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Salvador - 2000

Anais Eletrônicos do IV Encontro da ANPHLAC ISBN 85-903587-2-0

Os Intelectuais Brasileiros e o Pan-Americanismo:


A Revista Americana (1909-1919)

Kátia Gerab Baggio1

O debate sobre o pan-americanismo e as relações da América Latina - e, particularmente,


do Brasil - com os Estados Unidos colocou importantes intelectuais brasileiros em oposição. De
um lado, críticos da política expansionista dos Estados Unidos, como Eduardo Prado, Oliveira
Lima, José Veríssimo e Manoel Bomfim. De outro, defensores ardorosos do pan-americanismo,
como Joaquim Nabuco, Artur Orlando, Euclides da Cunha, Araripe Jr., entre outros, situando o
tema como um dos mais freqüentes do debate intelectual na virada do século. De 1909 a 1919,
inclusive, foi publicada, no Rio de Janeiro, a Revista Americana, que se propunha a estimular a
integração intelectual entre os países do continente e possuía um forte acento pan-americanista.
Pretendo trabalhar a temática proposta tomando por objeto a Revista, importante veículo da
proposta pan-americanista no Brasil do início do século.
A Revista Americana foi fundada em outubro de 1909, no Rio de Janeiro. Publicada
mensalmente até junho de 1913 (com curtas interrupções), sofreu então uma paralisação mais
prolongada, voltando a circular apenas em outubro de 1916. Desta data, foi publicada até outubro
de 1919, quando finalmente deixou de circular. Segundo o editorial estampado em seu primeiro
número, a publicação tinha como objetivos divulgar as manifestações culturais das Américas e
servir como um “traço de união entre as figuras representativas da intelectualidade” continental.
Além da aproximação intelectual, também objetivava a “aproximação política” entre os países
americanos.
Apesar de não admitir claramente, a publicação tinha um evidente caráter oficial. Foi
impressa, durante toda a sua existência, na Imprensa Oficial e, mais relevante que isso, seu editor
e seus principais colaboradores tinham um vínculo estreito com o governo, mais especificamente
com o Ministério das Relações Exteriores e com o Barão do Rio Branco, que ocupou a cadeira de

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Departamento de História – FAFICH – UFMG.
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ministro de 1902 a 1912, ano de sua morte. A. G de Araújo Jorge, editor responsável pela
publicação em todo o período em que existiu, era secretário de Rio Branco no Itamarati,
tornando-se embaixador posteriormente. A criação da revista coincide, não por acaso, com o fim
do período de negociações para a definição das fronteiras entre o Brasil e os países vizinhos.
Como já observamos, vários dos colaboradores mais importantes da revista tinham
relações estreitas com o Itamarati. Na sua primeira fase, além de Araújo Jorge, a redação da
revista contava com Joaquim Viana e Delgado de Carvalho, que também eram ligados ao
ministério. Embaixadores, funcionários e membros de missões oficiais do Itamarati tiveram
vários artigos publicados, como Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Hélio Lobo, Clóvis Beviláqua,
Euclides da Cunha, Rafael Mayrink, Heitor Lira e outros. O viés diplomático da revista também
se manifestava entre os colaboradores estrangeiros, muitos diplomatas. Vale ressaltar que a
disposição americanista da revista estava presente tanto nos temas abordados como na presença
freqüente de autores hispano-americanos, cujos textos eram publicados em espanhol.
Apenas a partir de julho de 1918, na sua segunda fase, admitiu-se o vínculo oficial na
capa da revista, na qual passa a constar a informação de que a Revista Americana era uma
“publicação fundada por sugestão e sob o patrocínio do Barão do Rio Branco”.
A relação de Rio Branco com a revista ficou evidenciada também pelo período em que foi
publicada. Iniciou-se em 1909, ano em que o Barão ocupava o ministério. A morte do Barão, em
fevereiro de 1912, marcou o início de um período de crise, encerrado temporariamente em junho
de 1913, em razão de problemas financeiros para manter a publicação. Em 1916, a revista voltou
a ser publicada pela vontade individual de Araújo Jorge, reafirmando seus objetivos iniciais de
“trabalhar pela aproximação intelectual dos povos americanos”. A revista, evidentemente, não
deixou passar em branco a morte de Rio Branco. O número de abril de 1913 foi inteiramente
dedicado a homenagear o Barão, com textos, inclusive, de autores hispano-americanos, como o
uruguaio José Enrique Rodó.
A Revista Americana foi um dos instrumentos da política americanista de Rio Branco.
Esta política insere-se em um novo momento da política externa brasileira, inaugurado com a
Proclamação da República. O início da nossa república coincidiu com a reunião, em Washington,
da Primeira Conferência Internacional Americana, cujas sessões ocorreram de 02 de outubro de
1889 a 19 de abril de 1890, marcando oficialmente o início do pan-americanismo. Este termo

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apareceu primeiramente na imprensa norte-americana, que começou a utilizar, por sua conta,
alguns meses antes do evento, a expressão Pan-América. A partir de então, antes mesmo da
abertura da reunião, esta passou a ser designada oficiosamente de Conferência Pan-Americana,
como também as reuniões posteriores. O termo pan-americanismo difundiu-se e passou a
denominar o conjunto de políticas de incentivo à integração dos países americanos, sob a
hegemonia dos Estados Unidos.2
A Primeira Conferência Pan-Americana foi convocada pelo governo dos Estados Unidos
depois de quase uma década de negociações diplomáticas e debates internos, como resultado de
um projeto do secretário de Estado norte-americano James G. Blaine, mentor do pan-
americanismo. O incremento da integração dos Estados Unidos com os demais países americanos
visava, em última instância, o crescimento das exportações de produtos norte-americanos para o
restante do continente, a fim de superar a entrada dos produtos europeus, principalmente da
Inglaterra, sua principal concorrente. Uma prova clara desta intenção é que o único resultado
concreto da Primeira Conferência foi a criação do então denominado Departamento Comercial
das Repúblicas Americanas, com a função de realizar a “pronta compilação e distribuição de
dados sobre o comércio”3, posteriormente designado União Pan-Americana. Encontros periódicos
foram realizados durante toda a primeira metade do século XX, em diversas capitais do
continente, até que, em 1948, na Conferência de Bogotá, foi criada a Organização dos Estados
Americanos - OEA, com novo aparato jurídico, substituindo a União Pan-Americana.
O Brasil republicano reforçou uma tendência de aproximação com os Estados Unidos que
já vinha se delineando desde o Segundo Reinado. Entretanto, não há dúvida quanto à maior
aproximação do Brasil com os Estados Unidos após a Proclamação da República. O novo regime
abria as portas para um melhor entendimento diplomático do país com as repúblicas americanas.
Significava que o Brasil abandonava o monarquismo europeísta - simbolizado pelos Bragança - e
aderia à vocação republicana e liberal das Américas. Não foi sem motivo que o novo regime

2
Sobre as Conferências Pan-Americanas e o pan-americanismo, ver: ARDAO, Arturo.
“Panamericanismo y latinoamericanismo”. In: ZEA, Leopoldo (coord.). América Latina en sus
ideas. México: Siglo XXI, UNESCO, 1986, pp. 157-71 e LOBO, Hélio. O Pan-Americanismo e
o Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.
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Ver ARDAO, op. cit., p. 158, nota 2.
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brasileiro foi reconhecido inicialmente pelos países americanos e, só num segundo momento,
obteve o reconhecimento dos governos europeus.4
As transformações pelas quais o Brasil e o mundo vinham passando no início do século -
modernização capitalista, ascensão dos Estados Unidos no cenário internacional, conflitos na
Europa - levaram a essa mudança de rumo na política externa brasileira, capitaneada por Rio
Branco. Houve uma tentativa de abrir o leque das relações internacionais, quebrando a quase
exclusividade européia. Neste sentido, Rio Branco buscou solucionar os conflitos fronteiriços
com os países vizinhos sul-americanos5 - na tentativa de aumentar a influência geopolítica do
Brasil na América Latina - e, ao mesmo tempo, aproximar-se dos Estados Unidos. Entretanto, o
ministro não aceitou uma adesão absoluta à política norte-americana, tentando uma posição
estrategicamente equilibrada entre as influências britânica e norte-americana no Brasil. Em
discurso de abertura da III Conferência Pan-Americana - realizada no Rio de Janeiro entre julho e
agosto de 1906 -, Rio Branco reafirmou sua opção de aproximação progressiva com os países
americanos, mantendo, no entanto, relações favoráveis com a Europa.
Rio Branco teve clareza da importância que os Estados Unidos vinham adquirindo no
século que se anunciava. Dentro desta perspectiva, uma de suas medidas como ministro consistiu
na elevação, em 1905, da legação em Washington à categoria de Embaixada, a primeira aberta
pelo Brasil no exterior (no mesmo ano, os Estados Unidos também elevaram sua legação no Rio
de Janeiro ao nível de Embaixada, a primeira na América do Sul). Curiosamente, Rio Branco
escolheu um monarquista para assumir o posto, Joaquim Nabuco, que, como sabemos, acabou
por abandonar a campanha anti-republicana e aderiu intensamente à defesa do pan-americanismo.

4
Uruguai, Argentina e Chile foram os primeiros a reconhecer o novo governo brasileiro, já em
1889. Em janeiro de 1890, foi a vez da Bolívia, Venezuela, México e Estados Unidos. Na
Europa, a França republicana foi a primeira, em julho de 1890, seguida pela Grã-Bretanha, Itália
e Espanha, em 1891.
5
Durante a gestão do Barão do Rio Branco à frente das negociações relativas a disputas
territoriais (a partir de 1893) e depois como chanceler da República (entre 1902 e 1912), foram
definidos vários litígios fronteiriços: com a Argentina, Guianas Francesa e Inglesa, Bolívia (em
relação ao Acre), Peru, Venezuela, Colômbia, Uruguai, Equador (que na época limitava com o
Brasil) e Holanda (em relação ao Suriname). Entre 1893 e 1912, 440 mil km2 foram definidos
favoravelmente ao Brasil. Ver: DORATIOTO, Francisco. Espaços Nacionais na América Latina:
da utopia bolivariana à fragmentação. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 73-81; e MARTIN,
André Roberto. Fronteiras e Nações. São Paulo: Contexto, 1992, pp. 83-4.
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A Revista Americana cumpriu, assim, um papel de divulgação da política pan-


americanista do Itamarati junto à intelectualidade. Como afirma Demétrio Magnoli, em seu livro
O Corpo da Pátria:
Com o Barão, a política externa brasileira adaptou-se ao novo ambiente internacional,
que integrava as Américas em um único subsistema de Estados, materializando a
hegemonia hemisférica dos Estados Unidos. Contudo, esta adaptação pautou-se pela
meta de conservar a autonomia nacional, nas condições mais restritivas que as do
período anterior.6

A Revista Americana é farta em artigos que confirmam a adesão pan-americanista da


política externa brasileira do início da República. Joaquim Nabuco, Araripe Jr. Hélio Lobo, Artur
Orlando, Dunshee de Abranches publicaram artigos de entusiasmada adesão ao pan-
americanismo e de defesa da liderança brasileira na América do Sul. Oliveira Lima, conhecido
por sua posição crítica ao pan-americanismo - expressa nos artigos escritos entre 1903 e 1907,
posteriormente publicados conjuntamente no volume intitulado Pan-americanismo - teve artigos
seus publicados na revista, mas todos artigos historiográficos. Nenhum dos seus artigos de
oposição à adesão pan-americanista do Brasil apareceu na Revista Americana.
Ainda que a revista tenha trazido, ao longo dos vários anos em que circulou, artigos de
temática diversificada - política, diplomacia, direito, história, geografia, economia, filosofia,
religião, literatura e lingüística, além de poemas e crônicas – os artigos de cunho diplomático e
histórico irão predominar. As guerras no Prata serão objeto de muitos artigos, com ênfase na
visão oficial brasileira de defesa das nossas fronteiras e de justificativa da atuação do Brasil nos
conflitos platinos. Alguns artigos de autores hispano-americanos não endossavam,
evidentemente, algumas posições dos brasileiros. Ramón J. Cárcano, então vice-presidente da
Câmara dos Deputados da Argentina, em artigo intitulado “Relaciones internacionales – el
critério argentino tradicional”, afirmou que a participação argentina na Guerra do Paraguai
“salvou o Império de uma ruína segura nessa guerra improvisada”. O Império brasileiro,
“estacionário e arcaico”, segundo Cárcano, teria sucumbido sem o auxílio argentino. Esta versão
do conflito, apesar de publicada na revista (em respeito às relações com o país vizinho), foi

6
MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil
(1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP: Moderna, 1997, p. 210.
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acompanhada de “notas da redação” rejeitando a interpretação do político argentino (notas


possivelmente escritas de próprio punho por Rio Branco).7
A presença da Revista Americana no cenário editorial carioca e brasileiro no início do
século, durante dez anos, com a publicação de artigos dos mais diversos assuntos, poemas, contos
e crônicas de autores hispano-americanos, revela a disposição política que havia no início do
regime republicano no Brasil por uma maior aproximação com as repúblicas americanas. As
relações entre intelectuais brasileiros e hispano-americanos foram garantidas, em grande medida,
pela diplomacia, que proporcionava a circulação de homens e livros pelo continente. Apesar da
simpatia manifesta pelos Estados Unidos, a revista publicou pouquíssimos artigos de intelectuais
norte-americanos, revelando que as relações entre a intelectualidade brasileira e a norte-
americana neste período ainda eram tênues. Entretanto, a adesão política ao projeto pan-
americanista capitaneado pelos Estados Unidos, como procuramos demonstrar, era evidente.
Euclides da Cunha, que teve vários artigos póstumos publicados no periódico
americanista (ele morreu em agosto de 1909, antes, portanto, da fundação da revista), deixou
clara sua posição em carta endereçada a Araripe Jr., de fevereiro de 1903. Araripe Jr., como se
sabe, era um defensor contumaz da doutrina de Monroe e do pan-americanismo. Nesta carta,
Euclides solidarizou-se com as posições do conhecido crítico literário cearense. Admitindo a
“expansão irresistível” dos países mais poderosos, Euclides julgava “consoladora a idéia de que a
absorção final” se realizasse menos à custa do militarismo alemão do que do progresso norte-
americano. Referindo-se às concepções do próprio Araripe, disse Euclides:
Não calculo até que ponto se possa aceitar o seu otimismo sobre a hegemonia norte-
americana. Mas, dado mesmo que ele falhe por completo, e que o malsinado
imperialismo ianque se exagere até a posse dos países estranhos, - de que nos valeriam
lamúrias de superstições patrióticas? [...] subordinados à fatalidade dos
acontecimentos, agravados pela nossa fraqueza atual, devemos antes, agindo
inteligentemente, acompanhar a nacionalidade triunfante, preferindo o papel voluntário
de aliados à situação inevitável de vencidos.8

7
Ver DEMARCHI, Ademir. Falácias Americanas: do americanismo à unidade da América. São
Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas: FFLCH: USP, 1997 (Tese de Doutorado),
pp. 59-62. Demarchi analisa a Revista Americana no segundo capítulo de seu trabalho e traz um
anexo com o índice da publicação comentado.
8
Idem. “Carta a Araripe Jr.”. Lorena, 27 de fevereiro de 1903. In: Correspondência de Euclides
da Cunha (ativa). Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti (orgs.). São Paulo: Edusp, 1997,
p. 151.
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Suas idéias sobre a questão do pan-americanismo estão evidentes nesta passagem de sua
correspondência. Evolucionista, acreditava na inevitabilidade da hegemonia norte-americana no
continente. Dentro desta perspectiva, considerava romântica e infrutífera qualquer tentativa de
defesa patriótica. Sendo assim, a aliança aos Estados Unidos - leia-se adesão à política pan-
americanista - era a opção mais interessante para o Brasil que, dessa forma, poderia almejar a
preponderância sul-americana, com o apoio norte-americano.9
A política de Rio Branco, expressa com clareza na Revista Americana, correspondia à
visão de Euclides. Ou melhor, Euclides, fiel aliado do Barão, endossava a política do ministro:
manutenção de relações amistosas com os países europeus, acompanhada de adesão ao pan-
americanismo, aproximação com os Estados Unidos e aspiração à liderança na América do Sul,
com apoio da potência do norte.

9
Em carta a Oliveira Lima, de 23 de maio de 1906 - período em que este atuava, como
diplomata, na Venezuela -, Euclides aconselhou o amigo a ser mais discreto nas suas críticas aos
Estados Unidos (estampadas nos artigos que Oliveira Lima publicava em O Estado de São
Paulo): “... se eu pudesse aconselhar-lhe, diria que não destacasse por enquanto tão incisivamente
certos aspectos da existência ianque... Não posso ir além desta reticência que entrego à sua
sutileza”. No Rio de Janeiro, preparava-se a III Conferência Pan-Americana, que foi realizada na
cidade entre julho e agosto daquele ano. Momento político, portanto, bastante inoportuno para as
críticas vigorosas de Oliveira Lima. Euclides, como homem de confiança de Rio Branco, sente-se
na obrigação de alertar o amigo para agir de forma mais cautelosa, pelo menos nos meses
precedentes à III Conferência. Ver: “Carta a Oliveira Lima”. Rio de Janeiro, 23 de maio de 1906.
In: Correspondência de Euclides da Cunha (ativa), 1997, pp. 303-4.
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