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Diário ínfimo 34

“Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu-o na floresta, durante longo tempo,
sem conseguir apanhá-lo. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-
lhe qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e
imóvel, calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso
amarelo, nestas palavras: – Estirpe miserável e efémera, filhos do acaso e do
tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O
melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, ser nada. E
o melhor em segundo lugar, para ti, é morrer rápido”. (Nietzsche, A Origem da
Tragédia)

O que sai dos homens revela o que eles não sabem de si, expõe o que eles não suspeitam que
são. Mas, quem pode ver o que o próprio olhar dos outros não mostra? Por certo, quem se
encontrar já cego para as luzes vulgares do mundo, quem já não anda com os mortos, quem já
não andarilha com a certeza implacável dos perdidos, quem já aprendeu a ver sem olhar com
os olhos. Quem alcançou, sabendo ou não, querendo ou não, sangrando ou não, algum espaço
possível de ser além da terceira margem das vidas comuns.

Há uma ciência antiga que eclode sem transmissão porque não se encontra em registro algum,
exceto nas almas que envelhecem, que faz aprender sem que haja ensino algum sobre os
modos de olhar... sopra-se ali que eles relevam o que se fez de quem olha; olhar são gestos
que levantam uma cena de gigantescos textos codificados em tramas secretas, tão arcaicas
que fugiram sorrateiras da memória dos mordidos, envelheceram o próprio esquecimento. Daí
haver dois mistérios: o que se lerá quando se puder ler (?) e, o que se lerá quando for possível
ler-se, que é o primordial, pois, essa pergunta mortal é feita de vários impossíveis a
atravessar?

Antes ainda, confesso sem arrogâncias e sem humildades, só confesso para atestar que é
possível mesmo a quem apenas quer despertar, que tenho lido sim e é sobre essas práticas
assustadoras de inventar leituras-respostas aos mistérios que assombram e acovardam que
conto. Mas, antecipo, é nos lados brancos brilhantes ou opacos, é na sobra da falha do olhar, é
no lapso de vazio da visão, é naquele espaço onde fogem os domínios, é no silêncio obscuro
que excede as janelas oculares, é ali no nada não dito da vista que repousa o texto real... para
essa leitura é preciso se apropriar de novos modos de registro, de escrita, de criar entidades
que carregam nas costas os significados quase dotados de invisibilidade... mesmo que toda
realidade seja ou invenção ou exercício do domínio, é ali que é, onde não se pode estar, onde
não se habita espírito algum, é na morada abandonada, é no continente não pisado, é no pós-
umbral conhecido, é lá que se encontra o que há de verdade possível, sempre limitada pelas
barreiras de que nada há nesse livro de sombras de ilusões de miragens. Mas, agora, que estou
antes diante desse vazio, falo apenas, por hora, das raízes que se afundam nos domínios do
olhar, porque... as mãos desaparecidas que governam os olhos, navegam os giros do mundo na
velocidade que precisam. É sobre isso que falo; falácias dos olhos dominados.

A ciência que controla as raízes do olhar é linear, é obtusa, é aguda, é esmagadora, é universal
em seu intuito de dominar. Todos os domínios de que me recordo não foram feitos pelos que
os fizeram, mas por quem lhes capturou os olhos, desde a escuridão: o dominador domina sem
saber que é produto detrito dessa dominação atávica. Poder impera antes de qualquer modo
de ser. Essa lei de modelar do barro os escravos vazios de alma sussurrada adentro, se esconde
nos fragmentos de cada visão que não se dobra, que não vê pra trás, que não pode comer-se
pra ruminar, que não se mostra nos espelhos, que não tem sementes no oco, que não rasga o
tempo com o próprio instante, que não buscou a dita terceira margem do rio impossível que
escorre o mundo que inunda a vida de pura morte anunciada; corre a água, afunda a alma, flui
o pó que do início ao fim se esconde dos homens porque esse saber destitui poderes comuns.

Assim, a ciência dos domínios dos olhos, silente e secreta, busca na origem das coisas, no
profundo vedado das coisas, na mentira que se conta sobre uma alma das coisas, numa crível
história falsa das coisas, unir fragmentos e fundar uma realidade, já nas coisas, não podemos
penetrar, exceto pela ilusão máxima de que as conhecemos só porque lhes somos familiares,
via de regra, pelo olhar tolo que diz aos olhos, “eu sei porque eu vi”. O real é impossível, por
isso precisa ser inventado; quem o funda, reina soberano num incrível império invisível, sem
som, sem luz, sem vida e sem que saiba disso. Tudo ali é gozo no poder de poder, mas
ninguém sabe; saber ali é revelação que desfaz de conta tudo que se contou. Então, os
soberanos tiranos que governam imemoriais e ocultos os destinos dos olhos na terra
escondem-se vitoriosos no submundo que criam no obscuro que se esconde à luz dos dias que
correm.

Essas aparências atestam o que elas não são. Não há nada de esotérico aqui; é pura história
material das construções das linguagens dos olhos, dos idiomas do poder, remontagem de
línguas esquecidas por obrigação imperiosa dos senhores do mundo... um ato de inversão, de
subversão, de invasão, intromissão, intervenção, intervisão que provêm de um diálogo
sangrento que inicia com os olhos que se arranca para atingir essa cegueira iluminada que é
essa nova língua pela qual se constrói isso que narro, insistente e desafiadoramente, sem
medos, já que pulei as duas muralhas de empecilho: enlouquecer da igualdade conforme aos
outros; esquecer-me de mim na absorção irrecusável do mundo.

Não se trata de atrevimento vão, mas de fortalecimento da morte de vaidades – das mais
tolas, a vaidade de pensar crer que se sabe é a mais daninha e venenosa. A constatação da
possibilidade de ver além do olhar dominado é mero anúncio do lugar de marginalia que
ocupei quando, já disse, arranquei os olhos que me impuseram, e passei a me escrever para
realizar de mim as leituras com esse sangue sincero e insuportável que ergue esse possível
passageiro de mim. Abandonei as máscaras de aprisionamento e fiz meu rosto, eterna
construção transeunte que suporto, não sei como. Mas, já entendi que contar fortalece esse
não-sei-como-nem-o-que de mim, e então, falarei e inventarei e bramirei e tudo de novo até
que o cansaço de querer a vida me abandone e eu possa continuar, até assumir o que sei
melhor do pior de mim, o que sei maior do menos de mim; não ser mais o nada que sou em
mim pra ser um nada maior que eu sempre nada fui, mas eu mesma. Que expansão
assombrosa essa de não ser assim! Humilde, tenho acolhido a mim que agora me vejo mesmo
a mim, desde que me sustente já desfeita lá além na última margem.

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