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MUDAR DE SEXO

Estão em discussão na Assembleia da República uma Proposta de Lei (do


Governo) e um Projecto de Lei (do Bloco de Esquerda) que permitem a mudança de
registo de sexo desde que diagnosticada a transexualidade e independentemente de
alguma mudança anatómica. Estes dois diplomas seguem a orientação das chamadas
“leis de identidade de género”, de que é exemplo a Lei espanhola aprovada em 2007.

Numa primeira apreciação, poderá dizer-se que a mudança do registo oficial do


sexo de uma pessoa, de modo a corresponder ao seu “sexo social desejado” (na
expressão do Projecto do Bloco de Esquerda), nenhuma perturbação causará a outras ou
à sociedade em geral. A situação das pessoas transexuais, e o seu sofrimento, não
podem deixar de merecer consideração. Mas não me parece que sejam alterações
jurídicas como esta que façam desaparecer esse sofrimento (a dissonância entre o sexo
genético e o “sexo social desejado” há-de manter-se sempre). E, sobretudo, não me
parece que, para isso, se possa aceitar uma subversão do papel do legislador.

Estamos perante uma agenda de afirmação ideológica. Está em causa a


afirmação da chamada ideologia do género (gender theory) e a sua tradução no plano
legislativo. Parte esta teoria da distinção entre sexo e género. O sexo representa a
condição natural e biológica da diferença física entre homem e mulher. O género
representa uma construção histórico-cultural. O sexo é um fato empírico, real e
objectivo que se nos impõe desde o nascimento. A identidade de género constrói-se
através de escolhas psicológicas individuais, expectativas sociais e hábitos culturais, e
independentemente dos dados naturais. Para estas teorias, o género assim concebido
deve sobrepor-se ao sexo assim concebido. E como o género é uma construção social,
este pode ser desconstruído e reconstruído. As gender theories sustentam a irrelevância
da diferença sexual na construção da identidade de género, e, por consequência,
também a irrelevância dessa diferença na relações interpessoais, nas uniões conjugais e
na constituição da família. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e
uniões homossexuais. Ao modelo da família heterossexual sucedem-se vários tipos de
“família”, tantos quantas as preferências individuais e para além de qualquer “modelo”
de referência.

Quando nos diplomas em apreço se alude ao “sexo social desejado” e se opta


pela prevalência deste sobre o sexo biológico, a opção é ideológica e não puramente
“humanitária”. É a ideologia de género que sustenta essa prevalência. E também se
compreende a ligação entre esta questão e as do casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Não é por acaso que surgem, em Portugal como em Espanha, uma na sequência da
outra. É ilusório pensar que se trata apenas do fim de uma discriminação, ou do respeito
pelas minorias. É um novo paradigma antropológico, uma verdadeira “revolução
cultural” que se pretende impor desde cima, desde as instâncias do poder, e que não
surge espontaneamente da sociedade civil e da mentalidade corrente. Pretende-se
transformar através da política e do direito essa mentalidade. E o que está em causa não
é um aspecto secundário, mas referências culturais fundamentais relativas à relevância
da dualidade sexual. Admitir que a Lei sirva propósitos destes, numa pretensa
engenharia social, revela tendências mais próprias de um Estado totalitário do que de
um Estado respeitador da autonomia da sociedade civil.

Pretende-se, por outro lado, a instrumentalização da Lei ao serviço da


prevalência da vontade subjectiva sobre a realidade objectiva. Dir-se-à que a
transexualidade não é uma escolha arbitrária, que é também ela uma realidade
psicológica que se impõe à própria pessoa. Poderá ser assim nalguma medida. No
entanto, a vontade não deixa de ser determinante na definição do “sexo social desejado”
a que os diplomas em apreço dão relevância. E os pressupostos da ideologia de género
que lhe estão subjacentes, que sobrepõem o desejo a qualquer forma de heteronomia
objectiva, deixam aberta a porta a situações de verdadeira arbitrariedade. E também esta
é uma pretensão tendencialmente totalitária. O legislador constrói uma sua própria
realidade contrária à realidade objectiva. Leis que consagram a ideologia de género
desprezam por completo qualquer conceito de natureza ou lei natural. Por isso,
derrubam a mais potente barreira à omnipotência do legislador, o «único baluarte
válido» (na expressão de Bento XVI) contra o arbítrio deste.

Pedro Vaz Patto


Juiz de Direito

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