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especialistas, as composições orais que são ouvidas, contadas, recitadas ou cantadas pelo
transformações como supressões, adições e, até mesmo, invenções, mas, ainda assim,
população.
As letras das cantigas que constituem o corpus deste trabalho, colhidas por meio da
um eu lírico, uma voz feminina, que está lavando roupa, conversando com suas amigas, ou
experiência histórica das gerações anteriores e da ação criativa de cada indivíduo e que o
homem apreende o mundo por meio de seus paradigmas, tendo como conseqüência a
propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural,
crença de que a própria sociedade em que o indivíduo se encontra inserido seja o centro da
aos olhos devido a sua diversidade e riqueza, representando uma parte do patrimônio
nacional, a população deste local possui poucos registros oficiais que possam detalhar sua
tão adversas, como o das Lavadeiras, continue mantendo práticas e modos de viver
seculares.
cultural que este grupo de mulheres representa a fim de garantir sua sobrevivência material
O presente trabalho tem como um dos objetivos estabelecer diálogo entre o grupo
aos efeitos do capitalismo na vida cotidiana daquelas pessoas que, mesmo sobrevivendo à
uma das mais importantes, até recentemente as cantigas de trabalho das Lavadeiras eram
Entretanto, pode-se dizer que atualmente o etnográfico é cada vez mais incorporado
Depois de relegadas ao exótico e ao pitoresco, suas cantigas se destacam por serem únicas
As propostas que se delinearão nos capítulos que formam este trabalho dizem
estereótipo feminino que ainda perduram nos nossos dias. Ainda que se cante o amor como
sendo o anseio maior, nas entrelinhas há a revelação dos desejos e do erotismo que foram
parte de um grupo que garante seu próprio sustento com a dignidade do trabalho e não têm
precisam se preocupar com sua própria sobrevivência material, uma vez que nem sempre
capitalismo, as relações sociais, econômicas e culturais exercidas por elas na região em que
vivem.
práticas, como a gravação dos dois CDs (Batukim brasileiro e Aqua) e as apresentações do
Coral, ou seja, o reconhecimento de seu acervo cultural, porém mantendo velhos costumes,
áreas do conhecimento humano que se desvelarão ao longo do presente trabalho. E, por sua
pontos a serem desenvolvidos ao longo dos capítulos, optou-se pelo tratamento pontual
desenvolver.
das lavadeiras).
de seu trabalho, a água e, sobretudo, pela certeza do mérito de seu ofício, muitas vezes
demarca seu território e sai da margem em que permaneceu ao longo da história sem
mulheres são partes integrantes deste cenário em que a opulência da cultura contrasta com
a miserabilidade econômica.
mulheres que pertencem ao Coral das lavadeiras de Almenara, nada é mais salutar que a
lavadeiras foi fundado em 1992, por iniciativa do cantor e pesquisador cultural Carlos
Farias, contando com o apoio de outras pessoas da comunidade do Bairro São Pedro. Essa
seguinte informação:
Parte dos recursos obtidos com a venda dos CDs pertence às Lavadeiras. Além do
região. A iniciativa ainda promove a inclusão social e a melhoria das condições de vida
destas mulheres.
cantigas revelam a rica diversidade cultural brasileira e estão registradas nos CDs/livros
pelo Rio Jequitinhonha, no nordeste mineiro, e atualmente tem, apesar do baixo IDH de
alguns municípios situados na mesma região, se destacado pela riqueza das manifestações
artísticas.
cortaram a região em busca de ouro por volta de 1727, comandadas pelo bandeirante
paulista Sebastião Lima do Prado. Em 1811, o alferes Julião Fernandes Leão, a mando da
de impedir o contrabando de ouro e de diamante pelo rio, naquela época navegável e única
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do país e povos indígenas resistiam bravamente à tomada de suas terras sendo, portanto,
Com a criação dos quartéis de São Miguel, da Água Branca, da Vigia e do Salto
floresta atlântica que cobria toda a região também foi exterminada e em seu lugar surgiram
grandes fazendas para a criação de gado, uma das principais atividades econômicas da
ocasião em que teve alterada sua denominação para Almenara, palavra de origem árabe
que significa farol, torre de vigilância para os navegantes, coerente com o sentido
Almenara conta, atualmente, com pouco mais de trinta e seis mil habitantes. Grande
parte é formada por indivíduos com condições precárias, migrantes da zona rural e de
que assola o país, e o Vale do Jequitinhonha em especial, é uma das cidades mais prósperas
da região. O Rio Jequitinhonha, mesmo assoreado, é uma bela paisagem natural da cidade.
retratando nos trechos das cantigas elementos da região que habitam, como a poeira do
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riqueza poética.
De acordo com Lalada Daglish (2008) ―A maioria das cidades do Vale foi criada
em virtude da exploração de minerais, surgindo daí o nome de cidades como Minas Novas,
Diamantina, Pedra Azul, Berilo, Turmalina, Malacacheta etc‖. (DAGLISH, 2008, p.60)
longo dos seus 1.100 km de extensão, desde a nascente no Serro à foz em Belmonte. A
Jequitinhonha.
O esgotamento das jazidas de minérios fez com que as comunidades rurais do Vale
(2008), ―Por ser empregada tecnologia arcaica em terras não muito férteis, esta produção
se tornou insuficiente para o sustento das famílias, levando estes pequenos proprietários a
contribuíram para que a produção se tornasse insuficiente até mesmo para o autoconsumo e
o sustento das famílias. Assim, outras frentes de trabalho surgiram. Conforme as palavras
de Daglish: ―As mudanças climáticas ocorridas no Vale nas últimas quatro décadas, que
provocaram longas estiagens, são tidas, em parte, como responsáveis pela falta de trabalho
p.61)
muitos pontos, o Rio Jequitinhonha pode ser atravessado a pé. A cidade de Almenara já
teve a maior praia fluvial do Brasil, mas a diminuição do volume do rio retirou-lhe esse
atrativo.
relações não somente entre fauna e flora, como também nos recursos hídricos de toda a
que teve que se deslocar para outras regiões em busca de melhores condições de
Almenara, em janeiro de 2008, em convivência por oito dias com estas mulheres, em
que, apesar das atividades ligadas ao Coral, para algumas delas o ofício de lavar roupas
Entoar cantigas enquanto se faz a lavagem de roupas sempre fez parte do cotidiano
das lavadeiras. Porém, ao serem elevadas à categoria de arte, essas cantigas possibilitaram
O perfil da região foi alterado, uma vez que grupos surgiram com o mesmo
propósito de divulgar a cultura regional. Benefícios financeiros oriundos das vendas dos
CDs e de shows realizados por Carlos Farias e o Coral das lavadeiras puderam ser
mulheres cantoras.
empobrecimento ainda mais significativo dos pequenos lavradores e uma intensa migração
pouco, alterando a sua realidade social, uma vez que as transformações no cotidiano de
alguns grupos, como o das Lavadeiras, resistem e continuam mantendo práticas e modos
sem vida humana e sem as suas variadas formas de manifestação cultural que emocionam a
todos que por ali passam, temos a preservação da memória cultural popular.
Jequitinhonha, os resultados foram bastante efetivos, uma vez que o artesanato, a música e
outras manifestações culturais são valorizados por artistas e intelectuais que dirigem o
mesmo tempo em que se mantêm a preocupação com a dilapidação daquilo que em seu
arcaicos (elas, até pouco tempo, lavavam as roupas à beira do rio, usando as pedras para
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pertencem.
água e de energia elétrica, algumas lavadeiras preferem as margens do rio para exercerem
seu ofício, desprezando inclusive a facilidade trazida pela modernidade que são os
rio, bem como a sensação de não-pertencimento daqueles que tiveram suas práticas sociais
tecnológicas.
vivências. Os locais não são estanques; a sociedade em que as Lavadeiras estão inseridas
correntes.
meio de sua substituição pelo eucalipto. Destruição de algumas das práticas culturais e
resistência, recuperando a participação efetiva do indivíduo nesse processo que pode ser
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apreendido por meio da observação de um projeto tão bem sucedido como o realizado com
as Lavadeiras. Ao manterem sua cultura, exportam-na por meio de uma arte retratada por
Batukim brasileiro (2001) e Aqua (2004), bem como em anotações e registros de viagem
2 A HIPERMODERNIDADE E O FEMININO
o momento atual vivido pela sociedade humana. Considerando o prefixo hiper como
criados na modernidade.
hipermodernos, de Gilles Lipovetsky. A efemeridade das coisas, bem como seu caráter de
são marcadas pela flexibilidade e pela fluidez na tentativa de se acompanhar uma intensa
velocidade.
procurar abranger as mutações sofridas nas instituições que se constituem como alicerces
hipermodernidade. Esse termo será tomado como denominação de uma mudança de época,
que encontra nas novas formas institucionais seu impacto mais direto, um dos dispositivos
pontos que confluem nas manifestações artísticas como as formas atuais de vivência do
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sociedade do espetáculo.
sociedade nos últimos tempos, demonstrando que a questão da pós-modernidade ainda não
está definida.
suscitem divergência, pode-se concordar com a assertiva de que o novo sempre apresenta
como pano de fundo o antigo. Assim, o termo pós-modernidade faz alusão à modernidade,
representando, por um lado, uma ruptura e, por outro, uma reação frente ao projeto
moderno.
pois são correspondentes ao seu período culminante. Nos anos de 1960 começarão as
reações que vão desencadear o que hoje é denominado como pós-moderno, com sua nova
Essa crise foi acentuada nas décadas de 1960 e 1970, e evidenciada pelos
ordem cultural, política e econômica. A razão não produziu a tão desejada e esperada
moderna, acentuada pelo fracasso do socialismo, pela queda do muro de Berlim e pela
novo universo mental se descortina. Nesse universo, a condição feminina foi questionada e
feminina, a feminilidade etc. – acabaram por se tornar uma limitação, como que uma
A diferença sexual consiste na tese de que a sexualidade é composta por dois sexos
cada sexo. A mulher seria o complemento do homem, dividindo com ele, embora não de
propõe que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher, provocando, dessa forma, um
uma mudança em suas vidas, em suas escolhas profissionais, em seus desejos e em suas
relações amorosas que puderam seguir diferentes caminhos, podendo hoje abrir um leque
de possibilidades. Kehl (1998) amplia esta questão dizendo o ―que o sujeito pode se tornar,
com Kehl (1998), tem-se com isso um movimento de dualidade entre duas posições: as
Isto se deu, conforme Áran (2003), devido à crise da forma burguesa da família
homossexualidade.
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entre os sexos que redefinem a questão da diferença, configurando um novo topos para
que permitiria uma circulação de desejos e posições sociais em que não haveria mais
interfaces retratadas nas cantigas, revelando novas construções identitárias que inscrevem a
naturalização de aspectos sociais antes fundidos com os aspectos biológicos nestas duas
categorias.
momento, conforme apresentado acima, foi preciso demonstrar que anatomia não era
destino e que o corpo feminino não determinava a condição social da mulher. O objeto de
categoria das diferenças biológicas cujo significado principal se constitui nas diferenças
genitais. As relações sexuais/de gênero são enfocadas como um campo de luta estruturado,
Gênero é um conceito que se refere à construção social do sexo. Significa dizer que
masculino e feminino que acompanham nas culturas a presença de dois sexos na natureza.
A espécie humana é formada por machos e fêmeas, mas a qualidade de ser homem e ser
papéis sexuais é abandonada e se valoriza cada vez mais a dimensão de relatividade entre a
O conceito de gênero tem como origem a noção de cultura. Essa noção aponta para
o fato da vida social, e os fatores que a organizam como, por exemplo, tempo, espaço ou a
de representações. A cultura apresenta-se como um todo integrado; cada domínio pode ser
objeto de concepções peculiares, contudo elas mantêm entre si um encadeamento que não é
diferença ente os sexos é limitada para explicar a intensa variedade dos comportamentos e
identidade vale lembrar a definição da qual se vale Stuart Hall acerca da identidade
cultural:
particular, original e originário, que se faz cada vez mais importante para a compreensão
econômicos que possam fazer frente a um império, que vem tentando se tornar
Por outro lado, a invasão desses países por aqueles que trazem o híbrido na sua
formação, forçam as fronteiras de antigas noções de unidade, pureza e nação. Este processo
consta nos debates culturais contribuindo para a reflexão sobre aquilo que os latino-
forma, pode-se estabelecer a premissa de que a identidade brasileira tende a ser cambiante
difusas.
conseguinte, será necessário enfrentar certas ―narrativas do eu‖ (cf. Stuart Hall) cômodas,
Em literatura, entendemos por discurso feminino o uso específico que certas autoras
enunciação registram uma posição social peculiar, portanto distinta daquela ocupada pelo
homem.
como escritora. Porém, até hoje, a produção literária feita por mulheres ainda é
esclarece-se que são, antes de tudo, textos literários como os demais. Não se trata,
que se refere ao sexo feminino, trazendo sua marca; e o de feminismo, movimento político
Ocorre vez por outra de um discurso feminino ser também feminista, porém não o
será necessariamente. Mas para que se entenda a pertinência do discurso feminino, não se
posição (com relação à do homem) que lhe é permitido perceber e representar este mundo
onde vive; o olhar feminino é peculiar em função de uma diferença de ângulo, pois o
recentemente emergiu da atmosfera doméstica, que funcionava como uma redoma ou uma
prisão, e começa agora a tomar consciência da vida lá fora. Quanto a esse aspecto elucida
Helena Parente:
O que importa ressaltar no vasto campo dos estudos das vozes femininas na
literatura brasileira, no presente ou no passado, é sua perfeita sintonia com o novo
espírito crítico desta mutante era pós-moderna.
Entre as características mais evidentes de nosso tempo fragmentado e
multidirecionado, por certo destaca-se a forte tendência contestatória. Todos os
valores, princípios, conceitos, concepções, palavras de ordem, enfim, toda a visão de
mundo vigente até então, passou a ser questionada, posta em dúvida, à proporção que
as grandes certezas de outrora se transformaram nas aflitivas perguntas sem respostas
que ainda hoje nos desnorteiam. Na arena das discussões e das polêmicas, tantas vezes
nervosas e irritadas, avulta a questão da sobrevivência e da derrubada do cânone
literário, que antes servira de baliza e medidor para autorizar a admissão da obra e
para sua avaliação. Essa atribuição decisória de caráter absoluto se incorpora às
estratégias da classe dominante, detentora do poder, da palavra e do sentido.
A partir da segunda metade do século XX, com a dissolução da hegemonia
dos critérios hierarquizantes que excluíam a obra literária e artística produzida por
segmentos alteritários, abriu-se o espaço para que se fizessem ouvir as vozes
marginalizadas, inicialmente de negros e mulheres, ao lado da emergência dos
escritores terceiromundistas, além dos demais grupos excluídos da cultura dominante.
No Brasil, ao sabor do fluxo daquelas águas, floresceu a produção literária feminina,
tendo sido as autoras logo reconhecidas, sem que precisassem mais se defrontar com
críticas desairosas, chacotas e difamações que tantas de suas antecessoras foram
obrigadas a suportar. Os tempos haviam mudado e a mulher já estava começando a
ocupar seu lugar no mundo regido pelos critérios masculinos. (CUNHA, 2001, p.22).
se que mais do que um motivo, a representação do amor, dos desejos e dos anseios
pessoais contidos nas letras, deve ser tratado nas cantigas das Lavadeiras como significante
inscrita nas letras com traços enaltecedores no lugar dos depreciativos que geralmente lhe
grupo mineiro das Lavadeiras. Pode-se dizer sem melindres que os cantos entoados pelas
perante o outro.
fascínio pelo novo, pela velocidade, pelo consumo e pela lógica de mercado, tem ocupado
intelectuais em várias áreas acadêmicas e encontra, cada vez mais, espaço de expressão na
antecederam, na sua maneira de ser, de fazer, de sentir, são questões cruciais que permeiam
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de gêneros desfeito, devido à perda da autoridade paterna, ocorre a quebra hierárquica dos
velhos ordenamentos sociais. Segundo a autora, essa mulher divide-se ―entre viver seu
‗destino de mulher‘ e realizar sua ‗vocação de ser humano‘, ambição tornada possível
graças à evolução dos costumes, buscando uma solução para sua ‗plenitude existencial‘‖.
O momento presente se evidencia por meio de fragmentos e não há lugar para conceitos
absolutos.
A maneira de se constituir o tecido social será afetada por essa crise paradigmática
seguir, mas uma diversidade de trilhas que beira o infinito, relativizando as certezas e
Clifford Geertz adota o conceito de cultura a partir das reflexões elaboradas por
Max Weber, para quem o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu. Para Geertz, a cultura é definida por essas teias e pela análise destas. Desta
forma, torna-se relevante investigar como homens e mulheres, inseridos em uma ―teia de
ocorre uma transfiguração do habitus, tal como define Bourdieu, como um:
situações concretas, o habitus não é algo repetitivo, mas sim repleto de possibilidades
criativas.
O habitus vem a ser, portanto, um princípio gerador que leva a cabo a interação
uma vez que são passíveis de transformação – para orientar as práticas nas quais esses
objetivas garante, portanto, a inserção social. Além disso, ao mudar as condições objetivas
que se afirma que as transformações ocorridas são incorporadas tanto objetiva quanto
que garante a preservação do ecossistema. A terra apresenta, para elas, um significado mais
amplo e não somente o seu espaço de trabalho e meio de vida. É um espaço onde se
entre os vizinhos e entre aqueles que pertencem ao lugar, que é a comunidade. Os códigos
que regem a vida, de forma geral, são elaborados no interior das relações camponesas
observar pela cooperativa das lavadeiras de Almenara, citada no início deste trabalho.
Stuart Hall nos elucida a questão da crise de identidade do sujeito que, se antes, em
uma sociedade moderna, possuía uma fronteira bem demarcada social e culturalmente,
os espaços globais são esferas distintas dos lugares; naqueles predomina a identificação
importância nas sociedades modernas pautadas pela globalização, com forte predomínio da
Embora não se tenha feito nenhuma distinção entre espaço e lugar, usando-se,
lavadeiras vivem ou passam, por determinado tempo, suas vidas, a definição de espaços e
lugares precisa ser trabalhada, afinal, são sinônimos designativos, onde as pessoas
A relação dos camponeses com a terra constitui-se em um forte elemento para pensar
a sua real condição econômica e simbólica. Ela não é apenas o lugar de produzir a
vida material; tem a dimensão de território que extrapola os limites físicos,
geográficos. É o lugar onde o sagrado encontra, cotidianamente, pequenas formas de
se fazer presente, por meio de pequenos ritos. (FEATHERSTONE, 1997, p.128).
sua renda e transcendência à condição de opressão, uma vez que se tornaram artistas
De acordo com Canclini (2003), nas classes populares encontra-se às vezes uma
técnicas apropriadas a seu estilo de vida são desenvolvidas. Mas, acrescenta o autor,
dificilmente esse resultado pode competir com o daqueles que dispõem de um saber
Ao lugar caberia a experiência, enquanto ao espaço restaria aquilo que não pode ser
significado para a coletividade. Dessa forma, tudo que ocorre fora dos seus locais de
origem passa, a partir de então, a ser designado ―espaço de passagem‖, já que se pressupõe
o retorno das pessoas. As experiências concretizadas em seus locais, com ―senso de lar‖,
Vale, no momento de modificação de uma arte regional, como a música das Lavadeiras,
alcançando projeções nacionais, reforçam a idéia de que o passado só aparece a partir das
exclusivamente individuais, são peças de um contexto social que não só contém as pessoas
Lavadeiras do Vale. Por meio do espaço, existe toda uma concepção de mundo, de idéias,
de valores e de representações.
pensamento. É a terra simbólica, que traz consigo a compreensão de mundo, que extrapola
dimensão que é vivida e representada e que não comporta a idéia de propriedade a ser
cortada, horizontalmente, pelo rio Jequitinhonha, que prossegue seu curso pelo Estado da
Conhecida também como ―Vale da Fome‖, a região é considerada uma das mais
A partir dos anos 60 e 70 que tal prática torna-se mais expressiva, uma vez que a
investida capitalista em algumas atividades que contam com a ação estatal, no sentido de
sociedade com seu espaço pode ser definida, ao mesmo tempo, como construção
estabelecimento da diferença.
em que os seus limites são conhecidos por todos aqueles que dela participam. À medida
que os resultados da ação do capitalismo sobre a arte produzida pelas lavadeiras vão ao
encontro de uma dilapidação das suas condições de vida, abre-se um espaço para o
Assim, demanda uma reestruturação sob novas bases e esse refazer irá constituir um novo
sujeito.
gerador que supõe esquema durável, mas também flexível, capaz de adotar improvisações
conformismo, num quadro de poucas saídas reais, para uma população em processo de
situação-limite; todos estão, permanentemente, em contato com uma nova realidade que
carece de novas maneiras de nela agir. Entretanto, existem formas éticas de gerar
cada grupo, como o bem sucedido projeto idealizado por Carlos Farias.
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e no desencantamento do mundo.
Berman, por sua vez, considera a modernidade como a experiência vital de tempo e
de espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e dos perigos da vida, que é
compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo. De acordo com o autor: ―Ser
tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que somos‖. (BERMAN, 1996,
p.105).
Dessa forma, pode-se inferir que a modernidade apresenta dois pólos ambivalentes
confere, por exemplo, a alteração das relações sociais e de trabalho na região onde as
palavras:
Existe uma nova (des) ordem uma vez que as categorias tempo e espaço foram
Assim, de acordo com Ianni, o problema agora é compreender a realidade agora desenhada
modernidade e sua influência negativa sobre tudo e sobre todos, ou seja, um perigo para os
A abordagem deste trabalho intenciona incorporar as duas vertentes, visto que cada
outra que releva as artimanhas humanas, reais e simbólicas, construídas dentro do contexto
conotação de uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que
como ocorre com os homens, o papel dominante na sociedade. Matrístico é uma expressão
que designa uma cultura em que homens e mulheres se inseririam em um modo de vida
emocional na transformação cultural. Além disso, o autor tece considerações a respeito das
patriarcal.
convite a fazê-lo por meio do exame dos fundamentos emocionais do nosso viver, o autor
justifica sua tese: ―A vida humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional
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que constitui, a cada instante, o cenário básico a partir do qual surgem nossas ações‖.
autor o humano surge quando nossos ancestrais começaram a viver no conversar como uma
maneira cotidiana de vida que se conservou, geração após geração, pela aprendizagem dos filhos.
conversações, pois o que nos constitui como seres humanos é nossa experiência no conversar:
Aquilo que um observador diz que um Homo sapiens faz fora do conversar não é uma atividade ou
Partindo desse pressuposto, a cultura é definida como o que conotamos na vida cotidiana,
quando falamos de cultura ou de assuntos culturais. É uma rede fechada de conversações que
constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de
emoções e ações:
indivíduos que a realizam. Dessa forma, o ser humano pode pertencer a diferentes culturas
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em diferentes momentos do seu viver. Quando uma rede de conversações deixa de ser
ocorreu uma preservação de alguns valores da cultura matrística - que serão retomados no
De acordo com Maturana (2004), se o indivíduo não puder compreender que suas
emoções constituem e guiam suas ações na vida, conseqüentemente não terá elementos
conceituais para entender a participação de suas emoções no que lhe permite tornar-se
membro de uma cultura e o curso de suas ações nela. E, finalmente, se não entender que o
curso das ações humanas segue o das emoções, não poderá compreender a trajetória da
história da humanidade.
dominação dos outros por meio da apropriação da verdade; faria oposição a uma cultura
padrões bem diferentes, pois não havia hierarquia, propriedades, exclusão, o bom e o mau;
consciência individual e social, aprende a viver o fluxo emocional da sua cultura, o que lhe
faz parecer natural, adequado e evidente, todas as ações contraditórias e binárias que a
algum resultado particular porque não observa as interações básicas da existência. Por isso,
virtude da fragilidade dos vínculos humanos é a marca do nosso tempo em que vigoram as
As relações que esse sujeito constrói com o mundo natural também foram
controle.
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A perda do sagrado se manifesta nesse sujeito devido às relações com a vida que se
para a busca ansiosa da segurança. Esta traz consigo a unidirecionalidade, obtida pela
incluem a mulher e os filhos e, finalmente, o temor da morte como fonte de dor e perda
total.
O indivíduo é o espelho de sua cultura. Ele é o somatório dos valores de sua cultura
e da sua vida pessoal, individual. Logo, as idéias e as crenças desses indivíduos, centradas
na apropriação, são consideradas como se formassem sua própria identidade. Dessa forma,
tomando e defendendo o seu próprio modo de viver como o único verdadeiro, ocorre a
humanos.
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parte da reprodução dos grupos sociais presentes em toda a região. Por meio dos trabalhos
em couro, barro, taquara, fios de algodão e madeira, a população pobre que residia no meio
rural produzia bens imateriais e materiais como os de utilidade doméstica local e regional.
no momento em que exerciam seu ofício sobrevivendo até os dias de hoje, apesar de se
todo o Vale do Jequitinhonha a fim de se priorizar o corpus que consiste nas cantigas
material da região, a análise que se pretendeu fazer neste trabalho centrou-se na cultura
impressas nas práticas dos indivíduos, com implicação da contínua perda do contato com a
a partir dos anos sessenta do século passado, provocaram modificações nas práticas
cultural, como as iniciativas individuais, no caso do Coral das Lavadeiras. Iniciativa esta
que logrou êxito proporcionando às mulheres oprimidas, que fazem parte do grupo, o
condições de vida.
coletivamente pelo povo, transmitida oralmente para outros membros da comunidade e tem
função relacionada aos interesses da vida do grupo como se pode exemplificar abaixo na
citação:
A música folclórica pode ter raízes na música erudita, cantadas nas casas
senhoriais e mantidas ao longo do tempo nos ouvidos do povo, como a modinha, os
romances, as xácaras, de tempos medievais, ainda cantadas pelo país. É música aceita
por quem ignora os aspectos teóricos da arte musical, depois transformada ou
acrescida de novos aspectos, que correspondem às necessidades funcionais da
coletividade. (CASCUDO, 2000, p.205).
imaterial, a música, e do produto do seu trabalho concreto, dos seus atributos, que se
constituem na lavagem das roupas. Desse modo, a mercadoria, fruto do trabalho, não
representa nada sem aquela que o produziu. Maria Aparecida Moraes Silva observa que,
neste caso, não existe o fetiche da mercadoria que assume o lugar das pessoas. Não se trata
de uma relação entre coisas, e sim entre pessoas. ―A coisa só tem valor porque a pessoa a
dimensão da produção de bens culturais imateriais situados para além de sua utilidade. É
algo parecido com o mesmo destino encontrado por esses bens fora de seu espaço de
menos favorecida ganha a qualidade de arte com a gravação dos CDs/livros e de shows em
extrapolasse o uso imediato da necessidade cotidiana para uma população que, pensava-se,
estava voltada e absorvida pela luta incansável pela sobrevivência. O que moveria, então, a
elaboração de bens que também não se destinavam à exposição em suas casas, uma vez
da região, mas trazer elementos relacionados a essa prática dentro de um contexto mais
Sabe-se que toda a região do Vale foi, durante séculos, povoada por índios. Sabe-
Sabe-se, também, que aos elementos índio e branco português, somou-se o escravo
abundância desta cultura se estendeu às novas gerações que foram se constituindo durante
desdobramentos étnicos subseqüentes, marcou toda a forma de vida das populações locais,
inclusive na sua relação com a terra e com o rio. As marcas profundas da vida simbolizada
representam se evidencia.
suficiente para a manutenção de sua sobrevivência, os artistas do povo, cada vez mais,
brasileira.
público para a veiculação de sua cultura. E, ainda que a arte popular seja alvo de muitos
caso nada seja feito por parte de iniciativas públicas ou até mesmo privadas. Como esses
apresentar, a fama, as homenagens e os louros que recebem não são suficientes para tirá-
gosto pela iniciativa. Porém, com muita freqüência, a lógica da mercantilização faz com
que a reflexão seja abandonada em favor da emoção, e a teoria, em favor do uso prático:
―Em vez de promover uma cultura de qualidade, ela (a mídia) nos proporciona variedades
insípidas, multiplica os programas esportivos e deixa para o horário mais tardio possível,
Lipovetsky, p.44).
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descobrir a mecânica da cena pública e analisar como se organiza a vida cultural, com o
Assim, a mídia, de acordo com Charles é tomada pela lógica hipermoderna e pode
caótico.
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de forma efetiva, nas primeiras décadas do século XX, no confronto entre o novo e a
Cada vez mais distante da religião, a arte tornou-se mais autônoma e, de certa
Terry Eagleton (1993) considera que a arte nesse período deixa de servir ao poder
político ao mesmo tempo em que se liberta das suas funções ideológico-cristãs, do tribunal
e do Estado, passando a reger-se por suas próprias leis. O significado da arte tornou-se,
mercadoria.
A arte, dessa forma, deixa de ser representação e passa a ser criação, no sentido
O artista estava, assim, liberto das leis que não correspondessem às da sua
interioridade e de seu arbítrio. Passa a valer tudo o que possibilitava o sucesso, o bem-estar
mundo dos nossos antepassados, aos símbolos e afirmações de fé, embasados, em sua
contemporâneo.
que caracteriza a globalização, afeta não apenas os terrenos econômicos e sociais, mas
De acordo com Bauman (2001), o declínio do sagrado, das tradições, dos direitos
cotidianos e das obrigações que não permitiam iniciativas fora do previsto proporciona
―modernidade sólida‖.
Fatos ocorridos a partir de meados do século passado e que se estendem aos dias de
miséria cotidiana.
invadido por inúmeros objetos que alteram a vivência da realidade. A televisão favorece a
Além disso, o celular e a internet cada vez mais popularizados trazem novas
consumir passivamente imagens do que lhes falta na vida real devido ao empobrecimento
da existência e à alienação. São suas as palavras: ―(...) quanto mais ele contempla, menos
vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos
compreende sua própria existência e seu próprio desejo‖. (DEBORD, 1997, p.44)
imperiosa e impositiva. Logo, não é mais necessário pensar e refletir: basta ver, pois a
perdido e confuso na medida em que seu mundo também modifica rapidamente fazendo
Ser moderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser incapaz de
parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos e continuaremos a nos mover
não tanto pelo adiamento da satisfação, como sugeriu Max Weber, mas por causa da
impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação: o horizonte da
satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranqüila
movem-se rápido demais. (BAUMAN, 2001, p.37)
percepções que o indivíduo muitas vezes não detém, pois as transformações ocorrem em
consumidores para produtos (sem outro sentido que não o de preencher a carência de quem
respeito:
consumidos.
William Cesar Castilho Pereira (2004) diz que os indivíduos percebem o mundo
como espelhos de si mesmos e ―não se interessam por eventos externos, a não ser que estes
promovam um reflexo de sua própria imagem. Impera uma cultura terapêutica, que cultua
A hegemonia da aparência vive seu apogeu: o sujeito vale pelo que aparenta ser.
Com uma valorização sem precedentes sobre o corpo, tem-se, segundo Jurandir
(...) a noção de moral das sensações compreende a satisfação com dois ideais
de prazer difundidos na cultura atual. O primeiro corresponde, aproximadamente, ao
que o senso comum crítico ou ordinário chama de ―hedonismo‖ ou ―narcisismo‖. Esse
é o sentido menos evidente e mais pedestre da expressão. Admite-se, sem fundamento
empírico, que a maior parte dos sujeitos, hoje, condicionou a satisfação ou auto-
realização pessoal ao gozo do êxtase sensorial.
62
vulneráveis.
63
do Estado de Minas Gerais, são guardiãs de antigas canções – batuques, afoxés, sambas,
modinhas, toadas e cantigas de roda – cuja origem vem se perdendo na memória do tempo.
Gerais, eles mostram uma fusão rítmica de elementos negros, indígenas e portugueses,
Vigia foi o primeiro nome da cidade de Almenara por onde passavam frotas de
canoas, em um tempo em que o rio era a principal via de ligação entre o interior e o litoral.
Bahia.
além de Belmonte, com banzo de preto velho, lembrança de escravos e proezas lusitanas
cantigas,―Iemanjá‖ não deixar o barco virar, toma-se um ―pilãozinho de ouro‖ tudo e vai
64
―cessar areia do mar‖ como quem cessa farinha. Enquanto se canta o beira mar, dos
Mas diz outro verso que ―o facão bateu embaixo e a bananeira caiu‖. E o rio,
cantando, a história de nosso povo. Uma dessas, por nome Maria, ―lavava os paninho do
Ciência que a muitos falta é a do corte do alecrim: alecrim da beira d‘água não se
corta de machado: ―se corta de faca fina, alecrim dos namorado‖. Não zelar do amor que se
tem é pecado sem perdão: ―quem tem seu amor e não zela, eu trato e levo pra mim‖. Em
um lugar onde a natureza sempre ensina, ―tico-tico fez o ninho, marimbondo quer tomar;
cintura‖. E o clarão da lua inspira versos: ―Se eu soubesse escrever n‘água como escrevo
no areião, eu tinha teu nome escrito dentro do meu coração‖. Se é caso de amor secreto,
todo cuidado é pouco: ―Não encosta na parede, que a parede tem ouvido; não quero que
Madeira, que recebeu com carinho o Batukim brasileiro, merecido sucesso inaugural de
Carlos Farias e suas Lavadeiras. Aí se diz: ―Vou-me embora pra Madeira, terra boa d‘eu
morar; esta roda bem cantada faz quem tem paixão chorar‖.
cantando na beira do rio é memória antiga do povo que mora no Vale do Jequitinhonha e
melodias e na riqueza de ritmos um lenitivo para uma vida árdua e dura. A canção, solitária
65
no encarte do CD/livro, bem como o trecho introdutório da música Mestra Diôla, que
Farias.
Segundo o encarte acima citado, ―Santana era a mãe de Maria e avó de Jesus.
Segundo Frei Chico Van der Poel, o culto à Senhora Santana teve início na Idade Média.
No sincretismo religioso brasileiro ela equivale a Nanã Burukê, considerada a avó dos
orixás, na cultura yorubá. Existem muitas variações melódicas e longos versos sobre o
mesmo tema‖.
expressões populares.
devoções são algumas das inúmeras práticas que podem ser citadas. Algumas expressões
partir do descobrimento das nossas terras. É curioso observar que, embora a Bíblia ofereça
poucas passagens em que a Virgem seja citada, ou seja, poucas informações sobre Ela, mas
Senhora.
Virgem bem próxima dos apelos da humanidade. Pede-se a Ela um galhinho do raminho
trazido nas mãos e a Virgem responde que não. Trata-se de uma ladainha entoada nas
procissões.
67
de águas é cultuada: ―Senhora Santana ao redor do mundo/ Aonde ela passava deixava
uma fonte/ Quando os anjos passam bebem água dela/ Ó que água tão doce, ó Senhora tão
bela!‖.
cujas águas jorram virtudes curativas válidas para as mais variadas doenças, desde a febre
plano das realidades humanas, da matéria cósmica fundamental, sem a qual não seria
possível assegurar a fecundação e o crescimento das espécies. A água viva que delas corre
recorte do cotidiano de uma mãe ocupada em lavar os paninhos que seu filho utilizava.
José, pai de Jesus, o ―bento filho‖, ocupava-se em estendê-los. O menino Jesus chorava de
A singeleza dos atos, bem como os parcos recursos materiais desta santa família,
menino para calar o choro porque, assim como a faca que corta não o faz sem dor, a vida é
feita de sofrimentos e sacrifícios fazem parte dos ensinamentos presentes na letra desta
canção.
68
quadro de uma santa mulher que também sofre privações junto a seu bebê, encontrem
manifesta de forma evidente. Santa Ana, ou Santana, que de acordo com a Legenda áurea
é casada com Joaquim, mãe da Virgem Maria e avó materna de Jesus Cristo, protetora das
mulheres casadas e das grávidas, faz brotar as fontes sagradas e milagrosas cuja
Santana, ―Quando os anjos passam bebem água dela/ Ó que água tão doce, ó Senhora tão
bela‖ e, ao mesmo tempo, sua filha Maria, no plano terreno, lava, ela mesma, as roupinhas
―Encontrei Nossa Senhora/ com seu raminho na mão/ “Eu pedi ela um gainho,/ Ela me
Vale esclarecer que benditos são cantos religiosos entoados em uníssono nas
procissões que são feitas pelos fiéis seguindo andores dos santos do dia. As procissões
religiosas que datam no Brasil a partir de 1549, conforme atesta Luis Weckmann, na obra
La herencia medieval del Brasil, são até hoje praticadas em todo o território nacional.
Tem-se nestas duas canções uma amostragem da cultura cristã trazida pelos
Algumas denominações precisam de muita cautela para ser usadas, haja vista que,
sem esse cuidado, podem ser empregadas para encobrir a realidade em lugar de desvelá-la,
É esse o caso dos termos cultura popular e cultura erudita. A visão capitalista pode
É inegável que essa é uma classificação um tanto quanto discriminatória, pois confina as
alguns autores como Alfredo Bosi em Dialética da colonização, que define a cultura
pensar e falar de uma dada formação social‖. (BOSI, 1999, p.319). Bosi descarta o
conceito mais restrito de cultura que se constitui em ―apenas o mundo da produção escrita
p.319)
Continua o autor:
Para Bosi, não existe separação entre uma esfera puramente material da existência e
É inegável constatar que, independente da sua raiz, da sua origem, a arte popular
representa a cultura de um povo. Por que em geral, a arte popular não é tão valorizada
quanto a erudita? Enumerar motivos, listar razões e hipóteses que respondam sem maiores
problemas a diferença, sem ser a clássica ―uma possui estudo, a outra não‖, demanda
complexidade. De saída, vê-se às voltas com a nomeação dos termos dessa equação. Arte
Para o leigo, muitas vezes essas palavras são vistas como sinônimos. Para quem
distintas ainda que nem sempre se chegue a um acordo sobre o uso de cada um dos termos.
ingênua. Afinal, o fato de esses artistas normalmente não terem uma educação formal não
faz necessariamente com que eles tenham uma visão ingênua do mundo.
que a história da arte pode ser representada como uma caminhada rumo ao progresso. A
posição mais evoluída é ocupada pela arte de hoje, contemporânea e os artistas primitivos
estariam no começo dessa linha, em uma posição menos evoluída. Nada mais contestado
pelas atuais teorias da arte do que essa idéia de evolução. Por se tratar de um produto
cultural, ao nos referirmos às artes popular e erudita, não é possível afirmar que uma seja
complexidade do assunto:
71
Lucia Santaella, por sua vez, discorre a respeito das transformações da cultura
encontrava a cultura erudita das elites e do outro a cultura popular produzida pelas classes
transformações ocorridas:
manualmente, por uma pessoa que domina aquele processo. Nesta perspectiva, o artista
popular surge no campo do trabalho artesanal, mas não se confunde com ele. Diz Cascudo
a respeito: ―Embora por tradição o artesão preserve formas e estilos, pode também evoluir
Pode-se dizer que o interesse pela arte popular está ligado à busca pelo exótico e
por características regionais, que em tempos de globalização cultural parece não mais fazer
sentido.
pode ser um indicativo de uma nova tendência nacional de permitir que as manifestações
cerrado e à presença do rio. Apresenta, também uma geografia humana muito característica
com a miscigenação entre o índio que habitava às margens do rio, o branco português
diversos, uma verdadeira riqueza humana. É uma região que tem em sua história o
história de suas vidas, o desejo de amar, os pequenos relatos do seu cotidiano que ao
mesmo tempo são tão grandiosos. Mas tudo isso não significa que a questão das fronteiras
e tropeiros que viveram na região isolada, por muitos anos, geográfica e culturalmente.
Ao se analisar mais de perto o conteúdo das letras das músicas que fazem parte dos
presentificadas.
canções que apresentam diálogo com os elementos folclóricos e culturais mineiros em uma
Nelas se reconhecem similitudes com os temas tão caros ao repertório das cantigas
lírico. São jovens exprimindo seus desejos amorosos de encontrar o amigo, a dor da
saudade causada por sua ausência e a forte presença da natureza, confidente das queixas e
esperanças da amiga que aguarda seu namorado, convergentes nas duas produções.
Como ilustração tem-se a canção Rua das pedrinhas, colhida e adaptada por Carlos
Farias. Nela se percebe claramente o intertexto que se pode estabelecer com inúmeras
representado por uma jovem e bela moça, que aguarda novas do namorado, e indaga à
rosa é meio para que o feminino lamentoso possa enxergar seu bem. A cada rosa colhida,
feminino.
A água, a fonte, símbolos ligados à feminilidade, são meios para que vidas se
manifestem como as piabinhas que nadam nelas. A fonte seria a valorização feminina,
transitoriedade do amor pode ser entendida nas mudanças pelas quais a folha passou
virando ―pau‖ e depois ―vento‖: ―A folha da bananeira (oi cio)/ Virou pau e virou vento (oi
cio)‖.
Nos demais versos desta estrofe, têm-se a lembrança da figura amada sempre
evocada na presença da natureza: ―O olhar desse menino (oi cio)/ Não me sai do
lírico. Assim como a folha da bananeira ―não se ‗bana‘ sem o vento‖, ―toda moça
realizadas pelas moças solteiras que, na noite de São João, comemorada no dia 24 de
76
junho, inserem na planta uma faca para terem uma letra, o nome do noivo e futuro marido,
riacho. Ao contemplar o limão descendo, mais uma vez o eu lírico pensa no amado:
―Quanto mais o limão desce (oi cio)/ Mais meu bem bonito eu acho (oi cio)‖. Nas
sete sílabas métricas, redondilhas maiores, portanto, tem-se a cortesia amorosa presente nas
como convém à vassalagem amorosa do amor cortês, presentear seu amado com seu
coração e só não o faz porque assim morrerá e não poderá mais amá-lo: ―Não te dou meu
coração (oi cio)/ Porque não posso tirar (oi cio)/ Se eu tirar eu sei que morro (oi cio)/ e não
A natureza ensina mais de uma vez. O cravo branco, quando preso aos cabelos, nos
guardar seu cravo ―que ainda não chegou seu tempo‖. Pode-se interpretar que o cravo
castidade deverão ser preservadas porque ainda não há maturidade da menina a que a
canção se refere.
De acordo com Câmara Cascudo (2000), o cravo era uma flor muito popular na
Europa do século XV. O cravo branco era a flor tradicional dos amantes, indispensável no
código de sinais dos namorados, como se pode verificar na quadrinha folclórica abaixo,
Cravo, flor presente no buquê das noivas, acompanhando-as no altar era depois
distribuído entre moças e rapazes. Percebe-se a abundância de símbolos que transitam pelo
universo semântico que faz parte do casamento. Fonte de água, bananeira, cravo e até
mesmo o limão verde, capaz de carregar os maus agouros correnteza abaixo e trazer de
Este incidente é interpretado como sinal de que chegou o momento de se casar e logo pede
Símbolo que indica aliança, um voto, um destino associado a um elo, o anel possui
anel é, de certo modo, abrir uma porta, entrar num castelo, numa caverna, no paraíso etc.
Colocar um anel no próprio dedo ou no de outra pessoa significa reservar para si mesmo ou
sobretudo nas cantigas de roda e nas quadrinhas peninsulares, como ilustra Cascudo (2000,
p.329):
por Crisolina Guimarães e Juracy, recolhida e adaptada por Carlos Farias, cujos versos são
transcritos abaixo, o limão entra de roda na roda, anda de mão em mão e chora no coração.
78
causados pela ansiedade amorosa, pelo anseio de que o desejo amoroso seja correspondido.
música Rua das pedrinhas (oi cio), tem-se a construção sonora constante ao final de cada
frase poética. Além do limão, outras frutas são citadas como a laranja e o mamão. Frutas
brasileiras, das mais conhecidas que servem para evocar a figura amada nestes versos
formados por redondilhas maiores em sua silabação poética, bem ao gosto popular devido
Uma estrutura similar à de Chora limão consta na canção Avião avuadô, que abre o
Eu passei no pé da lima
Chupei lima sem querer
Abracei o pé da lima
Pensando que era você
Eu passei no pé da lima
Chupei lima sem querer
Abracei com o pé da lima
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A canção Chora limão ainda possui um caráter de homenagem, pois o último refrão
permite que se encaixe o nome de alguém a quem se pretende cortejar, ou que se respeita e
admira.
proposta do presente trabalho, serão transcritas as estrofes que são pertinentes à análise:
Valdênia é bunitinha
Bunitinha que ela é
Parecendo o Deus menino
Nos braços de São José
O cabelo de Emília
É um preto que alumeia
Quem tirar um cacho dele
Tem cem anos de cadeia
Novamente, tem-se a estrutura métrica de sete sílabas poéticas nas estrofes que
compõem a cantiga. O refrão faz referência ao coqueiro, árvore comum na Bahia, estado
A natureza, embora não funcionando como confidente neste caso, ainda é uma
facilitadora do encontro amoroso, uma vez que permite ao eu lírico que por meio do
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coqueiro se vislumbre a cidade, pois o ―benzinho‖ está ali tão perto enquanto quem o ama
―morre de saudade‖.
Na próxima estrofe tem-se uma referência a uma das integrantes do Coral das
Lavadeiras, Valdênia que, de acordo com os versos, é tão ―bunitinha‖ que se assemelha a
―Deus menino nos braços de São José‖. Mais uma vez encontra-se a religiosidade popular
São José é um padroeiro com muitas homenagens recebidas e empresta seu nome a
várias localidades brasileiras. É protetor dos lares católicos e permite morte serena a seus
devotos. Quem crê em São José, de acordo com a tradição católica, tem seu trabalho
garantido e jamais lhe faltará o pão. Mas os seus fiéis devem resignar-se a viver tranqüilos
Já o cabelo de Emília, outra integrante do grupo, é tão preto que ―alumeia‖ e quem
dele tirar um cacho terá cem anos de cadeia. A beleza feminina pode superar, inclusive, a
pobreza de seu pai, a falta de um dote, como se diz na letra de Bambuê: ―Menina dos olhos
pretos/ Sobrancelhas de veludo/ Se seu pai for muito pobre/ Tua beleza vale tudo‖.
Casinha de bambuê
Forrada de bambuá
Auê, auê, auê
Auê, auê, auá
A cor preta dos cabelos de Emília ―alumeia‖. De acordo com Câmara Cascudo
(2000), foram mantidas no Brasil as tradições ligadas ao cabelo. Se fosse a primeira vez, só
poderia ser cortado por mão de homem. Os cachinhos eram distribuídos às pessoas da
família ou guardados como lembrança. Também poderiam indicar o estado civil de sua
dona. Se solteira, poderia andar com a cabeça descoberta e manter os cabelos soltos e
compridos.
Rio São Francisco, o Rio Jequitinhonha, ainda navegam embarcações, são lembrados nesta
canção de beira-mar.
Aboio, o canto entoado sem palavras pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado,
está presente nos versos: ―ó meu boi lelê‖, ―ó meu boi lelê diá‖. Os vaqueiros abóiam
O sentimento amoroso mais uma vez está ligado à natureza, ao cotidiano do eu lírico
que deseja ―panhar‖ quem ele se lembra. Entretanto, mesmo não sendo possível tal desejo,
Desafiado a cantar, tem-se a comparação com a cigarra ―que para cantar leva o dia‖.
Entretanto, não é o que se verifica nos versos. A voz que fala, na canção analisada, diz não ser
como a cigarra e lamenta a falta dos companheiros que foram levados por Nossa Senhora, uma
De acordo com os versos desta letra, esta sandália só deve ser usada em tempo de
calor. A voz feminina canta: ―Hoje eu vivo abandonada, meu bem/ Foi você que
Vou pedir a Nossa Senhora, meu bem/ Pra tomar conta de mim‖.
Uma prova dos improvisos que existem nas cantigas é a repetição dos versos que se
seguem, presentes também, com pequenas variações, na cantiga Coqueiro novo: ―Baixa,
baixa serraria meu bem/ Que eu quero ver a cidade/ Minha mãe ali tão perto, meu bem/ E
eu morrendo de saudade‖.
Neste caso, a serraria da cantiga anterior é substituída pelo pé de coco; ―para ver a
cidade‖ se transforma em ―que eu quero ver a cidade‖; e no lugar do ―benzinho ali tão
perto‖ figura a ―mãe ali tão perto meu bem/ E eu morrendo de saudade‖.
O cotidiano rural se mostra nos versos ―Eu passei na minha roça, meu bem/ Rama
verde me puxou/ Não me puxa rama verde, meu bem/ Quem me puxa é meu amor‖ e
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―Casinha de bambuê/ forrada de bambuá‖; ―Fui no campo colher flor/ Todo o campo
versos ―Menina não diga isso/ Deus pode lhe castigar/ Faz arruda botar fulo/ E as ondas do
mar secar‖.
vários grupos que exercem os mais diversificados ofícios, encontram uma exemplificação
em O canto das lavadeiras, toada que também pertence ao repertório de Batukim brasileiro
(2001).
alguém que indaga a respeito do lenço branco dado a ela para que o lavasse. Elementos
estrofes.
A Lavadeira, por sua vez, responde dizendo que não é culpada pelo que se passou.
A culpa é da natureza: em decorrência da chuva forte, o lenço foi carregado pelo vento.
Já o lambari, o rio e a canoa furada são metáforas do amor perdido: ―Fui descendo
rio abaixo/ Como desce o lambari/ Procurando amor de longe/ Que o de perto eu já perdi‖.
Ao final, tem-se a lição de vida fruto da sabedoria popular, da filosofia construída por meio
da experiência: a de que não vale a pena ―arriscar‖ a vida por uma coisa de nada.
Mas talvez valha arriscar a mudança de vida para uma situação mais confortável e
O eu lírico parece mesmo disposto a mudar sua condição de vida dando ―adeus‖ à
casamento com quem não reparar sua pobreza. Despreza o menino que veste calças curtas
e não tem ainda idade para se casar. E chega a anunciar sua partida, mas volta atrás:
Este mesmo sincretismo religioso pode ser percebido em Navio de guerra, música
candomblé, recebe oferendas e rituais. Festas são dedicadas a este orixá e embarcações se
dirigem até alto-mar para lhe atirar presentes. Convergem para Iemanjá orações e súplicas,
B) Companheira me ajude
Nem que for devagarinho,
Eu sou muito vergonhoso
Não posso cantar sozinho
(**) Este prólogo nos foi ensinado por Dona Joaninha, líder de um grupo
de Folia de Reis em Teófilo Otoni – MG.]
Nesta estrofe transcrita, adaptada por Carlos Farias, o rogo é feita à Virgem Maria.
Beira mar da Vigia e Cessando areia, presentes no repertório de Carlos Farias e das
ao rio, à água que garante o sustento de muitos, inclusive o das lavadeiras. Uma
econômica: ―Essa casa é de ‗paia‘/ Merecia ser de ‗teia‘/ Pois a dona dessa casa/ é bonita e
social merecida e justificada pela beleza que a dona da casa julga possuir.
Encontrar ouro é sonho antigo, desde a época dos colonizadores portugueses, exploradores
91
do ouro da região, que escoava nas canoas, nos escaleres e em outras embarcações sempre
Lavadeiras de Almenara, também ―penera‖. É o motivo para se lembrar de que o seu bem
também peneira. E se a alegria do carreiro, na música Penera gavião, é ver ―o seu carro
PENERA GAVIÃO
Informante: Teresa Novais
Continua o ensinamento:
cama de rosas, / Travesseiro de alecrim:/ No meio do teu sono/ Solta um suspiro por mim./
Alecrim metido n‘água/ Pode estar quarenta dias!/ Um amor longe do outro / Murcha as
suas alegrias‖. Ou ainda esta amostra: ―Alecrim que tanto cheira/ Na cabeça de meu bem/
Estou bem desconfiado/ Que foi dado por alguém/ Alecrim seco se chama/ Uma esperança
perdida,/ Quem não ama o que deseja/ É melhor não ter mais vida‖. (CASCUDO, 2000,
p.12)
brasileiro, o alecrim também figura: ―Flor branca na serra/ Inflorô meu pé de alecrim/
Quem tem seu bem e não zela/ Eu trato e levo pra mim‖.
TRIBUTO AO JEQUITINHONHA
Informante: Crisolina Guimarães
Da sala pra varanda, uma bela modinha, tem-se o lamento amoroso feminino
causado pelo abandono e desprezo do amado. O lenço branco é perdido por Rosinha. Nele,
está ―iscrivido as quatro ponta‖ e foi seu bem quem escreveu. O lenço branco também
aparece em Rosa no batuque, música que encerra o CD Aqua (2001): ―Eu tenho meu lenço
na cintura‖. Não é a primeira vez que armas de fogo ou o universo que faz parte delas
aparece nas cantigas das Lavadeiras. Em Avião avuadô, encontram-se os versos: ―Você diz
que bala mata/ Bala não mata ninguém/ A bala que mais me mata/ É amar e querer bem‖.
Nas cantigas de amigo, às vezes a falta do namorado se deve por este servir à
guarda e, por causa disso, tarda ao encontro amoroso: ―Ai eu coitada! Como vivo en gram
cuidado/ por meu amigo que ei alongado!/ Muito me tarda/ o meu amigo na Guarda!‖, de
ensina que ―onde tem rapaz solteiro, o casado não namora‖. Bem-te-vi, sabiá, tico-tico e
Lá em casa no terreiro
Tem um pé de alecrim,
Toda gente que namora
Passa lá e eu dou um galhim
Por meio da natureza têm-se os ensinamentos, como se pode constatar nos versos a
seguir: ―Tico-tico fez o ninho/ Marimbonde qué tomá,/ Quem é dono não ciúma/ Quem
Nesta composição, mais uma vez aparece o alecrim, ligado à superstição popular:
Lá em casa no terreiro/ Tem um pé de alecrim,/ Toda gente que namora/ Passa lá e eu dou
um galhim‖.
Ao clarão da lua, uma cantiga de roda, interpretada por Dona Crisolina Guimarães,
mãe de Carlos Farias, tem-se mais um lamento amoroso de arrependimento por ter
entregado seu coração: ―Se eu soubesse quem tu eras/ Quem tu haverás de ser,/ Não dava
Lavadeira cantando na beira do rio faz parte da memória do povo que habita o Vale
do Jequitinhonha e outros logradouros do Brasil, que ainda é tão rural. Há, no retrato do
um lenitivo para uma vida árdua e dura. A canção, solitária ou coletiva, vai transformando
o amargo em doçura. E esta é o combustível que se usa para criar os filhos, administrar
respeitando-se as tradições locais, tem inspirado muitos projetos parecidos, o que é muito
positivo, porque a cultura popular, que é transmitida de geração para geração e faz parte do
modo de vida das pessoas, é algo além da sua dimensão como objeto.
um patrimônio imaterial que alcança uma expressão material a partir do momento em que
grupos que mantém práticas genuínas, para que tenham melhores condições em preservar
seu patrimônio.
de lavar e passar roupas, a própria existência. Contam casos de quando eram meninas e
aprendiam as canções com suas mães ou avós. Partilham lembranças por vezes dolorosas
da natureza que surgem ao longo das cantigas, dentro de um fluxo mais amplo que é o do
próprio canto.
98
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
origem e pôde transcender suas práticas culturais ao mesmo tempo em que foram, pelo
dos costumes, das práticas sociais, enfim, a ruptura de todo um modo de vida.
rural não é a mesma, uma vez que é obrigada pela sobrevivência material a encontrar
formas de garantir seu sustento, adotando novos hábitos e novas maneiras de viver, ou seja,
hábitos, a permanência de práticas sociais seculares como o fato de cantar enquanto se lava
a roupa também se evidencia. E foi justamente essa permanência que instigou a pesquisa e
às novas regras, condutas e comportamentos gerais induzidos pela mídia e pela sociedade
aqueles que voltavam munidos de pares de tênis e de motocicletas. Ela voltou Vale adentro
à procura de novos espaços para reinar. Isso se evidencia no processo de ocupação da terra,
principalmente a partir dos anos sessenta do século passado, atingidos em cheio pelas
divulgação do repertório musical das Lavadeiras por meio de um bem sucedido projeto.
deveria ter prioridade nas ações governamentais. Foi redescoberto e para lá se dirigiram
100
Porém, a tão propagada oferta de trabalho não veio. A vegetação de cerrado foi
grandes cidades, e a terra se encontra visivelmente ressequida, o que agrava ainda mais a
são determinadas pelos mercados consumidores urbanos, movimento que se torna mais
O sagrado, presente na relação com a terra, com o rio, com as raízes identitárias,
sentimento de pertença, e as vivências, que são necessárias para garantir uma adequação
Observando-se toda essa maneira de viver é que se pode dizer que sendas são
cantigas resguardadas porque cada uma delas é rica de significação e de história que se
lavadeira. Sobre a terra e à beira do rio uma reconstrução opera-se constantemente. Assim,
Carlos Farias, idealizador do projeto dos dois CDs/livros e fundador do Coral das
Lavadeiras de Almenara, pesquisa essa herança cultural em forma de cantigas desde 1985.
Com a criação do Coral no início da década de 90, conseguiu encontrar nestas mulheres do
Brasil e no exterior.
cultural imaterial brasileiro, além de gerar renda e promover a inclusão social dessas
mulheres.
sobrevivência para o trabalho das Lavadeiras, ela permeia várias canções do repertório. Os
religioso tão comum aos brasileiros. Assim, chulas de terreiro e antigas orações católicas
público cantando e contando histórias de suas vidas, substituem, mesmo que por horas
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107
6 ANEXOS
coletadas em dois momentos distintos: o encontro com Carlos Farias e o Coral das
realidade vivida pelas Lavadeiras em sua comunidade, em suas residências e em seu local
de trabalho.