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Os corpos inocentes

À moda de Jean-Louis Schefer.

Artigo publicado no Folhetim n. 569 (Atores), Folha de São Paulo, 1/1/1988.

Estes corpos não nos repetem. Nem nos imitam. Eles apenas nos oferecem uma ilusão.
Mas deles, justamente, será possível dizer que sejam, ainda, corpos? Pois por que
espécie de ablação este rosto paira sozinho e olha, com seus olhos desprovidos de
olhar, e sem criar por sua vez nenhum mundo visível? E esta mão que segura o punhal,
por que não aponta para a sua vítima nem remete ao seu dono, mas antes dá início a
um mundo de ameaça e de dor?

Não são corpos inteiros, não são. Nem mesmo são pedaços de corpos. Esta mão que se
abre lentamente e deixa cair a bola de vidro, esta voz que se destaca de seu depositário
e faz pairar o grito na rua deserta, estas porções de corpo não pertencem mais a seus
donos, nem remetem à sua suposta inteireza. E nem à inteireza de qualquer corpo,
inclusive o meu. Pois esses corpos truncados, mas sem dor, eu não posso portar. Em
vão antecipo seus passos, eles não me acolhem: eles não me cabem , nem me infestam
com esta sua espécie de presença inviável. São, antes, o resultado de uma mutilação
invisível e indolor, que inaugura em mim uma desproporção de mundo.

É que nada aprendo no cinema que já não soubesse. A ânsia ou a ameaça além
daquela esquina, o horror e a angústia nesta espera, já fui há muito por elas encetado.
Apenas experimento no cinema, por meio desses corpos de varejo, uma desproporção
de afetos, um desequilíbrio que constitui, por sua vez, um mundo. Mas um mundo sem
centro de gravidade, em torno do qual nenhum corpo – nem o meu próprio – pode
mais vir se aglomerar.

Essas parcelas de corpo, esses restos de uma misteriosa amputação e as ações por eles
dispensadas não inaugura, desse modo, o meu corpo disforme – antes me subtraem
esse meu derradeiro e fiel depositário. (Testemunhariam eles secretamente a
impossibilidade em que me encontro, eu também, de reunir meus pedaços e, de posse
deles, de finalmente poder sofrer?). Pois uma quantidade e uma qualidade de afetos
são incessantemente precipitados pelos filmes dos quais, mais que a origem e o
destinatário, sou apenas a única e solitária garantia. Por isto os corpos que os portam
não têm começo, nem destino – são indescritíveis e sem história: são corpos inocentes.

Nesse mundo sem gravidade, os seres se agitam como num aquário. É como uma
prisão isto que os contém, ou, mais ainda, como um líquido viscoso ligando cada um de
seus movimentos ao universo inteiro. (E já não é mais possível esse baixar de olhos, ou
esse aceno, sem que toda a escuridão do mundo seja ao mesmo tempo aqui
convocada). Mas eles não se movem para mim, esses corpos. Cada um de seus
movimentos apenas aciona um movimento do mundo do qual eu seria o último
prolongamento, e o mais frágil, e o mais exposto – a garantia única de sua visibilidade.

Portanto, eles não se oferecem, esses corpos: eles não visam me mostrar nada. Nem
sequer buscam o meu olhar, esse derradeiro resíduo de mim, o mais iludido, o mais
enganador. Se sou aqui depositário da visibilidade deles, não é porque olho, mas
porque sou colhido numa visibilidade mais ampla, do olho por trás da minha cabeça,
dessa máquina que ronrona e projeta. E é no seu feixo, na esteira dessa luz que
atravessa a escuridão da sala que posso, finalmente, cerrar os olhos e começar.

Mas e os corpos, e esses corpos aqui permanentemente convocados, quando terão,


enfim, o seu começo? Esses corpos usados e extenuados conhecerão finalmente o
descanso quando se apaga a luz? E quem vem lhes restaurar incessantemente a
inocência? Pois só por inocência conferem sua imagem a este mundo invisível. E só por
inocência, por extrema inocência, confortam em mim a ilusão de que são feitos à
minha medida.

......................

Um mundo invisível é, pois, inaugurado, de cuja visibilidade sou o derradeiro limite,


para o qual sou a única e possível viabilidade. Mas quem vem então reiteradamente
palmilhar esse chão, quem será este cuja sombra avança num espaço que
incessantemente foge a seus pés? Talvez seja este o derradeiro segredo deste mundo
sem proporções: o de ser apenas uma prorrogação de mundo – e de ser, portanto,
inabitável.

Essa prorrogação, ou essa ameaça de mundo não pode, pois, abrigar os corpos – nem o
meu próprio. Tão logo eles são precipitados pelo filme, ela os rejeita, antes que possam
cumprir sua eterna promessa de corpos: a de se tornarem inteiros, ou seja, de deterem
o mundo e, portanto, de o perfazerem. Por isto eles são exteriores, esses corpos.
Não concomitantes com o mundo, e solitários, eles apenas tremulam na tela, sem que
nenhuma piedade possa um dia resgatá-los.

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