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Conta-me tudo:representações
de doença na filmografia de
Pedro Almodóvar
Rio de Janeiro
2006
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
CASA DE OSWALDO CRUZ
Conta-me tudo:
representações de doença na
filmografia de Pedro
Almodóvar
2006
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RESUMO
uma sociedade, uma vez que esta funciona como suporte e expressão da mesma.
vez que esta é fenômeno social, ao mesmo tempo em que transforma a sociedade.
do doente na filmografia de Pedro Almodóvar, uma vez que percebo que este as usa
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ABSTRACT
The studies in this field should take into consideration the link between the
society, since it works as support and expression of the illness itself. The illness is a
social construction and an individual is always ill because of society and according
phenomenon and, at the same time, transforms society. When cinema realized that
aim of this work is to discuss the construction of the sick person in Pedro
4
“Qualquer pesquisador sabe que, para obter financiamentos, é preciso
que seu trabalho conduza a “avanços tecnológicos de vanguarda” ou
“resultados relevantes para a realidade nacional na área em apreço”. Como se
verá, o nosso trabalho, diante desses critérios, era de fulgurante inutilidade”
Isaias Pessotti
História do latim historia, derivado do grego historia, histor, aquele que sabe: substantivo
feminino, estudo e narração sistemática do passado, dos fatos sociais, econômicos,
políticos, intelectuais etc considerados significativos; ramo do saber que registra, explica e
transmite o conhecimento sobre o passado; o curso dos acontecimentos e dos fatos
históricos; a evolução da humanidade; o passado; conjunto dos fatos e das situações que
constituem a ação da narrativa de um romance, filme etc; descrição; relato; narrativa;
conto. (Cunha, 1997)
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Agradecimentos
Avólio Vieira pelas flores. Os buquês mensais que ela me indicava possibilitaram o
tecitura deste texto. Dudu Bernardes e Marcelo Lino, que me apresentaram a Pedro
Almodóvar. Flávio Favre, Sergio Leandro e Maria Joana, com quem discuti muito
os filmes. Anna Beatriz de Sá Almeida (Bela), Alex Cassal, Vicente Saul e Denise
Rollemberg, que nessa última jornada, cada um a seu tempo, compareceram com
apaixonada por Pedro Almodóvar, que disse que se nada mais fazia sentido, que
pelo menos eu concluísse essa etapa da vida e Sophie Lejard, por sua torcida
animada e sua amizade sincera. Fabio Alex, sem sua ajuda no backstage nada disso
seria possível.
Carlos Eduardo Pinto, que, mesmo quando eu não acreditei mais nesse
texto, me fez ver que era possível sim, que leu com carinho e cuidado a dissertação,
mesmo quando já não era mais necessário, com quem discuti as hipóteses e assisti
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Nascimento, minha orientadora e mais que isso, minha amiga, que sempre
acreditou em mim e insistiu para que eu não morresse na praia. Somente sua força
À minha trindade materna, Dona Jupira, com quem divido o prazer pelo
cinema, Dona Jurema, que mesmo sem enxergar é a mulher de mais visão que
conheço, e Dona Ruth, que não gostava de Pedro Almodóvar, mas me acolheu, me
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ÍNDICE
8
Abre a cortina!
filmes de Pedro Almodóvar, a saber, Carne Trêmula, de 1998 e Tudo sobre minha
mãe, de 1999. Eu dizia que esses filmes traziam uma mudança na representação
seriam um bom remédio no tratamento dos doentes. A idéia de continuar com esse
tema me perseguiu durante os dois anos seguintes e finalmente achei que era hora
Mas de onde vem esse meu fascínio pelo cinema produzido por Pedro
adolescência. Cresci em uma casa de subúrbio, com todas as implicações que isso
possa trazer. Uma casa grande, oito quartos, um jardim com muitas árvores
residência habitava cinco tias-avós solteiras, um tio-avô, sua esposa, seus quatro
filhos e eu. O ambiente era familiar até a última conseqüência. Quando li, pela
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intrigas familiares e casos de adultério, sua crítica ácida sobre a moralidade
cheios de interditos e gozam, enfim, que exprimem com toda paixão e fúria a sua
série “A Vida como ela é”. Eu morava na casa de Herculano, Patrício e Serginho1.
Não por acaso, quando me deparei com o universo retratado por Pedro
que aquelas pessoas vivessem em outro país, falassem outra língua, suas paixões
rebeldes, pais ausentes, irmãs insanas, cores berrantes, boleros rasgados, ‘fossa’,
a pena dissecá-los aqui. Apenas a ressalva que, com 30 anos, cursando a faculdade
Marc Ferro e seu livro Cinema e História. Depois desse curso, outros vários me
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pontapé inicial para a utilização do Cinema para a História. O cinema poderia
desconhecido: a História das Doenças. Ali, entendi que doenças são, igualmente,
da sociedade a partir dos filmes, desenvolvido por Marc Ferro, com o conceito de
frame, desenvolvido por Charles Rosenberg. Uma lente dupla para entendermos a
de representação, a partir de Roger Chartier, uma vez que entendo que tanto
11
doença quanto cinema são representações e como tais produzem leituras possíveis
possamos supor, pois ele introduz em seus filmes suas próprias experiências,
transformando-as.
do primeiro capítulo, aplicando-as aos filmes escolhidos: o que é ser ‘são’ e o que é
ser ‘doente’, ‘dentro’ e ‘fora’, ‘marginal’ e ‘não marginal’. Minha intenção aqui é
No quarto capítulo, faço uma análise dos filmes Tudo sobre minha mãe e
Fale com ela, tendo em vista a solidariedade e ética como conceitos a serem
12
de Edgar Morin, sobre a construção de uma ética para o sujeito responsável, tento
perceber quais estratégias são possíveis para a redenção, não só do doente, mas
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CRÉDITOS INICIAIS
Doença, do latim dolentia, derivado de dolere, sentir dor, sofrer: substantivo feminino –
enfermidade, mal, alteração na saúde; falta de saúde; mal, moléstia, enfermidade; fig.,
mania; paixão; vício; defeito.
Filme, do inglês film, película: substantivo masculino, fita cinematográfica, que recebe por
impressão imagens em movimento.
doença sempre esteve presente no cinema, seja como tema central ou apenas como
pano de fundo. Por que tal tema se repete tanto na filmografia mundial? Talvez
porque a doença seja mais que um estado patológico. É uma dimensão humana,
um estado latente onde podemos perceber o ser humano em sua mais completa
normalidade. Susan Sontag afirma que “a doença é o lado sombrio da vida, uma
espécie de cidadania onerosa” (Sontag, 1984:7) e que não se deve abordar a doença
física em si, mas o uso dela como símbolo ou metáfora. As fantasias que as doenças
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inspiraram, e ainda inspiram, constituem reflexos de uma concepção segundo a
doente para o próprio doente e para a sociedade, como essas relações se constroem
relações que se constroem em torno do doente e da doença, seja ela qual for. Dupla
sanciona esses modelos e com que autoridade. E também perceber como o próprio
solidariedade podem ser caminhos alternativos não só para cura mas para a
abordar a História. Uma renovação que teve início na década de 1920, com a Escola
dos Annales, representada por trabalhos de Lucien Febvre e Marc Bloch. Eles
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superfície dos acontecimentos e investe tudo num fator” (Le Goff, 1998:31). O
objetivo dos Annales era uma história problemática no lugar do fato histórico puro
A partir da década de 1970, uma terceira geração dos Annales lança mão de
silêncios que os envolvem, as lacunas. A História Nova, como bem aponta o título
da obra que a lança, busca novos problemas, novas abordagens e novos objetos2.
mesma maneira, Marc Ferro escreveu sobre a importância de o cinema ser também
2 Para tanto ver obra citada História: Novos Problemas; Novas Abordagens; Novos Objetos. Le Goff,
Jacques (org), 1976.
16
Doença: Janela para a Sociedade
Peter e Revel escrevem em O corpo: o homem doente e sua história que o corpo
(Peter e Revel, 1976:141). O corpo é também ausente da história, mas um dos seus
silêncio daquilo que não foi dito, por não ter podido se resolver em palavras”
compósitas que unem duas ciências num substantivo e num epíteto” (Le Goff,
norteavam até então. Vale dizer também que a inserção do médico no mercado de
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trabalho e seu assalariamento levaram o profissional a este afastamento. Por outro
lado, o público leigo passou a interessar-se mais pelo assunto, ao mesmo tempo em
biológico mas uma entidade ilusória. Um conjunto de construções que acabam por
pouco modificado pelo contexto particular em que ocorre. Mas, para entendê-la
sociedade, quer nas políticas públicas de saúde, quer nas relações entre médico e
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Uma vez cristalizada na forma de uma entidade, a doença pode servir como
1997).
importantes sinais de mudança de valores sociais. Isto é verdade não apenas para
uma doença coronária, por exemplo, este diagnóstico torna-se um importante fator
algo recente. Antes era apenas objeto de reflexão para médicos aparecendo
histórica. Dilene Nascimento, em seu livro As Pestes do século XX: Tuberculose e Aids
no Brasil, uma história comparada (2005) argumenta que a doença, “como objeto de
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distribuição de doenças, processos de construção de identidades individuais,
reprimir comportamentos sociais não desejados. Mas, por outro lado, houve
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No caso da tuberculose, a partir das letras de tangos portenhos, o
sexo feminino, ainda que estudos apontem que uma incidência maior da
associação da tuberculose à mulher que sai de seu bairro para tentar a vida no
centro da cidade, revela a preocupação por essas mudanças. Segundo Armus, essa
isso nas letras dos tangos que escreviam. Para eles o lugar onde era possível a
mulher ser saudável era o lar e o casamento. Fora disso, só haveria prostituição,
tuberculose e morte.
houve um crescimento urbano sem precedentes; uma concentração cada vez maior
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visíveis, e dessa maneira mais fáceis de serem percebidos, analisados, classificados
e enquadrados.
mas também interrogar outros documentos com o intuito de buscar “a imagem dos
males que uma cultura põe no centro de suas preocupações”. Devemos retomar a
2005: 36).
Porém, a autora nos adverte que uma abordagem das doenças centrada nas
suas representações sociais - concepções que homens e mulheres fazem das suas
doenças – nos pode trazer problemas, uma vez que estaremos lidando com
símbolos. A interpretação pode ser uma via de mão dupla: corre-se o risco de ser
superficial, não indo além das aparências; por outro lado, tendo-se consciência de
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“não é simples reflexo do real – ela está enraizada na realidade social e histórica
demonstra que não é apenas um esforço coerente de um saber mas para além disto,
novo para as ciências sociais, em especial para a história. Há ainda uma rica
historiografia a ser avaliada e muita coisa a ser feita. Alguns exemplos são:
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Representação: Janela para a História
Carlos Eduardo Pinto, em sua dissertação O futuro do pretérito desenvolve bem esse
preciso “fazer presentes” acontecimentos que já não existem. Essa diferença entre o
presente e o passado tem caráter ontológico no ofício historiador. Por outro lado, a
representação também está baseada numa identidade, pois é preciso criar uma
primeira operação - fazer presente o passado - que tem sido levantada como
crise – junto com a própria ciência – ao deixar de ser entendida como um encontro
entre o real e a sua representação feita pelo historiador, e passar a ser encarada
24
como a imagem sempre mutante interpretada pelo historiador na conjuntura em
entendida como identidade simbólica e não como representação do real para além
das aparências.
a uma universalidade, são determinadas pelo interesse dos grupos que as forjam.
Podemos então dizer que essas percepções não são neutras mas produzem
ilusões dos discursos. Tal debate é vão. É necessário pensar em uma história que
tenha por objeto a compreensão das representações sociais, uma vez que essas
traduzem posições e interesses e “descrevem a sociedade tal como pensam que ela
25
é, ou como gostariam que fosse” (Chartier, 1990:19). O que o historiador pode fazer
representação e deve lançar mão da imaginação, que passa a funcionar como uma
Carlos Giznburg (2001). Mas esta questão pode nos levar a conclusões deturpadas.
Citando Chartier:
mais antigas do termo concluindo que representação deve ser considerada “pedra
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nos símbolos de uma realidade contraditória representada. As representações que
os grupos fazem deles mesmos e dos outros chama atenção para as estratégias que
problemática conduz “a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse
tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e
representações do real, ou, melhor dizendo, como a maneira que eles descrevem a
O cinema nasceu no fim do século XIX como uma nova linguagem a ser
essas técnicas aprendidas e desenvolvidas até então para moldar aquele gênero
que se firmou como hegemônico no mundo todo. Robert Stam, em seu manual,
Introdução à Teoria do Cinema (2003), explica que esta forma busca o realismo, de
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maneira que o expectador não enxergue nada além de suas próprias ideologias
seja, o filme narrativo clássico busca apagar todas as evidências de que é uma
cineastas europeus deram um grande passo, ao criar uma estética que transpunha
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para as telas as emoções humanas. Apesar de ser um movimento de cunho
europeu, foi na Alemanha que o Expressionismo teve sua maior produção. Ali se
registrou as profundas feridas que aquela nação passou com a derrota na Primeira
Grande Guerra. Nas sombras, nos devaneios e sobretudo nos delírios, os alemães
expressaram aquilo que sentiam mas não podiam verbalizar. Considerada uma
obras primas como O Gabinete do Doutor Caligari (1919), Nosferatus (1922) e M.,
um estilo nem um movimento, é uma percepção de mundo” (apud Galvão, 2005: 5).
terror. O uso das sombras, os devaneios das personagens, a música, enfim vários
elementos foram apontados como herdeiros de uma tradição fundada nos filmes
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emprestado o conceito desenvolvido por Marc Ferro, uma vez que os filmes
o filme não deve ser considerado do ponto de vista semiológico, nem da estética ou
da história do cinema. Tampouco deve ser encarado como obra de arte; porém
dentro desta perspectiva revisionista documental, podemos dizer que o cinema foi
alçado a “fonte digna de fazer parte da história e passível de leitura por parte do
historiador” (Cardoso e Mauad, 1997: 402). O cinema deixou de ser visto apenas
produção, até mesmo do Estado. Para ele, o filme possui uma tensão que lhe é
própria, o que proporcionaria uma análise da sociedade diversa, uma vez que
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aquele atinge as estruturas da sociedade ao mesmo tempo em que age como um
‘contra-poder’, por ser autônomo em relação aos diversos poderes desta mesma
sociedade.
tradicionais. Os “lapsus” deixados pelo diretor, pelo roteirista, pelo filme enfim,
desmentido da tradição escrita, mas considerar as imagens como elas são, lançando
31
“A hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade,
documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é
História; o postulado? Que aquilo que não se realizou, as crenças,
as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a
História” (Ferro, 1976:203).
Porém uma ressalva deve ser feita: o filme apresenta tensões próprias, mas
elas não devem ser pensadas como faces opostas da mesma moeda. Eduardo
Morettin, em artigo que analisa justamente este conceito desenvolvido por Ferro,
trabalha com a idéia de que o “filme pode abrigar leituras opostas acerca de um
determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura
interna” (Morettin, 2003:15). O que o autor defende é que uma vez percebido este
trabalha com fontes fílmicas deve ser identificar o discurso que a obra
mente as tensões, incertezas e ambigüidades que dela emerge. Se isso não for
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levado em consideração, o cinema perde sua efetiva dimensão de fonte histórica.
33
“Sou muito autêntica!”
utilização do humor para lidar com as questões do medo, ajudando a diminuir sua
Guerra Fria - propondo-nos uma visão de cogumelos atômicos nos locais dos testes
nucleares e canções country com letras do tipo “vamos nos queimar todos juntos”, ou
o próprio subtítulo – uma piada – “Como aprendi a não me preocupar e amar a bomba”.
Tudo isso tem uma função brechtiana: o tema amedrontador é tratado de forma
nuclear, Kubrick lançou mão de recursos como o clipe final - usado pelo
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palestrante - que mostra os cogumelos atômicos ao som de uma canção romântica
cuja letra que diz “vamos nos reencontrar não sei onde, não sei quando”; o general que
mundo; ou ainda o nome do militar que ordena o ataque nuclear à União Soviética,
resultar em desastre. Existem também questões de ordem sexual: o filme tem todo
na proporção de dez mulheres para cada homem. A sátira funcionou tanto a ponto
Esse uso do humor e da sátira como alegoria tem sido um recurso recorrente
3 Jack, o estripador, (Jack the Ripper) foi o pseudônimo dado a um serial killer não-identificado que agiu no
miserável bairro de Whitechapel em Londres na segunda metade de 1888. O nome foi tirado de uma carta
enviada por alguém que dizia ser o assassino, publicada nos jornais na época dos crimes. Embora diversas
teorias tenham surgido desde então, a identidade de Jack, o estripador, nunca pôde ser determinada.
4 O trocadilho aqui é um tanto incompreensível na língua portuguesa. Mas o verbo to kiss off tem
um significado de rejeição, de não querer mais. Como gíria, kiss off pode dizer que você não tem
interesse em beijar durante o sexo casual ou que você só beijaria a pessoa depois de ter mais alguma
intimidade.
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cerca, traz em seus filmes uma crônica social da Espanha, e do Mundo Ocidental,
de maneira ácida e às vezes cruel, mas sempre recheada de bom humor. Sua
primeiros filmes mostram uma sociedade ávida por liberdades, após um longo
e comportamentais conviveram lado a lado por uma década, (1975 – 1985) após a
nos filmes produzidos até A Lei do Desejo, de 1986; a segunda fase, inaugurada
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puro” (Bravo, nº 84, p.79), onde os elementos do chamado “cinema
meu segredo, de 1995, e que segue até os filmes atuais, onde apesar do estilo kitsch7
ainda estar presente, os dramas pessoais já não tem uma carga melodramática tão
Almodóvar e o Mundo
até 1986 e posteriores. Para além do fato de Pedro Almodóvar ser um completo
desconhecido fora da Espanha até então, suas tramas e personagens ainda trazem
uma ânsia de liberdade após a queda do Regime Franquista. São filmes com um
forte apelo local, ainda que universais, mas que retratam o cotidiano daquelas
Após 10 anos, seus filmes começam a dar uma guinada, tornando-se mais
7 Kitsch é um termo, de origem alemã, usado para categorizar objetos de valor estético considerado inferior
ao original. O termo surgiu em Munique, em 1860, sendo empregado primeiramente na área de decoração.
Em linhas gerais é uma negação do autêntico, uma deturpação dos estilos tradicionais e instituídos. Com o
passar dos anos acabou por significar qualquer coisa que seja de mau gosto. Além disso, há uma tendência a
se considerar kitsch ou inferiores, a maioria dos objetos produzidos industrialmente.
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acaso, A Lei do Desejo é o filme que o projeta mundialmente, impulsionando sua
a promover retrospectivas de sua filmografia, até então com sete filmes longa-
York, relata que Almodóvar inclusive foi comparado a cineastas famosos como o
seu conterrâneo Luís Buñuel, o americano Woody Allen, os alemães Rainer Werner
8 Criado em 1984, o FestRio foi um dos primeiros festivais de Cinema da cidade do Rio de Janeiro.
Em 1989, mudou o nome para Mostra Banco Nacional de Cinema, tornando-se a principal vitrine
do cinema nacional e internacional. Após a falência do Banco Nacional, mudou novamente o nome
para Mostra Rio de Cinema, mantendo as características dos anos anteriores. Em 1999, se fundiu ao
Rio Cine, outro festival de cinema, criado em 1984, passando a chamar-se Festival do Rio,
considerado o maior festival de cinema da América Latina.
9 Cabe aqui uma pequena lembrança: em 1988, um amigo, recém-chegado da Europa, trazia em sua
bagagem uma fita de vídeo-cassete e convidou alguns amigos para assistirmos em sua residência “a
grande sensação européia do momento!”. O filme era A Lei do Desejo e continha uma história de
amor entre três homens, um personagem transexual e um festival de cores. Assim Pedro
Almodóvar entrou em minha vida.
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“Com suas mensagens de liberdade e contra a repressão dos
desejos mais primitivos, o cinema de Almodóvar assume um leve
sabor dos anos 60, embora o cineasta recuse qualquer rótulo de
militante ou engajado. Sua câmara procura circular por todos os
estratos da sociedade madrilenha, dos conjuntos habitacionais de
O que fiz para Merecer Isto?, até as coberturas dos edifícios dos
bairros ricos mostrados em Mulheres a beira de um ataque de
nervos” (Folha de São Paulo, 01/05/1988, A61) [Os filmes estão
com os títulos com os quais foram lançados comercialmente no
Brasil].
dessa nova fase, com prêmios em vários festivais internacionais, chegando em 1989
cinema espanhol e Pedro Almodóvar recebeu apelidos como “enfant terrible” e “rei
inusitados.
Londres. Mas não foi isso que aconteceu. Nos Estados Unidos, o filme recebeu
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recepção da crítica especializada e do aplauso do público. A Motion Picture
a classificação e expondo os meandros políticos por trás daquilo que ele chamou de
censura:
40
A transição democrática e o cinema de Almodóvar
afirma que
passados. Mais que isso, eles nos permitem refletir sobre temas como a
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carnavalização, cultura popular, homossexualidade, desejo e principalmente a
dos conceitos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin em seu livro A Cultura Popular na
verbais. Bakhtin afirma que essa literatura não é folclore, mas que utiliza, de forma
42
Podemos dizer, então, que o carnaval era momento de liberação das ordens
privilégios, regras e tabus, assim como hoje. Opondo-se ao status quo, o carnaval
relativo. O alto é o céu e o baixo, a terra. Ou seja, o que está embaixo entra em
43
duplos, ambivalentes: há um valor destrutivo e negativo, mas também um positivo
madrileña. Essas pessoas tentaram e fizeram outro tipo de arte, dispostas a inverter
e sexuais, tidos como não ‘normais’. O paralelo é possível. Bakhtin afirma que na
amplitude cósmica do mito. Por trás das imagens, estão pessoas e acontecimentos
44
Da mesma maneira, as personagens dos filmes de Pedro Almodóvar são
próprio Almodóvar diz que Madri representava “o primeiro lugar onde os filmes
estreavam, e também a cidade onde todo mundo fazia a sua própria vida.
Delgada afirma que “as cidades, como espaços de vivência coletivas, são paisagens
através dos espaços coletivos de uma cidade. A cidade passa a ser uma
personagem viva das narrativas que expressam o cotidiano das pessoas que nelas
vivem.
Assim, Almodóvar, então com 17 anos, deixou sua cidade natal na região da
La Mancha e partiu para Madri. Sua primeira impressão foi decepcionante: Madri
lhe pareceu suja, pouco acolhedora e bem desleixada, um cheiro úmido e pegajoso
que ficaria gravado para sempre em sua memória. Mas aceitou essa realidade de
que em Madri, nem tudo era luxo e diversão. As cidades têm periferia, poluição,
10 Há duas exceções na filmografia de Pedro Almodóvar, no que tange a cidade de Madri como
cidade-personagem: Tudo sobre minha mãe, de 1999, que quase toda é ambientada em Barcelona e
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contraditória e variada. Assim como as pessoas são constituídas de milhares de
facetas (muitas delas contraditórias), esta cidade contém, para mim, mil cidades
cena de abertura do filme Maus Hábitos mostra o anoitecer em Madri, com suas
avenidas pulsando tal qual uma artéria; a seqüência inicial de Labirinto de Paixões
memorialistas – lança mão das categorias ‘espaço’ e ‘tempo’ para se identificar com
seu último filme, ainda sem data de estréia no Brasil, Volver, de 2006, que se passa na terra natal do
diretor, La Mancha.
46
fundamentais para a construção e a solidificação de identidades” (Delgada,
2006:121).
país onde já não triunfam as grandes idéias salvadoras e se vive ao sabor dos dias”
(Garcia de Leon e Maldonado, 1989 apud Silva, 1996:52), destrói o quadro oficial da
sua época e de seus acontecimentos e lança um olhar novo sobre eles. Mobiliza
todos os meios das imagens populares lúcidas para extirpar as idéias relativas de
seu tempo: a mentira oficial, a seriedade limitada e ditada pelos interesses das
classes dominantes. Almodóvar parece ter assumido esse papel na sociedade pós-
pensar e refletir sobre quais papéis, as pessoas deveriam assumir nessa nova
que fala do corpo. Sobretudo da intensidade sexual [...] sob o jogo voyeur da
é obscena. Seus impropérios são ditos em bom e alto som, em praça pública, para
47
Três filmes
Pepi, Luci e Bom, seu primeiro filme longa metragem de 1980, narra a
trajetória de três amigas, interpretadas por Carmen Maura (Pepi) Eva Silva (Luci) e
Olvido Gara (Bom) envolvidas com um estupro. A seqüência inicial do filme nos
partir de então se faz por locais onde vivem e se divertem as amigas, procurando
vingança pelo estupro. O próprio diretor aparece em uma boate, comandando uma
espaço público.” (Marti i Rom apud Silva, 1996:54). Almodóvar parodia o clima
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festivo pela qual a sociedade espanhola passava desde a morte de Franco. A figura
como ‘clima típico das festas’, para usar a expressão de Bakhtin. Almodóvar
destrói idéias oficiais sobre a época e seus acontecimentos, mas não se esforça para
fazer uma análise científica. Seu objetivo não é a linguagem das concepções, mas a
das imagens cômicas populares. Acredito que ele reflete um desejo de não só expor
histórico. Almodóvar não só filma a movida como também dela participa como um
dos foliões dessa animada festa. Ou melhor, como um bobo da corte, que aponta a
Almodóvar é infiltrado pela movida. Da mesma maneira que Bakhtin adverte que
não devemos analisar a Cultura Popular na Idade Média sem levarmos em conta
49
Labirintos de Paixões de 1982, narra a história de Sexilia (Cecilia Roth) e
vagando pelas ruas de Madrid, observando as pélvis e nádegas dos rapazes que
passam por eles. Cecilia, Riza e Sadec desfilam pela trama “explicitando seus
seus rostos, que não fazem questão alguma de esconder o que querem. Eles não
têm medo e “desfilam seu prazer certos de que, pelo menos eles, são parte desta
50
Franco chegou a instituir a dublagem de todos os filmes estrangeiros a partir de
1940, para evitar palavras consideradas de baixo calão. Outra prática dessa época
paródica a essa política. Ao trazer para cena fílmica personagens com desvios
retratada tal qual o carnaval na Idade Média. Bakhtin afirma que “o carnaval é a
segunda vida do povo, baseada no princípio da vida. É a sua vida festiva” (Bakhtin,
1987:7). E mais uma vez, ao filmar o submundo de onde ele vem, Almodóvar se
coloca como um bufão, um bobo da corte, que vive essa vida 24 horas, situando-se
Sánchez Pascual), cantora decadente de cabaré, perseguida pela polícia por ser a
em crise assistencial, uma vez que ninguém mais a procura em busca de conforto,
51
amparo e proteção. Até pouco tempo esse convento destinava-se a recolher
constantes. Comandadas por Madre Julia (Julieta Serrano), as irmãs desse convento
temos as irmãs Esterco (Marisa Paredes), Rata (Chus Lampreave), Víbora (Lina
delas.
Madre Júlia, que já nutria uma paixão por Yolanda, agora está próxima ao
decorado em tons de vermelho, com vários objetos que beiram o mau-gosto. Este
parece santificá-la. Na cena seguinte, a Madre oferece uma seringa com heroína, o
que deixa Yolanda vacilante. Para encorajá-la Madre Júlia arregaça as mangas de
seu hábito e aplica-se uma injeção. A despeito do frenesi causado pela chegada de
52
Yolanda, a Madre Superiora chega a prever que em breve o convento estará
viciada em ácido, Irmã Rata escreve livros eróticos – e ganha dinheiro com isso –
apaixonada pelo padre e Irmã Perdida além de ter uma mania doentia de limpeza,
– drogas, sexo, contos eróticos. Mas esse rebaixamento não é gratuito ou negativo.
Ele nos faz pensar no papel das instituições religiosas no mundo contemporâneo,
53
de superar o conflito de classes” (Silva, 2000:130-131). Assim, as forças de direita,
afirmou que a Espanha era um dos países mais liberais e civilizados da época – fim
54
próprias palavras: “Se existe uma imagem que descreve a Espanha de hoje esta é
esgotadas nesse trabalho. Devemos levar em conta que essa filmografia traz à tona
um mundo mais próximo de nós, com o qual temos afinidades e que conhecemos.
Um mundo com o qual nos identificamos. Um mundo que por mais inverossímil
que seja, resulta em algo crível. Em seu livro-coletânea Cinema e História, Marc
Ferro utiliza a hipótese de que um filme é tão história quanto a História tirada dos
documentos oficiais escritos. Tudo o que aconteceu, e que também não aconteceu,
a História (Ferro, 1992:86). Wilson Silva defende que apenas “assumindo o ponto
universo fílmico que, absurdo e irreal em uma primeira análise, está plenamente
como fonte de inspiração, Almodóvar trouxe para sua obra riqueza, contradições e
55
transformação. Uma sociedade disposta a reescrever seu passado, reinventando
seu futuro, deixando para trás muitos preconceitos e perdendo o medo dos
viver.
cômicas exageradas – Tudo sobre minha mãe (1999) e Fale com ela (2001), da fase
atual– dramas mais contidos, fotografia mais suave, roteiros mais concisos – foram
mundial, tiveram uma maior visibilidade internacional, têm entre si, semelhanças
de temas na sua abordagem. Mas veremos estas e outras questões nos capítulos
adiante.
11 A expressão “ditadura civil-militar” é utilizada por vários historiadores em lugar da mais divulgada
“ditadura militar” para reforçar a tese de que a sociedade civil participou ativamente, não só do golpe de
1964, mas também na sustentação do regime ditatorial. A união entre amplos setores civis, como a Igreja e o
IPES, e militares sempre dispostos a desatar nós institucionais e sociais com tanques e fuzis, foi uma resposta
a uma conjuntura internacional de radicalização, num mundo onde a Guerra Fria determinava os campos de
atuação ideológica. Para maiores esclarecimentos, ver Fico, Carlos, Além do golpe: versões e controvérsias
56
No manual organizado por Fernão Ramos, História do Cinema Brasileiro (1987), José
Mário Ortiz Ramos nos informa que “um significativo número de filmes liderados
em suas temáticas, temas – greves, luta armada, tortura - que foram abafados pela
censura das décadas anteriores. Posição partilhada pelo historiador Alex Cassal.
Este afirma que o marco do Cinema Brasileiro nessa época foram os filmes que
Paula, dirigido por Francisco Ramalho em 1980, seria o primeiro de uma série de
sobre 1964 e a Ditadura Militar, Rio de Janeiro, Record, 2004; Reis, Daniel Aarão, A revolução faltou ao
encontro. São Paulo, Brasiliense, 1990; Ridente, Marcelo, Em Busca do Povo Brasileiro – Artistas da
revolução, do CPC à era da TV, Rio de Janeiro, Record, 2000; Rollemberg, Denise, O apoio de Cuba à luta
armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro, Rio de Janeiro, Mauad, 2001; entre outros.
57
um personagem em comum: o revolucionário. Um indivíduo que optou, ou foi
Esse processo foi feito por iniciativa do próprio governo, ou seja, de cima para
baixo. Este jamais perdeu o controle do processo e mais, imprimiu nele a sua
58
vista agora como ‘um pesadelo que é preciso exorcizar’. E os
criminosos, terroristas, subversivos, comunistas de há pouco
tornam-se heróis.” (Cassal, 2001:15)
(Ramos, op. cit.) Dessa maneira, podemos afirmar que os anos de chumbo
para que o espectador identifique ali um herói. Passaram a ter outro rosto, outra
para si mesmos e para a história de seu país. Os revolucionários foram heróis não
porque fizeram grandes feitos, mas porque acreditaram que poderiam mudar o
mundo” (Cassal, 2002:73). Vale ressaltar também que algumas obras nesse período
do herói.
59
Outro segmento do cinema nacional que teve uma produção pungente nessa
esses filmes logo caminharam para o sexo explícito, na esteira do fim da censura.
tema, apesar da boa resposta do público. Por fim, um incipiente “cinema jovem”
democrática.
uma nova realidade urbana e cosmopolita. Mas esses são estudos ainda por vir.
Sigamos em frente!
60
“Não estou curada!”
Doente, do latim dolens entis: adjetivo, enfermo (XIII), que tem doença; débil; fraco;
figurado, que sofre de um incômodo moral; apaixonado, obcecado em excesso;
substantivo, pessoa enferma.
Louco, de origem obscura: adjetivo, que perdeu a razão; doido; alienado (XIII);
insensato; imprudente; doidivanas; brincalhão; folgazão; apaixonado; arrebatado; furioso;
substantivo masculino, indivíduo que perdeu o uso da razão; demente.
(Cunha, 1997)
A doença, seja ela qual for, sempre acompanhou o homem em sua jornada
pela Terra. Porém, sua problematização no campo histórico é muito recente sendo,
epidémic du XIX sciécle, de Louis Chevalier, de 1958, Cholera and Society in the
Nineteenth Century, de Asa Briggs, de 1961, The Cholera Year The United States in
1831, 1849 and 1866, de Charles Rosenberg de 1962, Une ville devant la peste: Orvieto
61
et la pesre noire de 1348, de E. Carpentier, de 1962, são alguns exemplos12. Esses
artigos apontaram para uma lacuna da história social no que tange as abordagens
introdução de “Epidemics and Ideas” nos informa que os trabalhos de Asa Briggs e
Louis Chevalier, inauguraram uma tradição “showing how societies coped with,
reacted to and interpreted short-term but intense epidemic crises” (Slack, 1992:1). Ainda
que esses estudos tenham sido pioneiros, no entanto, não imprimiram o sentido de
construção social da doença, uma vez que as próprias concepções científicas que as
enquadram também são constructos sociais. De certa maneira, ainda havia muito
que se fazer.
12 Estes artigos, entre vários outros posteriores, são citados por Paul Slack na introdução de
Epidemic and Ideas: esays on the historical perception of pestilence, Cambridge University Press, 1992.
62
Desse modo, podemos pensar que a doença, como fenômeno social, e
avaliando a dimensão social da doença, como ela se mostra, entendemos que ela
Dentro dessa linha, diversos estudos realizados apontam para uma direção
que não se limita às fontes médicas mas que busca outras para a confrontação:
intuito seria de aí procurar a representação que se faz das doenças que acometem
discursos não são neutros, pois pretendem justificar suas escolhas e condutas.
13 Aqui podemos citar os trabalhos de Sendrail, Marcel, Histoire culturelle de la maladie, 1980;
Bertolli Filho, Cláudio, História social da tuberculose e do tuberculoso, 2001; Carrara, Sérgio, Tributo à
Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, 1996; Armus, Diego, El viaje al centro: tísicas, costureritas y
milonguitas em Buenos Aires, 2002; Delaporte, François, Le savoir de la maladie: essai sur le cholera de
1832 à Paris, 1990; Cueto, Marcus, El regresso de las epidemias, 1997; Tronca, Ítalo, As máscaras do
medo: Lepra e Aids, 2000; Porto, Ângela, A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um
poeta tísico, 1997; e Nascimento, Dilene Raimundo, As pestes do século XX; tuberculose e Aids, uma
história comparada, 2005, entre outros.
63
Trabalhando com as representações em geral e as que se fazem das doenças,
às vezes, estarem em campos opostos, concorrendo uma imagem com a outra; por
Campo da Doença (2005) diz que há alguns pontos de referência nessa proposta de
trabalho e que um deles seria dar conta do fato de que uma representação social
society and history (1997). Como escrevi anteriormente, ele afirma que a doença,
64
como conceito, é um conjunto de construções verbais e sociais que refletem a
relação médico-paciente. “In our culture a disease does not exist as a social phenomenon
until we agree that it does – until it is named” (Rosenberg, 1992:xiii). Essa noção é
compartilhada por Claudine Herzlich, que assinala que devemos levar em conta a
animais, por exemplo, que não têm comportamento social ou cultural, mas que
65
Percebemos então que a doença, assim como qualquer outro aspecto da
científicas às quais ela esteve tão ligada durante o século XIX, é ela própria um
sistema social. Nesse sentido, Rosenberg defende que a designação ‘história social
conceito.
Rosenberg afirma que, nas duas últimas décadas do século XX, houve um
interesse crescente pela história das doenças, sendo a construção social da doença
apenas um aspecto deste quadro de interesses. Há outros como a ênfase dada por
66
explosão demográfica na virada do século XIX para o século XX; o interesse de
Diego Armus afirma que todas essas novas propostas têm em comum a noção que
a doença é algo mais que um vírus ou uma bactéria pois somente após uma série
67
facilitan y justifican el uso de ciertas tecnologías, descubren condiciones
materiales de existencia y aspectos de las identidades individuales y
colectivas, sancionan valores culturales y estruturan la interacción entre
enfermos y proveedores de atención a la salud” (Armus, 2002:12)
paciente. Uma tensão se estabelece nesse ponto. Por um lado, nos séculos
para que os leigos aceitassem mais o julgamento dos médicos, fazendo com que os
importantes nesta relação (Rosenberg, 1992:xviii), como também fez com que o
organismo.
forma de uma entidade, a doença pode servir como um fator estruturante das
68
relações sociais, tornando-se um ator social e uma mediação das relações sociais e
ator numa rede complexa de negociações. A doença acabou sendo usada por
comportamento. A higiene deve ser vista como regime de saúde das populações.
(Foucault, 2000).
anteriormente. No livro Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos, em relação à
69
produzido em torno da mesma, seja na Literatura, nas Artes Plásticas ou no
Cinema. Por isso proponho uma leitura dos filmes de Pedro Almodóvar para o
Mulheres Insanas
restrito a pequenos círculos cinéfilos de cidades como Nova York, Londres ou Rio
realizado diversas retrospectivas de sua obra, então com oito filmes, incluindo aí
de critica. Aqui no Brasil não foi diferente. Sua recepção no Brasil foi calorosa e
70
culpas e amarguras, imprimindo ritmo de comédia mesmo quando
os personagens sofrem por abandono, preconceitos sociais, Aids,
angústias sexuais e obsessões diversas” (O Globo, 13/11/1988, 2º
Caderno:5).
Oscar de melhor filme em língua não inglesa, concedido pela Academy of Motion
Picture Arts and Sciences dos EUA. Apesar deste prêmio ser norte-americano, a
projeção mundial foi instantânea. Eli Azeredo, escrevendo para o jornal O Globo,
diz que finalmente Pedro Almodóvar “sai do terreno dos cineastas talentosos,
18/11/1988, 2º Caderno:1).
narrativa está em Pepa (Carmem Maura), recém abandonada por seu amante Ivan
Pepa teve uma briga definitiva com Ivan e agora tenta desesperadamente
reencontrá-lo. São dois dias de intensa busca infrutífera, uma vez que Ivan não
quer revê-la e está de viagem marcada com a advogada Paulina Morales (Kiti
Manver), sua nova amante. Pepa busca Ivan por toda Madrid, sempre voltando
71
solitária para sua cobertura, em suas próprias palavras - uma espécie de arca de
Noé onde ela tentou salvar vários casais de animais não conseguindo salvar o
principal: eles mesmos. Nessa busca acaba por acaso, conhecendo Carlos, filho de
Ivan com sua primeira esposa, Lucia. Ele e sua noiva Marisa vão conhecer a
cobertura em que Pepa vivia com Ivan e que agora ela pretende vender.
Conversando com Carlos, Pepa acaba descobrindo que Lucia foi internada em um
sanatório logo após o parto de Carlos, tendo permanecido aí até bem pouco tempo
anos atrás, com perucas e assessórios extravagantes. Na verdade, o tempo para ela
não passou e acredita que Pepa e Ivan ainda vivem juntos, não suportando essa
conversa entre as duas é tensa. Lucia conta que não se lembrava de nada enquanto
estava internada. Mas, um dia, assistindo televisão escutou a voz de Ivan. Não
reconheceu o rosto, mas a voz era inconfundível. E ela, a voz, dizia que amava uma
outra mulher. A mesma voz que tantas vezes havia dito a mesma Lucia que a
um plano de vingança. Avaliada por médicos foi considerada curada mas Lucia
afirma categórica: “Não estou curada!”. A cura de Lucia foi seu ódio por Ivan e
Pepa. Esta tenta explicar que ela também foi abandonada por Ivan e que ele está de
72
viagem marcada com sua nova amante, que vem ser justamente a advogada que
Armada, Lucia vai atrás de Ivan no aeroporto disposta a matá-lo. Pepa então
resolve impedir esse assassinato, iniciando uma perseguição hilária, que evita o
desfecho trágico.
As perguntas que faço diante desse filme são por que Lucia foi internada,
O que é ser doente? O que é estar curado? Quem detém esse monopólio?
doença não existe até que tenhamos concordado que ela exista, através da sua
73
enquadramento, é o saber médico. George Rosen (1994) nos relata que uma
(Rosen, 1994:113).
Jovens Insanos
Eduardo Magalhães, escrevendo para o jornal O Globo nos avisa que Ata-
me não é uma comédia rasgada como seu filme anterior; antes, revela o “lado mais
crítica, publicada no mesmo jornal, diz que, embora o resultado seja interessante,
anterior, Ata-me não foi planejado para nenhum festival de cinema no Rio de
Janeiro.
74
Ata-me traz uma situação muito semelhante no que tange o encarceramento
do louco, observado no filme anterior. A abertura do filme é uma pintura que aos
ainda não saibamos disso. Um rapaz, Ricky (Antonio Banderas), conserta uma
porta. É chamado pela diretora da instituição (Maria Barranco) que lhe dá uma
notícia. O juiz decidiu pela sua soltura. Em meio a uma crise de choro, afirma: “Ser
livre significa também estar só. Agora você é responsável pelos seus atos perante a
então quais são seus planos e Ricky afirma que vai trabalhar e constituir família
“como qualquer pessoa normal”. A diretora afirma categórica: “Você não é uma
pessoa normal!”. Ricky responde que o juiz decidiu que sim ao que a diretora
retruca: “O que sabe o senhor Juiz?”. Sabemos então que os dois foram amantes.
Corte para o quarto onde Ricky guarda seus pertences. Ali ele trava um
diálogo com um dos internos (Oswaldo Delgado) que o pergunta se ele vai fugir
novamente. Ricky responde que não, desta vez o juiz o soltou e o reintegrou à
Ricky sai do Hospital Psiquiátrico e anda nas ruas em meio a uma multidão
de anônimos curtindo sua recém liberdade. Afinal quem é normal ali e quem não
Ricky e vemos uma matéria sobre a gravação de um filme B com a atriz pornô
75
Marina Osório (Victoria Abril). Ricky vai até o estúdio e entra furtivamente no
camarim da atriz, roubando seu endereço, suas chaves de casa e dinheiro entre
Sofreu um derrame e está preso a uma cadeira de rodas. Diz à repórter que
aprendeu tudo de novo: falar, ler, escrever, mas sobretudo a continuar vivendo.
Por isso resolveu filmar de novo. O filme representa sua vitória sobre a
enfermidade.
furtivamente. Aos poucos vamos ficando intrigados com seu comportamento. Mas
apartamento de Marina e a agride. Quando ela acorda, Ricky revela suas intenções:
ele a raptou para que ela o conhecesse melhor e se apaixonasse por ela como ele é
apaixonado por ela. Diz: “Tenho 23 anos e 50.000 pesetas. Quero ser um bom
marido e um bom pai para seus filhos.” A relação inicial entre raptor e prisioneira
é tensa e violenta. Marina é viciada e precisa de drogas fortes para aplacar a dor
dos ferimentos provocados por Ricky. Ele sai às ruas para comprar algo e é
curativos. Ali eles começam a se beijar e acabam fazendo sexo. Após essa cena,
Ricky explica a Marina que a havia conhecido em sua última fuga, um ano antes. E
76
mostra sua trajetória desde os três anos, órfão de pai e mãe, até o momento em que
ocupado pensando em ti, não fiz mais loucuras e fiquei normal.” Sem tempo para
pensar em outras loucuras, acabou sendo considerado curado pelo juiz. Marina é a
sua ‘normalidade’. Marina apaixona-se por Ricky, mas sua irmã, Lola (Loles Leon),
a acha e a liberta. Marina foge com sua irmã e deixa Ricky só.
alguém doente a ponto de encarcerá-lo em uma clínica e depois afirmar que este
Um pouco de Teoria
Estado. O cinema possui uma tensão que lhe é própria, trazendo á tona elementos
estruturas da sociedade, e ao mesmo tempo, age como um contra poder por ser
77
O cinema permite o conhecimento de regiões nunca antes exploradas.
Descobrir a porta que nos leva a estes caminhos significa salientar os lapsos
deixados pelo diretor e seu produto. Cabe salientar que esses caminhos são
cinematográfica comprovaria sua tese. Para Christian Metz14 (apud Stam, 2002)
todos os filmes são ficções porque são representações. Para o autor, a atividade de
objetos, comportamentos sociais etc, que são transmitidos sem que o diretor queira.
14 Christian Metz foi um semiólogo e teórico do cinema francês e um dos primeiros a tentar
interligar a semiologia ao cinema. Para melhor entendimento ver A significação no cinema (1977) e
Linguagem e cinema (1980), por exemplo.
78
um determinado material de expressão, e ainda como linguagem artística, um
proposta de Ferro de não utilizar o filme do ponto de vista semiológico nem como
simbólicas. Sua validade vai além do testemunho, mas “também pela abordagem
sócio-histórica que autoriza” (Ferro, 1992:87). Dessa maneira, a análise não incide
filme e não ficar “a meio caminho entre o filme como fonte e como objeto”
(Cardoso e Mauad, 1997:412) como Flamarion e Mauad acreditam que Ferro faz.
79
Mirian Nogueira escreve em seu artigo ¡Ata-me! última parada do desejo (1996)
que Almodóvar “busca tirar de seus personagens uma alma que os torna
verossímeis” (Nogueira, 1996:304). Eles são absurdos sim, mas como não acreditar
em suas paixões e desejos? “A dona de casa de Almodóvar não reflete apenas uma
dona de casa qualquer – ela é recriada ao converter-se em signo, não uma figura
anômalos; ainda hoje ela se apresenta com este objetivo” (Facchinetti, 2004:296).
exercícios e atividades ao invés das correntes, essa não era “uma ação positiva
sobre o doente ou a doença, mas simplesmente uma anulação dos efeitos negativos
do hospital” (Foucault, 2000:103). O louco continuou a ser recolhido, pois não fazia
80
parte da ordem social. De fato, no século XIX, a definição para alienado era aquele
que não tem consideração por nenhuma regra, nenhuma lei, nenhum costume,
cujas ações estão sempre em oposição tanto aos hábitos do país em que habita
apud Engel, 1999:548). Passado quase dois séculos, as noções sobre a loucura
a cura, pode até ser conceituado de maneiras diferentes, mas raramente, escapa à
noção de readaptação a um mundo do qual ele não faz parte ou ao qual se mostra
mentais, mostrou que a busca pela defesa dos direitos humanos dos doentes
81
um mesmo objetivo: “respuestas sanitarias no asilares (redución del número y tiempo de
Percebemos então, que as noções de que o louco deve ser internado e ali
perigo social herdada dos séculos XVIII e XIX fazem parte de nosso imaginário.
Para eles não há negociação. E são essas representações que os filmes trazem.
médico – no caso de Lucia – ou jurídico – no caso de Ricky – decidiu que eles não
eram mais loucos e que podia se reintegrar à sociedade. Eles, porém, são
representados ainda como loucos, ou não ajustados ao mundo que os cerca. Lucia
se veste e comporta como se o tempo não tivesse passado. Para ela, seu marido
ainda vive com a amante e é deles que ela quer se vingar. Confrontada com sua
pretensa rival, ela avisa “Não estou curada!”. Frustrada em sua vingança, ela se
82
entrega novamente ao poder que a encarcerou. Porém desta vez, é a polícia quem a
leva embora.
paciente avisa: “Não confie na sociedade!”. Os riscos são grandes. Se ele não se
ainda não existe. Marina não o conhece, nem sabe de sua existência. Mas ainda
assim ele vai a sua procura. Sua proposta? “Tenho 23 anos e 50.000 pesetas. Quero
ser um bom marido e um bom pai para seus filhos.” Seu desejo é fazer parte da
sociedade que o rejeitou, constituir família, casar ser normal. Marina representa a
‘cura’ para Ricky, sua salvação, sua negociação para voltar a conviver em
sociedade. Ao ser rejeitado por Marina, Ricky foge para sua antiga casa, em uma
afirma que o personagem Ricky é bastante ingênuo e inconsciente e que isso é que
permite que ele se levante todos os dias com entusiasmo, pois não perderam a
ilusão de viver. “O otimismo, a vitalidade, ter uma grande disposição de viver são
83
Duas maneiras de atribuir significados à loucura. Lucia, representando o
arcaico, aquilo que não tem mais vez, o ultrapassado, sem chance de negociações;
cheio de cor e viverem situações bizarras, não fogem daquilo que nos fazem
humanos. As representações são plausíveis, pois seus sentimentos são reflexos dos
sonhos e desejos não só do diretor e roteirista. Mas de todos nós. Assim podemos
perceber que as representações da sociedade que imprime nos seus filmes não
84
“Sempre dependi da ajuda de estranhos”
Ética do latim ethica ou do grego ethiké: substantivo feminino, ciência da moral; moral;
Filosofia, disciplina filosófica que tem por objeto de estudo os julgamentos de valor na
medida em que estes se relacionam com a distinção entre o bem e o mal.
(Cunha, 1997)
A chave de análise dos filmes Tudo sobre minha mãe e Fale com ela é a
ética e a solidariedade para com os doentes e sua relação com outras pessoas. Mas
o que é ética, afinal de contas? Essa não é uma pergunta fácil de se responder.
Professor José Roberto Goldim15 aponta que o consenso está longe de ser
alcançado. A origem pode estar ligada a duas palavras em grego: éthos com um ‘e’
curto, que significa ‘costume’; éthos, com ‘e’ longo, significando ‘propriedade do
caráter’ (Goldim, 2006). A segunda palavra evoluiu para a palavra ethiké, que
sobre aquilo que é bom, segundo Moore (apud Goldim, 2000); ocupa-se e pretende
15 Doutor em Medicina pela UFRGS, trabalha na linha de pesquisa Respeito à Pessoa e Ética em
Pesquisa. É membro do Conselho Consultivo da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.
85
regras, princípios e maneiras de pensar que guiam ou chamam a si a autoridade de
regem a conduta humana (Campos et al, 2002). No senso comum ética significa um
à política” (apud Campos et al, 2002) pois a aristocracia é a classe de mais alta
virtude, no mundo cristão medieval, São Tomás de Aquino traz a idéia que
somente a partir de Deus é que podemos alcançar a verdadeira ética, uma vez que
como Kant, afirmam que devemos nos submeter ao dever: “Age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”
(apud Campos et al, 2002). A ética moderna era claramente influenciada pelos
princípios cristãos. Hagel, já no século XIX, partindo de uma nova perspectiva, nos
de tal maneira que passamos a praticá-los sem nem mesmo pensar neles.
86
O mundo contemporâneo incorporou essas duas últimas correntes – Kant e
Hagel – uma vez que o Homem tem a capacidade de julgar mas não possui a
consciência totalmente livre. Weber, em seu livro Ciência e Política: Duas Vocações,
própria convicção. A ética da responsabilidade, por sua vez, teria como guia as
contrário, contará com as fraquezas comuns do homem [...] e entenderá que não
(Weber, 2006:115). Já Nietzsche atribuiu a origem dos valores éticos à emoção e não
à razão. Para ele, o homem não deve reprimir os impulsos e desejos em nome de
uma moral repressora. E temos Freud, que apesar de nunca ter afirmado que o
Homem precisa equilibrar paixão com razão, trouxe uma mudança radical para
neurotiza o homem. A mesa está posta para a crise em que nos encontramos
atualmente.
Hannah Arendt em seu livro A Condição Humana (1981) diz que a única
afirmação sobre a natureza dos homens é que somos condicionados. Para ela, a
87
que seria o ‘agir político’. Hoje precisamos dominar o progresso técnico e científico.
produção. Vivemos uma crise de ética, pois ela se fundamenta em seguir normas.
uma ruptura com o que foi instituído a partir dos séculos XVII e XVIII”
88
consumismo, sua apoteose. Consumindo nossa própria existência, caminhamos
outro ela permanece com um valor indiscutível: “o indivíduo e seu direito cada
vez mais proclamado de se realizar à parte, de ser livre na mesma medida em que
Dito desta forma, nossas finalidades não nos são impostas, no sentido que
um terá de escolher por si mesmo os seus valores e ideais, isto é, praticar a auto-
ética” (Morin, 1998:67). A construção dessa ética para o futuro requer um esforço
ambigüidade que
89
multiforme pelo desemprego, pela fome, pela miséria, pela
cultura” (Carvalho, 1999:25).
contemporâneo, sabemos de antemão que isso não é nem verdade nem possível. O
sem saída que a humanidade ruma. O filosofo Hans Jonas diz que o princípio da
aí os seres vivos que nele habitam. “Tudo isso põe a responsabilidade no centro da
ética, com horizontes temporais e espaciais que correspondem exatamente aos das
afirma que a finalidade desta última é a Fraternidade, uma vez que ela é
condição sine qua non para o conhecimento objetivo, ou seja, a exigência do auto-
90
exame, a consciência da responsabilidade pessoal e o encargo autônomo da ética.
Essa restauração nos levaria a uma ética política, que deve conter algumas idéias-
solidarizar e fraternizar;
primazia da argumentação;
arquétipos, “uma forma irrepresentável e inconsciente que sempre existiu, mas que
1999:27). Nosso dever seria retomar essas idéias em um esforço coletivo no intuito
91
de construir uma ética que respeite o Homem estimulando a consciência de
filme em língua não inglesa. Exatamente 10 anos após sua primeira indicação por
92
Festival do Rio16, de 1999, cercado de inúmeras expectativas. A crítica publicada no
jornal O Globo, assinada por Carlos Heli de Almeida, afirmava que “Pedro
sentimentos à flor da pele. Tudo sobre minha mãe é o mais adulto dos filmes do
Caderno:3).
Para uma melhor análise, estruturei o filme Tudo sobre minha mãe em três
breve epílogo. O filme narra a vida de Manoela (Cecília Roth), uma enfermeira
argentina que vive em Madri com seu filho Esteban (Eloy Azorín). Quando este
Chegando lá, reencontra Agrado (Antonia San Ruan), outro travesti, conhece Irmã
Rosa (Penélope Cruz), uma noviça que está grávida de Lola e vai trabalhar com
Huma Rojo (Marisa Paredes), uma atriz de teatro. Elas acabam forjando laços de
16 Vale lembrar que o Festival do Rio tem a característica de funcionar como termômetro para os
filmes que serão lançados no circuito comercial
93
Pedro Almodóvar afirma que seu intuito ao filmar Tudo sobre minha mãe
atrizes consagradas como Bette Davis e Gena Rowland, a todas as mulheres que
diretor Joseph L. Mankiewicz, com Bette Davis e Anne Dexter (All about Eve, no
original em inglês)19. Este filme tem uma situação base que é a seguinte: a atriz de
teatro, Margo Channing (Bette Davis) conhece Eva Harrington (Anne Baxter), uma
fã que ela acaba contratando para trabalhar como sua assistente. Eve – a malvada
sucesso. Essa situação – uma pessoa substituindo outra no palco – aparece duas
vezes no filme de Almodóvar: a primeira, quando Nina (Candela Peña) não pode
quando novamente o espetáculo periga ser cancelado por falta de atrizes, Agrado
17 Vale aqui informar que a mãe do diretor morreu em 1999, meses após a estréia.
18 Elemento de repetição é uma categoria emprestada da Psicanálise, na teoria freudiana, que leva a
considerar a repetição como um elemento estrutural do sujeito. Na década de 1960, a teoria de
cinema absorve várias correntes psicanalistas, influenciadas principalmente por Derrida e Foucault.
Para maiores detalhes ver Stam, Robert, Introdução à Teoria do Cinema, 2003 (principalmente
capítulos 22 e 23) e Jover et. ali., Repetição e estilo em Almodóvar.
19 Vale ressaltar aqui que o título do filme Tudo sobre minha mãe é uma citação direta do título
original em inglês All about Eve.
94
A Malvada, nem Manoela nem Agrado têm a intenção de subtrair ou enganar
Huma ou Nina. Estão ali para ajudar, auxiliar. A situação base permanece, mas
como médicos devem abordar o tema com os parentes. Esta cena é uma repetição
Almodóvar, quando uma mãe recebe a notícia da morte cerebral de seu filho, e
naquele momento de dor deve decidir se doa ou não os órgãos. Almodóvar repete
simulando uma conversa onde esses médicos tentam convencer a mãe de que seu
médicos estão ali para tentar convencer que se o parente doar os órgãos do
falecido, muitas vidas poderão ser salvas. A simulação serve para ajudar os
ter nesse momento. Almodóvar parece brincar conosco ao, momentos depois,
morte de seu filho Esteban II. Aqui vale ressaltar como no momento de dor
95
inesperada: ela descobre quem será o receptor do coração de seu filho, e quebrando
noite em que este morre, Um Bonde chamado Desejo, de Tenesse Willians. Esta
peça, de 1947, narra a história de Blanche DuBois, uma mulher do sul dos Estados
Unidos, que vai morar com sua irmã Stella e o cunhado, Stanley Kowalski.
seus alunos, não tem mais pra onde ir. Frágil e fantasiosa, ela entra em combate
contra os modos rudes de Stanley, que a violenta na noite em que Stella dá à luz na
conduz ao sanatório. Esta frase será dita pelo menos mais duas vezes, ao longo do
filme: a primeira vez, pela própria Huma, ao agradecer a ajuda de Manoela para
procurar por Nina; a segunda por Agrado, ao brincar com um rapaz. O filme e a
que as próprias protagonistas são estranhas umas às outras e mesmo assim elas se
Almodóvar nesse filme. O artigo Repetição e estilo em Almodóvar (1998) revela que
foi utilizado em outros filmes, a saber: Matador (1985), De salto altos (1990) e A
96
flor do meu segredo (1995). Podemos ainda perceber esse recurso em filmes de
outros diretores como Flerte, (1995), de Hal Hartley, onde a mesma estória é
Berlim e Tóquio. E também Corra Lola, Corra, (1998), de Tom Tykwer, em que há
97
Almodóvar está nos falando de situações pelas quais nós passamos. Neste
filme há três personagens com o vírus do HIV: Lola/Esteban, Rosa e Esteban III.
Rosa, pela infecção da criança Esteban III. Pelo contrário. Manoela está sempre
o roteiro de Tudo sobre minha mãe coloca a solidariedade como um dos temas
centrais da trama. Morin nos avisa que “a noção de religação engloba tudo aquilo
que faz comunicar, associar, solidarizar, fraternizar [...] fazendo frente à barbárie
que divide” (Morin, 1998:72). Dito de outra forma, Manoela se religa aos
(Nasciemento, 2005:174) que a AIDS impõe aos infectados. Estar contaminado não
é sinônimo de estar morto. Pelo contrário, eles ainda estão vivos, reorganizando
Manoela. O texto de Manoela ao final, nos fala sobre a esperança de cura para a
AIDS e nos revela o quanto todos nós ansiamos por isso. Desta maneira, não afasta
apenas a culpa normalmente associada à AIDS, mas também abre caminhos para a
98
debater e compreender melhor o horizonte onde essa doença está posta. A AIDS,
estigmatização diminuíram, mas que ainda há muito caminho a ser trilhado. Tanto
entender uma doença que atingia agora a todos. O debate e a compreensão foram,
sem dúvida, a melhor estratégia para que a sociedade tenha alcançado isso. Em seu
livro “As pestes do século XX”, Nascimento, afirma que a “sociedade civil se
antecipou ao poder público [...] para lidar com a AIDS” (Nascimento, 2005:125). As
2005).
21 A palavra anamatização não existe no nosso vocabulário. Mas matizar significa dar cores, nuances,
conferir diferentes graduações e o prefixo ana significa ação ou movimento contrário. Assim,
acredito que Morin esteja se referindo a um processo de igualar coisas ou debates, sem buscar as
possíveis diferenças.
99
descartar a polêmica, trazê-la para fazer parte do debate, rejeitando qualquer
forma de julgamento. Como no filme Tudo sobre minha mãe que não aborda a
Uma outra possibilidade que gostaria de apontar aqui, sem contudo esgotar
em absoluto. O caminho escolhido por Pedro Almodóvar tem sido seguido por
controle maior sobre o produto final22. Desta forma, é possível perceber que este é
forma não estigmatizada. Não estou querendo afirmar que suas personagens não
sejam esteriótipos, porém que elas são retratadas de forma mais humana, próximas
a uma realidade mais palpável. A punição ainda ocorre – Esteban I e Rosa morrem
22 De 1997 até 2006, podemos indicar os seguintes filmes: Eu amo esse Homem (França 1997), A
Família de Felix (França, 1999), Ninguém Dorme Em São Francisco (Alemanha, 2000), Um amor
quase perfeito (Itália, 2001), Dias (Itália, 2001), Fale Como Homem: Gays Na Zona Rural
(Alemanha, 2002), Saudade (Alemanha, 2002), Filhote (Espanha, 2004), Transit (Inglaterra, 2005).
Da mesma forma, o cinema independente norte-americano tem produzido alguns filmes,
principalmente voltado para o público queer, como O Prazo Final (2004), ou os documentários
Alguém ainda morre de Aids? (2002), O presente (2003), O outro lado da Aids (2004). Há também
aqueles que mostram a pandemia na África como A Closer Walk (2003), O Dia em que meu Deus
morreu (2003), Pandemia: Enfrentando A Aids (2003), todos americanos, e Wa N'wina (2001) e
Yesterday (2004), ambos da África do Sul.
100
Nessa filmografia não há culpa nem culpados. Há estereótipos sim, mas não
depois de uma experiência limite, que foi o diagnóstico da AIDS. Ângela Pôrto, em
seu artigo, A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um poeta tísico
ajudá-lo em sua trajetória singular é que essa tarefa será bem sucedida. A vivência
doença. Esses filmes justamente abordam essas estratégias, que esses personagens
produzir o mais belo dos filmes de sua carreira, em minha modesta opinião.
101
Apesar da combinação de remédios no tratamento da AIDS melhorar
sensivelmente a expectativa de vida dos doentes, esta não foi uma realidade
1999 que trouxeram a AIDS como tema, somente nove produções foram realizadas
entre 1996 e 199923. Em quase todos esses filmes, os personagens eram jovens
Essa realidade, porém, não só não foi representada nos filmes na época, como
23 Sobre esse tema específico, ver monografia de Ives Mauro Silva da Costa Junior, AIDS: uma
década de cinema 1989-1999, defendida em 2001, na UERJ.
24 Em linguagem médica, um grupo de risco corresponde a uma população sujeita a determinados
fatores ou com determinadas características, que a tornam mais propensa a ter ou adquirir
determinada doença.
102
também deixou de presente nas grandes produções pós 1996. Ainda falta muito
mas creio que Pedro Almodóvar contribuiu um pouco para essa conscientização.
Estados vegetativos
sobre minha mãe, o que o cineasta poderia nos trazer de inovador? “Um filme
impregnado de segurança e serenidade, mas nem por isso sem inquietação” (Folha
B, p.1); “Um filme que trata sobre a amizade e amor [...] é artigo raro” (Ailton
o impacto do filme:
Cine Odeon, “foi visto por mais de 1.400 pessoas em apenas quatro sessões” (Folha
103
Online, 07/10/2002:18h30). O jornalista Jaime Biaggio, do jornal O Globo, escreveu
Com uma trajetória semelhante ao filme anterior, Fale com ela colecionou
roteiro original. Não teve a indicação para melhor filme em língua não inglesa por
ter sido preterido pelo governo espanhol, que em seu lugar indicou ‘Los Lunes ao
Sol’, que acabou ficando fora da corrida. Pedro Almodóvar acabou com a estatueta
que estão levantando suas vozes pela democracia e pela legalidade internacional,
Tudo sobre Minha Mãe termina com uma cortina de teatro abrindo
revelando um palco escuro. Fale com ela começa com uma cortina se abrindo para
um palco escuro. Mas se em Tudo sobre minha mãe, os papéis são de mulheres,
atrizes ou impostoras, que atuam dentro e fora do palco, Fale com ela é um filme
de homens, narradores, que recontam suas próprias vidas para quem quiser ouvir
e até mesmo para aqueles que não podem..Como disse antes, a cortina se abre e em
dois homens que não se conhecem: um chora e o outro o observa. Pouco depois, o
segundo, que observava, narra o espetáculo da noite para uma mulher em coma no
104
hospital. Ele é Benigno (Javier Cámara), enfermeiro que cuida de Alicia (Leonor
toureiro Niño de Valência (Rodrigo Alvarez). Marco liga para seu editor e solicita
uma entrevista com Lydia. Este sugere que Marco vá a uma tourada, para
encontrá-la. Lydia se recusa a conceder a entrevista, mas pede uma carona até sua
reaparece chorando, dizendo haver uma cobra em sua cozinha. Marco entra e mata
mesmo andar do hospital onde Benigno trabalha. Transtornado, sem saber direito
Este afirma, que cientificamente não há esperanças. O córtex cerebral de Lydia está
pelo tronco encefálico que se encontra integro ainda funcionam. “Ela não concebe
idéias nem sentimentos”, afirma. Porém mostra uma revista onda há uma matéria
obre casos de pessoas que na mesma situação de Lydia que saíram do estado
vegetativo.
105
Andando pelos corredores do hospital, Marco conhece Benigno, e este o
reconhece do espetáculo. Ele conta que é enfermeiro de Alicia e que cuida dela há 4
o diálogo entre sãos e doentes também começa a se travar. Benigno defende que se
conversar com eles, acariciá-los, de vez em quando”. Marco, por outro lado,
acredita que seus cérebros estão paralisados, eles estão “mortos” e que a solução é
namorado, partindo para uma viagem. Quando esta morre, acaba sabendo por
outros funcionários do hospital que Benigno está preso por ter estuprado Alicia em
coma. Marco regressa à Espanha e fica sabendo que Alicia não só sobreviveu ao
parto como voltou do coma, desmemoriada, sem saber que fora estuprada, ficara
grávida e perdera o filho. Benigno se suicida na prisão sem saber de nada. Algum
Bausch.
E ao redor deles, um mundo que gira. Em seu livro Ciência com Consciência (2005),
Edgar Morin desenvolve algumas teses sobre a ciência e a ética. Para ele, nós
106
ponto de chegada e também um ponto de partida. As soluções que deveriam ter
pessoa humana. “Os indivíduos em coma prolongado ainda são pessoas humanas
além. Devemos ser magnânimos e educar os educadores, para que estes possam
Fale com ela é uma história sobre a amizade entre homens, sobre a solidão e
sobre como os monólogos ante uma pessoa em silêncio podem ser uma forma
ideal nas relações das pessoas, de como o cinema contado em palavras detém o
tempo e se instala nas vidas de quem conta e de quem o escuta. Um filme que fala
107
sobre a ética com os convalescentes, de como devemos agir com os doentes, sejam
quais forem suas doenças. Calar-se diante da morte social imposta aos doentes de
AIDS, câncer, hepatite C ou coma prolongado não é uma atitude ética. Encerrar
nossos doentes, loucos ou velhos em hospitais e asilos não é ético. No filme, o pai
morte social. Sua irmã mora em Córdoba e depois de três semanas decide voltar
para cuidar do marido, dos filhos e da sua vida. O cunhado, apoiando sua decisão
diz: “Você sabe que não há mais nada que se possa fazer.” O próprio Marco a
deixa no hospital e sai em viagem apenas ligando para saber como estão as coisas.
108
“Assim, a fala espontânea com os moribundos, da qual estes
têm especial necessidade, torna-se difícil. Apenas as rotinas
institucionalizadas dos hospitais dão alguma estruturação social
para a situação de morte. Essas, no entanto, são em sua maioria
destituídas de sentimento e acabam contribuindo para o
isolamento dos moribundos” (Elias, 2001:36).
impiedosa da punição” (Morin, 1998:74) onde a compaixão por aqueles que estão
positivo. “Em lugar de nos esforçarmos [...] para lhe esconder a morte próxima,
Genebra, sobre a primeira Guerra Mundial. Ela conta que apresentará bailarinas
como as almas dos soldados mortos em batalha, vestidas de branco com manchas
vermelhas como se fossem manchas de sangue. Ela diz: “Da morte emerge a vida,
109
do masculino emerge o feminino, do terreno emerge o etéreo.” Interessante
vida.
inspirou em fatos reais para escrever este roteiro, tomando notas sobre diferentes
casos que havia lido na imprensa sobre mulheres em coma. Um deles era sobre
uma mulher que havia sido estuprada por um assistente num hospital; outro, de
uma mulher que acordara depois de passar 16 anos em coma. O repórter pergunta
o que o inspirou tanto nos casos de coma daquelas mulheres ao que ele responde:
110
coisa, você tem que procurar alcançá-la, apesar do que o mundo
pensa de você. Se você se ater a isso, você consegue” (Almodóvar,
2002b). [meu grifo]
todos deveria ser o caminho possível para o cumprimento de uma missão histórica
“Fale com ela!” Vamos falar com eles. A doença não é punição, a morte não
humanos e não podem perder o significado disso – ser humano - nem para eles
111
humanidade desaparecer, tudo o que qualquer ser humano tenha
feito, tudo aquilo pelo qual as pessoas viveram e lutaram,
incluídos todos os sistemas de crenças seculares e sobrenaturais,
torna-se sem sentido” (Elias, 2001:77).
Touradas e Dança
influência naquela nação. Há quem diga que a tourada é uma dança, uma arte, na
uma cerimônia com uma série de regras e etiquetas. Antes, era um esporte
toureiro a pé, que com sua capa e sua espada atiçavam o touro para a luta. Assim,
surge o desfile de abertura com a entrada dos toureiros, ricamente vestidos, sob
pela canção ‘Por toda a minha vida’, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes,
112
Ninguém jamais amou
Ninguém
Oh! meu bem amado,
estrela pura aparecida
Eu te amo e te proclamo
O meu amor, o meu amor
Maior que tudo quanto existe
Oh! meu amor”
(meta) linguagem em ‘Fale com ela’ (2004), afirma que a tourada é um universo
tipicamente masculino, com “uma incipiente participação feminina, uma vez que
dominar o touro e penetrá-lo repetidas vezes com a lança são atos que remetem à
pois a capacidade de seduzir, atrair o animal com o uso da capa vermelha (espécie
conquista” (Felippe, 2004). Ao vencer o touro, embalada por esta canção, Felippe
afirma que Lydia buscava vingança por ter sido abandonada por seu antigo
amante. Em outra tourada, Lydia se prepara para enfrentar o touro, ajoelhada. Ela
arena. Gravemente ferida é levada em coma para um hospital. Felippe afirma que
Lydia se entregou ao touro em sacrifício e que com esse ato simbólico fechou um
113
ciclo que clamava pela morte. O artifício da metalinguagem25 foi usado aqui para
uma mulher, de olhos fechados, passa pelas mãos de vários homens e seu corpo
nas mãos, e emite apenas sons. Há um intervalo e na volta a cena muda para vários
25 No que diz respeito à metalinguagem, esta pode ser vista, de uma maneira generalizada, como
uma linguagem que serve para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de significação.
114
“’Masurca fogo’ se inicia con la tristeza de Benigno ausente (los
suspiros) y reúne a la pareja superviviente (Marco y Alicia) alrededor de
una misma emoción bucólica: varias parejas bailan en el campo al ritmo
de una mazurca caboverdiana, acompañados también por el sonido de una
pequeña cascada de agua que nace como un milagro de la hierba en su
esplendor.
Fale com ela é um filme sobre a alegria de narrar e sobre a palavra como
sobre a loucura, esse tipo de loucura cercada de ternura e sentido comum que não
se diferencia da normalidade.
115
Resistir
Resistir, do latim resistere: verbo intransitivo, opor resistência; não ceder; fazer face
a; defender-se; recusar-se; agüentar-se; não sucumbir; subsistir.
(Cunha, 1997)
da sociedade ocidental. Talvez por seu senso estético, uma vez que ele se habilita a
acontecimentos diários, que acompanhamos nos jornais. Seus filmes são pessoais,
baseados em suas próprias experiências, apesar dele adiantar que ele mesmo não
conta sua vida. Na diegese26, de uma maneira geral, os personagens têm uma
diferenças.
Minha tarefa foi ir além dos filmes e tentar costurar uma teia – bastante
peculiar – entre história das doenças e realidade fílmica. Não sei se consegui ser
26 Em cinema, o termo diegese se refere ao que é contado (a estória narrada, numa expressão mais
vulgar); já os termos discurso ou narrativa, dizem respeito à forma como a estória é narrada.
Definições bastante didáticas desses e outros termos cinematográficos podem ser encontradas em
João Batista de Brito, Imagens amadas. São Paulo, Ateliê Editorial, 1995.
116
claro. Com certeza não contei tudo. Por isso retorno aqui para as últimas
considerações.
patologias. Ser doente, ou não, depende de um saber superior que não o seu, e
As negociações falharam.
Já a escolha de Tudo sobre minha mãe e Fale com ela permitiram perceber
outro aspecto que seria justamente a ética para um melhor relacionamento entre
doentes e sãos. Nesse caso, propus uma nova ética no lidar com esses enfermos,
responsabilidade mútua, nos deveres que temos uns com os outros. Aqui, os
coletiva, mais complexa, onde se rejuntaria tudo aquilo que foi separado pelo
117
religamento que une e faz de todos nós o que somos, humanos. Nós devemos ser
mais solidários uns com os outros. ‘Solidariedade’ é uma palavra que deriva de
Mas falta ainda a ética da resistência, que seria o início ou o fim de tudo.
construir uma ética societal que respeite o homem, a vida e a liberdade planetárias,
reencontra Marina sob as bênçãos de Lola. Eles estão voltando para Madri no carro
118
pero siempre sigue en pié.
[...]
Cuando me amenace la locura
Cuando en mi moneda salga cruz
Cuando el diablo pase la factura
O si alguna vez me faltas tu.
[...]
para deixar de ser louco foi dado. Marina o aceitou e Lola também. O amor da sua
vida, uma família, um emprego. Ele agora é ‘normal’. Sua negociação chegou ao
119
Bibliografia
1- Fontes primárias
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Título Original: Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens
Origem: Alemanha
Ano:1922
Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Henrik Galeen, baseado em livro de Bram Stoker
Elenco: Max Schreck, Greta Schröder e Karl Etlinger
M - O Vampiro de Dusseldorf
Título Original: M - Eine Stadt Sucht den Moerdver
Origem: Alemanha
Ano: 1931
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Fritz Lang, Adolf Jansen, Thea von Harbou e Paul Falkenberg
Elenco: Peter Lorre, Gustaf Gründgens, Ellen Widmann e Inge Landgut.
Doutor Fantástico
Título Original: Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the
Bomb
Origem: Inglaterra
Ano: 1964
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern e Peter George, baseado em livro de Peter
George
120
Elenco: Peter Sellers, George C. Scott
Labirinto de paixões
Nome original: Laberinto de pasiones
Origem: Espanha
Ano: 1982
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Cecilia Roth, Antonio Banderas, Imanol Arias, Helga Liné, Cristina
Sánchez Pascual.
Maus hábitos
Nome original: Entre Tinieblas
Origem: Espanha
Ano: 1983
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Cristina Sánchez Pascual, Julieta Serrano, Marisa Paredes, Mary Carrillo,
Lina Canalejas, Carmen Maura e Chus Lampreave.
Ata-me
Nome original: Átame
Origem: Espanha
Ano: 1989
121
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Victoria Abril, Antonio Banderas, Loles Leon, Julieta Serrano, María
Barranco.
Flerte
Título Original: Flirt
Origem: Estados Unidos, Japão e Alemanha
Ano: 1995
Gênero: Romance
Direção e roteiro: Hal Hartley
Elenco: Martin Donavan, Robert Burke e Elina Lowensohn.
As Chaves de Casa
Título Original: Le Chiave di Casa
Origem: Itália/ França
122
Ano: 2004
Direção: Gianni Amelio
Roteiro: Gianni Amelio, Sandro Petraglia e Stefano Rulli
Elenco: Kim Rossi Stuart, Charlotte Rampling, Andrea Rossi e Alla Faerovich.
1.2- Periódicos
123
2- Fontes Secundárias
2.1- Artigos
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Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, vol.
23, nº 45, p. 11-36, 2003.
PÔRTO, Ângela. A vida inteira que podia ter sido e que não foi; trajetória de um
poeta tísico. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, vol. VI, nº 3, p. 523-550,
2000.
124
2.2 Livros e capítulos
ALMODÓVAR, Pedro. Patty Diphusa e outros textos. Trad. Mônica Stahel. São
Paulo: Martins Fontes Editora, 1992.
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São Paulo: Editora UNESP, 1992.
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