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Paulo Vidal
Cheio de esperanças quanto à revolução russa de 1917, um interlocutor de Freud certa vez
tentou convencê-lo do futuro radiante que aguardava a experiência soviética com o argumento de
que, aos anos iniciais de sacrifício e labuta ímpares, logo se sucederia uma nova era de paz e
harmonia. Freud retrucou que acabara de ser convertido pela metade ao comunismo, pois
considera ilusóriosos os pressupostos do comunismo: o homem nasce bom e é benévolo por relação
ao próximo, mas a propriedade privada corrompe a sua natureza, de tal forma que, com a abolição
Já Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921) foi considerado por muitos uma
antevisão crítica dos mecanismos libidinais e identificatórios que o movimento de massas fascista
verticalmente, de tal modo que impera a submissão hierárquica e são abolidas as diferenças
Uma vez que o laço horizontal entre os membros da massa decorre da ligação vertical de
cada um deles com o líder, por mais que se converse na multidão, ninguém fala com alguém, um
não fala com o outro. Todos ecoam no fundo a mesma alienação: cada um sabe quem é, é aquele
que fala como o outro. Pois se acha fora da massa o verdadeiro interlocutor, o líder, portador de um
traço de exceção que o põe à parte. Ponto de agregação da massa, o olhar do chefe, reencarnação
superegóica do olhar do pai da horda primeva, reduz portanto o laço social a uma modalidade de
O amor ao chefe seria portanto duplamente necessário para a formação da massa segundo
Freud (1921): primeiramente, ligando o narcisismo, encadeando os indivíduos uns aos outros; e, em
segundo lugar, ligando a agressividade de uns e outros, a qual canalizaria para fora, para o inimigo
externo por exemplo. Verdade que a experiência do pânico demonstraria: no exército, soldados que
general, cada um passando a se preocupar “apenas consigo próprio, sem qualquer consideração
pelos outros” (Freud, 1921, p. 123), os laços mútuos cedendo lugar a um pavor insensato e
incontrolável.
cortado, que se revela para Freud a essência da socialidade como ligação libidinal de elementos em
decompõe em narcisos estranhos e hostis uns aos outros, pois a apresentação do mesmo frente ao
idolatria – somos iguais e pacíficos porque nos reconhecemos fascinados pelo mesmo ídolo - em
relação de animosidade. Como nota Freud, os fãs se identificam entre si graças ao amor que
compartilham por um líder inatingível e que assim deve permanecer: caso um dos inúmeros fãs de
Elvis Presley repentinamente proclamasse que ele deve ser o objeto de culto, pois na verdade é
uma reencarnação até então oculta do ídolo, provavelmente desencadearia uma guerra entre
Para formar uma massa, basta portanto que dois se identifiquem com um terceiro, de quebra
um quarto será excluído. Sem nos parecer que exagere, Freud (1929) repete que o homem é o lobo
do homem, que a comunidade tem como fundo sem fundo esse mal que nunca deixará de ser mal-
dito: o segredo do narcisismo é o gozo, o qual não leva em conta necessariamente o outro. Seria
possível entretanto uma política que excedesse o político no sentido freudiano, o qual procede por
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identificação dos sujeitos, por definição carentes de identidade, à propriedade que os insere num
conjunto? Como vimos, para formar uma massa basta que dois se identifiquem com um terceiro, o
resultado será um quarto excluído. Uma política que se diferencie tanto do coletivismo – que cada
por si e que deus se encarregue do conjunto? Questão incontornável numa época em que a política
se reduz à administração sem expectativas dos horrores causados pela segregação social: de um
Dito de maneira positiva, seria possível uma singularidade coletiva, na qual cada um em seu
nome próprio e responsabilidade chegue a uma conclusão em comum com os outros, mas sem se
Psicanalítica Internacional, cujo modelo segue ainda a psicologia de massas artificiais como o
exército ou a igreja, nos parece que Lacan desde cedo se colocou a questão que enunciamos - de
Psicanalítica Internacional, não denunciou Lacan (1979, p.9) o que esta tinha de igreja?
extermínio de seis milhões de judeus nos campos da morte, numa Europa devastada, a ser
reconstruída e novamente pensada sob todos os aspectos, neste preciso contexto Lacan redigiu dois
artigos sobre pequenos grupos nos quais, ao contrário das formações de massa, as relações
horizontais entre os membros predominam sobre as relações verticais. Intitulados O tempo Lógico
e A Asserção de Certeza Antecipada (Lacan, 1998) e A Psiquiatria Inglesa e A Guerra (Lacan, 2003)
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esboçam os rudimentos de uma lógica coletiva, a qual explora o laço horizontal entre os membros,
individual”(1998, p. 213). Afastando a oposição binária entre social e individual pela introdução de
não é senão o sujeito do individual” de forma alguma preconiza que o coletivo deva ser tomado
como um todo unitário, caso no qual apenas se transfere para uma hipóstase mítica (a nação, o
proposição avança antes que, numa dinâmica coletiva de indivíduos, o sujeito advém como
resultado pontual e fugaz dessa dinâmica, ou seja, é uma lógica que, diversamente da lógica
massa, mas a surpresa do Witz, do chiste freudiano, que implica três pessoas.
guerra...demonstrou suficientemente que não é de uma grande indocilidade dos indivíduos que virão
os perigos quanto ao futuro humano. É claro doravante que as potências sombrias do supereu
entram em coalizão com os abandonos mais covardes da consciência para conduzir os homens a
uma morte aceita pelas causas menos humanas e que tudo que aparece como sacrifício nem por isso
Fruto de uma viagem de Lacan à Inglaterra ainda em 1945, na qual pesquisou o papel
Rickman, na montagem de uma máquina de guerra que foi capaz de derrotar um exército de
tradição prussiana, A Psiquiatria Inglesa e A Guerra tem como pano de fundo uma interrogação
quanto à efetividade social da psicanálise, quanto à sua ação por referência às potências da pulsão
Quanto à experiência desses dois psiquiatras e psicanalistas ingleses, ocorre numa unidade
conseguiam se submeter: são restos portanto dos ideais do exército. Em vez de tentar reinscrever
tais pacientes na formação de massa militar batendo na tecla do dever a ser cumprido, acentuando a
centrados numa tarefa, num objetivo simbólico. Objetivo comum, a tarefa identifica os membros do
grupo entre si horizontalmente, ao mesmo tempo que os divide, pois cada um a executa à sua
maneira, lutando contra as próprias dificuldades. Ou seja, no pequeno grupo, o inimigo comum é
antes de tudo um inimigo interno, que divide cada sujeito, que o leva a se perguntar quanto ao
À pressão do grupo para que confirmasse a suposição de que poderia magicamente resolver
os impasses que surgiam, Bion respondia pondo em jogo o que denominou “suspensão da
liderança”. Nas palavras do autor, “o grupo sempre torna claro que espera que eu atue com
autoridade enqunto líder do grupo e eu aceito essa responsabilidade, mas não da maneira que o
gripo espera (Bion, 1975, p. 73). A sua atividade consistia em interpretar esse fenômeno à medida
que emergia no grupo, retornando a cada um de seus membros a responsabilidade de lidar com o
A função de liderança no grupo não deve portanto ser deixada vazia, deve ser preenchida por
alguém, só que justamente para impedir a identificação da pessoa com a função. Verdadeira
desconcretização da chefia tradicional, essa “suspensão da liderança” será retomada por Lacan
como função do mais um no cartel, pequeno grupo de trabalho capaz de funcionar como orgão de
base de uma escola de psicanálise que não se confunda com uma formação de massa. Pois a função
do mais um não é atuar como professor, dar respostas, mas responsabilizar cada um pela
Tal como exemplificado por Lacan com o sofisma dos três prisioneiros em O Tempo Lógico,
a dinâmica desses pequenos grupos é marcada por uma dinâmica temporal, pelo valor significante
do tempo, o qual toma a forma no sofisma lacaniano de duas escansões suspensivas do ato durante
as quais o tempo se decompõe em três instâncias não homogêneas: o instante de ver, o tempo para
desenhada por essa lógica coletiva não possui medida comum, não devorou ou tem a devorar uma
substância comum.
formações de massa, aparecendo para logo desaparecer. Como Bion e Lacan notaram, a existência
funcionamento simbólico do grupo de trabalho. Sublinhamos isto porque não se trata de forjar uma
nova utopia, projetar uma sociedade ideal, mas de animar com um desejo, desejo de analista, os
analítico.
Por último, em O tempo Lógico Lacan faz alusão à peça de Sartre A portas Fechadas, na
qual os três personagens, condenados a compartilhar o inferno por toda a eternidade, incapazes de
perceber as próprias falhas, se esmeram em apontar as falhas uns dos outros, acabando por concluir
que “o inferno são os outros”. Para Sartre, o insuportável são os outros, ao que Lévi-Strauss
retrucou: “o inferno é cada um”. À concepção existencialista do sujeito, o apólogo lógico dos três
prisioneiros responde por sua vez que o sujeito pode concluir quanto ao que é. Ele atinge sozinho o
verdadeiro, mas não o faz sem os outros, numa operação que deixa resto. É o esboço de uma lógica
coletiva que não desconheça o insuportável: se apressadamente “Eu afirmo ser homem, por medo
de ser convencido pelos homens de não ser homem”, nem por isso deixo de ser responsável pelo
BIBLIOGRAFIA
Freud, S. (1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Volume XVIII das Obras Completas, ESB,
______ (1929) O Mal-estar na Civilização.Volume XXI das Obras Completas, ESB, Imago
Lacan, J. (1945) O Tempo Lógico e A Asserção de Certeza Antecipada. In Escritos, Jorge Zahar
______ (1947) A psiquiatria inglesa e a guerra. In Outros escritos. Jorge Zahar Editor, RJ, 2007.