Você está na página 1de 101

Tempo espiralar e encantamentos

do rio das cobras


Laíza Ferreira Silva

Natal/ RN - 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

Tempo espiralar e encantamentos do rio das cobras

Laíza Ferreira Silva

NATAL/ RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Silva, Laiza Ferreira.


Tempo espiralar e encantamentos do rio das cobras / Laiza
Ferreira Silva. - Natal, 2022.
101 f.: il.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade


Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Departamento de Artes, Curso de Licenciatura
em Artes Visuais.
Orientadora: Profª Drª Bettina Rupp.

1. Memória Afro-diaspórica -Pesquisa em artes - Proces-


sos autobiográficos. 2. Tempo espiralar - Pesquisa em artes -
Processos autobiográficos. 3. Poéticas virtuais - Pesquisa em
artes. I. Rupp, Bettina. II. Título.

RN/UF/Biblioteca Setorial do Departamento de Artes. CDU 7.03

Elaborado por JOSIANE MELLO - CRB-15/570


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

Laíza Ferreira Silva

Tempo espiralar e encantamentos do rio das cobras

BANCA EXAMINADORA:

_______________________________________________

Prof ª Dra. Bettina Rupp (Orientadora)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

_______________________________________________

Prof ª Dra. Regina Helena Pereira Johas (Examinadora)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

______________________________________________

Prof ª Ma. Estrela Pereira dos Santos (Examinadora)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)


Laíza Ferreira Silva

Tempo espiralar e encantamentos do rio das cobras

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Licenciatura em
Artes Visuais da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para a obtenção do título de
licenciada em Artes Visuais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Bettina Rupp


Da cabeceira do rio
as águas viajantes
não desistem do percurso. Sonham

Conceição Evaristo, poemas


da recordação
Agradecimentos

A força espiralar do tempo dos,


que antecedem e dos que virão, em especial
a Maria Domingas, Cassiana e Raimunda.
SUMÁRIO

Resumo 8

Introdução 18

1. Sobre o tempo espiralar que atravessa encantamentos 22

1.1 – Movimentos 28

2. Geopoéticas e memória afro diaspórica 30

3. Diário de bordo – Entre terra e água 36

3.1 – Trânsitos geográficos e afetivos 45

4. Considerações para rotas dos sonhos 49

5. Encantamentos do rio das cobras 51

6. Referências 68

7. Apêndice – Ações Pedagógicas 69


Resumo

Tempo espiralar e encantamentos do rio das cobras é uma


pesquisa em arte que consiste na produção de múltiplas
linguagens artísticas a partir de reflexões sobre o tempo
espiralar de Leda Maria Martins, onde o tempo não segue a
linearidade ocidental. A investigação discorre sobre
processos autobiográficos, oralidade com vestígios do
lugar de origem de minha família materna, especificamente,
o território quilombola de São Manoel, localizado na
comunidade de Jambuaçu, no município do Moju, Pará.
Através da memória afro-diaspórica, provoco
deslocamentos e afetações entre as poéticas visuais, onde
a imaginação intersecciona os caminhos que foram
quebrados pelas estruturas coloniais.

Palavras-chave: território, tempo espiralar, memória, poéticas visuais.

9
Laíza ferrieira
Encantamentos do rio das cobras, 2022
Série fotográfica, 9x5 cm (cada)
11
Introdução

O intuito desta investigação surge através das fissuras


da memória afro diaspórica. Muito de minha pesquisa é sobre a
minha ancestralidade, especificamente a trajetória de
mulheres de minha família materna. Para este trabalho pensei
em explorar a imaginação de territórios desconhecidos,
partindo do gesto da oralidade e do tempo não linear.
Buscando elaborar paisagens que transitam entre as regiões
Norte e Nordeste, o objetivo deste trabalho constitui-se em
traçar rotas que se materializam em diversas linguagens
artísticas. Os fluxos hidrográficos do tempo e espaço funcionam
como uma invenção de um mapa para retornar e assumir um
corpo sem fronteiras.

Dessa maneira, procuro desenvolver uma pesquisa


bibliográfica sobre o tempo espiralar e a memória afro
diaspórica como um ponto inicial para a criação de uma
produção artística. A pesquisa para a construção desse
processo, baseou-se na escavação de rastros de
temporalidades curvilíneas, processos oníricos geo poéticos,
território e memória ancestral. Este trabalho se configura em
tessituras da intuição como estratégia para habitar o invisível,
onde água doce e salgada subvertem as fendas temporais
narradas pela historiografia oficial.

19
Na língua indígena tupi Moju significa “Rio das Cobras”
(da junção de mboîa (cobra) e ‘y (rio) localizado no Pará,
especificamente no território quilombola de São Manoel,
Jambuaçu. A minha avó materna nasceu nessas terras e
deslocou-se à capital devido a epidemia de malária que atingiu
os nossos parentes. Guardo segredos de ancestrais para
dilatar o tempo aguado. O invisível ativa coreografias do
território para não esquecer os rastros deixados pelas
antepassadas. Assim, nos escritos de Ana Gonçalves:

Lembro-me de que, na época, escrevi tudo para não

esquecer, pois não estava em condições de confiar na memória

ou no senso de observação. E ainda hoje de nada me recordo, o

que deve ser uma vingança da memória por eu não ter deixado

que ela fizesse o trabalho sozinha (GONÇALVES, 2010, p. 471)

A presença viva da bisavó materna que não conheci


floresce através da busca pelo desconhecido para germinar um
encontro interrelacional. Serpenteio entre os mangues e mares
da terra quente e úmida para atravessar abismos, e incorporar
as folhagens escuras que movimentam o impossível.

A imaginação encontra-se a partir de como seria ter


conhecido a terra de minha família materna, da oralidade de
minha avó e sobre a sua vontade de retornar ao seu lugar de
origem. Infelizmente ela “partiu” antes de retornar a Jambuaçu,

20
no Pará. A estratégia política é ativar memórias para não
esquecer as minhas raízes. A geopoética do afeto é o
combustível de ação para lembrar das mulheres negras que
não conheci.

A pesquisa será conduzida sob a perspectiva do tempo


espiralar de Leda Maria Martins, onde o pensamento tem como
base a performance ritual que se grafa no gesto, no
movimento, na coreografia e na superfície da pele (MARTINS,
2003). O gesto não se limita ao narrativo ou descritivo, mas
performativo. Com relação ao tempo espiralar, é um conceito
filosófico nagô/iorubá na cosmovisão das culturas banto.

Na perspectiva do rito, a encruzilhada é o lugar de


conhecimentos múltiplos de interseções, assim, segundo
a autora:

[...] cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo

fenomenológico no qual pulsa, na mesma contemporanei-

dade, a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma

temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e

neles também se esparge, abolindo não o tempo, mas a sua

concepção linear e consecutiva. Assim, a ideia de sucessivida

de temporal é obliterada pela reativação e atualização da ação,

similar e diversa, já realizada tanto no antes quanto no depois


do instante que a restitui, em evento (Martins, 2003, p. 79).

21
O rito performance convoca as memórias como um
dispositivo de reinvenção subjetiva, pois historicamente
carregamos o abismo em nossas narrativas. Esse movimento
do corpo torna-se um arsenal de gestos relacionados a
oralidade e às nossas complexidades.

Trago o referencial para o campo da experimentação


nas artes visuais. O presente trabalho de conclusão do curso
de licenciatura em Artes Visuais refletiu sobre esses conceitos
e incorporou nos processos de criação em arte que resultaram
na experimentação de poéticas visuais.
No capítulo “Entre terra e água” apresentei um diário de
bordo como metodologia. Os procedimentos do projeto foram
permeados por rascunhos, textos e desenhos que nortearam a
criação poética. A ação pedagógica foi conduzida a partir dos
processos artísticos de desenho expandido sob a perspectiva
de coreografias em diversos suportes, com o objetivo de ativar
as sensibilidades coletivas e individuais.

22
1. Sobre o tempo espiralar que atravessa encantamentos

Maria Domingas era o nome de minha bisavó, mulher


negra que não conheci, mas ouvia as histórias que a minha
avó me contava sobre ela, seja nas reuniões familiares ou
enquanto eu deitava na rede ao seu lado. Cada palavra que
eu ouvia atentamente me transportava para uma outra
temporalidade de forma sinestésica. Eu sentia a presença de
minha bisavó na terra e nas plantas que a minha mãe
cultivava. No olhar de minha avó eu percebia que ela sentia
falta de seu lugar de origem. Ela tentou retornar ao lado de
minha mãe, mas já não lembrava o caminho. Sinto que essa
parte da história de minha vida foi enterrada e abafada durante
muitos anos. A curiosidade em conhecer os parentes
sobreviventes da malária foi sumindo aos poucos, e após a
morte de minha avó, renasci para iniciar um processo de
pesquisa sobre ancestralidade e memória.

A presença, o gesto através da oralidade, das


brincadeiras e sonhos são parte desse tempo espiralar, como
Leda Maria Martins (2021, p.21) nos apresenta que “o tempo
é uma ontologia, uma paisagem habitada pelas infâncias do
corpo”. Esse corpo que manifesta uma força pulsante a
experimentar diversas linguagens. Nas lacunas de nossas
histórias há o movimento onde não existe um fim.

23
A ancestralidade das culturas negras nos guia para
temporalidades distintas para além do campo de conhecimento
cronológico. A lógica linear está inserida em diversos eixos
filosóficos ocidentais. Outras formas de pensar o tempo não
são estimuladas na educação formal. Raramente ouvimos falar
em filosofia africana.

Leda Maria Martins fala sobre a experimentação do tempo:

A percepção e concepção do tempo espiralar onde o tempo

pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de

reversibilidade, dilatação, contenção, não linearidade,

descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade

das instâncias presente, passado e futuro, como experiências

ontológicas e cosmológica. (MARTINS, 2021, p. 23)

Eduardo Oliveira, pesquisador no campo de filosofia


africana nos diz:

O olhar encantado re-cria o mundo. É uma matriz de

diversidade dos mundos. Ele não inventa uma ficção.

Ele constrói mundos. O encantamento é uma atitude diante do

mundo e diante da vida. O encantamento não é um objeto de

estudos como uma coisa. Ele é a condição para submeter

objetos de estudo a uma pesquisa. (OLIVEIRA, 2003, p.5)

24
O encantamento segue a premissa ritualística de cura, é
uma contranarrativa aos modos predatórios de vida
provenientes das estruturas moderno capitalistas. As nossas
tecnologias ancestrais movimentam a nossa comunidade.
Observar atentamente a natureza para aprender sobre os
nossos mecanismos de defesa e autoconhecimento vital são
práticas que advém da oralidade africana, assim como também
está presente em outras culturas, mas que não serão citadas aqui.

Nos ritmos da modernidade não conseguimos nos


conectar aos saberes antepassados. Fomos condicionados ao
individualismo e ao desconhecimento de nossa própria
narrativa. O mar me trouxe a Natal, Rio Grande do Norte, terra
indígena potiguar. As águas doces habitam com afeto em meus
caminhos. O sal purificou e engrandeceu a minha trajetória.
Nele pude deixar uma casca que já não condizia com as
minhas lutas.

Me permiti a errância de transitar o desconheci-


do para gestar os segredos que habitam as forças vitais. Na
cosmopercepção africana o todo está interligado, o mundo
natural e social se intersecciona. A ancestralidade é a ener-
gia movente. A nossa relação com a natureza ultrapassa os
limites do visível, pois o segredo caminha ao lado da
pluralidade de seres do universo. Como observa Oliveira

25
(2003, p.18) “O ‘segredo’ faz parte do universo tanto quanto o
revelado. Tudo que se manifesta ou oculta-se, segundo a
cosmovisão africana, compõe o universo”.

Em alguns sonhos ouvi a voz de minhas ancestrais,


soprando livramentos e afetos que conduziam a trilhas do
segredo. Nunca consegui seguir a cronologia da branquitude.
Sempre senti dificuldade em obter êxito em caminhos que me
atiravam a produção dilacerante e alienante. De certo modo a
força vital agiu como uma teia de aranha em meus processos.
A intersecção me ensinou sobre a memória ancestral e me
possibilitou o encontro e a reelaboração de estratégias para
sobreviver e viver. A partir da morte-vida, aconteceu a
confluência de temporalidades. Nada se estagnou, pelo
contrário, houve a abertura de caminhos sem separar o visível
do invisível, assim como na concepção iorubá.

Entre as histórias de minha avó em sua vida adulta,


lembro que ela contava que trabalhava de forma árdua no
roçado. As mãos e os pés dela eram bastante calejados. Ela
costumava mastigar tabaco como escape do trabalho pesado.
Ela dizia que morava próximo ao cemitério de Jambuaçu. Em
algumas pesquisas de dissertações sobre as comunidades
quilombolas do Moju eu descobri que a minha avó morava no
território de São Manoel, na comunidade de Jambuaçu, no
município do Moju, no Pará.

26
Quando escuto os pássaros de bico vermelho ao
amanhecer eu sinto a presença dela. Atrás do meu quintal há
uma creche com uma árvore gigante que não conheço a
sua origem, mas as formas e a diversidade de pássaros que
pousam nessa árvore, inclusive o carcará, me comovem. No
rito de passagem dela, fez uma tarde linda e ventava tanto. Na
filosofia banto todo ser é força.

A recordação da oralidade da avó materna, me


incentivou a preservar a nossa memória através da colagem,
da fotografia e dos encontros com outros indivíduos, seja
da área artística ou não, me indicou um novo caminho para
pesquisa. Pensar no tempo sem as amarras coloniais. A minha
avó era analfabeta, ela se relacionava com o tempo de uma
forma distinta. Ela sabia os horários conforme observava o céu.
Ela cumpriu com o seu propósito de preservar a memória de
seus antepassados sob a dinâmica do tempo dos griots como
nos escritos de Oliveira:

27
Os griots não trabalham com o tempo linear dos ocidentais,

tampouco consideram a noção de final da história tão repetida

entre os europeus - que disseminaram essa teoria para todo

o mundo colonizado. Os griots inserem-se dentro da dinâmica

própria do tempo africano, procurando apreender o significado

de cada acontecimento para a pessoa ou população nele

envolvido. Essa concepção de tempo é dinâmica e funciona

como uma esteira que se move, como já dissemos, da frente

para trás - no sentido inverso atribuídos pelos ocidentais.

(OLIVEIRA, 2003, p.23)

28
1.1 Movimentos

O contato com o desenho iniciou-se de forma orgânica,


pois, eu comecei desenhando na terra com pedras, galhos e
palitos, para depois ir para os papéis que a minha mãe trazia
do seu trabalho. A minha avó gostava de me observar
desenhando na terra, pois o meu corpo se movimentava, ora
de joelhos, em pé, desenhando círculos, linhas e outras formas.

A movimentação na infância esteve inserida através de


diversas poéticas, como o desenho e a dança intersecciona-
dos como vibrações corporais e grafadas, e a escrita narrando
os dias em pequenos diários. A dinâmica do movimento é um
exercício da recordação para abrir as fendas no tempo. Cada
marca no meu corpo é uma cartografia de um rastro temporal,
é um mergulho em múltiplas direções.

As marcas contam estórias aguadas, fabulam desvios


para renascer das cinzas. As topografias do imaginário fogem
das monoculturas do saber. O gesto como manifestação
geopolítica. Grafei os meus desejos, sonhos e delírios na terra
úmida de Ananindeua, lugar de nascimento e criação. Lugar
onde o medo se atrofiou para evocar as memórias
corporificadas que retornaram das lamas e rios. Rasgo as
normas fixas que subalternizam o meu corpo e o enquadram

29
em classificações espinhosas. As lágrimas de saudade borram
a tinta no caderno. É preciso reelaborar dinâmicas para criar
modos contra hegemônicos de experimentação corporal e
gráfica. Penso no tempo espiralar no todo, entranhado no corpo
que subverte a lógica cartesiana. Contra narrativas e
insurgências do corpo performático que ritualiza camadas
plurais de visualidades.

As temporalidades fluídas entram em sincronia com a


natureza, como uma dança. Habitar o sensível entre as
camadas da fauna e flora para fabular o invisível e lembrar da
oralidade materna. Sonhar com parentes transatlânticos com
as mãos carregadas de flores e plantas para fazer chá, é
vivenciar o retorno. Conhecer o pensamento de Leda Maria
Martins é como mergulhar em água doce e transparente dos
igarapés na Ilha do Marajó para depois sentir o sal do outro
lado, na praia. Para Martins:

A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza

as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os

eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em


Fonte: acervo pessoal – sem título,
memória ancestral, fotocolagem analógica, processo de uma perene transformação. Nascimento,
4x8cm 2018
maturação e morte, tornam-se, pois, contingências naturais,

necessários na dinâmica mutacional e regenerativas de todos


os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai, e

tudo volta (MARTINS, 2002, p.85)

30
2 Geopoéticas e memória afro diaspórica

Infelizmente ainda não conheci o território de Jambuaçu.


A terra de nascimento de minha família materna é terra de
re- existência, pois a comunidade de São Manoel foi a primeira
comunidade a se organizar contra as estratégias de
monocultura do dendê. Muitas famílias perderam as suas
terras, onde eram fonte de sobrevivência através da agricultura,
para as grandes empresas que chegaram na região a
partir de 1970.

Na pesquisa de John Cleber Sarmento Santiago, há


diversos diálogos de lideranças que já não habitam mais este
plano, são diálogos de memória coletiva, com ênfase na
história da irmandade de São Manoel, nome do santo
padroeiro. Durante o mês de maio são realizadas festas e
novenas para celebrar a solidariedade entre a comunidade, em
homenagem ao Divino Espírito Santo com vinte dias antes da
festa.

Segundo Santiago, em uma roda de conversa na


comunidade, um dos presidentes da irmandade, perguntou:
“Seu Raimundo por que São Manoel se tornou essa vila tão
importante?”

31
No que seu Raimundo respondeu: Várias irmandades existiram

no Jambuaçu e em outros lugares, mas muito diferente da de

São Manoel. Porque as várias irmandades que existiram eram

irmandades de família, como por exemplo até hoje o Quando

ainda preserva essa cultura, né? Lá a festa é dele, lá tudo é

dele. O santo é dele, a irmandade lá é dele. Então, não tem

como crescer ali, nem a comunidade dá certo daquele jeito.

São Manoel aqui foi diferente. Foi uma irmandade aberta, onde
qualquer pessoa poderia vir e se associar, tanto é que desde

a cabeceira do rio Jambuaçu tinha sócio aqui. Teve um tempo

que a maioria das casas aqui eram de pessoas de fora que

construíam e vinham só no tempo da festividade aí.

(SANTIAGO, 2018, p.43)

32
A memória coletiva ecoa em nossas vidas como rastros
do tempo que entrelaçam a pluralidade de conhecimentos dos
mais velhos. A firmeza do apoio mútuo entre os habitantes do
povoado de São Manoel nos transporta para fabulações que
fortalecem os nossos caminhos. É um mergulho no
encontro dos saberes ancestrais. São diálogos que nos
aproximam de nossas histórias. Os habitantes do território de
Jambuaçu viviam do cultivo do açaí, do cupuaçu, buriti, entre
tantas riquezas que foram roubadas pelas estratégias do
extrativismo violento do agronegócio. A invasão e exploração
de terras destruiu os modos de existência e força motriz dos
povoados. Atualmente a memória das lutas dos meus
ancestrais permanece viva para os processos de formação de
resistência negra amazônida. Como observa, Santiago no
canto das comunidades eclesiais, há um especificamente
marcante:

Venham todos cantemos um canto que nasce da terra, canto

novo de paz e esperança em tempos de guerra. Neste instante

há inocentes tombando nas mãos de tiranos: tomar a terra, ter

lucro, matando, são estes seus planos. Lavradores,

Raimundo, José, Margarida, Nativo. Assumir sua luta, seu 48

sonho por nós é preciso. Haveremos de honrar todo aquele

que caiu lutando, contra os muros e cercas da morte, jamais

recuando. (Zé Vicente)

33
A minha família é pequena, assim, como não conheci
os parentes de origem materna, conheci somente duas primas
de origem paterna. Uma parte de minha família paterna possui
origens brancas e indígenas. Não tive uma relação boa com
meu pai, ele era ausente e morreu sem me conhecer
genuinamente. Tenho conexão com a minha avó materna por
ela ter me criado, enquanto a minha mãe trabalhava. Essas
conexões me levaram a especular o tempo, a pensar nas
possibilidades do passado de como seria ouvir as histórias de
minha bisavó e tataravó. O meu verdadeiro sobrenome seria
Lalô Cuimar, essa seria a pronúncia, segundo a minha avó,
Cassiana. Houve uma mudança em nosso sobrenome,
conforme a vontade de minha mãe, por motivos de
desconhecimento e desinteresse de suas próprias origens.

Fonte: acervo pessoal - Cassiana, minha avó materna,


memória ancestral, fotocolagem analógica,
4x8cm 2018.

34
A série de fotocolagens, Memória ancestral, nasceu a
partir da investigação de minhas origens. A lacuna entre as
histórias, as impossibilidades de conhecer os familiares mater
nos, e a morte de minha avó, me guiaram nesse processo. As
fotografias são de acervo pessoal. Nos rostos da minha mãe,
Raimunda e avó, Cassiana, eu inseri elementos naturais, como
folhas e plantas que colhi no jardim da casa de minha mãe,
quando estive em Ananindeua, no Pará. Ativei a memória de
minhas ancestrais como um processo de cura e reinvenção
subjetiva. Conjurei a lembrança e o segredo como armas
de proteção. É uma evocação da imaginação como rota de
fuga e recriação de um mundo. Através de minhas ruínas
pude trabalhar com a construção de uma memória coletiva.

Redireciono a força motriz que me foi sequestrada para


mergulhar em igarapé denso, e, então sentir a textura enrugada
da pele morta transfigurada em energia vital. Atravesso
cartografias em ondulações de serpentes para acionar
fabulações escuras. A praga do apagamento foi compartilhada
durante séculos. A máquina colonial enterrou o sonho de meus
antepassados. Em becos da memória, Conceição Evaristo
(2013) nos diz que “As pessoas morrem, mas não morrem,
Fonte: Acervo Pessoal - Raimunda, continuam nas outras”.
Memória ancestral, fotocolagem analógica,
9,7×11,3 cm, 2018.

35
Subverter a lógica de incompletudes narradas pela
historiografia oficial é uma estratégia de criação. Trago o
imaginário amazônico entranhado nesse projeto de conclusão
de curso. As raízes de Ananindeua e Jambuaçu se deslocam
para o território potiguar em imersão na criação a partir de
temporalidades curvilíneas. Como diz o escritor paraense
Vicente Cecim (1983) E é preciso insistir: Nossa História só
terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso
favor. (CECIM,1983, p.10) No manifesto Curau/ Parte II, de
Cecim, ele enfatiza a importância da força do imaginário
amazônico contra a exploração colonialista. Nesse sentido, o
que norteia a investigação desse projeto é o aprofundamento
das epistemes de nossos povos.

Fonte: Acervo pessoal – Sem título,


memória ancestral, fitotipia,
11x16,5 cm, 2020

36
3 DIÁRIO DE BORDO, ENTRE TERRA E ÁGUA

Dentro de minha prática artística, pude perceber que
havia a necessidade de aprofundar a investigação de outras
linguagens e materialidades que pudessem dialogar com
aspectos teóricos e poéticos de minha pesquisa. Desde então,
tenho experimentado métodos alternativos de impressão
fotográfica, pintura em aquarela com pigmentos naturais e
processos artesanais que envolvem a impressão de plantas e
vegetais em tecidos.

Este projeto investiga caminhos que transitam entre as


temporalidades distintas de paisagens internas com mapas
inventados. O desenvolvimento do meu processo de criação
nasce a partir de rascunhos, textos, desenhos e
experimentações. O procedimento do caos se torna um aliado,
pois eu anoto alguns fragmentos textuais em papéis
espalhados em caixas e bolsas que resultaram na estruturação
de anotações no diário de bordo.

37
O diário de bordo funciona como metodologia para
ampliar os encantamentos que se conectam com o tempo não
linear dos lugares que imaginei entre o rio das cobras e o mar.
Quais materialidades que o tempo espiralar insere em nossos
corpos, no sentido filosófico e bioquímico? Questão norteadora
para produção artística. Segundo Castiel Vitorino Brasileiro:

Encantar é manipular e se deixar manipular, moldada pela

íntima e indissolúvel conexão entre as qualidades e formas

vitais que coexistem em cada ecossistema e no planeta como

um todo. (BRASILEIRO, 2021.p.53)

As aguadas surgiram através das lembranças dos


banhos de igarapés, das praias de água doce, da água salobra.
O deslocamento poético dessas águas em ressonância com as
águas do Rio Grande do Norte me provocou um encantamento.
O som da memória de minha avó materna me acompanhou
durante o meu processo artístico. Intensifiquei os estudos com
a pintura em aquarela no Atelier de Artes do NAC (UFRN).
Entre hiatos na produção, retorno com essa prática em diálogo
com as reminiscências temporais.

Na prática fotográfica pensei na influência da água no


aspecto de formação dos sedimentos e pedras. Nessa
experiência escolhi trabalhar com uma câmera polaroid de
fotografias instantâneas. Pensei na logística de revelação

38
acessível e nas possibilidades do ruído na fotografia. O “ruído”
é um aspecto presente em minha trajetória com a colagem.
Resolvi trazer essa experiência estética como um
desestabilizador da ordem colonial.

Analisando as produções, percebi que precisava


produzir mais trabalhos com as materialidades do Norte.
Consegui as folhas secas de pariri e as raízes de patchouli,
plantas comumente encontradas na região amazônica, com a
minha irmã, então pensei na relação desses elementos com o
tempo espiralar. Plantar e colher pariri é ancestral e o cheiro do
patchouli esteve presente nas roupas de meus ancestrais.

O método experimental seguido de um olhar crítico e


reflexivo tornaram-se recorrentes em minha prática artística. As
reflexões em residências artísticas, a partilha em oficinas, com
professores, colegas e o diálogo com as pessoas mais velhas
de minha vivência tem sido essencial para a construção em
rede durante o percurso acadêmico. Não me movo sozinha, e
acredito em cada troca como um fio condutor para a
investigação e produção em artes visuais.

O diálogo com o tempo ocorre a partir de uma variação


climática que envolve a temperatura do sol através da
oscilação, do ar e da água. Na primeira etapa escolhi trabalhar
com antotipia, que é um processo alternativo de impressão

39
artesanal fotográfica onde utilizei o pigmento fotossensível do
pariri para imprimir o patchouli. As impressões são realizadas
a partir da luz solar UV. Os dias estavam quentes, então obtive
resultado em dois dias de exposição solar.

Na segunda etapa produzi duas esculturas utilizando


materiais orgânicos, como: cal, argila, areia, pedras, concha,
sal grosso, pigmento de pariri e patchouli. As peças ficaram
prontas em um dia de exposição solar. As colagens foram
pensadas na relação com a água e no tempo de espera da
reação química entre os pigmentos. Os papéis foram molhados
diversas vezes e com diversos pigmentos como canela, casca
de aroeira, sal grosso e pariri.

As colagens foram pensadas na relação líquida e no


tempo de espera das reações químicas entre as
materialidades. Em meus percursos artísticos a procura pela
imagem acontecia nas ruas, nos álbuns de família, sebos e
banco de arquivos. Neste trabalho, retomo com a colagem
investigando as materialidades que estão inscritas em meu
corpo. Explorar os encantos do pariri de múltiplas formas
transformou-se em um dispositivo de tecnologia ancestral. A
sinestesia dessas ervas funcionou como uma metamorfose
impressa em minha corporalidade. As cascas de aroeira me
auxiliaram em vivências de cura, então incorporei neste
processo com o patchouli.

40
41
43
44
45
3.1 Trânsitos geográficos e afetivos

Antes de experimentar outras linguagens, como a arte
na terra e as pinturas em aquarelas para este projeto de TCC,
eu desenvolvi a série “trânsitos geográficos e afetivos” onde
pude inserir a cartografia do território de São Manoel com o
pigmento de pariri e sal grosso na fotografia. Desenvolvi essa
pesquisa na residência M.A.P.A, pelo Margem hub, de Natal.
Fiz algumas colagens com as fotografias que tirei na praia dos
artistas. Essa série desaguou no projeto de TCC, pois, foi uma
experimentação inicial. As fotografias foram feitas no litoral
norte, praia do meio e dos artistas, Natal, Rio Grande Do Norte.

Os abismos da memória foram soterrados pelos traumas


coloniais em camadas profundas de exploração. Escavo a
imaginação em encontro de um futuro ancestral que
redescobre os vestígios para demarcar o desdobramento do
Fonte: Base Vetorial do IBGE (2016)
tempo. Enxergo no escuro as mãos de minha avó fervendo a
roupa no patchouli, enquanto a minha bisavó fecunda o
solo do quilombo de São Manoel com as raízes do pariri.

46
sem título, trânsitos geográficos e afetivos,
8x8cm, 2021

47
sem título, trânsitos geográficos e afetivos,
10x5cm 2021

48
sem título, trânsitos geográficos e afetivos,
8x7cm, 2021

49
4. Considerações para rotas de sonhos

Através deste trabalho pude notar as minhas grafias


corporais nas repetições de possibilidades subjetivas de
atravessar temporalidades curvilíneas entre os territórios das
regiões Norte e Nordeste. A proposição de pensar o tempo
espiralar como um fio transitório para o encantamento e a
pesquisa em artes visuais, constituiu um circuito onde a
presença da memória criou pontos de encontros entre o corpo
e o espaço.

A minha corporalidade é encruzilhada pelas águas do rio


das cobras, onde o ritual acontece pela vibração entre a
lembrança e o esquecimento da sonoridade e oralidade. As
cosmovisões são reveladas através das aguadas com sal
grosso e das sensações que foram recriadas através da
performance do manuseio da terra com pigmento de pariri e as
ervas secas do patchouli.

Conceitualmente, neste sentido “Performar significa


inscrever, grafar, repetir transcriando, revisando, o que
representa” (MARTINS, 2003, p. 82).

50
A experiência de inscrever a minha ancestralidade em
múltiplas linguagens artísticas a partir da água como um fluxo
do tempo e espaço, tornou-se uma experimentação simbólica
de ativação de uma temporalidade espiralada que nos
possibilita refletir sobre a criação de caminhos corpográficos
para reafirmar as nossas complexidades em torno dos saberes
afro diaspóricos amazônidas.

O caminho para a criação foi norteado pelo questiona-


mento: Quais materialidades que o tempo espiralar insere em
nossos corpos, no sentido filosófico e bioquímico? Considero
este trabalho como um início que se desdobra em outros
tempos. Explorar as materialidades de minhas raízes insere os
sonhos escuros de territórios desconhecidos para criar
conexões entre os meus deslocamentos.

51
5. Encantamentos do rio das cobras

Sem título, aquarela sobre papel,


20x20,5cm, 2022

52
Sem título, aquarela e sal sobre papel,
20x30cm, 2022

53
Sem título, aquarela sobre papel,
20x30cm, 2022

54
Sem título, aquarela sobre papel,
20x30cm, 2022

55
Sem título, aquarela sobre papel,
20x30cm, 2022

56
Sem título, aquarela sobre papel, Sem título, aquarela e sal sobre papel,
20x30cm, 2022 20x20,5cm, 2022

57
Sem título, aquarela sobre papel,
20x9cm, 2022

58
Sem título, aquarela sobre papel,
20x30cm, 2022

59
Sem título, aquarela e sal sobre papel,
20x20,5cm, 2022

60
Sem título, aquarela sobre papel,
20x30cm, 2022

61
Sem título, Antotipia com pigmento
de pariri e impressão de patchouli,
12,5x17cm,2022
Sem título, Antotipia com pigmento
de pariri e impressão de patchouli,
13,4 x18,5cm,2022
Sem título, colagem sobre papel com
casca de aroeira, patchouli e pariri,
15x10,8cm,2022

64
Sem título, colagem sobre papel com
casca de aroeira, patchouli e pariri,
13,5x12cm,2022

65
Sem título, colagem sobre papel com
casca de aroeira, patchouli e pariri,
14x11cm,2022

66
Para fluir entre as pedras, escultura com pedras,
areia, cal, argila, sal grosso, patchouli, concha e pariri,
12x16x5x1,5 cm, 2022.

67
para fluir entre as pedras II, escultura com pedras,
areia, cal, argila, sal grosso, patchouli e pariri,
13x9,7x5,7 cm, 2022 68
6. REFERÊNCIAS

BRASILEIRO, Vitorino Castiel.: “Tornar-se imensurável: O mito brasileiro e as estéticas


macumbeiras na clínica da Efemeridade”.132f. Dissertação de mestrado. PUC. São Paulo. 2021

CECIM, Vicente. Manifestos curau. Belém, Pará. 1983

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro, 2010.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o reinado do rosário do jatobá. São Paulo:
Perspectiva, 1997.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo e da memória: os congados. O


Percevejo – Revista de Teatro, Critica e Estética, Rio de Janeiro, ano 11, n. 12, p. 68-83, 2003.

MARTINS, Leda Maria: Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de


janeiro: Editora Cobogó, 2021.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo e da memória: os congados. O


Percevejo - Revista de Teatro, Crítica e Estética, Rio de Janeiro, ano 11, n. 12, p. 68-83, 2003.

OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia


afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.

SANTIAGO, John. Comunidades quilombolas de Jambuaçu, Moju, Pará, contra as


agroestratégias do capital: Juventude e territórios de R-existências. Dissertação de mestrado.
130f.Universidade de Brasília. 2018

69
Apêndice 7. Ações Pedagógicas

Houveram dificuldades para encontrar um espaço não


formal de ensino para trabalhar com as questões do meu
projeto de conclusão de curso. No início pretendia trabalhar
com pessoas idosas, mas devido as imprevisibilidades da vida
e processos burocráticos para trabalhar em unidades de
acolhimento, eu precisei mudar o caminho. Buscando por
várias ONGs, encontrei o Projeto AMAR, localizado na Vila de
Ponta Negra. É uma ONG que trabalha com 50 crianças em
vulnerabilidade social. Trabalhei com crianças entre 3 a 12
anos. Algumas crianças não passaram pelo processo de
alfabetização. Segundo Bell Hooks:

Ensinar é um ato teatral. E é esse aspecto do nosso trabalho

que proporciona espaço para as mudanças, a invenção, e as

alterações espontâneas que podem atuar como

catalisadoras para evidenciar os aspectos únicos de cada

turma. Para abraçar o aspecto teatral de ensino, temos de

interagir com a plateia, de pensar na questão da reciprocidade.

Os professores não são atores no sentido tradicional do termo,

pois nosso trabalho não é um espetáculo. Por outro lado, esse

trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os

presentes a se engajar cada vez mais, a se tornar partes ativas

no aprendizado. (HOOKS, 2013, p.21 e 22.)

70
Diversifiquei os meus processos educativos, e o diálogo
com os alunos é um dos norteadores. Trabalhar com crianças
pequenas têm sido um desafio e um aprendizado que
potencializa a forma de nos comunicarmos. O contexto social
e emocional das crianças me mostrou que a maioria precisava
de escuta e uma dinâmica de interação. O projeto corpografias:
laboratório de desenho expandido, está relacionado com as
minhas investigações em torno do tempo, espaço e com a
produção artística que desenvolvi para este trabalho de
conclusão de curso. Foram introduzidos os conceitos básicos
dos elementos visuais, do desenho. Através da prática em
diversos suportes, como a mesa, o papel e a terra. As aulas
aconteceram durante uma semana com dois turnos, durante
manhã e tarde.

Durante a primeira aula, precisei acrescentar uma


brincadeira de desenho coletivo, pois ainda estava conhecendo
os alunos. Notei uma interação genuína entre as crianças, e
obtive êxito nessa experimentação. As crianças desenharam
com carvão vegetal e em diversos tempos. Em outro momento,
propus uma atividade de abstração do desenho com a própria
criação do liga-pontos, sem numeração. Acrescentei os
materiais do cotidiano em minhas aulas para estimular a
autonomia dos alunos, no intuito de promover o senso crítico,
reflexivo e sensível às materialidades e sensações no espaço.

71
Na segunda aula, introduzi os tipos de texturas através
de objetos. Os alunos estavam se sentindo à vontade para
responder as questões, e através do toque identificaram os
tipos de texturas. Desenhamos em pontilhismo e hachuras.
Na aula seguinte, apresentei o conceito de land art e revisei a
questão das texturas naturais e desenho expandido.
Apreciamos exemplos de trabalhos acessíveis, em que eles
pudessem se imaginar fazendo. Na parte externa do prédio, há
um jardim imenso e com inúmeras possibilidades, como
árvores, plantas, pedras, gravetos.
Dividi a turma em dupla, o que funcionou muito bem na
questão de organização. Somente um aluno optou por
realizar individualmente. Os alunos ficaram entusiasmados com
a atividade, e houve atenção e dedicação para a produção dos
trabalhos. O planejamento seguiu com a abordagem da
metodologia ativa, onde os alunos são estimulados pela
autonomia na construção coletiva e individual de
aprendizado. Inicialmente, as aulas seguiram o fluxo de
perguntas aos alunos, relacionados aos materiais do cotidiano
e o conteúdo ministrado, com o objetivo de despertar a
curiosidade.

72
Apresentei trabalhos e vídeos de artistas contemporâ
neos e conversamos sobre os materiais utilizados no dese-
nho a partir dos movimentos corporais e contextualizei sobre
os aspectos expandidos do desenho, revisando as atividades
anteriores. Infelizmente não consegui material suficiente para
juntar os papéis para obter um tamanho maior, e outra
problemática seria o número de cadeiras e mesas no espaço
que não podia retirá-las para realizar a atividade. Então, optei
por dividir a turma e iniciar com a metade de alunos. Utilizei a
folha de tamanho (50x66cm) para esta atividade.

Fonte: Bryan Tarnowski e Spencer Hansen

73
Considerações Transitórias

Vivenciar a experiência educativa em um espaço não


formal de ensino é uma oportunidade para reflexão e
construção de uma trajetória dialógica, onde é possível
desenvolver caminhos de aprendizado individual e coletivo,
através de dinâmicas sensíveis e autônomas. Partir de
metodologias não hierárquicas, é apresentar novas
possibilidades de comunicação e ensino. Acolher a pluralidade
de vozes e corporalidades é um encontro que acontece em
minha formação, que vai se lapidando ao decorrer do tempo.
Estabelecer o diálogo no ambiente educativo foi uma
estratégia que funcionou muito bem para me auxiliar em
momentos caóticos. Os alunos foram colaborativos durante o
processo, e em muitos casos auxiliavam outros colegas. Há
cooperatividade entre as crianças, e elas foram estimuladas no
âmbito do projeto AMAR. Sou grata a este aprendizado.
Concluo com as impressões das crianças que ficaram felizes
com as aulas de desenho, e me questionaram quando eu
retornaria para ministrar mais aulas. Recebi todo afeto das
crianças através de palavras, cartas e desenhos.

74
Concluo que obtive êxito durante o projeto educativo,
pois o processo da experiência na educação aconteceu de
forma fluida. Pude notar as potencialidades poéticas de cada
aluno durante a produção artística individual e coletiva. Ao final
me senti instigada para pesquisar mais e aplicar esses
conhecimentos em aula. Fiquei satisfeita com o resultado das
aulas. É importante promovermos esses encontros para
desprogramar as ideias fixas de educação.

75
76
79
83
Ação Pedagógica | Projeto de ensino

Tema: Desenho, corpo e espaço – Título: Corpografias: Laboratório de desenho expandido

Contexto: Não formal de ensino – ONG Projeto AMAR

Público Alvo: Crianças entre 6 a 12 anos

Carga Horária total: 32 H (8 horas de planejamento)

Período/nº de aulas previsto para o projeto: 4 Aulas de 4 horas de duração | Turno Manhã e Tarde

Objetivo(s) ou Competências e Habilidades de acordo com a BNCC:

Explorar, conhecer, fruir e analisar criticamente práticas e produções artísticas e culturais do seu
entorno social, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais brasileiras e de diversas
sociedades, em distintos tempos e espaços, para reconhecer a arte como um fenômeno cultural,
histórico, social e sensível a diferentes contextos e dialogar com as diversidades

Experienciar a ludicidade, a percepção, a expressividade e a imaginação, ressignificando espaços


da escola e de fora dela no âmbito da Arte.

Desenvolver a autonomia, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas artes.

Ativar processos gráficos de criação através do diálogo com o outro

92
Resumo: O laboratório desenho expandido, discorre sobre os
processos corporais, tais como a coreografia do corpo
enquanto se desenha, e como interage com o outro corpo. A
potência gestual do corpo quando entra em movimento segue
o seu próprio tempo através do encontro poético coletivo. As
dinâmicas do desenho se entrelaçam com a coreografia que
se expande para o pensamento e desenvolvimento de projetos
autorais e em conjunto. O laboratório é pensado em
corporalidades múltiplas a partir de uma perspectiva não
hierárquica de ensino, onde as subjetividades serão
compartilhadas e dialogadas.

93
Justificativa: O corpo e o espaço são atravessados por
dinâmicas sociais e políticas que interferem em nossos modos
de existência, através de vetores sensoriais e afetivos. “É
através do corpo que a percepção do mundo acontece, sendo
ele o “vetor semântico pelo qual a evidência da relação com
o mundo é construída.” (BRETON, 2007). As relações diárias
que obtemos com o outro, e com o espaço são vetores de
criação e afetação que nos trazem amplas reflexões sobre as
formas de interação. A partir da experimentação da
espacialidade é possível construir intervenções através do
desenho como potência de criação. As micropolíticas e
resistências são atravessadas por cada singularidade de um
determinado lugar. O corpo vivido no cotidiano é um dispositivo
para a experimentação com o desenho.

As vivências cotidianas podem nos apresentar os


desvios, linhas e formas gráficas e poéticas, assim, como as
experiências sensoriais e afetivas que estabelecemos com
outros indivíduos. O ritmo corporal no espaço é um dos fios
condutores para realizar o projeto de desenho expandido. Os
ritmos acelerados são consequências da modernidade, do
capitalismo neoliberal.

94
“O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O

triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o

deslumbramento da instantaneidade na transmissão e

recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança

de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a ideia

de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua

utilização constitua uma espécie de tentação permanente.

Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz

a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa

como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como

se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da

produção da história”. (SANTOS, 2001).

95
Diante disso, é importante refletir sobre as tempora-
lidades de cada corpo e gesto enquanto se desenha coleti-
vamente. Aprendendo sobre o tempo desse corpo para levar
em consideração as nuances da espacialidade e relações
imbricadas em torno dele. As questões sobre o tempo rápido
e lento, tornam-se uma contra narrativa aos fluxos de grandes
cidades. Trago fragmentos da investigação de Milton Santos
para as questões espaciais e relacionais. Sobre as questões de
temporalidades distintas, especificamente o tempo espiralar,
levantarei processos de escuta e oralidade, no sentido de
construir auto ficções que ecoam coletivamente. A memória
grafada através do desenho gestual com o intuito de encruzilhar
o tempo e romper a cronologia linear. “A primazia do movi-
mento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma
temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de
uma cronologia linear, estão em processo de uma perene
transformação. (...) Vivenciar o tempo significa habitar uma
temporalidade curvilínea, concebida como um rolo de
pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola,
simultaneamente, as instâncias temporais que constituem o
sujeito”. (MARTINS, 2001).

Entrecruzar as temporalidades, onde presente, passado


e futuro rompem com os domínios coloniais e cartesianos, para
nos apresentar um olhar para além do pré-estabelecido pelo
ocidente.

96
Objetivos Gerais:

Experimentar poéticas das formas, linhas e desvios do desenho

Criar rotas sensoriais e de imaginação coletiva através da percepção do espaço

Conteúdos

1) Produção/Fazer arte/Conteúdos Procedimentais/Criação/Expressão: Dese-nho individual e


coletivo a partir do gesto corporal.

2) Apreciação/Fruição/Conteúdos Atitudinais/Fruição/Estesia: Observar e anali-sar obras de


artistas contemporâneos

3) Contextualização/Reflexão/Conteúdos Conceituais/Crítica/Reflexão: Refletir sobre a memó


ria e espaço

4) Recursos: Giz de cera, carvão vegetal, linha em barbante, papel, palitos e al-gumas tintas.

97
Planejamento | Turno Manhã

1ª Aula: A coreografia do ponto e linha – Diálogos e exercícios de elementos básicos da


linguagem visual.

Fazer/Produção/Conteúdos Procedimentais/Criação/Expressão

Recursos: giz de cera, papel, barbante e carvão vegetal

2ª Aula: O ritmo das texturas

Fazer/Produção/Conteúdos Procedimentais/Criação/Expressão

Apresentar materiais do cotidiano com diversos tipos de texturas

Recursos: Palitos, tinta, esponja, folhas, giz de cera e papel

3ª aula: Desenho em paisagem

Fazer/Produção/Conteúdos Procedimentais/Criação/Expressão

Observar o espaço e analisar a forma como nos relacionamos com ele. Contextualizar as
questões sobre o espaço e outras formas de desenhar para além do papel.

Recursos: materiais orgânicos

4ª aula: Memória do espaço

Contextualizar/Contextualização/Conteúdos Conceituais/Crítica/ReflexãoDesenhar

Recursos: Lápis, giz de cera e papel A4.

98
Planejamento | Turno Tarde
1ª Aula: Corpo, gesto e movimento – Ponto e linha

Ler/Apreciação/Conteúdos Atitudinais/Fruição/Estesia

Desenho de interferência e diálogos em roda. Apreciação e fruição de obras de artistas


contemporâneos.

Recursos: Giz de cera, barbantes, lápis, papel e pequenas caixas.

2ª Aula: Espaço e tempo – Textura

Fazer/Produção/Conteúdos Procedimentais/Criação/Expressão

Atividade de desenho sensorial com diversos objetos.

Recursos: Conchas, pedras, lixa, algodão, folhas.

3ª Aula: Movimentos e Formas

Desenvolvimento de desenho coletivo e individual em grande formato

Fazer/Produção/Conteúdos Procedimentais/Criação/Expressão

Recursos: Papel A1, giz de cera e carvão vegetal

4ª Aula: Escuta e Imaginação do lado de fora

Desenho coletivo com materiais orgânicos.

Contextualizar/Contextualização/Conteúdos Conceituais/Crítica/Reflexão

Recursos: Materiais orgânicos.

99
Referências

BRETON, David Le. A Sociologia do Corpo. 2º edição, Petrópolis, Editora Vozes: Rio de Janeiro,
2007.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo Martins
Fontes, 2013.

MARTINS, Leda Maria. A oralitura da memória. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares. Brasil
afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

SANTOS, Milton. Elogio da lentidão. São Paulo: Folha de São Paulo, 11 de março de 2001.

100

Você também pode gostar