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Fundação Oswaldo Cruz

Casa de Oswaldo Cruz


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde

Ives Mauro Silva da Costa Júnior

Conta-me tudo:representações
de doença na filmografia de
Pedro Almodóvar

Dissertação de Mestrado apresentado ao


Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz –
Casa de Oswaldo Cruz como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre.

Rio de Janeiro
2006
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
CASA DE OSWALDO CRUZ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS


DA SAÚDE

Conta-me tudo:
representações de doença na
filmografia de Pedro
Almodóvar

Ives Mauro Silva da Costa Júnior

Orientadora: Profa. Dra. Dilene Raimundo do Nascimento

Banca examinadora: Profa. Dra. Ana Maria Mauad (UFF)

Profa. Dra. Lorelai Brilhante Cury (COC)

Suplente: Prof. Dr. Luiz Otávio Ferreira (COC)

2006

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RESUMO

Os estudos sobre doenças possibilitam análises sobre articulações e

mudanças na sociedade. A doença quase sempre é um elemento de desorganização

e reorganização social. Os estudos nesse campo devem levar em conta a articulação

entre a patologia de uma época, a configuração histórica e ideológica que a

contextualiza e o estágio de desenvolvimento da Medicina. Ao avaliarmos a

dimensão social da doença, trilhamos um dos caminhos para a compreensão de

uma sociedade, uma vez que esta funciona como suporte e expressão da mesma.

Doença é uma construção social e um indivíduo doente sempre o é em função da

sociedade e segundo moldes fixados pela mesma.

Dessa maneira, podemos pensar a doença como um objeto histórico, uma

vez que esta é fenômeno social, ao mesmo tempo em que transforma a sociedade.

Ao perceber que doenças são representações carregadas de culpa e comiseração o

Cinema as usou como tema, personagens ou pano de fundo, construindo painéis de

uma determinada época ou sociedade. Este trabalho pretende discutir a construção

do doente na filmografia de Pedro Almodóvar, uma vez que percebo que este as usa

como elemento de transformação de indivíduos ou da própria sociedade.

Palavras-chave: representação, doença, cinema, ética.

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ABSTRACT

Studies on illnesses may lead to analyses on social movements and changes.

An illness is almost always an element of social disorganization and reorganization.

The studies in this field should take into consideration the link between the

pathology of an era, the historical and ideological configuration that contextualizes

it and the degree of development in Medicine. When we analyze the social

dimension of an illness, we tread one of the paths leading to the understanding of a

society, since it works as support and expression of the illness itself. The illness is a

social construction and an individual is always ill because of society and according

to patterns determined by it.

We can thus think of an illness as historical objects, since it is a social

phenomenon and, at the same time, transforms society. When cinema realized that

illnesses are representations full of guilt and commiseration, it used them as

theme, characters or background, building panels of a specific era or society. The

aim of this work is to discuss the construction of the sick person in Pedro

Almodóvar’s filmography, since I realize he uses it as an element for the

transformation of single individuals or of society itself.

Keywords: representation; illness, cinema, ethics.

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“Qualquer pesquisador sabe que, para obter financiamentos, é preciso
que seu trabalho conduza a “avanços tecnológicos de vanguarda” ou
“resultados relevantes para a realidade nacional na área em apreço”. Como se
verá, o nosso trabalho, diante desses critérios, era de fulgurante inutilidade”

Isaias Pessotti

Aqueles Cães Malditos de Arquelau

História do latim historia, derivado do grego historia, histor, aquele que sabe: substantivo
feminino, estudo e narração sistemática do passado, dos fatos sociais, econômicos,
políticos, intelectuais etc considerados significativos; ramo do saber que registra, explica e
transmite o conhecimento sobre o passado; o curso dos acontecimentos e dos fatos
históricos; a evolução da humanidade; o passado; conjunto dos fatos e das situações que
constituem a ação da narrativa de um romance, filme etc; descrição; relato; narrativa;
conto. (Cunha, 1997)

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer primeiramente a minha terapeuta Maria Fernanda

Avólio Vieira pelas flores. Os buquês mensais que ela me indicava possibilitaram o

meu restabelecimento após uma série de acontecimentos nada fáceis de suportar.

Agradeço também aos amigos, que de alguma forma estiveram presentes na

tecitura deste texto. Dudu Bernardes e Marcelo Lino, que me apresentaram a Pedro

Almodóvar. Flávio Favre, Sergio Leandro e Maria Joana, com quem discuti muito

os filmes. Anna Beatriz de Sá Almeida (Bela), Alex Cassal, Vicente Saul e Denise

Rollemberg, que nessa última jornada, cada um a seu tempo, compareceram com

livros e sugestões sempre bem vindas. Carol Burnier, sempre ao telefone

perguntando como estava a dissertação. Daiana Crus e Manuela Costa, amigas

leais e constantes, sempre solícitas para lerem os textos e apontarem

incongruências e disparidades. Clementine Tribouillard, minha francesa

apaixonada por Pedro Almodóvar, que disse que se nada mais fazia sentido, que

pelo menos eu concluísse essa etapa da vida e Sophie Lejard, por sua torcida

animada e sua amizade sincera. Fabio Alex, sem sua ajuda no backstage nada disso

seria possível.

Carlos Eduardo Pinto, que, mesmo quando eu não acreditei mais nesse

texto, me fez ver que era possível sim, que leu com carinho e cuidado a dissertação,

mesmo quando já não era mais necessário, com quem discuti as hipóteses e assisti

aos filmes. Retribuindo, essa dissertação é tua também. Dilene Raimundo do

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Nascimento, minha orientadora e mais que isso, minha amiga, que sempre

acreditou em mim e insistiu para que eu não morresse na praia. Somente sua força

e seu apoio me fizeram sair do casulo. Apresentou-me à História das Doenças e ao

mundo da pesquisa. Muito obrigado!

À minha trindade materna, Dona Jupira, com quem divido o prazer pelo

cinema, Dona Jurema, que mesmo sem enxergar é a mulher de mais visão que

conheço, e Dona Ruth, que não gostava de Pedro Almodóvar, mas me acolheu, me

educou e me amou como se ama um filho. A vocês, dedico esse trabalho.

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ÍNDICE

I. INTRODUÇÃO: Abre a cortina! p. 07

II. Capítulo I: Créditos Iniciais p. 12

III. Capítulo II: “Sou Muito Autentica!” p. 32

IV. Capítulo III: “Não estou curada!” p. 59

V. Capitulo IV: “Sempre dependi da ajuda de estranhos!” p.83

VI. Conclusão: Resistir! p. 114

VII. Bibliografia: Créditos Finais p. 118

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Abre a cortina!

A idéia para este trabalhou nasceu ao fim de minha graduação em História

na UERJ. Minha dissertação de fim de curso, defendida em 2001, era sobre a

produção cinematográfica acerca da AIDS na década de 1990 e concluía com dois

filmes de Pedro Almodóvar, a saber, Carne Trêmula, de 1998 e Tudo sobre minha

mãe, de 1999. Eu dizia que esses filmes traziam uma mudança na representação

dos soropositivos e mais que isso, afirmava que a solidariedade e a compaixão

seriam um bom remédio no tratamento dos doentes. A idéia de continuar com esse

tema me perseguiu durante os dois anos seguintes e finalmente achei que era hora

de tentar continuar com o assunto.

Mas de onde vem esse meu fascínio pelo cinema produzido por Pedro

Almodóvar? As respostas, na verdade, são enviesadas e remontam minha

adolescência. Cresci em uma casa de subúrbio, com todas as implicações que isso

possa trazer. Uma casa grande, oito quartos, um jardim com muitas árvores

frutíferas, principalmente mangueiras, muitos cães, um galinheiro. Nesta

residência habitava cinco tias-avós solteiras, um tio-avô, sua esposa, seus quatro

filhos e eu. O ambiente era familiar até a última conseqüência. Quando li, pela

primeira vez, os contos de Nelson Rodrigues, me identifiquei com os temas

recorrentes na obra do jornalista, escritor e dramaturgo. Suas histórias sobre

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intrigas familiares e casos de adultério, sua crítica ácida sobre a moralidade

pequeno-burguesa carioca, a família como micro-cosmos da sociedade, seus

personagens humanos que riem e choram, odeiam e amam, mentem e traem,

cheios de interditos e gozam, enfim, que exprimem com toda paixão e fúria a sua

humanidade, passaram a ser referencia para mim. Sempre me perguntei se Nelson

Rodrigues estaria em minha residência, se inspirando para escrever os contos da

série “A Vida como ela é”. Eu morava na casa de Herculano, Patrício e Serginho1.

Não por acaso, quando me deparei com o universo retratado por Pedro

Almodóvar a sensação de familiaridade se apresentou de forma inconteste. Ainda

que aquelas pessoas vivessem em outro país, falassem outra língua, suas paixões

ainda eram as mesmas – humanas – e as similitudes eram inegáveis. Na tela, eu

“via” minha infância e adolescência sendo retratada: mães dominadoras, filhos

rebeldes, pais ausentes, irmãs insanas, cores berrantes, boleros rasgados, ‘fossa’,

desespero exagerado. A paixão foi arrebatadora.

Os caminhos que me levaram à História são igualmente tortuosos e não vale

a pena dissecá-los aqui. Apenas a ressalva que, com 30 anos, cursando a faculdade

na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cursei aulas sobre Revolução

Mexicana através do Cinema e Literatura. Aí travei meu primeiro contato com

Marc Ferro e seu livro Cinema e História. Depois desse curso, outros vários me

alertaram para a possibilidade de inferências sobre o assunto. Estava dado o

1 Para maiores referências, ler Toda nudez será castigada.

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pontapé inicial para a utilização do Cinema para a História. O cinema poderia

funcionar como representação ou figuração, ou seja, como a sociedade se vê e quer

se ver representada; sua função social no coletivo.

Minha ida para a Casa de Oswaldo Cruz, em março de 1998, sob a

orientação da doutora Dilene Raimundo do Nascimento no projeto “Representação

social da AIDS”, me colocaram em contato com outro universo igualmente

desconhecido: a História das Doenças. Ali, entendi que doenças são, igualmente,

representações e, como tais, também possibilitam o entendimento de uma

determinada sociedade. Minha permanência na COC, nesses oito anos,

amadureceu esse entendimento e me incentivou a tentar algo inédito: cruzar

doença e cinema na filmografia de Pedro Almodóvar. Assim, Nesse sentido

proponho a seguinte estrutura para a dissertação.

A intenção do primeiro capítulo se resume na tensão que há entre a doença

e cinema como objetos e fontes. Eu discuto algumas vertentes teóricas acerca do

assunto. O objetivo deste capítulo seria tentar cruzar o conceito de contra-análise

da sociedade a partir dos filmes, desenvolvido por Marc Ferro, com o conceito de

frame, desenvolvido por Charles Rosenberg. Uma lente dupla para entendermos a

sociedade, não só espanhola - terra de origem do diretor Pedro Almodóvar - mas

um mundo contemporâneo. A intermediação disso é possível através do conceito

de representação, a partir de Roger Chartier, uma vez que entendo que tanto

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doença quanto cinema são representações e como tais produzem leituras possíveis

daqueles que as produzem.

O segundo capítulo trata da inserção de Pedro Almodóvar no mundo

contemporâneo, sua produção no período após a queda do regime franquista e

conseqüente redemocratização espanhola. O uso do humor como ferramenta

política nos filmes e a atualidade de seus temas. Também trabalho o conceito de

carnavalização e quebra de hierarquias, como propõe Mikhail Bakhtin, em uma

perspectiva de paródia. O mundo fantasioso de Almodóvar é muito mais real que

possamos supor, pois ele introduz em seus filmes suas próprias experiências,

transformando-as.

O terceiro capítulo discute a doença como objeto a partir dos filmes

Mulheres à beira de um ataque de nervos e Ata-me. Aqui retomo as discussões

do primeiro capítulo, aplicando-as aos filmes escolhidos: o que é ser ‘são’ e o que é

ser ‘doente’, ‘dentro’ e ‘fora’, ‘marginal’ e ‘não marginal’. Minha intenção aqui é

perceber como esses personagens fazem parte da intrincada rede de negociações

que os levam a serem enquadrados como doentes. Também discuto suas

estratégias para escaparem, ou não, dessas classificações.

No quarto capítulo, faço uma análise dos filmes Tudo sobre minha mãe e

Fale com ela, tendo em vista a solidariedade e ética como conceitos a serem

trabalhados, sempre atento às novas relações sociais e de poder. A partir da idéia

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de Edgar Morin, sobre a construção de uma ética para o sujeito responsável, tento

perceber quais estratégias são possíveis para a redenção, não só do doente, mas

dos que estão à sua volta.

Finalmente uma conclusão, onde retomo as principais questões, a

bibliografia e fontes utilizadas. Que comecem os trabalhos!

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CRÉDITOS INICIAIS

Cinema, do grego kinéma, kinématos, movimento: substantivo masculino, redução de


cinematógrafo; sala onde se fazem projeções cinematográficas; arte de realizar filmes;
indústria cinematográfica; projeção de filmes.

Doença, do latim dolentia, derivado de dolere, sentir dor, sofrer: substantivo feminino –
enfermidade, mal, alteração na saúde; falta de saúde; mal, moléstia, enfermidade; fig.,
mania; paixão; vício; defeito.

Filme, do inglês film, película: substantivo masculino, fita cinematográfica, que recebe por
impressão imagens em movimento.

Representar, do latim repraesentare: verbo transitivo, tornar presente; fazer às vezes


de um ausente; significar; simbolizar; descrever; expor por palavras ou por escrito;
patentear; fazer sentir; objetar respeitosamente; ser procurador ou representante de;
desempenhar as funções, o papel de; verbo transitivo e intransitivo, exibir uma peça de
teatro, pondo-a em ação no palco ou desempenhar um papel na peça em ação; verbo
reflexivo, figurar-se, apresentar-se ao espírito.
(Cunha, 1997)

De O gabinete do Doutor Caligari (1919) a As Chaves de Casa (2004) a

doença sempre esteve presente no cinema, seja como tema central ou apenas como

pano de fundo. Por que tal tema se repete tanto na filmografia mundial? Talvez

porque a doença seja mais que um estado patológico. É uma dimensão humana,

um estado latente onde podemos perceber o ser humano em sua mais completa

solidão e abandono. Entregue a agentes desconhecidos da razão, o doente, físico ou

emocional, está sujeito a caminhos desconhecidos que o separam da dita

normalidade. Susan Sontag afirma que “a doença é o lado sombrio da vida, uma

espécie de cidadania onerosa” (Sontag, 1984:7) e que não se deve abordar a doença

física em si, mas o uso dela como símbolo ou metáfora. As fantasias que as doenças

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inspiraram, e ainda inspiram, constituem reflexos de uma concepção segundo a

qual “a doença é intratável e caprichosa, um mal incompreendido, em uma era em

que a premissa básica da Medicina é a de que todas as doenças podem ser

curadas” (Sontag, 1984:9).

Um dos objetivos desta dissertação seria justamente discutir o que é ser

doente para o próprio doente e para a sociedade, como essas relações se constroem

e se desenvolvem e qual é o discurso que as sustenta. A idéia está em perceber o

cinema e a doença como uma dupla lente para observação da sociedade e as

relações que se constroem em torno do doente e da doença, seja ela qual for. Dupla

lente, pois o enquadramento da câmara pode servir como moldura, ou

engessamento, de modelos pré-concebidos. O caminho está em discutir quem

sanciona esses modelos e com que autoridade. E também perceber como o próprio

doente se vê, se percebe. E principalmente quais são suas estratégias para

reconstruir sua identidade. Finalmente, busco perceber como a ética e a

solidariedade podem ser caminhos alternativos não só para cura mas para a

construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.

A realização deste estudo só é possível graças a uma nova maneira de se

abordar a História. Uma renovação que teve início na década de 1920, com a Escola

dos Annales, representada por trabalhos de Lucien Febvre e Marc Bloch. Eles

pretendiam “a construção de uma nova espécie de história” (Burke: 1997:121). Os

historiadores deveriam “recusar a história superficial e simplista que se detém na

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superfície dos acontecimentos e investe tudo num fator” (Le Goff, 1998:31). O

objetivo dos Annales era uma história problemática no lugar do fato histórico puro

e simples. Nas palavras de um de seus fundadores: “Algo dado? Não, algo

construído pelo historiador, quantas vezes? Algo inventado e construído, com

ajuda de hipóteses e conjeturas, por um trabalho delicado e apaixonante” (Febvre

apud Le Goff: 1998:32).

A partir da década de 1970, uma terceira geração dos Annales lança mão de

uma renovação assumindo o nome de História Nova. Seus objetivos eram a

ampliação do campo documental da história utilizando-se de fontes

tradicionalmente desconsideradas, como objetos, ferramentas, depoimentos orais,

iconografia, fotografias, filmes etc. Também propunham o estudo de novos objetos

e uma nova crítica a esses objetos descobrindo suas condições de produção, os

silêncios que os envolvem, as lacunas. A História Nova, como bem aponta o título

da obra que a lança, busca novos problemas, novas abordagens e novos objetos2.

Os historiadores Jean-Pierre Peter e Jacques Revel publicaram um artigo onde

corpo e doença eram considerados novos objetos de análise para a História; da

mesma maneira, Marc Ferro escreveu sobre a importância de o cinema ser também

objeto digno de atenção para o historiador, na mesma coleção.

2 Para tanto ver obra citada História: Novos Problemas; Novas Abordagens; Novos Objetos. Le Goff,
Jacques (org), 1976.

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Doença: Janela para a Sociedade

Peter e Revel escrevem em O corpo: o homem doente e sua história que o corpo

humano é ausente da linguagem mas também é “local do desejo e da infelicidade”

(Peter e Revel, 1976:141). O corpo é também ausente da história, mas um dos seus

lugares. Há mais de 50 anos, historiadores procuram pesquisar sobre a própria

vida, mas se afastam de seu objeto, isto é, do seu corpo, o evitam.

“Se a história tornou-se o mito que permite desde há dois


séculos às sociedades ocidentais de meditarem sobre si mesmas,
ela continua a se interrogar através de sua relação hesitante com a
doença e com o corpo, sobre a origem e o próprio estatuto de sua
linguagem” (Peter e Revel, 1976:156).

Os autores afirmam que é necessário que os historiadores atentem “para o

silêncio daquilo que não foi dito, por não ter podido se resolver em palavras”

(Peter e Revel, 1976:154).

Jacques Le Goff aponta uma profunda renovação do domínio científico,

principalmente a “interdisciplinaridade que se traduz no surgimento de ciências

compósitas que unem duas ciências num substantivo e num epíteto” (Le Goff,

1998:26). Esta mudança deve-se em parte, também por causa da própria

transformação que a Medicina sofreu ao tornar-se mais técnica e científica,

especializando-se e afastando-se cada vez mais dos princípios humanísticos que a

norteavam até então. Vale dizer também que a inserção do médico no mercado de

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trabalho e seu assalariamento levaram o profissional a este afastamento. Por outro

lado, o público leigo passou a interessar-se mais pelo assunto, ao mesmo tempo em

que se desenvolveu uma severa crítica aos sistemas assistenciais médicos e

aumentou a preocupação com os direitos do paciente e com a ética médica.

Charles Rosenberg (1992) afirma que a doença não é apenas um evento

biológico mas uma entidade ilusória. Um conjunto de construções que acabam por

refletir a história institucional e intelectual da medicina. Em um primeiro

momento, a doença deve ser entendida como um acontecimento biológico, um

pouco modificado pelo contexto particular em que ocorre. Mas, para entendê-la

como fenômeno social, devemos nomeá-la e classificá-la. Desde o final do século

XIX, este processo de classificação vem se tornando central no pensamento social e

médico. O conceito de doença implica legitimar, moldar e constranger

comportamentos individuais e políticas públicas. Estudar a história das doenças

pode ser uma maneira de perceber valores culturais de uma determinada

sociedade, quer nas políticas públicas de saúde, quer nas relações entre médico e

paciente, por exemplo. Esse processo de nomear doenças ocorreu

concomitantemente a medicalização destas mesmas sociedades. Nesse momento, a

medicina enquadrou comportamentos como doenças, no intuito mesmo de

justificá-los. Podemos citar a histeria, a homossexualidade, a cleptomania ou a

anorexia como exemplos.

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Uma vez cristalizada na forma de uma entidade, a doença pode servir como

um fator estruturante das relações sociais, tornando-se um ator social e uma

mediação das relações sociais e individuais. Uma vez enquadrada e aceita, a

entidade doença torna-se um ator numa rede complexa de negociações (Rosenberg,

1997).

As novas categorias de doenças surgidas ao fim do século XIX provocaram

uma série de negociações sociais e questões morais. Estes fatores foram

importantes sinais de mudança de valores sociais. Isto é verdade não apenas para

os diagnósticos carregados de valores morais e ideológicos. Ao se diagnosticar

uma doença coronária, por exemplo, este diagnóstico torna-se um importante fator

de mudança na vida de uma pessoa – dietas, exercícios, ansiedade etc. O

diagnóstico nunca é estático e tem um papel fundamental: é a partir dele que o

doente vai redefinir sua vida. Torna-se elemento constitutivo da narrativa de um

indivíduo, de sua relação com a saúde e a doença, recuperação ou morte.

Percebemos então que a doença como problema e objeto para a história é

algo recente. Antes era apenas objeto de reflexão para médicos aparecendo

geralmente associada a uma história da medicina ou a uma epidemiologia

histórica. Dilene Nascimento, em seu livro As Pestes do século XX: Tuberculose e Aids

no Brasil, uma história comparada (2005) argumenta que a doença, “como objeto de

estudo, possibilita o conhecimento sobre estruturas e mudanças sociais, reações

societárias, constituição do estado, e de identidades nacionais, emergência e

19
distribuição de doenças, processos de construção de identidades individuais,

constituição de campos de saber e disciplinas” (Nascimento, 2005:29-30).

Estudos sobre a homossexualidade nos EUA e na Europa e sobre histeria e

tuberculose na Argentina demonstram isso de forma bem clara. O historiador

americano Bert Hansen (1997), afirma que, no caso da medicalização da

homossexualidade, essa prática acabou por levar grupos humanos a assumirem

uma prática sexual como identidade, com características e sub-cultura, próprias. E

a se organizarem em entidades civis, até mesmo de luta contra a própria

medicalização. Hoje, em um caminho contrário, assistimos alguns desses grupos

organizados reinvidicando pesquisas que comprovem que o homossexualismo tem

origens biológicas e não apenas sociais.

Pensando a histeria na sociedade tradicional argentina, a pesquisadora em

cultura latino-americana Gabriela Nouzeilles (2003) afirma que a medicalização foi

um instrumento de contenção de mulheres. A política sanitária tinha uma função

de policiar comportamentos; médicos usavam noções de patologia para punir e

reprimir comportamentos sociais não desejados. Mas, por outro lado, houve

também uma colaboração por parte da própria sociedade, patriarcal e tradicional,

em querer enquadrar e disciplinar essas mulheres consideradas desviantes. O texto

relaciona a rápida modernização pela qual a Argentina estava passando com o

crescimento epidêmico da histeria. Os diagnósticos estavam refletindo uma visão

unilateral e equivocada dos sintomas.

20
No caso da tuberculose, a partir das letras de tangos portenhos, o

historiador argentino Diego Armus (2002) percebe uma associação da doença ao

sexo feminino, ainda que estudos apontem que uma incidência maior da

tuberculose recaísse em homens, entre 1880 e 1950. Devemos pensar numa

sociedade onde o lugar da mulher era o lar, o casamento e a maternidade. A busca

feminina por emancipação – profissional e sexual – era uma preocupação real e a

associação da tuberculose à mulher que sai de seu bairro para tentar a vida no

centro da cidade, revela a preocupação por essas mudanças. Segundo Armus, essa

mudança na postura tradicional feminina incomodava os homens que refletiam

isso nas letras dos tangos que escreviam. Para eles o lugar onde era possível a

mulher ser saudável era o lar e o casamento. Fora disso, só haveria prostituição,

tuberculose e morte.

Tanto Nouzeilles quanto Hansen afirmam que os médicos tornaram-se

senhores absolutos das histórias sobre histeria e do homossexualismo, submetendo

os pacientes às suas regras de reabilitação, reeducação e controle. Ambas doenças

foram enquadradas por médicos, com a conivência de familiares, da sociedade e

dos próprios doentes.

Ao fim do século XIX, essas sociedades foram marcadas por profundas

transformações: valores tradicionais foram submetidos à tensão e questionados;

houve um crescimento urbano sem precedentes; uma concentração cada vez maior

de pessoas em determinados locais. Alguns comportamentos tornaram-se mais

21
visíveis, e dessa maneira mais fáceis de serem percebidos, analisados, classificados

e enquadrados.

Assim, podemos afirmar que a doença como fenômeno social, é uma

construção. E sendo uma realidade construída, o doente é um personagem social.

A historia das doenças é um dos caminhos para compreendermos uma

determinada sociedade, avaliando a dimensão social da doença, como ela se

apresenta. Para tanto, é necessário utilizar-se não só de fontes puramente médicas,

mas também interrogar outros documentos com o intuito de buscar “a imagem dos

males que uma cultura põe no centro de suas preocupações”. Devemos retomar a

literatura, as crônicas, os relatos de época, a iconografia para percebermos as

transformações operadas para uma análise que se confere à doença (Nascimento,

2005: 36).

Porém, a autora nos adverte que uma abordagem das doenças centrada nas

suas representações sociais - concepções que homens e mulheres fazem das suas

doenças – nos pode trazer problemas, uma vez que estaremos lidando com

símbolos. A interpretação pode ser uma via de mão dupla: corre-se o risco de ser

superficial, não indo além das aparências; por outro lado, tendo-se consciência de

que tudo é representação, podemos perceber as mudanças operadas em relação à

doença, dentro do período estudado, identificando os elementos conjeturais que

influenciam estas transformações. Assim, podemos entender que a representação

22
“não é simples reflexo do real – ela está enraizada na realidade social e histórica

que ao mesmo tempo contribui para construir” (Nascimento, 2005:41).

Devemos então considerar a saúde e a doença como realidades sui generis e

não apenas restringi-las ao saber médico. A representação social da doença nos

demonstra que não é apenas um esforço coerente de um saber mas para além disto,

uma interpretação e uma questão de sentido e que a doença é um fenômeno que

ultrapassa a própria medicina.

Como afirmei anteriormente porém, o estudo das doenças é relativamente

novo para as ciências sociais, em especial para a história. Há ainda uma rica

historiografia a ser avaliada e muita coisa a ser feita. Alguns exemplos são:

a. a experiência individual da doença no tempo e espaço;

b. a influência da cultura na definição da doença;

c. o papel do Estado na definição e resposta às doenças;

d. a doença como elemento produtor de cultura;

A lista é enorme e poderíamos nos estender indefinidamente. Mas podemos

inferir que essas representações - ou frames – são estruturas dinâmicas e complexas.

Somente levando em conta esta multiplicidade poderemos entender o processo de

construção social – ou enquadramento – da doença.

23
Representação: Janela para a História

Nesse momento, devemos pensar o que é representação. O historiador

Carlos Eduardo Pinto, em sua dissertação O futuro do pretérito desenvolve bem esse

conceito, a partir das noções elucidadas por Francisco Falcon. Citando:

“no contexto da cultura ocidental existem duas formas de se


encarar a representação. Como conceito-chave da teoria do
conhecimento – representar remete a uma atividade do sujeito do
conhecimento e de capacidade de conhecer, de apreender um real
verdadeiro para além das aparências. Ou como conceito-chave da
teoria do simbólico, uma vez que o objeto ausente é re-apresentado
à consciência por intermédio de uma imagem, um símbolo” (Pinto,
2005:61).

O discurso histórico tem na representação um conceito-chave porque é

preciso “fazer presentes” acontecimentos que já não existem. Essa diferença entre o

presente e o passado tem caráter ontológico no ofício historiador. Por outro lado, a

representação também está baseada numa identidade, pois é preciso criar uma

equação entre o narrado e o seu referencial, o passado. É a impossibilidade da

primeira operação - fazer presente o passado - que tem sido levantada como

bandeira pelas correntes pós-modernas. A idéia de história como ciência entrou em

crise – junto com a própria ciência – ao deixar de ser entendida como um encontro

entre o real e a sua representação feita pelo historiador, e passar a ser encarada

24
como a imagem sempre mutante interpretada pelo historiador na conjuntura em

que escreve. “Tudo que há de vestígios sobre o passado é representação” (Cardoso

apud Pinto, 2005:61). O historiador só pode fazer uma representação também,

entendida como identidade simbólica e não como representação do real para além

das aparências.

Roger Chartier, em História Cultural: entre práticas e representações (1990), nos

adverte que as representações do mundo social são construídas e embora aspirem

a uma universalidade, são determinadas pelo interesse dos grupos que as forjam.

Podemos então dizer que essas percepções não são neutras mas produzem

estratégias de coerção e convencimento “que tendem a impor uma autoridade à

custa de outros por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a

justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas” (Chartier,

1990:17). Devemos pensar que estas investigações sobre as representações estão

colocadas em um campo de concorrências, competições mesmo, cujos enunciados

são construídos em termos de poder e dominação. Com essas observações,

Chartier pretende acabar com os debates entre a objetividade das estruturas e a

subjetividades das representações. A primeira seria um terreno mais seguro para a

história, ligado a documentos quantificáveis enquanto a segunda estaria ligada a

ilusões dos discursos. Tal debate é vão. É necessário pensar em uma história que

tenha por objeto a compreensão das representações sociais, uma vez que essas

traduzem posições e interesses e “descrevem a sociedade tal como pensam que ela

25
é, ou como gostariam que fosse” (Chartier, 1990:19). O que o historiador pode fazer

é “uma interpretação de interpretações”, uma vez que qualquer registro é uma

representação e deve lançar mão da imaginação, que passa a funcionar como uma

especulação plausível, racional, necessária para o “preenchimento dos vazios”

deixados pelas fontes. (Pinto, 2005:62)

Representação faz às vezes da realidade representada e evoca ausência; por

outro lado, torna visível a realidade representada sugerindo presença, segundo

Carlos Giznburg (2001). Mas esta questão pode nos levar a conclusões deturpadas.

Citando Chartier:

“Será necessário identificar como símbolos e considerar


como ‘simbólicos’ todos os signos, actos ou objectos, todas as
figuras intelectuais ou representações colectivas graças aos quais
os grupos fornecem uma organização conceptual ao mundo social
ou natural, construindo assim a sua realidade apreendida e
comunicada?” (Chartier, 1990:19)

Respondendo esta questão, Chartier propõe que se tome o conceito em um

sentido particular e historicamente determinado. Para tanto resgata definições

mais antigas do termo concluindo que representação deve ser considerada “pedra

angular da Nova História Cultural”, onde o conceito de apropriação é o seu centro

(Vainfas, 1997:154). O social só faria sentido nas práticas culturais e as classes e

grupos só adquiririam identidade nas configurações intelectuais que constroem,

26
nos símbolos de uma realidade contraditória representada. As representações que

os grupos fazem deles mesmos e dos outros chama atenção para as estratégias que

determinam posições e relações constitutivas de suas identidades. Essa

problemática conduz “a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse

tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e

pensar o real” (Chartier, 1990:23-24).

Cinema: Janela para o Mundo

Nesse sentido, proponho então a apropriação dos filmes como

representações do real, ou, melhor dizendo, como a maneira que eles descrevem a

sociedade como pensam que ela é ou deveria ser.

O cinema nasceu no fim do século XIX como uma nova linguagem a ser

explorada. Vários ‘cineastas’ desse período exploraram as diversas possibilidades

de comunicação e manuseio da câmara. Nesse contexto, um cineasta norte-

americano, em 1915, deu forma ao que se convencionou chamar ‘narrativa

clássica’. D. W. Grifith, ao filmar Nascimento de uma Nação, utilizou-se de todas

essas técnicas aprendidas e desenvolvidas até então para moldar aquele gênero

que se firmou como hegemônico no mundo todo. Robert Stam, em seu manual,

Introdução à Teoria do Cinema (2003), explica que esta forma busca o realismo, de

27
maneira que o expectador não enxergue nada além de suas próprias ideologias

sendo projetadas nas imagens naturalistas sobre a tela (Stam, 2003:163).

“O que a câmara de fato registra é o mundo vago, não


formulado, não teorizado e não refletido da ideologia dominante...
reproduzindo as coisas não como elas realmente são, mas como
aparentam ser quando refratadas através da ideologia. Isso inclui
todos os estágios do processo de produção: o tema, os ‘estilos’, as
formas, os sentidos as tradições narrativas; todos sublinham o
discurso ideológico geral” (Comolli e Narboni em Screen Reader,
1977 apud Stam, 2003:163)

Dito de outra forma, esses termos, ‘realismo’ e ‘narrativa clássica’, denotam

um conjunto de parâmetros e práticas que envolvem a câmara, montagem e

sonorização que promovem a aparência de continuidade espacial e temporal. Ou

seja, o filme narrativo clássico busca apagar todas as evidências de que é uma

montagem, “fazendo-se passar por natural” (Stam, 2003:166). O cinema narrativo

clássico torna-se então o sistema dominante não só em Hollywood mas em todas as

superproduções mundo afora.

Ao mesmo tempo em que este modo de fazer cinema impunha-se como

dominante, surgiam vanguardas em outros centros produtores de filmes,

principalmente na Europa. Ao fim da segunda década do século XX, alguns

cineastas europeus deram um grande passo, ao criar uma estética que transpunha

28
para as telas as emoções humanas. Apesar de ser um movimento de cunho

europeu, foi na Alemanha que o Expressionismo teve sua maior produção. Ali se

registrou as profundas feridas que aquela nação passou com a derrota na Primeira

Grande Guerra. Nas sombras, nos devaneios e sobretudo nos delírios, os alemães

expressaram aquilo que sentiam mas não podiam verbalizar. Considerada uma

vanguarda cinematográfica, o Expressionismo Alemão deu à História do Cinema

obras primas como O Gabinete do Doutor Caligari (1919), Nosferatus (1922) e M.,

o vampiro de Düsseldorf (1931). No entanto, diferente de outras vanguardas

artísticas européias, o Expressionismo não se organizava em torno de um

manifesto. Segundo o crítico de arte Herwarth Walden, “expressionismo não é nem

um estilo nem um movimento, é uma percepção de mundo” (apud Galvão, 2005: 5).

A subjetividade era valorizada acima de tudo e as sombras eram o lugar por

excelência para essa valorização.

Em mostra, realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil entre abril e

maio de 2005, o Expressionismo foi rediscutido, mostrando suas influências em

gêneros cinematográficos como o filme noir, o thriller psicológico e os filmes de

terror. O uso das sombras, os devaneios das personagens, a música, enfim vários

elementos foram apontados como herdeiros de uma tradição fundada nos filmes

produzidos, sobretudo na Alemanha, dos anos 1920. A sombra é o lócus de onde

podemos perceber os desvãos de uma sociedade, suas mazelas, seus problemas.

Através das sombras podemos fazer uma contra-análise da sociedade, tomando

29
emprestado o conceito desenvolvido por Marc Ferro, uma vez que os filmes

podem ser apreendidos como projeções e anseios da sociedade.

Marc Ferro em se artigo O filme: uma contra-análise da sociedade? escreve que

o filme não deve ser considerado do ponto de vista semiológico, nem da estética ou

da história do cinema. Tampouco deve ser encarado como obra de arte; porém

como um “produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente

cinematográficas” (Ferro, 1976:203). Dito de outra maneira, podemos analisar

apenas fragmentos dos filmes, pesquisar séries ou compor conjuntos. Assim,

dentro desta perspectiva revisionista documental, podemos dizer que o cinema foi

alçado a “fonte digna de fazer parte da história e passível de leitura por parte do

historiador” (Cardoso e Mauad, 1997: 402). O cinema deixou de ser visto apenas

como mero entretenimento ou diversão, uma vez que,

“todo produto cultural, toda ação política, toda indústria, todo


filme tem uma história que é História, com sua rede de relações
pessoais, seu estatuto dos objetos e dos homens, onde privilégios e
trabalhos pesados, hierarquias e honras encontram-se
regulamentados” (Ferro, 1992:17).

Ferro desenvolve suas questões a partir da idéia que o cinema é testemunho

singular de seu tempo, estando fora do controle de qualquer instância de

produção, até mesmo do Estado. Para ele, o filme possui uma tensão que lhe é

própria, o que proporcionaria uma análise da sociedade diversa, uma vez que

30
aquele atinge as estruturas da sociedade ao mesmo tempo em que age como um

‘contra-poder’, por ser autônomo em relação aos diversos poderes desta mesma

sociedade.

“o cinema destrói a imagem do duplo que cada instituição,


cada indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. a câmara
[sic] revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um
do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os
feiticeiros, tira as mascaras, mostra o inverso de uma sociedade,
seus ‘lapsus’. [...] A idéia de que um gesto poderia ser uma frase,
esse olhar, um longo discurso é totalmente insuportável;
significaria que as imagens [...] constituem matéria de uma história
que não a História, uma contra-análise da sociedade.” (Ferro,
1976:.202-203)

Ferro defende, desta maneira, que o cinema é um veículo para o

conhecimento de outras regiões não exploradas por documentos oficiais e

tradicionais. Os “lapsus” deixados pelo diretor, pelo roteirista, pelo filme enfim,

devem ser explorados, salientados. Não devemos ficar apenas na confirmação ou

desmentido da tradição escrita, mas considerar as imagens como elas são, lançando

mão de outros saberes para melhor compreendê-las. Devemos estudar o filme e

associá-lo ao mundo que o produziu.

31
“A hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade,
documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é
História; o postulado? Que aquilo que não se realizou, as crenças,
as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a
História” (Ferro, 1976:203).

Porém uma ressalva deve ser feita: o filme apresenta tensões próprias, mas

elas não devem ser pensadas como faces opostas da mesma moeda. Eduardo

Morettin, em artigo que analisa justamente este conceito desenvolvido por Ferro,

trabalha com a idéia de que o “filme pode abrigar leituras opostas acerca de um

determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura

interna” (Morettin, 2003:15). O que o autor defende é que uma vez percebido este

movimento, encontramos pontos de adesão ou rejeição entre o projeto ideológico e

sua formatação em imagens. Morettin defende a idéia de que o historiador deve

enfrentar a questão da análise fílmica, a partir do sentido que emerge de sua

estrutura. “Cabe ao estudioso identificar o seu fluxo e refluxo [...] refazer o

caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a área a ser percorrida a fim de

compreender as opções que foram feitas e as que foram deixadas de lado no

decorrer de seu trajeto” (Morettin, 2003:38-39). O objetivo do historiador que

trabalha com fontes fílmicas deve ser identificar o discurso que a obra

cinematográfica constrói sobre a sociedade na qual se insere, sempre tendo em

mente as tensões, incertezas e ambigüidades que dela emerge. Se isso não for

32
levado em consideração, o cinema perde sua efetiva dimensão de fonte histórica.

33
“Sou muito autêntica!”

Carnaval, do italiano carnevale: substantivo masculino, período anual das festas


profanas, tempo de folia que precede a Quarta-feira de Cinzas; folguedo; orgia;
entrudo.

Humor, do latim humore: substantivo masculino, líquido contido num corpo


orgânico, umidade, disposição de espírito (XV), do temperamento, natural ou acidental;
veia cômica.
(Cunha, 1997)

Em palestra no Rio de Janeiro no ano de 2004, Robert Stam discutiu a

utilização do humor para lidar com as questões do medo, ajudando a diminuir sua

dinâmica e permitindo que as suas causas sejam investigadas. A comédia satírica e

o humor negro praticado por cineastas como o americano Stanley Kubrick em

‘Doutor Fantástico’, de 1964, que ridicularizava um assunto bastante delicado – a

Guerra Fria - propondo-nos uma visão de cogumelos atômicos nos locais dos testes

nucleares e canções country com letras do tipo “vamos nos queimar todos juntos”, ou

o próprio subtítulo – uma piada – “Como aprendi a não me preocupar e amar a bomba”.

Tudo isso tem uma função brechtiana: o tema amedrontador é tratado de forma

burlesca, criando uma situação paradoxal que simultaneamente evoca e afugenta

os temores. Diante da realidade possível, talvez até inevitável, de uma guerra

nuclear, Kubrick lançou mão de recursos como o clipe final - usado pelo

34
palestrante - que mostra os cogumelos atômicos ao som de uma canção romântica

cuja letra que diz “vamos nos reencontrar não sei onde, não sei quando”; o general que

fala da morte de 20 milhões de pessoas como se fosse a coisa mais natural do

mundo; ou ainda o nome do militar que ordena o ataque nuclear à União Soviética,

Jack Ripper3. Os dispositivos de comunicação da nova tecnologia, demonstrados

no filme, reforçam o grande medo da época: qualquer erro de comunicação podia

resultar em desastre. Existem também questões de ordem sexual: o filme tem todo

um aspecto psico-sexual. Os personagens usam terminologia militar para falar de

sexo: decolar, significando orgasmo; alguns nomes de personagens têm uma

conotação sexual como Kissof4, o primeiro-ministro russo; ou ainda quando o

Doutor Fantástico sugere que pessoas sejam recolhidas em abrigos anti-nucleares

na proporção de dez mulheres para cada homem. A sátira funcionou tanto a ponto

da palavra ‘strangelove’ passar a ser usada, em gíria da época, para designar

qualquer coisa bizarra e ameaçadora.

Esse uso do humor e da sátira como alegoria tem sido um recurso recorrente

na obra do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Nascido em 1949 e natural de

Calzada de Calatrava, Ciudad Real, Espanha, Almodóvar é um dos mais

aclamados e polêmicos diretores da atualidade. Sempre atento ao mundo que o

3 Jack, o estripador, (Jack the Ripper) foi o pseudônimo dado a um serial killer não-identificado que agiu no
miserável bairro de Whitechapel em Londres na segunda metade de 1888. O nome foi tirado de uma carta
enviada por alguém que dizia ser o assassino, publicada nos jornais na época dos crimes. Embora diversas
teorias tenham surgido desde então, a identidade de Jack, o estripador, nunca pôde ser determinada.
4 O trocadilho aqui é um tanto incompreensível na língua portuguesa. Mas o verbo to kiss off tem
um significado de rejeição, de não querer mais. Como gíria, kiss off pode dizer que você não tem
interesse em beijar durante o sexo casual ou que você só beijaria a pessoa depois de ter mais alguma
intimidade.

35
cerca, traz em seus filmes uma crônica social da Espanha, e do Mundo Ocidental,

de maneira ácida e às vezes cruel, mas sempre recheada de bom humor. Sua

carreira começou ainda na década de 1970, dirigindo filmes de curta-metragem, em

uma Espanha recém saída de mais de 40 anos de Ditadura Franquista. Seus

primeiros filmes mostram uma sociedade ávida por liberdades, após um longo

período de repressão. Um período em que “velhos e novos padrões morais, sexuais

e comportamentais conviveram lado a lado por uma década, (1975 – 1985) após a

abertura política” (Moreira, 2000:16). A partir do começo da década de 1980,

Almodóvar passou a dirigir filmes de longa-metragem, em um total de 16 até o ano

de 2006. Alguns estudiosos dividem a sua carreira em três momentos específicos5:

uma primeira fase, onde traria personagens representativos da movida madrileña6

nos filmes produzidos até A Lei do Desejo, de 1986; a segunda fase, inaugurada

com Mulheres à beira de um ataque de nervos (1987), quando alcança projeção

mundial até Kika, de 1993, um período em que “mais se dedicou ao artificialismo

5 Há um grupo de estudiosos da filmografia de Pedro Almodóvar que dividem sua carreira em


somente duas fases: os filmes desde o início da carreira até Kika de 1993, que trariam um viés mais
alegórico e uma estética kitsch; uma segunda fase inaugurada com A Flor do meu segredo, de 1995,
até os filmes atuais, onde esse viés estaria atenuado e o diretor teria alcançado uma “maturidade
cinematográfica”. Esta divisão não percebe diferenças muito relevantes nos filmes que
impulsionaram a carreira do diretor mundialmente.
6 Durante os primeiros anos da transição da Espanha pós-Franco e avançando até os anos 1980, a
noite em Madri foi muito ativa não somente pelas saídas noturnas dos jovens, mas por causa de um
interesse incomum pela chamada cultura alternativa, underground ou ContraCultura. A aparição de
selos independentes, por exemplo, na indústria fonográfica permitiu a criação de uma música
independente da patrocinada pelas multinacionais de disco. De Madri, o movimento se estendeu a
outras cidades espanholas, com a conivência e alento de alguns políticos, principalmente socialistas,
que apoiaram esta cultura aparentemente alternativa por conta de uma ruptura e desconexão entre
a cultura franquista e a cultura democrática: uma vantagem para vender como moderno ou aberto à
modernidade, uma nação tida como anacronicamente fascista. O movimento se expandiu
abrangendo outras áreas culturais como a fotografia, a pintura, o teatro e o cinema, do qual Pedro
Almodóvar é considerado expoente máximo.

36
puro” (Bravo, nº 84, p.79), onde os elementos do chamado “cinema

almodovariano” – cores berrantes, cenografia muito alegórica, a paródia, o caráter

anárquico - foram usados à exaustão; a terceira fase inaugurada com A flor do

meu segredo, de 1995, e que segue até os filmes atuais, onde apesar do estilo kitsch7

ainda estar presente, os dramas pessoais já não tem uma carga melodramática tão

mais forte e a caricatura torna-se menos evidente .

Almodóvar e o Mundo

Minha tendência em concordar com esta hipótese reside no fato de perceber

claramente que há diferenças crucias e fundamentais entre os filmes produzidos

até 1986 e posteriores. Para além do fato de Pedro Almodóvar ser um completo

desconhecido fora da Espanha até então, suas tramas e personagens ainda trazem

uma ânsia de liberdade após a queda do Regime Franquista. São filmes com um

forte apelo local, ainda que universais, mas que retratam o cotidiano daquelas

pessoas. A movida madrileña foi um momento especial na história da Espanha,

quando o país passou por uma profunda transformação.

Após 10 anos, seus filmes começam a dar uma guinada, tornando-se mais

universais e cosmopolitas, sem, no entanto, perderem o caráter local. Não por

7 Kitsch é um termo, de origem alemã, usado para categorizar objetos de valor estético considerado inferior
ao original. O termo surgiu em Munique, em 1860, sendo empregado primeiramente na área de decoração.
Em linhas gerais é uma negação do autêntico, uma deturpação dos estilos tradicionais e instituídos. Com o
passar dos anos acabou por significar qualquer coisa que seja de mau gosto. Além disso, há uma tendência a
se considerar kitsch ou inferiores, a maioria dos objetos produzidos industrialmente.

37
acaso, A Lei do Desejo é o filme que o projeta mundialmente, impulsionando sua

carreira em outros países da Europa, nos Estados Unidos da América e países da

América Latina como o Brasil, onde ganhou o prêmio de melhor direção no IV

FestRio8. Nesse momento, os pequenos círculos cinéfilos de vários países passaram

a promover retrospectivas de sua filmografia, até então com sete filmes longa-

metragens realizados, além de inúmeros curtas-metragens9.

A ascensão do cineasta foi rápida no panorama cinematográfico

internacional. Em 1987 ainda era um ilustre desconhecido do grande público e da

crítica internacional. Mas o lançamento de A Lei do Desejo o projetou de forma

inconteste. O jornalista Helio Bilik, correspondente da Folha de São Paulo em Nova

York, relata que Almodóvar inclusive foi comparado a cineastas famosos como o

seu conterrâneo Luís Buñuel, o americano Woody Allen, os alemães Rainer Werner

Fassbinder e Wim Wenders e o polêmico italiano Pier Paolo Passolini, chegando a

ganhar importantes prêmios no Festival de Cinema de Miami e da Associação dos

Críticos de Los Angeles.

8 Criado em 1984, o FestRio foi um dos primeiros festivais de Cinema da cidade do Rio de Janeiro.
Em 1989, mudou o nome para Mostra Banco Nacional de Cinema, tornando-se a principal vitrine
do cinema nacional e internacional. Após a falência do Banco Nacional, mudou novamente o nome
para Mostra Rio de Cinema, mantendo as características dos anos anteriores. Em 1999, se fundiu ao
Rio Cine, outro festival de cinema, criado em 1984, passando a chamar-se Festival do Rio,
considerado o maior festival de cinema da América Latina.
9 Cabe aqui uma pequena lembrança: em 1988, um amigo, recém-chegado da Europa, trazia em sua
bagagem uma fita de vídeo-cassete e convidou alguns amigos para assistirmos em sua residência “a
grande sensação européia do momento!”. O filme era A Lei do Desejo e continha uma história de
amor entre três homens, um personagem transexual e um festival de cores. Assim Pedro
Almodóvar entrou em minha vida.

38
“Com suas mensagens de liberdade e contra a repressão dos
desejos mais primitivos, o cinema de Almodóvar assume um leve
sabor dos anos 60, embora o cineasta recuse qualquer rótulo de
militante ou engajado. Sua câmara procura circular por todos os
estratos da sociedade madrilenha, dos conjuntos habitacionais de
O que fiz para Merecer Isto?, até as coberturas dos edifícios dos
bairros ricos mostrados em Mulheres a beira de um ataque de
nervos” (Folha de São Paulo, 01/05/1988, A61) [Os filmes estão
com os títulos com os quais foram lançados comercialmente no
Brasil].

Seu filme seguinte, Mulheres à beira de um ataque de nervos colheu frutos

dessa nova fase, com prêmios em vários festivais internacionais, chegando em 1989

a sua primeira indicação ao Oscar de melhor filme em língua não inglesa. As

atuações de Carmem Maura e Antônio Banderas elevaram esses atores a ícones do

cinema espanhol e Pedro Almodóvar recebeu apelidos como “enfant terrible” e “rei

do cinema kitsch” por expor em seus filmes dramas coloridos e personagens

inusitados.

Era de se esperar que a recepção de Ata-me fosse calorosa. Afinal de contas,

Almodóvar havia sido indicado ao Oscar no ano anterior, os círculos intelectuais

de Nova York e Los Angeles o haviam acolhido como revelação, retrospectivas de

sua obra haviam sido realizadas na Califórnia, em Nova York, em Toronto e

Londres. Mas não foi isso que aconteceu. Nos Estados Unidos, o filme recebeu

classificação “X”, indicada para filmes considerados pornográficos, apesar da boa

39
recepção da crítica especializada e do aplauso do público. A Motion Picture

Association of América (MPAA), associação que classifica os filmes para o público, o

considerou pornográfico por conta de uma cena de sexo entre os protagonistas

Victoria Abril e Antonio Banderas. Em resposta à classificação, Almodóvar

escreveu um artigo, publicado originalmente no jornal espanhol El País, criticando

a classificação e expondo os meandros políticos por trás daquilo que ele chamou de

censura:

“Não se pode falar numa onda de conservadorismo. A onda


chegou há muito tempo e se instalou nos Estados Unidos.
Naturalmente existem reações contra o que aparece nos jornais e
nas ruas, mas eu não acredito que sejam suficientes se levarmos em
conta o enorme perigo que isso representa para a liberdade em
todos os aspectos.

Eu não aceito a censura – devo estar muito mal acostumado


– e menosprezo a existência de associações como a MPAA, mas no
caso de se respeitar a necessidade de uma qualificação orientadora
para o público, o sistema adotado por tal associação é confuso,
escasso e preguiçoso” (Folha de São Paulo, 06/06/1990: E2).

40
A transição democrática e o cinema de Almodóvar

Almodóvar resgatou antigas e importantes tradições da sociedade

espanhola, em especial da sociedade madrilenha, dando forma e voz às enormes

mudanças que se processaram dentro dessa mesma sociedade. Alguns consideram

que Almodóvar foi quem melhor representou a nova mentalidade espanhola

dividida entre imensas expectativas e frustrações não esperadas. Wilson H. Silva

afirma que

“Impregnado por essa ‘nova mentalidade’, cheia de


contradições e em permanente ebulição, o cinema de Almodóvar
foi profundamente marcado pelo choque entre ‘tempos’ diversos:
um passado distante e idealizado nos anos imediatamente
anteriores à eclosão da dramática Guerra Civil Espanhola; um
outro mais próximo, e franquista, cujo esquecimento era
impossível e a ‘modernidade’ recém-adquirida” (Silva,1996:52).

Mergulhado nessa nova sociedade, Almodóvar apontou para as

contradições existentes, extrapolando as expectativas e dramatizando as

frustrações. Podemos afirmar, sem medo, que o cinema de Almodóvar é um

testemunho único desse período. Os filmes da primeira fase de sua carreira

refletem, de forma surpreendente, como o povo espanhol - em especial, a

sociedade madrilhenha – tinha uma necessidade de superar as práticas e traumas

passados. Mais que isso, eles nos permitem refletir sobre temas como a

41
carnavalização, cultura popular, homossexualidade, desejo e principalmente a

relação entre cinema e história.

Nesse sentido gostaria de investigar alguns dos filmes de Almodóvar à luz

dos conceitos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin em seu livro A Cultura Popular na

Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Bakhtin, ao analisar a

cultura popular na Idade Média, propõe dividir as múltiplas manifestações dessa

cultura em três grandes categorias (Bakhtin, 1987:4), a saber:

a. As formas dos ritos e espetáculos;

b. As obras cômicas e verbais;

c. As diversas formas e gêneros de vocabulário familiar e grosseiro.

Neste trabalho interesso-me, principalmente, pela primeira e segunda

manifestações, os ritos e espetáculos, em especial o carnaval, e as obras cômicas e

verbais. Bakhtin afirma que essa literatura não é folclore, mas que utiliza, de forma

ampla, a linguagem das formas carnavalescas.

“A influência da concepção carnavalesca do mundo sobre a


visão e pensamento dos homens era radical: obrigava-os a renegar
de certo modo a sua condição social (como monge, clérigo ou
erudito) e a contemplar o mundo de uma perspectiva cômica e
carnavalesca” (Bakhtin, 1987:12).

42
Podemos dizer, então, que o carnaval era momento de liberação das ordens

pré-estabelecidas, uma abolição momentânea de todas as relações hierárquicas,

privilégios, regras e tabus, assim como hoje. Opondo-se ao status quo, o carnaval

apontava para um futuro ainda não realizado. (Bakhtin, 1987)

Bakhtin percebe na obra de Rabelais, imagens referentes ao princípio

material e corporal, como herança da cultura cômica popular medieval. A bem da

verdade, um tipo peculiar de imagens e de concepção estética da vida prática que

caracteriza essa cultura. A essa concepção ele dá o nome convencional de ‘realismo

grotesco’. Esse conceito nos ajudará a analisar os filmes de Pedro Almodóvar.

Nesse realismo, o princípio material e corporal aparece sob a forma de festa,

utópica e universal. O corporal é visto como universal e popular, opondo-se a

qualquer isolamento. O corpo adquire um caráter positivo. Um traço marcante do

realismo grotesco é justamente o “rebaixamento, isto é, a transferência ao plano

material e corporal, o da terra e do corpo, na sua indissolúvel unidade, de tudo que

é elevado, espiritual e abstrato” (Bakhtin, 1987:17).

No realismo grotesco, esse rebaixamento não tem um caráter formal ou

relativo. O alto é o céu e o baixo, a terra. Ou seja, o que está embaixo entra em

contato com as forças regeneradoras. A degradação e o rebaixamento têm sentidos

43
duplos, ambivalentes: há um valor destrutivo e negativo, mas também um positivo

e regenerador. É, ao mesmo tempo, negação e afirmação.

“A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de


transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da
morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude
em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo
(determinante) indispensável da imagem grotesca. Seu segundo
traço indispensável, que decorre do primeiro, é sua ambivalência:
os dois pólos da mudança – o antigo e o novo,o que morre e o que
nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressos (ou
esboçados) em uma ou outra forma” (Bakhtin, 1987:21,22).

Pedro Almodóvar juntamente com outros cineastas, artistas, poetas e

escritores, viveu uma espécie de carnavalização no submundo de Madrid, a movida

madrileña. Essas pessoas tentaram e fizeram outro tipo de arte, dispostas a inverter

regras de um regime moribundo, manifestando outros interesses culturais, sociais

e sexuais, tidos como não ‘normais’. O paralelo é possível. Bakhtin afirma que na

obra de François Rabelais existe um agudo sentido de atualidade, associado à

amplitude cósmica do mito. Por trás das imagens, estão pessoas e acontecimentos

reais. Aí reside a grande experiência pessoal do autor e suas observações precisas.

44
Da mesma maneira, as personagens dos filmes de Pedro Almodóvar são

reais e a própria Madri é retratada de forma viva. As cidades são signos da

modernidade e Madri é o signo dessa modernidade promovida pela movida. O

próprio Almodóvar diz que Madri representava “o primeiro lugar onde os filmes

estreavam, e também a cidade onde todo mundo fazia a sua própria vida.

Definitivamente um sonho” (Almodóvar, 1992:114). Lucília de Almeida Neves

Delgada afirma que “as cidades, como espaços de vivência coletivas, são paisagens

privilegiadas de registro da memória” (Delgada, 2006:108). A vida cultural, as

formas de sociabilidade, relações de poder e atividades econômicas são percebidas

através dos espaços coletivos de uma cidade. A cidade passa a ser uma

personagem viva das narrativas que expressam o cotidiano das pessoas que nelas

vivem.

Assim, Almodóvar, então com 17 anos, deixou sua cidade natal na região da

La Mancha e partiu para Madri. Sua primeira impressão foi decepcionante: Madri

lhe pareceu suja, pouco acolhedora e bem desleixada, um cheiro úmido e pegajoso

que ficaria gravado para sempre em sua memória. Mas aceitou essa realidade de

que em Madri, nem tudo era luxo e diversão. As cidades têm periferia, poluição,

barulhos e misérias, e nessas imperfeições, também podemos perceber sua

grandeza (Almodóvar, 1992). Assim, Madri torna-se personagem da maioria dos

filmes de Almodóvar10, “tão inabrangível quanto um ser humano. Tão

10 Há duas exceções na filmografia de Pedro Almodóvar, no que tange a cidade de Madri como
cidade-personagem: Tudo sobre minha mãe, de 1999, que quase toda é ambientada em Barcelona e

45
contraditória e variada. Assim como as pessoas são constituídas de milhares de

facetas (muitas delas contraditórias), esta cidade contém, para mim, mil cidades

em uma” (Almodóvar, 1992:116). Exemplos não faltam nos filmes de Almodóvar: a

cena de abertura do filme Maus Hábitos mostra o anoitecer em Madri, com suas

avenidas pulsando tal qual uma artéria; a seqüência inicial de Labirinto de Paixões

se passa em um dos mais movimentados mercados de pulga de Madri, o El Rastro;

em O que fiz para merecer isto? a convivência nos conjuntos habitacionais da

classe média pobre; em ‘Mulheres a beira de um ataque de nervos’, as coberturas

chiques dos burgueses abastados.

“Por certo que a Madri de Almodóvar – território feito de


becos e praças, mosteiros, conjuntos habitacionais, escolas de
tauromaquia, casas abandonadas e recantos desertos – por si só
não é mais a encantadora cidade trivial dos turistas. É, antes, uma
cidade entrelaçada a melodramáticas ambigüidades e desvios.
Trágica e hilariante a um só tempo” (Lyra, 1996:98).

Delgada afirma que o memorialista – e de alguma maneira, cineastas são

memorialistas – lança mão das categorias ‘espaço’ e ‘tempo’ para se identificar com

o leitor ou espectador. Como narrador, essa memória reconstrói lugares perdidos e

tempos passados. E que “diante da fragmentação da vida, os espaços e lugares são

seu último filme, ainda sem data de estréia no Brasil, Volver, de 2006, que se passa na terra natal do
diretor, La Mancha.

46
fundamentais para a construção e a solidificação de identidades” (Delgada,

2006:121).

Dessa maneira, Almodóvar, representando “uma nova mentalidade, de um

país onde já não triunfam as grandes idéias salvadoras e se vive ao sabor dos dias”

(Garcia de Leon e Maldonado, 1989 apud Silva, 1996:52), destrói o quadro oficial da

sua época e de seus acontecimentos e lança um olhar novo sobre eles. Mobiliza

todos os meios das imagens populares lúcidas para extirpar as idéias relativas de

seu tempo: a mentira oficial, a seriedade limitada e ditada pelos interesses das

classes dominantes. Almodóvar parece ter assumido esse papel na sociedade pós-

franquista. Através de seus filmes, ele procura destituir e rebaixar elementos

constituintes mesmo da sociedade espanhola - e madrilhenha, em especial - para

pensar e refletir sobre quais papéis, as pessoas deveriam assumir nessa nova

sociedade, livre, repactuada e democrática. “O cinema de Almodóvar é um cinema

que fala do corpo. Sobretudo da intensidade sexual [...] sob o jogo voyeur da

vigilância e da punição” (Haouli, 1996:87). Ele é um assassino de reis, (Labirinto de

Paixões) e estuprador de donas-de-casa (Pepi, Luci e Bom; Kika). Comicamente

instaura um governo de blasfêmias, rebaixamentos e carnavais constantes. Sua voz

é obscena. Seus impropérios são ditos em bom e alto som, em praça pública, para

qualquer um ouvir. Almodóvar é o porta-voz do riso carnavalesco popular, que

“expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão

incluídos os que riem” (Bakhtin, 1987:11).

47
Três filmes

Pepi, Luci e Bom, seu primeiro filme longa metragem de 1980, narra a

trajetória de três amigas, interpretadas por Carmen Maura (Pepi) Eva Silva (Luci) e

Olvido Gara (Bom) envolvidas com um estupro. A seqüência inicial do filme nos

mostra a janela de um apartamento de onde vemos uma pequena plantação de

maconha. A cena seguinte mostra um policial (Félix Roteata) investigando a

existência de drogas no apartamento, que em troca de esquecer a denúncia, estupra

a dona do apartamento, Pepi, uma jovem virgem de 17 anos. Toda a narrativa a

partir de então se faz por locais onde vivem e se divertem as amigas, procurando

vingança pelo estupro. O próprio diretor aparece em uma boate, comandando uma

pequena banda de punk-rock. Em uma das cenas mais engraçadas do filme é

promovido um concurso de ‘ereções gerais’, cujo prêmio a ser dado ao portador do

maior órgão sexual, será o direito de escolher a realização de qualquer fantasia

com um dos presentes. A escolhida é Luci, esposa do policial estuprador, que se

diz vítima da ‘onda de erotismo que invade a todos’.

Em 15 de junho de 1977 foram convocadas eleições gerais na Espanha após

40 anos de ditadura. Historiadores espanhóis, como Joseph-Miquel Marti i Rom,

comentam uma agitação e conscientização generalizada que tomou conta de todos.

Para eles, a política e a cultura haviam abandonado os subterrâneos, saindo das

“cloacas e das prisões às quais o franquismo as havia confinado para inundar o

espaço público.” (Marti i Rom apud Silva, 1996:54). Almodóvar parodia o clima

48
festivo pela qual a sociedade espanhola passava desde a morte de Franco. A figura

do policial simboliza todo o autoritarismo moral, político e religioso da Espanha

franquista. A escolha da atriz Carmem Maura – uma mulher de 30 anos – para o

papel da virginal Pepi, brinca com o culto à virgindade, considerado anacrônico

pelo diretor (Melo, 1996:248). Transforma ‘eleição’ em ‘ereção’ e ‘agitação e

conscientização’ em ‘onda de erotismo’. Uma paródia que traz em si a sensação de

ressurreição após a morte, de alternância e renovação e de tudo que se caracteriza

como ‘clima típico das festas’, para usar a expressão de Bakhtin. Almodóvar

destrói idéias oficiais sobre a época e seus acontecimentos, mas não se esforça para

fazer uma análise científica. Seu objetivo não é a linguagem das concepções, mas a

das imagens cômicas populares. Acredito que ele reflete um desejo de não só expor

a falsa seriedade mas também o de uma nova seriedade e um novo impulso

histórico. Almodóvar não só filma a movida como também dela participa como um

dos foliões dessa animada festa. Ou melhor, como um bobo da corte, que aponta a

mentira oficial e ri dela. Cada personagem dos filmes dessa época é

profundamente marcado por essa característica e o próprio estilo dos filmes de

Almodóvar é infiltrado pela movida. Da mesma maneira que Bakhtin adverte que

não devemos analisar a Cultura Popular na Idade Média sem levarmos em conta

esse caráter de carnavalização, os filmes de Almodóvar também devem ser vistos e

analisados tendo em mente essa chave de análise.

49
Labirintos de Paixões de 1982, narra a história de Sexilia (Cecilia Roth) e

Riza Niro (Imanol Arias). Sexilia é ninfomaníaca e Riza, homossexual. O motivo

para suas práticas sexuais – consideradas desviantes dentro de um padrão moral

vigente na Espanha Franquista – encontra-se em suas infâncias, quando ambos

sofreram abuso sexual. Ao se reencontrarem, acabam vivendo uma louca paixão.

Riza, filho de um imperador árabe é perseguido por um terrorista, Sadec, (Antonio

Banderas) também homossexual. A seqüência inicial mostra esses personagens

vagando pelas ruas de Madrid, observando as pélvis e nádegas dos rapazes que

passam por eles. Cecilia, Riza e Sadec desfilam pela trama “explicitando seus

medos, desejos, anseios e prazeres” (Silva, 1996:59). O desejo está estampado em

seus rostos, que não fazem questão alguma de esconder o que querem. Eles não

têm medo e “desfilam seu prazer certos de que, pelo menos eles, são parte desta

nova Espanha” (Silva, 1996:68).

Almodóvar abusa das metáforas sexuais, beirando o grotesco, para falar da

liberdade recém adquirida com o fim do regime franquista. A censura e a

repressão sexual foram constantes e terríveis no período da ditadura franquista. A

jornalista Andréa Bezerra de Melo afirma que neste filme há um “manifesto

autoral a favor do desgoverno e um convite à transgressão dos códigos morais de

conduta” (Melo, 1996:260). Particularmente em respeito ao cinema, estavam

proibidas quaisquer alusões à prostituição, às perversões sexuais, tais como a

homossexualidade ou incesto, ao adultério, aborto, relações sexuais ilícitas etc.

50
Franco chegou a instituir a dublagem de todos os filmes estrangeiros a partir de

1940, para evitar palavras consideradas de baixo calão. Outra prática dessa época

era alterar o sentido do filme original, através de dublagens e cortes. Podemos

considerar o uso de dublagem nos primeiros filmes de Almodóvar uma alusão

paródica a essa política. Ao trazer para cena fílmica personagens com desvios

sexuais, o diretor coloca em xeque todo um universo construído em cima de regras

rígidas. O título – Labirinto de Paixões – é a primeira referência desse intrincado

quebra-cabeça, em que se encontra a sociedade espanhola. O desgoverno político é

traduzido numa espécie de corrida frenética das personagens, embaladas pelo

kitsch, homossexualismo, incesto, terrorismo, rock, e psicanálise. A movida é

retratada tal qual o carnaval na Idade Média. Bakhtin afirma que “o carnaval é a

segunda vida do povo, baseada no princípio da vida. É a sua vida festiva” (Bakhtin,

1987:7). E mais uma vez, ao filmar o submundo de onde ele vem, Almodóvar se

coloca como um bufão, um bobo da corte, que vive essa vida 24 horas, situando-se

na fronteira entre a vida e a arte.

Maus Hábitos, filme de 1983, narra a história de Yolanda Bell, (Cristina

Sánchez Pascual), cantora decadente de cabaré, perseguida pela polícia por ser a

principal suspeita da morte de seu namorado. Desesperada em sua fuga acaba

refugiando-se em um convento nada tradicional: o ‘Redentoras Humilhadas’. A

instituição encontra-se tanto em crise financeira – a ponto de ser fechada – quanto

em crise assistencial, uma vez que ninguém mais a procura em busca de conforto,

51
amparo e proteção. Até pouco tempo esse convento destinava-se a recolher

mulheres discriminadas e segregadas do convívio social. Mas com as mudanças

ocorridas na Espanha com o fim do Franquismo, esse trabalho piedoso torna-se

desnecessário. Repressões à prostituição e tráfico de drogas já não são tão

constantes. Comandadas por Madre Julia (Julieta Serrano), as irmãs desse convento

assumem identidades humilhantes como prova de humildade e dedicação. Assim,

temos as irmãs Esterco (Marisa Paredes), Rata (Chus Lampreave), Víbora (Lina

Canalejas) e Perdida (Carmen Maura), que se impunham a missão de redimir as

pecadoras, prostitutas, viciadas, traficantes, assassinas. Yolanda será a última

delas.

Madre Júlia, que já nutria uma paixão por Yolanda, agora está próxima ao

seu objeto de desejo. Hospeda-a no aposento mais luxuoso do convento, todo

decorado em tons de vermelho, com vários objetos que beiram o mau-gosto. Este

quarto pertenceu à Virgínia, filha de um marquês que destinava altas somas ao

convento. Virgínia desapareceu na África, mas Madre Júlia conservou o quarto

arrumado como se Virgínia não tivesse sumido. Há um quadro da Virgem Maria, e

Yolanda posiciona-se em um determinado ângulo que para Madre Júlia a auréola

parece santificá-la. Na cena seguinte, a Madre oferece uma seringa com heroína, o

que deixa Yolanda vacilante. Para encorajá-la Madre Júlia arregaça as mangas de

seu hábito e aplica-se uma injeção. A despeito do frenesi causado pela chegada de

52
Yolanda, a Madre Superiora chega a prever que em breve o convento estará

novamente repleto de pecadoras, drogadas e prostitutas.

Cada uma dessas irmãs, na verdade, esconde um segredo. Irmã Esterco é

viciada em ácido, Irmã Rata escreve livros eróticos – e ganha dinheiro com isso –

inspirados na vida das mulheres que o convento abrigou, Irmã Víbora é

apaixonada pelo padre e Irmã Perdida além de ter uma mania doentia de limpeza,

cria um tigre no convento. A própria Madre Superiora Júlia é viciada em heroína,

além de nutrir um amor quase doentio por Yolanda.

O filme todo é narrado, filmado e cantado um tom acima do real, oscilando

entre o melodrama e a comédia. Coloca em xeque, de forma irreverente, valores

morais, religiosos e tradicionais da sociedade madrilhenha. As freiras, são, na

verdade, rebaixamentos a começar pelos nomes – Esterco, Rata, Víbora – e atitudes

– drogas, sexo, contos eróticos. Mas esse rebaixamento não é gratuito ou negativo.

Ele nos faz pensar no papel das instituições religiosas no mundo contemporâneo,

em especial na sociedade espanhola, religiosa e tradicional. Vale lembrar que a

Igreja Católica espanhola foi um dos pilares de sustentação do Regime Franquista.

Os valores “da razão, do debate público, da educação, da ciência e da capacidade

de melhoria [...] da condição humana” (Hobsbawn, 1995:113-114), identificados

com a modernidade alcançada durante o século XIX, foram contestados por

instituições tradicionalistas como a Igreja. Esta teve um papel importante “na

proposição de formas tradicionais de associação, como as corporações, como forma

53
de superar o conflito de classes” (Silva, 2000:130-131). Assim, as forças de direita,

lideradas pelo General Francisco Franco, perceberam nas doutrinas sociais

defendidas pela Igreja, uma maneira de justificar o “estado corporativista”, que

substituía a democracia liberal.

Devemos considerar, no entanto, que para além desses exemplos óbvios,

onde os mecanismos da fantasia são evidenciados, o cinema de Almodóvar é palco

permanente de carnavalização e paródia. Ele espelha constantemente os desejos

múltiplos transformados em fantasias que percorrem a sociedade, em todas as suas

variedades e possibilidades (Silva, 1996:70).

Sua voz é a voz de um submundo onde a carnavalização foi a segunda vida

para a sobrevivência. Ao falar do corpo, de seus desejos, do sexo, de suas taras,

Almodóvar “destrona e renova no plano material e corporal” (Bakhtin, 1987:334)

assistindo a uma liberação conseqüente da palavra e do gesto. A seriedade imposta

por Franco – interdita, ameaçadora, mentirosa, envenenada – foi destronada,

limpa e renovada pelo cinema almodovariano. Este buscou “preparar o terreno em

vista de uma nova seriedade audaciosa, lúcida e humana” (Bakhtin, 1987:334). Em

entrevista publicada na Folha de São Paulo, em 1º de maio de 1988, Almodóvar

afirmou que a Espanha era um dos países mais liberais e civilizados da época – fim

da década de 1980 - na Europa, principalmente porque desde o início da

democratização do país, todas as formas de censura caíram por terra. Em suas

54
próprias palavras: “Se existe uma imagem que descreve a Espanha de hoje esta é

de uma flor plenamente desabrochando”. (Folha de São Paulo, 1/05/1988:61)

Ao analisar esses primeiros filmes de Almodóvar, eu pretendi fazer um

pequeno apanhado de como sua filmografia se inscreve em um circuito político de

paródia ao velho regime franquista e às novas instituições democráticas da

Espanha da década de 1980. As considerações a fazer sobre o conceito de

carnavalização à obra de Almodóvar são muitas, e de forma alguma seriam

esgotadas nesse trabalho. Devemos levar em conta que essa filmografia traz à tona

um mundo mais próximo de nós, com o qual temos afinidades e que conhecemos.

Um mundo com o qual nos identificamos. Um mundo que por mais inverossímil

que seja, resulta em algo crível. Em seu livro-coletânea Cinema e História, Marc

Ferro utiliza a hipótese de que um filme é tão história quanto a História tirada dos

documentos oficiais escritos. Tudo o que aconteceu, e que também não aconteceu,

as crenças, as intenções, as lendas, o imaginário do homem são tão história quanto

a História (Ferro, 1992:86). Wilson Silva defende que apenas “assumindo o ponto

de vista do ‘coro popular rindo na praça pública’, Almodóvar pode constituir um

universo fílmico que, absurdo e irreal em uma primeira análise, está plenamente

sintonizado com a mentalidade de sua época” (Silva, 1996:58).

Impregnando seus filmes de imagens populares que ele sempre reivindicou

como fonte de inspiração, Almodóvar trouxe para sua obra riqueza, contradições e

complexidade referentes à sociedade espanhola e também do mundo ocidental, em

55
transformação. Uma sociedade disposta a reescrever seu passado, reinventando

seu futuro, deixando para trás muitos preconceitos e perdendo o medo dos

poderes celestiais e terrenos, tornando-se mais cética, sem perder a alegria de

viver.

Os próximos capítulos trarão análises específicas de filmes pertencentes às

fases posteriores de sua produção. Mulheres à beira de um ataque de nervos

(1989) e Ata-me (1990), pertencentes à segunda fase – cores fortes, situações

cômicas exageradas – Tudo sobre minha mãe (1999) e Fale com ela (2001), da fase

atual– dramas mais contidos, fotografia mais suave, roteiros mais concisos – foram

escolhidos por inúmeras razões. Concorreram aos maiores prêmios do cinema

mundial, tiveram uma maior visibilidade internacional, têm entre si, semelhanças

de temas na sua abordagem. Mas veremos estas e outras questões nos capítulos

adiante.

O cinema brasileiro no tempo de Almodóvar

Nesse momento, gostaria de traçar um paralelo com o que aconteceu no

período do fim da Ditadura Civil-Militar brasileira11, no campo cinematográfico.

11 A expressão “ditadura civil-militar” é utilizada por vários historiadores em lugar da mais divulgada
“ditadura militar” para reforçar a tese de que a sociedade civil participou ativamente, não só do golpe de
1964, mas também na sustentação do regime ditatorial. A união entre amplos setores civis, como a Igreja e o
IPES, e militares sempre dispostos a desatar nós institucionais e sociais com tanques e fuzis, foi uma resposta
a uma conjuntura internacional de radicalização, num mundo onde a Guerra Fria determinava os campos de
atuação ideológica. Para maiores esclarecimentos, ver Fico, Carlos, Além do golpe: versões e controvérsias

56
No manual organizado por Fernão Ramos, História do Cinema Brasileiro (1987), José

Mário Ortiz Ramos nos informa que “um significativo número de filmes liderados

pela questão política” (Ramos, 1987:440) marcaram a passagem da década de 1970

para 1980. Tantos os documentários como no caso de filmes ficcionais trouxeram

em suas temáticas, temas – greves, luta armada, tortura - que foram abafados pela

censura das décadas anteriores. Posição partilhada pelo historiador Alex Cassal.

Este afirma que o marco do Cinema Brasileiro nessa época foram os filmes que

retrataram a luta armada, a tortura, os anos de chumbo da ditadura brasileira.

Paula, dirigido por Francisco Ramalho em 1980, seria o primeiro de uma série de

filmes que resgataram esse dolorido passado recente brasileiro:

“Nas duas décadas seguintes, dezenas de filmes se voltaram


para os mesmos assuntos, expressando tanto uma visão do regime
quanto um panorama do próprio cinema brasileiro: suas opções
estéticas, ideológicas e históricas. Cineastas, roteiristas, atores e
produtores, com seus filmes, interpretaram e julgaram um tempo
do qual fizeram parte, num processo de reconstrução da memória.
Através destes filmes, se revela um passado multifacetado e em
constante movimento” (Cassal, 2002:6).

Os filmes produzidos nesse período e que abordaram esse tema, teriam

como tema “o confronto dilacerante com a ditadura” (Ramos,1987:441) e traziam

sobre 1964 e a Ditadura Militar, Rio de Janeiro, Record, 2004; Reis, Daniel Aarão, A revolução faltou ao
encontro. São Paulo, Brasiliense, 1990; Ridente, Marcelo, Em Busca do Povo Brasileiro – Artistas da
revolução, do CPC à era da TV, Rio de Janeiro, Record, 2000; Rollemberg, Denise, O apoio de Cuba à luta
armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro, Rio de Janeiro, Mauad, 2001; entre outros.

57
um personagem em comum: o revolucionário. Um indivíduo que optou, ou foi

levado a um enfrentamento radical contra o regime civil-militar. Para alguns, como

Ismail Xavier, algumas dessas obras teriam um estilo “naturalista de abertura”

(Xavier apud Ramos:1987:441). Outras seriam verdadeiros panfletos de

inventividade cinematográfica. Cassal desenvolve a idéia de que esse

revolucionário não é necessariamente real. “A figura histórica transforma-se, aqui,

num símbolo e numa idealização, moldados segundo os paradigmas de nossa

sociedade” (Cassal, 2001:7).

Podemos entender essa opção no cinema brasileiro a partir do entendimento

mesmo do processo de redemocratização do país, “um processo lento, gradual e

seguro”, como anunciara o Presidente Ernesto Geisel no final da década de 1970.

Esse processo foi feito por iniciativa do próprio governo, ou seja, de cima para

baixo. Este jamais perdeu o controle do processo e mais, imprimiu nele a sua

marca. A população civil esteve à margem de todo processo. Mas a “abertura

política” possibilitou novas interpretações sobre o passado. Cassal afirma:

“A partir da década de oitenta, revolucionários e ditadores


começam a ser reconstruídos na memória e no imaginário da
sociedade, adaptando-se aos papéis de heróis e vilões. A vocação
democrática do povo brasileiro é celebrada e estendida
retroativamente sobre o período de exceção. Descobre-se que,
durante duas décadas, todos estavam contra a ditadura –
silenciados, imobilizados, mas indubitavelmente contra a ditadura,

58
vista agora como ‘um pesadelo que é preciso exorcizar’. E os
criminosos, terroristas, subversivos, comunistas de há pouco
tornam-se heróis.” (Cassal, 2001:15)

Esses filmes resgataram com dignidade e talento sonhos e práticas políticas

heróicas constantemente criticadas e vilipendiadas pela ditadura e pela censura.

(Ramos, op. cit.) Dessa maneira, podemos afirmar que os anos de chumbo

representados pelo cinema brasileiro, a partir da década de 1980, também

passaram por um processo mitificador. As pessoas que viveram esse período, ao

serem retratadas em um filme, assumiram as características básicas necessárias

para que o espectador identifique ali um herói. Passaram a ter outro rosto, outra

voz e outras atitudes. Confundindo-se e sobrepondo-se ás personagens reais

tornaram-se personagens. Mas se o recurso usado na Espanha foi o da

carnavalização, a ‘movida’, aqui optamos por uma busca idealizadora de heróis, o

guerrilheiro que lutou contra a Ditadura. Ou de seus algozes, os militares da

Ditadura, vilões por excelência. E também “a consciência do que eles significaram

para si mesmos e para a história de seu país. Os revolucionários foram heróis não

porque fizeram grandes feitos, mas porque acreditaram que poderiam mudar o

mundo” (Cassal, 2002:73). Vale ressaltar também que algumas obras nesse período

passearam entre o ficcional e o documentário, resgatando também a figura mítica

do herói.

59
Outro segmento do cinema nacional que teve uma produção pungente nessa

época foi o mercado de filmes eróticos. Oriundos da Boca do Lixo paulista e

herdeiros da tradição das pornochanchadas, muito profícua na década anterior,

esses filmes logo caminharam para o sexo explícito, na esteira do fim da censura.

Mas essas produções tiveram um fim inesperado, talvez pelo esgotamento do

tema, apesar da boa resposta do público. Por fim, um incipiente “cinema jovem”

que compartilhava o interesse pela “juventude urbana, com impulsos de

transgressão vivencial, rondando às vezes a marginalidade” (Ramos, 1987:446).

Jovens à beira de um abismo, urbanos, modernos e talvez perdidos, na transição

democrática.

Cada um deles, a seu modo traduzem uma releitura de “nosso passado de

absurdos gloriosos”, como era de se esperar: o resgate de um herói silenciado pela

ditadura; a liberalização dos costumes através do sexo desenfreado e explicito;

uma nova realidade urbana e cosmopolita. Mas esses são estudos ainda por vir.

Sigamos em frente!

60
“Não estou curada!”

Doente, do latim dolens entis: adjetivo, enfermo (XIII), que tem doença; débil; fraco;
figurado, que sofre de um incômodo moral; apaixonado, obcecado em excesso;
substantivo, pessoa enferma.

Louco, de origem obscura: adjetivo, que perdeu a razão; doido; alienado (XIII);
insensato; imprudente; doidivanas; brincalhão; folgazão; apaixonado; arrebatado; furioso;
substantivo masculino, indivíduo que perdeu o uso da razão; demente.
(Cunha, 1997)

A doença, seja ela qual for, sempre acompanhou o homem em sua jornada

pela Terra. Porém, sua problematização no campo histórico é muito recente sendo,

anteriormente, objeto de reflexão de médicos e higienistas e associada a uma

história da medicina ou a uma epidemiologia histórica. A perspectiva, geralmente,

era de que a doença era algo natural e que o progresso da ciência e o

desenvolvimento de suas instituições iria controlar essa natureza.

A partir do fim dos anos 1950, inúmeros artigos foram publicados,

apontando para a importância dos estudos nesta área: Le Choléra: la premiére

epidémic du XIX sciécle, de Louis Chevalier, de 1958, Cholera and Society in the

Nineteenth Century, de Asa Briggs, de 1961, The Cholera Year The United States in

1831, 1849 and 1866, de Charles Rosenberg de 1962, Une ville devant la peste: Orvieto

61
et la pesre noire de 1348, de E. Carpentier, de 1962, são alguns exemplos12. Esses

artigos apontaram para uma lacuna da história social no que tange as abordagens

sobre como diferentes sociedades reagiram e interpretaram fenômenos epidêmicos

como as epidemias de cólera e peste nos séculos anteriores. Paul Slack, na

introdução de “Epidemics and Ideas” nos informa que os trabalhos de Asa Briggs e

Louis Chevalier, inauguraram uma tradição “showing how societies coped with,

reacted to and interpreted short-term but intense epidemic crises” (Slack, 1992:1). Ainda

que esses estudos tenham sido pioneiros, no entanto, não imprimiram o sentido de

construção social da doença, uma vez que as próprias concepções científicas que as

enquadram também são constructos sociais. De certa maneira, ainda havia muito

que se fazer.

Como mencionei anteriormente, a proposta da terceira geração dos Annales

de inclusão de novos objetos no começo da década de 1970, incluía um tímido

artigo de Jean-Pierre Peter e Jacques Revel, “O corpo: o homem doente e sua

história” (1976), onde eles afirmavam que

“o acontecimento mórbido pode, pois ser o lugar privilegiado de


onde melhor observar a significação do real de mecanismos
administrativos ou das práticas religiosas, as relações entre os
poderes, ou a imagem que uma sociedade tem de si mesma”
(Revel e Peter, 1976:144).

12 Estes artigos, entre vários outros posteriores, são citados por Paul Slack na introdução de
Epidemic and Ideas: esays on the historical perception of pestilence, Cambridge University Press, 1992.

62
Desse modo, podemos pensar que a doença, como fenômeno social, e

portanto construção, possibilita o conhecimento sobre estruturas e mudanças da

sociedade. Doença é representação e como tal é construída e, segundo Chartier

(1990), a representação é determinada pelo interesse dos grupos que as forjam. O

caminho inaugurado por Revel e Peter possibilitou inúmeros estudos que

culminaram em um campo hoje chamado de história das doenças. Esse campo do

saber é um dos caminhos para se compreender uma determinada sociedade, pois

avaliando a dimensão social da doença, como ela se mostra, entendemos que ela

“funciona como significante social – é um suporte e uma das expressões da

sociedade” (Nascimento, 2005:35).

Dentro dessa linha, diversos estudos realizados apontam para uma direção

que não se limita às fontes médicas mas que busca outras para a confrontação:

literatura, relatos de época, crônicas, canções, relatos orais, iconografia, filmes13. O

intuito seria de aí procurar a representação que se faz das doenças que acometem

essa mesma sociedade que as produziu.

O interessante dessa abordagem e dessa estratégia é poder perceber que os

discursos não são neutros, pois pretendem justificar suas escolhas e condutas.

13 Aqui podemos citar os trabalhos de Sendrail, Marcel, Histoire culturelle de la maladie, 1980;
Bertolli Filho, Cláudio, História social da tuberculose e do tuberculoso, 2001; Carrara, Sérgio, Tributo à
Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, 1996; Armus, Diego, El viaje al centro: tísicas, costureritas y
milonguitas em Buenos Aires, 2002; Delaporte, François, Le savoir de la maladie: essai sur le cholera de
1832 à Paris, 1990; Cueto, Marcus, El regresso de las epidemias, 1997; Tronca, Ítalo, As máscaras do
medo: Lepra e Aids, 2000; Porto, Ângela, A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um
poeta tísico, 1997; e Nascimento, Dilene Raimundo, As pestes do século XX; tuberculose e Aids, uma
história comparada, 2005, entre outros.

63
Trabalhando com as representações em geral e as que se fazem das doenças,

médicas ou não, supõe-nas “como estando sempre colocadas num campo de

concorrências e competições” (Chartier, 1990:17). Discursos médicos sobre

determinada doença e as imagens sociais que se constroem em torno delas podem,

às vezes, estarem em campos opostos, concorrendo uma imagem com a outra; por

vezes elas são complementares indicando uma mútua influência de saberes.

Claudine Herzlich, no artigo A Problemática da Representação Social e sua Utilidade no

Campo da Doença (2005) diz que há alguns pontos de referência nessa proposta de

trabalho e que um deles seria dar conta do fato de que uma representação social

pode funcionar como atributo de um grupo, ou seja, “grupos sociais podem

identificar-se, perceber-se, aliar-se ou rejeitar-se através dela” (Herzlich, 2005:3).

Saúde e doença não são apenas ausência e presença de agentes biológicos

mas negociações e acordos entre muitos saberes e atores sociais. A nomeação da

doença “como entidade patológica específica, passível de ser reconhecida e

diagnosticada [...] é motivador de ações de saúde pública ou privada específicas

com profundas conseqüências na vida social” (Hochman e Armus, 2004:18). Assim,

devemos pensar a doença dentro de um enquadramento, que circunscreve e é

estruturado por essa mesma doença, simultaneamente.

Esse conceito de enquadramento, que apenas citei no primeiro capítulo, é

desenvolvido por Charles Rosenberg na introdução de Framing Diseases: Illness,

society and history (1997). Como escrevi anteriormente, ele afirma que a doença,

64
como conceito, é um conjunto de construções verbais e sociais que refletem a

história institucional e intelectual da medicina, não sendo apenas um

acontecimento biológico. Essas construções visam legitimar políticas públicas,

constranger comportamentos individuais, sancionar valores culturais e estruturar a

relação médico-paciente. “In our culture a disease does not exist as a social phenomenon

until we agree that it does – until it is named” (Rosenberg, 1992:xiii). Essa noção é

compartilhada por Claudine Herzlich, que assinala que devemos levar em conta a

articulação entre a patologia de uma época, a configuração histórica e ideológica

que a contextualiza e o estágio de desenvolvimento da Medicina. Somente dentro

de uma determinada sociedade, a doença adquire significado. Como

representação, a doença reflete e constrói, simultaneamente, a realidade social

histórica (Herzlich, 2005:9).

Mas podemos afirmar que a doença, como evento biológico, existe. Em

animais, por exemplo, que não têm comportamento social ou cultural, mas que

sofrem a dor e os efeitos da enfermidade. Ou mesmo entre os humanos, antes de

ser classificada pelo conhecimento médico. Durante o século XIX, o processo de

nomear e classificar a doença foi se tornando central e ocorreu concomitantemente

com a medicalização dessas mesmas sociedades. Muitos médicos enquadraram

comportamentos como doenças, inclusive quando a base somática não é clara e

possivelmente não exista - histeria, a homossexualidade, a cleptomania ou a

anorexia, por exemplo - no intuito mesmo de justificá-los.

65
Percebemos então que a doença, assim como qualquer outro aspecto da

identidade individual, é uma construção. A medicina, tal como outras disciplinas

científicas às quais ela esteve tão ligada durante o século XIX, é ela própria um

sistema social. Nesse sentido, Rosenberg defende que a designação ‘história social

da medicina’ é tão redundante quanto a definição ‘história social da doença’. Cada

aspecto da história da medicina é necessariamente social mesmo quanto ocorrido

no laboratório, na biblioteca ou no leito. (Rosenberg, 1997:xiv) Dessa maneira ele

evita a expressão ‘construção social da doença’, preferindo desenvolver um outro

conceito.

“I have chosen to use the less programmatically charged metaphor


‘frame’ rather than ‘construct’ to describe the fashioning of explanatory
and classificatory schemes of particular diseases. Biology, significantly,
often shapes the variety of choices available to societies in framing
conceptual and institutional responses to disease: tuberculosis and
cholera, for example, offer different pictures to frame for a society’s
would-be framers.” (Rosenberg, 1997:xv)

Rosenberg afirma que, nas duas últimas décadas do século XX, houve um

interesse crescente pela história das doenças, sendo a construção social da doença

apenas um aspecto deste quadro de interesses. Há outros como a ênfase dada por

historiadores da história social sobre a experiência dos homens e mulheres comuns

em relação às doenças; o interesse nas políticas de saúde e as explicações sobre a

66
explosão demográfica na virada do século XIX para o século XX; o interesse de

uma chamada história ecológica, onde as doenças têm um papel fundamental na

história; a influência recíproca entre a demografia e a história; e finalmente, um

crescente interesse de como definições de doença podem servir de instrumento de

controle social para classificação de desvios e legitimação de determinadas ações

políticas ou sociais (Rosenberg, 1992:xv-xvi). Temos então um novo horizonte

historiográfico e uma gama variada de propostas e estudos a serem realizados.

Diego Armus afirma que todas essas novas propostas têm em comum a noção que

a doença é algo mais que um vírus ou uma bactéria pois somente após uma série

de acordos que revelam como a denominaram, de uma determinada maneira, é

que a percebemos como patologia (Armus, 2002:11).

Rosenberg, no entanto, adverte para perigos em relação a todas essas

perspectivas. Em primeiro lugar necessário se faz inventaria de modo bem claro o

processo de definição de doença; em segundo, discutir as conseqüências destas

definições nas vidas dos indivíduos. Nesse momento, nos lembramos da

advertência de Herzlich sobre a articulação entre a patologia de uma época, a

configuração histórica e ideológica que a contextualiza e o estágio de

desenvolvimento da Medicina. Idéia compartilhada por Armus que diz:

“las enfermedades cargan com um repertorio de práticas y


cosntrucciones discursivas que reflejan la historia intelectual e
institucional de la medicina, condensan una oportunidad para desarrollar
y legitimar políticas públicas, canalizan ansiedades sociales de todo tipo,

67
facilitan y justifican el uso de ciertas tecnologías, descubren condiciones
materiales de existencia y aspectos de las identidades individuales y
colectivas, sancionan valores culturales y estruturan la interacción entre
enfermos y proveedores de atención a la salud” (Armus, 2002:12)

O ponto mais importante nessa questão da nomeação de uma doença é que

ao enquadrar uma doença, os médicos usam os instrumentos intelectuais

disponíveis da sua geração. Entretanto, as concepções de doença não são puras

abstrações, porque elas são permeadas por pré-conceitos oriundos do lugar do

qual o médico fala. Elas têm um papel no estabelecimento da relação médico-

paciente. Uma tensão se estabelece nesse ponto. Por um lado, nos séculos

anteriores, o conhecimento leigo e médico sobre doenças se comunicava e este

conhecimento compartilhado tendia a estruturar as relações médico-pacientes. O

médico também atendia e cuidava de todos os problemas de saúde do seu

paciente. A partir do fim do século XIX, a especialização contribuiu, não apenas,

para que os leigos aceitassem mais o julgamento dos médicos, fazendo com que os

procedimentos no diagnóstico e a aceitação das categorias de doenças fossem mais

importantes nesta relação (Rosenberg, 1992:xviii), como também fez com que o

médico deixasse de atender o doente como um todo, observando apenas parte do

organismo.

Cabe ao historiador das doenças, perceber que, uma vez cristalizada na

forma de uma entidade, a doença pode servir como um fator estruturante das

68
relações sociais, tornando-se um ator social e uma mediação das relações sociais e

individuais. Uma vez enquadrada – frame – e aceita, a entidade doença torna-se um

ator numa rede complexa de negociações. A doença acabou sendo usada por

grupos distintos – médicos, ‘letrados’, políticos, compositores de tango, pacientes,

familiares – no intuito de regular e sancionar comportamentos. Foucault diz que

um saber médico-administrativo apresenta-se com ascendência sobre a população,

que enquadrada em prescrições sobre a doença, as formas gerais de existência e do

comportamento. A higiene deve ser vista como regime de saúde das populações.

Implica em intervenções autoritárias e de medidas de controle objetivando

promover o desaparecimento dos grandes surtos epidêmicos, promover a baixa

taxa de morbidade e o aumento da duração média de vida para cada idade

(Foucault, 2000).

Torna-se imperativo, na construção de uma história das doenças, o

confrontamento com outras fontes, que não as médicas, como apontei

anteriormente. No livro Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos, em relação à

Peste Negra, George Duby afirma: “É no campo cultural que as repercussões do

choque são mais visíveis. O macabro instala-se na literatura e na arte. Propagam-se

imagens trágicas, o tema do esqueleto, da dança macabra. A morte está em toda

parte” (Duby, 1998:86). As reações frente a qualquer doença também são

documentos, que devem ser lidos e analisados: políticas de saúde, deliberações

científicas, prescrições médicas, experiências de doentes ou parentes, o imaginário

69
produzido em torno da mesma, seja na Literatura, nas Artes Plásticas ou no

Cinema. Por isso proponho uma leitura dos filmes de Pedro Almodóvar para o

entendimento de algumas representações das doenças.

Mulheres Insanas

O filme Mulheres à beira de um ataque de nervos, de 1988, aproxima o

cineasta espanhol do grande público em geral. Fora da Espanha, Almodóvar estava

restrito a pequenos círculos cinéfilos de cidades como Nova York, Londres ou Rio

de Janeiro, mas ainda não havia se tornado um sucesso de público. Já haviam

realizado diversas retrospectivas de sua obra, então com oito filmes, incluindo aí

Mulheres à beira de um ataque de nervos, e Almodóvar era considerado sucesso

de critica. Aqui no Brasil não foi diferente. Sua recepção no Brasil foi calorosa e

arrebatadora. Apresentado em sessão hors concours no V FestRio, de 1988,

recebendo críticas muito favoráveis. Arthur Dapieve, então colunista no Jornal do

Brasil, o comparou a Nelson Rodrigues, por conseguir “captar com tanta

mordacidade e compaixão a cafonália que empolga a sensibilidade nacional”

(Jornal do Brasil, 18/11/1988, Caderno B:10). Isa Pessoa, escrevendo no jornal O

Globo, também o compara a Nelson Rodrigues:

“O espanhol nunca escondeu seu gosto por escândalos


suburbanos, o que freqüentemente aproxima suas histórias dos
dramas rodrigueanos. Mas Almodóvar afasta seus personagens de

70
culpas e amarguras, imprimindo ritmo de comédia mesmo quando
os personagens sofrem por abandono, preconceitos sociais, Aids,
angústias sexuais e obsessões diversas” (O Globo, 13/11/1988, 2º
Caderno:5).

Com esta película Pedro Almodóvar conseguiu sua primeira indicação ao

Oscar de melhor filme em língua não inglesa, concedido pela Academy of Motion

Picture Arts and Sciences dos EUA. Apesar deste prêmio ser norte-americano, a

projeção mundial foi instantânea. Eli Azeredo, escrevendo para o jornal O Globo,

diz que finalmente Pedro Almodóvar “sai do terreno dos cineastas talentosos,

porém ‘malditos’, e ganha a receptividade dos espectadores comuns” (O Globo,

18/11/1988, 2º Caderno:1).

Mulheres a beira de um ataque de nervos é um filme de forte participação

feminina, mas o que me interessa aqui não é a questão de gênero. O centro da

narrativa está em Pepa (Carmem Maura), recém abandonada por seu amante Ivan

(Fernando Guillén). Em torno deles temos uma gama de personagens como

Candela (Maria Barranco), Carlos (Antonio Banderas) e Marisa (Rossy de Palma) e

Lucia (Julieta Serrano) ex-esposa de Ivan e mãe de Carlos.

Pepa teve uma briga definitiva com Ivan e agora tenta desesperadamente

reencontrá-lo. São dois dias de intensa busca infrutífera, uma vez que Ivan não

quer revê-la e está de viagem marcada com a advogada Paulina Morales (Kiti

Manver), sua nova amante. Pepa busca Ivan por toda Madrid, sempre voltando

71
solitária para sua cobertura, em suas próprias palavras - uma espécie de arca de

Noé onde ela tentou salvar vários casais de animais não conseguindo salvar o

principal: eles mesmos. Nessa busca acaba por acaso, conhecendo Carlos, filho de

Ivan com sua primeira esposa, Lucia. Ele e sua noiva Marisa vão conhecer a

cobertura em que Pepa vivia com Ivan e que agora ela pretende vender.

Conversando com Carlos, Pepa acaba descobrindo que Lucia foi internada em um

sanatório logo após o parto de Carlos, tendo permanecido aí até bem pouco tempo

quando os médicos a declararam curada. Lucia saiu de um sanatório e processou

Ivan pelos anos perdidos na internação.

O comportamento de Lucia, no entanto, é muito estranho. Veste-se como 20

anos atrás, com perucas e assessórios extravagantes. Na verdade, o tempo para ela

não passou e acredita que Pepa e Ivan ainda vivem juntos, não suportando essa

idéia. Ao descobrir o endereço da cobertura de Pepa, é para lá que se dirige. A

conversa entre as duas é tensa. Lucia conta que não se lembrava de nada enquanto

estava internada. Mas, um dia, assistindo televisão escutou a voz de Ivan. Não

reconheceu o rosto, mas a voz era inconfundível. E ela, a voz, dizia que amava uma

outra mulher. A mesma voz que tantas vezes havia dito a mesma Lucia que a

amava. Desse dia em diante, Lucia despertou de seu esquecimento e engendrou

um plano de vingança. Avaliada por médicos foi considerada curada mas Lucia

afirma categórica: “Não estou curada!”. A cura de Lucia foi seu ódio por Ivan e

Pepa. Esta tenta explicar que ela também foi abandonada por Ivan e que ele está de

72
viagem marcada com sua nova amante, que vem ser justamente a advogada que

ajudou Lucia a processá-lo.

Armada, Lucia vai atrás de Ivan no aeroporto disposta a matá-lo. Pepa então

resolve impedir esse assassinato, iniciando uma perseguição hilária, que evita o

desfecho trágico.

As perguntas que faço diante desse filme são por que Lucia foi internada,

considerada louca? E quem a considerou curada? Extrapolando para fora do filme:

O que é ser doente? O que é estar curado? Quem detém esse monopólio?

Seguindo as noções de Rosenberg (1995), doença é, ao mesmo tempo, um

evento biológico, um repertório de conceitos refletindo determinado momento da

história da medicina, uma ocasião potencial para legitimação de certas políticas de

saúde, um aspecto de identidade social ou individual, uma ratificação para valores

culturais e um elemento estrutural na relação médico-paciente. De certa forma, a

doença não existe até que tenhamos concordado que ela exista, através da sua

percepção, classificação e resposta. Esse processo se dá a partir do momento em

que há uma necessidade de se enquadrar, nomear e entender a doença como tal. A

conseqüência direta desse entendimento envolve constranger, legitimar e moldar

comportamentos individuais e políticas públicas. Resumindo, “a doença existe a

partir de uma espécie de negociação e acordo entre múltiplos atores” (Hochman e

Armus, 2004:17). Mas o intermediador dessas negociações, a partir da noção de

73
enquadramento, é o saber médico. George Rosen (1994) nos relata que uma

preocupação no pensamento iluminista do século XVIII era uma versão racional da

consciência médica sobre a saúde pública. Vários hospitais, hospícios e

dispensários foram construídos com o objetivo de recolher as massas de doentes,

promover o bem-estar dos cidadãos e imprimir na mente das pessoas a atenção

necessária com a higiene e a saúde, ajudando a produzir novos hábitos e

comportamentos em relação aos cuidados com a saúde pública e o saneamento

(Rosen, 1994:113).

Mas estou me adiantado no assunto. Voltemos aos filmes.

Jovens Insanos

Eduardo Magalhães, escrevendo para o jornal O Globo nos avisa que Ata-

me não é uma comédia rasgada como seu filme anterior; antes, revela o “lado mais

romântico do [diretor] espanhol” (O Globo, 23/11/1990, 2ºCaderno:4). Outra

crítica, publicada no mesmo jornal, diz que, embora o resultado seja interessante,

fica muito aquém da expectativa (O Globo, 24/11/1990, 2ºCaderno:4). Lançado nos

cinemas comerciais na expectativa de repetição do sucesso comercial do filme

anterior, Ata-me não foi planejado para nenhum festival de cinema no Rio de

Janeiro.

74
Ata-me traz uma situação muito semelhante no que tange o encarceramento

do louco, observado no filme anterior. A abertura do filme é uma pintura que aos

poucos vai se fundindo a uma imagem de um hospital psiquiátrico, mesmo que

ainda não saibamos disso. Um rapaz, Ricky (Antonio Banderas), conserta uma

porta. É chamado pela diretora da instituição (Maria Barranco) que lhe dá uma

notícia. O juiz decidiu pela sua soltura. Em meio a uma crise de choro, afirma: “Ser

livre significa também estar só. Agora você é responsável pelos seus atos perante a

lei.” De agora em diante Ricky pode se integrar à sociedade novamente. Pergunta

então quais são seus planos e Ricky afirma que vai trabalhar e constituir família

“como qualquer pessoa normal”. A diretora afirma categórica: “Você não é uma

pessoa normal!”. Ricky responde que o juiz decidiu que sim ao que a diretora

retruca: “O que sabe o senhor Juiz?”. Sabemos então que os dois foram amantes.

Corte para o quarto onde Ricky guarda seus pertences. Ali ele trava um

diálogo com um dos internos (Oswaldo Delgado) que o pergunta se ele vai fugir

novamente. Ricky responde que não, desta vez o juiz o soltou e o reintegrou à

sociedade. O paciente responde: “Também já pertenci à sociedade! Você não

deveria confiar nela”.

Ricky sai do Hospital Psiquiátrico e anda nas ruas em meio a uma multidão

de anônimos curtindo sua recém liberdade. Afinal quem é normal ali e quem não

é? Entra em um ônibus e folheia uma revista. A câmara acompanha os olhos de

Ricky e vemos uma matéria sobre a gravação de um filme B com a atriz pornô

75
Marina Osório (Victoria Abril). Ricky vai até o estúdio e entra furtivamente no

camarim da atriz, roubando seu endereço, suas chaves de casa e dinheiro entre

outras coisas. Deixa de presente uma caixa de bombons em formato de coração.

Disfarçado com uma peruca, fica a espreita, observando Marina de longe.

Maximo Espejo (Francisco Rabal), o diretor do filme, dá uma entrevista.

Sofreu um derrame e está preso a uma cadeira de rodas. Diz à repórter que

aprendeu tudo de novo: falar, ler, escrever, mas sobretudo a continuar vivendo.

Por isso resolveu filmar de novo. O filme representa sua vitória sobre a

enfermidade.

Enquanto a cena final do filme é rodada, Ricky continua a observar Marina

furtivamente. Aos poucos vamos ficando intrigados com seu comportamento. Mas

a culminância dessa seqüência se dá quando Ricky finalmente invade o

apartamento de Marina e a agride. Quando ela acorda, Ricky revela suas intenções:

ele a raptou para que ela o conhecesse melhor e se apaixonasse por ela como ele é

apaixonado por ela. Diz: “Tenho 23 anos e 50.000 pesetas. Quero ser um bom

marido e um bom pai para seus filhos.” A relação inicial entre raptor e prisioneira

é tensa e violenta. Marina é viciada e precisa de drogas fortes para aplacar a dor

dos ferimentos provocados por Ricky. Ele sai às ruas para comprar algo e é

assaltado. Volta todo machucado e Marina se compadece dele, fazendo seus

curativos. Ali eles começam a se beijar e acabam fazendo sexo. Após essa cena,

Ricky explica a Marina que a havia conhecido em sua última fuga, um ano antes. E

76
mostra sua trajetória desde os três anos, órfão de pai e mãe, até o momento em que

a conheceu. Desde então só pensava nela. Em suas palavras: “E já que fiquei

ocupado pensando em ti, não fiz mais loucuras e fiquei normal.” Sem tempo para

pensar em outras loucuras, acabou sendo considerado curado pelo juiz. Marina é a

sua ‘normalidade’. Marina apaixona-se por Ricky, mas sua irmã, Lola (Loles Leon),

a acha e a liberta. Marina foge com sua irmã e deixa Ricky só.

Novamente faço a mesma pergunta: O que é ser doente? O que é estar

curado? Quem detém esse monopólio? O que leva as pessoas a classificarem

alguém doente a ponto de encarcerá-lo em uma clínica e depois afirmar que este

está curado e soltá-lo?

Um pouco de Teoria

Para Marc Ferro (1992), o cinema é um testemunho singular de seu tempo,

pois está fora do controle de qualquer instância de produção, principalmente o

Estado. O cinema possui uma tensão que lhe é própria, trazendo á tona elementos

que viabilizam uma análise da sociedade diversa da proposta pelos seus

segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição. O filme atinge as

estruturas da sociedade, e ao mesmo tempo, age como um contra poder por ser

autônomo em relação aos diversos poderes desta sociedade.

77
O cinema permite o conhecimento de regiões nunca antes exploradas.

Descobrir a porta que nos leva a estes caminhos significa salientar os lapsos

deixados pelo diretor e seu produto. Cabe salientar que esses caminhos são

indicados de maneira inconsciente pelo próprio diretor. A análise da linguagem

cinematográfica comprovaria sua tese. Para Christian Metz14 (apud Stam, 2002)

todos os filmes são ficções porque são representações. Para o autor, a atividade de

‘representação’ marca necessariamente qualquer obra cinematográfica, já que é

incontornável a presença de uma subjetividade produtora que dá forma, organiza

e seleciona. A realidade não poderia nos falar diretamente através de algum

suposto instrumento de registro neutro e objetivo, mas apenas através das

representações construídas por sujeitos histórica e ideologicamente determinados.

A contra análise da sociedade é fornecida de várias maneiras pelo cinema.

Em primeiro lugar, por meio de uma variedade de informações, como gestos,

objetos, comportamentos sociais etc, que são transmitidos sem que o diretor queira.

Em outro momento, por meio das estruturas e organizações sociais, essencialmente

nos filmes não documentários, que não tem a função de informar.

Devemos, então, pensar o cinema também como linguagem, como propõe

Metz. O cinema é uma linguagem não apenas em um sentido metafórico mais

amplo, mas também como um conjunto de mensagens formuladas com base em

14 Christian Metz foi um semiólogo e teórico do cinema francês e um dos primeiros a tentar
interligar a semiologia ao cinema. Para melhor entendimento ver A significação no cinema (1977) e
Linguagem e cinema (1980), por exemplo.

78
um determinado material de expressão, e ainda como linguagem artística, um

discurso ou prática significante caracterizada por codificações e procedimentos

ordenatórios específicos. A linguagem cinematográfica engloba todas as técnicas

utilizadas na seleção e captação de imagens - planos, ângulos, movimentos de

câmera, enquadramentos, iluminação, cenários etc - que resultam na sua força

expressiva autônoma (a de uma só representação visual), assim como as formas de

relacionamento entre elas (as seqüências produzidas pela montagem).

Dessa maneira, proponho um misto de interpretações, uma vez que a

proposta de Ferro de não utilizar o filme do ponto de vista semiológico nem como

obra de arte, mas como um produto, cujo significado não é somente

cinematográfico, é um tanto limitada. Essas técnicas ou habilidades devem ir além

da simples denotação, do nível primário do que é visto. Seria indispensável

também, artisticamente falando, provocar associações mentais e emocionais mais

abrangentes ou densas, ou seja, ser capaz de gerar conotações ou relações

simbólicas. Sua validade vai além do testemunho, mas “também pela abordagem

sócio-histórica que autoriza” (Ferro, 1992:87). Dessa maneira, a análise não incide

necessariamente sobre a totalidade da obra, podendo se apoiar sobre trechos,

pesquisar séries ou compor conjuntos. A crítica também não se limita ao filme, se

integrando ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica. Devemos ir além do

filme e não ficar “a meio caminho entre o filme como fonte e como objeto”

(Cardoso e Mauad, 1997:412) como Flamarion e Mauad acreditam que Ferro faz.

79
Mirian Nogueira escreve em seu artigo ¡Ata-me! última parada do desejo (1996)

que Almodóvar “busca tirar de seus personagens uma alma que os torna

verossímeis” (Nogueira, 1996:304). Eles são absurdos sim, mas como não acreditar

em suas paixões e desejos? “A dona de casa de Almodóvar não reflete apenas uma

dona de casa qualquer – ela é recriada ao converter-se em signo, não uma figura

estanque, mas uma carga de significações infinitas” (Nogueira, 1996:304).

A dona de casa, a esposa traída, o louco. Esses personagens são signos

dotados de uma carga de significações maiores. A loucura é um estado nosológico

bastante complicado de se explicar. Sem agentes externos, como vírus ou bacilos, é

a subjetividade do diagnóstico que permite que alguém seja considerado louco ou

são. A pesquisadora Cristiana Facchinetti afirma que “a psiquiatria foi mesmo

criada com a função de controle de comportamentos e emoções considerados

anômalos; ainda hoje ela se apresenta com este objetivo” (Facchinetti, 2004:296).

Dessa maneira, encerrando nossos loucos em asilos há mais de dois séculos, os

isolamos do convívio da sociedade, em uma tentativa de normatizar a sociedade.

“No século XVIII, trancafiavam-se os loucos em prisões, casas de correção, asilos e

hospícios” (Rosen, 1994:122). A insanidade estava associada ao pecado e a

superstição e condenação moral dominavam o tratamento do louco. Ainda que

alguns médicos propusessem mudanças nos métodos, tais como alimentação,

exercícios e atividades ao invés das correntes, essa não era “uma ação positiva

sobre o doente ou a doença, mas simplesmente uma anulação dos efeitos negativos

do hospital” (Foucault, 2000:103). O louco continuou a ser recolhido, pois não fazia

80
parte da ordem social. De fato, no século XIX, a definição para alienado era aquele

que não tem consideração por nenhuma regra, nenhuma lei, nenhum costume,

cujas ações estão sempre em oposição tanto aos hábitos do país em que habita

quanto ao que existe de humano e racional. Da mesma forma, a loucura seria

sinônimo de agitação, exagero e periculosidade, “um excesso que é falta” (Foderé

apud Engel, 1999:548). Passado quase dois séculos, as noções sobre a loucura

parecem ainda serem as mesmas.

A sociedade ocidental contemporânea produz e naturaliza uma visão do

sofrimento psíquico como objeto de intervenção da ciência, seja ela médica ou de

outras práticas psiquiátricas. Nesse contexto, o sofrimento psíquico recebe o rótulo

de ‘doença mental’, com quadros claramente delimitados. O objetivo final, ou seja,

a cura, pode até ser conceituado de maneiras diferentes, mas raramente, escapa à

noção de readaptação a um mundo do qual ele não faz parte ou ao qual se mostra

estranho (Silveira e Braga, 2005).

Assim, a prática de cura da loucura geralmente inclui a reinserção do ‘louco’

à sociedade. Estes podem se readaptar, ou não. Um estudo realizado na Argentina

sobre as representações sociais de saúde mental em um contexto de reforma

psiquiátrica visando a desmanicomialização, ou seja, a desisternação dos doentes

mentais, mostrou que a busca pela defesa dos direitos humanos dos doentes

mentais levou a uma confrontação de vários especialistas na área: de um lado,

propostas tradicionais de terapia e assistência; de outro, projetos inovadores com

81
um mesmo objetivo: “respuestas sanitarias no asilares (redución del número y tiempo de

internación, respuestas rápidas y eficientes a las crisis, acciones de prenvención)”

(Murekian et al, 2002:127). O estudo mostra, a partir das considerações de Serge

Moscovici sobre representações sociais, que a desmanicomialização se incluiria na

categoria de representações polêmicas, uma vez que confronta a representação

hegemônica de que o louco deve permanecer internado. O trabalho conclui que a

investigação avança em uma articulação construtiva dentro do circuito gerador de

novas representações no campo da saúde mental. Mas que de um modo geral,

essas mudanças se processam muito vagarosamente e não são espontâneas,

estando ainda arraigadas, principalmente nas classes mais abastadas.

Percebemos então, que as noções de que o louco deve ser internado e ali

permanecer são ainda fortes em nosso meio. A representação de que o louco é um

perigo social herdada dos séculos XVIII e XIX fazem parte de nosso imaginário.

Para eles não há negociação. E são essas representações que os filmes trazem.

Lucia e Ricky foram internados, e ali permaneceram até que um poder

médico – no caso de Lucia – ou jurídico – no caso de Ricky – decidiu que eles não

eram mais loucos e que podia se reintegrar à sociedade. Eles, porém, são

representados ainda como loucos, ou não ajustados ao mundo que os cerca. Lucia

se veste e comporta como se o tempo não tivesse passado. Para ela, seu marido

ainda vive com a amante e é deles que ela quer se vingar. Confrontada com sua

pretensa rival, ela avisa “Não estou curada!”. Frustrada em sua vingança, ela se

82
entrega novamente ao poder que a encarcerou. Porém desta vez, é a polícia quem a

leva embora.

Ricky, igualmente, tem um comportamento fora da convencional

normalidade: rouba, espanca, agride. Ao sair do hospital psiquiátrico, um velho

paciente avisa: “Não confie na sociedade!”. Os riscos são grandes. Se ele não se

comportar, podem mandá-lo de volta. Sua esperança reside em um amor que

ainda não existe. Marina não o conhece, nem sabe de sua existência. Mas ainda

assim ele vai a sua procura. Sua proposta? “Tenho 23 anos e 50.000 pesetas. Quero

ser um bom marido e um bom pai para seus filhos.” Seu desejo é fazer parte da

sociedade que o rejeitou, constituir família, casar ser normal. Marina representa a

‘cura’ para Ricky, sua salvação, sua negociação para voltar a conviver em

sociedade. Ao ser rejeitado por Marina, Ricky foge para sua antiga casa, em uma

vila destruída no interior da Espanha. A casa paterna representa sua última

esperança de fazer parte da sociedade.

Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, Pedro Almodóvar

afirma que o personagem Ricky é bastante ingênuo e inconsciente e que isso é que

permite que ele se levante todos os dias com entusiasmo, pois não perderam a

ilusão de viver. “O otimismo, a vitalidade, ter uma grande disposição de viver são

qualidades imprescindíveis para sobreviver à crescente hostilidade que nos

rodeia” (Folha de São Paulo, 31/07/1994, Ilustrada:A3).

83
Duas maneiras de atribuir significados à loucura. Lucia, representando o

arcaico, aquilo que não tem mais vez, o ultrapassado, sem chance de negociações;

Ricky, representando o novo, o vir-a-ser, o futuro, a negociação, mesmo sendo pela

via da violência. A repórter Fernanda Scalzo, escrevendo sobre os filmes de Pedro

Almodóvar, afirma que

“cheios de histórias bizarras, seus personagens não deixam


de ser comuns – na maneira como falam, comem ou fazem xixi de
porta aberta. Vivem num mundo divertido, ultracolorido – a parte
mais facilmente assimilável do ‘universo almodovariano’” (Folha
de São Paulo, 31/07/1994, Ilustrada:A3).

Os personagens de Almodóvar, apesar de habitarem um universo

cheio de cor e viverem situações bizarras, não fogem daquilo que nos fazem

humanos. As representações são plausíveis, pois seus sentimentos são reflexos dos

sonhos e desejos não só do diretor e roteirista. Mas de todos nós. Assim podemos

perceber que as representações da sociedade que imprime nos seus filmes não

estão tão longe assim da realidade.

84
“Sempre dependi da ajuda de estranhos”

Solidariedade, (1888): substantivo feminino, qualidade do que é solidário;


responsabilidade mútua; reciprocidade de interesses e obrigações; Jurídico, estado de
várias pessoas em que cada uma delas se obriga por todas e por tudo, no caso de falta de
pagamento por parte das outras.

Ética do latim ethica ou do grego ethiké: substantivo feminino, ciência da moral; moral;
Filosofia, disciplina filosófica que tem por objeto de estudo os julgamentos de valor na
medida em que estes se relacionam com a distinção entre o bem e o mal.
(Cunha, 1997)

A chave de análise dos filmes Tudo sobre minha mãe e Fale com ela é a

ética e a solidariedade para com os doentes e sua relação com outras pessoas. Mas

o que é ética, afinal de contas? Essa não é uma pergunta fácil de se responder.

Professor José Roberto Goldim15 aponta que o consenso está longe de ser

alcançado. A origem pode estar ligada a duas palavras em grego: éthos com um ‘e’

curto, que significa ‘costume’; éthos, com ‘e’ longo, significando ‘propriedade do

caráter’ (Goldim, 2006). A segunda palavra evoluiu para a palavra ethiké, que

serviria de base para a definição acima lida, segundo o Dicionário Aurélio.

Fora do âmbito etimológico, podemos afirmar que a ética é a investigação

sobre aquilo que é bom, segundo Moore (apud Goldim, 2000); ocupa-se e pretende

a perfeição do ser humano (Cholet apud Goldim, 2000) ou ainda um conjunto de

15 Doutor em Medicina pela UFRGS, trabalha na linha de pesquisa Respeito à Pessoa e Ética em
Pesquisa. É membro do Conselho Consultivo da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.

85
regras, princípios e maneiras de pensar que guiam ou chamam a si a autoridade de

guiar as ações de todas as sociedades humanas (Singer apud Goldim, 2000).

Podemos dizer também que a ética é a ciência do dever e da obrigatoriedade, que

regem a conduta humana (Campos et al, 2002). No senso comum ética significa um

conjunto de normas e princípios que regem as ações do homem. E também pode

referir-se a um conjunto de princípios e normas que um grupo estabelece para seu

exercício profissional, por exemplo, os códigos de ética dos médicos, dos

advogados, dos psicólogos e outros profissionais (Governo Federal)

Essas normas e princípios estiveram pautados pela visão de mundo de cada

sociedade em seu tempo. Assim, se no mundo grego, Aristóteles “subordina a ética

à política” (apud Campos et al, 2002) pois a aristocracia é a classe de mais alta

virtude, no mundo cristão medieval, São Tomás de Aquino traz a idéia que

somente a partir de Deus é que podemos alcançar a verdadeira ética, uma vez que

o Homem é fraco e pecador. A partir do século XVII, influenciados pela crença de

que a Razão - e não a Fé - é o caminho para se alcançar a verdade, pensadores,

como Kant, afirmam que devemos nos submeter ao dever: “Age apenas segundo

uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”

(apud Campos et al, 2002). A ética moderna era claramente influenciada pelos

princípios cristãos. Hagel, já no século XIX, partindo de uma nova perspectiva, nos

apresenta a relação ‘Homem/Cultura/História' e afirma que a ética deve ser

determinada pelas relações sociais. Os valores culturais devem ser interiorizados

de tal maneira que passamos a praticá-los sem nem mesmo pensar neles.

86
O mundo contemporâneo incorporou essas duas últimas correntes – Kant e

Hagel – uma vez que o Homem tem a capacidade de julgar mas não possui a

consciência totalmente livre. Weber, em seu livro Ciência e Política: Duas Vocações,

aponta para um dualismo ético: “qualquer atividade orientada segundo a ética

pode ser subordinada a duas máximas inteiramente diferentes e irredutivelmente

opostas. Pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética

da convicção” (Weber, 2006:114). O partidário da ética da convicção deveria vigiar

a doutrina pura e seus atos visariam apenas estimular perpetuamente a chama da

própria convicção. A ética da responsabilidade, por sua vez, teria como guia as

previsíveis conseqüências dos atos: “o partidário da ética da responsabilidade, ao

contrário, contará com as fraquezas comuns do homem [...] e entenderá que não

pode lançar a ombros alheios as conseqüências previsíveis da sua própria ação”

(Weber, 2006:115). Já Nietzsche atribuiu a origem dos valores éticos à emoção e não

à razão. Para ele, o homem não deve reprimir os impulsos e desejos em nome de

uma moral repressora. E temos Freud, que apesar de nunca ter afirmado que o

Homem precisa equilibrar paixão com razão, trouxe uma mudança radical para

esse horizonte com sua descoberta do inconsciente, instância que controla e

neurotiza o homem. A mesa está posta para a crise em que nos encontramos

atualmente.

Hannah Arendt em seu livro A Condição Humana (1981) diz que a única

afirmação sobre a natureza dos homens é que somos condicionados. Para ela, a

condição moderna traz um processo de negação e desvalorização da vida ativa,

87
que seria o ‘agir político’. Hoje precisamos dominar o progresso técnico e científico.

Ser feliz é ter. Hoje apostamos no individualismo, no consumo e na rapidez de

produção. Vivemos uma crise de ética, pois ela se fundamenta em seguir normas.

Também vivemos uma outra crise: a ética comporta um conjunto de valores

universais ou ela é relativa?

Assim vivemos numa ‘era do vazio’, para tomar emprestado o título do

livro de antropólogo Gilles Lipovetsky (2005), “um tempo de enfraquecimento da

sociedade, dos costumes, do indivíduo contemporâneo da era do consumo de

massa, a emergência de um modo de socialização e de individualização inédito,

uma ruptura com o que foi instituído a partir dos séculos XVII e XVIII”

(Lipovetsky, 2005:xv). A pós-modernidade, surgida no cenário intelectual durante

a década de 1970, instalou a crise que já se avizinhava, com mais fervor:

“Esgotamento de uma cultura hedonista e vanguardista ou


surgimento de um novo poder renovador? Decadência de uma
época de tradição ou revitalização do presente por meio de uma
reabilitação do passado? Novo modo de continuidade na trama
modernista ou descontinuidade? Peripécia na história da arte ou
destino global das sociedades democráticas?” (Lipovetsky,
2005:59)

A sociedade pós-moderna vive para consumir cada vez mais: objetos,

formação, relações, música, informação e cuidados médicos. O auge do

88
consumismo, sua apoteose. Consumindo nossa própria existência, caminhamos

para um individualismo sem precedentes: a diversificação das possibilidades de

escolha, a liquefação dos pontos de referência, a corrosão lenta do sentido único e

dos valores da modernidade. Mas se por um lado, a pós-modernidade destrói, por

outro ela permanece com um valor indiscutível: “o indivíduo e seu direito cada

vez mais proclamado de se realizar à parte, de ser livre na mesma medida em que

as técnicas de controle social desdobram os dispositivos mais sofisticados e

humanos” (Lipovetsky, 2005:xxi)

Dito desta forma, nossas finalidades não nos são impostas, no sentido que

“a ética não se impõe imperativamente nem universalmente a cada cidadão: cada

um terá de escolher por si mesmo os seus valores e ideais, isto é, praticar a auto-

ética” (Morin, 1998:67). A construção dessa ética para o futuro requer um esforço

incomensurável, uma vez que precisaremos estabelecer horizontes para a vida,

idéias e cultura planetárias. “A fabricação do real teria que se pautar pela

combinação do intelecto e da emoção, da beleza e da verdade, do necessário e do

contingente, da harmonia e do caos” (Carvalho, 1998:12).

Globalização, mundialização e pós-modernidade são expressões cercadas de

ambigüidade que

“carregam uma abertura para o universal e um fechamento


para o particular regressivo, assim como uma inclusão pelos
mecanismos perversos do mercado, aliada a uma exclusão

89
multiforme pelo desemprego, pela fome, pela miséria, pela
cultura” (Carvalho, 1999:25).

Ainda que pensemos que os ideais revolucionários franceses – Liberdade,

Igualdade e Fraternidade – sejam universais e aplicáveis no mundo

contemporâneo, sabemos de antemão que isso não é nem verdade nem possível. O

planeta comporta-se como um furacão, sem um centro organizador, sem

hegemonia. Vivemos em um mundo incerto, caótico e frágil. Mesmo em uma

perspectiva de mundo contemporâneo-industrial-ocidental-cristão. Assim diversos

estudiosos se debruçam sobre estas questões, discutindo alternativas para o beco

sem saída que a humanidade ruma. O filosofo Hans Jonas diz que o princípio da

responsabilidade - entendida como empenho, consciência, escrúpulo, moralidade,

fraternidade - deve estar na base da ética moderna devido ao extraordinário poder

adquirido pelo homem, suficiente para modificar o ambiente planetário incluindo

aí os seres vivos que nele habitam. “Tudo isso põe a responsabilidade no centro da

ética, com horizontes temporais e espaciais que correspondem exatamente aos das

ações” (Jonas apud Berlinguer, 2003:191).

Substituindo a Santa Trindade por uma Trindade Cívica, Edgar Morin

afirma que a finalidade desta última é a Fraternidade, uma vez que ela é

simultaneamente meio e fim, com um significado antropológico universal (Morin,

1998). Assim, devemos nos preocupar com a “restauração do sujeito responsável”,

condição sine qua non para o conhecimento objetivo, ou seja, a exigência do auto-

90
exame, a consciência da responsabilidade pessoal e o encargo autônomo da ética.

Essa restauração nos levaria a uma ética política, que deve conter algumas idéias-

guia nas suas formulações. Seriam elas:

a) a ética da religação, ou seja, tudo que nos faz comunicar, associar,

solidarizar e fraternizar;

b) a ética do debate, que longe de descartar a polêmica, a utiliza, exigindo a

primazia da argumentação;

c) a ética da compreensão, que nos permite conhecer o sujeito como sujeito e

reumaniza o conhecimento político;

d) a ética da magnanimidade, da clemência, da generosidade e da nobreza,

para quebrar os ciclos intermináveis de vingança e punição;

e) a incitação às boas vontades, pois somente a livre associação de todos

poderá salvar a humanidade do desastre;

f) a ética da resistência, talvez a única resposta contra o barbarismo que se

amplia dentro da civilização. (Morin, 1998)

Edgar Carvalho salienta que devemos tomar essas idéias-guia como

arquétipos, “uma forma irrepresentável e inconsciente que sempre existiu, mas que

perdeu sua capacidade de influenciar os comportamentos humanos” (Carvalho,

1999:27). Nosso dever seria retomar essas idéias em um esforço coletivo no intuito

91
de construir uma ética que respeite o Homem estimulando a consciência de

pertencimento. Assim, tendo em mente que nós vivemos duas experiências

cruciais, a saber, a repetição, que permite a construção de determinismos e a

criatividade, que reinventa o mundo (Prigogine apud Carvalho, 1999), devemos

promover uma revolução capaz de enfrentar propagação do conformismo e

reapropriar o sujeito à história.

Gostaria então de avaliar dois filmes de Pedro Almodóvar dentro da

perspectiva de “restauração do sujeito responsável”, partindo e chegando às

idéias-guia de Edgar Morin. As idéias-guia serão os arquétipos e a AIDS e o coma

prolongado, por inspirarem reações controversas e apaixonadas, foram escolhidos

para servirem de contraponto

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

Tudo sobre minha mãe é o filme mais premiado na carreira de Pedro

Almodóvar. Desde sua estréia na Espanha, em 1999, passou pelos melhores

festivais de cinema no mundo, onde colecionou inúmeros prêmios. A consagração

máxima veio com a indicação – e posterior premiação – para o Oscar de melhor

filme em língua não inglesa. Exatamente 10 anos após sua primeira indicação por

Mulheres à beira de um ataque de nervos em 1989. Aqui no Brasil, foi exibido no

92
Festival do Rio16, de 1999, cercado de inúmeras expectativas. A crítica publicada no

jornal O Globo, assinada por Carlos Heli de Almeida, afirmava que “Pedro

Almodóvar já pode aposentar os títulos de ‘enfat terrible’ do cinema espanhol e rei

do cinema kitsch – e sem qualquer baixa na sua reputação de cineasta dos

sentimentos à flor da pele. Tudo sobre minha mãe é o mais adulto dos filmes do

autor” (O Globo, 27/09/1999, RioShow:15). Hildegard Angel, em sua coluna

escreveu que “o grande sucesso de público e de opinião do Festival do Rio de

Cinema disparado é o Tudo sobre minha mãe. Já é o campeão do festival, de

bilheteria e de opinião. O que era de se esperar” (O Globo, 21/09/1999, 2º

Caderno:3).

Para uma melhor análise, estruturei o filme Tudo sobre minha mãe em três

partes distintas: uma introdução, o desenvolvimento e resolução do filme e um

breve epílogo. O filme narra a vida de Manoela (Cecília Roth), uma enfermeira

argentina que vive em Madri com seu filho Esteban (Eloy Azorín). Quando este

morre atropelado por um automóvel, Manoela resolve ir atrás de Lola (Toni

Canto), o pai do menino, um travesti que se prostitui nas ruas de Barcelona.

Chegando lá, reencontra Agrado (Antonia San Ruan), outro travesti, conhece Irmã

Rosa (Penélope Cruz), uma noviça que está grávida de Lola e vai trabalhar com

Huma Rojo (Marisa Paredes), uma atriz de teatro. Elas acabam forjando laços de

amizade que as ajuda a superar as dificuldades da vida.

16 Vale lembrar que o Festival do Rio tem a característica de funcionar como termômetro para os
filmes que serão lançados no circuito comercial

93
Pedro Almodóvar afirma que seu intuito ao filmar Tudo sobre minha mãe

era falar sobre a maternidade ferida, sobre a capacidade da mulher de fingir e

também sobre a solidariedade espontânea entre as mulheres. Ele dedica o filme a

atrizes consagradas como Bette Davis e Gena Rowland, a todas as mulheres que

atuam, aos homens que interpretam mulheres e às mães, a mãe dele17.

Os elementos de repetição18 que quero realçar deste filme encontram-se

todos no que chamei de introdução. O primeiro deles é a cena onde Manoela e

Esteban II estão assistindo televisão. O filme que passa é A Malvada, de 1950, do

diretor Joseph L. Mankiewicz, com Bette Davis e Anne Dexter (All about Eve, no

original em inglês)19. Este filme tem uma situação base que é a seguinte: a atriz de

teatro, Margo Channing (Bette Davis) conhece Eva Harrington (Anne Baxter), uma

fã que ela acaba contratando para trabalhar como sua assistente. Eve – a malvada

do titulo em português – rouba o papel de Margo, tornando-se uma atriz de

sucesso. Essa situação – uma pessoa substituindo outra no palco – aparece duas

vezes no filme de Almodóvar: a primeira, quando Nina (Candela Peña) não pode

apresentar-se no teatro e é substituída pela própria Manoela; uma segunda vez,

quando novamente o espetáculo periga ser cancelado por falta de atrizes, Agrado

as substitui, contando sua própria vida. Interessante que diferentemente do filme

17 Vale aqui informar que a mãe do diretor morreu em 1999, meses após a estréia.
18 Elemento de repetição é uma categoria emprestada da Psicanálise, na teoria freudiana, que leva a
considerar a repetição como um elemento estrutural do sujeito. Na década de 1960, a teoria de
cinema absorve várias correntes psicanalistas, influenciadas principalmente por Derrida e Foucault.
Para maiores detalhes ver Stam, Robert, Introdução à Teoria do Cinema, 2003 (principalmente
capítulos 22 e 23) e Jover et. ali., Repetição e estilo em Almodóvar.
19 Vale ressaltar aqui que o título do filme Tudo sobre minha mãe é uma citação direta do título
original em inglês All about Eve.

94
A Malvada, nem Manoela nem Agrado têm a intenção de subtrair ou enganar

Huma ou Nina. Estão ali para ajudar, auxiliar. A situação base permanece, mas

com resultados e intenções totalmente diversos.

O segundo elemento de repetição é a cena seguinte, quando Manoela

aparece em um seminário para ressaltar a importância da doação de órgãos e de

como médicos devem abordar o tema com os parentes. Esta cena é uma repetição

da cena inicial de A Flor de meu segredo, de 1995, também dirigido por

Almodóvar, quando uma mãe recebe a notícia da morte cerebral de seu filho, e

naquele momento de dor deve decidir se doa ou não os órgãos. Almodóvar repete

a encenação em Tudo sobre minha mãe. É a mesma situação, com as mesmas

personagens, vivendo o mesmo drama: uma enfermeira Manoela, e dois médicos,

simulando uma conversa onde esses médicos tentam convencer a mãe de que seu

filho/marido está morto, apesar de parecer respirar devido ao pulmão artificial. Os

médicos estão ali para tentar convencer que se o parente doar os órgãos do

falecido, muitas vidas poderão ser salvas. A simulação serve para ajudar os

médicos a se comportarem frente às mais diversas reações que os parentes podem

ter nesse momento. Almodóvar parece brincar conosco ao, momentos depois,

colocar Manoela realmente vivendo esse momento de dor, recebendo a notícia da

morte de seu filho Esteban II. Aqui vale ressaltar como no momento de dor

pessoal, a reação é humana, dolorida. A reação de Manoela é totalmente

95
inesperada: ela descobre quem será o receptor do coração de seu filho, e quebrando

todas as regras e normas, vai atrás dele.

O terceiro elemento é a peça de teatro que Manoela e Esteban II assistem na

noite em que este morre, Um Bonde chamado Desejo, de Tenesse Willians. Esta

peça, de 1947, narra a história de Blanche DuBois, uma mulher do sul dos Estados

Unidos, que vai morar com sua irmã Stella e o cunhado, Stanley Kowalski.

Professora decadente, é expulsa de sua cidade depois de se envolver com um dos

seus alunos, não tem mais pra onde ir. Frágil e fantasiosa, ela entra em combate

contra os modos rudes de Stanley, que a violenta na noite em que Stella dá à luz na

maternidade. Blanche termina sendo levada para um manicômio. Nesse momento,

fala “sempre confiei na bondade dos desconhecidos” ao referir-se ao médico que a

conduz ao sanatório. Esta frase será dita pelo menos mais duas vezes, ao longo do

filme: a primeira vez, pela própria Huma, ao agradecer a ajuda de Manoela para

procurar por Nina; a segunda por Agrado, ao brincar com um rapaz. O filme e a

frase se relacionam de maneira direta – a repetição da frase – e indireta, uma vez

que as próprias protagonistas são estranhas umas às outras e mesmo assim elas se

ajudam em suas dificuldades. A “solidariedade espontânea entre as mulheres” a

que Almodóvar se refere.

Esse recurso da repetição ou recorrência não é uma novidade para Pedro

Almodóvar nesse filme. O artigo Repetição e estilo em Almodóvar (1998) revela que

foi utilizado em outros filmes, a saber: Matador (1985), De salto altos (1990) e A

96
flor do meu segredo (1995). Podemos ainda perceber esse recurso em filmes de

outros diretores como Flerte, (1995), de Hal Hartley, onde a mesma estória é

contada três vezes, de diferentes maneiras e em diferentes cidades: Nova Iorque,

Berlim e Tóquio. E também Corra Lola, Corra, (1998), de Tom Tykwer, em que há

um problema e busca-se uma solução, sendo mostradas três possibilidades de

resolução para o mesmo problema.

No filme de Pedro Almodóvar, alguns elementos da Linguagem

Cinematográfica20 mostram-se marcados por esse recurso de repetição. Os

subtemas são revelados na introdução: a capacidade de fingir, a maternidade

ferida e a solidariedade espontânea. Ao longo do filme, percebemos o

desenvolvimento desses, com resoluções nunca iguais ao original proposto na

introdução. Cada um deles torna-se objeto único em sua singularidade, ocupando

um espaço próprio ao longo da trama. São identificados apenas por sua

familiaridade com o subtema proposto na introdução do filme. Os recursos cênicos

responderiam, em grande medida, por essa distinção, sem perder a perspectiva de

serem próprios de um universo "almodovariano": cores, acessórios, melodramas,

boleros, auto-referências e citações.

20 A linguagem cinematográfica engloba todas as técnicas utilizadas na seleção e captação das


imagens – planos, ângulos, movimentos de câmera, enquadramentos, iluminação, cenários etc – que
resultam na sua força expressiva autônoma (a de uma só representação visual), assim como as
formas de relacionamento entre elas (as seqüências produzidas pela montagem). Mas essas técnicas
ou habilidades devem ir além da simples denotação, do nível primário do que é visto. Seria
indispensável também, artisticamente falando, provocar associações mentais e emocionais mais
abrangentes ou densas, ou seja, ser capaz de gerar conotações ou relações simbólicas.

97
Almodóvar está nos falando de situações pelas quais nós passamos. Neste

filme há três personagens com o vírus do HIV: Lola/Esteban, Rosa e Esteban III.

Analisando, são três categorias distintas no chamado grupo ou comportamento de

risco para casos de contaminação de AIDS: o homossexual e/ou viciado em drogas

injetáveis; a mulher monogâmica; a criança infectada pela contaminação vertical,

ou seja, pela própria mãe. Em momento algum, Almodóvar culpa Lola/Esteban ou

Rosa, pela infecção da criança Esteban III. Pelo contrário. Manoela está sempre

disposta a ajudar, apoiar, oferecer amizade e carinho. Ao trabalhar dessa maneira,

o roteiro de Tudo sobre minha mãe coloca a solidariedade como um dos temas

centrais da trama. Morin nos avisa que “a noção de religação engloba tudo aquilo

que faz comunicar, associar, solidarizar, fraternizar [...] fazendo frente à barbárie

que divide” (Morin, 1998:72). Dito de outra forma, Manoela se religa aos

soropositivos, opondo-se ao “medo e atitudes preconceituosas e estigmatizantes”

(Nasciemento, 2005:174) que a AIDS impõe aos infectados. Estar contaminado não

é sinônimo de estar morto. Pelo contrário, eles ainda estão vivos, reorganizando

suas vidas e suas identidades.

A criança soronegativa ao fim do filme, é curada pelo amor e cuidados de

Manoela. O texto de Manoela ao final, nos fala sobre a esperança de cura para a

AIDS e nos revela o quanto todos nós ansiamos por isso. Desta maneira, não afasta

apenas a culpa normalmente associada à AIDS, mas também abre caminhos para a

discussão sobre tratamentos e principalmente sobre a cura. Para isso, precisamos

98
debater e compreender melhor o horizonte onde essa doença está posta. A AIDS,

em sua gênese, esteve carregada de significados, “uma doença ‘estranha’ que

acometia pessoas consideradas ‘estranhas’”: homossexuais masculinos, usuários de

drogas injetáveis, hemofílicos e profissionais do sexo (Nascimento, 2005:83).

Matéria de capa da Revista Época, ao completar 25 anos de existência desde os

primeiros casos relatados, em 1981, percebemos que o preconceito e a

estigmatização diminuíram, mas que ainda há muito caminho a ser trilhado. Tanto

a comunidade científica quanto a sociedade caminharam em um sentido de melhor

entender uma doença que atingia agora a todos. O debate e a compreensão foram,

sem dúvida, a melhor estratégia para que a sociedade tenha alcançado isso. Em seu

livro “As pestes do século XX”, Nascimento, afirma que a “sociedade civil se

antecipou ao poder público [...] para lidar com a AIDS” (Nascimento, 2005:125). As

primeiras organizações não-governamentais foram uma resposta imediata à falta

de informações sobre a epidemia e às necessidades específicas ao cuidado e

educação quanto à doença. E isso derivou em um movimento mundial que

buscava reduzir a estigmatização em torno do doente (Altman apud Nascimento,

2005).

Em uma ética para o futuro, o debate tem o direito de exigir “a primazia da

argumentação e a rejeição da anamatização” (Morin, 1998:73)21. Ao invés de

21 A palavra anamatização não existe no nosso vocabulário. Mas matizar significa dar cores, nuances,
conferir diferentes graduações e o prefixo ana significa ação ou movimento contrário. Assim,
acredito que Morin esteja se referindo a um processo de igualar coisas ou debates, sem buscar as
possíveis diferenças.

99
descartar a polêmica, trazê-la para fazer parte do debate, rejeitando qualquer

forma de julgamento. Como no filme Tudo sobre minha mãe que não aborda a

morte como punição, nem vitimiza ou culpa.

Uma outra possibilidade que gostaria de apontar aqui, sem contudo esgotar

o assunto, é demonstrar que, se a indústria cinematográfica norte-americana não

considera o assunto relevante, para outras cinematografias, ele não se encerrou,

em absoluto. O caminho escolhido por Pedro Almodóvar tem sido seguido por

outros cineastas comprometidos com um cinema mais crítico e autoral, tendo um

controle maior sobre o produto final22. Desta forma, é possível perceber que este é

o local onde o doente de AIDS – soropositivo, homossexual – é retratado de uma

forma não estigmatizada. Não estou querendo afirmar que suas personagens não

sejam esteriótipos, porém que elas são retratadas de forma mais humana, próximas

a uma realidade mais palpável. A punição ainda ocorre – Esteban I e Rosa morrem

em decorrência da doença – mas as imagens não têm um significado de punição,

como nos filmes comerciais produzidos pelos grandes estúdios.

22 De 1997 até 2006, podemos indicar os seguintes filmes: Eu amo esse Homem (França 1997), A
Família de Felix (França, 1999), Ninguém Dorme Em São Francisco (Alemanha, 2000), Um amor
quase perfeito (Itália, 2001), Dias (Itália, 2001), Fale Como Homem: Gays Na Zona Rural
(Alemanha, 2002), Saudade (Alemanha, 2002), Filhote (Espanha, 2004), Transit (Inglaterra, 2005).
Da mesma forma, o cinema independente norte-americano tem produzido alguns filmes,
principalmente voltado para o público queer, como O Prazo Final (2004), ou os documentários
Alguém ainda morre de Aids? (2002), O presente (2003), O outro lado da Aids (2004). Há também
aqueles que mostram a pandemia na África como A Closer Walk (2003), O Dia em que meu Deus
morreu (2003), Pandemia: Enfrentando A Aids (2003), todos americanos, e Wa N'wina (2001) e
Yesterday (2004), ambos da África do Sul.

100
Nessa filmografia não há culpa nem culpados. Há estereótipos sim, mas não

há condenação. São representações de seres humanos aprendendo a conviver com

uma situação nova, reestruturando suas vidas e reconstruindo suas identidades,

depois de uma experiência limite, que foi o diagnóstico da AIDS. Ângela Pôrto, em

seu artigo, A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um poeta tísico

(1997), afirma que “a ‘experiência extrema’ de se saber acometido de uma grave

moléstia, para a qual não há cura, envolve, primeiramente, o esforço de

preservação da própria identidade” (Pôrto, 2000:524). E só quando o doente for

capaz de acionar seus recursos individuais ou desenvolver habilidades que possam

ajudá-lo em sua trajetória singular é que essa tarefa será bem sucedida. A vivência

progressiva da doença conduzirá também a um trabalho intenso e sistemático de

reconstrução da identidade, um processo de desenvolvimento da capacidade de

administrar a própria vida após a experiência trágica dos primeiros tempos de

doença. Esses filmes justamente abordam essas estratégias, que esses personagens

criaram para continuar a viver.

Essa perspectiva vai contra a tendência da indústria cinematográfica

dominada pelo modelo norte-americano. A partir de 1996, com a viabilidade de

sobrevida para os doentes de AIDS em decorrência da combinação de remédios, a

produção de filmes sobre a temática passou a decrescer ao invés de mudar o foco

de abordagem. É como se o assunto não mais interessasse, deixasse de ser

vendável. Pedro Almodóvar continuou insistindo no assunto e acabou por

produzir o mais belo dos filmes de sua carreira, em minha modesta opinião.

101
Apesar da combinação de remédios no tratamento da AIDS melhorar

sensivelmente a expectativa de vida dos doentes, esta não foi uma realidade

contemplada nos filmes. De 40 filmes longa metragens produzidos entre 1989 e

1999 que trouxeram a AIDS como tema, somente nove produções foram realizadas

entre 1996 e 199923. Em quase todos esses filmes, os personagens eram jovens

homossexuais masculinos, pessoas viciadas em drogas injetáveis e mulheres de

vida promíscua, ou seja, os que pertenciam ao chamado ‘grupo de risco’24. Mas em

1992, já havia uma noção de vulnerabilidade ao HIV, definida como

"o esforço de produção e difusão de conhecimento, debate e


ação sobre os diferentes graus e naturezas da suscetibilidade de
indivíduos e coletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo
HIV/AIDS, segundo a particularidade de sua situação quanto ao
conjunto integrado dos aspectos sociais (ou contextuais),
pragmáticos (ou institucionais) e individuais (ou
comportamentais) que os põem em relação com o problema e com
os recursos para seu enfrentamento" (Ayres et al apud Souza,
2001).

Ou seja, um conceito de ‘comportamento de risco’, muito mais abrangente.

Essa realidade, porém, não só não foi representada nos filmes na época, como

23 Sobre esse tema específico, ver monografia de Ives Mauro Silva da Costa Junior, AIDS: uma
década de cinema 1989-1999, defendida em 2001, na UERJ.
24 Em linguagem médica, um grupo de risco corresponde a uma população sujeita a determinados
fatores ou com determinadas características, que a tornam mais propensa a ter ou adquirir
determinada doença.

102
também deixou de presente nas grandes produções pós 1996. Ainda falta muito

para chegarmos à plena consciência do impacto desta pandemia em nossas vidas,

mas creio que Pedro Almodóvar contribuiu um pouco para essa conscientização.

Estados vegetativos

Fale com ela é o décimo quarto filme de Pedro Almodóvar e chegou ao

público cercado de expectativas. Depois da consagração alcançada com Tudo

sobre minha mãe, o que o cineasta poderia nos trazer de inovador? “Um filme

impregnado de segurança e serenidade, mas nem por isso sem inquietação” (Folha

Online, 26/09/2002); “Light, sutil e contido” (Jornal do Brasil, 29/09/2002, Caderno

B, p.1); “Um filme que trata sobre a amizade e amor [...] é artigo raro” (Ailton

Monteiro, 26/11/2002). A jornalista e crítica de cinema, Susana Schild resume bem

o impacto do filme:

“Fale com Ela poderia representar um manual do


melodrama, com personagens perturbados, coincidências
implausíveis, sobrecarga de tragédias, incidentes rocambolescos,
não fosse o agudo sentido de busca do essencial dos personagens
que Almodóvar exercita com notável liberdade e maestria, sem
abrir mão do humor” (Schild, 30/10/2002).

O filme, exibido na cerimônia de abertura do Festival do Rio BR de 2002, no

Cine Odeon, “foi visto por mais de 1.400 pessoas em apenas quatro sessões” (Folha

103
Online, 07/10/2002:18h30). O jornalista Jaime Biaggio, do jornal O Globo, escreveu

que “o Almodóvar mais recente seria a utopia do cinemão ideal, a carta de

intenções pela qual os filmes mínimo-denominador-comum deveriam sempre se

pautar” (O Globo, 28/09/2002, 2ºCaderno:2).

Com uma trajetória semelhante ao filme anterior, Fale com ela colecionou

prêmios ao redor do mundo, sendo indicado ao Oscar de melhor direção e melhor

roteiro original. Não teve a indicação para melhor filme em língua não inglesa por

ter sido preterido pelo governo espanhol, que em seu lugar indicou ‘Los Lunes ao

Sol’, que acabou ficando fora da corrida. Pedro Almodóvar acabou com a estatueta

de melhor roteiro na cerimônia de 2003 e dedicou seu prêmio “a todas as pessoas

que estão levantando suas vozes pela democracia e pela legalidade internacional,

qualidades essenciais para se viver” (ABN Notícias, cobertura do Oscar 2003).

Tudo sobre Minha Mãe termina com uma cortina de teatro abrindo

revelando um palco escuro. Fale com ela começa com uma cortina se abrindo para

um palco escuro. Mas se em Tudo sobre minha mãe, os papéis são de mulheres,

atrizes ou impostoras, que atuam dentro e fora do palco, Fale com ela é um filme

de homens, narradores, que recontam suas próprias vidas para quem quiser ouvir

e até mesmo para aqueles que não podem..Como disse antes, a cortina se abre e em

cena a coreógrafa Pina Bausch apresenta o espetáculo Café Muller. Na platéia, há

dois homens que não se conhecem: um chora e o outro o observa. Pouco depois, o

segundo, que observava, narra o espetáculo da noite para uma mulher em coma no

104
hospital. Ele é Benigno (Javier Cámara), enfermeiro que cuida de Alicia (Leonor

Watling), dançarina em coma depois de um atropelamento.

O homem que chorava é Marco (Dario Grandinetti), escritor recém separado

de sua mulher. Ao assistir a um programa de entrevistas na televisão, Marco fica

sabendo de Lydia, uma toureira que acabara de se separar do amante, o famoso

toureiro Niño de Valência (Rodrigo Alvarez). Marco liga para seu editor e solicita

uma entrevista com Lydia. Este sugere que Marco vá a uma tourada, para

encontrá-la. Lydia se recusa a conceder a entrevista, mas pede uma carona até sua

casa, em Madri. Instantes depois de deixá-la, Marco ouve um grito e Lydia

reaparece chorando, dizendo haver uma cobra em sua cozinha. Marco entra e mata

a serpente. Esse incidente aproxima os dois e eles iniciam um romance.

Meses depois, durante uma tourada, Lydia é ferida e internada em coma no

mesmo andar do hospital onde Benigno trabalha. Transtornado, sem saber direito

como agir, Marco questiona o médico sobre as chances de recuperação de Lydia.

Este afirma, que cientificamente não há esperanças. O córtex cerebral de Lydia está

morto, e que somente suas funções automáticas - como a respiração - comandadas

pelo tronco encefálico que se encontra integro ainda funcionam. “Ela não concebe

idéias nem sentimentos”, afirma. Porém mostra uma revista onda há uma matéria

obre casos de pessoas que na mesma situação de Lydia que saíram do estado

vegetativo.

105
Andando pelos corredores do hospital, Marco conhece Benigno, e este o

reconhece do espetáculo. Ele conta que é enfermeiro de Alicia e que cuida dela há 4

anos. Os dias passam e Marco e Benigno vão se aproximando. E um embate sobre

o diálogo entre sãos e doentes também começa a se travar. Benigno defende que se

deve conversar com os comatosos, seus cérebros são misteriosos. “Devemos

conversar com eles, acariciá-los, de vez em quando”. Marco, por outro lado,

acredita que seus cérebros estão paralisados, eles estão “mortos” e que a solução é

esperar. “Fale com ela”, aconselha Benigno.

Marco acaba deixando Lydia aos cuidados do hospital e de seu antigo

namorado, partindo para uma viagem. Quando esta morre, acaba sabendo por

outros funcionários do hospital que Benigno está preso por ter estuprado Alicia em

coma. Marco regressa à Espanha e fica sabendo que Alicia não só sobreviveu ao

parto como voltou do coma, desmemoriada, sem saber que fora estuprada, ficara

grávida e perdera o filho. Benigno se suicida na prisão sem saber de nada. Algum

tempo depois, Marco e Alicia se encontram em outro espetáculo de dança de Pina

Bausch.

Esses são os personagens de Fale com ela. Quatro seres-humanos,

incoerentes, sensíveis e confusos. Os homens cuidando das suas amadas em coma.

E ao redor deles, um mundo que gira. Em seu livro Ciência com Consciência (2005),

Edgar Morin desenvolve algumas teses sobre a ciência e a ética. Para ele, nós

devemos saber que a civilização ocidental se encontra em uma encruzilhada: um

106
ponto de chegada e também um ponto de partida. As soluções que deveriam ter

sido trazidas pelo desenvolvimento da ciência, da razão e do humanismo se

transformaram em problemas essenciais. Ciência e razão não salvaram a

humanidade e têm “poderes absolutamente ambivalentes sobre o futuro da

humanidade” (Morin, 2005:125). Para tanto, apresenta suas observações em forma

de seis teses que nos obrigariam a reformular o papel da ciência e da noção da

pessoa humana. “Os indivíduos em coma prolongado ainda são pessoas humanas

ou são seres vegetativos?” (Morin, 2005:131), pergunta-se.

Sem querer apresentar soluções definitivas, Morin nos aconselha a procurar

por uma moral provisória, levantando problemas e formulando contradições. Uma

ética do debate e uma ética da compreensão se fazem necessárias. Mas devemos ir

além. Devemos ser magnânimos e educar os educadores, para que estes possam

esclarecer seus alunos a se associarem entre si “para salvar a humanidade do

desastre” (Morin, 1998:75).

Fale com ela é uma história sobre a amizade entre homens, sobre a solidão e

a longa convalescença das feridas provocadas pela paixão. É também um filme

sobre a incomunicabilidade dos casais e sobre comunicação. Sobre conversação e

sobre como os monólogos ante uma pessoa em silêncio podem ser uma forma

eficaz de diálogo. Do silêncio como ‘eloqüência do corpo’, do cinema como veículo

ideal nas relações das pessoas, de como o cinema contado em palavras detém o

tempo e se instala nas vidas de quem conta e de quem o escuta. Um filme que fala

107
sobre a ética com os convalescentes, de como devemos agir com os doentes, sejam

quais forem suas doenças. Calar-se diante da morte social imposta aos doentes de

AIDS, câncer, hepatite C ou coma prolongado não é uma atitude ética. Encerrar

nossos doentes, loucos ou velhos em hospitais e asilos não é ético. No filme, o pai

de Alicia pouco a visita, deixando-a aos cuidados dos enfermeiros, em especial

Benigno. O próprio pai, um psicólogo famoso em Madri, decreta a morte social da

filha. Os médicos também afirmam que “cientificamente não há esperanças”. Da

mesma forma, os personagens do círculo social de Lydia parecem impor uma

morte social. Sua irmã mora em Córdoba e depois de três semanas decide voltar

para cuidar do marido, dos filhos e da sua vida. O cunhado, apoiando sua decisão

diz: “Você sabe que não há mais nada que se possa fazer.” O próprio Marco a

deixa no hospital e sai em viagem apenas ligando para saber como estão as coisas.

Norbert Elias diz que “nunca antes na história da humanidade foram os

moribundos afastados de maneira tão asséptica para os bastidores da vida social”

(Elias,2001:30). Sentimos um desconforto na presença dos doentes, não queremos a

proximidade da morte, pois apesar do progresso científico na capacidade crescente

de prolongar a vida do indivíduo, a morte ainda indica a finitude do homem e que

o controle sobre a natureza tem limites. Associado a esse progresso, as sociedades

contemporâneas ocidentais também passam por um processo acelerado de

individualização, onde os rituais de morte “foram esvaziados de sentimento e

significado” (Elias, 2001:36).

108
“Assim, a fala espontânea com os moribundos, da qual estes
têm especial necessidade, torna-se difícil. Apenas as rotinas
institucionalizadas dos hospitais dão alguma estruturação social
para a situação de morte. Essas, no entanto, são em sua maioria
destituídas de sentimento e acabam contribuindo para o
isolamento dos moribundos” (Elias, 2001:36).

Necessitamos fazer surgir uma ética da magnanimidade, contra “a ética

impiedosa da punição” (Morin, 1998:74) onde a compaixão por aqueles que estão

enfermos deve ser constante. Devemos proporcionar-lhes “uma sensação de

proteção e pertencimento” (Elias, 2001:36), apertar-lhes a mão, acariciá-los. E não

somente isso. Herzlich aponta para a necessidade de investir a morte de um valor

positivo. “Em lugar de nos esforçarmos [...] para lhe esconder a morte próxima,

devemos orientar nosso esforço no sentido de partilhar e aprender com ele o

significado de seus últimos momentos de vida” (Herzlich, 1993:3).

Do círculo social de Alicia, a única que a visita com regularidade é sua

professora de dança, Katerina Pavlova (Geraldine Chaplin). Esta vai ao hospital e

conversa com Alicia sobre um espetáculo de dança que vai coreografar em

Genebra, sobre a primeira Guerra Mundial. Ela conta que apresentará bailarinas

como as almas dos soldados mortos em batalha, vestidas de branco com manchas

vermelhas como se fossem manchas de sangue. Ela diz: “Da morte emerge a vida,

109
do masculino emerge o feminino, do terreno emerge o etéreo.” Interessante

perceber a metáfora de que um corpo moribundo – em coma - também pulsa com

vida.

Pedro Almodóvar, em entrevista concedida a Matthew Ross, nos diz que se

inspirou em fatos reais para escrever este roteiro, tomando notas sobre diferentes

casos que havia lido na imprensa sobre mulheres em coma. Um deles era sobre

uma mulher que havia sido estuprada por um assistente num hospital; outro, de

uma mulher que acordara depois de passar 16 anos em coma. O repórter pergunta

o que o inspirou tanto nos casos de coma daquelas mulheres ao que ele responde:

“Acho que era a capacidade delas escutarem. O que é


interessante no que isso se impõe ao outro personagem, porque
eles têm a capacidade ilimitada de se expressar. É uma grande
oportunidade para eu escrever sobre alguém que fala. Sempre fui
fascinado pelo relacionamento de um casal. O que eu gosto de uma
mulher em coma é que ela própria está na história, ela está viva, e
apesar do que os médicos falam, o corpo delas continua
querendo viver. Mas isso mexe comigo porque nós não sabemos
onde esta pessoa vive, alguém em coma está num certo lugar da
vida que me é muito dramático. A verdade é que de alguma
maneira, a primeira inspiração não foi de uma mulher em coma,
mas do enfermeiro que cuida dela, e do homem que fala ao seu
lado. Também achei interessante que em alguns casos, o
relacionamento só funciona quando apenas uma pessoa está dando
tudo, quando só um está se comunicando, e neste caso é bem
óbvio. O filme também é sobre o fato de que se você quer alguma

110
coisa, você tem que procurar alcançá-la, apesar do que o mundo
pensa de você. Se você se ater a isso, você consegue” (Almodóvar,
2002b). [meu grifo]

Morin, ao falar da quinta idéia-guia para construção de uma ética do sujeito

responsável, adverte que as elites intelectuais possuem um saber abstrato e

mutilado, incapaz de religar os conhecimentos acumulados. A boa vontade de

todos deveria ser o caminho possível para o cumprimento de uma missão histórica

onde estariam incluídos os órfãos, os moribundos, os doentes e também os

saudáveis (Morin, 1998:75).

“Fale com ela!” Vamos falar com eles. A doença não é punição, a morte não

é punição. Esses indivíduos – moribundos, doentes, excluídos – ainda são seres

humanos e não podem perder o significado disso – ser humano - nem para eles

mesmos nem para os vivos. Essa é a resposta para a pergunta de Morin.

“A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo


desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos
moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando
morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte
uns dos outros [...] a morte não tem segredos. Não abre portas. É o
fim de uma pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às
outras pessoas, o que permanece nas memórias alheias. Se a

111
humanidade desaparecer, tudo o que qualquer ser humano tenha
feito, tudo aquilo pelo qual as pessoas viveram e lutaram,
incluídos todos os sistemas de crenças seculares e sobrenaturais,
torna-se sem sentido” (Elias, 2001:77).

Touradas e Dança

A representação da tourada nesse filme não é gratuita. Paixão nacional

espanhola, a tourada é a contra-partida da Dança, expressão artística de grande

influência naquela nação. Há quem diga que a tourada é uma dança, uma arte, na

medida em que exige o controle dos gestos e um domínio do corpo. A tourada é

uma cerimônia com uma série de regras e etiquetas. Antes, era um esporte

praticado pela nobreza espanhola, que lutava contra os touros, montada em

cavalos. Posteriormente, com o interesse crescente do povo, surgiu a figura do

toureiro a pé, que com sua capa e sua espada atiçavam o touro para a luta. Assim,

surge o desfile de abertura com a entrada dos toureiros, ricamente vestidos, sob

aplausos intensos da platéia. Uma das touradas de Lydia, no filme, é embalada

pela canção ‘Por toda a minha vida’, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes,

interpretada por Elis Regina. Diz a letra:

“Oh! meu bem-amado,


Quero fazer-te um juramento, uma canção
Eu prometo, por toda a minha vida
Ser somente tua e amar-te como nunca

112
Ninguém jamais amou
Ninguém
Oh! meu bem amado,
estrela pura aparecida
Eu te amo e te proclamo
O meu amor, o meu amor
Maior que tudo quanto existe
Oh! meu amor”

A doutora em literatura Renata Farias de Felippe, em seu artigo Silêncio e

(meta) linguagem em ‘Fale com ela’ (2004), afirma que a tourada é um universo

tipicamente masculino, com “uma incipiente participação feminina, uma vez que

dominar o touro e penetrá-lo repetidas vezes com a lança são atos que remetem à

virilidade. No entanto, é inevitável associar tal atividade também à feminilidade,

pois a capacidade de seduzir, atrair o animal com o uso da capa vermelha (espécie

de véu) são atos que remetem, convencionalmente, às estratégias femininas de

conquista” (Felippe, 2004). Ao vencer o touro, embalada por esta canção, Felippe

afirma que Lydia buscava vingança por ter sido abandonada por seu antigo

amante. Em outra tourada, Lydia se prepara para enfrentar o touro, ajoelhada. Ela

traz em si a expressão da morte. O touro avança sobre a toureira e a arrasta pela

arena. Gravemente ferida é levada em coma para um hospital. Felippe afirma que

Lydia se entregou ao touro em sacrifício e que com esse ato simbólico fechou um

113
ciclo que clamava pela morte. O artifício da metalinguagem25 foi usado aqui para

falar sobre a submissão da mulher ao homem e de como a personagem Lydia

encontra-se dividida entre os papéis de esposa - mulher submissa – e toureira –

mulher independente. Essa aparente contradição a levou à morte. Diz Felippe:

“O sacrifício voluntário da personagem representa a


renúncia e a crítica à sociedade patriarcal. O gesto de Lydia é
contraditório como a sua própria natureza: ao mesmo tempo em
que desiste de lutar contra o patriarcalismo e se nega a passar por
mágoas futuras, demonstrando sua fragilidade, jamais se coloca na
condição de vítima. Lydia tem um final trágico porque assim o
deseja” (Felippe, 2004).

Mas diferentemente da tourada, cujo clímax é a morte – do touro ou do

toureador – a dança celebra a vida. Nesse sentido gostaria de descrever o final do

filme. A cena se passa em um teatro onde Marco, Alicia e Katerina (Geraldine

Chaplin) assistem ao espetáculo Masurca Fogo, também de Pina Bausch. Em cena,

uma mulher, de olhos fechados, passa pelas mãos de vários homens e seu corpo

está inteiramente entregue às mãos dos bailarinos. A dançarina tem um microfone

nas mãos, e emite apenas sons. Há um intervalo e na volta a cena muda para vários

casais dançando ao som de uma melodia alegre e naif. Almodóvar, na página

oficial do filme, nos conta sobre o espetáculo:

25 No que diz respeito à metalinguagem, esta pode ser vista, de uma maneira generalizada, como
uma linguagem que serve para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de significação.

114
“’Masurca fogo’ se inicia con la tristeza de Benigno ausente (los
suspiros) y reúne a la pareja superviviente (Marco y Alicia) alrededor de
una misma emoción bucólica: varias parejas bailan en el campo al ritmo
de una mazurca caboverdiana, acompañados también por el sonido de una
pequeña cascada de agua que nace como un milagro de la hierba en su
esplendor.

Si se lo hubiera pedido a propósito no habría obtenido nada mejor.


Pina Bausch había creado sin saberlo, las mejores puertas por las que
entrar y salir en ‘Hable con ella’”(Almodóvar, 2002a).

Fale com ela é um filme sobre a alegria de narrar e sobre a palavra como

arma para ruir a solidão, a enfermidade, a morte e a loucura. Também é um filme

sobre a loucura, esse tipo de loucura cercada de ternura e sentido comum que não

se diferencia da normalidade.

115
Resistir

Resistir, do latim resistere: verbo intransitivo, opor resistência; não ceder; fazer face
a; defender-se; recusar-se; agüentar-se; não sucumbir; subsistir.
(Cunha, 1997)

Os filmes de Pedro Almodóvar possibilitam uma leitura bastante acurada

da sociedade ocidental. Talvez por seu senso estético, uma vez que ele se habilita a

falar do corpo, de seus desejos inconfessáveis, da repressão sexual ou dos

acontecimentos diários, que acompanhamos nos jornais. Seus filmes são pessoais,

baseados em suas próprias experiências, apesar dele adiantar que ele mesmo não

conta sua vida. Na diegese26, de uma maneira geral, os personagens têm uma

trajetória prévia que é abalada por algum acontecimento, trágico ou não:

separação, liberdade, morte, doença ou acidente trágico. A partir de então, eles

buscam um novo equilíbrio para suas vidas, aprendendo a conviver com as

diferenças.

Minha tarefa foi ir além dos filmes e tentar costurar uma teia – bastante

peculiar – entre história das doenças e realidade fílmica. Não sei se consegui ser

26 Em cinema, o termo diegese se refere ao que é contado (a estória narrada, numa expressão mais
vulgar); já os termos discurso ou narrativa, dizem respeito à forma como a estória é narrada.
Definições bastante didáticas desses e outros termos cinematográficos podem ser encontradas em
João Batista de Brito, Imagens amadas. São Paulo, Ateliê Editorial, 1995.

116
claro. Com certeza não contei tudo. Por isso retorno aqui para as últimas

considerações.

Ao escolher Mulheres à beira de um ataque de nervos e Ata-me, pretendi

trabalhar como os doentes e sua rede de familiares e círculo social tentam

estabelecer estratégias de comunicação com o saber médico em relação às suas

patologias. Ser doente, ou não, depende de um saber superior que não o seu, e

essas negociações podem resultar em um entendimento sobre seu estado físico, ou

mental. Em ambos, percebi uma tentativa de reintegração ao mundo que os

rejeitou, à sociedade. Os personagens não têm saída em suas condições enfermas.

As negociações falharam.

Já a escolha de Tudo sobre minha mãe e Fale com ela permitiram perceber

outro aspecto que seria justamente a ética para um melhor relacionamento entre

doentes e sãos. Nesse caso, propus uma nova ética no lidar com esses enfermos,

sem acusações e com mais debate e compreensão. Uma ética baseada na

responsabilidade mútua, nos deveres que temos uns com os outros. Aqui, os

personagens tentaram se religar uns aos outros, em uma tentativa de reverter

quadros infelizes. Com os filmes, busquei a compreensão de uma nova consciência

coletiva, mais complexa, onde se rejuntaria tudo aquilo que foi separado pelo

pensamento cartesiano (Carvalho, 1998). O objetivo dessa nova consciência seria a

construção, ou melhor, a restauração de um sujeito responsável, intimamente

ligado ao debate, à compreensão, às boas vontades, à magnanimidade e ao

117
religamento que une e faz de todos nós o que somos, humanos. Nós devemos ser

mais solidários uns com os outros. ‘Solidariedade’ é uma palavra que deriva de

‘sólido’, ou seja que não se deixa destruir facilmente.

Mas falta ainda a ética da resistência, que seria o início ou o fim de tudo.

Resistir seria a síntese para a “responsabilidade coletiva generalizada, capaz de

construir uma ética societal que respeite o homem, a vida e a liberdade planetárias,

e estimular a consciência de pertencimento à Terra-Pátria” (Carvalho, 1999:27).

Nesse sentido gostaria de resgatar a última cena de Ata-me, quando Ricky,

reencontra Marina sob as bênçãos de Lola. Eles estão voltando para Madri no carro

de Lola e no rádio toca uma canção, Resistire, de Carlos Toro e Manuel de la

Calva, cuja letra diz:

Cuando pierda todas las partidas


Cuando duerma con la soledad
Cuando se me cierren las salidas
Y la noche no me deje en paz.

Cuando sienta miedo del silencio


Cuando cueste mantenerse en pié
Cuando se rebelen los recuerdos
Y me pongan contra la pared.

Resistiré, erguido frente a todo


Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte
Soy como el junco que se dobla

118
pero siempre sigue en pié.
[...]
Cuando me amenace la locura
Cuando en mi moneda salga cruz
Cuando el diablo pase la factura
O si alguna vez me faltas tu.
[...]

Ricky consegue enfim se reinserir à sociedade que o rejeitou. O último passo

para deixar de ser louco foi dado. Marina o aceitou e Lola também. O amor da sua

vida, uma família, um emprego. Ele agora é ‘normal’. Sua negociação chegou ao

fim. “Resistirei para seguir vivendo, suportarei os golpes e jamais me renderei e

ainda que os sonhos se rompam em pedaço, resistirei...”

Que esses sejam nossos desejos, resistir sem jamais se render.

119
Bibliografia

1- Fontes primárias

1.1- Fontes Fílmicas

O gabinete do Doutor Caligari


Título Original: Kabinett des Dr. Caligari
Origem: Alemanha
Ano: 1919
Direção: Robert Wiene
Roteiro: Carl Mayer e Hans Janowitz
Elenco: Werner Krauß, Conrad Veidt, Friedrich Feher, Lil Dagover e Hans
H.Twardowski.

Nosferatu
Título Original: Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens
Origem: Alemanha
Ano:1922
Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Henrik Galeen, baseado em livro de Bram Stoker
Elenco: Max Schreck, Greta Schröder e Karl Etlinger

M - O Vampiro de Dusseldorf
Título Original: M - Eine Stadt Sucht den Moerdver
Origem: Alemanha
Ano: 1931
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Fritz Lang, Adolf Jansen, Thea von Harbou e Paul Falkenberg
Elenco: Peter Lorre, Gustaf Gründgens, Ellen Widmann e Inge Landgut.

Doutor Fantástico
Título Original: Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the
Bomb
Origem: Inglaterra
Ano: 1964
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern e Peter George, baseado em livro de Peter
George

120
Elenco: Peter Sellers, George C. Scott

Pepi, Luci e Bom


Nome original: Pepi, Luci y Bom y otras chicas del montón
Origem: Espanha
Ano: 1980
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Carmen Maura, Félix Rotaeta, Olvido Gara Alaska, Eva Siva, Concha
Gregori, Cecilia Roth, Cristina Sánchez Pascual.

Labirinto de paixões
Nome original: Laberinto de pasiones
Origem: Espanha
Ano: 1982
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Cecilia Roth, Antonio Banderas, Imanol Arias, Helga Liné, Cristina
Sánchez Pascual.

Maus hábitos
Nome original: Entre Tinieblas
Origem: Espanha
Ano: 1983
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Cristina Sánchez Pascual, Julieta Serrano, Marisa Paredes, Mary Carrillo,
Lina Canalejas, Carmen Maura e Chus Lampreave.

Mulheres a beira de um ataque de nervos


Nome original: Mujeres al borde de un ataque de nervios
Origem: Espanha
Ano: 1988
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco Carmen Maura, Antonio Banderas, Julieta Serrano, Rossy de Palma, María
Barranco e Kiti Manver.

Ata-me
Nome original: Átame
Origem: Espanha
Ano: 1989

121
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Victoria Abril, Antonio Banderas, Loles Leon, Julieta Serrano, María
Barranco.

Flerte
Título Original: Flirt
Origem: Estados Unidos, Japão e Alemanha
Ano: 1995
Gênero: Romance
Direção e roteiro: Hal Hartley
Elenco: Martin Donavan, Robert Burke e Elina Lowensohn.

Corra Lola, corra


Título Original: Lola Rennt
Origem: Alemanha
Ano: 1998
Direção e roteiro Tom Tykwer
Elenco: Franka Potente, Moritz Bleibtreu, Herbert Knaup e Nina Petri.

Tudo sobre minha mãe


Nome original: Todo sobre mi madre
Origem: Espanha
Ano: 1999
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Cecilia Roth, Marisa Paredes, Candela Pena, Antonia San Juan, Penélope
Cruz, Rosa María Sarda, Fernando Fernán Gómez, Toni Canto e Eloy Azorín.

Fale com ela


Nome original: Hable com ella
Origem: Espanha
Ano: 2002
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Javier Cámara, Dario Grandinetti, Leonor Watling, Rosario Flores e
Geraldine Chaplin.

As Chaves de Casa
Título Original: Le Chiave di Casa
Origem: Itália/ França

122
Ano: 2004
Direção: Gianni Amelio
Roteiro: Gianni Amelio, Sandro Petraglia e Stefano Rulli
Elenco: Kim Rossi Stuart, Charlotte Rampling, Andrea Rossi e Alla Faerovich.

1.2- Periódicos

Bravo! Setembro de 2004, ano 2, nº 84.

Folha de São Paulo 01/05/1988, 06/06/1990, 31/07/1994

Folha Online, 25/11/2003, disponível em


<http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u26386.shtml> Acesso:
19 jul. 2005.

Folha Online, 25/11/2003, disponível em


<http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u26386.shtml> Acesso:
19 jul. 2005.

Folha Online, 26/09/2002 disponível em


<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/critica/ult569u922.shtml
> Acesso: 8 jul. 2006.

Folha Online, 07/10/2002 disponível em


<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u27861.shtml>
Acesso: 8 de jul. 2006.

ABN Notícias, cobertura do Oscar 2003, disponível em


<http://www.abn.com.br/cineoscar2003.htm#Pedro%20Almodóvar%20rec
ebe%20Oscar%20por%20Fale%20com%20Ela> Acesso: 8 jul. 2006.

Jornal do Brasil, 18/11/1988, 29/09/2002

O Globo, 3/11/1988, 18/11/1988, 09/11/1990, 23/11/1990, 24/11/1990,


21/09/1999, 27/09/1999, 28/09/2002

Revista Época - 15/06/2006, Edição 422.

ARQUIVO NACIONAL. Recine – Revista do Festival Internacional de Arquivo,


Ano 1, nº 1, Rio de Janeiro, setembro, 2004.

123
2- Fontes Secundárias

2.1- Artigos

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HERZLICH, Claudine. Os encargos da morte. Trad. Jane Dutra Sayd. Série Estudos
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MUREKIAN, Noemi Graciela et al. Las representaciones sociales de la salud mental em


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124
2.2 Livros e capítulos

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XAVIER, Ismael (org). O Cinema no Século. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

2.3- Teses, dissertações e monografias

CASSAL, Alex Barros. A Solidão do Herói: Prisão, clandestinidade, exílio e outros


isolamentos no cinema brasileiro. Monografia (Bacharel em História).
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001.

COSTA JUNIOR, Ives Mauro Silva da. AIDS: uma década de cinema 1989-1999,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Monografia (Bacharel em
História). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001.

MOREIRA, Arthur Barroso. A Temática da perversão na obra de Pedro Almodóvar.


Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.

PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. O Futuro do Pretérito: as representações da história


em filmes brasileiros produzidos durante a ditadura militar. Dissertação
(Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica, 2005.

129
2.4- Documentos eletrônicos

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<http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/hableconella/
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CENTRO DE DOCUMENTACIÓN DIGITAL PEDRO ALMODÓVAR,


Presentación, disponível em <http://sdogma.uclm.es:8080/uclm/home.html>
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CAMPOS, Michele et al. História da Ética, 2002. Disponível em:


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CARVALHO, Edgar de Assis. Mal Estar Civilizatório e Ética da Compreensão,


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FELIPPE, Renata Farias de. Silêncio e (meta)linguagem em "Fale com ela", 2004.
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GOLDIM, José Roberto. Ética, 2000. Disponível em:


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GOVERNO FEDERAL. Ética. Disponível em:


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HERZLICH, Claudine. A Problemática da Representação Social e sua utilidade no


campo da doença, 2005. Disponível em
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JOVER, Eliane Rivero et. al.. Repetição e estilo em Almodóvar, 1998. Disponível:
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SILVEIRA, Lia Carneiro e BRAGA, Violante Augusta Batista. Acerca do conceito


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