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A VERDADEIRA HISTÓRIA DE MEFIBOSETE E LO-

DEBAR

“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Esta frase, proferida
por Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, expressava a convicção
de que o mais importante não é o que se diz, mas o efeito que provoca no
público. Pensando assim, Hitler e seus adeptos construíam a “verdade” que
desejavam por intermédio da imprensa.
Conquanto muitos discordem desse pensamento, temos de admitir que,
de fato, isso funciona. Basta divulgar uma informação na mídia, seja televisão,
redes sociais ou qualquer outro meio de comunicação, que, rapidamente, o
assunto se reveste de veracidade. Isto porque, a maioria acredita cegamente
naquilo que é veiculado através desses meios.
Todavia, esse fenômeno não é exclusividade do “mundo”. Também no
meio evangélico acontece esse tipo de coisa. Basta um tele pregador afirmar
algo para que sua assertiva seja popularizada e transformada em verdade
absoluta. É assim que surgem, por exemplo, as interpretações “oficiais” de
textos da Bíblia. Porquanto, depois que um dos homens da mídia propaga suas
ideias (muitas vezes heréticas), elas se tornam paradigmas. Quem ousar
apresentar outra explicação para o mesmo texto correrá o risco de ser
massacrado pelas críticas dos fiéis.
Um caso desses é a interpretação popular do episódio envolvendo o rei
Davi e o filho de Jônatas, Mefibosete. A grande maioria dos pregadores usa a
“explicação oficial” do texto, a saber, a ideia de que Mefibosete sofreu desde
os cinco anos de idade, quando ficou aleijado, pois se somaram à deficiência
física diversas privações, uma vez que, após a morte de seu pai, fora criado por
um mendigo em uma terra desértica chamada Lo-dᵉbar. Segundo esse
raciocínio, somente com a ação graciosa de Davi seu sofrimento teve fim.
Partindo dessa premissa, preletores mal informados identificam Davi com
Deus, Mefibosete com seus ouvintes e Lo-dᵉbar com a dificuldade que alguns
estão vivendo. Usando essa linguagem metafórica, apelam para o lado
emocional de seus ouvintes asseverando que o Senhor não permitirá que eles
permaneçam em Lo-dᵉbar, mas os porá à mesa com o rei. Isto é, eles
desfrutarão do “melhor dessa terra”, terão todas as suas necessidade supridas
e não mais sofrerão.
Apesar de serem agradáveis aos ouvidos, as ideias elencadas acima nada
têm a ver com a verdade bíblica. Até porque, se analisarmos a história de
Mefibosete, veremos que, desde seu nascimento, nunca faltou quem cuidasse
dele. Ainda que seu pai estivesse envolvido na defesa da nação, o menino
recebia os cuidados de uma Ama[1] (2Samuel 4.4), que tentou protegê-lo
assim que soube do assassinato de seu pai, haja vista que, por ser da família
real, Mefibosete corria risco de morte. O texto diz que ela “o tomou e fugiu”.
Porém, no afã de fugir, um acidente aconteceu: a criança sofreu uma queda e
ficou aleijada.
Em momento algum a Escritura dá a entender que o ferimento de
Mefibosete era evidência do desfavor divino. Foi apenas um acidente. Ora,
acidentes acontecem. Deus não o estava castigando ou negligenciando. Afinal,
ele era uma criança! Sua Ama também não o deixara cair de propósito. Foi
justamente com o desejo de protegê-lo que ela iniciou a fuga. Ou seja, mesmo
órfão, o neto de Saul não estava desamparado. Uma prova disso é o fato de ter
sido acolhido por Maquir, a quem muitos pregadores, erroneamente, chamam
de mendigo.
De acordo com Flávio Josefo (2005), Maquir era um dos principais da
província de Gileade; homem de muitas posses. Tanto, que, conforme é
relatado em 2Samuel 17.27-29, foi capaz de fornecer suprimentos a Davi e ao
seu exército, quando do levante de Absalão. Maquir era descendente de um
outro Maquir, mencionado em Deuteronômio 3.15, filho mais velho de
Manassés, “homem de guerra” (Josué 17.1), que recebera o território de
Gileade depois da conquista de Canaã.
Segundo Champlim (2001, p. 1267), Maquir, possivelmente, havia “sido
um simpatizante da causa de Saul, mas Davi logo o conquistou para defender o
novo regime”, o que é evidenciado por sua atitude em 2Samuel 17.27-29. Foi
justamente esse homem abastado e valoroso que, conforme explica Josefo
(2005), educou Mefibosete em Lo-dᵉbar, certamente, oferecendo-lhe tudo do
bom e do melhor. Até porque, não havia como um homem aleijado sobreviver
naquela época sem a caridade de alguém.
Mefibosete foi tão abençoado durante o período em que esteve com
Maquir que conseguiu até se casar! Porquanto, ainda que o texto não diga isso
explicitamente, pode-se facilmente chegar a essa conclusão a partir da
asserção de que ele tinha um filho (2Samuel 9.12). Ora, se hoje há
discriminação para com os deficientes, imagine naquela época. Mas mesmo
assim, Mefibosete conseguiu casar! Se isso for desgraça, como dizem aqueles
que insistem em apregoar o sofrimento do filho de Jônatas, não sei o que pode
ser considerado bênção.
Quanto à cidade na qual o jovem coxo vivia, cabe ressaltar que muito do
que se fala a seu respeito não condiz com a realidade bíblica. Até porque, não
há nada no contexto que justifique a ideia de que Lo-dᵉbar era uma cidade
desértica, onde só havia sofrimento. Aliás, asseverar que Lo-dᵉbar é lugar de
sofrimento, não faz sentido nenhum, visto que, segundo a Bíblia, o sofrimento
não é resultado da região em que nos encontramos, mas do pecado. Não fosse
o desejo humano de dominar sobre o outro, Mefibosete não precisaria fugir.
Logo, não teria ficado coxo. Além do mais, o único lugar ao qual a Escritura
associa o sofrimento é o mundo. O próprio Jesus diz: “[...] no mundo tereis
aflições [...]” (João 16.33). Por conta disso, em todos os lugares há pessoas
sofrendo, seja em Lo-dᵉbar ou num país de primeiro mundo.
Ademais, sobre o local que abrigou o filho de Jônatas, Baldwin (1997) e
Champlim (2001) salientam que Lo-dᵉbar se tratava de um nome alternativo
para Dᵉbir, cidade situada a leste do Jordão, próxima da margem sul do mar de
Quinerete (atual mar da Galileia). Sendo assim, a afirmação de que Lo-dᵉbar
era caracterizada pela carestia é uma falácia, porque nenhuma cidade próxima
de um lago de água doce com 21 quilômetros de comprimento, 12 de largura e
cerca de 40 metros de profundidade, viverá tal escassez. É justamente por
isso, que ao longo da história grandes civilizações foram erguidas ao redor de
rios.
Na história de Israel Lo-dᵉbar nunca foi um lugar mal visto ou sem
importância. Na verdade, a Bíblia relata que os israelitas se regozijaram com
sua reconquista (2Rs 14.25; Am 6.13), visto que ela e outras cidades haviam
sido tomadas pela Síria (2Rs 10.32-35). A luz desse episódio cabe-nos indagar:
se, de fato, Lo-dᵉbar fosse um local esquecido pelo povo, uma terra infértil, por
que recuperá-la? Por que se regozijar com sua agregação ao território de
Israel?
Outrossim, uma análise etimológica do nome da cidade revela mais erros
interpretativos. Porquanto, o nome não dá indicações de que se tratava de um
lugar ermo, haja vista que o termo hebraico dᵉbar é derivado de dābār, que,
embora possua uma considerável gama de significados, refere-se
especialmente ao uso da palavra falada. Tanto, que o termo é empregado,
inclusive, para referir-se à Palavra do Senhor (dᵉbar yhwh). Aliás, a expressão
dᵉbar yhwh ocorre 242 vezes no Antigo Testamento. Soma-se a isso o fato de
que o plural de dābār é dᵉbarim (palavras). A ligação entre dābār e dᵉbar é tão
forte e evidente que na Septuaginta o termo é transliterado como lodabar.
Destarte, conquanto muitos traduzam dᵉbar como pasto (ou pastagem), essa
tradução é imprópria, uma vez que o termo hebraico para pastagem é dôber.
Acerca desta palavra vale salientar que, segundo alguns lexicógrafos, sua
origem vem de uma raiz diferente da qual derivou dābār, daí o significado
distinto (HARRIS; JR e WALTKE, 1998).
À luz dessas informações, fica fácil compreender o significado real de Lo-
dᵉbar, pois o termo Lo é uma das poucas coisas que os pregadores pós-
modernos traduzem corretamente quando o assunto é a cidade que abrigou
Mefibosete. Realmente, ele é uma partícula de negação. Assim, podemos
asseverar que Lo-dᵉbar significa “sem palavra” ou “sem assunto”. Isto é, o
escritor, propositalmente, emprega esse nome em vez de dᵉbir, a fim de
destacar que não havia assunto entre a casa de Davi e a de Saul. Certamente,
porque os descendentes de Saul temiam que o novel rei os assassinasse.
O impressionante é que nenhum dos hagiógrafos dá tanta atenção à Lo-
dᵉbar como fazem os pregoeiros do mundo gospel. Em 2 Samuel 9 a cidade
não é o centro da narrativa, e, muito menos, Mefibosete. O ponto central é
graça. O tratamento bondoso dispensado ao jovem coxo contrasta com o
costume oriental “de exterminar a descendência masculina da família real
adversária” (LASOR, 1999, p. 202). De acordo com a cultura, o neto de Saul
deveria morrer. Davi, porém, mostra graça, tal como o próprio Deus fizera com
ele elevando-o ao trono e dando-lhe descanso de seus inimigos (2Sm 7.1),
ainda que o filho de Jessé não merecesse nada disso. Afinal de contas, tanto
Davi quanto Mefibosete eram pecadores, carentes da graça divina.
A condescendência de Davi deve ter impressionado a muitos, haja vista
que como se ressaltou acima, de acordo com a cultura oriental, a atitude
natural seria o extermínio de toda a descendência de Saul. Era isso que a
maioria esperava dele. Até porque, havia uma profecia que apontava para a
perpetuação de sua dinastia (2Sm 7.12). O próprio Mefibosete se manteve
escondido justamente por essa razão. Porque, mesmo sendo deficiente e não
oferecendo ameaça ao trono de Davi, o pensamento da época requeria sua
morte.
Contudo, o rei prometera a Saul (1Sm 24.16-22) e a Jônatas (1Sm 20.12-
16) que quando reinasse não desarraigaria sua descendência. É claro que tal
pacto não privava Davi de sua liberdade, pois ele poderia muito bem, já que
ambos haviam falecido, olvidar-se da palavra firmada e eliminar a casa de Saul.
Não obstante, o rei decide mostrar graça, o que fica patente na palavra
hebraica por ele empregada, a saber: hesed. Este termo dá a ideia de uma
atitude de amor que ultrapassa os limites da mera obrigação. Conforme
explicam Harris, Jr. e Waltke (1998, p. 698), “a hesed é gratuitamente
concedida. É essencial a liberdade para decidir. A ajuda é vital, alguém está em
posição de ajudar, e o ajudador o faz dentro de sua própria liberdade”. Isto é,
Davi não foi coagido pela promessa, ele fez porque quis, impulsionado por seu
amor a Jônatas.
Todavia, o que chama atenção no texto é o caráter imerecido da bênção
que alcança Mefibosete. O pacto de Davi não era com ele. Na verdade, eles
nem se conheciam! Por que alguém daria os benefícios de um príncipe a um
homem coxo? As deformidades físicas eram consideradas julgamentos divinos.
Por essa razão, as pessoas entendiam que o indivíduo, de alguma maneira,
merecia o infortúnio. Davi, entretanto, diferente da maioria dos pregadores,
não atenta para a desgraça de Mefibosete, mas vê naquela situação a
oportunidade de mostrar a “beneficência de Deus” (2Sm 9.3).
Nós éramos como Mefibosete, deficientes, distantes do Pai. Afinal, ele
fora separado de Jônatas ainda em tenra idade. De igual modo, desde a
infância permanecemos longe do Senhor. Mas Ele, movido por Seu amor, quis
mostrar sua beneficência para conosco, ainda que não merecêssemos. Para
tanto, tal como fez Davi, Ele não buscou alguém digno de receber seu favor,
pois queria apenas alguém, não importando sua condição física, moral ou
espiritual. Ele decidiu nos resgatar do lamaçal do pecado, dando-nos uma
posição privilegiada em Seu Reino, adotando-nos como filhos. Mefibosete
esperava a espada, mas recebeu graça; nós merecíamos, de fato, a espada, o
juízo divino, porém Ele nos ofereceu seu amor incondicional.
Não importa que nome o filho de Jônatas possuísse, se era Mefibosete
(vergonha), como aparece em 2Samuel 4.4, ou Meribe-Baal (Baal é advogado),
conforme o relato de 1Crônicas 8.34, o que fez a diferença em sua vida foi a
graça divina, e não o registro civil. Isto porque, nenhum homem, por mais que
possua um nome com um significado agradável ou que goze de saúde perfeita,
pode viver sem a graça do Senhor; seja a graça salvadora ou a graça comum,
todos dependemos do favor de Deus. Defender a ideia de que o favor divino
para com Mefibosete só foi manifestado quando Davi decidiu ajudá-lo é negar a
graça comum, ou seja, a bondade que o Senhor derrama sobre todo ser
humano.
No entanto, a fim de elucidar as questões relativas à variação do nome
do neto de Saul, sublinho que concordo com Champlim (2001, p. 4744). Pois, a
esse respeito, ele assevera que a substituição de Baal (nome de uma divindade
Cananeia) por Bosete (vergonha) foi

propositalmente feita por algum escriba posterior (ou mesmo pelo autor original), que não
tolerava escrever o nome de um deus cananeu, associado a uma das famílias reais de Israel.
Porém, pode escrever “vergonha” (Bosete), demonstrando o seu desprazer, diante desse
nome, aplicado a um dos netos de Saul. A mesma variação pode ser encontrada no caso do
nome ls-bosete (ver II Sam. 2:8 e I Crô. 8:33).

Cada detalhe aqui exposto revela o caráter putativo das asserções


feitas em uma das homilias mais famosas do evangelicalismo pós-moderno.
Com base no que vimos, é possível identificar a maior carência do povo que se
autodenomina evangélico: a Escritura. Por conta do analfabetismo bíblico
muitos têm sido arrastados pelos ventos de doutrina (Ef 4.14). O que o pastor
ou o pregador famoso declaram torna-se uma verdade inquestionável. Que
absurdo! O que fizemos com os princípios da reforma? Jogamos no lixo?
Precisamos voltar ao princípio! Despojar-nos de todo colesterol e
gordura que nos foi acrescentado pelos movimentos surgidos no século XX,
para sermos curados dessa enfermidade que tem levado muitos à morte, e
morte eterna. É necessário mais Bíblia e menos emocionalismo, mais Deus e
menos homem, mais graça e nenhum mérito. Só assim, erros como os que
foram descritos neste artigo serão expurgados. O Senhor nos abençoe!

Pr. Cremilson Meirelles

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLEN, Clifton J. Comentário Bíblico Broadman. Tradução de Arthur Anthony


Boorne. 2 ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1994. 3 v.

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