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FATONE, Vicente - O Complexo de Édipo e Os Gandharvas
FATONE, Vicente - O Complexo de Édipo e Os Gandharvas
e os Gandharvas
Vicente Fatone
Tradução: Paloma Vidal
Nota introdutória
Apresentamos a tradução do escrito de Vicente Fatone "O Complexo de Édipo e os
Gandharvas". Uma das maiores figuras do pensamento filosófico na Argentina, Fatone
possuía um profundo conhecimento das criações míticas do Oriente. Sua preocupação com
o misticismo e seu interesse religioso o atraíram à filosofia oriental que tornou-se o centro
de sua obra. Por meio do domínio dos temas centrais da filosofia, Fatone examinou as
refinadasconcepções dobudismo"niílista"eda lógica índostânica. Sua produção se estende
da década de 30 até sua morte em 1962.
Em "O Complexo de Édipo e os Gandharvas" é surpreendente a precisão e a clareza do
filósofo ao tratar uma das questões mais espinhosas da teoria freudiana: a pulsão de morte
e o Nirvana. Ao revelar o essencial dos mitos indostânicos em relação ao Nirvana, Fatone
chega a regiões insuspeitadas que ultrapassam de longe com seu questionamento a produção
dos psicanalistas da época. Uma história da psicanálise na Argentina não poderia desco-
nhecer a importância deste texto produzido fora dos meios analíticos apartir de outras fontes
de inspiração. Fatone percebe com exatidão qual é o traçado da obra freudiana que parte
do mito de Édipo para deparar-se com o Nirvana, limite da significação para o sujeito. Os
mitos indostânicos constituem o avesso da descoberta freudiana porque originando-se no
Nirvana devem conduzir as relações de subjetivação próprias do Édipo. O Ocidente carece
de Nirvana e o Oriente de Édipo. O quiasma entre as duas culturas é cuidadosamente
realizado por Fatone. Queremos ainda salientar o estilo do autor que evita cair no discurso
do mestre — do ser — que habita a filosofia, para manter-se na cadeia dos mitos como forma
essencial de abordar a verdade pela ficção.
E.V.
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uando já levava vinte e cinco anos de investigações psicanalíticas, Freud se
Q deteve a meditar sobre o mito que Platão faz Aristófanes expor em "O
Banquete". Três eram, de acordo com esse mito, as espécies de homens:
machos, fêmeas e andróginos; estes últimos haviam sido partidos em dois por Zeus e,
desde então, cada metade desejava unir-se a outra. Para isso se buscavam e se
estreitavam com muita força: queriam restabelecer um antigo ser, converter-se de dois
em um. O amor não era a simples busca do prazer sexual, senão o desejo de
reintegrar-se à antiga unidade. Ninguém haveria negado que Hefaístos o soldasse a sua
outra metade unindo-o a ela para toda a vida; quando chegasse o momento de passar
ao reino de Hades, seguiriam sendo um em vez de dois, unidos numa só morte. Na
ânsia de voltar a unir-se, as metades são capazes de estreitar-se até morrer de fome e
de inércia, e cada uma se nega a fazer algo sem a outra.
É curioso que Freud, utilizando a informação que lhe forneceu o professor vienense
H. Gomperz, tenha aceitado, "contra a opinião corrente ", a existência, no que se refere
a esse mito, de influências indostânicas sobre o pensamento platônico, mesmo sem
descartar a possibilidade de que certas afinidades intelectuais houvessem levado os
pensadores gregos e bramanistas às mesmas concepções. Freud remete, para mostrar
as coincidências dessas concepções, a passagem da Brihad Aranyaka Upanishad
(anterior em vários séculos a "OBanquete"), onde o filósofo Yâjnavalkya diz[*l]:
"Mas ele não tinha nenhuma alegria; pois não tem nenhuma alegria quando está só.
Então desejou um segundo. Era, na verdade, grande como uma mulher e um homem
estreitados. Fez que seu Sim se dividisse em duas partes; assim nasceram o esposo e
a esposa. Por isso este corpo do Sim se parece a uma metade; isso é, na verdade, o
que explicou Yâjnavalkya. Por esta razão o espaço vazio está colmatado pela
mulher".
Freud invocou estes dois mitos quando se encontrava empenhado na crítica do
chamado "princípio do prazer", que até então havia sido considerado pela sua
psicanálise como o que regia a evolução dos processos psíquicos. Segundo esse
princípio, toda evolução se produz em virtude de uma tensão desagradável e se cumpre
de maneira que esse estado seja substituído por outro agradável, que consiste em uma
distenção; ao desagrado corresponde um aumento da quantidade de energia psíquica
e ao agrado, uma diminuição. O "princípio do prazer" não seria senão a tendência do
aparelho psíquico a manter o mais baixo nível possível, ou o mais constante, da
quantidade de excitações. Esse princípio se resolveria, então, na tendência à estabili-
dade, já enunciada por Fechner, e segundo a qual há uma relação direta entre
estabilidade e prazer e entre instabilidade e desprazer.
Quando o instinto de conservação exige a aceitação de uma dor, o princípio do
prazer cede ante o "princípio da realidade "; é a única maneira de salvar as dificuldades
que o mundo externo oferece para a satisfação imediata do prazer. Nos impulsos
sexuais essa "educação ", que posterga o prazer, é mais difícil de lograr; a substituição
do princípio do prazer pelo de realidade só se efetua nas sensações pouco intensas.
Além disso, pode haver, entre os diferentes impulsos, incompatibilidades que não
tomem possível sua satisfação conjunta, então se estabelece entre eles uma luta (que
lembra a dos possíveis de Leibniz na sua aspiração à existência): os vencidos ficam
condenados a não participar nas sínteses superiores da personalidade e a manter-se
num nível inferior, onde a satisfação direta do prazer está vedada. Mas aqui (à diferença
do que sucede com os possíveis de Leibniz) pode produzir-se uma satisfação indireta,
por substituição; e o princípio do prazer seguiria, dessa maneira, regendo a evolução
psíquica. No entanto, junto a esse princípio do prazer, e por cima dele, na vida psíquica
se adverte, segundo Freud, uma "tendência à repetição", um "eterno retorno ao
O budismo primitivo não era senão uma técnica para alcançar a "serenidade superior"
de que fala Freud e para recuperar o estado original de que também fala Freud. Como
em todas as escolas indostânicas, no budismo tentava-se emigrar do ciclo da existência
e conduzir o corpo à sua "última morte ". O Nirvana, momento final do itinerário, não
era a simples extinção nem o aniquilamento que nele viram os primeiros intérpretes
ocidentais. Os textos budistas mais antigos se dedicam a polemizar contra as escolas
contemporâneas que ofereciam com suas técnicas a obtenção do reinado da niilidade:
"Equivocadamente, baixamente, falsamente, infundadamente alguns ascetas e bra-
manes me acusam dizendo que o asceta gotama é um niilista epredica a aniquilação,
a destruição e a não-existência do existente. Isso é o que eu não sou, isso é o que eu
não afirma Hoje como antes, manjes, eu anuncio uma só coisa: a dor, a destruição
da dor". O budismo primitivo combate da mesma maneira aqueles que afirmam a
existência de uma realidade substancial que permanece idêntica a si mesma; aqueles
que isso afirmam são combatidos, nos textos primitivos, sob a denominação de
"eternalistas ". O itinerário do budismo não promete, originalmente, nem a eternidade,
nem a nadificação. A concepção do eu como uma série em fluxo, onde cada um dos
momentos está determinado pelo anterior sem que através deles subsista nenhuma
entidade, conduziu o budismo a generalizar o método que a ciência médica da época
aplicativa ao diagnóstico e cura das doenças. A famosa fórmula das "quatro nobres
verdades" foi tirada da medicina: "a dor, a causa da dor, a supressão da dor". Os
Sâmkhyasôtras começam com uma fórmula semelhante, e os primeiros comentaristas
reconhecem sua origem médica. O Buddha é chamado o melhor dos médicos, e nos
diálogos de Milinda sua doutrina é comparada com uma farmacopéia. Não seria
exagero dizer que o budismo quer apresentar-se como uma psicoterapia. Aquela sua
concepção segundo a qual todo estado do indivíduo está determinado por estados
anteriores, e sua afirmação de cada um é filho de si mesmo, o fez orientar-se na busca
de procedimentos que acelerassem ou neutralizassem a ação do passado. Os estados
anteriores deviam "madurar", de acordo com a expressão habitual nos textos; mas
essa maduração podia ser ajudada, de maneira que se produzisse quanto antes, e para
isso serviam a doutrina e as práticas budistas. Podia ainda ser neutralizada mediante,
por exemplo, a confissão que o budismo organiza nas suas comunidades, fiel ao
princípio já expressado entre bramanes de que um pecado confessado "se torna
verdade", isto é, deixa de produzir efeitos.
O budismo original, empenho na busca da supressão da dor, se absteve de formular
hipóteses ou de adiantar teorias a respeito da natureza do último momento do itinerário
praticado pelos ascetas, ou seja o do Nirvana, que assegurava a paralisação do samsara,
o fluxo da existência. Nenhuma hipótese ou teoria sobre esse Nirvana facilitaria o que
se buscava, que era emigrar do ciclo das existências e por fim a "espantosa trindade "
da dor, da velhice e da morte. Tudo o que se podia fazer era esforçar-se para ver-se
livre dos efeitos do passado, do Karma, acelerando-os e neutralizando-os. Entretanto,
o budismo posterior não se resignou a deixar os interrogantes teóricos sem resposta;
surgiram assim as diferentes escolas e as duas seitas rivais do "pequeno veículo " e do
"grande veículo ": a primeira delas, mais fiel à atitude abstencionista primitiva, insiste
nas quatro verdades da dor e na concepção da série das doze causas determinantes da
existência. "Velhice, doença e morte"(1) estão determinadas pelo simples fato do
"nascimento"(2), que é próprio do reinado da "existência"(3) sustentada pelo "ali-
mento" (4); o alimento é exigido pelo apetite ou "sede"(5) que está, por sua vez,
determinada pela "sensação"(6); esta resulta do "contato"(7) com os objetos, função
dos "sentidos"(8); esses sentidos resultam da nossa condição de seres dotados de
"corpo" e "nome"(9), o que supõe uma "consciência"(10) determinada pelos resí-
duos ou "predisposições"(11) que foram deixadas na nossa existência anterior pela
"ignorância "(12). O "grande veículo ", sem abandonar esses temas que podem com
certeza considerar-se essenciais ao budismo, prefere acentuar o caráter positivo de
algumas idéias e símbolos que também figuravam na doutrina inicial. Chega assim a
afirmação da "budeidade" própria de todos os seres e persegue um ideal salvacionista
em que o asceta, mesmo podendo reintegrar-se ao Nirvana que não é senão sua própria
realidade original, prefere, para ajudar os seres na difícil obra da salvação, postergá-la
indefinidamente. Isto determina uma especulação rigorosa acerca da natureza dessa
budeidade (todos somos Buddhas) e o Nirvana (nossa essência é o próprio Nirvana),
é um maior refinamento na análise dos processos necessários para descobri-los. Vai
se constituindo, assim, o que se pode chamar de uma psicologia do profundo onde não
se prescinde nem dos sonhos, nem dos instintos sexuais, que tiveram tanta importância
na psicanálise, e onde vai adquirir importância primordial, especialmente entre os
tibetanos, a prática dos "mandalas" ou círculos cuja coincidência com os desenhos
dos esquizofrênicos alentaria, na forma que mais adiante veremos nas investigações
de Jung.
Para a revelação possível do Nirvana com o complexo de Édipo, a concepção
budista que mais interessa é a que se refere à existência "intermediária " e ao problema
concreto do nascimento de um novo homem. No antigo texto budista dizia-se que para
que se produzisse um novo homem era necessária, além da união dos parceiros, a
presença de um gandharva. Já nos hinos védicos os gandharvas apareciam como
"gênios" ou deidades relacionadas com as cerimônias nupciais e com a fecundação.
Nos primeiros dias do matrimônio, o gandharva disputa a esposa com o esposo; é a
ele a quem esta pertence. Gênios erotômanos, os gandharvas estão relacionados com
a fertilidade em geral e são invocados pelos esposos que desejam prole; mas, ao mesmo
tempo, mostram-se hostis e agressivos. A concepção do gandharva como músico e
cantor celeste acompanhado por sua esposa, a apsara dançarina, é tardia e pertence à
literatura épica; a concepção do gandharva como espírito hostil é, no entanto, muito
antiga e pertence à época indo-iraniana, pois com esse caráter aparece a figura do
gandharva no Avesta. Um detalhe que interessa porque o budismo tardio o utilizava
para explicar como o gandharva surpreende o casal a quem deve apresentar-se é a
etimologia do nome. No Rigveda (X,123,7) fala-se que o gandharva leva uma
vestimenta cheirosa; e no Atharvaveda (XII, 1,23) se diz que o odor (gandha) da terra
eleva-se em sua direção.[*2]
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As escolas budistas que admitiram a existência dos seres intermediários se perguntam
em seguida se era possível que esses seres evitassem o novo nascimento. Surgiu assim,
especialmente nos meios tibetanos, toda uma cultura relacionada aos gandharvas; e
ao mesmo tempo tentava-se descobrir as práticas as quais esses gandharvas deviam
submeter-se para não ir em busca de uma matriz. Para isso recorreu-se, sem preocu-
par-se muito com a coerência doutrinai, a idéias e técnicas próprias das diversas escolas
budista da religião indígena do Tibet, do shivaísmo e até do maniqueismo [*6], sem
excluir, naturalmente, o taoísmo. A redução de tudo o que é real à vacuidade; a teoria
da "consciência receptáculo" (âlayavijnâna), fundamento de toda consciência parti-
cular é algo assim como um subsolo onde se gesta a vida mental; a convicção de uma
androgenia original e o simbolismo francamente erótico de deuses e demônios unidos
a suas respectivas esposas que não são senão outro aspecto deles mesmos; a escrupu-
iosa preparação de círculos ou mandalas cujos diversos setores, figurações, linhas e
cores servem de apoio e de guia para os difíceis processos de concentração, de
meditação e de êxtases capazes de liberar do ciclo das existências as litanias mecânicas,
os conjuros, os conhecimentos médicos, a interpretação dos sonhos, tudo isso e muito
mais - a região das mães, a busca da flor maravilhosa - acabaram formando um
conglomerado cuja melhor expressão, para o estudo das relações entre psicanálise e
budismo, pode encontrar-se nas instruções dadas pelos tibetanos ao ser intermediário,
ameaçado, pelo seu karma, de voltar a conhecer o nascimento, a doença e a morte. O
gandharva das primeiras concepções budistas se torna o bar do [*7] tibetano. As
instruções recitadas ao ouvido do defunto para que seu bar do eluda a nova existência
a qual o karma acumulado o condena tem, especialmente por sua relação com a pratica
Notas
[*1] Freud cita a tradução de Deussen, "Sechzig Upanishad's des Veda", pg.393. Porém, o mito
bramista remonta a uma época anterior as Upanishads, pois aparece já, mesmo obscuramente, no
hino rigvédico (X,l 29), onde se diz que o princípio só era o Um, sem ninguém fora dele, e que esse
Um, pela força do desejo, se dividiu em dois, macho e fêmea.
[*2] As principais passagens védicas nas quais se faz referência aos gandharvas podem ver-se em
Macdonell, "VedicMythology" pg.l36ys.
[*5] No mesmo livro "O budismo 'niilista' (La Plata, 1941)" assinalei incidentalmente essa
impressionante semelhança. Ultimamente o professor Tucci, hoje a maior autoridade mundial no
budismo, também vem chamando a atenção para ela. Veja-se "// libro tibetano dei morti" pg. 38
(Milan, Bocca, 1949).
[*6] Tucci se detém a mostrar como teria sido possível essa influência que permitiria explicar muitas
idéias tibetanas que parecem não ter relação com a índia. A religião indígena do Tibet (Bon Po)
recebeu desde a região de Gilgit, próxima do mundo irânico, elementos que se incorporaram ao
grande sincretismo lamaísta. A crença no juízo dos mortos e no desdobramento da consciência, que
acusa e defende ao enjuizado, teriam ido do Iran ao Tibet por esse caminho. (Veja-se "// libro tibetano
dei morti", pg.45).