,

com pequenas mudanças semânticas em relação à Rua das pedrinhas:

Cravo branco na janela


é sinal de casamento
menina tira esse cravo
que ainda não chegou seu tempo (CASCUDO, 2000, p.165)
77

Cravo, flor presente no buquê das noivas, acompanhando-as no altar era depois

distribuído entre moças e rapazes. Percebe-se a abundância de símbolos que transitam pelo

universo semântico que faz parte do casamento. Fonte de água, bananeira, cravo e até

mesmo o limão verde, capaz de carregar os maus agouros correnteza abaixo e trazer de

volta o amado por quem o eu lírico lamenta, endossam o propósito da canção.

O ―anel de trinca-trinca‖ que pertence à moça da canção ao bater na pedra, trinca.

Este incidente é interpretado como sinal de que chegou o momento de se casar e logo pede

que se anuncie a sua mãe que o momento chegou.

Símbolo que indica aliança, um voto, um destino associado a um elo, o anel possui

forte significação. De acordo com Chevalier & Gheerbrant (2003): ―Apoderar-se de um

anel é, de certo modo, abrir uma porta, entrar num castelo, numa caverna, no paraíso etc.

Colocar um anel no próprio dedo ou no de outra pessoa significa reservar para si mesmo ou

aceitar o dom de outrem, como um tesouro exclusivo ou recíproco‖. (CHEVALIER &

GHEERBRANT, 2003, p.55)

Ainda nessa linha de cantigas de roda, encontra-se Chora limão, pertencente ao

repertório de Batukim brasileiro (2001). O limão é muito mencionado na literatura oral,

sobretudo nas cantigas de roda e nas quadrinhas peninsulares, como ilustra Cascudo (2000,

p.329):

Atirei um limão verde


De pesado foi ao fundo
Os peixinhos responderam
Viva Dom Pedro Segundo.

De acordo com a cantiga de roda presente no repertório das Lavadeiras, informada

por Crisolina Guimarães e Juracy, recolhida e adaptada por Carlos Farias, cujos versos são

transcritos abaixo, o limão entra de roda na roda, anda de mão em mão e chora no coração.
78

Este limão, em um plano conotativo, pode apresentar ambivalências como os sobressaltos

causados pela ansiedade amorosa, pelo anseio de que o desejo amoroso seja correspondido.

CHORA LIMÃO – roda


DP – informantes: Crisolina Guimarães e Juracy
Recolhida e adaptada por Carlos Farias
O limão entrou na roda... ô limão
Ele anda de mão em mão ... ô limão
Chora, por que não chora... ô limão
Chora no coração... ô limão

Da laranja eu quero um gomo... ô limão


Do mamão quero um pedaço... ô limão
Da sua boca quero um beijo... ô limão
Do seu corpo um abraço... ô limão

Eu joguei meu barco n‘água... ô limão


Carregado de fulô... ô limão
Não tem ―zóio‖ mais bonito... ô limão
Como o ―zóio‖ do meu amô... ô limão

Eu joguei água pra cima... ô limão


E aparei com uma caneca... ô limão
Menininha ―bunitinha‖... ô limão
Cinturinha de boneca... ô limão

Já chegou, está chegando... ô limão


Já chegou quem eu queria... ô limão
Já chegou Carlos Farias... ô limão
Que tanta falta fazia... ô limão

A estrutura ―ô limão‖ se repetirá ao final de cada verso cantado e, assim como na

música Rua das pedrinhas (oi cio), tem-se a construção sonora constante ao final de cada

frase poética. Além do limão, outras frutas são citadas como a laranja e o mamão. Frutas

brasileiras, das mais conhecidas que servem para evocar a figura amada nestes versos

formados por redondilhas maiores em sua silabação poética, bem ao gosto popular devido

à facilidade de sua memorização:

Da laranja eu quero um gomo... ô limão


Do mamão quero um pedaço... ô limão
Da sua boca eu quero um beijo... ô limão
79

Uma estrutura similar à de Chora limão consta na canção Avião avuadô, que abre o

CD/livro Batukim brasileiro (2001).

AVIÃO AVUADÔ / Ô SIRI VEM CÁ – frevo/afoxé


DP – informante: Valdênia
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Avião, avião “avuadô”


Nem aqui nem na Bahia
Avião nunca pousô

Você viu Canavieira?


Eu não vi não
Eu só vi Barrada longe
Aonde ―apousa os avião‖

Você diz que bala mata


Bala não mata ninguém
A bala que mais me mata
É amar e querer bem

Ô siri vem cá... ô siri vem vê


Ô siri vem cá ... ô siri vem vê

Eu passei no pé da lima
Chupei lima sem querer
Abracei o pé da lima
Pensando que era você

Minha mãe me chamou feia


Eu chamei ela formosa
Quando foi no outro dia
Venha cá botão de rosa

Da laranja quero um gomo


Da lima quero um pedaço
Da sua boca quero um beijo
Do seu corpo um abraço

Avião, avião avuadô


Nem aqui nem na Bahia avião nunca pouso

Avião, avião ―avuadô‖

A ―lima‖ substitui o ―mamão‖ e se confunde com a figura de quem se ama. A

natureza é personificada nos versos seguintes:

Eu passei no pé da lima
Chupei lima sem querer
Abracei com o pé da lima
80

Pensando que era você

A canção Chora limão ainda possui um caráter de homenagem, pois o último refrão

permite que se encaixe o nome de alguém a quem se pretende cortejar, ou que se respeita e

admira.

Coqueiro novo é uma das canções do CD/livro Batukim brasileiro. Trata-se de um

samba em que o lírico se mescla ao satírico em um jogo lúdico. Dada a temática e a

proposta do presente trabalho, serão transcritas as estrofes que são pertinentes à análise:

Coqueiro novo, quero vê rodar


Tira o cacho do coqueiro
Quero vê balancear

Eu subi num pé de coco


Para enxergar a cidade
Meu benzinho ali tão perto
E eu morrendo de saudade

Valdênia é bunitinha
Bunitinha que ela é
Parecendo o Deus menino
Nos braços de São José

O cabelo de Emília
É um preto que alumeia
Quem tirar um cacho dele
Tem cem anos de cadeia

Inda onte eu vim do céu


Perguntando a Nosso Sinhô
Se a gente quando morre
Se pode levar um amô

Novamente, tem-se a estrutura métrica de sete sílabas poéticas nas estrofes que

compõem a cantiga. O refrão faz referência ao coqueiro, árvore comum na Bahia, estado

com o qual a cidade de Almenara faz divisa.

A natureza, embora não funcionando como confidente neste caso, ainda é uma

facilitadora do encontro amoroso, uma vez que permite ao eu lírico que por meio do
81

coqueiro se vislumbre a cidade, pois o ―benzinho‖ está ali tão perto enquanto quem o ama

―morre de saudade‖.

Na próxima estrofe tem-se uma referência a uma das integrantes do Coral das

Lavadeiras, Valdênia que, de acordo com os versos, é tão ―bunitinha‖ que se assemelha a

―Deus menino nos braços de São José‖. Mais uma vez encontra-se a religiosidade popular

presente nos versos profanos.

São José é um padroeiro com muitas homenagens recebidas e empresta seu nome a

várias localidades brasileiras. É protetor dos lares católicos e permite morte serena a seus

devotos. Quem crê em São José, de acordo com a tradição católica, tem seu trabalho

garantido e jamais lhe faltará o pão. Mas os seus fiéis devem resignar-se a viver tranqüilos

na ausência de sonhos violentos de riqueza e de domínio social.

Já o cabelo de Emília, outra integrante do grupo, é tão preto que ―alumeia‖ e quem

dele tirar um cacho terá cem anos de cadeia. A beleza feminina pode superar, inclusive, a

pobreza de seu pai, a falta de um dote, como se diz na letra de Bambuê: ―Menina dos olhos

pretos/ Sobrancelhas de veludo/ Se seu pai for muito pobre/ Tua beleza vale tudo‖.

BAMBUÊ – coco/ maracatu


DP – informante: Crisolina Guimarães
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Casinha de bambuê
Forrada de bambuá
Auê, auê, auê
Auê, auê, auá

Menina diga teu nome


que eu quero dizer o meu
Eu me chamo Seda Fina
Daquele vestido teu

Menina dos olhos pretos


Sobrancelhas de veludo
Se teu pai for muito pobre
Tua beleza vale tudo
82

Fui no campo colher flor


Todo o campo floresceu
Colhi a flor roxinha
Que é triste como eu

Menina não diga isso


Deus pode lhe castigar
Faz arruda botar fulô
E as ondas do mar secar

Muito bem essa palavra


Que você me disse agora
Mereceu comer galinha
E docim de hora em hora

A cor preta dos cabelos de Emília ―alumeia‖. De acordo com Câmara Cascudo

(2000), foram mantidas no Brasil as tradições ligadas ao cabelo. Se fosse a primeira vez, só

poderia ser cortado por mão de homem. Os cachinhos eram distribuídos às pessoas da

família ou guardados como lembrança. Também poderiam indicar o estado civil de sua

dona. Se solteira, poderia andar com a cabeça descoberta e manter os cabelos soltos e

compridos.

Em Palma do rio, navio e boiada se fundem nas imagens poéticas elaboradas.

Elementos da região de Almenara, rica na criação de gado e em cujas águas do afluente do

Rio São Francisco, o Rio Jequitinhonha, ainda navegam embarcações, são lembrados nesta

canção de beira-mar.

PALMA DO RIO – beira-mar


DP – informante: Juracy
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Palma do rio, sou piloto do navio


Água barrenta
Ô que besta de passo macio
Agora que eu quero vê... ó meu boi lelê... diá
Boiada “trevessa” o rio... ó meu boi lelê

Ah!... quem me dera eu panhasse


Ó meu boi lelê... diá
Quem eu alembrei agora... meu boi lelê
Se eu não visse a pessoa... meu boi lelê diá
O retrato me consola... meu boi lelê
83

Ocê me chamou pra cantá


Ó meu boi lelê diá
Pensando que eu não sabia ... meu boi lelê
Eu não sou como a cigarra... meu boi lelê diá
Que pra cantar leva o dia... meu boi lelê

Mas cadê meus companheiro


Ó meu boi lelê diá
Que ajudava eu cantá ... ó meu boi lelê
Nossa Senhora levou... ó meu boi lelê diá
E botou em bom lugar... meu boi lelê

Aboio, o canto entoado sem palavras pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado,

está presente nos versos: ―ó meu boi lelê‖, ―ó meu boi lelê diá‖. Os vaqueiros abóiam

quando desejam chamar a atenção dos companheiros durante as ―pegas‖ de gado:

Palma do rio, sou piloto do navio


Água barrenta
Ó que besta de passo macio
Agora que eu quero vê... ó meu boi lelê diá
Boiada ―trevessa‖ o rio... ó meu boi lelê

O sentimento amoroso mais uma vez está ligado à natureza, ao cotidiano do eu lírico

que deseja ―panhar‖ quem ele se lembra. Entretanto, mesmo não sendo possível tal desejo,

consola-se com o retrato.

Desafiado a cantar, tem-se a comparação com a cigarra ―que para cantar leva o dia‖.

Entretanto, não é o que se verifica nos versos. A voz que fala, na canção analisada, diz não ser

como a cigarra e lamenta a falta dos companheiros que foram levados por Nossa Senhora, uma

imagem eufemística da morte.

Outra cantiga em que se evidencia o sentimento amoroso de falta e de lamento

fundindo-se à natureza é Sapatina flagelada. Na rica linguagem do sertão, o título se refere

à sandália de tiras própria para o clima quente do norte/nordeste de Minas Gerais.

De acordo com os versos desta letra, esta sandália só deve ser usada em tempo de

calor. A voz feminina canta: ―Hoje eu vivo abandonada, meu bem/ Foi você que

abandonou‖. O abandono também é registrado os versos em que este sentimento encontra


84

correspondência na natureza: ―Açucena quando nasce, meu bem/ Se esparrama no jardim/

Vou pedir a Nossa Senhora, meu bem/ Pra tomar conta de mim‖.

SAPATINA FLAGELADA – samba canção


DP – informantes: Míriam e Maria Emília
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Sapatina “fregelada” meu bem


Só pro tempo de calor
Hoje eu vivo abandonada meu bem
Foi você que abandonou

Açucena quando nasce meu bem


Passa a rama no jardim
Vou pedir Nossa Senhora meu bem
Pra tomar conta de mim

Baixa, baixa serraria meu bem


Que eu quero ver a cidade
Minha mãe ali tão perto meu bem
E eu morrendo de saudade

Eu passei na minha roça meu bem


Rama verde me puxou
Não me puxa rama verde meu bem
Quem me puxa é meu amor

O fogo quando se apaga meu bem


Na cinza deixa o calor
O amor quando se acaba meu bem
No coração deixa dor

Uma prova dos improvisos que existem nas cantigas é a repetição dos versos que se

seguem, presentes também, com pequenas variações, na cantiga Coqueiro novo: ―Baixa,

baixa serraria meu bem/ Que eu quero ver a cidade/ Minha mãe ali tão perto, meu bem/ E

eu morrendo de saudade‖.

Neste caso, a serraria da cantiga anterior é substituída pelo pé de coco; ―para ver a

cidade‖ se transforma em ―que eu quero ver a cidade‖; e no lugar do ―benzinho ali tão

perto‖ figura a ―mãe ali tão perto meu bem/ E eu morrendo de saudade‖.

O cotidiano rural se mostra nos versos ―Eu passei na minha roça, meu bem/ Rama

verde me puxou/ Não me puxa rama verde, meu bem/ Quem me puxa é meu amor‖ e
85

também nos de Bambuê, mais uma música do repertório do CD Batukim brasileiro:

―Casinha de bambuê/ forrada de bambuá‖; ―Fui no campo colher flor/ Todo o campo

floresceu/ Colhi a flor roxinha/ Que é triste como eu‖.

A natureza, ressentida com os sentimentos e as palavras proferidas, aparece nos

versos ―Menina não diga isso/ Deus pode lhe castigar/ Faz arruda botar fulo/ E as ondas do

mar secar‖.

As cantigas de trabalho, tão caras no medievo e presentes até hoje no Brasil, em

vários grupos que exercem os mais diversificados ofícios, encontram uma exemplificação

em O canto das lavadeiras, toada que também pertence ao repertório de Batukim brasileiro

(2001).

O CANTO DAS LAVADEIRAS (Lenço Branco) – toada


DP – informante: Coral das Lavadeiras
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Mandei caiá meu sobrado...


mandei, mandei, mandei
Mandei caiá meu sobrado...
caiá de amarelo

Mas cadê meu lenço branco... ô lavadeira


Que eu lhe dei para lavar... ô lavadeira
Madrugada madrugou... ô lavadeira
E o sereno serenou... ô lavadeira

Não tenho culpa do que se passou


Deu uma chuva muito forte
E o lenço carregou

Morena você se lembra... ô lavadeira


Da noite que se passou... ô lavadeira
Madrugada madrugou... ô lavadeira
E o sereno serenou... ô lavadeira

Fui descendo o rio abaixo... oi lavadeira


Como desce o lambari... ô lavadeira
Procurando amor de longe... ô lavadeira
Que o de perto eu já perdi... ô lavadeira

Fui descendo rio abaixo... oi lavadeira


Numa canoa furada... oi lavadeira
Arriscando a minha vida... oi lavadeira
Por uma coisa de nada... oi lavadeira
86

Mas cadê meu lenço branco... ô lavadeira


Que eu te dei para lavar... ô lavadeira
Madrugada madrugou... ô lavadeira
E o sereno serenou... ô lavadeira

Repleta de ensinamentos, nesta canção tem-se um diálogo entre a lavadeira e

alguém que indaga a respeito do lenço branco dado a ela para que o lavasse. Elementos

temporais, como a madrugada que ―madrugou‖ e o sereno que ―serenou‖, marcam as

estrofes.

A Lavadeira, por sua vez, responde dizendo que não é culpada pelo que se passou.

A culpa é da natureza: em decorrência da chuva forte, o lenço foi carregado pelo vento.

Já o lambari, o rio e a canoa furada são metáforas do amor perdido: ―Fui descendo

rio abaixo/ Como desce o lambari/ Procurando amor de longe/ Que o de perto eu já perdi‖.

Ao final, tem-se a lição de vida fruto da sabedoria popular, da filosofia construída por meio

da experiência: a de que não vale a pena ―arriscar‖ a vida por uma coisa de nada.

Mas talvez valha arriscar a mudança de vida para uma situação mais confortável e

menos sofrida. Em Adeus ferro de engomar, os versos indicam a possibilidade de

ascensão: a agulhinha é vendida, o dedal emprestado. Só falta mesmo se desfazer do ferro

de engomar, instrumento ao qual se vincula o trabalho da lavadeira. Transcreve-se a seguir

a letra desta canção:

ADEUS FERRO DE ENGOMAR - chorinho


DP – informante: Valdênia
Recolhida e adaptada por Carlos Farias

Vendi minha agulhinha


Emprestei o meu ddal
Só falta eu vender meu ferrinho de engomar
Adeus goma, adeus goma, adeus
ferro de engomar

Tirei minha aliança


Botei na ponta da mesa
Quem quiser casar comigo
Não repare minha pobreza
87

Adeus goma, adeus goma, adeus


ferro de engomar

Amanhã eu vou-me embora


Tô mentindo eu não vou não
Se eu tivesse de ir embora
Eu ―num tava‖ aqui mais não

Fui na horta ―panhá‖ coento


Panhei ―gai‖ de alevante
Pra rezar o meu benzinho
Que está cheio de ―quebrante‖

Menininho da calça curta


Carreirinha de botão
Se não for pra num casar
Deixa de chateação

Essa casa é de ―paia‖


Merecia ser de ―teia‖
Pois a dona dessa casa
É bonita e não é feia

Vendi minha agulhinha


Emprestei o meu dedal
Só falta eu vender
Meu ferrinho de engomar? Adeus
Goma, adeus goma, adeus ferro de
Engomar

O eu lírico parece mesmo disposto a mudar sua condição de vida dando ―adeus‖ à

―goma‖ e ao ―ferro de engomar‖, refrão desta canção. Inclusive pensa-se na possibilidade

de casamento. É a voz feminina quem toma a iniciativa de tirar a aliança e propor

casamento com quem não reparar sua pobreza. Despreza o menino que veste calças curtas

e não tem ainda idade para se casar. E chega a anunciar sua partida, mas volta atrás:

Tirei minha aliança


Botei na ponta da mesa
Quem quiser casar comigo
Não repare minha pobreza

Amanhã eu vou-me embora


Tô mentindo não vou não
88

Se eu tivesse que ir embora


Eu ―num tava‖ aqui mais não

Elementos do sincretismo religioso brasileiro, como o quebranto e o mau-olhado,

podem ser encontrados nos versos:

Fui na horta ―panhá‖ coentro


Panhei ―gai‖ de alevante
Pra rezar o meu benzinho
Que está cheio de ―quebrante‖

Este mesmo sincretismo religioso pode ser percebido em Navio de guerra, música

de abertura do CD Aqua (2004):

NAVIO DE GUERRA/ CESSANDO A AREIA – afoxé e


moçambique
Informantes: Valdênia Lavadeira e Miriam Fernandes

- Lá evém o navio de guerra!


- Lá evém o navio de guerra!
Navegando pelo mar...
Auê Iemanjá! Não deixa meu barco virar

Eu vou cessar, eu vou cessar,


Areia do mar eu vou cessar

Minha gente venha ver


O que eu achei no mar:
Foi um piãozin de ouro
E uma peneira de cessar

Eu vou cessar, eu vou cessar,


Areia do mar eu vou cessar

Eu vou cessar areia


Eu vou cessar areia
Eu vou cessar areia do mar!
Areia do mar eu vou cessar

- Lá evém o navio de guerra!


- Lá evém o navio de guerra!
- Auê!...
89

Iemanjá, mãe d‘água dos iorubás, a mais prestigiosa entidade feminina do

candomblé, recebe oferendas e rituais. Festas são dedicadas a este orixá e embarcações se

dirigem até alto-mar para lhe atirar presentes. Convergem para Iemanjá orações e súplicas,

como no catolicismo, são dirigidas para Nossa Senhora.

- Lá evém o navio de guerra!


-Lá evém o navio de guerra!
Navegando pelo mar...
Auê Iemanjá! Não deixa o barco virar

Na canção Beira mar da vigia encontra-se uma invocação, um pedido de proteção

para que se consiga enfrentar os desafios do rio cheio de pedras.

BEIRA MAR DA VIGIA (*) – toada


Informante: Ana Isabel

“Cheguei no poço e gritei


Peguei o remo e remei
Ô Mariazinha!... Seu namorado chegou ai, ai” (**)

A) Beira mar, beira mar novo


Foi só eu é quem sabia,
Aprendi com os canoeiros
Lá no largo da Vigia

B) Companheira me ajude
Nem que for devagarinho,
Eu sou muito vergonhoso
Não posso cantar sozinho

C) Ai amor... Quantas pedras nesse rio!


Mas eu vou enfrentando o desafio (***)

D) Rio arriba, rio abaixo


Remador, minha canoa
Vai descendo rio abaixo,
Carregando coisa boa

E) De vigia a Belo Monte


Vou seguindo a estrela guia
Sob a proteção dos anjos
Jesus e a Virgem Maria (***)
90

(*) Vigia foi o primeiro nome de Almenara. Por lá passavam frotas de


canoas, num tempo em que o rio era a principal via de ligação entre o
interior e o litoral. Hoje, assoreado, o Jequitinhonha só é navegável bem
perto da Foz, em Belmonte BA.

(**) Este prólogo nos foi ensinado por Dona Joaninha, líder de um grupo
de Folia de Reis em Teófilo Otoni – MG.]

(***) As estrofes C e E foram compostas por Carlos Farias.

Nesta estrofe transcrita, adaptada por Carlos Farias, o rogo é feita à Virgem Maria.

Vigia foi o primeiro nome do que é hoje a cidade de Almenara.

De Vigia a Belo Monte


Vou seguindo a estrela guia
Sob a proteção dos anjos
Jesus e a Virgem Maria

Beira mar da Vigia e Cessando areia, presentes no repertório de Carlos Farias e das

Lavadeiras de Almenara, são duas cantigas de trabalho. Peneira-se a areia na primeira e

exerce-se a função de canoeiro na outra. Duas profissões intrinsecamente ligadas ao mar,

ao rio, à água que garante o sustento de muitos, inclusive o das lavadeiras. Uma

homenagem singela a duas profissões muito presentes nesta região do Vale do

Jequitinhonha e profundamente dependentes da abundância das águas.

Em raros momentos o eu lírico manifesta explicitamente a mudança de posição

econômica: ―Essa casa é de ‗paia‘/ Merecia ser de ‗teia‘/ Pois a dona dessa casa/ é bonita e

não é feia‖. A casa de telha, no caso, é o indicativo da transcendência econômica e mesmo

social merecida e justificada pela beleza que a dona da casa julga possuir.

Em Cessando a areia, encontra-se no mar, junto à peneira, um piãozinho de ouro.

Encontrar ouro é sonho antigo, desde a época dos colonizadores portugueses, exploradores
91

do ouro da região, que escoava nas canoas, nos escaleres e em outras embarcações sempre

a carregar ―coisa boa‖.

Gavião, no repertório musical do grupo formado por Carlos Farias e pelas

Lavadeiras de Almenara, também ―penera‖. É o motivo para se lembrar de que o seu bem

também peneira. E se a alegria do carreiro, na música Penera gavião, é ver ―o seu carro

chiá‖, a alegria dos olhos é ver seu bem chegar.

PENERA GAVIÃO
Informante: Teresa Novais

Penera gavião, penera gavião


Vem dos ares penerá
Eu vi meu bem penerando gavião
Penerou, penerá

Alegria do carreiro gavião


É vê o su carro chiá
Alegria dos meus olhos, gavião
É de vê meu bem chegá

Bebi vinho numa garrafa, gavião


Bebi cachaça na garrafinha,
Pra tirar uma mafagafa, gavião
Do ninho da mafagafinha

Alecrim da beira d‘água, gavião


Não se corta de machado
Se corta de faca fina, gavião
Alecrim dos namorado.

Continua o ensinamento:

Alecrim da beira d‘água, gavião


Não se corta de machado
Se corta de faca fina, gavião
Alecrim, dos namorado

De acordo com Câmara Cascudo, no Dicionário do folclore brasileiro (2000),

nossa cultura é pródiga em exemplos de trovas em que o alecrim é citado: ―Deita-te na


92

cama de rosas, / Travesseiro de alecrim:/ No meio do teu sono/ Solta um suspiro por mim./

Alecrim metido n‘água/ Pode estar quarenta dias!/ Um amor longe do outro / Murcha as

suas alegrias‖. Ou ainda esta amostra: ―Alecrim que tanto cheira/ Na cabeça de meu bem/

Estou bem desconfiado/ Que foi dado por alguém/ Alecrim seco se chama/ Uma esperança

perdida,/ Quem não ama o que deseja/ É melhor não ter mais vida‖. (CASCUDO, 2000,

p.12)

Em Tributo a Jequitinhonha, miscelânea de vários ritmos e músicas do folclore

brasileiro, o alecrim também figura: ―Flor branca na serra/ Inflorô meu pé de alecrim/

Quem tem seu bem e não zela/ Eu trato e levo pra mim‖.

TRIBUTO AO JEQUITINHONHA
Informante: Crisolina Guimarães

Balanceia meu bem, balanceia


Num balanço de amor, balanceia
Se não fosse esta rosa, balanceia
Namorava com essa flor, balanceia

Lá vai a garça voando, balanceia


Com as penas que Deus lhe deu, balanceia
Contando pena por pena, balanceia
Mais pena padece eu, balanceia
Balanceia... balanceia... balanceia...
balancê!

Moreninha, tu me fez a boa


Me bateu a porta, me deixou à toa.

À toa não, que eu não lhe deixei


Na porta do mei
Foi que eu esperei
93

Ô Zé, quando cê fô pra lagoa


Toma cuidado com o balanço da canoa
Ô Zé, faça tudo o que quisé
Mas não maltrate o coração dessa muié

Flor branca na serra


Inflorô meu pé de alecrim
Quem tem seu bem e não zela
Eu trato e levo pra mim

O ingein tá muendo do lado de lá/ É Mané


Gravitin penerando fubá

Licotoco, licotoco, lagartixa no feijão,


O ferreiro fez a foice, mas não fez o gavião

Samba mais eu/ Samba mais eu/ Samba


mais eu companheiro/ Samba mais eu!

Da sala pra varanda, uma bela modinha, tem-se o lamento amoroso feminino

causado pelo abandono e desprezo do amado. O lenço branco é perdido por Rosinha. Nele,

está ―iscrivido as quatro ponta‖ e foi seu bem quem escreveu. O lenço branco também

aparece em Rosa no batuque, música que encerra o CD Aqua (2001): ―Eu tenho meu lenço

branco/ Bordadim de abc/ E no meio está escrito/ Que eu amo só você‖.

DA SALA PRA VARANDA – modinha


Informante: Ana Isabel

Da sala pra varanda


Quem achar um lenço é meu,
Iscrivido as quatro ponta
Chora Rosinha
Foi meu bem que escreveu
Deixa chorar, deixa chorar.

Tico-tico na goteira, tico-tico na memória


94

Onde tem rapaz solteiro


Chora Rosinha
O casado não namora
Deixa chorar, deixa chorar

Ó que coisa tão bonita


Um rapazim de boa altura
Vestido de amarelo
Chora Rosinha
38 na cintura
Deixa chorar, deixa chorar

Meu bem quando foi embora


Nem de mim se despediu
Na subida da ladeira
Chora Rosinha
Lenço branco sacudiu
Deixa chorar, deixa chorar

Da sala pra varanda...

Rosinha chora a dor da perda de um ―rapazin de boa altura, vestido de amarelo, 38

na cintura‖. Não é a primeira vez que armas de fogo ou o universo que faz parte delas

aparece nas cantigas das Lavadeiras. Em Avião avuadô, encontram-se os versos: ―Você diz

que bala mata/ Bala não mata ninguém/ A bala que mais me mata/ É amar e querer bem‖.

Nas cantigas de amigo, às vezes a falta do namorado se deve por este servir à

guarda e, por causa disso, tarda ao encontro amoroso: ―Ai eu coitada! Como vivo en gram

cuidado/ por meu amigo que ei alongado!/ Muito me tarda/ o meu amigo na Guarda!‖, de

Alfonso X. (BREA, 1999, p.138)

Porém, nem tudo vale na procura de um namorado, pois o ―tico-tico na memória‖

ensina que ―onde tem rapaz solteiro, o casado não namora‖. Bem-te-vi, sabiá, tico-tico e

joão-de-barro aparecem na música Rala o coco bem-te-vi.

RALA O COCO BEM-TE-VI – batuque


Informante: Valdênia Lavadeira

Rala o coco, bem-te-vi


Panha o bagaço, sabiá
95

João-de-barro prendeu Joana


Eu não que eu não vou lá

João-de-barro prendeu Joana


E tolice de mulher,
Estando com o meu amor
Eu vou lá quando eu quiser

Tico-tico fez o ninho


Marimbonde qué tomá,
Quem é dono não ciúma
Quem não é qué ciumá

Lá em casa no terreiro
Tem um pé de alecrim,
Toda gente que namora
Passa lá e eu dou um galhim

Por meio da natureza têm-se os ensinamentos, como se pode constatar nos versos a

seguir: ―Tico-tico fez o ninho/ Marimbonde qué tomá,/ Quem é dono não ciúma/ Quem

não é qué ciumá‖.

Nesta composição, mais uma vez aparece o alecrim, ligado à superstição popular:

Lá em casa no terreiro/ Tem um pé de alecrim,/ Toda gente que namora/ Passa lá e eu dou

um galhim‖.

Ao clarão da lua, uma cantiga de roda, interpretada por Dona Crisolina Guimarães,

mãe de Carlos Farias, tem-se mais um lamento amoroso de arrependimento por ter

entregado seu coração: ―Se eu soubesse quem tu eras/ Quem tu haverás de ser,/ Não dava

meu coração/ Pra depois eu padecer‖.

AO CLARÃO DA LUA – cantiga de roda


Informante: Crisolina Guimarães

Quando a lua clareava,


Noite bela eu passeava,
Às 8 horas da noite
Meu amor comigo estava,
Quando a lua clareava.
96

Se eu soubesse escrever n‘água


Como escrevo no areão
Eu tinha teu nome escrito
Dentro do meu coração.

Eu joguei meu limão verde


Na porta da sacristia
Deu no ouro e deu na prata,
Deu no roxo que eu queria.

Se eu soubesse quem tu eras


Quem tu haverás de ser,
Não dava meu coração
Pra depois eu padecer.

Lavadeira cantando na beira do rio faz parte da memória do povo que habita o Vale

do Jequitinhonha e outros logradouros do Brasil, que ainda é tão rural. Há, no retrato do

cotidiano, na sutileza de harmonias, na simplicidade de melodias e na riqueza de ritmos,

um lenitivo para uma vida árdua e dura. A canção, solitária ou coletiva, vai transformando

o amargo em doçura. E esta é o combustível que se usa para criar os filhos, administrar

magros orçamentos e ainda amar um homem.

O resgate das manifestações populares musicais, como o Coral das Lavadeiras,

respeitando-se as tradições locais, tem inspirado muitos projetos parecidos, o que é muito

positivo, porque a cultura popular, que é transmitida de geração para geração e faz parte do

modo de vida das pessoas, é algo além da sua dimensão como objeto.

As cantigas que são mantidas e resgatadas em um trabalho de pesquisa, de coleta,

tendo como informantes muitas vezes as próprias Lavadeiras do grupo, constituem-se em

um patrimônio imaterial que alcança uma expressão material a partir do momento em que

se concretiza no registro de um CD/livro, ou de dois, como no caso do Coral em questão.

No entanto, esse resgate não precisa necessariamente ser transformado em

modismos para se adequar ao gosto dos mercados. É necessário, de um lado, educar o

mercado para que valorize a cultura brasileira e, de outro, promover a organização de


97

grupos que mantém práticas genuínas, para que tenham melhores condições em preservar

seu patrimônio.

Ver e ouvir as lavadeiras-cantoras de Almenara representa a legitimação da arte, a

amostragem de um Brasil desconhecido de nós mesmos. Revelando a imensa beleza e a

inesgotável riqueza cultural que forma a identidade desse nosso país.

É uma aula de auto-estima porque ao se apresentarem todas agradecem ao ofício, o

de lavar e passar roupas, a própria existência. Contam casos de quando eram meninas e

aprendiam as canções com suas mães ou avós. Partilham lembranças por vezes dolorosas

nas quais a música estava sempre presente; o lenitivo, a amargura transformada.

Música, teatro, dança e contação de histórias formam o enredo de um espetáculo

em que elas são as verdadeiras protagonistas.

Fluidas são as Lavadeiras durante a vida. Fluidez é encontrada em vários elementos

da natureza que surgem ao longo das cantigas, dentro de um fluxo mais amplo que é o do

próprio canto.
98

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se, no presente trabalho, evidenciar pensamentos de teóricos cujas idéias

convergiam, em sua maioria, para a perda da aura, para o desencantamento do mundo e

para a dissolução dos valores nele presentes.

Questionou-se como um grupo social representado por Lavadeiras humildes,

residentes no nordeste do Estado de Minas Gerais, com ínfimas possibilidades de

sobrevivência e de manutenção de sua cultura de raiz, moldada por uma lógica

completamente diferente da economia capitalista, manteve-se resistente em seu lugar de

origem e pôde transcender suas práticas culturais ao mesmo tempo em que foram, pelo

próprio grupo, preservadas.

Evidenciou-se a forte tendência quanto à desestruturação dessas práticas, pois a

pós-modernidade, impressa no âmbito do capitalismo, explicita suas evidências, sobretudo,

fora do Vale e da comunidade a que pertencem as Lavadeiras. Dizendo melhor, nas

chamadas regiões desenvolvidas em que a população rural é, de certa forma, forçada a

buscar a fim de complementar a sua sobrevivência acarretando, nessa migração, a perda

dos costumes, das práticas sociais, enfim, a ruptura de todo um modo de vida.

Verificou-se que embora se procure conservar as práticas culturais, a população

rural não é a mesma, uma vez que é obrigada pela sobrevivência material a encontrar

formas de garantir seu sustento, adotando novos hábitos e novas maneiras de viver, ou seja,

novos valores e novas práticas sociais do grupo familiar e do grupo da vizinhança.


99

Ao mesmo tempo em que se constatou a incorporação de novos valores e de novos

hábitos, a permanência de práticas sociais seculares como o fato de cantar enquanto se lava

a roupa também se evidencia. E foi justamente essa permanência que instigou a pesquisa e

alimentou a idéia da possibilidade de, como se retratou, mulheres, mesmo em contínuo

vínculo com as sociedades contemporâneas, reproduzirem formas e maneiras de vida de

um tempo muito antigo.

Na verdade, esses pequenos nichos colocam em xeque o propagado poder da pós-

modernidade, ou hipermodernidade, sobre tudo e sobre todos. Mesmo tendo de se adaptar

às novas regras, condutas e comportamentos gerais induzidos pela mídia e pela sociedade

capitalista, há um movimento inconsciente da manutenção da identidade resguardada. É

como se ao mesmo tempo em que é necessária a adaptação à nova realidade, em um

movimento oposto de resistência garantissem formas de vida próprias.

No caso do Vale do Jequitinhonha a pós-modernidade não chegou apenas com

aqueles que voltavam munidos de pares de tênis e de motocicletas. Ela voltou Vale adentro

à procura de novos espaços para reinar. Isso se evidencia no processo de ocupação da terra,

quando camponeses, moradores da região desde o início da colonização, foram,

principalmente a partir dos anos sessenta do século passado, atingidos em cheio pelas

empresas reflorestadoras, pela cafeicultura e pela pecuária capitalistas.

Uma reformulação profunda das relações sociais impregnou toda a população do

Vale. Ocorreu, também, a transformação da indústria doméstica em artesanato, tendo à

frente do processo uma entidade governamental, CODEVALE e, recentemente a

divulgação do repertório musical das Lavadeiras por meio de um bem sucedido projeto.

O Vale do Jequitinhonha era uma mancha de pobreza no estado de Minas Gerais e

deveria ter prioridade nas ações governamentais. Foi redescoberto e para lá se dirigiram
100

empresas afoitas em adquirir terras e acumular riquezas, o que resultaria na geração de

empregos e na diminuição da miséria.

Porém, a tão propagada oferta de trabalho não veio. A vegetação de cerrado foi

substituída por plantações de eucalipto, os camponeses agora habitam as periferias das

grandes cidades, e a terra se encontra visivelmente ressequida, o que agrava ainda mais a

situação de desolamento, pois impede a agricultura de subsistência. Portanto, a pobreza

permanece praticamente nos mesmos patamares anteriores à intervenção da CODEVALE.

Entretanto, em meio a essa escassez de recursos, renascem, em meio às cinzas,

práticas culturais impressas na forma de manifestação da música. Assim, por meio da

memória coletiva, assegura-se a permanência de significados, mesmo quando as atividades

são determinadas pelos mercados consumidores urbanos, movimento que se torna mais

perceptível no caso das Lavadeiras de Almenara.

O sagrado, presente na relação com a terra, com o rio, com as raízes identitárias,

opera o encantamento do mundo, pressionado por todos os lados a romper-se. Percebe-se,

também, uma sobreposição de lugar e de espaço – as experiências, que asseguram o

sentimento de pertença, e as vivências, que são necessárias para garantir uma adequação

social fora dos seus locais de origem.

Observando-se toda essa maneira de viver é que se pode dizer que sendas são

criadas ao longo do processo desestruturador e, por meio delas, as prisões feitas de

preconceitos e desconhecimentos são rompidas ou podem se tornar maleáveis.

O mundo, apesar de tudo, insiste em se manter encantado; a aura imprime-se nas

cantigas resguardadas porque cada uma delas é rica de significação e de história que se

entrelaçam com a experiência individual e genuína de cada lavadeira-cantora/ cantora-

lavadeira. Sobre a terra e à beira do rio uma reconstrução opera-se constantemente. Assim,

o lugar assegura a sua existência em meio ao espaço.


101

Carlos Farias, idealizador do projeto dos dois CDs/livros e fundador do Coral das

Lavadeiras de Almenara, pesquisa essa herança cultural em forma de cantigas desde 1985.

Com a criação do Coral no início da década de 90, conseguiu encontrar nestas mulheres do

povo as fiéis depositárias e as intérpretes autênticas de um saber que encanta platéias no

Brasil e no exterior.

O lançamento dos CDs consolidou um trabalho que busca enriquecer o patrimônio

cultural imaterial brasileiro, além de gerar renda e promover a inclusão social dessas

mulheres.

Tendo a água como tema, fonte de vida, ambiente de trabalho e meio de

sobrevivência para o trabalho das Lavadeiras, ela permeia várias canções do repertório. Os

ritmos e as letras também revelam a miscigenação que a região sofreu e o sincretismo

religioso tão comum aos brasileiros. Assim, chulas de terreiro e antigas orações católicas

se harmonizam no espaço melódico e vivencial. É o sagrado presente no CD e na vida.

Nas cantigas, conscientes dos limites impostos à mulher, as Lavadeiras não

desafiaram o discurso hegemônico. No lugar disso, aproveitaram-se de brechas para

contestar a condição da mulher na sociedade. Ao gravarem CDs e se apresentarem em

público cantando e contando histórias de suas vidas, substituem, mesmo que por horas

apenas, o trabalho pesado e mal-remunerado pela magia do palco, no resgate da auto-

estima com a protagonização de suas vivências.


102

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6 ANEXOS

Constituem-se como anexos da presente dissertação a amostra das fotografias

coletadas em dois momentos distintos: o encontro com Carlos Farias e o Coral das

Lavadeiras de Almenara, em Poços de Caldas, Minas Gerais, em setembro de 2007, na

ocasião da apresentação do Grupo no Projeto de ―Música na Praça‖, financiado pela TIM;

e a visita a Almenara, realizada em janeiro de 2008 para que se observasse in loco a

realidade vivida pelas Lavadeiras em sua comunidade, em suas residências e em seu local

de trabalho.

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