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Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

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Creative Commons

ENTRE SÍMBOLOS E NARRATIVAS: O ODÚ COMO UM SABER


SOBRE A VIDA

Marcos Verdugo
Mestre
PUC-SP
marcosv.verdugo@gmail.com
Bolsista CAPES

GT02 – RELIGIÃO COMO TEXTO: LINGUAGENS E PRODUÇÃO DE SENTIDO

Resumo: O culto de Ifá tem sua origem no que hoje denominamos academicamente por
religiões tradicionais africanas e está associado ao orixá Orunmilá-Ifá, divindade do grupo
cultural iorubá. As palavras Ifá-Orunmilá e Orunmilá designam a divindade, enquanto Ifá
designa, simultaneamente, a divindade e o sistema divinatório a ela associada. Òrúnmìlà
forma-se da contração de órun-l'ó-mo-à-ti-là (“somente orun conhece os meios de
libertação”), ou de órun-mo-olà (“somente orun pode libertar”). Ifá, por sua vez, tem por raiz
fa (“acumular, abraçar, conter”), indicando que todo o conhecimento tradicional iorubá acha-
se contido no corpus literário de Ifá, ou Odù Corpus. Odú é um conceito que está associado
aos conceitos de humanidade e de vida/morte para os iorubas. A palavra ioruba odú
significa literalmente “destino”: cada ser possui o seu “destino”. O estudo de cada odú está
associado, portanto, ao estudo das infinitas possibilidades de “destino” dos seres humanos.
No entanto, deve-se compreender “destino” em uma dupla chave: a da relação pessoal
consigo mesma e a da relação com a comunidade a que se pertence. Assim, o “destino”
nunca é uma prerrogativa individual. É através desses símbolos (odús) que toda a dinâmica
existencial é colocada em reflexão através de um complexo sistema que compreende uma
linguagem que deve ser decodificada pelos babalaôs (sacerdotes de Ifá) e um conjunto de
narrativas que simbolizam os possíveis caminhos da vida humana. Desta feita, enquanto
uma linguagem determinada por um conjunto de narrativas, este artigo pretende apresentar
o conceito de odú como elemento chave na construção ontológica dos seres e, sobretudo,
de que maneira cada ser estrutura sua narrativa pessoal, social e histórica nas múltiplas
analises de cada odú; ou seja, quais são os elementos constituintes da narrativa ética dos
iorubas.

Palavras-chave: Odú. Filosofia Ioruba. Ética. Imaginário Conceitual.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0222


Introdução

Todo grupo cultural é produtor de hábitos de conduta ou de comportamento


em uma específica localidade geográfica e cultural, e em condições históricas
determinadas, ou seja, é produtor de uma moral que é válida para todos os seus
membros. A partir dessa definição, há a necessidade de se localizar o conjunto
epistêmico no qual uma determinada moral é constituída, uma vez que ela é sempre
um constructo social, político e cultural específico, e localizado em uma determinada
região do globo. Assim como não há um conhecimento universal, determinado pela
natureza ou por deus, toda moral possui em si as consequências históricas, políticas
e éticas de um determinado grupo cultural. Isso se justifica, pois, conforme Mignolo,

os loci de enunciação geo-históricos e bio-gráficos foram localizados por e


através da construção e transformação da matriz colonial de poder: um
sistema racial de classificação social que inventou o ocidentalismo (e.g.
Índias Ocidentais), que criou condições para o orientalismo; distinguiu o sul
da Europa de seu centro (Hegel) e, nesta longa história, re-mapeou o
mundo em primeiro, segundo e terceiro durante a chamada Guerra Fria.
Lugares do não-pensamento (do mito, religiões não-ocidentais, folclore,
subdesenvolvimento envolvendo regiões e pessoas) estão despertando de
um longo processo de ocidentalização. O antrophos habitante dos lugares
não-europeus descobre que ele/ela foram inventados, enquanto antrophos,
por um locus de enunciação auto definido de humanitas. (MIGNOLO, 2009,
p.2-3)

Para o grupo cultural ioruba, um odú é um conjunto de versos narrativos (ese)


e cânticos que formam um “volume” do imaginário conceitual presente em sua
totalidade no Ifá que é o depositário, por sua vez, de toda a filosofia e princípios
religiosos dos iorubás. Eles são ao todo duzentos e cinquenta e seis. Eles também
são, conforme argumento neste texto, a linguagem reflexiva que discute,
problematiza e interpreta os significados dos valores morais, ou melhor, a filosofia
moral dos iorubas. Portanto, são por eles, os odús, que se produzem os sentidos
éticos que questionam a ontologia, a origem e o valor de cada costume dentro da
sociedade, e, por conseguinte, buscam compreender o caráter de cada pessoa, isto
é, o senso moral e a consciência moral individuais.

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A dinâmica dos odús

O sistema de Ifá, o sistema de divinação dos iorubás, é dividido em duzentos


e cinquenta e seis “volumes” que são chamados de odú e este é subdividido em
inúmeros “capítulos” chamados de ese. Enquanto o número de odú é conhecido, o
número de ese em cada odú é desconhecido, já que há um constante crescimento
de ese o que não altera a forma do conjunto. Há duas categorias de odú. A primeira
categoria consiste nos ojú odú (os principais odú), dezesseis em número. A segunda
categoria consiste nos omo odú ou amúlù odú (odú menores), duzentos e quarenta
em número.

Pelas técnicas de manipulação do jogo de Ifá, um símbolo é construído ao


longo das jogadas, totalizando oito marcações que representam, por fim, um odú. Os
dezesseis odú principais são assim representados:

Figura 1 - Tabela das marcações dos 16 odú principais. Fonte: ABIMBOLA (1997).

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Para cada odú selecionado no processo de divinação, um conjunto específico
de questões, assuntos e problemas é levantado para que através da interpretação
do babalaô, o sacerdote de Ifá, as informações sejam analisadas e apresentadas a
pessoa que faz a consulta ao jogo. Esse processo de interpretação dos odú não se
faz de maneira tão rápida, pois eles se apresentam através de narrativas, imagens,
sentimentos, sons e cores que precisam ser combinados num processo reflexivo
próprio do sistema para que uma possível resposta seja dada. Mesmo assim, um
odú nunca oferece uma resposta, mas sim um conjunto de reflexões que ajudará o
consulente o a resolver o problema que está buscando a solução.

Os dois temas mais comuns nos odú são os conceitos de caráter e sacrifício.
E é justamente a partir desses dois conceitos que toda a ética ioruba é constituída:
como a cultura e sociedade iorubas definem para si mesmas as virtudes que
determinam cada ser humano, eniyan, em consciência de si mesmo, da natureza e
de sua comunidade, exercendo na experiência material da vida sua liberdade,
vontade e responsabilidade íntimas e as sociais.

O sacrifício

Os iorubás usam a palavra sacrifício tanto no sentido figurado quanto literal,


significando que todas as coisas boas em potencialidade de serem obtidas nesta
vida requerem esforço e dedicação. Tempo, energia, esforços, materiais, estudo são
todos os elementos que entram na dinâmica de sacrifícios que precisam ser
realizados para que as vontades individuais e coletivas, uma vez harmonizadas e
equilibradas, sejam possíveis de concretização. Neste sentido, o exercício da
vontade dentro da sociedade deve, primeiramente, estar em harmonia e equilíbrio
com o eu-comunidade, relação pessoal com a comunidade em que se vive, e, em
segundo lugar, ser uma palavra em ação, relação dinâmica entre o querer, os meios
e o realizar. Os sacrifícios, portanto, são a linguagem que materializa essa relação
entre o eu-comunidade e a palavra em ação, ou seja, é por ela que os agentes
morais expressam o senso moral e as consciências morais individual e coletiva.

O caráter

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Ifá define que uma boa vida e um bom mundo são definidos através de alguns
elementos essenciais: o conhecimento das coisas; a felicidade em todos os lugares;
o fim do antagonismo com os outros seres; o bem viver; e, finalmente, a libertação
da pobreza e da miséria. É interessante observar que o conhecimento ocupa uma
centralidade na experiência ética para os iorubás: é através dele que
compreendemos nossa humanidade em todas as suas formas expansivas e,
também, em sua multiplicidade de saberes e formar de se estar no mundo.

O caráter para os iorubás é definido e problematizado a partir do conceito de


eniyan gidi, o verdadeiro ser humano. Ele é constituído por outros três conceitos:
iwa-pele (o correto caráter, a ação correta), iwa l’ewa (unicidade do caráter em
relação com a inerente beleza da natureza) e iwa l’aiya (a conjugação harmônica
entre os dois elementos anteriores, uma vida sem regressões). Neste trabalho
apresentarei mais detalhadamente apenas o conceito de iwa l’ewa para exemplificar
a dinâmica do caráter para os iorubás.

Iwa L’Ewa

Na compreensão do corpo ioruba, a beleza física deve estar equilibrada com


a beleza interior. Beleza não é apreciada por si mesma, e o iorubá acredita que seu
verdadeiro significado não pode ser determinado por uma óbvia e facilmente
manipulável aparência. Logo, ìwà ni ewà ou ìwà l’ewà (presença bela) implica que o
conjunto da personalidade - constituída por ìwà (uma ideia complexa da
personalidade ideal ioruba, que em uma tradução simples e literal pode ser caráter
ou comportamento), postura e, também, aparência – que a pessoas acharão belo e
digno de admiração.

Ìwá é a medida crucial de beleza no sentido de ser a essência equilibrada do


ser humano. Mesmo que uma pessoa seja fisicamente bela, mas não possui um ìwà
equilibrado, ela é, na melhor das hipóteses, meramente tolerada, torna-se um eni tí
kò ni ìwà kò ni arà (alguém que não possui um ìwà equilibrado, não possui amigos) e
conhecida como òbùrewà, alàra re (o “feio” com um corpo intocável, ou com marcas
no corpo). No entanto, uma pessoa com o ìwá equilibrado, mesmo sem uma beleza

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física, é considerada bela e, assim, popular, respeitável e amada; é conhecida como
omoluwabi (referência a uma pessoa ética) ou olòyàyà (alguém com perspicácia de
espirito para agir corretamente em cada situação). O alàra re desvirtua o
comportamento do corpo na sociedade indiscriminadamente enquanto o olòyàyà
confronta e equilibra as convenções sociais com poucos erros, ou certezas, e
emerge como um gún regé (aquele que é equilibrado, balanceado). Nota-se que a
ideia de equilíbrio não é a ausência de falhas, uma perfeição ideal, mas sim uma
atitude de busca de equilíbrio (ÀJÀYÍ, 1998).

Conclusão

Busquei nesse trabalho discutir de maneira introdutória a problemática do que


chamo de filosofia moral dos iorubás presente nos odú do sistema de Ifá. A
linguagem humana enquanto sistema de comunicação é fundamentalmente
diferente e muito mais complexa do que as formas de comunicação das outras
espécies, já que se baseia em um diversificado sistema de regras relativas a
símbolos para os seus significados, resultando em um número indefinido de
possíveis expressões inovadoras a partir de um finito número de elementos. No
entanto, utilizei para os odú o sentido de uma linguagem que descreve o conjunto de
regras que torna possível essa comunicação ou o conjunto de enunciados que
podem produzir essas regras, no caso, os princípios éticos dos iorubás.

Através da discussão dos conceitos de sacrifício e caráter, sobretudo, o


conceito de iwa l’ewa, busquei discutir a materialidade da ética ioruba e seus
múltiplos sentidos que funcionam como a expressão da identidade e a manutenção
da unidade da comunidade ioruba. A dinâmica relação entre o eu, a natureza e a
comunidade forma a base de toda reflexão moral dos iorubás. Não há moralidade
individual que não seja ao mesmo tempo uma forma de coletividade e uma profunda
identificação com os sentidos da natureza.

Por fim, na reflexão sobre a urgência de produção e legitimação de outras


formas de pensar e estar no mundo, ou seja, a abertura para outros imaginários
conceituais, nos leva a aceitar e a caminhar para um mundo que seja

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essencialmente plural em seus saberes, linguagens, epistemologias e parta do
princípio, como argumenta Mignolo, de que “uma regeneração da vida deve
prevalecer sobre a primazia da produção e reprodução de bens de consumo ao
custo da própria vida” (MIGNOLO, 2009, p.3).

Referências

ABIMBOLA, W. Ifá: An Exposition of Ifá Literary Corpus. New York: Athelia Henrietta
Press, 1997.

ÀJÀYÍ, O. Yoruba Dance: The Semiotics of Movement and Body Attitude in a


Nigerian Culture. New Jersey: Africa World Press, 1998.

KARENGA, M. Odu Ifa: The Ethical Teachings. [S.l.]: Kawaida Pubns, 1999.

MIGNOLO, W. Epistemic Disobedience, Independent Thought and De-Colonial


Freedom. Theory, Culture & Society, SAGE, Los Angeles, Londres, Nova Deli e
Singapura, 26(7-8), 2009. 1-23.

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