Você está na página 1de 120

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

LILIAN ARACY AFFONSO VERONESE

A prática do psicólogo escolar:


um olhar institucionalista para as pequenas-grandes recusas

São Paulo
2016
LILIAN ARACY AFFONSO VERONESE

A prática do psicólogo escolar:


um olhar institucionalista para as pequenas-grandes recusas
(VERSÃO CORRIGIDA)

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia
Área de concentração: Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano
Orientadora: Profª Drª Adriana Marcondes
Machado

São Paulo
2016
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Veronese, Lilian Aracy Affonso.


A prática do psicólogo escolar: um olhar institucionalista para as
pequenas-grandes recusas / Lilian Aracy Affonso Veronese; orientadora
Adriana Marcondes Machado. -- São Paulo, 2016.
122 f.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia da Aprendizagem, do
Desenvolvimento e da Personalidade) – Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.

1. Psicologia escolar 2. Instituições 3. Rupturas 4. Prática do


psicólogo I. Título.

LB1051
Nome: VERONESE, Lilian Aracy Affonso
Título: A prática do psicólogo escolar: um olhar institucionalista para as
pequenas-grandes recusas

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia

Aprovado em:

Banca Examinadora:

Prof. Dr.:______________________________________________________
Instituição:_________________________ Assinatura:__________________

Prof. Dr.:______________________________________________________
Instituição:__________________________ Assinatura:_________________

Prof. Dr.:_______________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:_________________
Aos meus pais, Flávio e Aracy, pelo exemplo
de amor e dedicação no trabalho com a
educação de crianças. Por me ensinarem a fazer
do cotidiano sempre um acontecimento de vida.
AGRADECIMENTOS

Agradeço por ter encontrado paciência, atenção, disponibilidade, problematizações,


questionamentos, dúvidas e parceria nos muitos encontros feitos neste caminho de escrita
e pesquisa.

À Adriana Marcondes Machado pela orientação, condução de trabalho e inspiração.


Agradeço principalmente a leitura rigorosa e atenta do meu texto, e às encrencas com as
palavras, motivo pelo qual me fez perceber a força de cada uma delas. Agradeço
imensamente por ter me ensinado que dizer é comprometer-se.

Ao grupo de pesquisa – Marcela Peters, Patrícia Zapletal, Aline Garcia, Allana Allaion e
André Nader e Lívia Anicet, pelas grandes contribuições e reflexões que trocamos ao
longo do período de elaboração desta dissertação, pela força e parceria que criamos.

Agradeço às mulheres...

Isabel Marazina por, desde o primeiro encontro, despertar meu interesse pelo
Institucionalismo e pela Análise Institucional, ainda no período da graduação. E, também,
por ter me ajudado a encontrar o norte desta pesquisa no exame de qualificação.

Marie Claire Sekkel, por me fazer ver a questão da deficiência das crianças de forma
crítica e inventiva. Por me fazer perceber que podia sempre avançar mais e, pelas
preciosas trocas e sorrisos nos corredores do Instituto de Psicologia.

Solange Aparecida Emílio, por ter me oferecido tantas possibilidades, desde experimentar
ser psicóloga em uma escola, até me acompanhar no curso de especialização na teoria
grupalista.

Clarissa Metzger, por acompanhar minha prática clínica e busca por uma posição a partir
da psicanálise. E também, por me fazer chegar à Renata Guarido, a quem agradeço
imensamente por me escutar rigorosa e politicamente de 2011 até os dias atuais, todas as
semanas, me fazendo sustentar o ato pelo desejo.

Ana Godoy, por me ajudar na descoberta da escrita, da pesquisa, do pensamento, da força


na vida de forma tão respeitosa, doce, política, melodiosa e esfumaçada.

Aos amigos e amores...


Minhas queridas companheiras de cartel, Juliana Venezian, Vanessa D’Afonseca e
Priscila Venosa, amigas que tanto contribuíram ao longo desses últimos dois anos.
Pessoas das quais me orgulho de estar perto.

Colegas e amigos do Nesme, com os quais compartilho minhas ideias há muitos anos.

Marcia Roberto, com quem estive acompanhada dividindo o início deste caminho.

Sergio Perez, Regina Sano e Fernanda Maria, pessoas amadas e presentes que a vida me
deu.

Sabrina Zapalá, Mariana Simi, Thais Santos, Viviane Lira, Daniela Prado e Flavia Cintra,
que conheci durante o trabalho na escola e que estão presentes até hoje na minha vida.

A todas as pessoas que conheci trabalhando na escola – professores, funcionários, pais,


em especial as crianças, que tanto me ensinaram.

A Adriana e Tania que regaram esses anos com pequenos prazeres como o café e outras
coisas gostosas de comer.

As pessoas que apareceram no final deste percurso, iluminando, dando fôlego e abrindo
novas possibilidades.

À minha família...

Aracy e Flávio, que sabem da vida, do amor e da generosidade. Kika, irmã amada.
Porfírio, amigo querido.

Lorena e Clarice, por tudo que me dão.

E a Capes, agência de fomento de pesquisa que concedeu a bolsa que tornou possível a
realização da pesquisa e a elaboração desta dissertação.
RESUMO

VERONESE, L. A. A. A prática do psicólogo escolar: um olhar institucionalista para


as pequenas-grandes recusas. 2016. Dissertação de mestrado – Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
Muitas análises críticas na área da Psicologia foram produzidas fortalecendo o
entendimento de que os conflitos que aparecem na escola são expressões de uma lógica
historicamente estabelecida e os problemas que envolvem os processos de escolarização
não são manifestações causadas pelos aspectos individuais dos sujeitos – cognição,
personalidade e comportamento. Esta pesquisa se localiza no bojo destas críticas desde
uma perspectiva teórica que se dedica a pensar as lógicas institucionais que atravessam
as organizações e a vivência no cotidiano da escola. A que serve o saber psi neste
contexto? Como seria possível desempenhar uma prática que não corrobore os efeitos de
naturalização, padronização e individualização que atingem os sujeitos e as relações
escolares? Tais questões conduzem esta pesquisa em direção a aspectos que implicam a
presença do psicólogo na escola, considerando a dimensão social e também a escolar
como uma tessitura regida por lógicas historicamente estabelecidas, em que a relação
entre a Psicologia e a escola é tomada a partir da análise dos efeitos produzidos pela
atuação do psicólogo neste território ao longo do tempo. Recorre-se à compreensão
histórica da escola e, portanto, a um modo de olhar, analisar e dizer dela. Com isso em
vista, buscam-se articulações que permitam pensar a escola a partir da ideia de forças em
constante disputa. Tal viés reflexivo é também sustentado pela corrente institucionalista
e pela Análise Institucional que procuram tensionar a hierarquia de saberes, bem como os
modos instituídos de vida que invadem as relações entre os sujeitos. Baseada nesta
abordagem, esta dissertação sustenta a posição de que a escola é um campo em que as
forças instituídas e instituintes se apresentam cotidianamente, possibilitando diferentes
criações e invenções, afirmando potencialidades, e fazendo da intervenção um ato
eminentemente político. Valendo-se de alguns conceitos como instituição, instituído,
instituinte, acontecimento, analisador e implicação, apresentados e aprofundados a partir
de eventos concretos da história e do surgimento da Análise Institucional, nos quais sua
potência disruptiva é evidenciada, a presente pesquisa destaca a potência do cotidiano
como campo propício de luta, de ruptura e de enfrentamento de imperativos. A escrita
operada nas narrativas tem por objetivo iluminar as pequenas-grandes recusas atuadas por
crianças que, do ponto de vista da norma, são inadequadas. Os elementos que constituem
as narrativas apresentadas visaram problematizar e destacar a vertente instituinte,
tensionando os saberes que se antecipam e os fazeres pautados nas relações cristalizadas,
subvertendo a ideia de cotidiano como repetição, planejamento e permanência. É a partir
desta problematização e, também, da análise da implicação que a função do psicólogo no
território escolar é entendida. Sendo assim, esta pesquisa sustenta a prática do psicólogo
na escola a partir da possibilidade de habitar o campo colocando-se como parte produtora
de efeitos que podem atualizar as lógicas institucionais. Tal condição, portanto, convoca
um posicionamento político do fazer psi no contexto escolar.
Palavras-chave: Psicologia escolar. Instituições. Rupturas. Prática do psicólogo.
ABSTRACT

VERONESE, L. A. A.The practice of the psychologist in school: an institutionalist


look for the small-great refusals. 2016. Dissertation (Master) – Institute of Psychology,
São Paulo University, São Paulo, 2016.

Many critical analyzes produced in the field of psychology strength the understanding
that the conflicts that appear in the school are expressions of a historically established
logic and the problems involving the processes of schooling are not manifestations caused
by the individual aspects of the subjects - cognition, personality and behavior. This
research is located in the heart of these criticisms from a theoretical perspective dedicated
to think about the institutional logics that cross the organizations and the experience of
school’s daily life. What is psi knowledge in this context? How could it be possible to
carry out a practice that does not corroborate the effects of naturalization, standardization
and individualization that affect subjects and school relationships? These questions lead
this research towards aspects that imply the presence of the psychologist in the school,
considering the social dimension and also the school as a structure governed by
historically established logics, in which the relation between Psychology and the school
is taken from the Analysis of the effects produced by the performance of the psychologist
in this territory over time. We resort to the historical understanding of the school and,
therefore, to a way of looking, analyzing and saying it. Considering it, we seek
articulations that allow us to think the school from the idea of forces in constant dispute.
Such a reflexive bias is also supported by the institutionalist current and by Institutional
Analysis that seek to strain the hierarchy of knowledge, as well as the instituted ways of
life that invade relationships between the subjects. Based on this approach, this
dissertation sustains the position that the school is a field in which the instituted and
instituting forces present themselves daily, allowing different creations and inventions,
affirming potentialities, and transforming the intervention in an eminently political act.
Drawing on some concepts as institution, institute, instigator, event, analyzer and
implication, presented and deepened from concrete events of history and the emergence
of Institutional Analysis, in which its disruptive power is evidenced, this research
highlights the power of everyday life as a propitious field of struggle, rupture and
confrontation of imperatives. The writing used in the narratives aims to illuminate the
small-great refusals of children who, from the point of view of the norm, are inadequate.
The elements that constitute the narratives presented aimed at problematizing and
highlighting the instituting aspect, stressing the anticipated knowledge and the actions
based on crystallized relationships, subverting the idea of aily life as repetition, planning
and permanence. It is from this problematization and from the analysis of the implication
that the function of the psychologist in the school territory is understood. Thus, this
research sustains the practice of the psychologist in the school from the possibility of
inhabiting the field by placing itself as a producer of effects that can update the
institutional logics. Such a condition, therefore, calls for a political positioning of psi in
the school context.
Keywords: School psychology. Institutions. Ruptures. Psychologist practice.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 12

2 DAS DIFERENTES FORÇAS PRESENTES 20

2.1 Daquilo que deveria ser 21


2.2 Um projeto de escola 22

3 ARREBENTAR A CORRENTE QUE ENVOLVE O AMANHÃ 32

3.1 “O direito se realiza nas ruas”: o acontecimento Maio de 68 32


3.2 Grupo Plataforma: um símbolo gráfico, um contracongresso, um movimento
instituinte 36
3.3 Até as últimas consequências 40

4 O MOVIMENTO COMO PERSPECTIVA 50

4.1 Um percurso ziguezagueante: considerações sobre o Movimento


Institucionalista 50
4.2 Institucionalismo: movimento, processo, recursos e princípios
políticos 52
4.3 “A política é a vida cotidiana!”: considerações acerca da Análise
Institucional 58
4.4 “Façamos a análise das nossas próprias instituições” 63

5 PSICOLOGIA E ESCOLA: ALGUMAS IDEIAS 70

5.1 “O rapto pútrido, o sequestro” 70


5.2 Que se fale do indivíduo como uma produção e nada mais 77
5.3 “A palavra não representa, ela produz acontecimento” 79

6 PELOS CAMINHOS: NARRATIVAS FICCIONADAS... 82

6.1 Um caminho: dos cabelos às medidas... 84


6.2 Outro caminho, “esse é um autista daqueles” 89
6.3 O terceiro caminho: a vida que proclama um certo pulo! 97
6.4 O corpo no campo: um exercício de análise da implicação 105

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 110

REFERÊNCIAS 114
1 INTRODUÇÃO

“Quando faz o recorte, costuma-se nomear o


que se deixa de fora.”

(Isabel Marazina1)

Elaborar uma dissertação e escrever é um processo que, claro, vive-se de


diferentes maneiras, ora com tranquilidade, ora com turbulências e dificuldades. Para
mim, o período dedicado à pesquisa trouxe uma nova forma de perceber a minha vida.
Isso porque, através da elaboração da escrita, todas as decisões, escolhas devem ser muito
bem pensadas, condição que convoca uma posição, sempre.
Um dos encontros com diferentes pessoas ofereceu uma metáfora, uma imagem
de como uma pesquisa poderia ser entendida, e isso fez bastante sentido: uma casa em
construção, em processo de arrumação. Nessa imagem, uma casa que não pode ser
habitada a não ser por aquele que escolheu estar lá. Então, antes de receber visitas, teria
que ser construída pedaço a pedaço e, de certa forma, estruturada, para que não desabasse
sobre ninguém. O criador da casa seguiria seu estilo, faria reformas, pensaria, escolheria
e decidiria quantos e quais cômodos, como seriam dispostos, onde cada coisa seria posta,
demandando trabalho para receber alguém – um leitor.
Esta imagem nos serviu bastante para pensar no esforço empenhado ao longo
dessa pesquisa, afinal, não é nada simples construir uma casa, arrumar uma casa,
tampouco escrever. Como nos foi contado na ocasião, a introdução é o momento de
receber visitas na casa já arrumada, ou seja, é o momento de apresentar para o leitor as
intenções, as ideias, as escolhas e os limites que constituem a pesquisa. Assim, o leitor,
como quem visita, caminhará pelo texto/casa e conhecerá o que pôde ser feito. Desde as
decisões tomadas, os destaques escolhidos, os eixos pelos quais circulam os temas, as
vizinhanças que se estabelecem.
A introdução, portanto, é uma apresentação das decisões e dos questionamentos
que moveram a pesquisa elaborada nesta dissertação. Entretanto, antes disso, proponho
ao leitor uma pequena caminhada pelo percurso que levou à constituição do campo da

1
Fala de Isabel Marazina na ocasião do exame de qualificação desta pesquisa

12
pesquisa e da perspectiva teórica. Por essa razão, manterei o registro na primeira pessoa
do singular.
**
A educação e, especificamente, a escola, foi desde antes da graduação um
território que habitei. Na minha família, quase todas as mulheres são ou foram
professoras, desde minha avó e suas irmãs, até as minhas tias e minha mãe que, depois de
um tempo, decidiu abrir uma escola de Educação Infantil com meu pai. Assim que isso
aconteceu, eu, com treze anos e minha irmã com quatorze, saíamos da escola onde e
estudávamos, e íamos trabalhar na escola da minha mãe.
O contato diário com crianças, ao longo dos dez anos em que fiquei lá, foi
instituindo uma prática educativa, uma certa forma de entender a criança. Aprendi muito
e sempre me acheguei mais com os alunos bagunceiros, topava com eles a bagunça. Meu
trabalho como educadora sempre foi com crianças de um a dois anos. Crianças muito
pequenas que começavam a conhecer o mundo, a falar, a andar. Lembro-me que era
demasiadamente interessante os cantos que meus alunos encontravam para se esconder,
objetos que apareciam de repente em suas mãos, eu mesma não tinha a menor ideia de
onde tiravam tantas coisas inusitadas. A experiência que mais me capturava era assistir
essas pequenas grandes descobertas deles e ver como cada um, sem que se soubesse muito
bem como, inaugurava um jeito de estar no mundo.
Ao cursar a faculdade de Psicologia, ainda trabalhando como educadora, fui
atravessada por alguns desejos de mudar de direção, várias frentes se abriram, e pensar a
prática segundo um viés social foi o que mais me interessou ao longo do curso. Realizei
os estágios e tive experiências em hospitais, na clínica-escola e na classe especial de uma
escola da comunidade de Paraisópolis. Nessa escola, pude inventar diferentes maneiras
de estar nos lugares, fiquei bastante próxima da professora da classe e tinha liberdade
para observar o grupo e a aula todos os dias. Fiz, na época, uma intervenção grupal com
as crianças e instrumentos musicais, experiência que guardo com bastante apreço até os
dias de hoje. Ali, todos eram muito bagunceiros, a sala era uma falação interrompida por
gargalhadas infinitas. Quando os outros alunos da escola passavam pela porta da classe
especial ficavam olhando, e os alunos de dentro gritavam como loucos e riam... Passada
a agitação, comentavam entre si que sabiam o que os curiosos pensavam sobre eles.
Diziam: “Acham que somos loucos!”. Cada dia essa fala vinha de um aluno diferente e,
sempre que pronunciada, disparava mais risadas. Fiquei lá por um ano, e este foi primeiro
contato que tive com crianças que têm algum tipo de deficiência. Este tempo foi

13
fundamental para que eu pudesse inventar uma forma de estar com elas que escapasse
daquilo que dizem os diagnósticos e os relatórios dos especialistas.
Terminada a graduação, em 2006, fui para o meu primeiro trabalho como
psicóloga. Acompanhada por uma professora da faculdade – que coordenava e
supervisionava o departamento de Psicologia de uma escola –, iniciei minha prática na
área. Este trabalho durou oito anos – tendo terminado no meio de 2014. Essa pesquisa
trata justamente de questionamentos que surgiram a partir da prática desempenhada nesta
escola e, portanto, delimitam um certo campo que nos anima: a relação da Psicologia com
a Escola.
Neste cenário, iniciei a pós-graduação no estudo de grupos a partir da psicanálise
vincular, arsenal teórico que proporcionou o início de uma reflexão sobre a grupalidade.
Autores como Pichon-Rivière e José Bleger foram fundamentais para compreender o
grupo como um conceito para a prática do psicólogo no contexto de uma organização.
Foi a partir do estudo mais aprofundado dos textos de Bleger que a temática sobre
a função e o papel do psicólogo tornou-se interessante para mim. Chamava-me atenção o
destaque dado pelo autor à atuação psi naquilo que extrapola os limites do consultório. A
partir de uma articulação teórica entre a psicanálise e o materialismo dialético, o autor
propunha a Psico-Higiene e a Psicologia Institucional (BLEGER, 1984). Em seus
escritos, ele recupera os processos grupais, a dimensão institucional e política, e promove
reflexões da prática psi engendradas por esses elementos. Sua concepção de política
implica lançar o olhar para as relações de poder que crivam a vida dos grupos e das classes
sociais como fator impossível de ser ignorado (GUIRADO, 1986). Foi a partir destas
leituras que me interessei em entender melhor a proposta de pensar as relações a partir de
uma lógica que supõe as instituições.
Tal interesse aproximou-me de autores como René Lourau e Georges Lapassade.
A entrada na perspectiva institucionalista se fez, portanto, por este percurso que surge da
reflexão sobre a atuação do psicólogo em um contexto que envolve os grupos e as
organizações. Lourau e Lapassade foram autores fundamentais para compreender as
relações e os sujeitos a partir de uma concepção histórica, e que os fenômenos
experimentados se dão através da ideia das lógicas institucionais. E, ainda, para pensar a
prática – socioanálise – como uma entrada no campo que reposiciona o analista em
relação aos próprios saberes.
Concomitante a isso, tive acesso às reflexões e produções de autoras que resgatam
o trabalho do psicólogo nas escolas brasileiras, pondo em questão a perspectiva individual

14
que predomina na forma de olhar os fenômenos escolares e a responsabilidade da
Psicologia nas questões que atravessam a escola. Patto, Machado e Souza são autoras que
acompanharam e compuseram a forma pela qual entendo a presença do psicólogo na
escola, ou seja, os perigos e os desafios que topamos ao realizar a prática neste contexto.
Muitas das ideias destas autoras estão presentes ao longo da dissertação, pois é a partir
dessas elaborações críticas que foi possível fazer surgir os incômodos em relação ao que
a Psicologia, como instituição, produz na escola.
Reconheço, então, que duas grandes frentes compõem a sustentação e os
questionamentos que animam esta pesquisa: as críticas endereçadas à relação da
Psicologia com a escola e a perspectiva institucionalista. Tais frentes servirão para
caminhar na reflexão sobre o trabalho do psicólogo na escola, suas funções, desafios e
possibilidades. Com isso em mente, apresento a seguir o traçado que compõe a
dissertação, bem como a sua organização.
O capítulo “Das diferentes forças presentes”, que abre esta pesquisa, foi
construído a partir da necessidade de esclarecer uma posição que implica uma certa forma
de entender a escola. Parti do pressuposto de que, historicamente, a prática do psicólogo
fortaleceu os efeitos de individualização e culpabilização dos sujeitos que manifestam os
problemas no contexto escolar e nos processos de escolarização, ignorando a
complexidade social, política e econômica que circunscreve a escola e a constitui.
Apresento, portanto, uma certa forma de ver a escola que nos convida a olhar os sujeitos
que lá estão a partir de uma medida estabelecida como correta ou adequada.
Seguindo esta direção, discorro sobre a participação da Psicologia na produção da
forma predominante de entender a escola, ou seja, um olhar que concentra nos sujeitos
individualmente as causas de todos os conflitos presentes no espaço escolar. A intenção
é fortalecer a crítica operada na relação entre a Psicologia e a escola, e, para isso, resgato
e me coloco ao lado de autoras que efetivamente discutem esta temática.
O destaque pretendido neste capítulo é, por conseguinte, a importância de
perceber não apenas que uma certa forma de ser psicólogo na escola, amparada pelo
aparato técnico da Psicologia, instituída historicamente, mas também seus efeitos, que
obstaculizam as singularidades e as existências neste espaço.
Como uma primeira estratégia no tensionamento da forma hegemônica de olhar a
escola, recorro à escrita de uma narrativa sobre o campo prático desta pesquisa. Nesta
narrativa, estão presentes diferentes elementos que marcam cotidianamente o jogo de

15
forças que constitui as relações escolares e que participam e atravessam os modos de ser
na escola.
Busquei criar uma pequena indicação daquilo que será aprofundado nos capítulos
seguintes, e isso é expressado pela presença de algumas crianças que desordenam o
funcionamento da escola. O capítulo é finalizado com o entendimento de que aquilo que
as crianças nos dão, a partir do que elas provocam na escola, é uma oportunidade
incessante de questionar o que, comumente, é tido como uma ordem preestabelecida, ou
seja, um primeiro apontamento da presença e da importância das rupturas.
O capítulo seguinte, “Arrebentar a corrente que envolve o amanhã”, é composto
de algumas ideias de autores que formalizam a potência das rupturas nas relações
cotidianas, a partir de eventos concretos da história. Passo por Maio de 68 destacando sua
recusa em relação às formas totalitárias de controle da vida. Apresento uma conexão tanto
dos questionamentos quanto das reflexões que tal acontecimento proporcionou, com o
surgimento de grupos que contestavam as organizações psicanalíticas e a forma de pensar
a psicanálise na Europa e na América Latina – o Grupo Plataforma e o Grupo Documento.
A decisão de percorrer estes eventos é bastante comum na bibliografia brasileira
quando se busca entender o percurso histórico da perspectiva teórica institucionalista e
da Análise Institucional. Entretanto, para esta pesquisa, tal decisão foi tomada em razão
da possibilidade de aproximar a organização escolar daquilo que esses temas levantam
como fundamental para formalizar o conceito de instituição, instituído, instituinte,
analisador, acontecimento e implicação.
Os temas abordados neste capítulo têm por objetivo fundamentar uma certa forma
de enxergar, fazer e ser nas relações que estabelecemos cotidianamente em nossas vidas,
principalmente no que diz respeito ao trabalho do especialista, isto porque há sempre a
possibilidade de estar no campo de uma forma que compreende a análise dos efeitos que
produzimos quando a prática se dá. É partindo daquilo que atravessa as relações
cotidianas, mas que também é potencializado por elas que algumas questões são
levantadas: o que se presentifica no cotidiano? Quais forças estão em jogo?
A partir de uma perspectiva que busca rastrear os efeitos, as forças que atravessam
o instituído e os movimentos de ruptura é feita a passagem para a conceptualização do
Movimento Institucionalista e da Análise institucional. Assim, no capítulo “O movimento
como perspectiva”, apresento, de um lado, os fundamentos conceituais que compõem a
perspectiva institucionalista, a fim de esclarecer as ferramentas da intervenção

16
socioanalítica que serão utilizadas para pensar as situações escolares e, de outro, aquilo
que os autores indicam como uma prática política no campo de intervenção.
No capítulo “Psicologia e escola: algumas ideias”, trabalho com o fato de que a
escola e as situações que lá acontecem indicam uma disputa constante entre as forças
instituídas e instituintes, de que as relações são sempre atravessadas por aspectos
históricos e funcionam de acordo com uma lógica institucional. Desta maneira,
encaminho a discussão para uma direção que compreende a relação entre a Psicologia e
a escola e, ainda, a atuação do psicólogo neste território de produção de subjetividade. O
que potencialmente pode surgir quando os psicólogos desenvolvem sua prática na escola?
Quais os desafios?
Proponho, então, uma interlocução com autores que ainda não haviam sido
mencionados, tais como Jacques Ranciére, Michel Foucault e Jorge Larrosa, cujas ideias
muito se avizinham das questões apresentadas e produzem ressonâncias para pensar sobre
o que fica submetido quando concebemos as situações de uma forma totalitária. Esta
discussão adensa a problematização sobre a prática a partir de uma dimensão política.
Seguindo esta indicação, elegemos como fundamental pôr em análise o que se diz,
como se diz e, portanto, o que se produz. Aqui, o destaque é dado para a palavra. Como
dizer do indivíduo? A intenção é ressaltar o efeito produzido pela palavra – escrita ou
pronunciada. Como nós psicólogos falamos dos alunos, dos professores, das famílias?
Como falamos dos sujeitos que habitam a escola?
O esforço é o de se valer da concepção que compreende a escola como um espaço
de multiplicidade, de cruzamento de diversos elementos, mas que também apresenta
aspectos cristalizados e naturalizados. Portanto, o modo pelo qual se diz dos sujeitos, e
todo campo que compreende as relações escolares, é um desafio, pois a tendência de
individualizar e concentrar nas crianças aquilo que predomina na escola é um perigo
iminente. Mas como dizer das situações vividas de uma forma que pudesse trazer à baila
a perspectiva teórica que apoia minha forma de entendê-las? Produzir narrativas foi a
estratégia escolhida. Acreditando que seria possível manter esta escolha, busquei autores
que argumentam o rigor da produção de uma narrativa em relação àquilo que é a situação
narrada. Ou seja, autores que convocam o fazer político através do efeito produzido ao
narrar algo.
É neste ponto que finalizo este capítulo, defendendo a ideia de que dizer de algo,
situação ou acontecimento, não é dizer de alguém, exclusivamente. Passo, então, para o
que chamei de “Pelos caminhos: narrativas ficcionadas”, o último capítulo desta

17
dissertação. Munida de todas as ferramentas da perspectiva institucionalista e animada
com a possibilidade de inventar uma forma que pudesse fazê-las funcionar na escrita,
apresento três narrativas: Gabriel, Marcos e Danilo. Cada uma delas dispara um tema
diferente que só pôde ser acessado desde os afetos experimentados – lá, quando tudo
estava acontecendo, mas também num certo tempo de agora, quando as narrativas
estavam sendo produzidas.
Este foi um ponto da dissertação que exigiu mais tempo, e o leitor perceberá a
diferença na extensão em relação aos demais capítulos. Após escrever cada uma das
narrativas, parei ali, relembrando, pensando, procurando reencontrar as sensações, já que
as experiências foram vividas há quase dois anos. Certamente a demora foi necessária,
pois nela pude vislumbrar os caminhos de produção das análises e perceber que, embora
cada uma tenha aspectos distintos, há um eixo comum: as recusas dos meninos.
Todavia, cada análise é operada de um modo singular. No que refere à primeira
narrativa, a situação em si é discutida, aspectos do que foi apresentado são postos em jogo
e elaborados a partir do contexto da cena principal narrada. Na segunda, a situação
convocou a busca por autores que pudessem ajudar a significar uma das cenas com mais
destaque. Introduzi novas ideias, na tentativa de argumentar um dos aspectos que defendo
com esta dissertação, que é a presença das lógicas institucionais nas relações e situações
manifestadas na organização escolar, e certa noção de ordenamento da vida, das
existências. Já na discussão da terceira narrativa, busco afirmar a ação do menino como
uma forma de recusa que abala os lugares, os saberes e os próprios corpos dos sujeitos no
interior da lógica que rege a organização escolar. Uma recusa que faz ver elementos que
atravessam o cotidiano.
Desta maneira, ao perceber o esforço de produzir as narrativas a partir de um certo
modo que dá lugar aos elementos presentes no cotidiano e exercitar um pensamento
apresentando este exercício como uma discussão possível para cada uma das situações,
percebi-me capturada. Capturada para incluir aquilo que dá sentido à prática
institucionalista, e que, por isso, é muito difícil, trabalhoso, e ao mesmo tempo muito
caro. Refiro-me ao exercício de analisar a minha implicação com o que foi vivido, a minha
parte naquilo tudo que foi apresentado como psicóloga/pesquisadora. É assumindo esta
posição que finalizo este capítulo, pensando sobre a prática do psicólogo na escola a partir
do que chamei de pequenas-grandes recusas que se tornam visíveis no cotidiano escolar.
Termino, então, dando-lhes a minha parte, o que me cabe.

18
Obedecendo, mas não muito, a estrutura de uma pesquisa acadêmica, antes das
Referências bibliográficas apresento as “Considerações Finais”. Tal parte consiste em
uma apresentação que, “malandramente”2, não faz o resgate de toda dissertação propondo
um fechamento (mesmo que provisório), mas aborda o processo de escrita da pesquisa e
a conquista de um lugar de fala comprometido com a produção de efeitos, e ainda o que,
por fim – ou seria um começo –, entendo consistir a prática do psicólogo quando atua nas
organizações com os professores, as famílias, as aprendizagens, enfim, com as crianças,
principalmente aquelas que não cabem. São considerações que vieram pelo caminho...

2
O sentido da palavra que usamos aqui é inspirado na música “Cavaleiro e os moinhos” de João Bosco e
Aldir Blanc.

19
2 DAS DIFERENTES FORÇAS PRESENTES

“Sem qualquer mimética de boas formas, cópias,


modelos.
A beleza e a força da multiplicidade.
Enfrentamentos: o incontrolável, o intolerável...”

(Ana Lúcia M. de Barros)

Iniciaremos o primeiro capítulo desta dissertação com o esclarecimento de uma


posição de como entendemos o território escolar a partir de algumas ideias que sustentam
a reflexão sobre como a Psicologia foi se estabelecendo no campo escolar ao longo da
nossa história. Atualmente as ideias e os temas que localizaremos na fronteira entre a
Psicologia e a Educação partem destas formulações críticas, e por essa razão não
pretendemos repetir o que já circula em demasia neste território específico.
Não obstante a isso, consideramos de extrema importância marcar que as questões
desta pesquisa se fizeram a partir das leituras e do contato com o percurso de autores que
problematizam a responsabilização da ciência psicológica no panorama do sistema
escolar do Brasil. Destacamos as produções das autoras Maria Helena Souza Patto, Maria
Aparecida Affonso Moysés e Marilene Proença Rebello de Souza, que contribuíram para
a construção de bases para uma posição potencialmente crítica na sustentação da atuação
do psicólogo na escola.
Interessa-nos recuperar a ideia de uma concepção da Psicologia que muito se fez
presente no território escolar e que contribuiu maciçamente para a identificação dos
problemas de todo um sistema institucional em um único sujeito, seja ele o aluno, o
professor, a mãe, o pai. Com isso, pretendemos clarear uma tendência historicamente
estabelecida que predomina na dinâmica do campo social, e, portanto, na escola.
Individualizamos as questões do contexto escolar, social e político, e culpabilizamos os
sujeitos que declaram os problemas. Em linhas gerais, identificamos e concentramos
neles os problemas que devem ser resolvidos.
Ao longo deste capítulo, apresentaremos uma narrativa referente ao campo que
culminou nas questões sobre as quais, com esta dissertação, pretendemos dedicar o
pensamento. Retrataremos, como uma ficção, a escola onde desempenhamos a função de

20
psicóloga durante alguns anos. A escolha de partir de uma narrativa que diga dos
diferentes elementos que estão em jogo quando se fala da escola é uma estratégia que
busca sustentar a ideia de que o cotidiano escolar é um campo de forças em luta
permanente (HECKET et al., 2012), e que, portanto, guarda a possibilidade de invenções,
criações em seu funcionamento.

2.1 Daquilo que deveria ser

“[...] diversos são os microuniversos possíveis,


tantos quanto são as linhas do tempo”

(Suely Rolnik)

Alguém que já teve a experiência de permanecer um tempo, mesmo que breve,


em uma escola, a fim de observar as dinâmicas e as relações que lá se dão, certamente se
afetou com algo que viu. Crianças brincando, correndo, gritando, dançando, falando em
grupos ou sozinhas, adultos chamando, sinais tocando, um cai de um lado, um levanta de
outro, materiais nas costas, no chão, nas mãos... Enfim, várias coisas acontecendo ao
mesmo tempo, principalmente nos momentos de entrada, saída, almoço ou recreio.
Normalmente, uma pessoa estranha na escola é bastante notada por algumas crianças, que
já logo vêm conversar, perguntar, contar coisas sobre a sua vida e saber o que está fazendo
ali, tudo com muita curiosidade. Apresentam os amigos, os grupos, os professores, o
espaço físico.
Com tudo isso que se passa no território escolar, movimentado pelas crianças e
adultos que lá estão, um outro convite pode chegar sorrateiramente e, muitas vezes,
captura o olhar, a observação e o pensamento sobre o que se vê: uma certa tendência em
voltar a atenção para os exageros, as estranhezas, as faltas, aquilo que parece muito ou
que parece pouco. Depois de um tempo maior na escola, há o perigo de o observador se
convencer de que conhece algo daquilo que viu, e se deixar levar pela ideia de que sabe
quem é o mais “agitado”, a quem falta “educação”, quem é o mais “tímido”, qual é
“liderado” e qual “lidera”, quem se comporta “mal” e quem se comporta “bem”, qual tem
mais paciência, quem grita muito, e assim por diante, infinitamente...
É claro que passar um curto período de tempo na escola para observar as crianças,
ver como as relações e dinâmicas se estabelecem, é totalmente distinto de habitar por

21
longos períodos, diariamente, e desenvolver o próprio trabalho na escola. Entretanto,
assim como os gritos, risos e barulhos presentes, essa tendência que descrevemos pode
ser facilmente percebida, pois também marca presença e se objetiva no contexto escolar.
Há concretamente, na escola, uma certa forma de entender e definir o que lá
acontece, mesmo que em alguns lugares apareça de maneira mais branda e, em outros,
mais acentuada. O fato é que há um convite para olhar para as crianças e adultos que estão
na escola a partir de uma medida que estabelece o que seria certo e o que seria errado
fazer nesse espaço, ou seja, o modo adequado de lá estar.
Sabemos que esta tendência foi intensamente fortalecida e, também, produzida
pela Psicologia ao longo da história. Autores como Patto (1984, 1997, 1999, 2005), Souza
(2010), Collares e Moysés (1997), Machado (1994, 1996), entre outros, referem e
formalizam críticas sobre a participação e a responsabilidade dos paradigmas
psicológicos no cenário educacional do Brasil. Suas produções, em resumo, destacam a
análise sobre os instrumentos, métodos e atuação dos profissionais psi como ferramentas
que engendram os problemas que emergem no contexto escolar.
O aparato técnico da Psicologia entra no jogo como um elemento fundamental de
perpetuação do que se entende como conflito e fracasso que se expressa na escola. Ou
seja, discutem-se os efeitos produzidos pela ciência psicológica nos sujeitos em processo
de escolarização.
Entre os autores que discutem a relação entre a Psicologia e a escola, destacamos
Maria Helena Souza Patto que, na década de 1980, publica sua tese de doutorado
intitulada Psicologia e Ideologia: reflexões sobre a Psicologia Escolar. Sua principal
argumentação é a participação da ciência psicológica como instrumento de manutenção
de uma certa ordem que preserva as desigualdades sociais entre os indivíduos na
sociedade. Patto (1984) põe em cheque o saber/fazer do psicólogo apoiado em uma
perspectiva técnica corretiva, adaptacionista e normativa, que achata e silencia os modos
de existência e as singularidades. Nas palavras da autora:

A percepção de que nós formamos técnicos da correção de ‘desvios’,


da harmonização de ‘desequilíbrios, da resolução de ‘crises’, da
exclusão dos que resistem à norma e, portanto, da conservação de uma
determinada ordem social, é igualmente difícil e lenta, como o é a
consciência de que esta formação só pode ocorrer no marco de uma
determinada concepção de Homem e de ciência. Os homens reais são
apresentados como Homem, entidade abstrata e ahistórica; as
sociedades de classes nos chegam como Sociedade, entidade
igualmente abstrata, harmônica, que infelizmente passa por crises, mas
que não é contraditória em sua essência, que paira acima e além dos

22
homens e à qual estes têm que se adaptar basicamente da mesma forma
como os animais se adaptam aos seus ambientes naturais. Neste
contexto, à Psicologia cabe decifrar, guiada pelo princípio da
identidade, as leis que regem a adaptação humana ao seu ambiente
social [leia-se natural] (PATTO, 1984, p. 1).

O que está em jogo, portanto, é uma suposta ordem validada pela ilusão de
igualdade social propagada historicamente por uma lógica científica que normatiza,
quantifica e caracteriza os sujeitos. A crítica é endereçada justamente ao que sustenta a
ciência psicológica quanto à abstração do seu objeto de estudo, uma noção de Homem
asséptico e abstrato. Concordamos com a autora que este tipo de concepção do indivíduo,
sustentando a prática psicológica, produz efeitos catastróficos de rotulação,
culpabilização e padronização dos sujeitos, já que não considera as situações do campo
social como resultantes de uma construção inscrita na história. Desta maneira, é no
indivíduo que se localiza a culpa por um fracasso produzido pelos processos sociais,
políticos e econômicos.
Queremos ressaltar que a crítica protagonizada por Patto3 (1984) sobre a relação
entre a Psicologia e a escola, suas ideias, seu percurso de pensamento e seus esforços
contribuíram para o trabalho e as reflexões dos psicólogos que buscam desenvolver
criticamente sua prática na escola. Consideramos, ainda, que suas produções fomentam e
estimulam a busca em romper um funcionamento instituído da Psicologia, e suas obras,
para nós, sustentaram o desejo de empreender a prática psicológica como possibilidade
de ampliação da potência de criação e ruptura na escola.
Há uma direção de olhar predominante lançando questões, explicações e
justificando os problemas a partir das causas individuais dos sujeitos. Fórmulas e
operações são criadas segundo um saber que antecede as situações, desse modo, se o
aluno é indisciplinado, se comporta fora ou distante das expectativas do adulto, é porque
tem um transtorno de personalidade ou porque sua família não é suficientemente
estruturada; ao professor, falta motivação e interesse; o aluno não aprende porque não
tem atenção; e assim se segue, buscando as causas dos supostos problemas nos indivíduos.
Produz-se, portanto, a ilusão de que algo não está acontecendo e deveria
acontecer, afirmando que se não fosse assim – do jeito que é –, os problemas não
existiriam. A “regra” é, portanto, transtornada por aqueles que não a seguem, uma vez
que são transtornados, e todo transtorno resulta na impossibilidade de segui-la. Desvela-

3
Ver Patto (1984, 1999).

23
se uma compreensão individualista preponderante no contexto escolar que se baseia em
uma relação direta entre a causa e o efeito manifestado (OLIVEIRA, 2016). Deve-se ser,
agir, pensar de uma certa forma estabelecida para que o processo de escolarização tenha
sucesso. E para isso, o aluno tem que ser adaptado, disciplinado, atento, educado,
comedido etc.; e tudo que escapa deste padrão é um grande problema, atrapalha, bagunça
e impede. Ou seja, o aluno não pode ser. Entretanto, ele é.
De certo modo, esta é a questão que percorre toda dissertação: uma forma
instituída por uma força dominante, conservadora de uma ordem, que tem como principal
produção o silenciamento e o aprisionamento. A aposta que fazemos se sustenta na
concepção do campo escolar como um espaço onde a multiplicidade dos sujeitos e das
relações entre eles age o tempo todo. Tensionando, portanto, sem cessar os
funcionamentos enrijecidos e produzindo rupturas que abrem para novas possibilidades e
criações. Assim, buscamos a força e o movimento do instituinte, e é isso que nos interessa.
Esta é a direção que norteia nosso percurso.
Desta maneira, a estrutura deste capítulo refere-se a uma escolha que parte da
proposta radicalizada pela corrente institucionalista, cuja perspectiva sustenta a forma
como trabalharemos ao longo do texto, de que para os processos instituídos e
naturalizados, as rupturas, as brechas e os rompimentos são fundamentais.
A escrita da narrativa escolhida para iniciar essa dissertação, inaugurando a
abertura do campo trabalhado e dos problemas levantados nesta pesquisa, busca destacar
o que definimos como espinha dorsal do texto: a força, a necessidade e a pertinência da
ruptura. Esta escolha, que tem por base a leitura de obras que analisam criticamente as
produções e efeitos da relação entre a Psicologia e a escola, força-nos a apresentar o
campo a partir de uma certa posição que elege diferentes elementos do cotidiano como
pertinências a serem vistas. Ajuda-nos, ainda, a não identificar nos sujeitos a causa dos
conflitos que se manifestam na escola.
Propomos, então, jogar com as diferentes peças do instituído e do instituinte.

2.2 Um projeto de escola

Esta era uma escola que se valia do seu percurso. Com o passar de tanto tempo
de trabalho, completar trinta anos tornou-se motivo de divulgar, para todos que
circulavam por esse espaço, a sua história. Queria-se que soubessem de onde surgiu e
como se mantinha até os dias atuais; sua fundação estava de alguma forma presente no

24
trabalho desempenhado dia a dia. Um ambiente notavelmente familiar, desde os laços de
sangue, até os tantos antigos funcionários que lá trabalhavam. Assim como as crianças
que permanecem pelo menos dez anos da sua vida no espaço escolar, nesta escola os
adultos também permaneciam.
Fundada por uma mulher que, inicialmente, queria ajudar as mães que
trabalhavam fora de casa, o espaço oferecido se propunha a cuidar de crianças. Com o
passar do tempo, outras mulheres da família – as filhas – assumiram o desejo daquela
mulher – a mãe –, e começou-se a delinear o que se entende como um espaço escolar. As
crianças foram se tornando alunos e as práticas de cuidado foram se tornando práticas
educacionais. Todos trabalhavam juntos e as pessoas compartilhavam a ideia inicial de
promover um ambiente no qual os alunos fossem reconhecidos pelos seus nomes –
independentemente da quantidade –, e que a família também pudesse pertencer àquele
espaço, participando das decisões e encaminhamentos da vida escolar de seus filhos.
Esta escola passou de pequenas casas para dois grandes prédios, onde se
separavam os alunos mais velhos dos alunos mais novos – Educação Infantil e Ensino
Fundamental I, em um deles, e Ensino Fundamental II e Médio, no outro. As equipes
técnicas que conduziam as principais decisões e coordenavam os professores em cada
uma das unidades da escola eram pessoas “da casa”. Alguns entraram em cargos
administrativos e conectaram-se com o desejo de empenhar uma formação no campo da
Pedagogia, e assim o fizeram. A equipe técnica era formada, então, por pessoas que já
haviam estado em diferentes lugares na organização. Este percurso dos funcionários
dentro da escola era bastante valorizado pelos mantenedores, pois indicava um saber
sobre os princípios e bases acumulados na circulação por diferentes cargos ao longo dos
anos.
O fato é que o trabalho cotidiano, o desejo de fazer um bom trabalho, contagiava
as pessoas, havia um ideal sobre como lidar com as crianças e como a educação escolar
deveria ser. O bom trabalho implicava, nesta escola, a relação entre o professor e o
aluno, acreditava-se que a aprendizagem se sustentava aí, e, a partir desta ideia, toda a
organização da escola foi pensada. Salas pequenas, com poucas crianças; projeto
pedagógico que envolvia a família; tutoria para cada uma das turmas; reuniões
frequentes entre a equipe; cursos e encontro de professores, e tantas outras atividades
realizadas fora da sala de aula. Primava-se pela presença destes princípios em todos os
momentos em que se descrevia a escola.

25
Havia saberes que se consagraram no percurso desta organização, como, por
exemplo, o trato com crianças com algum tipo de deficiência – físicas e/ou mentais. A
partir da premissa de que a escola é espaço para todos, foi construído um sistema para
trabalhar com os alunos ditos difíceis, desajustados, problemáticos, que chegavam lá
depois de terem sido rejeitados por inúmeras outras escolas. Uma ordem se estabeleceu.
Sabia-se que o trabalho educativo com essas crianças exigia esforços aparentemente
dispensáveis para uma escola que não se dispusesse a incluí-las. Buscava-se uma
compreensão da vida desta criança, havia disponibilidade e empenho para receber
aquilo que se apresentava como diferença expressiva em relação às outras. De uma
maneira geral, a presença de crianças com deficiência – dificuldades e desajustes – e a
pertinência desta presença, era uma luta de todos que trabalhavam nesta escola.
Os encaminhamentos, as necessidades e a prática cotidiana nesta temática foram
fruto de idas e vindas de diferentes situações com as famílias, com os alunos e com os
professores. Enfim, com o cotidiano escolar, que frequentemente provocava dúvidas e
inquietações nos educadores e gestores da escola; um certo “o que fazer agora?”. É
neste movimento que surge4 o trabalho psi nesta organização, diretamente ligado à
questão da inclusão escolar e às situações que não se sabia mais como conduzir. Havia
um departamento de Psicologia que alinhavava o funcionamento desta engrenagem. O
psicólogo, então, estava inserido na escola e era entendido como fundamental para
orquestrar o trabalho e as relações de todos com essas crianças.
Com o passar do tempo, aquilo que era entendido como necessidade específica
para trabalhar com as crianças as tais deficiências, amplia-se para pensar o todo da
organização. Os psicólogos marcam presença nesta escola, e fazem-se necessários.
Trata-se o não saber com outro campo de saber – concretamente, o departamento de
Psicologia.

4
Uma parte da experiência desse departamento e os processos sobre a política e a prática da educação
inclusiva são discutidos por Solange Aparecida Emílio, na tese de doutorado intitulada O cotidiano escolar
pelo avesso: sobre laços, amarras e nós no processo de inclusão defendida no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, no ano de 2004, sob a orientação de Maria Julia Kovács. Em sua tese, Emílio
(2004) apresenta como foi sendo construído o trabalho do psicólogo no interior deste contexto. A autora
conta ter ofertado um projeto de trabalho à direção da escola (modo pelo qual se inseriu), em que sua
principal motivação era criar formas diversas das práticas tradicionais e hegemônicas da psicologia nas
escolas brasileiras. No seu doutorado, a discussão dessa temática é bastante presente, a partir das
considerações de Marilena Chauí e Maria Helena Souza Patto.
O projeto de intervenção “visava à organização do serviço de psicologia em uma escola de Ensino
Fundamental e Médio, partindo da necessidade de ampliar e sistematizar as contribuições da psicologia a
este contexto [...]” (EMÍLIO, 2004, p. 19); a proposta era que o psicólogo pudesse participar da rotina
institucional de forma ativa e dinâmica. Tal informação parece-nos necessária, pois entendemos que a
demanda não é espontânea, mas, sim, constituída e engendrada por uma oferta.

26
Com uma equipe que contava com pedagogos de confiança e psicólogos para
amparar os conflitos do trabalho, supunha-se uma certa engrenagem perfeita.

Uma escola

Uma média de seiscentos alunos matriculados e um discurso sobre o fluxo de


caixa financeiro, sempre apertado. Assim o ano começava. Todos os professores reunidos
no maior espaço dos dois prédios que compunham fisicamente a escola. Os mantenedores
se pronunciavam agradecendo aos professores e funcionários dos anos anteriores e
recebiam com boas-vindas os recém-contratados. Apresenta-se a escola para todos,
primeiramente, pela sua situação financeira, o administrador pede ajuda para manter as
economias cotidianas – luz, água, materiais etc. –, em seguida, a diretora geral fala da
proposta pedagógica, resgatando a história da escola, destaca-se a importância da
atividade do professor no trato com as crianças. Metaforiza o trabalho educativo
realizado por todos ali a partir da imagem de uma vela escondida debaixo de uma mesa
e que, então, teria que aparecer mais: “Queremos crescer!”.
O início de todos os anos durante os quais trabalhei nesta escola seguia a mesma
ordem; estive lá por quase oito anos. As falas sobre o dinheiro que entrava e saia sempre
foram frequentes, assim como o reconhecimento e satisfação em relação ao trabalho que
todos realizavam. Em geral, mantinha-se o número de alunos. Este sempre foi um
incômodo, que não cessava com justificativas simples, algo ficava em suspenso, sem
resposta ou solução; um traço permanente.
O desejo da administração da escola era claro, isso porque se compartilhava a
situação de inadimplência e o volume da folha de pagamento de funcionários como uma
família que compartilha com todos os custos de ter uma casa, que esclarece a todos o
quanto custa morar ali. Queria-se ganhar mais e gastar menos, assim, todos poderiam
se beneficiar. A chamada era feita no sentido de que todos deveriam trabalhar para
ampliar os rendimentos da escola. Compartilhar as diferenças sobre o que se ganhava e
gastava parecia uma forma de justificar o valor do salário e a demora de reajustes. Era
comum escutar de professores mais antigos que a motivação para o trabalho não estava
mesmo na remuneração, mas, sim, nas condições que a escola oferecia no cotidiano –
salas pequenas, apoio ao professor, fácil acesso aos mantenedores –, enfim, outros tipos
de benefício. Desse modo, o dinheiro era uma questão que, muitas vezes, os funcionários

27
punham de lado, pelo menos os que estavam lá há muitos anos. Pareciam futuros
herdeiros de um grande patrimônio.
Logo ao entrar na escola, tive a impressão de uma estrutura muito bem pensada,
principalmente na unidade onde ficavam as séries dos alunos mais novos. Uma
construção adaptada para crianças; estagiárias e auxiliares nas salas, acompanhando
as professoras e os alunos; e havia mais de dois orientadores educacionais no total da
equipe técnica. Por outro lado, por parte dos mantenedores, não se admitia certos
comportamentos, como o de “guardar a mão dentro do avental”. Imagem esta que
aparecia com um certo tom jocoso entre as professoras e estagiárias; diziam que cruzar
os braços ou ficar com as mãos no bolso do avental era proibido, esperava-se pró-
atividade, sempre há trabalho a fazer, mão no bolso indicava ociosidade. De fato, sempre
havia trabalho a fazer.
As condições oferecidas pela organização ajudavam a delimitar a função de cada
cargo: coordenação pedagógica, orientação educacional, direção e psicologia. O
desempenho de cada um desta equipe – que constituía a equipe técnica da unidade – era
norteado por uma ideia: “a escola que queremos ser”. No limite, o trabalho que
desempenhávamos buscava acompanhar uma ideia de uma escola onde realmente fosse
possível realizar sua prática baseada na relação de respeito à singularidade das
crianças.
Havia um esquema arquitetado para não perder os princípios norteadores no
trabalho cotidiano: reuniões de tutoria, reunião entre a equipe, acompanhamento com
pais, reunião com os professores individualmente e em grupo, infinitos encontros. A
agenda da semana era bastante cheia. Como psicóloga, tendo sido contratada para
acompanhar o processo de escolarização dos alunos com deficiência e pensar as práticas
educacionais e institucionais em relação a eles, uma parte do dia passava circulando
pelo espaço físico da escola, observando e conversando com alunos, professores,
agendando reuniões, dando retornos, colhendo informações. E a outra parte, na sala do
departamento, anotando o que havia feito, motivada pelo receio de esquecer alguma
coisa, pelo sentimento de que nada poderia passar despercebido. Tentava, de certa
forma, dar conta da irreal sensação de que tudo poderia ser apreendido, registrado e
controlado. Se não fosse impossível, nada deveria escapar. Outro traço forte desta
escola.

Daniel, Diogo, Gabriel, Beatriz, Giovana, Isabela, Adriano, Felipe...

28
Uma escola inclusiva que trocava informações com os profissionais que atendiam
os alunos supostamente difíceis com ou sem deficiência – psicólogas, fonoaudiólogas,
psiquiatras, psicopedagogas, terapeutas ocupacionais. Muitos desses alunos que
recebíamos tinham sido matriculados a partir de indicações desses profissionais, com os
quais mantínhamos contato frequente durante o ano letivo; nossos alunos eram seus
pacientes. Formávamos uma rede que se articulava para pensar sobre os
encaminhamentos possíveis e desejáveis para cada um desses que escapava dos padrões
instituídos. Esses alunos nos exigiam um tempo de dedicação, interrompiam um modo de
cumprimento dos diversos compromissos planejados dia a dia, um modo de trabalho.
Mesmo que compreendidos no giro da engrenagem da escola – afinal de contas,
estávamos engajados com a inclusão escolar –, algo ali escapava. Certamente por
diversas vias, assumindo diferentes faces – professores, funcionários, uma sala de aula
inteira –, mas é nos alunos com deficiência ou com algum tipo de dificuldade que a
manifestação daquilo que sai da ordem tomava proporções mais expressivas, ou até mais
concretas. Eles escancaravam.
Era frequente a interrupção de reuniões da equipe técnica com professores por
causa de algum problema. Ora a Isabela havia entupido o vaso do banheiro com papel
higiênico, ora o Adriano estava escrevendo, com caneta, números nas pernas, ou o
Gabriel estava debaixo da escada e se recusava a ir para a sala, e o Daniel não voltou
do recreio e se escondeu em algum lugar, e o Felipe estava correndo a mais de quarenta
minutos no pátio e não queria parar, ora era Beatriz que arrastava as cadeiras da sala
e jogava os livros... Eventos que chegavam à figura do psicólogo e que convocavam uma
intervenção, uma explicação, alguma atitude.
Essas situações eram denominadas como surtos ou problemas urgentes: “Daniel
surtou e não sabemos o que fazer” ou “a Beatriz está dando problema”, assim falava-
se. Esses eram os pequenos (grandes) eventos no cotidiano dessa escola que mobilizavam
todos: caminhadas apressadas pelos corredores, coleta de informações sobre o que
precedeu o momento, acolhida de alunos que se impactaram, cuidado com a professora
que ficou surpresa ou aterrorizada, telefonemas para os pais etc. Enfim, essas situações
mexiam em tudo, em toda a suposta ordem que, em momentos como esses, desmantelava-
se por completo, como se nunca tivesse existido. Vivíamos esses eventos diversas vezes
na semana, às vezes no mesmo dia, vez ou outra ao mesmo tempo, e muitos deles
conseguíamos minimente compreender e elaborar um certo pensamento que os

29
justificasse ou explicasse, outros não, e esses, sobre os quais já não conseguíamos nem
mais pensar, ficavam indigestos por um bom tempo.
O evitamento da sensação de um não saber sobre as situações difíceis – e que por
isso provocavam um incômodo que não se afastava – era um tipo de intervenção prévia
permanente, que nos pautava desde a entrada de um aluno na escola. Fazíamos
entrevistas, sistematizávamos datas de reuniões com a família e conversávamos com os
profissionais que atendiam as crianças. “A inclusão nesta escola se sustenta por um
tripé” – a própria escola, a família e os profissionais externos: fonoaudiólogos,
psicopedagogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros. Esse tripé constituía
as frentes que se destacavam como fundamentais para que o processo de inclusão das
crianças com deficiências, e daquelas com as ditas dificuldades (comportamento,
aprendizagem, leitura, fala, entre outras), acontecesse na escola.
Da primeira frente esperava-se saber sobre o aluno e seu processo de
aprendizagem, éramos nós da escola – psicóloga, coordenadora pedagógica e professor.
Da segunda frente, a família, exigia-se acompanhamento, disponibilidade para estar
presente nas reuniões agendadas, abertura para buscar os encaminhamentos e realizar
as estratégias pensadas pela escola. Da terceira, os profissionais externos, esperava-se
a presença nas decisões sobre a vida escolar do aluno, ou nos momentos em que se
pensava algum novo encaminhamento – finais de ano, adaptação de atividades, terapias
etc. Era muito trabalho para todos, exigências e mais exigências para se buscar
explicação, planejar e propor procedimentos no processo de escolarização.
De fato, os alunos com deficiência ou com dificuldades eram como uma
interrupção em um funcionamento marcado por horários, disciplinas, planejamento,
ordem, começo, fim, regras e normas – aquele funcionamento que parece impossível ser
lentificado, bastante comum das organizações escolares. Como pequenas rupturas em
um organismo pretensamente equilibrado, esses alunos apareciam, bagunçavam e nos
exigiam refletir e pensar. Paravam-nos simplesmente por estarem ali, agindo aquele
contexto.
***
Há uma preponderância de certa compreensão que reduz aos aspectos individuais
e da personalidade dos alunos o que se entende por problemas de aprendizagem,
comportamento e inadequação (OLIVEIRA, 2014; VICENTIN, 2014). Trata-se de uma
ordem que se estabelece em abstrações naturalizadas que padronizam uma certa forma de
ser no contexto da escola e que fortalece as operações de oposição nos sujeitos: o aluno

30
bom e o aluno mau; o adequado e o inadequado; o comportado e o indisciplinado; o bom
professor e o mau professor; o profissional competente, o profissional incompetente. A
escola, então, se apresenta como um funcionamento que se supõe completo e fechado.
Entretanto, a experiência no campo escolar nos convida a ampliar o olhar e a
incluir na análise diversos elementos que estão presentes e que tensionam estas lógicas
de oposição. Falamos, então, das rupturas que promovem a irrupção do não saber, da
desacomodação, da impossibilidade, daquilo que não conhecemos previamente.
Nesse sentido, nos interessa o que foge da ordem criando desordem, da impotência
forçando a potência, o desvio, o escape, a criação. Além dos tantos autores dos quais nos
valeremos para discutir a questão, contamos com as vidas que cruzaram nossa experiência
no campo escolar durante este trabalho e que se apresentarão aqui como narrativas
ficcionadas. Voltaremos a elas, Marcos, Danilo e Gabriel, nossos mais fortes aliados.

31
3 ARREBENTAR A CORRENTE QUE ENVOLVE O AMANHÃ

Neste capítulo que segue, o leitor irá perceber que faremos referência a alguns
acontecimentos concretos da história da França e da Argentina, no período final da década
de 1960 e início de 1970. Esta referência impulsiona o nosso objetivo neste momento da
dissertação: a apresentação do instrumental teórico e político do Movimento
Institucionalista e da Análise Institucional, bases que sustentam a direção da análise das
práticas presentes no campo desta pesquisa.
Partir de acontecimentos históricos nos pareceu a forma mais concreta de trazer
para o leitor a potência do pensamento institucionalista, já que, para esta perspectiva, há
uma incessante tentativa de levar à cabo a concepção de vivência cotidiana em relação ao
que é estabelecido historicamente na vida dos sujeitos. Contando principalmente com os
conceitos de instituição, instituído e instituinte, percorreremos algumas rupturas no
campo da ciência e da psicanálise que possibilitaram a formalização da Análise
Institucional e o método de intervenção socioanalítico.
Vimos, no capítulo anterior, o caminho que a Psicologia percorreu historicamente
no território escolar e os perigos e desafios que estão presentes ao se ocupar um certo
lugar como psicólogo na escola. Acreditamos que o instrumental oferecido pela
perspectiva institucionalista possa criar rupturas e potencializar invenções de práticas
para o psicólogo habitar este território sem assumir uma mera condição de especialista,
desconhecendo suas implicações institucionais. Nossa aposta é feita na direção de um
agente que, ao analisar suas implicações, aproxima-se da possibilidade de produzir
mudanças e promover sentidos coletivizados, distanciando-se de uma fazer que reproduz
naturalizações, controle e dominação. Esta ideia nos sugeriu esta escolha teórica que
privilegia uma prática na qual se analisam os efeitos que ela produz, configurando-se,
portanto, como uma prática política.

3.1 “O direito se realiza nas ruas”: o acontecimento Maio de 68

No final da década de 1960, surgiram diversos questionamentos marcados


principalmente pela análise e irrupção em ato de críticas ao funcionamento totalitário das
instituições, tais como a universidade, o trabalho, a polícia, a educação, a sexualidade etc.
Estamos nos referindo a Maio de 68, movimento que disparou reflexões e reivindicações
sobre as formas altamente conservadoras das organizações sociais.

32
Este momento contou, a princípio, com o protagonismo de jovens da classe média
francesa, caracterizados como fora dos quadros políticos tradicionais, pois não
pertenciam e nem pretendiam envolver-se em qualquer tipo de disputa partidária; não
eram da classe operária e, acima de tudo, não reivindicavam a luta pelo poder ou contra
ele (MATOS, 1989; PINTO, 2008). Segundo Olgária Matos (1989), essa característica
do protagonismo inicial da luta de Maio de 68 favoreceu certo descontrole por parte da
superestrutura política em relação às reivindicações e ao movimento que começava a se
fortalecer socialmente.
No dia 10 de maio de 1968, em Paris, milhares de estudantes se manifestaram em
um protesto contra a prisão de colegas da Universidade de Nanterre. Ao final do dia,
totalizando mais de vinte mil pessoas na rua Gay Lussac, a marcha se deparou com
policiais do Corpo Republicano de Segurança, tal encontro resultou em um dos mais
violentos eventos da história da república da França. Nesta noite, os estudantes utilizaram
carros como barricadas e aconteceu um verdadeiro confronto com a polícia francesa. Na
“noite das barricadas”, segundo João Alberto da Costa Pinto (2008), inaugurou-se a
expressão dos conflitos sociais mais emblemáticos do século XX.
As reivindicações e os questionamentos baseavam-se em uma crítica na qual o
indivíduo pudesse ser reconhecido a partir de sua singularidade, opondo-se a qualquer
forma totalitária de concepção da vida, afirmando, portanto, os direitos da subjetividade
e da existência. A busca se dirigia a um princípio de realidade outro que não o industrial-
produtivista – marcado pela imposição de formas preestabelecidas de pensar baseadas no
sistema capitalista e na tecnocracia – e das regulações características do mundo
burocratizado. Assim, a motivação era a produção de vida em um mundo que se
apresentava cada vez menos vivível e sensato. Maio de 68 “colocou como lema a verdade
triunfante do desejo” (MATOS, 1989, p. 13), diferenciando-se de uma revolução em que
o objetivo é a retomada ou busca pelo poder. Nas palavras da autora,

Necessidades instintuais e razão se reconciliam, eliminando a punição


da sensualidade ou da reflexão.
Princípio de vida, eros, felicidade sensual e instintiva: 68 foi uma luta
pela vida [...] significou uma ruptura radical na política daqueles que
estão no poder e daqueles que aspiram alcançá-lo; neste sentido pode-
se sublinhar que a política não foi o solo desse movimento (MATOS,
1989, p. 15, grifo da autora).

Entendemos, assim como faz Matos (1989), que afirmar Maio de 68 como não
estando relacionado prioritariamente com a política partidária intensifica a contestação

33
feita pelo movimento sobre os dois sistemas de organização econômica da sociedade – o
capitalismo e o socialismo –, e traz à baila a principal característica que distinguiu essa
década: a luta pela vida, pelo pensamento e pela subjetividade através da exuberância, da
alegria e da felicidade, em panfletos, faixas, cantos, abraços – principal potência dos atos
realizados.
Neste período, também conhecido como o marco da “Grande Recusa”, os
estudantes secundaristas e universitários reagiram às leis que impunham lógicas de
mercado, tais como: a reforma no código da nacionalidade, a instauração de prisões
privadas, a penalização do consumo de drogas e àquelas que se aplicavam à esfera
educacional, por exemplo, a Lei Duvaquet – que restringia o acesso de jovens às
universidades (WUO, 2003). Matos (1989) sobrepõe a todas essas reivindicações a força
presente no questionamento do racismo, evidenciada após a morte de um estudante em
virtude da violência policial em território francês.
No que diz respeito à crítica do sistema universitário, Maio de 68 desvelou o
desencanto da racionalidade dos direitos do indivíduo moldado nos ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade, promotor de uma consolidação totalitária de governo da vida.
Na Itália, por exemplo, as manifestações estudantis iniciaram motivadas pela ruptura com
o autoritarismo da Universidade e a mercantilização da cultura e do homem; diziam os
estudantes em um dos panfletos que circularam em 1968: “A universidade produz um
tipo particular de mercadoria: o homem, considerado como mercadoria, como força de
trabalho qualificada ou em vias de qualificação, como diplomado ou candidato ao
diploma” (MATOS, 1989, p. 34). É nesse sentido que a luta se dirigia ao questionamento
dos fins produtivos da formação universitária e da forte influência da lógica
mercadológica no âmbito educacional.
Regina Benevides de Barros (2004) destaca Maio de 68 como um acontecimento
que potencializou uma série de correntes de pensamento e movimentos sociais que
reivindicavam o fim de uma ordem altamente conservadora, a saber: o movimento
libertário dos estudantes e operários franceses, a “Primavera de Praga” contra o
socialismo dominado pela antiga URSS, a reação dos norte-americanos à guerra do
Vietnã, a agitação estudantil e a luta antiautoritária contra a ditadura de Francisco Franco
na Espanha (MATOS, 1989).
Notoriamente, Maio de 68 criou efeitos de contágio e conexão com outras partes
do mundo, tornando pública e mundial a busca por romper com as generalizações e a
universalização da vida, a partir do questionamento das organizações e das formas

34
cristalizadas que imperavam nas relações humanas – sendo, portanto, um acontecimento
não identificado e não limitado historicamente à França e aos franceses. Nas palavras de
Matos (1989):

O Maio de 68 foi uma “brecha histórica” e um acontecimento


extraordinário, pois colocou em suspenso uma sociedade que se
pensava de maneira orgânica e sem fissuras; ensinou que uma revolução
não nasce sob efeito de um conflito interno entre opressores e
oprimidos, “mas advém no momento em que, diz Lefort, se apaga a
transcendência do poder, no momento em que se anula sua eficácia
simbólica” (MATOS, 1989, p. 95).

É na via do “é proibido proibir”, da explicitação de uma recusa e, muito mais, de


uma ruptura, que esse movimento buscou formas de rachar com um funcionamento
aparentemente fechado, intransponível. A imprevisibilidade aflorou por intermédio da
vida, e não por uma disputa pelo poder, possibilitando, então, a exigência pelo impossível
através das práticas cotidianas de auto-organização realizada pelos estudantes e
trabalhadores (PINTO, 2008). Entendemos que o extraordinário caracteriza a subversão
daquilo que é entendido como constitutivo da história da sociedade, justamente na direção
de verdadeiramente recusar aquilo que se supõe ser a verdade.
Dado esse contexto, com destaque à potência de ações direcionadas a abalar a
estrutura social vigente, passaremos a apresentar o transcurso que possibilitou uma outra
ruptura, o acontecimento do Grupo Plataforma Internacional, em especial o Grupo
Plataforma Argentino e o Grupo Documento. Este acontecimento tem sua culminância
no ponto em que uma ação se faz inaugural em relação às posições estabelecidas
institucionalmente nas organizações psicanalíticas da Argentina e, por ressonância, na
América Latina.
Resultante de um incômodo que ganha voz num congresso da International
Psychoanalytical Association (IPA) na Itália, o Grupo Plataforma Argentino se faz
escutar, posiciona-se e trava uma luta para inserir reflexões políticas e revolucionárias na
psicanálise latino-americana. Seguiremos, então, nesta direção, que nos possibilitará a
aproximação de algumas ideias e reflexões que também compõem o Movimento
Institucionalista.

3.2 Grupo Plataforma: um símbolo gráfico, um contracongresso, um movimento


instituinte

35
“Psicanálisi$ - ‘Plataforma apareceu, de fato,
como um símbolo gráfico’”

(.Armando Bauleo)

“Discutindo juntos, em diferentes línguas, uma


mesma realidade.”

(Armando Bauleo)

É em uma cantina popular chamada Carletto al Panorama, situada em Roma, que,


em julho de 1969, um encontro convocado por candidatos das associações psicanalíticas
europeias discute ideias acerca dos serviços e desserviços das sociedades psicanalíticas e
da psicanálise. Tal encontro aconteceu paralelamente ao XXVI Congresso Internacional
da IPA, cujo tema era “Protesto e Revolução” (BAULEO, 1973; FERNANDES,
DUARTE, RODRIGUES, 2001; LANGER, 1973; KESSELMAN, 1973).
O fato de o encontro ter acontecido ao mesmo tempo e nas imediações do local
onde se desenrolava o congresso oficial não era o único motivo que justificava a
classificação que lhe foi dada de contracongresso ou paracongresso. Esta denominação
ocorreu em virtude dos pontos básicos que animaram os debates e que estavam totalmente
ausentes do congresso oficial. Os temas levantados como importantes para serem
discutidos tinham em comum a necessidade de pensar a psicanálise e as questões que
envolvem a formação do analista em relação às influências sociais, políticas e
institucionais.
Questionavam-se os efeitos possíveis do trabalho do analista no campo social,
assim como a estrutura das associações psicanalíticas, que muito limitava o acesso à
teoria. A bibliografia sobre este momento aponta sistematicamente quatro pontos centrais
da discussão. São eles: a formação do psicanalista; o significado, função e estrutura das
sociedades psicanalíticas; o papel social dos psicanalistas e a imagem social da
psicanálise; e as relações entre psicanálise e instituições. Pontos e questões bastante
delicados de discutir naquele momento histórico, pois diziam das relações que a própria
engrenagem das escolas psicanalíticas promovia e defendia como correta, necessária, para
a formação e trabalho de um analista. As divergências e questionamentos em relação ao
que estava dado eram silenciados e ignorados pela maioria dos representantes que

36
detinham mais poder nas associações – os titulares e os didatas (FERNANDES,
DUARTE, RODRIGUES, 2001; LANGER, 1973, KESSELMAN, 1973).
Os candidatos buscavam discutir e pôr em questão as premissas obrigatórias que,
como um dos efeitos, promovia e estimulava o estabelecimento de relações de dominação,
por um lado, e aceitação de um papel submisso, por outro. As críticas eram encaminhadas
para uma direção que convocava a reflexão para a contundente presença da ideologia
burguesa instituída e oficializada no campo psicanalítico.
Herman Kesselman (1973), um dos latino-americanos que participou deste
contracongresso, elege a palavra regressiva, ao se referir à estrutura das sociedades de
formação em psicanálise. O autor discute a estrutura institucional a partir do fomento de
relações de poder e dominação dos psicanalistas “oficiais” sobre os candidatos à formação
na carreira. Kesselman, assim como Armando Bauleo e Gregório Baremblitt, era, nesta
época, candidato à formação, e o texto que Kesselman publica, em 1973, no Brasil – com
o título “Plataforma Internacional: Psicanálise e Anti-imperialismo” –, exala o clima
tenso das disputas que estavam em jogo, a luta travada nestes tempos e a dificuldade em
se fazer escutar. Neste texto, o autor se refere aos contestadores que se uniram nas
imediações do congresso oficial – incluindo ele mesmo – como “os meninos terríveis de
Roma” (KESSELMAN, 1973, p. 248). Fato que nos chama atenção pela forma irônica
com que intenta expressar a posição que os candidatos ocupavam nas sociedades, e
também pela grande oposição em jogo que sua expressão objetiva: os bagunceiros e os
obedientes, por assim dizer – operação muito comum e presente no solo escolar.
As discussões em Roma foram realizadas por um grupo formado pelos candidatos
às associações formais da teoria, ou seja, os agentes que ocupavam a última posição na
hierarquia da formação psicanalítica, abaixo dos associados, titulares e didatas, sem
direito, em geral, a voto nas reuniões oficiais. Os candidatos eram, portanto, os agentes
interessados no estudo da psicanálise e que, possivelmente, mais sofriam com os efeitos
da rigidez presente na estrutura das organizações psicanalíticas. Sobre esta posição,
Bauleo (19771977, p. 17-18) é bastante claro:

Estávamos diante de uma autoridade que objetivada pelas paredes de


um edifício, por Ester, a secretária, pelas diferentes Comissões (a de
Direção, a de Ensino, a do Instituto), assinalava constantemente por
onde passava o poder-saber da psicanálise.
Era pesado o aparato psicanalítico instituído que caía sobre nós, como
repressão frente aos impulsos, para determinar constantemente,
sublinhando-a, a normalidade ou a psicose do nosso próprio discurso.

37
A moral passava pelo diagnóstico e pela economia. A pergunta
implícita permanente era: isso é psicanálise?
Era insuportável, pesava demasiado, a boca se fechava diante da
associação livre, tinha-se que dizer o estabelecido, devia-se realizar o
esperado, comparecer às “festinhas” para ser comentado [...]. Assim foi
durante anos, nunca se entendia bem o que queríamos expressar com a
nossa palavra, especialistas do “ouvido” não escutavam o que
assinalávamos.

Este trecho, retirado do artigo “Plataforma ou história de um Projeto”, publicado


em 1977, no Brasil, traz em palavras a força da vertente instituída na vivência cotidiana
das associações psicanalíticas, localizando as determinações impostas desde as formas
concretas e físicas do espaço até o efeito de achatamento de qualquer possibilidade de
pensar que questionasse o que estava dado como estabelecido. Uma certa forma fica clara
e tem que ser cumprida, um único caminho é indicado para ser percorrido e apenas este é
reconhecido. Os desviantes da rota determinada se confundiam entre os saberes
psicanalíticos, correndo o risco de se deparar com a recomendação pautada na constatação
da necessidade de mais tempo para a análise pessoal. Ninguém ali queria ser psicótico.
Entretanto, uma das formas institucionais de lidar com as contestações era diagnosticar
os que as enunciavam.
Não nos parece pouco que os desviantes fossem caracterizados como anormais ao
tentar chacoalhar a pergunta “Isso é psicanálise?”, demasiadamente repetida por aqueles
que, teoricamente, detinham o saber, para fazer frente às novas reflexões que surgiam. A
questão e o momento que Bauleo e também Kesselman destacam não nos parecem buscar
por uma verdadeira psicanálise, mas antes e radicalmente têm a intenção de abrir um
campo de problema em lugar de fechá-lo. Visando, prioritariamente, a possibilidade de
criar diferentes formas de relação na escola psicanalítica, em que se pudesse contar com
o saber sem lançar mão da afirmação do poder hierárquico, elevando, com isso, a política
no exercício do analista.
Em tempo de forte vigência do silenciamento na vida organizacional das escolas
psicanalíticas, o momento do contracongresso em Roma vem a calhar, uma vez que se
faz um encontro de vozes silenciadas por relações autoritárias pautadas no saber da
psicanálise. Bauleo (1977) descreve como espanto a sensação imediata que teve ao
perceber que muitos, ao redor do mundo, estavam buscando a circulação de novas ideias
e maneiras de pensar a psicanálise. Afirma também que o espaço inaugurado pelas
discussões foi potente em criar uma voz a ser escutada: “Nos entendíamos. A boca e o
ouvido encontravam finalmente um canal” (BAULEO, 1977, p. 18). O momento foi

38
marcado com uma faixa disposta em frente ao luxuoso hotel onde acontecia o congresso
oficial, onde se lia a palavra psicanálise em espanhol, grafada com um cifrão
“Psicanálisi$”, na tentativa de dar visibilidade à crítica que estava operando naquele
momento (FERNANDES; DUARTE; RODRIGUES, 2001). Desta maneira, uma luta
ubíqua se afirma no sentido da criação de diferentes formas de incluir a realidade política
e histórica no campo psicanalítico.
Os encontros ainda renderam uma lista de reivindicações referente aos entraves
da carreira psicanalítica no que concerne aos custos excessivos, ao conteúdo ideológico
da formação e às exigências necessárias para a titulação “oficial” em psicanálise. Tais
discussões e encaminhamentos configuraram um movimento denominado Plataforma
Internacional, que recebeu este nome por sua semelhança com uma plataforma política.
O Plataforma Internacional estabeleceu filiais na Argentina, Áustria, Itália e Suíça, sendo
Hernan Kesselman e Armando Bauleo os participantes da América Latina e, também,
fundadores do grupo Plataforma Argentino.
Não era fruto do acaso a participação de Kesselman e Bauleo neste
contracongresso, já que discussões e críticas encontravam ressonâncias há tempos na
Argentina. Lutava-se também contra a penetração de forças governamentais relacionadas
à necessária vinculação ao campo da medicina para o exercício profissional do analista.
Entendemos que detalhes da história do Grupo Plataforma Argentino merecem
destaque nesta dissertação pela força que imprimem na ruptura de uma certa forma de
instituir o trabalho dos psicanalistas. Além disso, os escritos dos autores que fizeram parte
do Grupo Plataforma trazem à luz a percepção intensa das forças institucionais e os efeitos
que estão em jogo na experiência cotidiana das organizações.
Tal história conecta uma tendência de exercício apolítico da psicanálise com os
desafios referentes ao momento vivido na Argentina, resultando em importantes lutas de
posicionamento teórico-prático na transmissão e no exercício da teoria. Este destaque se
justifica, ainda, pela forte influência que este movimento terá na entrada do pensamento
institucionalista no Brasil (FERNANDES; DUARTE; RODRIGUES, 2001). Desse
modo, seguiremos na apresentação do contexto histórico do país irmão para entrar em
contato com a dimensão político-institucional que faz surgir o Grupo Plataforma.
Voltemos um pouco na história...

3.3 Até as últimas consequências

39
“Buenos Aires, outubro de 1971.
Colocar data e local neste prefácio não significa
Cumprir um formalismo.
Importa esta localização.
Por isso repito e amplio:
Buenos Aires, Argentina, Monteviéu, Uruguai,
América Latina, 1971.”

(Marie Langer)

Assim que a psicanálise ganha terreno na Argentina, na década de 1930,


discussões acerca de quem estaria apto ou não a exercê-la como profissão foram
frequentes e influenciaram fortemente tanto a prática como a sua transmissão. A
importância desta afirmação advém de que o exercício e o estudo da psicanálise, em certo
ponto, cruzaram-se com um controle que visava o estabelecimento da legalidade da
prática médica. Concomitantemente, a psiquiatria estava em busca de se afirmar como
especialidade em torno da luta para se desvencilhar da identificação com a vigilância da
loucura, já instituída historicamente. Ocorre que a psicanálise muito interessava aos
psiquiatras como forma de especialização, pois oferecia como arcabouço teórico e técnico
inovações relevantes, em especial no campo das psicoterapias (FERNANDES;
DUARTE; RODRIGUES, 2001).
O entrave principal decorria do fato de que a psicanálise, sendo difundida e
podendo ser transmitida fora da tutela corporativa da medicina, tornaria mais desafiante
os propósitos de controle do exercício ilegal da profissão, isto porque as associações
psicanalíticas, inicialmente, ofereciam formação tanto para médicos quanto para não
médicos. As reverberações do interesse da medicina, segundo Fernandes, Duarte e
Rodrigues (2001), acompanharam as associações psicanalíticas desde a sua fundação até
a assunção de posicionamentos político-institucionais.
Na década seguinte, em 1940, um grupo de estudiosos, em sua grande maioria
profissionais médicos, reúne-se com o objetivo de fundar a primeira associação
psicanalítica da Argentina5. Entretanto, duas posições dividem o grupo: uns defendiam
que, para alcançar o título oficial de psicanalista, dever-se-ia cumprir a exigência da IPA

5
São eles: Gregório Berman, Jorge Thénon, Arnaldo Rascovsky, Enrique Pichón-Rivière, Angel Garma,
Guillermo Ferrari Hardoy, Celes Ernesto Cárcamo e Bela Székeli – o único que não era médico.

40
em relação à análise didática e se opor à necessidade do diploma em medicina; os demais
recusavam qualquer tipo de ingerência da IPA nos assuntos que julgavam de competência
exclusivamente médica. Esta discordância fez com que o propósito inicial não fosse
realizado. Somente dois anos mais tarde, no dia 15 de dezembro de 1942, é que a
Associação Psicanalítica da Argentina (APA) é fundada, tendo sido a primeira da
América Latina.
Desde sua fundação, os membros da APA não se propunham a seguir o modelo
europeu e norte-americano, e se esforçavam para não fazê-lo, no que se refere à
constituição de uma hierarquia rígida, instituída na associação. Os cargos de supervisores
e didatas foram ocupados pelos psicanalistas mais experientes, que também
compactuavam, em certa medida, com a finalidade de criar uma república de iguais, na
tentativa de amenizar as relações de poder referentes ao saber sobre a psicanálise.
Nos desdobramentos do cenário da política argentina – golpes de estado e
implantação de novos regimes de governo –, a APA sofreu pressões intensas no tocante
à formação de psicanalistas em relação à medicina. Havia um pedido para que a oferta e
o acesso à formação fossem permitidos somente para os médicos. Em 1952, a Associação
acata parcialmente as exigências impostas: psicanalistas não médicos trabalhariam
obrigatoriamente sob a supervisão de um médico com a “readaptação de pessoas
psicossocialmente desadaptadas”. Todavia, tal medida não foi aceita como suficiente para
a restrição e o controle que estavam sendo postos como necessários pelos órgãos
governamentais.
Dois anos mais tarde, por determinação do ministro da Saúde Pública, Ramón-
Carillo, a prática da psicanálise e da psicoterapia é autorizada somente para profissionais
formados em medicina. No ano seguinte, 1955, um novo golpe de Estado depõe o governo
vigente e, em 1957, institui-se o primeiro curso de psicologia na Universidade de Buenos
Aires. Este momento foi marcado pela intensa participação dos alunos nas decisões e
direções a serem tomadas na universidade (caso exemplar é a contratação dos
professores). Nesta época, a psicanálise ocupava um espaço considerável na formatação
do curso, uma vez que José Bleger e outros psicanalistas da APA eram professores
contratados, proporcionando, então, a ampliação do terreno para a difusão da teoria
psicanalítica. Por consequência, na segunda metade da década de 1950, a APA não tinha
mais condições de circunscrever o monopólio de transmissão da psicanálise, que, além
de estar presente no espaço universitário, começa a ser difundida em diferentes contextos.

41
É neste cenário que a psicoterapia de grupo surge como uma prática possível, pois
se referia à associação da psicanálise e sua aplicação fora dos limites do atendimento em
consultório. É importante lembrar que os trabalhos de Pichòn-Rivière com adolescentes
no Hospício de Las Merces, ainda nos anos 1940, são referência do pioneirismo
desencadeador desta expansão. Ainda na década de 1950, a psicoterapia de grupo se
populariza a partir dos trabalhos realizados por profissionais da saúde – entre eles, alguns
filiados à APA –, e acontece a fundação da Associação Argentina de Psicologia e
Psicoterapia de Grupo (AAPPG).
A procura pela formação em psicanálise crescia cada vez mais na Argentina,
principalmente pela difusão dos trabalhos com grupos, inclusão de disciplinas
psicanalíticas na universidade e pelos movimentos inovadores no campo da saúde
mental6. A APA, por sua vez, não conseguia dar conta da demanda por formação, pois
mantinha um número restrito de didatas. Para Fernandes, Duarte e Rodrigues (2001), a
falta de condições para suprir a demanda e a motivação em buscar possibilidades de entrar
em contato com a teoria psicanalítica produziram outras formas possíveis de transmissão
e exercício da psicanálise – grupos de estudos e atendimentos de pacientes sem
supervisões “oficiais”. Este tipo de alternativa era comum principalmente para os
profissionais psicólogos que, ainda neste momento, permaneciam impedidos de fazer a
formação via APA, por não serem médicos.
Tal contexto possibilitou a criação de diferentes associações “não oficiais” para o
estudo da psicanálise, fomentadas e coordenadas por membros da APA, como a Escola
Privada de Psicologia Social, na qual Pichón-Rivière, Bleger, Liberman e Ulloa
realizavam experiências de aplicação da psicanálise em grupos e comunidades – práticas
que foram fundamentais para a formalização de ideias acerca dos funcionamentos
grupais.
No estabelecimento da psicanálise como ferramenta de trabalho na Argentina,
podemos destacar algumas disputas. A primeira em relação à forte pressão governamental
que ditava quem estava apto ou não para praticá-la – inserimos aqui as polêmicas e
determinações impelidas pelo campo médico, o questionamento da aplicação prática da
teoria – concebida como restrita ao campo individual e particular em consultório, as

6
Propostas com a finalidade de encaminhar uma reforma na atenção psiquiátrica estavam em jogo neste
momento, como a experiência piloto em Lanús, Buenos Aires. Sob a direção de Maurício Goldemberg, que
encabeçou a proposta de uma formação dentro do próprio serviço (MARAZINA, 2015; FERNANDES,
DUARTE, RODRIGUES, 2001).

42
relações de poder que se estabeleciam no interior da própria estrutura da associação –
rigidez quanto à formatação da estrutura institucional.
Na segunda metade da década de 1960, a Argentina sofre um novo golpe de
Estado, cuja característica principal é o autoritarismo e o extremismo religioso. A
universidade sofre grande repressão, alunos e professores são espancados, e o controle se
dá de forma violenta, na tentativa de dissolver e dissipar partidos políticos de oposição,
líderes estudantis e sindicalistas (FERNANDES; DUARTE; RODRIGUES, 2001).
O cenário político era aterrador e a opressão dominava as ruas, diminuindo cada
vez mais a possibilidade de travar lutas por mudanças políticas. São tempos que
antecedem o acontecimento de Maio de 68 na França, o qual põe em questão as formas
de vida que estavam sendo silenciadas e controladas e que, certamente, encontra
ressonância nos contestadores latino-americanos. Muitos textos produzidos pelos
argentinos e uruguaios, nos anos que se seguem a este momento, trazem a dimensão da
existência de uma luta anti-imperialista e revolucionária na América Latina, luta que, no
limite, buscava a libertação da América Latina das formas de extrema dominação e
opressão (LANGER, 1977).
Um pouco mais tarde, ocorre a ocupação pelo exército nacional da cidade de
Córdoba, que para Marie Langer foi o Maio de 68 argentino. Diz ainda: “nós nos
despertamos, como instituição [...]. Na época, a maior parte dos psicanalistas argentinos
pediu a sua sociedade que se pronunciasse politicamente” (LANGER, 1973, p. 10). A
APA se posiciona publicamente, criticando e lamentando as direções tomadas pela
política governista. Este posicionamento é entendido por Langer como uma fusão do
“dentro” com o “fora” no nível institucional da APA. Tal fusão, para a autora, resulta em
uma explosão institucional, pois o “fora” identificado justamente com o que acontecia no
contexto político-social – que até o momento era negado ou posto à parte da seara
psicanalítica –, ao ser levado em conta e reconhecido como algo que necessariamente
deveria ser olhado, mina o funcionamento sustentado na suposta neutralidade da
organização psicanalítica, isto é, o “dentro”. Inserir o “de fora” no funcionamento “de
dentro” convocava afirmar um posicionamento político contestador que vinha sendo
violentamente silenciado há tempos. É nesse sentido que Langer caracteriza este
momento como o de uma explosão institucional.
As publicações de José Bleger são um exemplo da impossibilidade desta
separação. Sua investigação e escrita sobre a psicanálise e o marxismo foram sempre
consideradas “de fora” do campo da psicanálise que interessava à APA, mesmo sendo ele

43
psicanalista associado à organização e, portanto, “de dentro” (LANGER, 1973). Tal
exemplo expressa a força de imprimir um único caminho de reconhecimento institucional
como a psicanálise.
Chegamos, então, no momento do congresso da IPA, em Roma, onde se desenrola
o contracongresso e a formação do Movimento Plataforma, e com o ele o Plataforma
Argentino, com todos estes elementos em jogo. Como dissemos, o grupo Plataforma
Argentino se afina com os questionamentos e reivindicações sobre a estrutura das
associações psicanalíticas e os destinos dos trabalhos baseados na teoria, o que se pode
chamar de “papel social dos psicanalistas”. A vertente que surge é fundamentalmente
política, compreendida como potência transformadora da prática da psicanálise como
exercício profissional.
O Plataforma Argentino busca maneiras de difundir as críticas, e vários de seus
membros aderem à Federação Argentina de Psiquiatras (FAP), uma organização que abriu
espaço para as reflexões e lutas que estavam efervescendo. Ao mesmo tempo, na APA, é
formado um grupo chamado Documento, que busca efetivar mudanças na estrutura da
organização, a saber, voto para os associados e o direito de todos os titulares em ser didata.
Desta forma, unem-se em reivindicações comuns os dois grupos, Plataforma Argentino e
Documento, sendo este último mais voltado para transformações internas da organização.
Em 1971, o movimento Plataforma Internacional institui, assim como em 1969,
um contracongresso concomitante ao Congresso da IPA, com o tema “A teoria e a prática
psicanalítica à luz dos diferentes caminhos em direção ao socialismo”, que acontece em
Viena. No entanto, o momento não provoca efeitos tão intensos, já que as reivindicações
feitas não encontraram ressonância no plano estrutural das organizações psicanalíticas. O
resultado deste encontro foi a grande evasão dos agentes que contestavam e buscavam
promover reflexões críticas sobre as direções político-teórico-práticas da psicanálise.
Como efeito deste contracongresso, de volta à Argentina, o Grupo Plataforma
rompe com a APA, sem se comunicar com o grupo Documento, enfraquecendo as
posições de contestação que reivindicavam reformas no interior da organização. A luta
política, neste momento, começa a ser feita fora da APA, e os dois grupos se direcionam
para a Federação Argentina de Psiquiatras. A esse respeito, recorremos às palavras de
Baremblitt (1997, [s. p]),

É importante destacar que este foi o primeiro grupo, no mundo, que se


separou de uma Associação Psicanalítica oficial, filiada à Internacional,

44
devido a motivos políticos. Não estou me referindo a questões de
política institucional, e sim de macropolítica. Era uma decisão muito
transcendental, porque a Associação Psicanalítica da Argentina era a
segunda do mundo. Quem entrava lá não saía nunca mais. Naquela
época iniciava-se na Argentina a repressão pesada. A atitude do
Plataforma perante esta repressão foi completamente diferente da
atitude da instituição psicanalítica.
Mas também havia uma diferença teórica. O Grupo Plataforma era
predominantemente freudo-marxista e a Associação Psicanalítica era
freudo-kleiniana. Havia também diferenças técnicas quanto à aplicação
da psicanálise a âmbitos sociais. A Associação Psicanalítica não era
favorável a isso. Havia ainda diferenças quanto à política institucional
de forma mais restrita, forma da pedagogia, custos da formação e
maneira da seleção, maneira de promoção e conteúdos da formação,
enfim havia uma grande discordância.
O Grupo Plataforma funcionou muito tempo dentro da Associação
Psicanalítica até que, em 1971, saímos de lá. Depois disso continuamos
nossas atividades por mais um ano, quando o grupo se dissolveu, entre
outras coisas, porque boa parte dos participantes já estava se exilando e
outra parte foi morta.

A saída de alguns membros da APA não foi nada simples de realizar. A filiação
institucional era algo que, de certa forma, oferecia sustentação para os psicanalistas que
tentavam, de algum modo, buscar a somatória de forças para as críticas da relação da
psicanálise com a dimensão social. Este efeito de debandada institucional não ocorreu
somente na Argentina, mas em outros países da América Latina e também da América
Central. É o caso da carta escrita por Frida Zmud, para a Associação Psicanalítica
Mexicana, que nos parece fundamental ser citada, uma vez que ela expressa as
intensidades vividas naquele momento. Zmud escreve:

Penso que o trabalho psicanalítico é essencialmente o exercício da


crítica das estruturas pessoais e sociais. Só desta maneira entendo que
a análise pode ser um caminho para atingir na sua essência o ser humano
integro responsável e comprometido. Congruente com esta convicção,
sinto-me obrigada a renunciar à minha condição de membro da
Associação Psicanalítica Mexicana e, consequentemente, também à
minha condição de membro da Associação Psicanalítica Internacional.
A incompatibilidade da minha trajetória pessoal e profissional com
estes organismos não deriva de fricções ou rancores individuais, mas, e
precisamente, daquilo que percebo como estado atual das próprias
instituições [..]. Hoje em dia, assim o sinto, a Associação se converteu
em uma garantia de privilégios, seguranças e cumplicidades com as
quais não posso compactuar sem me atraiçoar como pessoa e como
psicanalista. A formação de novos analistas, a seleção de candidatos e
a promoção profissional, ideológica e social dos membros tal como se
ordena e pratica atualmente na Associação Psicanalítica Internacional –
e portanto em suas filiais – implica um compromisso, inaceitável para
mim, com as classes dominantes, colonizadoras e exploradoras.
(ZMUD apud LANGER, 1973, p. 16).

45
Esta foi uma das formas que os psicanalistas contestadores, que levavam a cabo
a sua reflexão e comprometimento com a função social e revolucionária do trabalho de
uma análise, encontraram para se fazerem vistos e reconhecidos.
Como dissemos, a luta foi se encaminhando para a Federação Argentina de
Psiquiatras. Lá, diversos dispositivos foram criados objetivando a luta político-sindical e
a possibilidade de oferecer a formação em psicanálise em moldes diferentes dos
estabelecidos pela APA. Exemplo destes dispositivos é a Coordenadoria de
Trabalhadores de Saúde Mental (CTSM), o Centro de Docência e Investigação (CDI) e a
produção de artigos escritos pelos profissionais com a intenção de fortalecer sua posição
no jogo político-institucional.
O início da década de 1970 é marcado por intensas alterações na esfera
governamental – a posse e renúncia de Hector Cámpora, a eleição e falecimento de Perón
e a subida da vice, Maria Estela Martinez de Perón, ao cargo presidencial. Este governo
incita a exacerbação da violência e a perseguição de posições esquerdistas com a
participação da Aliança Anticomunista Argentina (Triple A); os membros do grupo
Plataforma e Documento tornam-se alvos, entre eles, Marie Langer, Armando Bauleo e
Emilio Rodrigué – são exilados.
A rigidez característica deste período de totalitarismo político na Argentina, e a
dificuldade em conceber qualquer tipo de ideia que soe como mudança, faz com que os
trabalhos e as conquistas resultantes da luta do Grupo Plataforma e do Grupo Documento
minguem no terreno nacional. Como exemplo concreto da vigilância e ameaça que os
analistas em luta sofreram neste período, destacamos a sofrida pela Escola de Psicologia
Freudiana e Socioanálise (EPFSO), criada por Gregório Baremblitt, em 1974, com a
intenção de articular a psicanálise com o marxismo, e que já realizava e difundia ações
baseadas na Análise Institucional. A EPFSO foi castigada com bombas e forçada a
encerrar as atividades pouco antes do golpe militar em 1976. Baremblitt é um dos
institucionalistas que busca refúgio no Brasil.
As produções científicas realizadas pelos autores que estavam vivendo e ao
mesmo tempo lutando neste período são preciosas. A intensidade das contestações da
transmissão e da estrutura da psicanálise na relação com o fazer é presente nos textos. É
possível perceber o esforço para que a escrita expresse a dimensão política em jogo
quando há uma tentativa de empenhar a ciência na investigação de um tema. Esta é a

46
força, esta é a potência do grupo Plataforma e do Grupo Documento. Nas palavras de
Kesselman (1973, p. 247-248),

Os sul-americanos começamos a ser reconhecidos na Europa, não pela


carne de boi, nem pelo futebol, mas por esta profunda vocação anti-
imperialista e anticapitalista que caracteriza o modo de luta de nossos
povos do Terceiro Mundo. [...] A Psicanálise e o psicanalista se
inserem, que o saibam ou não, agrade-lhes ou não, nas regras do jogo
que marcam as relações humanas em sociedades dependentes.

O período é atravessado pelos diversos cruzamentos com as exigências


governamentais, com as estruturas institucionais das sociedades psicanalíticas, com os
acontecimentos de Maio de 68, com a incidência da medicina, ou seja, todo o contexto
político-social possibilitou o surgimento de um movimento de contestação. A marca
deixada é uma certa forma de pensar e exercer a psicanálise na América do Sul. Tal marca
traz à baila questões que, uma vez formuladas, já não podem mais ser ignoradas.
O que estava – se é que isto se encerrou – em processo, portanto, é uma
convocação para a dimensão política da psicanálise no que diz respeito à formação dos
analistas e aos limites de sua aplicação a partir de um certo posicionamento ideológico.
Tais críticas formulam questões e buscam novas direções para a contundente presença de
formas de dominação na psicanálise instituída e oficializada, a partir da sua forte
tendência apolítica (LANGER, 1973; KESSELMAN, 1973; DUARTE, FERNANDES,
RODRIGUES, 2001).
Mais do que dizer dos psicanalistas argentinos que vieram para o Brasil na década
de 1970, esforçamo-nos para destacar a direção anunciada neste período e que finca
presença em solo brasileiro, no que diz respeito ao pensamento institucionalista. Este
destaque significa que estamos nos baseando não em um grupo de analistas argentinos,
mas em uma ideia que perdura mesmo com a violência que sofreram. Esta ideia fica
bastante clara nas palavras de Marie Langer (1973) – que, no período de ditadura em seu
país, buscou exílio no México:

O que é que questionamos? A Psicanálise em si? A ciência que tem por


objeto o inconsciente, com todas as suas implicações? Não a
questionamos. Pelo contrário. Somos psicanalistas e a Psicanálise nos
interessa. [...] Não questionamos o Freud científico que nos mostra
como a ideologia da classe dominante se transmite, através do superego,
de geração em geração e torna o homem lento em sua capacidade de
mudança. Mas questionamos o Freud ideológico que considera a
sociedade como dada e o homem como fundamentalmente imutável.

47
Questionamos além disso a institucionalização atual da Psicanálise e
seu pacto com a classe dominante [...]. Questionamos uma prática que
tenha, consciente ou inconscientemente, esta finalidade e que se torna
elitista. Questionamos a limitação do conhecimento psicanalítico tanto
para os que querem formar outros, como para os que querem formar, e,
naturalmente, para os que a necessitam como terapia. Questionamos o
isolamento das instituições psicanalíticas, suas estruturas verticais de
poder e o liberalismo aparente de sua ideologia (LANGER, 1973, p. 8).

Tal citação foi extraída da coletânea de artigos publicada no Brasil com o nome
Questionamos I – A Psicanálise e suas instituições (1973), na qual diversos psicanalistas
contestadores escrevem sobre a crítica que fazem à relação da Psicanálise com a
formação, transmissão e as implicações institucionais. Temos, portanto, um cenário
marcado por lutas que abriram espaço e encontraram ressonância nas “brechas”
estruturais das organizações e das instituições, investindo na potência e visibilidade para
a mudança como efeito de um exercício político de questionamento das forças instituídas.
Não nos parece pouco criar uma ruptura na operação que faz com que o contexto
sociopolítico fique “entre parênteses” – portanto, de lado – em relação aos interesses da
psicanálise.
No recorte que esta dissertação faz, buscamos, com esta seção, apresentar um
cenário que possibilite ao leitor compreender a aposta no instrumental do Movimento
Institucionalista e da Análise Institucional como direção de análise para uma organização,
no caso, a escolar. É este campo que nos interessa e, para tanto, seguiremos com algumas
ideias formalizadas pelo Movimento Institucionalista que foram, muitas delas, gestadas
no contexto político que acabamos de apresentar.
Buscamos com este percurso a possibilidade de trazer a potência da atuação do
profissional psi quando elevada a uma prática política que pode criar efeitos de
transformação e questionamento, ou reprodução e naturalização. Quer dizer, uma prática
que analisa os efeitos que produz.

48
4 O MOVIMENTO COMO PERSPECTIVA

4.1 Um percurso ziguezagueante: considerações sobre o Movimento Institucionalista

Como acabamos de ver, a ruptura pelos lados de cá se fez inaugural. O Grupo


Plataforma Argentino rompeu com a APA e, consequentemente, com a IPA – feito inédito
na história das sociedades psicanalíticas, ainda mais pelo fato de que entre os
contestadores havia psicanalistas que auxiliaram na criação da própria associação. Esta
posição é uma forma de levar a cabo discussões sobre a suposta soberania e neutralidade
do saber científico e da psicanálise. Estes psicanalistas não entraram com pouca coisa
nesta luta, suas vidas foram expostas e muitas delas tiradas, muitos tiveram que mudar de
país sob fortíssimas ameaças.
Entretanto, a situação era digna de uma convocação, quer dizer, não havia como
deixar de lado certos princípios e convicções. A esse respeito, destacamos parte da
Declaração do Grupo Plataforma Argentino endereçada aos trabalhadores da Saúde
Mental, datado de 1971-1974, que expõe os motivos do rompimento com a Associação
Psicanalítica da Argentina.

Nuestra disciplina provee el conocimiento de las determinaciones


inconscientes que regulan la vida de los hombres, pero la misma, como
conjunto de prácticas sociales articuladas, está regida también por otros
órdenes determinantes: fundamentalmente el sistema de producción
económica y la estrutura política. Tales relaciones generan en los
individuos sistemas de creencias acerca del lugar que ocupan en la
Sociedad, configurando las Ideologias de clase. Estas son entonces
registros parcializados de la realidad de las prácticas sociales destinados
a orientar y justificar toda práctica. Se coherentes con estos conceptos
nos obliga a entender que el ejercicio científico, indisolublemente
ligado a nuestro estilo de vida y a la organización institucional a la que
pertenecemos, está igualmente condicionado e ideologizado en todos
los aspectos por su inserción en el sistema, siendo tan sólo una
particularidad de las instituiciones que lo integram y sostienen.
La razón de nuestro alejamiento pasa por disidencias con la
organización societária psicoanalitica a todos los niveles: teórico,
técnico, didáctico, investigativo, económico, pero aqui queremos
enfatizar uno decisivo, el ideológico. En este plano el enfrentamiento y
las exigencias de acción concreta que comporta es insuperable e
impugna a la ideologia global de la Instituicion, por lo cual queremos
que quede claro que no nos impulsa grupal o individualmente ninguna
intencion más o menos reformista ni reivindicatoria intrainstitucional y
que las críticas que siguen no aluden a personas, muchas de las cuales
apreciamos, por las que fiumos formados psicoanaliticamente y a las
que formamos. Por nuestra parte hemos sido criticados repetidamente

49
tanto por quienes sostienen que somos negativos o superfluos como por
los que nos reprochan de no haber asumido antes lo necesarios que
éramos alcanzando desde el comienzo una línea madura. No
volveremos, por ahora, a ocuparnos de las críticas que desde el
quietismo o los pactos con el sistema intenten entorpecernos.
Sostenernos que esta separación, producto de un largo y dificil proceso,
es indispensable, y que no puede ser callada y resignada. Puesto que
nos declaramos abiertamente partidarios de una inscripción cualitativa
y cuantitativamente distinta dentro del proceso Social, económico y
político nacional y latino-americano. Como científicos y profissionales
tenemos el propósito de poner nuestros conocimientos al servicio de las
ideologias que cuestionan sin pactos al sistema que en nuestro país se
caracteriza por favorecer la explotación de las clases oprimidas, por
entregar las riquezas nacionales a los grandes monopolios y por
reprimir toda manifestación política que tienda a rebelarse contra él.
Nos pronunciamos, por el contrario, comprometiéndonos con todos los
sectores combativos de la población que, en el processo de liberación
nacional, luchan por el advenimiento de una patria socialista.7

Lembremos mais uma vez que o Grupo Plataforma nasce no contracongresso em


Roma e se mantém por conta das ressonâncias que produz nas vivências das associações
psicanalíticas europeias, atingindo também a América Latina.
Segundo Marazina (2015), ao longo da década de 1950 já aconteciam algumas
discussões sobre a formação instituída nas sociedades psicanalíticas regidas pela IPA.
Contudo, somente em 1960 e 70 é que essas discussões ganham força, juntamente com
as contestações sobre as formas tradicionais de organização social e política. É neste
momento que se torna visível o incômodo presente nas relações de poder instauradas na
formação oferecida pelas associações psicanalíticas europeias. O que nos interessa, nesse
ponto, é cruzar alguns princípios que nos ajudem a esclarecer o que caracteriza uma
prática política indicada pelo Movimento Institucionalista – nascido neste período –, para
que, adiante, seja possível aproveitar esta esteira para analisar as forças que se põem em
jogo em uma experiência psi no campo escolar – o campo desta pesquisa.
Muitos autores brasileiros utilizados como referência marcam e caracterizam o
surgimento do Movimento Institucionalista a partir de uma perspectiva francesa,
aproveitando o acontecimento de Maio de 68 e o que pôde ser analisado naquela época
como elaboração de pensamento. Entretanto, para dizer da prática institucionalista, nosso
percurso foi se encaminhando para os acontecimentos na América Latina, em especial na
Argentina, considerando-os, também, como efeitos produzidos pelo contágio dos
ocorridos europeus nas décadas de 1960 e 1970. Desta forma, parece-nos importante

7
Disponível em: <http://milnovecientossesentayocho.blogspot.com.br/2015/05/grupo-plataforma.html>.
Acesso em: 16 jun. 2016.

50
sublinhar que acompanhamos os autores brasileiros que localizam nos franceses o
Movimento Institucionalista e incluímos aqui os argentinos como um “outro” movimento
que compartilha as ideias correntes do lado de lá. Sendo assim, seguiremos apresentando
os princípios que norteiam esta linha teórica.

4.2 Institucionalismo: movimento, processo, recursos e princípios políticos

A ideia central, presente no chamado Movimento Institucionalista, é a busca


constante por romper com formas totalitárias de compreensão teórica das relações
humanas. Segundo Baremblitt (2002, p. 54), o “institucionalismo é a expressão de um
questionamento da hegemonia do pensamento científico como tal”. É uma perspectiva
composta por diversas teorias, experiências e práticas, sendo elas sempre ligadas ao
compromisso com a transformação social. Fazem parte do Movimento Institucionalista a
Análise Institucional, o Grupo Operativo, a Psicoterapia Institucional, a Pedagogia
Institucional, a Esquizoanálise, e outros (PEREIRA, 2007).
A força empenhada no institucionalismo é sempre em defesa da fertilidade de
todos os saberes que se apresentam em estado prático, quer dizer, atividades que se
realizam no cotidiano da vida, segundo a concepção de que tudo é sócio-historicamente
constituído (BAREMBLITT, 2002; RODRIGUES, 1999). Esta concepção é uma
estratégia que busca romper com as naturalizações das experiências e fenômenos que
vivemos.
Nesse sentido, naturalizar é entendido como um efeito característico das lógicas
institucionais que se utilizam de uma certa noção de natureza para explicar os fenômenos
que acontecem. Machado (1994) nos ajuda a compreender este efeito quando explica que
naturalizar é uma forma de estagnar as relações e ignorar que aquilo que se manifesta nos
sujeitos é decorrente de uma produção histórica, não espontânea e não natural. Quando
se naturaliza a pobreza como impeditivo para a aprendizagem, por exemplo, ignoram-se
todas as relações possíveis de serem pensadas – inclusive a organização do sistema de
ensino, as lógicas que atravessam o universo da educação, assim como a produção de
exclusão no terreno escolar –, afirmando uma certa condição inferior das crianças de
baixa renda. Portanto, naturalizam-se certas explicações, certos comportamentos e muitas
maneiras de viver, de forma a paralisar as relações em jogo nos processos de construção
da história (MACHADO, 1992). Segundo a autora, a naturalização funciona e
regulamenta algo como normalizado, de modo que algumas coisas são consideradas

51
normais e outras não. Se nos detivermos no exemplo da pobreza e da aprendizagem, o
“normal” seria conceber muito mais facilmente a dificuldade de aprender em uma criança
“pobre” do que em uma criança “rica”. Tal operação – pobreza/aprendizagem – se explica
por si só, ditando uma certa natureza para o problema e bloqueando todas as demais
produções históricas que participam do fenômeno “a criança que não aprende”, exemplo
do qual nos valemos.
Para o Movimento Institucionalista, romper com as naturalizações é justamente
provocar e desacomodar o que está normatizado. É, portanto, bagunçar os lugares
estabelecidos historicamente, partindo sempre do pressuposto de que nada é natural.
Nesse sentido, a busca incessante do institucionalismo é acessar a complexidade dos
processos de interação e existência humana, considerando as lógicas que regulam a
sociedade.
Para esta perspectiva teórica, a sociedade é formada por uma rede de instituições
que, acompanhadas das determinações históricas, regulam e normatizam a vida e as
relações (BAREMBLITT, 2002). Como característica que atravessa todas as teorias que
compõem o Movimento Institucionalista, destacamos o esforço constante em questionar
os efeitos de naturalização que determinam formas de submissão dos sujeitos, grupos e
coletivos. Trata-se de perseguir as linhas que vão tecendo a história com o objetivo de
promover o empoderamento dos sujeitos nas suas próprias condições de vida. Esta
característica do Movimento Institucionalista é chamada de “Utopia Ativa”, e expressa
uma inspiração revolucionária no sentido de potencializar nos coletivos a reflexão e a
decisão, o saber sobre si, a partir da problematização das ações em relação aos fazeres
cristalizados (BAREMBLITT, 2002).
Ao discutir o tema, Baremblitt (1984) ressalta a ideia de buscar diferentes formas
de compreender o fenômeno sócio-político-econômico a partir de teorias, métodos e
técnicas que possam potencializar novos8 saberes e que fazeres sociais. Para o autor, esta
compreensão implica conceber os campos psíquicos e econômicos como
indiscutivelmente ligados nos níveis teórico, técnico e clínico, bem como no nível da
prática social. Lembremos aqui dos embates ocorridos na Argentina em torno da luta que
buscava estabelecer a psicanálise como ferramenta sócio-política.
É neste sentido que o Movimento Institucionalista tem por objetivo a autoanálise
e a autogestão. Nas palavras de Barambelitt (1992, 17):

8
Entendemos como “novos saberes e que fazeres” a possibilidade de reflexão sobre o que antes estaria
dado e, portanto, a inauguração de ações e decisões pautadas nos processos de autoconhecimento.

52
A auto-análise consiste em que as comunidades mesmas, como
protagonistas de seus problemas, necessidades, interesses, desejos e
demandas, possam anunciar, compreender, adquirir ou readquirir um
pensamento e um vocabulário próprio que lhes permita saber acerca de
sua vida, ou seja: não se trata de que alguém venha de fora ou de cima
para dizer-lhes quem são, o que podem, o que sabem, o que devem pedir
e o que podem ou não conseguir. [...] não é feita de cima para baixo,
nem de fora, mas elaborada no próprio seio heterogêneo do coletivo
interessado.

No limite, a autogestão e a autoanálise são uma afirmação do saber cotidiano das


pessoas sobre os problemas que emergem nas relações sociais. É o alvo que guia certa
provocação que tem como aposta a reflexão do coletivo sobre as questões que o
engendram. Por definição, são o recurso e o objetivo da intervenção, entendidas no
institucionalismo como o processo de emancipação e promoção de possibilidades e
reconhecimento das necessidades, interesses e desejos: o autoconhecimento do coletivo
trabalhado.
Entendemos que pensar as ações dos psicólogos que desenvolvem sua prática na
escola a partir dos princípios da autoanálise e da autogestão não é a mesma coisa que criar
na organização escolar uma exigência autogestiva ou autoanalílitca. Mas, sim, direcionar
os esforços para acessar os conhecimentos já existentes na organização, potencializando
os saberes acumulados pelos agentes que desenvolvem a prática educativa – professores,
alunos e todos os participantes deste fazer. Parece-nos importante fazer esta distinção,
pois sabemos que, por diversas determinações históricas – pela forma como se deu a
participação da Psicologia na área da Educação –, o psicólogo é um dos profissionais que
exerce grande poder nesse território especificamente. Colocá-lo simplesmente como um
especialista que promoveria a autogestão e a autoanálise na escola nada mais seria que
reafirmar o seu poder como alguém de fora que diz o que deve ser feito: autogestionem-
se!
Por este motivo, destacamos um contraponto fundamental para atingir a
autogestão e a autoanálise no que diz respeito ao analista9, pois a proposta do Movimento
Institucionalista anuncia um reposicionamento deste em relação ao seu saber e ao campo
de trabalho. Isto significa que a intervenção não conta com um saber que pode ser
encerrado ou isolado, como algo concentrado em si. Pelo contrário, o saber do analista é

9
Optamos por variar entre os termos: analista, especialista e técnico; aquele agente que propõe ou é
chamado para realizar uma intervenção.

53
importante no campo do coletivo para a produção de dispositivos que promovam a auto-
organização da comunidade, articulando elementos e diferentes saberes que se compõem
coletivamente. Retomando a citação de Baremblitt (2002), o técnico ou especialista não
será aquele que “vem de cima” e dirá o que deve ser escolhido, o que é necessário ou que
deve ser rejeitado. E, sim, aquele que trabalhará com a sua especialidade a serviço da
comunidade na produção de escolhas que sejam reconhecidas a partir de um sentido
coletivo, o que a comunidade escolhe para si.
A partir destas questões é fundamental a análise que o Movimento
Institucionalista promove sobre a posição do analista no campo de trabalho como um
agente que não difere do coletivo, que entra no campo e se disponibiliza a estar junto.
Com isso, o sentido da palavra intervenção revela o caráter de uma ação que transforma,
buscando o fortalecimento de dispositivos que promovam os processos de autogestão e
autoanálise (MARAZINA, 2015). A intervenção é entendida a partir de uma perspectiva
ética e política, de modo que o interventor se põe também como objeto de análise e tem
como foco atentar para a circulação dos fluxos de poder, já que o poder aí não é definido
a partir de um lócus privilegiado. Trata-se de pensar em uma dissolução do lugar neutro
e superior destinado ao especialismo da ciência, ocupado pelos técnicos. Este mesmo
lugar é posto em questão no jogo da intervenção, tornando-se material de análise, uma
vez que é engendrado em uma relação na qual o saber se exerce como poder.
O poder, por sua vez, é fundamentalmente entendido a partir de uma perspectiva
que o concebe como difuso, exercido por via das relações de força e pelas resistências.
Tal concepção implica que as relações de dominação se constituem a partir da ação dos
sujeitos determinados historicamente, e não somente a partir da ação do Estado ou das
classes dominantes, por exemplo (PEREIRA, 2007). Sabemos que algumas formações
sociais ocupam uma posição privilegiada e que verdadeiramente se impõem sobre outros
grupos que não detêm os mesmos privilégios, entretanto, na concepção apresentada, o
poder nunca é controlado.
Segundo Foucault (1979), o poder se refere a um risco, um jogo que pode ser
compreendido a partir da análise histórica, uma vez que não é da ordem da apropriação.
Nesse sentido, o autor afirma que “todo o saber estabelecido permite e assegura o
exercício de um poder” (FOUCAULT, 1979, p. 50), isto consiste na concepção do poder
a partir de um saber que se institui, isto é, que passa por um processo de reconhecimento
social. Entendemos, portanto, que o saber tem relação direta com o exercício do poder
nas relações. No campo da Psiquiatria, por exemplo, ao instituir uma lei que transforma

54
o psiquiatra no especialista que deve ser consultado antes de qualquer caso de internação,
em meados do século XIX, determina-se um certo poder ao saber médico psiquiátrico,
saber este que cria efeitos e estabelece uma certa forma de agir em relação à loucura e à
medicina (FOUCAULT, 1979, p. 51).
Seguindo esta concepção, é possível pensar o funcionamento do contexto escolar
a partir das relações de poder e dos efeitos que agem nos fenômenos que lá se manifestam
e nos sujeitos que lá estão. Isso porque, em certo sentido, a trajetória histórica da
Psicologia na fronteira com a Educação se estabeleceu a partir de uma hierarquização do
saber científico: do psicológico sobre o pedagógico. De modo que a prevalência das
explicações sobre os fenômenos indesejados e as inadequações que ocorrem nesse
território naturaliza-se como algo de ordem individual e psicológica. Busca-se, então, o
psicólogo para explicar a partir de recursos teórico-metodológicos o que já não é mais
possível ser entendido por aqueles que lá se encontram10. Temos – nós, como psicólogos
– na nossa profissão, o direito/dever de dizer sobre os conflitos, as confusões e os
sofrimentos do psiquismo. Estamos em um jogo que implica o saber e o poder. Saber
dizer sobre os sujeitos em sua individualidade e dizer sobre o psiquismo sinaliza uma
prática pautada no poder de argumentar a respeito do que o outro desconhece.
É, portanto, no sentido relacional que o conceito de poder é apropriado pelo
Movimento Institucionalista, pois aponta em si considerações e efeitos da prática do
especialista no que compete a um saber inscrito historicamente. A articulação entre o
saber e o poder é fundamental para pôr em análise a função do especialista nos coletivos,
já que toda entrada do especialista no campo implica ocupar ou não um lugar delimitado
historicamente. Lugar este que pode causar silenciamentos e reproduzir verdades
indiscutíveis que derivam da condição de tudo saber e da suposta neutralidade do analista.
Desta maneira, a intervenção do especialista no Institucionalismo é
fundamentalmente voltada para a abertura de passagens para fluxos em que o poder possa
circular e ser exercido pelo coletivo em trabalho, possibilitando que atores surjam e que
novos sentidos possam ser ordenados (BAREMBLITT, 2002). Sendo assim, o
protagonismo é do coletivo trabalhado e a intervenção é necessariamente atravessada pela
incorporação de uma crítica das posições hierarquizadas historicamente. Esta é a aposta
para que seja possível inaugurar ações que estimulam e promovam os processos de

10
Sobre isso ver Patto (1984).

55
autogestão e autoanálise. Tal modo de compreensão das relações que engendram a
intervenção no coletivo de trabalho está totalmente atravessada pelos esforços de luta e
militância em que se faz presente o entendimento da prática do analista como sendo
político-institucional (SANTOS, 2002). Desta maneira, a militância se torna um dos
principais dispositivos desta corrente, pois trata-se de questionar a própria prática como
prática social que problematiza uma ordem estabelecida (SANTOS, 2002). Aqui, para
nós, atualiza-se grande parte das lutas empenhadas sob os efeitos dos processos vividos
em Maio de 68, na formação do grupo Plataforma, do grupo Documento, nas
reivindicações sobre as estruturas institucionais das associações psicanalíticas, assim
como nas ofertas de formação em psicanálise e, ainda, nas opressões e ameaças sofridas
nos períodos de ditadura na América Latina.
A compreensão da perspectiva proposta pelo Movimento Institucionalista nos
remete a um caminho – inspirado na autogestão e na autoanálise – traçado em ato que,
ziguezagueando, faz política, produz mudança, provoca reflexão e, incluindo todos no
jogo do caminhar, despe-se da dominação pelo saber especializado e prioriza rupturas que
potencializam a vida (LANGER, 1973).
Veremos a seguir como René Lourau e Georges Lapassade, formalizam as ideias
acerca da influência das lógicas institucionais e a objetificação delas em nossas vidas.
Com as formulações destes autores, pretendemos iluminar a presença de verdades
cristalizadas e naturalizações que podem ser reproduzidas cotidianamente em nossas
ações interventivas como psicólogos, se ignoradas como existentes. Seguimos, então,
para a apresentação da Análise Institucional como perspectiva que oferece instrumentos
importantes para colocar em questão as instituições que se concretizam nas relações que
estabelecemos com o mundo.

4.3 “A política é a vida cotidiana!”: considerações acerca da Análise Institucional

“Quando surge uma crise na família ou no grupo em que


você vive, no prédio, bairro ou cidade onde mora, no local

56
em que você trabalha ou ao qual vai se divertir ou fazer
esporte, onde pratica atividades religiosas ou políticas, no
estabelecimento em que é professor ou aluno, na
associação da qual é membro etc., pode-se dizer que estão
reunidas as condições para uma análise institucional.”

(René Lourau).

A Análise Institucional é uma das vertentes que compõe o Movimento


Institucionalista, e tem por princípio colocar em questão os efeitos e produções referentes
à lógica das instituições. Como formalização, conta dois autores fundamentais, René
Lourau e Georges Lapassade, ambos embalados em um campo onde a prática fomenta a
criação conceitual.
Por ser uma teoria em que a prática precede a formalização teórica, a Análise
Institucional tem como característica a implicação de uma vertente operacional, a qual
prioriza a ligação dos conceitos à prática, em detrimento de formulações teóricas
rigorosas. Uma das razões que traz tal implicação é a relevância que se dá aos
acontecimentos concretos e ao cotidiano. Além do que, o surgimento da Análise
Institucional ocorre concomitantemente a eventos políticos na França (ROSSI; PASSOS,
2014). Há um consenso dos autores institucionalistas sobre o surgimento da Análise
Institucional no início da década de 1960 e, além disso, da influência exercida pelas ideias
de René Lourau na produção de reflexões e análises em Maio de 68.
A fim de esclarecer o lugar que a prática política ocupa na Análise Institucional,
apresentaremos alguns cruzamentos do percurso de Lourau e Lapassade que nos parecem
decisivos na elaboração desta teoria. Isto porque uma das ideias fundamentais é a
concepção desenvolvida sobre o campo de trabalho em relação constante com as
vivências estabelecidas no cotidiano da vida.
Lourau ingressa na Universidade Paris X, em Nanterre, em 1966, como assistente
de Henri Lefebvre no departamento de Sociologia, e ali vive Maio de 68. Segundo Remi
Hess (2004), é neste departamento que emergem as reivindicações do movimento
estudantil que resultaram neste marco histórico, movimento no qual se destaca Daniel
Cohn-Bendit11, personagem importante e também aluno de Lourau. Tendo já estabelecido

11
O recém-inaugurado campus de Nanterre representava tudo quanto os estudantes combatiam no ensino
superior francês, tendo sido construído sem levar em consideração a vida social dos estudantes. Cohn-
Bendit, acompanhado de um grupo de estudantes, intervém na cerimônia oficial de inauguração da piscina.

57
relações com Georges Lapassade em 1963, Lourau defende sua tese, A Análise
Institucional, um ano depois de Maio de 68 e, a partir de então, intensifica seus estudos e
sua prática cotidiana como professor universitário pautada na dimensão institucional das
relações humanas.
Muitos autores que se dedicam a escrever sobre Lourau atêm-se ao seu modo de
se colocar nos territórios por onde passou. As autoras brasileiras Sonia Altoé (2007),
Regina Benevides de Barros (2004) e Solange L’abbate (2004), por exemplo, sublinham
em seus textos, com bastante frequência, os afetos provocados pela presença de Lourau
nos eventos de que participou no Brasil, e na proximidade que puderam estabelecer com
o autor. Referem-se à sua grande dedicação na relação com os alunos, sua capacidade de
agregar várias pessoas de diferentes níveis universitários. Destacam, além disso, a sua
postura altamente interventiva em reconhecer e denunciar dinâmicas instituídas que
propagavam a naturalização das relações, como por exemplo, a hierarquização dos
saberes12.
Georges Lapassade, por sua vez, no final da década de 1950 e começo de 1960,
realizou trabalhos com grupos, tendo a forte influência teórica da psicossociologia e da
psicanálise (GUIRADO, 1986). Estas experiências na perspectiva de L’abbate (2013),
foram disparadoras para o surgimento da Análise Institucional. A autora cita, em especial,
um trabalho realizado por Lapassade como animador de um grupo que objetivava a
formação de estudantes para o sindicato estudantil (Unef) da França. Tal intervenção
propunha um trabalho de reflexão do grupo sobre si mesmo. Fato que motivou Lapassade
a estimular o surgimento de dinâmicas referentes às leis que regem tanto o indivíduo
quanto a sociedade, e que estão presentes na relação grupal. Esta motivação tinha origem
na ideia de que há efeitos que extrapolam a relação do grupo em si e revelam o
naturalizado nas relações humanas.
Uma das obras mais citadas de Lapassade é Grupos, Organizações e Instituições,
publicada na França, em 1966. Ali, o autor desenvolve uma discussão sobre elementos

Era o mês de março de 1968. Reflexo da centralização e verticalização da estrutura de ensino, o grupo foi
convocado a comparecer a Sorbonne em 3 de maio de 1968 para sofrer uma ação disciplinar. Essa audiência
marca o início dos eventos que comporão Maio de 68, em que Cohn-Bandit, na época com 22 anos, emergirá
como um dos líderes informais.
12
Falamos aqui da referência que Barros (2004) faz à participação de Lourau no II Simpósio Internacional
de Psicanálise, Grupos e Instituições, organizado pelo instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e
Instituições (Ibrapsi), em outubro de 1982. Sua fala, na mesa-redonda “Panorama atual do Movimento
institucionalista”, foi marcada pela análise que fez do modelo que operava na proposta das apresentações,
um dispositivo que favorecia a separação dos que falavam daqueles que assistiam. Sobre isso, ver
Baremblitt (1984).

58
constitutivos dos grupos articulados com o contexto histórico desde o século XIX,
enfatizando as organizações e a burocracia. Nesta discussão, Lapassade investe na ideia
de que nos grupos apresenta-se necessariamente uma dimensão que revela os
funcionamentos institucionais. Esta ideia rebate uma certa forma de ver e interpretar a
formação grupal a partir de um olhar que se limita em considerar a dinâmica interna do
grupo, excluindo a sua relação com o contexto social. O autor recorre, então, ao conceito
de instituição e a se aproxima da Psicoterapia Institucional13 – uma corrente que enfatiza
a necessidade de levar em conta, na leitura grupal, os efeitos institucionais no campo da
psiquiatria. A fim de aprofundar-se em tal concepção, Lapassade passa a desenvolver um
esquema interventivo juntamente com Lourau, a Análise Institucional (BARROS, 2009).
A partir da afirmação de Lapassade de que a abordagem grupal “evoca sempre e
necessariamente o problema das instituições” (LAPASSADE, 1983, p. 62), conectamo-
nos com o principal elemento que inaugura a própria Análise Institucional, que é pautada
inicialmente em uma contraposição aos métodos e técnicas da psicossociologia. Nas
palavras de Lourau, “a Análise Institucional nasceu de uma crítica aos métodos de grupo
centrados no grupo” (HESS, 1988 apud BARROS, 2004, p. 69), bem como aos
especialismos e às formas de naturalização das instituições.
A ideia de que os métodos dos trabalhos grupais são centrados no próprio grupo
serviu de estopim para a crítica de Lourau e Lapassade, e para a criação de uma
perspectiva interventiva que inserisse a sobredeterminação dos pertencimentos políticos
na vivência grupal (HESS, 2008). A crítica fundante que faz a Análise Institucional é
parte de um processo que compreende o percurso desses autores que, desde suas práticas,
investem na criação de diferentes formas de provocar reflexão e transformação social.
Lapassade dedicava-se à busca em redimensionar as relações estabelecidas entre o
educador e o educando, a partir da crítica ao autoritarismo pedagógico; e é ele o
responsável por lançar a maior parte dos conceitos que permitiram a formalização da
Análise Institucional, a saber: autogestão, demanda, encomenda e analisador. Entretanto,

13
A Psicoterapia Institucional é bastante conhecida pelo trabalho realizado no Hospital psiquiátrico de Saint
Alban, localizado no sul da França. Tem como principais autores F. Tosquelles e J. Oury, ambos psiquiatras
que trabalharam no hospital que recebia refugiados da Segunda Guerra e pacientes psiquiátricos. A
Psicoterapia Institucional era justamente a possibilidade de modificar as relações entre as esquipes de
técnicos e os pacientes, buscando transformar essas relações por um viés que as promovesse como um
instrumento terapêutico, colocando-as, portanto, em questão. O momento é marcado no reconhecimento de
um funcionamento carcerário do hospital e da necessidade de revertê-lo como tal. As ideias de Tosquelles
e Oury são fundamentalmente baseadas na criação de novas formas de sociabilidade, para que o máximo
de efeitos terapêuticos pudesse ser produzido. Nesta corrente, o grupo é um dispositivo fundamental, já que
estrategicamente poderia ser um modo de superar as formas tradicionais de tratamento médico (MOURA,
1995).

59
segundo Hess (2004), Lourau é considerado o fundador da Análise Institucional por ter
formalizado as bases teóricas das ideias proclamadas por Lapassade em 1962.
Destacamos Lapassade, no estudo de teorias e experiências grupais, na tentativa
de potencializar um dispositivo que, para ele, já expressava certo esgotamento como
estratégia de produção de pensamento e transformação. Durante seu trabalho com uma
abordagem grupalista, ele sofreu fortes influências dos métodos do psicodrama, da
dinâmica de grupos, da pesquisa-ação e da não diretividade – teorias que compõem a
psicossociologia. Portanto, base para reflexões e críticas que posteriormente empenha na
Análise Institucional.
Sobre as influências e ideias que a compreensão psicossociológica efetiva no
conceito de grupo, destacamos o livro de Regina Benevides de Barros (2013): Grupo: A
afirmação de um simulacro. Neste estudo, a autora depura a cristalização do conceito de
grupo a partir de um caminho traçado que torna possível perceber uma certa forma de
conceber o grupo como algo estático, determinado e naturalizado. Parece-nos que o
esforço da autora é movimentar o que se paralisou por efeito de uma certa compreensão
teórica sobre as formações grupais. Para entender um pouco mais a crítica que inaugura
a Análise Institucional, aproveitaremos, resumidamente, algumas formulações de Barros
(2013) sobre as ideias principais da psicossociologia.
A psicossociologia francesa recebe influências das teorias norte-americanas sobre
grupos e impulsiona, no cenário francês, a Psicologia Social através da perspectiva grupal.
O grupo é destacado segundo a compreensão de que nele é possível estabelecer boas
relações entre os sujeitos, como um instrumento de facilitação das relações interpessoais.
Está presente a ideia de que o grupo é resultado de elementos relacionados às escolhas
pessoais, a partir de critérios de simpatia, antipatia e indiferença; compreensão que
culmina no entendimento do que seria um grupo adequado, aquele que resulta de boas
escolhas de seus membros. Essas ideias atravessam os animadores de grupo, inclusive
Lapassade, que nesse cenário datado do final da década de 1950, marca sua participação
como um dos autores que trabalham na perspectiva grupal.
O encontro das práticas influenciadas pelo psicodrama, a dinâmica de grupo e o
método rogeriano configura propósitos particulares no território francês.

Tratava-se, em muitos casos, de adaptação/aclimatação à cultura do


outro lado do Atlântico. Percebe-se, por exemplo, momentos de mera
aplicação das técnicas de grupo às situações, especialmente de
formação. Em outros, desenha-se um caráter clínico, marcado pela

60
influência psicanalítica entre muitos dos pesquisadores. Configurava-
se, portanto, uma oscilação e, em outros casos, mistura de técnicas de
grupo de base psicossociológica com aportes psicanalíticos (BARROS,
2013, p. 247).

Neste sentido, o grupo é entendido a partir do prisma teórico-técnico perdendo-se


de vista os elementos ocultos nas relações entre seus membros e mais ainda, a relação do
próprio grupo com o contexto em que se insere. Para Lourau (2004), esta é uma
característica daquilo que denomina como grupismo, isto é, o entendimento do grupo
como uma entidade, uma união recortada e muito bem observada de pessoas que, acima
de tudo, responde às necessidades teóricas que pretendem esclarecê-lo. Inspirado na
afirmação de Armando Bauleo de que “o grupo pode [...] recolocar o problema das
instituições, seja no exterior ou no próprio interior do grupo” (BAULEO apud LOURAU,
2004, p. 177), Lourau destaca o quanto tal possibilidade não é evidente e facilmente
captável nos trabalhos grupais.
Desta forma, a crítica realizada por Lourau e Lapassade põe em questão o
instituído da “dinâmica de grupo”, na medida em que compreendem, para além das
possibilidades técnicas, o campo grupal. Sobre isso, Barros (2013) afirma que duas
grandes tendências se configuram: o grupo como técnica e o grupo como dispositivo,
sendo este último uma forma de subverter aquilo que se instituía como a dita fronteira do
grupo.
Temos, então, neste ponto do processo, ao longo das décadas de 1950, 60 e 70, os
cruzamentos necessários para a formalização da Análise Institucional: o encontro de
Lourau e Lapassade, dedicando-se a ampliar a noção do termo instituição, os anúncios e
efeitos de ruptura de Maio de 68, e a crítica ao encaminhamento dos trabalhos grupais
baseados na psicossociologia.
Entendemos que a formulação crítica de Lourau e Lapassade incide
principalmente na ideia de romper com um saber sobre algo de maneira totalitária – neste
caso, o grupo –, não possibilitando espaço para qualquer outro tipo de entendimento. E é
justamente nesse sentido que a crítica nos interessa, pois Lapassade, dentre outros autores,
trabalhava sustentado na teoria grupal, incluindo a crítica e a leitura das lógicas
institucionais que acometiam a prática desenvolvida. Tal condição nos ajuda a pensar o
tema desta dissertação, uma vez que refletir sobre os elementos que estão em jogo e as
possibilidades de exercer uma prática crítica na escola é levar em conta os

61
atravessamentos institucionais e a tendência de um único saber predominar, silenciando
ou anulando os tantos outros que existem.
Desta maneira, a Análise Institucional nos ampara no garimpo das experiências
cotidianas, brechas e possíveis rupturas naquilo que vai sendo instituído como total e
único. É esta direção que a proposta da Análise Instituição aponta: a análise das próprias
instituições, a percepção de habitar um campo que se constitui em disputas incessantes
que não podem ser ignoradas.
Partiremos, agora, para as principais ideias desta perspectiva, naquilo que mais
nos interessa: a posição política que esta corrente convoca, na medida em que traz para o
campo de análise o próprio analista e formaliza o constante questionamento sobre as
posições totalitárias e fechadas que se manifestam nas relações sociais (MARAZINA,
2015). Enveredemos para onde aponta essa perspectiva que, resumidamente, põe, nas
palavras de Hess (2004, p. 37), “o sujeito [...] no coração do jogo social e político”.

4.4 “Façamos a análise das nossas próprias instituições”

A socioanálise é o nome designado para o método de intervenção baseado na


Análise Institucional que consiste em analisar as relações que as múltiplas partes,
presentes no jogo social, mantêm com o sistema manifesto e oculto das instituições
(LOURAU apud HESS, 2004). A intervenção socioanalítica é entendida pelos
institucionalistas a partir de uma perspectiva de ação política nos coletivos, grupos e
organizações; e, para Lourau, trata-se de descobrir a ação e os efeitos do instituído em
toda e qualquer organização (RODRIGUES, 1992).
Lourau (2004) considera como definição de política, justamente, as relações
estabelecidas na vida cotidiana, aquilo que há de mais corriqueiro nas relações sociais, e
isso não nos parece pouco. Entendemos que esta concepção de política trata de levar à
cabo a participação do sujeito no jogo social, comprometendo-o em todos os espaços por
onde circula. Além disso, o autor traz à baila a necessidade de envolver-se radicalmente
com os efeitos políticos que são produzidos a partir do momento que, como analista,
propõe-se uma intervenção socioanalítica.
Lourau (2004, p. 238) afirma que “o sistema de referência da Análise Institucional
é extremamente determinado pela presença física dos analistas enquanto atores sociais
em uma situação social, e presença material de todo o contexto institucional”. Nesse
sentido, a socioanálise insere o analista no jogo interventivo de forma bastante particular,

62
pois, concomitantemente, aponta as lógicas institucionais como companheiras, também,
do analista. É como uma dupla inserção: o analista, a partir do momento em que intervém
no campo, torna-se parte dele ativamente, isto porque, ao mesmo tempo, carrega
presenças institucionais que agem na relação que ele estabelece com o campo de
intervenção.
Nesse sentido o analista não está imune às lógicas e atravessamentos institucionais
que interpelam o campo, já que, como ator social, é engendrado pelas instituições. É com
base nesta proposta para a socioanálise que Lourau e Lapassade rompem com a ideia
cientificista de neutralidade do coordenador de grupo, típicas das técnicas
psicossociológicas, e incluem o conceito de implicação como uma das ferramentas
cruciais para a realização de uma intervenção socioanalítica.
O conceito de implicação é o que mais interessa focar por ora, pois a nossa
proposta não pretende fazer uma análise institucional do campo desta pesquisa, a saber,
um certo estabelecimento escolar. Pretendemos pôr em análise as forças que estão em
jogo em manifestações que ocorrem em uma escola onde há um psicólogo desenvolvendo
sua prática. Desta maneira, seguiremos apresentando a intervenção socioanalítica a partir
da prática política como eixo fundamental, fazendo um recorte em torno dos conceitos de
implicação e analisador.
A principal sentença que nos parece conduzir à compreensão do conceito de
implicação é a afirmação “façamos a análise das nossas próprias instituições”
Apresentada por Hess (2008, p. 250) como a tônica da orientação de Lapassade na Analise
Institucional. Essa análise interna radicaliza a ideia de que o analista ou pesquisador –
como muitas vezes aparece nos textos de Lourau – é parte do jogo e, portanto, sofre
influências dos processos de naturalização e cristalização dos fenômenos sociais, ou seja,
das forças instituídas. A ideia de implicação proposta por Lourau consiste em admitir que
o analista é objetivado por aquilo mesmo que pretende objetivar – é a relação que o
pesquisador mantém com seu objeto, o prático com o seu campo e o homem com a sua
vida.
Para Remi Hess (2004), a originalidade do método socioanalítico reside no fato
de que o analista não se situa no exterior dos grupos, coletividades ou organizações que
demandam por uma intervenção, e na ideia de que, ao propor uma intervenção, implica-
se na rede institucional que lhe dá a palavra, implicando-se, portanto, com o campo em
que trabalha e com as instituições que o atravessam. O termo implicação, na Análise
Institucional, refere a ideia de que o analista, técnico, ou especialista está inscrito na

63
divisão do trabalho, sofrendo atravessamentos das forças instituídas, as quais facilitam
um certo distanciamento do campo e impelem respostas e produções acerca da
racionalidade já estabelecida (HESS, 2004).
No artigo “Uma apresentação da Análise Institucional”, Lourau (2004) afirma que
as formulações sobre o conceito de implicação devem muito às pesquisas de tendência
psicanalítica, diz que a implicação corresponde à “análise do saber conscientemente
dissimulado e do não-saber inconsciente próprio de nossas relações com a instituição”
(LOURAU, 2004, p. 133). E, nesse sentido, é importante destacar que não se diz de uma
problemática individual, mas sim grupal e institucional, sendo uma forma que, no limite,
assegura que as forças instituídas que passam pelo analista entrem na análise das
organizações14 (ROSSI; PASSOS, 2014).
A implicação como ferramenta socioanalítica obriga, de certa forma, o analista a
se situar em relação a todas as determinações da instituição, principalmente no que diz
respeito às forças instituídas que dificultam a promoção de mudança ou reconhecimento
coletivo. Nas palavras de Rodrigues (1992), o conceito de implicação trata

[...] de vínculos afetivos, históricos e profissionais; [...] não apenas dos


vínculos com os indivíduos, grupos ou organizações que “consultam”,
mas com todo o sistema institucional (RODRIGUES, 1992, p. 49).

Esta citação nos ajuda a compreender que o conceito de implicação extrapola uma
ideia que se apresenta comumente no meio psi e que iguala a palavra ao sentido de
comprometimento ou envolvimento com algo, não considerando o atravessamento do
instituído como a possibilidade de uma paixão moral e normatizadora. A implicação no
sentido de comprometimento do analista, por exemplo, sutilmente deixa de lado a análise
de certa tendência em conservar as naturalizações presentes nas relações que se
estabelecem no campo de trabalho (RODRIGUES; LEITÃO; BARROS, 1992). Isto
porque sabemos que as próprias forças instituídas podem integrar o analista às formas já
existentes. Este conceito da Análise Institucional trata justamente de reconhecer no
analista o instituído e forçar a análise deste para que haja possibilidade de inauguração
do instituinte como força questionadora de formas estabelecidas e naturalizadas.

14
No artigo “Análise Institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil”, Rossi
e Passos (2014) aprofundam a relação estabelecida entre o conceito de implicação e os conceitos
psicanalíticos de transferência e contratransferência, apropriados pela Psicoterapia Institucional e
Pedagogia Institucional, a partir de uma vocação operacional, em meados da década de 1960. Neste sentido,
transferência e contratransferência institucional na socioanálise, significam um campo de intervenção
institucional em que todos estão implicados: os atores, as instituições, o grupo e o interventor.

64
O conceito de implicação é apresentado como fundamental na Análise
Institucional para L’abatte (2013), pois é o caminho em que se analisam as relações que
estabelecemos com o objeto de estudo ou intervenção, com a referência epistemológica,
a remuneração, a própria carreira, ou seja, à instituição à qual pertencemos. Além disso,
a autora inclui no jogo de análise as dimensões afetivas de nossas vivências pessoais e
familiares. L’abbate (2013 cita Lourau ao esclarecer que a implicação é a “chave dos
campos” ou da “liberdade”, pois considera que tal exercício permite que o profissional
possa “[...] atuar, percebendo que os aspectos de caráter afetivo-libidinal, profissional e
ideológico são dimensões inerentes à sua prática, e à sua vida [...]” (L’ABBATE, 2013,
p. 408). Dessa maneira, na intervenção socioanalítica, o analista que empreende a análise
das suas implicações poderá realizar uma atuação que compreende uma certa potência e
legitimidade do seu próprio trabalho, abrir caminhos interventivos e formular críticas
sobre as manifestações que se apresentam nas relações sociais (L’ABATTE, 2013).
A intervenção socioanalítica, portanto, não é olhar “de fora” um dado objeto, mas
ajudar a construí-lo “de dentro”, colocando-se em campo a partir da análise das suas
implicações. O analista é um ator social ao mesmo tempo na intervenção com o campo,
e não pode furtar-se de olhar para aquilo que corresponde à sua parte (ROSSI; PASSOS,
2014). A análise das implicações é uma das ferramentas que radicalmente opera no
sentido de desnaturalizar a prática do analista na intervenção em uma organização, pois,
logo de largada, presume as forças instituídas que vêm como companheiras do interventor
na análise do campo, e coloca-as em jogo, também, como material de trabalho.
Temos, então, o conceito de implicação como uma das ferramentas que caracteriza
a intervenção socioanalítica, principalmente no que diz respeito à inserção e posição
ocupada pelo analista. Mas há outras ferramentas formalizadas para a intervenção baseada
na Análise Institucional, são elas: demanda, analisador e transversalidade.
A demanda, na intervenção socioanalítica, é entendida remetendo sempre à ideia
principal do institucionalismo de que nada é natural, tudo é sócio-historicamente
produzido. Baremblitt (2002) esclarece que decifrar e esmiuçar o pedido que uma
organização faz por uma intervenção é fundamental para acessar a presença de diversos
aspectos, sejam eles inconscientes, manifestos, ditos, não ditos etc. A este processo se dá
o nome de análise da demanda que, por ser concebida sempre em situação histórica,
implica a oferta de um serviço, razão pela qual não é espontânea, e lançará luz sobre a
conflitiva que engendra as questões da organização que solicita uma intervenção. Já a
oferta, refere a uma mensagem passada pelo interventor de que “eu tenho o que lhe falta

65
e, além disso, você não entende, não sabe em que consiste” (BAREMBLITT, 2002, p.
62). Entendemos que, justamente por este motivo, a análise da demanda é tão importante
quanto a análise das implicações.
É notável que tanto a implicação quanto a demanda sejam ferramentas que
compreendem um exercício de análise para alcançar um certo não dito institucional que,
quando acessado, ajudará na emergência de novas forças no jogo interventivo da
organização. Entretanto, ao nos defrontarmos com os textos de Lapassade, e
principalmente de Lourau, sempre estamos diante das forças que emergem no cotidiano,
acontecimentos, eventos que nos levam a refletir. É uma potência de escrita, que
identificamos nestes autores, de nos fazer aproximar da concretude com que as
instituições se manifestam em nossas vidas. Daí a importância do conceito de analisador,
uma das ferramentas caras da Análise Institucional.
Segundo Lourau (2004, 2014), o analisador é aquilo que permite revelar a
estrutura de uma organização, situação que a força, provoca-a a falar. Os analisadores
correspondem à manifestação do que é reprimido nas relações sociais; Lourau (2004)
compara com os conteúdos recalcados descritos por Freud – sonhos, atos falhos, chistes
etc. –, seriam, em suas palavras, o “retorno do reprimido social” (LOURAU, 2004, p. 69),
e acrescenta a ideia de que o objetivo do analisador é fazer emergir o material analisável.
Nesse sentido, o analisador se mostra, irrompe, escancara uma estrutura que poderia estar
oculta, mas que, no momento em que surge, torna-se analisável por si só.
O analisador opera duas funções. A primeira é de revelador, que consiste em
dissolver o saber instituído através do fenômeno no qual se manifesta; a segunda é de
catalisador, pois modifica as relações de força constitutivas das representações instituídas
(LOURAU, 2004). Afirmamos, então, que o analisador tem uma força que pode pôr em
cheque a racionalidade instituída de uma organização ou sociedade. Lourau (2004) chega
ao ponto de dizer que o objetivo da Análise Institucional, em situação de intervenção, é
validar o conceito de analisador. Entendemos que isso significa que uma situação que
desacomoda uma forma adequada pode forçar a reflexão e, consequentemente, levar à
produção de novos sentidos para as experiências.
Nesse sentido, L’abbate (2004) reafirma que o efeito do analisador é o de revelar
algo que estava escondido, desacomodando o organizado e criando novos sentidos para o
já conhecido, valendo tanto para fenômenos sociais mais amplos quanto para grupos mais
restritos no interior de uma organização, como sublinha a autora. Ele pode, portanto, pôr

66
em análise o que era uno, decompor o que se apresenta como totalidade, revelando a
estrutura institucional através do questionamento do instituído (BARROS, 2004).
Podemos dizer que o analisador é aquilo que força a instituição a falar, tendo como
principal função a inauguração de uma análise, razão pela qual o analisador é o que faz o
trabalho da análise (BARROS, 2004; L’ABBATE, 2004; LOURAU, 2004). Torna-se, por
conseguinte, um conceito que promove uma inversão epistemológica, já que destrona o
primado do analista, pondo a própria análise também como analisador (LAPASSADE
apud L’ABBATE, 2004). Nas palavras de Rodrigues, Leitão e Barros (1992, p. 11):

O caminho para o analisador é um caminho analisador: decompõe o


discurso científico, introduz nele o inesperado [...] descentra a análise
[...] em relação aos agentes instituídos e reconhecidos como os únicos
autorizados a controlá-la em manejá-la.

O conceito de analisador, assim como o de implicação, é fundamental para


compreender a posição que a Análise Institucional coloca propositalmente o analista. É
uma busca incessante em criar rupturas, através da prática interventiva, nas formas
estabelecidas historicamente. A socioanálise não conta com uma racionalidade
estabelecida que automaticamente destaca o interventor como aquele que sabe e que, por
isso, pode ocupar um lugar de domínio sobre um coletivo; pelo contrário, oferece
ferramentas que exigem um exercício de inserção no campo, de autoanálise e de atenção
quanto à reprodução de formas instituídas presentes nas instituições das quais fazemos
parte. Assim, os analisadores “não são coisas de perito, e sim coisas de sujeitos ou grupos
envolvidos nos processos sociais” (RODRIGUES, 1992, p. 51, grifo da autora).
Entendemos que a grande contribuição desta corrente é forçar a tomada de
posição, o reconhecimento das implicações e dos efeitos gerados pelo fazer. É como uma
recusa em tornar a vida apreensível pelo saber científico, tanto a vida que se apresenta no
campo de intervenção quanto a a do próprio analista. É nesse sentido que a Análise
Institucional e os conceitos que sustentam a socioanálise nos interessam, pois parece
bastante pertinente pensar e pôr em análise como o percurso traçado na relação entre a
Psicologia e a escola nos atravessa desde dentro deste território, na função de psicólogos.
Assim, a Análise Institucional anima travar esforços a fim de vislumbrar as
possibilidades de desenvolver um fazer crítico, tendo como perspectiva a luta contra as
cristalizações instituídas e as padronizações que, ao longo do tempo, se tornaram verdades
irrefutáveis sobre os indivíduos. Para nós, interessa também aproveitar a problematização

67
e o tensionamento constante que os institucionalistas sustentam sobre os saberes
científicos. Saberes estes que pretendem antecipar qualquer possibilidade de dúvida ou
abertura para as situações que cotidianamente acontecem em nossas vidas e no contexto
escolar.
Desta maneira, entendemos que pensar as lógicas institucionais que atravessam
nosso fazer como psicólogos nos tira de um certo lugar, o de especialista – o de saber - e
nos convoca à tomada de uma posição, que implica o desdobramento dos efeitos que
produzimos no campo, nos indivíduos, e que, portanto, é política.

68
5 PSICOLOGIA E ESCOLA: ALGUMAS IDEIAS

“A verdade, espécie de erro que tem a seu favor


o fato de não poder ser refutada, sem dúvida
porque o longo cozimento da história a tornou
inalterável.”

(Michel Foucault)

5.1 “O rapto pútrido, o sequestro”

Muitas foram as produções que deflagraram a contribuição das práticas da saúde


para aquilo que entendemos hoje como os insucessos e fracassos escolares. Sabemos que,
historicamente, as técnicas, ferramentas e aparato da ciência psicológica engendraram a
montagem de um cenário no qual se desenrolam e mantêm as cenas do território escolar,
até a atualidade.
A participação da Psicologia influenciou, e influencia até hoje, as concepções
acerca das questões que rondam os professores, os alunos e suas famílias, no que diz
respeito aos conflitos que emergem na escola. Autoras como Patto (1994), Collares
(1997), Machado (1996) e Moysés (1997), entre outros, nos ajudam a aprofundar e
acessar como a Psicologia participou da montagem deste cenário, e formalizam uma
crítica sobre tal produção. Desta forma, como escolha proposital, partiremos delas, ou
melhor, partiremos da crítica que pôde ser elaborada sobre esse encontro da Psicologia
como campo científico com a produção de uma forma de entender a escola.
A escolha de partir da crítica é feita com a intenção de argumentar e esclarecer o
sentido de duas sentenças que causam grande impacto: “Nossa formação deve ser
colocada na cadeira dos réus” (MACHADO, 1996, p. 1) e “[...] o ato mesmo de receber
a palavra do mestre – a palavra do outro – é um testemunho de desigualdade ou de
igualdade” (RANCIÈRE, 2002, p. 11). As duas sentenças, mesmo tendo como ponto de
partida discussões distintas, encaminham-nos para uma direção em que se destaca a
dimensão política presente nos encontros nos quais a educação se dá. Interessa-nos, aqui,
aproximar as duas sentenças e conectá-las com um certo modo de fazer que diz respeito

69
as práticas psi. Algo, portanto, que se refere aos efeitos produzidos por um certo modo de
fazer, de agir no campo escolar.
A primeira sentença, inicialmente, convoca-nos a refletir sobre as produções
relacionadas à formação do profissional da Psicologia em termos teóricos e práticos. Nós,
psicólogos, somos constituídos a partir de uma base que privilegia formas específicas de
olhar um sujeito, um fenômeno, uma situação e, claramente, isso produz efeitos que se
relacionam com tais concepções. É neste ponto que esta sentença nos chama atenção, já
que profere a íntima relação entre a formação de um saber e o comprometimento do fazer
psi. Entendemos, então, que as concepções que formam o psicólogo o localizam e
implicam nas produções realizadas neste campo de saber.
A segunda sentença traz a indicação de um perigo que se estabelece e se assume
ao oferecer algo ao outro. Rancière (2002) refere-se ao ato, destacando que o instruir
sustentado em uma certa posição pode privilegiar a igualdade ou a desigualdade. Sendo
que testemunhar o ato da instrução revela a posição tomada inicialmente, isto é, deflagra
a relação entre o que se recebe e a posição de onde se oferece.
Compreender que o aluno de uma escola é uma expressão de determinantes
históricos que ditam uma certa concepção de indivíduo é um ponto de largada que nos
põe ao lado de uma problematização sobre a Psicologia Escolar. Isto porque a crítica
incide justamente em pensar o insucesso dos alunos a partir de elementos que tiram do
indivíduo a centralidade das causas dos problemas. Há aí uma recusa em ignorar a relação
entre o fracasso escolar e os elementos histórico-sociais que constituem as práticas
educativas e, claro, as psicológicas (CARVALHO, 2011).
Dificuldades de aprendizagem, comportamentos inadequados de alunos, função
do psicólogo escolar, medicalização e psicologização, são alguns exemplos de eixos
centrais em torno dos quais se elaboram as reflexões críticas acerca desta temática. As
considerações desses temas buscam justamente problematizar a produção dos efeitos
engendrados na concepção de criança como sendo incapaz de aprender o que a escola
ensina.
O objetivo principal da crítica operada na Psicologia Escolar é, por um lado,
descentralizar a culpa do indivíduo, trazendo à baila os elementos históricos que
produzem a ideia de que não aprender está diretamente relacionado com problemas
individuais. E, por outro, descontruir a crença subjacente ao fracasso, que é a do sucesso
como sendo possível de ser atingido a partir das capacidades, também individuais, do
aluno (MACHADO, 1996). Ambas ideias, tanto a do fracasso quanto a do sucesso, foram,

70
ao longo da história, ganhando o estatuto de verdades irrefutáveis, norteando, por
exemplo, as práticas psicológicas que se dedicavam a compreender os problemas de
aprendizagem a partir dos testes psicométricos ou dos recursos psíquicos dos sujeitos.
Assim como afirmar um problema, crer na capacidade sustenta hegemonicamente
o terreno onde as práticas educativas se edificaram. A ideia subjacente àquilo que estamos
tratando como verdades sobre as manifestações escolares está pautada na concepção de
uma sociedade baseada no princípio de igualdade de oportunidades aos indivíduos, e que,
portanto, delega a eles galgar um espaço de sucesso no campo social.
O entendimento de que a sociedade está baseada na igualdade é reflexo de um
ideal presente no sonho de uma sociedade fraterna, igualitária e livre que, no século XIX,
começa a ser delineada. Neste período, a ascensão social estava relacionada com a
possibilidade de conquista de uma posição na classe média segundo a capacidade
individual de cada cidadão e o seu grau de instrução (PATTO, 1984). O acesso à classe
média estaria supostamente livre para todos do proletariado.
A ideia de talentos e capacidades individuais ganha relevância, já que a
desigualdade social é convertida em responsabilidade de cada um. Patto (1984) destaca
que tais concepções tomam a proporção de uma teoria, a teoria do dom, em que mitos e
crenças focalizam nos indivíduos a mobilidade nas classes sociais. Aqui, a mobilidade
social implica uma certa forma de considerar os indivíduos, responsabilizando-os pelas
condições da sua própria vida, independente do cenário social, político e econômico onde
se encontram.
O lugar do ensino assume, então, neste período histórico, grande importância, pois
seria por meio dele, e da instrução, que os que não sabiam poderiam alcançar as posições
sociais dos que sabiam. É sobre este sentido e proporção da função social do ensino e da
instrução que Jacques Rancière (2002) destaca as ideias de Joseph Jacotot – pedagogo
francês do início do século XIX – como necessárias de serem resgatadas ainda nos dias
atuais. Introduz outro elemento – que não a diferença existente entre as classes sociais –
nas considerações sobre a igualdade e a desigualdade: o saber. Para discutir uma certa
posição que o mestre ocupa em relação no ato de instruir, o autor apoia-se em Jacotot que
se faz ouvir. Nas palavras de Rancière (2002, p. 9), trata-se

[...] de uma voz solitária que, em um momento vital da constituição dos


ideais, das práticas e das instituições que ainda governam nosso
presente, ergueu-se como uma dissonância inaudita – como uma dessas
dissonâncias a partir das quais não se pode mais construir qualquer

71
harmonia da instituição pedagógica e que, portanto, é preciso esquecer,
para poder continuar a edificar escolas, programas e pedagogias, mas
também, como uma dessas dissonâncias que, em certos momentos,
talvez seja preciso escutar ainda, para que o ato de ensinar jamais perca
inteiramente a consciência dos paradoxos que lhe fornecem sentido.

É a partir de uma formação social datada do início do século XIX que as ideias
sobre o ensino e a instrução dos ignorantes delineiam uma lógica e uma ordem que,
segundo Racière (2002), seguem persistindo. Trata-se, então, de um modelo que atribui
ao ensino a função de reduzir o máximo possível a distância que marca a desigualdade,
ou seja, a distância entre a ignorância e o saber, nesta posição que se ocupa ao instruir.
Dois sentidos se apresentam, o primeiro que destaca a desigualdade a partir da
diferença entre as classes sociais e o segundo, a partir da concepção do ensino e do ato de
instruir.
No primeiro sentido, os indivíduos são percebidos a partir de diferenças calcadas
em suas capacidades, alguns mais capazes, outros, menos. Diz Machado ao problematizar
o pensamento hegemônico sobre as capacidades individuais:

[...] os homens não são essencialmente iguais, são diferentes e essa


diferença deve ser respeitada, há aqueles “com mais” e aqueles “com
menos” capacidades. A ideologia da igualdade de oportunidades
perpassava essas concepções, pregando a igualdade entre os homens em
uma sociedade que se funda pela desigualdade (MACHADO, 1996, p.
19).

A tarefa de promover a igualdade social por meio do ensino não cessa de


reproduzir um funcionamento que se funda na desigualdade e que assola a instituição
pedagógica. Há uma inversão, portanto, do sentido de igualdade, pois se supõe uma
sociedade igual com indivíduos qualitativamente diferentes – creditando melhores
possibilidades aos que são entendidos como mais capazes. É nesse sentido que há uma
íntima relação entre o que se entende como capacidade ou incapacidade dos indivíduos e
a posição social que ocupam, pois a sociedade não é igualitária.
Já em um segundo sentido, Rancière (2002) adverte, ainda, que estabelecer a
igualdade como busca final a partir de um contexto desigual – que já supõe uma hierarquia
entre o saber e a ignorância – é uma tarefa impossível. Isso porque, para o autor, a
igualdade não pode ser um axioma colocado como posterior à desigualdade, pois sujeitos
que obedecem a uma ordem já compreendem que devem obedecê-la.

72
Há uma submissão implicada entre o ignorante e seu mestre que torna o ato de
instruir a “eternização da desigualdade” (RANCIÈRE, 2002, p. 11). A instrução pautada
nesta lógica só pode ser entendida como uma forma de violência e embrutecimento, pois
reduz os saberes a um: este que o ignorante não tem. Não obstante, de fato não existe
sujeito que não saiba infinitas coisas...
O que está em jogo, portanto, é algo colocado sobre um patamar padronizado que
indica uma igualdade que supostamente deve ser atingida pela supressão das
desigualdades; para Rancière (2002), essa desigualdade diz respeito à inteligência, é esta
que não pode ser colocada como desigual. Pois, para o autor, uma vez que a inteligência
é colocada como desigual, fortalece-se uma lógica na qual o saber é compreendido como
universal - ignorando o processo histórico-social que o fez surgir - engendrando uma
escola fundada à parte da sociedade e reconstituindo invariavelmente a desigualdade que
pretende eliminar.
A função da escola fica, então, pautada em um poder fantasmático (RANCIÈRE,
2002) de reduzir a desigualdade das inteligências, a fim de atingir a igualdade social.
Desse modo, as crianças que não conseguem atingir as expectativas do ensino escolar são
entendidas a partir de um retardo ou deficiência, pois as chamadas dificuldades são
associadas às suas capacidades individuais, ou à “falta” delas.
Ao entender as inteligências a partir da igualdade, é possível reconhecer os saberes
que circulam historicamente, e que são denominados por Foucault (2005) como “saberes
sujeitados”. Estes saberes são aqueles que foram escamoteados pelas ordenações
funcionais, ou seja, que ocupam uma certa posição hierárquica em relação à
cientificidade, o que é qualificado socialmente (FOUCAULT, 2005).
É na dimensão dos saberes sujeitados e da pesquisa genealógica que Foucault
(2005) defende a possibilidade de acessar as lutas, os enfrentamentos e os conteúdos
históricos. Permite, portanto, uma formulação crítica que faça aparecer silenciamentos
produzidos pelos discursos hegemônicos que se perpetuam como verdade ao longo da
história. Para Foucault (2005, p. 13),

Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham os saberes locais,


descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância
teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los
em nome de um conhecimento verdadeiro, em dos direitos de uma
ciência que seria possuída por alguns.

73
Considerar os saberes sujeitados, descritos por Foucault (2005), permite que seja
possível acessar campos de luta recobertos nos discursos totalizantes. São saberes
descontínuos, não legitimados e, também, uma memória local, que se contrapõem aos
funcionamentos instituídos da ordem social e do saber científico. A atividade genealógica
é fazer surgir tais saberes. Genealogia para o autor é, no limite, uma anticiência: “Trata-
se da insurreição dos saberes” (FOUCAULT, 2005, p. 14). É, portanto, aquilo que vai na
contracorrente da institucionalização do discurso científico.
Parece-nos um caminho bastante semelhante ao que Rancière (2002) procura
traçar sobre o ato de instruir proclamado por Jacotot, no sentido em que é preciso recusar
as grandes totalizações ou ao menos não começar por elas (FOUCAULT, 1995). Assim,
Rancière (2002) afirma que, embora haja um curso concebido como natural no
embrutecimento do ensino – aquele que considera a desigualdade das inteligências –, há,
no próprio ato de instrução, possibilidade de emancipação.
Mudar o curso natural do ensino, sua forma embrutecida, está justamente em
conceber a igualdade das inteligências e, por conseguinte, considerar os saberes infinitos
do ignorante e o não saber infinito do instruído. Muda-se o objetivo de alcançar a
igualdade através do ensino para aquele de uma verificação da igualdade das
inteligências. É neste ponto que Rancière (2002) destaca a questão política presente na
função social do ato de instruir: “saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma
desigualdade a ser reduzida, ou uma igualdade a ser verificada” (RANCIÈRE, 2002, p.
11). A questão é política, pois não se trata de uma certa forma metodológica da pedagogia,
mas, sim, de algo que revela o terreno onde as práticas do ensino e da instrução se
edificaram ao longo da história.
Desta maneira, o ato de instruir esquivando-se do embrutecimento implica
emancipar as inteligências, isto é, levar a cabo a tarefa de verificação de igualdade. Para
isso, é necessário compreender que a igualdade não é nem formal nem real, como ensinou
Jacotot. Nas palavras de Rancière, a igualdade

[...] não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem


na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de
supermercados. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e
intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos
que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verifica-la,
de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação
(RANCIÈRE, 2002, p. 14, grifo do autor).

74
O autor nos propõe uma reflexão que amplia a análise presente no ato de ensinar
ou instruir a partir de uma certa localização que empreende privilegiar a verificação da
igualdade. Essa temática exige que se debruce em um ponto anterior ao próprio ato, aquilo
que o sustenta. Portanto, uma posição que tem como privilégio a igualdade, que se assume
pelo risco, pela invenção, pela verificação e ainda, pelo contra curso da uniformização do
próprio ensino.
Verificar a igualdade das inteligências ou fazer surgir os saberes sujeitados estaria
na contramão daquilo que temos como prática hegemônica da Psicologia no território da
escola. Como ciência composta por técnicas, métodos e teorias, a Psicologia ganhou
espaço neste contexto a partir de um princípio que concebe a igualdade como uma forma
de ordem social e governamental. Tal princípio fortalece a tendência de avaliar uma
criança segundo uma suposta falta ou atraso. Desigualdade, portanto.
É neste sentido que as sentenças destacadas como disparadoras para a análise do
encontro da Psicologia com a escola nos forçam à reflexão sobre um aspecto específico
da relação entre a prática e a teoria: a posição que se ocupa e o que se produz a partir dela.
Isto porque estamos entendendo as duas discussões a partir de um fazer que se desenvolve
e implica a relação com outros sujeitos. Desta maneira, inevitavelmente, há indicação de
perigos, riscos que convocam um rigor em analisar os efeitos que produzimos no território
de intervenção.
Aproximamos as duas sentenças segundo um ponto comum, que se resume à
posição que engendra o fazer, o ato. Caminhamos, portanto, ao encontro de um desafio
que problematiza o fazer do psicólogo e a relação dos efeitos que produz nos sujeitos que
habitam o campo de intervenção. Como uma posição que privilegia a igualdade ou a
desigualdade implica o fazer psi na escola?
Ao considerarmos que “Nossa formação deve ser colocada na cadeira dos réus”,
põe-se em jogo a apropriação de um percurso histórico que se atualiza no cotidiano da
prática psi nos diferentes campos de intervenção. A análise da temática do encontro da
Psicologia com a Educação, para nós, só faz sentido a partir de uma posição política que
recusa colocar entre parênteses quem somos e o que produzimos nas relações que
pretendemos analisar.
Considerar que a Psicologia como saber instituído tem suas ferramentas e
dispositivos que, parafraseando Machado (1996, p. 16), selam destinos, implicar-se na
análise do próprio campo, é fundamental. Isto porque sabemos que “as verdades” que

75
muitas vezes nos apoiam são produções históricas que envolvem o silenciamento de
múltiplas vozes e saberes.
Não nos parece pouco, portanto, entender que, ao dizer sobre uma criança na
posição de um profissional da saúde mental, corre-se o risco de “verdadeiramente” torná-
la o que dizemos que ela é. E aqui, mais uma vez, recordamos o pensamento central do
institucionalismo em relação ao olhar para as situações sem que se conceba uma natureza
ordenadora que espontaneamente se apresenta em nossas vidas. Afirmamos que nada é
natural, tudo é produção.

5.2 Que se fale do indivíduo como uma produção e nada mais

“[...] que pode ter acontecido para que se


chegasse a esse ponto?”

(F. Scott Fitzgrald)

Quando insistimos em trazer, ao longo desta dissertação, eventos concretos de


ruptura das formas conservadoras instituídas em nossa sociedade, o fizemos com a
intenção de lançar luz naquilo que encontramos de mais revolucionário da perspectiva
institucionalista: considerar a prática exercida cotidianamente como prática política.
Sustentar-se neste princípio, abre caminhos para refletir sobre o contexto social a partir
da multiplicidade que o compõe, não sendo mais possível ancorar o olhar sob um único
ponto. Forças estão em jogo, formas diferentes de existir competem entre si, diferenças
saltam e desacomodam o que, de forma concreta, está organizado em uma ordem
determinada. Ideias que, no limite, inspiram uma posição oposta às generalizações que
estamos acostumados a encontrar no âmbito social.
A prática do psicólogo na escola, que compreende pensar, dizer, olhar um aluno
que, no processo de escolarização, frequentemente, é entendido a partir de um problema,
torna-se um campo de luta, onde diversos aliados e inimigos se apresentam. Várias frentes
de análise se ampliam e possibilidades aparecem, desde a função do psicólogo na escola,
a política educacional, a normatização do ensino, uma certa política da subjetividade, a
concepção de igualdade inerente à organização social, até os fazeres cotidianos dos
agentes concretos na escola. Viemos discutindo alguns destes elementos e sabemos que
muitos outros estão presentes no território das relações entre os sujeitos.

76
Desta maneira, apoiando-nos nos autores institucionalistas – Lourau (2014),
Lapassade (1983), Baremblitt (2002), Marazina (2015), entre outros – e nas autoras que
se dedicam a levar a cabo a crítica das práticas psi que estagnam e naturalizam as questões
escolares – Patto (2010), Souza (2011), Collares (1997), Moysés (1997) –, nesta seção
discutiremos a forma pela qual são narradas as experiências cotidianas vividas na escola
– uma vez que, no percurso que o texto põe à mostra, a posição de onde se fala, como ato,
implica efeitos nos sujeitos, na vida e no campo interventivo.
É fato que esta dissertação está sendo elaborada em um tempo posterior à
experiência prática, tornando a apresentação do campo algo bastante singular. Nosso
material é constituído de memórias, anotações e registros realizados há algum tempo,
enquanto ainda estávamos habitando o território escolar. Esta singularidade implica
necessariamente que nos coloquemos como parte produtora daquilo que será apresentado
como material de análise. Não só pelo fato de termos optado por redigir narrativas sobre
algumas situações vividas na escola, mas, também, e talvez principalmente, por se tratar
de narrativas que põem em jogo o embate entre diferentes forças presentes na organização
escolar e nas relações estabelecidas entre os sujeitos, fator que nos implica
profundamente.
De saída, entendemos que a narrativa pode ser tomada como estratégia para
potencializar os diversos elementos e forças que se apresentam numa cena vivida na
escola. Apostamos nisso.
Aliamo-nos, então, à concepção formulada por Benevides e Passos (2012) na
discussão sobre a política da narratividade. Esses autores afirmam que o dizer sobre algo
que se faz sempre indica uma maneira que diz respeito a uma posição, compreendendo,
portanto, uma forma de narrar. É de uma narrativa que se trata.
Isso se dá no momento em que tornamos o encontro entre os sujeitos e eles
mesmos, o objeto de pesquisa. A definição desse objeto envolve um desafio prático: como
não estagnar, paralisar o objeto? Como não objetificar o encontro e os sujeitos ao
pesquisá-los? No nosso caso, como dizer de situações de uma forma que se possa
privilegiar as vidas em questão?

77
5.3 “A palavra não representa, ela produz acontecimento”15

Entender a palavra como ato que produz efeitos é a premissa que encaminhará a
discussão. Tal premissa sustenta e aponta uma direção, pois sabemos que, de largada, ao
dizer e narrar as situações vividas, o perigo de naturalizar e de padronizar as existências,
as relações e os sujeitos, sempre se apresenta.

Narrar, portanto, não é reconhecer situações, rostos, tampouco


traços, mas um retraçar que sinaliza os efeitos que a palavra produz
naquele que narra, nas existências narradas e naquele que lê. É
preciso considerar duas coisas então: o que é selecionado e como o
selecionado é composto, uma vez que o processo narrativo é uma
invenção, mas uma invenção que produz uma ética.16

A partir da discussão de Benevides e Passos (2012) sobre a pesquisa e a prática, o


trabalho com a narrativa impõe um rigor que impulsiona a reflexão sobre as condições de
uma posição no mundo, uma forma de entender o que é vivido. É nesta articulação que
embarcamos para pensar a forma de utilizar o material recortado do campo nesta
dissertação.
Desta maneira, destacamos a pesquisa a partir de uma perspectiva que põe em
jogo um posicionamento quanto à forma de dizer sobre aquilo que tomamos para
estudar/pesquisar – ajudando a refletir sobre a forma de elaborar e apresentar as
experiências vividas no campo.
Entendemos que as palavras compõem um campo de produção de sentido, de
criação de realidades, funcionam como elementos de subjetivação e, por essa razão, a
escolha, eleição e seleção de palavras não é um exercício vão e sim uma forma de fazer
funcionar sentidos (LARROSA, 2002). A palavra, então, é um meio de dar sentido ao que
acontece, de correlacionar o acontecimento com o que se diz. Nesta concepção, é uma
dimensão que cria efeitos a partir do momento em que é pronunciada (LARROSA, 2002).
Tais efeitos, sejam eles quais forem, não podem ser ignorados. Lembremos aqui da
redução dos elementos produtores do fracasso escolar à capacidade individual dos alunos,
condição produzida, também, pela atuação dos profissionais psi, e amplamente discutida
e criticada por Patto (1999).

15
Afirmação de Machado (1996, p. 16).
16
Esta citação refere-se a uma fala de Ana Godoy em um sarau organizado por ocasião das manifestações
Fora Temer, 2016.

78
Há um perigo que se anuncia em relação ao que se produz nos ditos que supõem
os sujeitos, seus encontros e relações, no âmbito da pesquisa e da prática em Psicologia.
Benevides e Passos (2012), assim como Machado17 (1996), destacam a importância de
levar a cabo a participação do pesquisador ou do profissional psi como agentes que se
colocam no lugar de dizer do indivíduo. Nas palavras de Machado (1996, p. 16), “a
palavra não representa, ela produz acontecimento”. É por esta perspectiva que se define
uma certa política da narratividade que exige rigor metodológico, posicionamento e
crítica. Neste caso, o perigo anunciado é o silenciamento que a palavra pode produzir.
Assim, entende-se que todos os tipos de produção de conhecimento implicam
formas de atividades que em si concretizam lógicas institucionais, regras, normas e o
exercício do poder, de modo que a pesquisa em sua construção é entendida como uma
narrativa produtora de efeitos que podem, por um lado, fortalecer o pensamento vigente
e hegemônico e, por outro, criar rupturas (BENEVIDES; PASSOS, 2012).
Concordamos com Rodrigues (1998) ao pensar que a grande barreira presente para
os processos de inauguração subjetiva são os efeitos de naturalização. Hegemonicamente,
no território psi, costuma-se narrar um estado transitório do sujeito como uma
manifestação natural de sua existência. Em suma, cristaliza-se e perpetua-se um estado
como algo determinável e permanente, “sempre foi assim...”, obstaculizando e
paralisando possibilidades de mudança e transformação, aprisionando a existência.
Desta maneira, envolver os efeitos produzidos em uma narrativa seria uma forma
de implicar-se e fortalecer as possibilidades de singularização e alteridade
(RODRIGUES, 1998). Pensar nos efeitos que um modo de dizer produz é, portanto,
assumir um posicionamento político e considerar as verdades naturalizadas a partir de sua
contextualização histórica.
Do ponto de vista de sua construção, a narrativa é engendrada pelo modo singular
com que o pesquisador concebe as relações presentes no campo analisado, conectando-o
intrinsecamente com o próprio campo. Dias, Passos e Silva (2016) associam tal relação –
entre o narrador e o campo – valendo-se do conceito de implicação, já que, ao dizer algo,
se expressa também o “fora texto”, aquilo que não entra, revelando os atravessamentos
institucionais pelos quais passa o pesquisador. O que está em jogo, desse modo, é a
posição que tomamos quando expressamos o que se passa, o que acontece, e

17
Na tese de doutorado “Reinventando a avaliação psicológica”, Machado (1996) explora os efeitos de
naturalização e culpabilização produzidos pelos laudos e relatórios de psicólogos, sobre alunos “problema”
encaminhados pelas escolas para avaliação psicológica.

79
principalmente o que nos passa naquilo que acontece, ou seja, a nossa posição em relação
ao mundo e a nós mesmos (BENEVIDES, PASSOS, 2012).
Nesse sentido, uma certa forma de dizer sobre as experiências que vivemos na
escola pode diluir a ideia naturalizada de que o aluno, por suas características individuais,
é o causador dos conflitos e problemas que surgem no processo de escolarização.
O capítulo que segue é dedicado a este exercício, que compreende o rigor em dar
consistência à posição de dizer de algo, de um acontecimento, sem dizer de alguém,
exclusivamente. De outra parte, trazer o campo através das narrativas expressa o
investimento em fazer funcionar alguns elementos que foram fortalecidos ao longo do
percurso de elaboração desta dissertação, desde a consideração de todas as formulações
teóricas com as quais pudemos entrar em contato – tanto as críticas sobre a Psicologia
quanto a perspectiva institucionalista – até a expressão dos afetos produzidos no encontro
com o campo e a prática nele ensejada, ambos atravessados pelo mais importante, as
vidas, que pedimos licença para ficcionar, escrever, narrar. Dessas existências, tomou-se
apenas o que pôde reverberar em nós e no campo que percorremos.

80
6 PELOS CAMINHOS: NARRATIVAS FICCIONADAS

“Todo esse tempo foi igual a dormir num navio


Sem fazer movimento, mas tecendo o fio da água e do
vento.
Eu baderneiro me tornei cavaleiro, malandramente,
pelos caminhos
Meu companheiro tá armado até os dentes
Já não há mais moinhos, como os de antigamente”

(João Bosco e Aldir Blanc)

Para além de uma forma que define a estrutura da dissertação, a escolha de


trabalhar com narrativas do cotidiano envolvendo as crianças foi feita em razão de uma
reflexão sobre os elementos presentes nos encontros que pudemos realizar ao longo da
nossa prática na escola. No início da elaboração desta pesquisa, a ideia que tínhamos era
de apresentar as vivências da escola ao longo de todo o trabalho, dando um destaque
maior aos elementos que trariam o fazer psi no campo. No decorrer do tempo, algumas
mudanças inerentes ao processo de escrita e ao movimento implicado no ato de pesquisar,
encaminharam-nos para outras direções. E, depois de termos passado pelos autores que
formalizam teorias, tensionando pensamentos, definimos como utilizaríamos o material
prático que dispara questões nesta dissertação. Chegamos, então, ao momento de
apresentar e incluir no jogo algumas vivências experimentadas no campo em que
desempenhamos nossa prática
Vale destacar que a escrita das narrativas proporcionou efetivamente a assunção
e apropriação daquilo com que pudemos entrar em contato, conceitualmente, nesta
pesquisa – as rupturas, os efeitos de naturalização, padronização, individualização, o
exercício da política na vida cotidiana, o jogo institucional, a presença concreta do
instituído em nossas vidas e as oportunidades instituintes. É fato que as narrativas foram
produzidas pouco mais de dois anos depois de vividas, por esse motivo esclarecemos que
algumas intenções foram fortalecidas e ganharam destaque a partir da possibilidade de
assumirmos a voz que narra essas experiências. Mas as narrativas são, também, produto
desta dissertação, ou seja, uma forma de fazer funcionar a perspectiva institucionalista
em uma escrita que porta as forças presentes no campo de intervenção, como dissemos

81
no capítulo anterior. Desta maneira, se há um momento na dissertação em que nos
sentimos apropriados por aquilo que temos defendido deste ponto de vista, ele se dá ao
longo da construção e das discussões das narrativas dos meninos, pois é nelas que tal
apropriação aparece.
Cada uma das situações narradas sugere temas diversos que atravessaram o
território e a prática. Neste capítulo, nos serviremos de alguns deles e apresentaremos um
exercício de reflexão ao final de cada uma das narrativas. Para isso, contamos com alguns
autores que ainda não mencionamos, mas que muito nos sustentam na argumentação
sobre a dimensão histórica no modo como as relações se estabelecem.
Por mais que o trabalho do psicólogo nesta escola não tenha se tratado de uma
intervenção socioanalítica, é a partir desta proposta que encaminharemos a discussão e
buscaremos colocar em questão algumas forças que atravessaram a situação narrada. A
escolha dos temas para a discussão foi feita a partir de uma tentativa de perceber em nós
o efeito causado por cada uma das situações. Por esse motivo, as discussões podem, à
primeira vista, parecer bastante distintas entre si – desde o tamanho, até o modo como
foram elaboradas -, pois cada uma delas convoca diferentes elementos para pensar. Não
obstante, as três narrativas e as discussões vão constituindo articulações que se somam e
criam um percurso que traz à baila a questão da implicação do psicólogo com a sua prática
e o campo, questão sobre a qual temos nos debruçado neste trabalho.
Os temas, então, revelam o reconhecimento de efeitos, convocando uma reflexão
sobre as implicações. Tentaremos destacar aspectos da implicação com as experiências,
já que vivemos as três como prática, e, também, por entendermos que colocar-se como
parte do campo é uma ação fundamental para acessar as forças que se apresentaram ali.
O momento de realizar este exercício exige uma mudança de registro para quem escreve,
e consequentemente para quem lê. Se até então estávamos acompanhados de diversas
ideias, articulações e elaborações teóricas de diferentes autores, analisar a própria
implicação é dizer de si, e, portanto, estar só, comprometendo-se com essa condição.
Sendo assim, me apresentarei naquilo que pude pensar daquilo que me afetou, não
somente como psicóloga da escola, mas como pesquisadora que pretende fazer da sua
pesquisa uma oportunidade de ação política, como ensinaram os institucionalistas.
Assim, este capítulo conta principalmente com a convocação da pesquisadora para
habitar a própria pesquisa e, deste modo, confronta-a com o desafio de produzir algo que
esteja em consonância com a escolha teórica. Agora, talvez, seja o momento propício para
fazer funcionar os muitos elementos e/ou conceitos que foram ganhando relevo ao longo

82
da dissertação, de modo que me valerei de todos os autores que ajudaram a estabelecer
uma posição.
Ao final do capítulo, baseando-me nas discussões das narrativas, apresentarei
algumas considerações sobre a prática do psicólogo no território escolar, a partir do
institucionalismo, no que se refere à implicação do analista, como já dito. O pano de fundo
que me acompanha é aquele dos efeitos, da disputa, do movimento e da política. É deste
lugar que me permito falar dos três meninos: Gabriel, Marcos e Danilo.

6.1 Um caminho: dos cabelos às medidas...

6h30 = 5ml de trileptal + 2 cápsulas de Depakote


18h30 = 4ml de trileptal + 3 cápsulas de Depakote
20h = 3mg de Melatonina (para dormir)

“O Gabriel ganhou o meu respeito”, foi isso que escutei de uma professora que
se via às voltas do que fazer com seu aluno na sala de aula. Menino de nove anos, filho
caçula de um casal que trabalhava em banco; aluno do terceiro ano do Ensino
Fundamental da escola; cabelos cacheados compridos que caíam no rosto, magro, alto,
olhos grandes e azuis, boca vermelha e dentes grandes; paciente de psiquiatra, de
psicopedagoga, de fonoaudióloga, de neurologista e de geneticista.
Aos oito meses, o pediatra constatou que o cérebro do menino tinha o crescimento
mais lento do que o esperado para sua idade. Desde então, Gabriel começou a frequentar
o consultório de um neurologista. Aos dois anos de idade, sofreu a primeira crise de
ausência: caiu, ficou roxo e não conseguia respirar. Foi medicado para evitar a
reincidência dessas crises – Trileptal e Depakote. Gabriel engatinhava bastante, mas não
andava; balbuciava e, apesar de entender tudo o que diziam, não falava. Foi
encaminhado para a fonoaudióloga.
A entrada de Gabriel na escola foi marcada por sua curiosidade em saber como
aquele novo espaço funcionava. Observava os adultos e engatava uma conversa,
começava se apresentando: “Eu sou o Gabriel. Qual o seu nome? O que você faz aqui?”.
Ao longo do tempo ficou conhecido no ambiente escolar pelo seu sobrenome que era
bastante incomum. Passou a referir-se assim, mesmo com a dificuldade de pronunciar
corretamente. Falava trocando algumas letras, fato que à primeira vista, dava a
impressão de um garotinho que estava aprendendo a falar, provocando em nós adultos,

83
imediatamente, a vontade de tentar completar as suas palavras ou corrigi-las.
Entretanto, logo essa vontade se transformava em atenção redobrada para escutar e
entender o que o menino intentava dizer.
Entrou na escola no segundo ano do Ensino Fundamental, ensaiava a escrita
alfabetizada e suas professoras aproveitavam os momentos em que ficava acordado na
sala de aula para tentar desenvolver alguma atividade pedagógica. Gabriel tomava
muitos remédios e estudava no período da tarde, sentia muito sono, quando estava
acordado prestava atenção no material colorido e chamativo dos colegas: apontadores,
lápis, estojos; principalmente das meninas.
Queria olhar mais de perto aquilo que o interessava. Circulava pela sala, ia atrás
das coisas. Gabriel não fechava a boca e salivava muito, parecia não perceber que a
saliva escorria no seu queixo e molhava a sua roupa. Muitas vezes, quando se
aproximava demais das outras crianças, provocava certa repulsa. Alguns alunos não
queriam contato com ele e pediam ajuda da professora, já outros, ficavam satisfeitos com
seu interesse pelos materiais, mas logo avisavam: “Vai limpar essa baba!”. Começamos
daí, “Vai limpar essa baba”. O que o menino entendia dessa fala? O que tinha a dizer
sobre isso?
Gabriel nos contou que seus dentes eram grandes e que muitas vezes não
conseguia engolir toda a saliva. Sabia que babava! Mesmo que tentasse se enxugar com
a camiseta, coisa que nos disse não gostar de fazer, às vezes não conseguia. Gabriel
também relacionava o excesso de saliva com as fortes dores de ouvido que sentia, afinal,
quando engolia, a dor aumentava – ele tinha uma infecção constante no ouvido que
durava semanas mesmo com tratamento médico. “Que tal uma toalha? Você deixa no
bolso e quando precisar pode usá-la!”, Gabriel aceitou a sugestão da professora e disse
que traria uma toalhinha para a escola. Ainda nesta conversa, perguntamos sobre como
estava sendo sua relação com os colegas. Ele nos disse que estava dando certo, por mais
que fosse difícil que os outros entendessem o que ele falava. Contou que era engraçado
quando seus colegas não entendiam as palavras que dizia, “dá até para fazer piadas e
brincadeiras para eles adivinharem”. Em suas palavras, nos explicou que tem um
“probleminha” na fala que o fazia ter que repetir várias vezes a mesma palavra até se
sentir entendido.
Fato que não é fácil ser aluno: atividades, horários, disposição para estar em
grupo, informações novas, ser avaliado a todo o momento e, ainda, desenvolver-se da
forma esperada. É fato também que a presença de Gabriel na escola – um ambiente que

84
conta com a engrenagem regulada em uma justa medida – trazia a necessidade de lidar
com certas intensidades desagradáveis. Ele chegava atrasado, dormia na sala de aula e
não conseguia acordar, não escrevia nas atividades que lhe eram propostas, babava
demais, falava errado...
Muitas vezes, a impressão que tínhamos era que seu corpo não cabia ali. Era
como um menino “descabelado” no meio de outros muito bem “penteados”. A presença
desta criança, somada ao funcionamento da escola, nos convidava a pensar de forma
antagônica: os outros e o Gabriel. Sua postura e comportamento provocavam na equipe
técnica pensamentos conclusivos que flertavam com a ideia de falta de motivação e falta
de vontade de aprender. Diversas reuniões com os professores – que mantinham contato
com o aluno – foram recheadas com falas que facilmente poderiam ser resumidas na
necessidade de implicá-lo com seu aprendizado, assim como a sua família, ou seja,
esbarravam na falta de algo. Era isso que lhe faltava, implicação. A dúvida quanto ao
que fazer convocava a necessidade de descobrir uma causa e, consequentemente,
identificar os agentes causadores. Quem eram os responsáveis por nossas dúvidas?
Os encaminhamentos encontrados e, portanto, possíveis de serem pensados pela
equipe técnica, reagiam à dúvida como quem responde uma pergunta de forma a encerrá-
la. Como efeito, os pedidos produzidos pela escola foram maciçamente endereçados à
família do aluno: mais uma troca de roupa, acompanhamento sistemático da lição de
casa, um estudo diário do que havia sido tratado na sala de aula e até mesmo uma visita
ao cabeleireiro para ajeitar o “visual” do menino. Parecíamos precisar destas
providências para trabalhar com Gabriel.
Em uma conversa em que a professora abordou com Gabriel o comprimento do
seu cabelo sugerindo que o cortasse, o menino, de largada, avisou: “Tenho um segredo!
Não posso cortar meu cabelo...”. A professora não entendeu e fez algumas perguntas
para continuar a conversa. Gabriel pediu para que ela se abaixasse e disse baixo, bem
perto de seu ouvido, o segredo.

**

“Nada é natural, tudo é sócio-historicamente instituído” (RODRIGUES, 1999, p.


172)18. É a partir desta premissa que inicio o percurso desta discussão e que afirmo a

18
Optamos por iniciar esta parte do texto com a frase que a autora Heliana Conde Rodrigues chama de
fórmula do pensamento institucionalista, mesmo sabendo da advertência que ela mesmo faz à essa síntese.

85
necessidade de pôr em análise as práticas realizadas e as relações que se estabelecem no
cotidiano de uma escola, já que, como sujeitos, somos todos protagonistas das vias que
objetivam as lógicas institucionais. Nas palavras de Patto, destacadas por Cecília Maria
Bouça Coimbra (2011, p. 581), há práticas diárias que são equivalentes a “pequenos
assassinatos cotidianos”, quando regidas por uma lógica que se pretende estatuto da
verdade, estabelecendo, sutil ou descaradamente, normas, medidas e padronizações para
a existência dos sujeitos.
Na narrativa apresentada há pouco, as dúvidas que tomam a equipe técnica, e
principalmente a professora de Gabriel, engendram-se em uma forma de conceber o aluno
e a sua relação com os conteúdos formais oferecidos pela escola. Seguindo esta ideia,
tudo correria bem se um aluno que cursa o terceiro ano do Ensino Fundamental
conseguisse acompanhar as atividades propostas em sala de aula. Já alfabetizado e tendo
condições de sinalizar suas confusões e dúvidas sobre o conteúdo aplicado, a tarefa do
professor seria ajudá-lo a enfrentar os desafios da aprendizagem percorrendo um caminho
em certa medida já conhecido.
As situações que fogem daquilo que se espera que aconteça no cenário escolar
remetem a uma expectativa idealizada do processo de escolarização. Isto porque assim
que algo – uma característica, um comportamento, uma fala – irrompe neste processo
ideal, o desconforto aparece na expressão de uma falta. A ideia de nomear algo como falta
– caracterizado pelo que deveria acontecer, mas ainda não aconteceu – é efeito
concomitante àquele de naturalização, que institui o que é ser aluno na escola, por
exemplo, mas também o que é ser professor...
Machado (1994) indica que a naturalização escancara algo que está estagnado nas
relações e que nos faz explicar o desconforto via a natureza das coisas. Um exemplo disso
seria justificar a impossibilidade de ficar sentado na cadeira em sala de aula, durante três
horas seguidas, via o comportamento de uma criança, sem sequer considerar todas as
implicações presentes na exigência de permanecer sentado. Nas palavras da autora,

[...] naturaliza-se certas explicações, certas queixas, certas maneiras de


viver. Essa naturalização funciona normalizando. Algumas coisas
passam a ser normais, outras não. Com isso diversas tendências da
natureza ficam sendo categorizadas (MACHADO, 1994, p. 61).

Entendemos que esta frase possibilita alçar a discussão que traz à baila os efeitos de naturalização que nos
interessam neste momento, podendo contribuir para o esclarecimento da presença das lógicas institucionais
nas relações cotidianas. Rodrigues (1999) aponta a frase como insuficiente ao articulá-la com as ideias de
Deleuze e Foucault no que compete à noção do termo instituição. Sobre isso ver Rodrigues (1999)

86
Portanto, determina-se um ponto que ordena formas singulares de vida, ao passo
que aquilo que desvia é justificado a partir de sua natureza, sem levar em conta a produção
histórica que estabelece tal ponto, ou seja, os processos de regulação dos corpos, das
subjetividades, dos sujeitos. Procuramos, com isso, formas de aproximar as realidades
vividas de um modelo ideal, apostando, como nos provoca Machado (1994), na existência
do verdadeiro aluno, do verdadeiro professor, da verdadeira família, do verdadeiro
psicólogo etc. Assim, aumenta-se cada vez mais a distância entre o que deveria ser e o
que se efetua nas relações, promovendo e objetivando operações de oposição, tais como:
o adequado versus o inadequado, o bom versus o mal, o que aprende versus o que não
aprende, e tantas outras.
A partir da narrativa, é possível perceber como essa operação se configura,
principalmente nos efeitos decorrentes da presença da professora e da dúvida que ela
experimenta em relação ao que fazer com Gabriel. Retomando... “muitas vezes, a
impressão que tínhamos era que seu corpo não cabia ali. Era como um menino
‘descabelado’ no meio de outros muito ‘bem penteados’”; aqui, um aspecto do menino
atrai a explicação para o desconforto e, portanto, torna-se terreno fértil para o
funcionamento de uma lógica que se encerra na caracterização de opostos que, neste caso,
produz pedidos com a finalidade de adequá-lo ao que se supõe ser o correto e eficiente.
Entretanto, algo acontece quando, em meio a este funcionamento, Gabriel fala
sobre si, desencadeando questões que freiam a concepção ideal que estava em curso. Uma
ruptura acontece, a professora se afeta e cria-se, no encontro cotidiano, uma possibilidade
de olhar para o singular: o menino anuncia um segredo, fala e faz algo. Quando isso se
dá, tornam-se visíveis as multiplicidades que estavam em jogo desde sua presença na
escola. O fazer acontece e impede que Gabriel seja tragado por um funcionamento que
automatiza as relações que se estabelecem na escola em nome de um suposto modo de
habitar este espaço. Gabriel cria uma entrada com a sua professora e rompe as concepções
instituídas que lhe concediam um lugar e uma finalidade de ser naquele contexto.
Há a presença de um segredo. A fala do menino, ao convocar a professora que se
abaixa e ouve, abre uma pequena brecha na engrenagem aparentemente justa da
organização escolar. Faz-se, então, via a insistência da singularidade deste sujeito que
carrega consigo seus dramas, sonhos, ideias, pensamentos e posicionamentos, a abertura
de uma outra dimensão. Nesse sentido, a situação porta em si a saída de um invólucro
instituído, por meio, inicialmente, do encontro entre uma professora e um aluno

87
promovido pela percepção do segredo. Acredito que aí se anuncia uma força instituinte
que serve de pontapé para desassossegar uma lógica que implica o saber total sobre o
outro, isto é, há um segredo. Desta maneira, saber que existe um segredo já é suficiente
para saber que não se sabe tudo.

6.2 Outro caminho, “esse é um autista daqueles”

“[...]tanto quanto as soberbas coisas ínfimas”

(Manoel de Barros)

Tinha três naquela sala de quinto ano. O coordenador sustentava o discurso de


que quinto ano do Ensino Fundamental I é preparação para o sexto ano do Fundamental
II. Nova rotina, professores especialistas de ciências, matemática, português, geografia,
enfim, todas as matérias que existem na escola. A orientadora tentava mediar os conflitos
entre os alunos mais velhos e os mais novos, e as expectativas das mães em relação à
transição do que parecia revelar a passagem da infância para a adolescência. Tinha três
naquela sala.
Recreio junto com todas as turmas do Ensino Fundamental II – sexto, sétimo,
oitavo e nono anos – isto é, adolescentes. Um dos desafios para os alunos era administrar
o próprio dinheiro na cantina da escola, coisa que não acontecia nos anos anteriores,
pois de onde vieram – na outra unidade da escola – não existia cantina. Os grupos se
formavam, as avaliações tomavam outro sentido, palavras como advertências e
suspensões eram mais pronunciadas no cotidiano dos alunos. Parecia que tudo ali era
“agora pra valer”.
Os professores especialistas do Fundamental II já cruzavam com a turma que
supostamente pegariam no ano seguinte, e frequentemente se ouvia: “Tem três nesta
sala!”. Na tentativa de dar alguma resposta a este comentário, a orientadora recorria à
história de cada um deles: “Bom, mas dois já estudam na escola há bastante tempo,
conhecemos muito bem, sabemos como trabalhar...”. Mas eram três e não dois.
Um dos três era uma menina com Síndrome de Down, a Mariana, aluna da escola
há pelo menos seis anos. Entrou ainda na Educação Infantil, foi alfabetizada na escola e
já sabia como estudar ali; estava agora com 13 anos. Thiago também era aluno antigo,
entrou no início do Ensino Fundamental I, tinha o diagnóstico de autista – talvez pela

88
sua arte de falar coisas cujo sentido os outros não compartilhavam logo de saída – mas
ele se virava... Chamava bastante atenção dos adultos quando fazia contas de cabeça.
Um aluno que sempre representou uma incógnita para os “diagnosticadores de plantão”
da escola: “como autista? Ele fala, faz contas de cabeça”, “nunca vi um autista assim,
tão inteligente”. Todas as professoras que davam aula para o Thiago ficavam
impressionadas com a sua capacidade de fazer contas e responder perguntas. Ele
conseguia calcular que dia da semana cairia qualquer data anos à frente, mas toda esta
admiração ficava um pouco enevoada quando ele chamava alguém com uma palavra
estranha. Eu mesma ele chamava de “Magalhães” ou “Imigrantes”.
A sala, ao todo, tinha quase vinte alunos. Estudavam no período da tarde,
momento em que a escola era mais tranquila, tudo isso manejado no início do ano com
os pais dos três. “Teremos como cuidar melhor”, “não tem tanto barulho nos corredores
porque a escola está mais vazia”, e outras tantas argumentações que acabaram
formando esta configuração para o quinto ano da tarde, dezessete alunos mais três.
Do terceiro, afinal, não há muito que dizer, exceto que era um autista daqueles...
clássicos, dos que vemos caracterizados em filmes e em sites da rede. Um pouco mais
velho que o grupo, ele tinha quatorze anos. Mãos contorcidas para dentro, não falava,
não mantinha contato visual e não escrevia – sequer pegava no lápis. Ficava olhando
para sabe-se lá o quê, e manifestava uma certa agitação quando encontrava com sua
mãe na saída da escola. Ao chegar, tinha que ser acompanhado até a sala para sentar-
se na cadeira onde ficaria a tarde toda, a não ser que a professora o levasse para o
banheiro.
Se não fosse pelo impacto que causou nos demais alunos, não haveria muito a
contar sobre ele inicialmente. As meninas da turma começaram a lhe escrever cartas
declarando um certo tipo de amor, mas não sabíamos o porquê. Muito não sabíamos,
quem sabia era sua mãe. Impactava seu lanche no recreio, um pão francês sem nada,
nem manteiga.
Tudo que surgia como pergunta era endereçado à sua mãe: mulher nordestina
que falava alto no saguão de entrada e que lutou com a Secretaria de Educação para
conseguir que o filho fosse matriculado nesta escola sem ter que pagar a mensalidade do
seu bolso. Sim, ela tentou diversas escolas públicas que não tinham vaga para seu filho
e chegou nesta escola particular determinada a matriculá-lo. Foi assim que ele entrou.
Seu nome, Marcos.

89
Um dia no recreio, como de costume, a professora desembrulha um guardanapo
com o pão francês e dá para Marcos. Ele não come, fica olhando em volta, para mesa
que estava sendo compartilhada com outros alunos da sala, em sua maioria meninas.
Marcos vira rapidamente, tira o queijo do lanche de uma das alunas e come tão rápido
que não deu nem tempo de a professora impedi-lo. Algo acontece ali e a professora se
surpreende, tenta fazer algo, mas intimamente, depois, confessa que vibrou com a atitude
que presenciou. Quando sua mãe ficou sabendo da atitude do filho, não acreditou, repetiu
diversas vezes que a menina deve ter oferecido a ele, pois isso ele nunca havia feito.
Essa foi uma das situações que fizeram com que novas ideias surgissem para ter
Marcos na escola. De alguma forma, a equipe técnica da escola começava a vislumbrar
um sentido para a presença do aluno na sala de aula – coisa difícil de acessar antes.
Ficamos com a ideia de que poderia ser possível aguentar não saber sobre ele, pois algo
surgiria no cotidiano que nos daria pistas do que fazer, como encaminhar o trabalho com
Marcos. Teríamos que nos demorar ali, naquela convivência, para perceber os efeitos
que estávamos provocando no aluno.
As reuniões de tutoria aconteciam no período da tarde, pois, realmente, de manhã
era impossível, o trabalho cotidiano engolia a equipe técnica da unidade – demandas e
mais demandas para serem atendidas: pedidos de professores, ligações para pais,
conflitos entre alunos etc. Participavam dessas reuniões alguns professores tutores de
uma determinada turma, a orientadora e as psicólogas, que, nesta época, eram duas.
A reunião acontecia ao lado da sala do quinto ano para que fosse possível que a
professora chamasse rapidamente a orientadora, caso precisasse. O assunto raramente
fugia dos alunos considerados “difíceis” de lidar no cotidiano escolar, resumidamente
pelas inadequações, seja no comportamento ou no desempenho pedagógico.
Numa certa altura, um tumulto considerável começou a atravessar a reunião que
discutia diferentes estratégias para um aluno. Ao abrir a porta, nos deparamos com os
alunos do quinto ano. Calados e ao mesmo tempo barulhentos. Todos estavam saindo da
sala com seus materiais, e a professora orientava os alunos e indicava que a sala do
andar de cima da escola estaria mais fresca – apontando um certo desconforto pelo clima
que estava muito quente. Um forte odor invadiu a sala da reunião, e imediatamente
Mariana nos diz: “Nossa, nem eu estava mais conseguindo!”.
Saem dezenove, um ficou lá: imóvel, molhado e todo sujo. As duas psicólogas e a
orientadora chegam perto de Marcos, que permaneceu no mesmo lugar. A professora

90
volta para dizer o que realmente havia acontecido e se depara com as três já na sala.
Sabíamos o que tinha que ser feito, mas quem faria?
Em uma discussão rápida, a professora retornou para a sala com o restante da
turma. A orientadora ligou para a mãe do aluno para que ela trouxesse rapidamente
roupas limpas.
E, como uma convocatória da escola em relação ao propósito de luta da inclusão
de crianças com deficiências na sala de aula, a diretora delega a tarefa de limpá-lo e
vesti-lo para as psicólogas.
Difícil, depois do acontecido, foi lembrar dos efeitos que produzíamos no Marcos.
De três, ficou um. O quinto ano tem o Marcos.

**

Se fosse possível dizer que a narrativa tem uma ordem temporal e cronológica, a
discussão começaria pelo fim da cena que se apresenta. É esta cena que provoca o
necessário incômodo para sustentar e articular um exercício de pensamento. O caminho,
aqui, começa pelo “imóvel, molhado e todo sujo”.
De saída, é claro que a temática da inclusão de crianças com deficiências está
presente em todo o percurso de trabalho realizado nesta escola. Entretanto, no recorte
feito, o tema interessa a partir de um pressuposto que o concebe como dispositivo e
estratégia para problematizar uma forma de entender a escola e as relações que lá se
estabelecem. Desta maneira, a inclusão é como uma oportunidade que tensiona e expressa
o funcionamento institucional que atravessa todos os sujeitos e as práticas em jogo19
(MACHADO, 2009).
Na cena narrada, vislumbra-se uma direção que, ao lado de Ruth Gauer (2009, p.
85), nos faz afirmar que a “reflexão sobre a sujeira envolve pensar a relação entre a ordem
e a desordem”. Desta maneira, nos serviremos da sujeira, da impureza, a partir da sua
implicação com um modo que fundamenta todo um padrão de comportamento social.
Na obra intitulada Pureza e Perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu,
Mary Douglas (1966) define a impureza como um fenômeno que não se apresenta de
forma única. A autora esclarece que, embora a impureza seja evitada, costumeiramente,
por uma questão de higiene, ela sempre implica um sistema de representação.

19
Tal esclarecimento nos parece pertinente, pois não faremos um estudo das vastas produções que
aprofundam o tema da inclusão de crianças com deficiências na escola.

91
Evitar a impureza a partir de uma ideia de higiene é considerá-la tão somente em
relação direta e estreita com o nosso conhecimento e um certo modo de nos relacionarmos
com os organismos patogênicos, ou seja, com o entendimento das bactérias como
transmissoras de doenças. Douglas (1966), em uma argumentação que resgata e localiza
a ideia de pureza e impureza na história, ajuda a compreender que há um modo ordenador
e classificatório que atravessa os sujeitos quando esta questão está em jogo.
Assim, a noção de pureza e impureza desvela a existência de um conjunto de
relações ordenadas, definidas e previstas. Portanto, por um lado, sempre se trata de uma
ordem e, por outro, de uma desordem. Nas palavras de Douglas (1966, p. 30):

Quando tivermos abstraído a patogenia e a higiene das nossas ideias


sobre a impureza, ficaremos com a velha definição nas mãos: qualquer
coisa que não está no seu lugar. Este ponto de vista é muito fecundo [...]
onde houver impureza, há sistema.

Entender que a impureza implica um sistema de relações ordenadas é aproximá-


la de uma organização e classificação das coisas. Trata-se, portanto, de compreendê-la a
partir da simples formulação de que ordenar algo é concomitante lhe dar um lugar, ao
passo que a impossibilidade de ordenar produz o ato de repelir (DOUGLAS, 1966).
É neste sentido que a ideia de impureza é relativa, pois sempre diz respeito a um
funcionamento que opera anteriormente: a ordem. Defrontarmo-nos com a impureza é,
em certo ponto, perceber aquilo que nos faz classificar e que, justamente por isso, é
impossível de ser apropriado, pois, na ordem classificatória, a impureza não cabe. Assim,
ao passo que diz respeito a uma ordenação, refere-se também à confusão, ao descabido,
ou melhor, à desordem, ou se preferirmos, ao desmanchamento de uma ordem.
Todas as ideias ou elementos considerados impuros são, por conseguinte,
portadores de ameaça e, por isso, são perigosos para qualquer ordem, razão pela qual são
condenados. Para nós, são inconcebíveis certas formas (de agir, de pensar, de dizer) que
desacomodam o que tomamos como certo, pois funcionamos e agimos segundo uma
tendência em rejeitar o que é discordante ou dissonante.

Esses sapatos não são impuros em si mesmos, mas é impuro pô-los na


mesa de jantar; esses alimentos não são impuros em si, mas é impuro
deixar os elementos de cozinha num quarto de dormir, ou salpicos de
comida num fato; os objetos da casa de banho não estão no seu devido
lugar se estiverem na sala de visitas; o mesmo é válido para as roupas
abandonadas sobre uma cadeira [...] DOUGLAS, 1966, p. 30).

92
A autora destaca a questão da pureza e da impureza em um atravessamento tão
sutil que nos remete ao que é obvio em nossas vidas cotidianas. Seria possível refutar a
ideia de que o lugar dos sapatos não é sobre a mesa de jantar?
Assim, a representação da limpeza contém sempre a pretensão de impedir a
entrada da sujeira (GAUER, 2009): há sempre um perigo. Douglas e Gauer possibilitam
então arriscar um olhar ampliado para a questão do perigo, em que tudo o que ameaça a
manutenção do já ordenado e homogeneizado é percebido como impureza, e enunciado
como grotesco, feio, disforme, ou seja, como o que deve ser afastado e repelido. Ao
aproximar este modo de pensar da situação que a narrativa trata, a pergunta dos sapatos
sobre a mesa pode ser refeita: o lugar de Marcos é na escola?
Ao formular esta questão, não pretendo questionar o direito que as crianças com
algum tipo de deficiência conquistaram de frequentar as escolas regulares, pois não é o
direito conquistado que está em jogo aqui e que deve, sem dúvida, ser assegurado. Não
obstante, a intenção é tensionar a situação em que a presença do menino começa a disputar
com a ordem estabelecida na escola e que a define como tal. Considerando a escola
predominantemente como espaço ordenado, homogeneizado e planejado, está claro que
ali não é o lugar de Marcos, já que sua presença ameaça, pondo em perigo o
funcionamento em curso. Desta maneira, não é apenas a sua sujeira que não cabe na
escola, mas, sim, a sua existência.
Afastar aquilo que não tem lugar, que não cabe num certo arranjo ordenado, parece
um vetor possível para aproximar a ideia de pureza e impureza da problemática do normal
e do anormal. Isto porque há historicamente um processo que produz a expressão de
repúdio e afastamento pela diferença que estabelece a normalidade. Esta diferença que
implica a normalidade está completamente submetida à semelhança, pois é a partir desta
última que os padrões se afirmam. Ou seja, há o diferente que recorre à semelhança do
normal e há o diferente que desperta o repúdio, pois a nada se assemelha. Trata-se de
pensar se somos iguais na diferença que nos aproxima como portadores de singularidade
ou se somos diferentes na semelhança homogeneizadora em que alguns são mais
semelhantes do que outros...
O normal e o anormal, presente e instituído socialmente, foi, ao longo do tempo,
fortalecido pelas relações de poder-saber engendradas, também, nas ciências humanas,
balizando o comportamento dos sujeitos por meio de uma certa regulação (EIZIRIK,
2009). Nesse sentido, a aparição daquilo que implica o anormal carrega em si a denúncia
de uma ordem. E a única maneira de incluí-lo na ordem social é como inapreensível, e,

93
portanto, digno de ser excluído, escondido e encarcerado. Dessa maneira, é possível
entender a relação entre ordem e desordem como tangenciais à normalidade e
anormalidade, uma vez que está instituído o lugar para o que é concebido como puro e
como impuro, assim como para o normal e para o anormal.
Tal afirmação sustenta-se na análise que Marisa Eizirik (2009) faz – baseando-se
nos escritos de Foucault – sobre o sujeito e o lugar que lhe é permitido ocupar no tecido
social. Diz ela:
[...] cada sujeito corresponde um lugar e, cada lugar, um sujeito. Por
conta disso, o diferente fica fora de determinados espaços, fica excluído
deles, mas, paradoxalmente, lhe são definidos outros lugares, e lá ele
fica confinado (EIZIRIK, 2009, p. 37).

Assim, ao pensar a narrativa, os lugares que são determinados não dizem respeito
somente ao Marcos, mas a todos os agentes que lá aparecem. Trata-se de lugares, sujeitos,
produções, efeitos e desordem. Marcos como aquele que, com um diagnóstico de
transtorno, transtorna; e que, justamente por esse motivo, não pode ser ordenado, em
contrapartida, pode, sim, desacomodar o saber que antecede a vivência das situações, dos
sujeitos e coisas na escola. O evento implica elementos da dinâmica que se estabelecem
institucionalmente no território escolar que, por esse motivo, não é restrita aos aspectos
individuais que dizem respeito unicamente a Marcos.
A presença de crianças com deficiências vista a partir desta lente institucionalista
afirma a potência de invenção pelo imprevisto e, ao mesmo tempo, a submissão das
relações vividas na escola a partir da regulação do normal e do anormal. Aqui, refere-se,
então, a uma certa forma que se apresenta concretamente na nossa sociedade: o
encarceramento e a exclusão. Eizirik (2009) discute esta temática e esclarece que há a
manifestação de uma separação que corresponde aos lugares sociais e que é inerente a
uma certa ordem civilizatória.
Aos excluídos definem-se espaços de confinamento – manicômios, escolas
especiais e prisões, por exemplo – produzidos pelo esquadrinhamento social engendrado
historicamente (EIZIRIK, 2009). Assim, ainda que fora de certos lugares, outros lhes são
concedidos. Há, portanto, uma correlação entre o lugar e o sujeito. A rede destinada aos
excluídos é constituída precisamente pela via da exclusão, sustentando o afastamento de
uma certa noção de “intolerável” que se quer escondido, separado e oculto (EIZIRIK,
2009). De outra parte, é preciso enfrentar a inclusão diferencial, aquela que preserva a
ordem instituída e que busca submeter a diferença à semelhança, assujeitando.

94
Marcos – “um autista daqueles” – na sala de aula, “imóvel, molhado e todo sujo”
é da ordem do intolerável, do insuportável para um funcionamento em que os lugares
sociais e institucionais são muito bem definidos. A presença de Marcos, tido como
menino que é a personificação de um diagnóstico médico, age. Essa ação, paradoxalmente
contida na palavra imóvel, convoca todos os agentes envolvidos a se depararem com o
insuportável: a sujeira que se quer fora das vistas.
Defrontar-se com o extremo incômodo ameaça toda uma ordem, bem como as
certezas sobre a estrutura de funções, atribuições e saberes no contexto de uma escola.
Quem faz o quê? Cabe a quem lidar com a sujeira de Marcos? O que fazer? Rompe-se
com uma ligação direta entre a função e o fazer atribuídos a cada agente institucional, ou
seja, os elementos instituídos na organização. O fazer, que na escola sempre é atravessado
pela disputa entre as forças instituídas altamente conservadoras e as forças instituintes
que se apresentam cotidianamente, é convocado e problematizado. Neste jogo entre o
instituído e o instituinte aparece a possibilidade de uma ruptura nas cristalizações que
definem os lugares dos sujeitos – o autista, o psicólogo, o professor, a sujeira.
A sujeira ameaça a ordem na mesma medida em que é portadora de uma potência
de reflexão e transformação, se ancorada na brecha que se apresenta. Marcos, do lugar de
“um autista daqueles”, acontece, desordena e inaugura uma ruptura. A sujeira, então,
antes reduzida a um evento cotidiano, torna-se um acontecimento.

6.3 O terceiro caminho: a vida que proclama um certo pulo!

Duvida?

Nove horas da manhã, como todas as semanas, nas terças-feiras, a reunião


começa. Um pouco atrasada, encontro Danilo nas escadas que levam ao primeiro andar
do prédio da escola. Pergunto se está tudo bem naquele dia para ele, já que havia
acabado de chegar, e ainda não tínhamos nos encontrado como acontece toda manhã.
Ele diz que a professora havia pedido um favor e que logo já voltaria para a sala, assim
que o fizesse. Digo que nos falaríamos durante o dia. Entro na sala de reunião, todos a
postos: coordenadoras do fundamental e infantil, diretora. Faltava somente eu.
Começamos a reunião. A pauta era sobre a rotina da escola: entrada, saída,
demissão ou admissão de funcionário, horas extras, regras cumpridas ou descumpridas
pelos funcionários. Entre os assuntos, um ou outro aluno: questões de nota, faltas,

95
reunião com pais, lições de casa etc. Meu assunto na pauta ficou por último, em razão
do meu atraso naquele dia. Tinha anotado algumas coisas sobre a elaboração das
avaliações de alguns alunos que acompanhava de perto: Pedro, Rafael e Daniel – os três
diagnosticados como autistas –, Ana e Letícia – a primeira com Síndrome de Kabuk e a
outra com Síndrome de Down. Logo quando anunciei o nome dos alunos, as participantes
da reunião acrescentaram que queriam mesmo discutir sobre eles. Estava difícil o trato
no dia a dia... “Eles estão espanando”, diz uma das coordenadoras.
A escola estava passando por algumas mudanças em relação à proposta
pedagógica, mudança na qual se destacava uma posição antes adotada como
interacionista. As mudanças encaminhavam a organização para um trabalho pautado no
desempenho dos alunos nos rankings dos exames externos – os vestibulares e o Enem –
que pareciam não poder coexistir com a proposta anterior. Da parte da direção da
escola, aumentavam as preocupações com a participação deles na escola. Na equipe
técnica e entre os professores, circulavam dúvidas referentes à pertinência da presença
deles na sala de aula: atrapalhariam o grupo? Atrasariam o grupo? Tomariam muito
tempo das professoras? Como trabalhar o alto desempenho com crianças que
apresentam uma deficiência?
Dúvidas sem respostas, angústias com o que acontecia no cotidiano, dificuldade
em encontrar uma posição frente aos pais e, certamente, frente às crianças que
esbarravam em nós a todo o momento, nos corredores da escola. A mudança de direção
da proposta não foi algo compartilhado, ou seja, discutido com a equipe que estava na
gestão: eram ordens de cima. Os motivos apresentados como justificativa eram
sustentados pelo argumento da concorrência de uma nova escola, grande, poderosa, que
abrira recentemente no bairro e que estava “de olho nos nossos alunos” – nos bons, é
claro... pois os com deficiência sempre foram nossos. Tínhamos a imagem de receber os
alunos que as outras escolas privadas da região rejeitavam – o que era fato. “Costume”
e “cultura” que viraram diferencial para quem apostava em uma educação mais
democrática, humana e não produtivista, ao ponto de pôr à disposição o serviço e a
matrícula de algum aluno, caso alguma família se opusesse ao fato de que seu filho ou
filha estudaria perto de alguém que baba, não fala, não enxerga, tem manias estranhas,
fala errado, e por aí ia...
Curiosamente, na reunião da equipe técnica – esta que acontecia todas as terças-
feiras –, falar sobre os alunos com deficiência era algo que, neste momento da escola,
rendia conversa. Parecia que nesse assunto todos os atropelos se encontravam, as

96
dúvidas se manifestavam; coisa que não aparecia muito quando os alunos da escola,
ditos normais – que certamente estavam sofrendo os efeitos desta mudança na posição e
atitude da escola –, entravam em cena na conversa. Todos sabiam que algo estava em
processo de mudança; estávamos em teste com um sistema de informação sobre os alunos
que se chamava Verificação de Aprendizagem (VA). Para explicar, imaginem uma rede
social de alunos à qual eles não têm acesso, em que as informações são postas pelos
professores e coordenadores. Informações do tipo: não fez a lição, não entendeu o
conteúdo apresentado – e precisa estudar para não ter lacunas na aprendizagem –, faltou
com o respeito para com o colega de classe ou para com a professora, não entregou o
trabalho, conversou demais em sala. Dificilmente algo que informasse o bom
desempenho – colocar algo sobre o que andava bem poderia soar como “falta de
assunto”.
Esse era o clima de transição. Palavras como alinhamento, enquadre e
desempenho começaram a ser pronunciadas com bastante frequência. Era perceptível a
vontade da equipe técnica de entender o que significavam essas palavras e como usá-las
de modo a não mortificar o trabalho que até então era desenvolvido na escola. Esforços,
esforços e mais esforços.
A reunião era muito aguardada, esperavam-se esclarecimentos,
encaminhamentos e respostas quanto ao como fazer uma “boa limonada com os poucos
limões disponíveis”. O foco era fazer falar a diretora geral, mantenedora da escola,
alguns, no empenho de saber mais, já outros, na tentativa de entender o porquê a música
trocou no meio da valsa. Seria possível mudar os passos assim, de uma hora para outra,
no meio da dança? Conversas das professoras no corredor ferveram às voltas com o que
estava acontecendo. Não incluímos mais? Agora mudou tudo? Refiro-me aos professores,
coordenadores, faxineiras, secretárias, recepcionistas... todos aqueles desejavam
trabalhar com inclusão. Nem mesmo o cafezinho havia se mantido: por economia, não
tínhamos café... e a famosa “hora do cafezinho” agora era na base da água mesmo.
Vejo Danilo de novo. Ele entra na sala de reunião e, de largada, é advertido:
“Estamos em reunião!”. Ele diz que a professora o mandou para a coordenação, o tirou
da sala de aula. Conta que bateu em um outro aluno e se justificou dizendo que o menino
o amolou por muito tempo durante a lição.
Danilo, um ano mais velho que o grupo, havia entrado há mais ou menos sete
meses para cursar o segundo ano do Ensino Fundamental. Sua família resolveu mudá-lo
de escola porque Danilo não estava mais querendo ir para a outra onde estudava, além

97
do que, “já conhecia todos os funcionários, não respeitava mais ninguém” – palavras de
sua mãe. O pai achava que ele precisava de novos ares, e a mãe, um pouco mais
preocupada, achava que ele estava pensando em outras coisas que não o aprendizado;
parecia aflita de o filho estar perdendo tempo e não aprendendo coisas novas. Ambos
diziam que o filho era “malandro”, conseguia perceber a fraqueza das pessoas, em
especial das professoras, e aí não tinha mais jeito, sambava em cima. Era muito
influenciado pelos irmãos mais velhos, interessado em jogos de videogame e com uma
postura muito desobediente – descrição feita pelos seus pais no dia da entrevista para a
matrícula.
Danilo entrou na escola na condição de aluno com necessidades educacionais
especiais, dizíamos: aluno em atenção especial. Entrou no segundo ano, não estava
alfabetizado e, também, não queria ficar na sala de aula. Seus primeiros dias na escola
foram na minha sala, conversando e fazendo desenhos... Departamento de Psicologia.
Chegava à escola e ia direto me encontrar; se eu ainda não havia voltado do almoço, ele
me esperava na recepção. Às vezes, entrávamos juntos, falava muito, contava do seu
irmão, tinha dúvidas sobre o que aconteceria se ele, Danilo, entrasse na sala de aula.
Morria de medo dos outros rirem dele por não saber ler e escrever, já que era “tão”
mais velho que os demais. Ele colocava esse “tão” sempre que se achava em
desvantagem. Danilo fugia, subia na árvore – a única que tinha no espaço da escola. Nas
primeiras vezes, eu ia atrás dele; depois, passei a esperar, pois, passado algum tempo,
ele voltava. Voltava porque se lembrava de algo para me contar: uma fase do videogame
que passou, alguma coisa engraçada do seu irmão..., coisas assim da sua vida fora da
escola.
A professora de sua turma tinha receio: “Nunca trabalhei com Transtorno
Desafiador Opositivo”; disse a ela que eu também não... Esse era o diagnóstico do
menino depois de uma consulta com o psiquiatra. Danilo olhava e, vendo-me ali
trabalhando, escrevendo no computador, perguntava: “O que você faz?”. Às vezes, eu
não respondia, já tinha tentado explicar inúmeras vezes minha função na escola, parecia
que ele estava fazendo piada20. Pegou um papel e me disse: “Você acha que eu não sei
escrever?”. Disse que não sabia se ele sabia, e me distraí com meus relatórios, escritos
sobre as reuniões dos dias anteriores. Danilo desenhou facas, sangue e escreveu algumas

20
Hoje, pensando na sua insistência para saber o que eu fazia na escola, penso que não se tratava do
entendimento de Danilo, e sim da complexidade do fazer do psicólogo em uma escola. Creio que qualquer
resposta que dada por mim, ou que poderia dar, não seria suficiente.

98
coisas, entre elas: punheta, mulher, halo21. Ficou me olhando para ver a minha reação.
Eu disse: “Sabia!”. Ele riu e perguntou se eu sabia ler... – Danilo, o desafiador. “Você
sabe várias letras...”, disse a ele... “Vamos para a sala de aula?”, perguntei. Ele me
respondeu que no dia seguinte iria direto, mas antes passaria para me encontrar, ver se
eu estava mesmo trabalhando.
Voltemos à terça-feira: “Estamos em reunião!”. E Danilo ali: havia batido no
colega.
Depois de tantas ocorrências de comportamento registradas no VA de Danilo, o
combinado com ele e com a família era que, quando ele batesse em alguém, os pais teriam
que buscá-lo e ele ficaria suspenso naquele dia. A coordenadora retoma este combinado
com ele, e pede para ele esperar na recepção, aciona a secretária para que ela
telefonasse para um de seus pais vir buscá-lo. Segue a reunião... calendário, próximos
eventos da escola, conselho de classe...
A mãe de Danilo chega e a secretária liga para a sala de reunião. A coordenadora
desce e, em seguida, a diretora. Passam-se alguns minutos, o telefone toca... saio
correndo, sou chamada na quadra descoberta, último andar do prédio. Vejo um banco
perto de um portão aberto e Danilo fora da grade de segurança, perto da ponta do
telhado. Ele fala: “Duvida? Eu pulo!”. Sem repertório para isso, peço para chamarem
a mãe dele. Enquanto ela não vinha, entrei pelo portão – que mal dava passagem de tão
pequeno - e fui para perto dele, tentando começar uma conversa; nem me lembro o que
disse. Danilo sai correndo para o outro lado e sobe uma escada colada na parede, indo
em direção a caixa d’água, certamente o ponto mais alto do prédio. Agarro suas pernas
e, com a ajuda do porteiro, conseguimos tirá-lo de lá. Na quadra, a mãe, a diretora, a
coordenadora e a professora. Descemos. Danilo vai para casa com sua mãe – muito
assustada – puxando-o pelo braço e desculpando-se com a diretora da escola.
Tudo isto se passa em menos de nove minutos.

**

No jogo ininterrupto entre o instituído e o instituinte, convocações nos são feitas


exigindo a eterna reiteração das posições que assumimos no encontro com o outro, no
nosso cotidiano, nas relações que estabelecemos. Como temos dito, perceber-se envolto

21
Nome de um jogo de videogame.

99
neste jogo pode criar a ilusão de que há dois lados, o bom e o mau – um representado pela
mudança e o outro pela estrutura que se produz na história. Todavia, entender um jogo a
partir desta operação binária é simplificar demais, é ignorar as possibilidades que tanto a
estrutura quanto a mudança oferecem. Saber jogar é aproveitar o que já se tem e fazer
disso uma alavanca para a invenção.
Insistindo na discussão de que deparar-se com uma estrutura pode servir como
ocasião oportuna para pô-la em questão, fazendo dela campo de rastreamento de brechas
e rupturas, incluindo elementos que ficariam de fora se olhados, de uma forma mais
conservadora. É pela vivência que tivemos com Danilo que isto se mostra mais
fortemente. Como escolha, então, manteremos o destaque na ideia da desordem como
potência e o entendimento do campo escolar como disputa.
Danilo desordenou a certeza, a organização, as funções e o tempo. A desordem
deste último foi feita de forma tão intensa que os nove minutos em que a experiência se
deu não cabem em uma descrição, e, sobretudo, a distância de dois anos que,
supostamente, afastaria os afetos experimentados insiste em (não) trabalhar a favor.
Escrita de uma só vez, a produção desta narrativa, embora tenha sido a última a ser
elaborada, já anunciava sua marca desde o início, quando foi definida esta estratégia de
apresentação da prática.
A experiência com Danilo diz de diversas convocações, tanto sobre as certezas
postas em dúvida – dos lugares, das funções, dos fazeres – quanto sobre o próprio corpo
– até onde oferecê-lo, se é que possível dizer isso. Talvez, a importância de refletir sobre
a vivência tida com Danilo, desde o início, esteja justamente no impacto que ela produziu
em mim, e ainda produz.
Dentre os diferentes elementos apresentados na narrativa, a mudança da
intencionalidade da escola é o pano de fundo onde tudo se passa. Retomando: “A escola
estava passando por algumas mudanças em relação à proposta pedagógica, na qual se
destacava uma posição antes adotada como interacionista. As mudanças encaminhavam
a organização para um trabalho pautado no desempenho dos alunos nos rankings dos
exames externos – os vestibulares e o Enem – que pareciam não poder coexistir com a
proposta anterior”. Um novo modo estava sendo instituído e é pelo mapeamento da fala
de alguns que isso começa a ser feito. Mapeia-se a fala de alguns e silencia a de outros.
O recurso de Verificação de Aprendizagem foi utilizado para dar visibilidade
sobretudo àquilo que tem que ser melhorado. Desta maneira, ao entender o cenário
apresentado como uma transição da escola no modo de conceber sua prática educativa, é

100
possível que se trate de um momento em que a estrutura da organização está mais
permeável às brechas. A mudança aponta para uma nova direção que prioriza o
desempenho dos alunos, vistos e avaliados pelos professores.
Como um dos principais agentes de fala deste novo modo, os professores
respondem à convocação para dizer sobre o que não têm funcionado nos alunos em
relação àquilo que se espera. Isto é claramente apontado no trecho: “Informações do tipo:
não fez a lição, não entendeu o conteúdo apresentado – e precisa estudar para não ter
lacunas no ensino –, faltou com o respeito para com o colega de classe ou para com a
professora, não entregou o trabalho, conversou demais em sala”. Dessa maneira, as
informações são depositadas no novo sistema, ficam lá, sem serem refutadas ou
problematizadas. Com isso, o percurso dos alunos não aparece, pois o que interessa é
apontar o que falta para desde aí encaminhar o trabalho.
Os elementos que compõem o cenário e as práticas que começam a ser instituídas
dizem de um momento importante em que a situação descrita na narrativa se destaca via
o corpo de Danilo. Ao mesmo tempo em que se abre o espaço para ideias que sugerem
certezas sobre os alunos – como os registros exigidos no VA –, dúvidas e ameaças se
apresentam no cotidiano das práticas dos agentes escolares. O que fazer quando a
mudança parece tão extrema? Onde colocar o que, de certa forma, parece não mais caber?
Nos termos institucionalistas, trata-se de um momento de crise. Há, nesse sentido,
a comunicação de algo que morre todos os dias, seja um velho modo de olhar os alunos,
seja a subjetividade que neste momento está sendo considerada como inoportuna para que
a organização escolar possa caminhar rumo ao seu objetivo de visibilidade no mercado.
Desacomoda-se um certo modo de fazer e, então, aspectos sobre a “antiga” prática, agora
em disputa com a “nova”, são deflagrados. Como sustentar o propósito de uma luta – que
na narrativa aparece como aspecto da cultura da organização – em um funcionamento que
começa a se afastar do aluno como sujeito do seu próprio processo de escolarização? O
que diriam os alunos? Onde lhes cabe a fala?
De alguma maneira, o novo modo que começa a ser instaurado nesta escola
convida a refletir sobre algo que já estava presente – e que talvez seja inerente à
organização escolar dos nossos tempos – e que compete com uma prática educativa
sensível às singularidades dos sujeitos na escola, na qual a inclusão de crianças com
diferentes questões pode ser pensada. A partir desta ideia, que se relaciona com todas as
discussões feitas sobre a tendência preponderante da escola em homogeneizar e
padronizar as existências, retorna um modo fortemente instituído de funcionar,

101
mortificando práticas que exigiam tempo, esforço e certa atenção para o processo singular
dos alunos. Assim, ancora-se nas certezas daquilo que é necessário para que o aluno
apresente o esperado alto desempenho, mapeia-se o problema de cada um, a falta de cada
um, para isso conta-se com a verificação da aprendizagem. Quem iria duvidar do que está
registrado ali?
Desse modo, intensifica-se um saber que indica os que cabem ou não cabem, os
que falam e os que calam, os que sobem no desempenho e os que caem, os que podem e
os que não podem, os que aprendem e os que não aprendem, e assim por diante... Com
tal funcionamento fortalecido, apassivam-se e subjugam-se as práticas antes possíveis, as
singularidades antes acolhidas, os sujeitos antes “cabíveis” e os saberes antes em
circulação.
Na tessitura da narrativa, forças que envolvem a ideia de ordem, planejamento,
previsão, objetivos, desempenhos, concorrem com outras forças que indicam dúvida,
fuga, recusa, resistência. No momento de uma mudança entendida como extrema no fazer
da escola, um aluno que era “tão”, foge e, saindo das vistas, sobe, ganha concretamente
visibilidade, questionando as certezas. Lá, do ponto mais alto do edifício, Danilo
pergunta: “Duvida?”.
Danilo, que não baba, não tem uma deficiência diagnosticada, fala, escreve,
pergunta... se opõe a este funcionamento. Dele, e de qualquer outro aluno, esperava-se
alto desempenho, e para o alto ele vai. Nas palavras de seu pai, ele “precisava de novos
ares”.
Lourau diria: “Chegaram os analisadores. Não os esperava. Ainda não. Ou não
desta maneira” (LOURAU, 1979, p. 255). A cena de nove minutos é o que não
esperávamos, é um analisador, apresenta-se. Lourau (1979, p. 255) completa: “Tinham
todavia sido anunciados [...]”, sendo por isso produções, expressões de uma reunião de
diferentes elementos a serem percebidos.
Se os analisadores tratam de desvelar a ação e os efeitos do instituído, como já
discutimos anteriormente nesta pesquisa, a sequência de ações que Danilo protagoniza é
produção, efeito engendrado na lógica institucional, na prática cotidiana. Como
analisador a situação revela, faz ver o silenciamento de uns sob o saber de outros, a falta
que achata a singularidade e, porque não dizer, a expulsão daquele que não se
homogeneíza.
Produzido em um funcionamento no qual predomina a compreensão da existência
como abstrata, faltante e programada, o pulo é oportunidade, faz ver a vida que se perde

102
de vista. Faz ver o desespero em imaginar um corpo concretamente caindo. Faz ver a
assunção da culpa na fala da mãe do menino. Instala uma dúvida na certeza imposta. Se
o funcionamento da máquina escolar ignora a vida, Danilo afirma-se vivo, pondo em
questão. Uma (pequena) grande recusa.
A sustentação, na perspectiva institucionalista, compromete o olhar para uma
situação a partir da inclusão das forças em movimento, em disputa, recorrendo ao fazer
cotidiano como elemento fundamental para pôr em análise os efeitos e as produções que
objetivam as relações. Desta maneira, neste campo de saber, não seria possível conceber
as três situações sem implicar a psicóloga como agente também produtor e participante
daquilo que surgiu.
Como foi dito, os eventos narrados foram vividos há um tempo, e a proposta de
apresentá-los nesta pesquisa se faz na condição de operar um exercício de pensamento a
partir da questão do fazer do psicólogo na escola. Para tanto, contando com os
instrumentos da corrente institucionalista, as situações narradas empurram para a direção
em que a implicação do analista é fundamental, pois é nesta esteira que pensar e abrir os
caminhos interventivos se faz possível e envolve radicalmente a dimensão política do
fazer. Reconhecendo tal radicalidade proposta, surge a pergunta: qual a nossa implicação?

6.5 O corpo no campo: um exercício de análise da implicação

Agarro suas pernas

Caminhando para o final deste último capítulo, em que o objetivo principal foi
produzir uma certa forma de olhar, dizer e escrever sobre as situações escolares que
pudessem estar em consonância com o modo como nos propusemos a entender os
conceitos e suas relações ao longo desta dissertação, um grande desafio se apresenta:
como pensar a prática do psicólogo na escola a partir dessas ideias que articulamos? O
que balizou ou o que pode ser entendido como baliza para a prática do psicólogo neste
campo?
Longe da possibilidade de oferecer algo que se assemelhe com um modelo de
atuação, a intenção no momento é aproveitar o que pôde ser apreendido do estudo
desenvolvido e apresentado nos capítulos anteriores e refletir sobre as três narrativas a
partir de um único ponto: a minha parte nestas histórias. Ou seja, entrei com o quê?

103
As situações que envolvem Gabriel, Marcos e Danilo portam uma série de
elementos que constituem um modo predominante de entendê-las e que passam por
processos subjacentes às formas de exclusão, naturalização e inadequação. Ao me
debruçar sobre as narrativas, busquei destacar o que foi compondo as relações e que
possibilita romper com a compreensão que concentraria todos os aspectos em jogo nas
características individuais de cada um dos meninos ou da professora, da mãe, de qualquer
um dos sujeitos envolvidos. Isso porque aposto que esta possibilidade é fecunda para
pensar a prática do psicólogo na escola, pois se as situações atualizam elementos
instituídos das lógicas institucionais, e isso deve ser pensado, atualizam em nós –
psicólogos – também as instituições que nos compõem.
Em alguns momentos, na pesquisa, influenciada pela forma como muitos autores
dizem de Maio de 68, utilizei a expressão “pequenas grandes recusas” para remeter às
ações das crianças na ordem que, cotidianamente, se objetiva na escola. Este modo de
entender serve de estratégia para sustentar a posição que se alia à crítica operada em
relação ao fazer psi no campo escolar ao longo da história, e, ainda, fortalece a tendência
de conceber a escola como espaço onde a multiplicidade dos sujeitos e das relações age
o tempo todo. Como pensar o que me causa quando um segredo é anunciado, o mau cheiro
invade e uma vida é ameaçada? Isso, afinal, é trabalho do psicólogo?
Naquilo que os meninos fazem agir, a recusa é central no que se refere à ordem,
ao funcionamento que assujeita. Todavia, houve recusa da minha parte, no que concerne
o saber abalado, a limpar a sujeira, a topar com a possibilidade da morte. No período em
que os eventos aconteceram me perguntei insistentemente porque ninguém mais poderia
ter limpado Marcos, ou tirado Danilo de lá do alto. O que confluiu para que essas
situações de extrema intensidade me fizesse agir. O que aconteceu que o psicólogo foi
posto no lugar daquele que teria condições para efetivamente limpar ou agarrar?
Na época, debati-me e incomodei-me muito com tudo o que se passou nessas
situações 22. O incômodo principal parecia morar na ideia de que o psicólogo seria aquele
que sustentaria sozinho um certo lugar que se relacionava com toda uma rede de práticas
e funções preestabelecidas na escola. Isto porque as situações vividas convocavam um
lugar que imbricava todos na prática educativa, no comprometimento da organização com

22
Cronologicamente, as situações aconteceram nesta mesma sequência que apresentei aqui: primeiro com
Gabriel, depois com Marcos e, por último com Danilo. Entretanto, nos espaços em que discuti a minha
prática, uma situação sempre remetia à outra, particularmente as duas últimas, como momentos
emblemáticos para refletir sobre o lugar que ocupei naquela escola.

104
a inclusão escolar e com os alunos que ali estavam. E a pergunta insistia: por que o
psicólogo?
No esforço da resposta, pensei até, em alguns momentos, que parecia uma espécie
de castigo, por ser eu quem tinha a função de abrir, na rotina escolar, o espaço para falar
sobre os alunos que demandavam decisões difíceis e uma atenção maior. Castigo porque,
geralmente, no corpo institucional representativo daquela escola, a psicóloga era aquela
que respaldava o trabalho, provocava e chamava todos os agentes para participar das
reflexões sobre a presença e os processos dos alunos com alguma deficiência. Proposta
essa que, muitas vezes, era recusada, deixada de lado ou entendida como um “exagero
subjetivo”, uma perda de tempo23. Eram as psicólogas quem geralmente questionavam,
desacomodavam os professores, coordenadores e diretores nas reuniões em grupo e
individuais. Provocávamos e, por isso, intimamente, pensei que estávamos sendo
castigadas. Com isso, as situações – em especial de Marcos e de Danilo – fizeram-me, de
certa forma, rivalizar com aqueles que não se dispuseram a fazer “o que sobrou”, o que
tinha que ser feito.
Atualmente, penso que não se trata de sofrer um castigo, mas de um certo efeito
de continuidade do lugar ocupado na organização. Quero dizer que muito mais do que
uma recusa dos outros agentes em limpar ou agarrar o menino, ou um castigo para a
psicóloga, o que me fez agir tem relação com a obviedade que implica a relação que se
estabelece com o especialista – aquele que sabe. Então, desde ocupando um lugar e
exercendo uma função, é obvio que a psicóloga saberia mais que os outros a melhor forma
de agir nesses casos.
É fato que me relacionei com as situações de Gabriel, Marcos e Danilo como
momentos extremos, pois elas causaram diversos afetos difíceis de serem reconhecidos.
Na primeira situação, vacilei na posição de dar lugar à recusa de Gabriel, perdendo de
vista a possibilidade de reconhecer ao aluno um saber sobre si mesmo, apoiando e
reafirmando a tendência instituída na Psicologia de poder e saber sobre o outro,
ignorando-o. Em outras palavras, percebi que os encaminhamentos pensados para Gabriel
perderam-no de vista, visaram ou afirmaram o adaptável, o padronizável. Com Marcos e
Danilo, vivências sobre as quais refleti há pouco, a partir dos conceitos de acontecimento

23
Refiro-me aqui a algumas lembranças de comentários em reuniões em que pensar era motivo de graça ou
piada. Os colegas de trabalho mais próximos, em momentos mais descontraídos da rotina, costumavam
repetir que uma das únicas coisas que o Departamento de Psicologia propunha era “pensar”, repetiam como
imitação, coisas do tipo: “vamos pensar o que temos feito com esse aluno...” ou “porque será que isto está
acontecendo...”.

105
e analisador, senti-me, na época, furtada de qualquer suposição de saber sobre algo. Senti
nojo, asco, angústia, desespero e medo. E ainda que fazendo, agindo, estava, de certa
forma, paralisada.
No esforço de responder à pergunta sobre com o que entrei em cada uma das
situações apresentadas, no que diz respeito a Marcos e Danilo, inicio a resposta afirmando
que entrei, primeiramente, com a impressão de que não era meu trabalho aquilo que já
estava sendo feito. Lembro-me da conversa que tive com a minha colega enquanto
limpávamos Marcos, durante todo o tempo, no banheiro. Ele não se movia, apenas
respondia em reação aos nossos toques, que sem dúvida estavam carregados de muito
nojo da sujeira que cobria suas pernas e, também, de muita raiva daqueles com quem
dividíamos o trabalho. Limpávamos Marcos e conversávamos indignadas sobre a situação
que estava sendo vivida. Ao terminar, o restante da equipe nos indagou sobre como havia
sido, me lembro de termos respondido que fizemos o que deveria ser feito, um tanto
quanto provocadas.
Na época em que a situação de Danilo aconteceu, havia apenas uma psicóloga na
escola, o departamento havia diminuído, foi no último ano de trabalho. Esse fato
certamente afetou o que pôde ser pensado e discutido depois de tudo. A potência antes
experimentada em outros períodos do trabalho, pela ressonância entre pares e entre outras
vozes no propósito de elaborar coletivamente eventos extremos do cotidiano, certamente
fizeram falta. Tal condição me fez sentir sem força para argumentar, questionar e
problematizar. Intervenção esta que considerava, e considero ainda hoje, importante para
distribuir os sentidos sobre o que levou Danilo a subir no telhado da escola. Sinto que não
circular a palavra e discutir o que aconteceu possivelmente o responsabilizou e a sua
família, identificando em seus aspectos, exclusivamente, as razões de sua atitude.
Talvez, o que se passou depois da experiência com este aluno tenha me
convencido de que o trabalho, antes possível de ser desenvolvido, havia realmente sido
abafado por outras direções que estavam sendo priorizadas naquele momento. E, depois
de alguns poucos meses, de fato ele se encerrou nesta escola e não saberia dizer quais
formas foram inventadas para travar a luta, que não era só minha, de fazer caber na escola
os alunos “desordeiros”.
Contudo, parece-me que ao pensar a prática do psicólogo na escola, as três
situações servem bastante. Seja para reconhecer os perigos de vacilar na posição que
define uma prática política, quando o saber subjuga a relação e o sujeito como produção
histórica, seja para pensar o psicólogo como um agente que oferece seu corpo para o

106
campo. Afinal, qual é a condição para levar a cabo uma prática política? O que fazer para
ser força que potencializa movimentos contra os modos dominantes na escola?
Empresto, aqui, uma expressão de Machado24 que parece bastante pertinente para
dizer do trabalho do psicólogo na perspectiva institucionalista e que ilumina a posição
que assumo em relação a essa temática. Diz a autora que o psicólogo é aquele que
empresta seu corpo para o corpo institucional, é aquele que, desde a condição de
participante da organização, faz caber, forçando espaço para a multiplicidade da
existência. Nesta condição de emprestar seu corpo, o psicólogo cria prática na
organização, coloca-se junto e inclui, inaugurando possibilidades outras das formas já
conhecidas na tessitura das relações cotidianas. Entendo, então, que oferecer o próprio
corpo é topar o mau cheiro, o próprio medo, o desespero e o não saber. E, assim, levar a
cabo a ruptura, as recusas e aguentar sair do lugar do especialismo, mesmo que por meio
de fortes solavancos ou graças a eles.
Na tentativa de ampliar o sentido e os afetos que experimentei com as situações
narradas, especialmente com a de Danilo, volto ao ponto em que mencionei a sensação
de ter ficado paralisada frente às pequenas (grandes) recusas dos meninos. É que a dúvida
pode ser paralisante. Entretanto, a dúvida pode igualmente disparar uma ação que, por
sua vez, expressa a crença, crença na força presente naquele que interpela – Duvida?. Mas
quem interpela? Se pensarmos que é o sujeito Danilo, perdemos a força de vista, então
perguntamos de novo: quem interpela? E respondemos: a vida. Essa é a força. E diante
da vida, desta força que busca escapar de tudo que a aprisiona, alguns paralisam, outros
agem. Mas não se trata dos sujeitos, porque a vida não interpela os sujeitos, mas a força
de vida que atravessa cada sujeito sem lhes pertencer. Os que paralisam e os que agem
sentem igualmente o movimento da vida como algo que os ultrapassa, não se esgotando
neles, nos sujeitos constituídos.
A vida sempre interpela a vida; é primeiro com a vida que nos implicamos: com
sua expressão singular. E há sempre mil e uma maneiras de responder segundo as
singularidades em jogo, porque até naquilo que paralisa, há vida, há movimento.
É agarrar pelas pernas.

24
Essa expressão foi oferecida no encontro de orientação da pesquisa, em 2016, em que eu e Adriana
discutíamos as implicações e a sustentação da prática do psicólogo nas situações narradas.

107
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo as formalizações de um trabalho acadêmico, a última seção é


comumente intitulada de “Considerações finais”. Ainda sob efeito de uma sentença que
atravessou o conteúdo desta dissertação, embora explicitada em apenas um momento,
encaminharemos este estudo para o seu suposto final: “A palavra não representa, ela
produz acontecimento” (MACHADO, 1996, p. 16). Esta talvez tenha sido uma das ideias
mais impactantes com a qual pudemos entrar em contato ao longo da realização desta
pesquisa.
Ampliando essa premissa sobre a palavra, entendemos que pôr uma ideia no
mundo é produzir algo no mundo, é produzir o mundo onde está, poder existir. Estamos,
então, sempre sendo convocados, pois o dizer é um fazer, e exige a tomada de posição.
Assim, a aposta nesta ideia nos convida a pensar nas palavras, na escolha delas, o que
fazemos e o que queremos com elas. Convoca, então, uma tomada de posição da nossa
parte que aparece juntamente com o dizer- fazer.
Por essa razão, aproveitar o espaço das últimas considerações, oferecido na
estrutura de um trabalho acadêmico, para redizer o que já foi dito e, desta forma, refazer
o que já foi feito, parece-nos um despropósito. E, mais do que isso, sugere um vacilo na
posição que viemos sustentando: de que o dizer-fazer, necessariamente, são produtores
de efeitos. Assim, contamos com o fato de que os efeitos já se produziram com o que foi
dito até aqui e, por esse motivo, mais interessante seria falar daquilo que aconteceu, afetou
e nos fez viver o processo de escrita. Retomando a apropriação desta força do dizer,
buscaremos encerrar em consonância com o princípio que guiou a escolha da narrativa
como estratégia utilizada para a apresentação do campo prático: a potência da ruptura e a
escrita como intervenção.
Assim, aproveitaremos o que pôde ser apreendido de alguns atores e autores com
os quais trabalhamos ao longo desta dissertação, aqueles que recusaram ignorar os efeitos
das palavras que enunciaram ou que escutaram. Diremos do nosso percurso em assumir
uma posição, da elaboração da escrita e de questões que nos atravessaram. Diremos do
processo.
Perceber que escrever sobre algo, alguém ou uma situação implica a tomada de
uma posição é dar-se conta de um domínio nada simples de exercer ou pôr em prática.
Isso porque, como dissemos, assumir a voz e a escrita é oferecer algo. É, também, intervir

108
no mundo, inevitavelmente, indicando possibilidades e fortalecendo tendências que
necessitam ser pensadas.
Concordamos com a análise que Marazina (2015) apresenta sobre a distinção entre
a técnica aplicada na intervenção e aquilo que a sustenta efetivamente. Para a autora, que
se pronuncia a partir de uma perspectiva institucionalista, “a possibilidade técnica do bom
fazer se coloca em segundo lugar em relação ao que sustenta uma intervenção: a vontade
política” (MARAZINA, 2015, p. 22, grifo da autora). A intervenção desprovida de sua
dimensão política tende à especialidade técnica somente, limita-se à boa intenção, ao bom
fazer, como destaca a autora.
Pensar a intervenção a partir de uma dimensão política é recusar-se a deixar de
fora a própria posição diante das convocações sociais e dos atravessamentos
institucionais, econômicos e históricos a que todos estamos sujeitos. É refletir sobre os
efeitos que se produz no campo interventivo quando se faz, e mais, é esmiuçar elementos
que direcionam o fazer, aquilo que nos sustenta na ação. Portanto, realizar uma
intervenção é pôr em análise, também, as próprias implicações com o campo social que
engendram a prática.
Escrever e refletir sobre a posição que se ocupa está diretamente ligado à ideia de
apropriar-se do que aconteceu e narrar. Exige analisar as escolhas, dedicar-se às
precauções e comprometer-se com rigor com aquilo que se passou na experiência. É, em
outras palavras, deixar-se afetar pelo que foi vivido e implicar-se com o que será narrado,
segundo uma posição, autorizando-se a dizer algo somente a partir deste lugar.
Na escrita das narrativas compreendemos melhor o que significa assumir uma
posição de produção de efeitos ao colocar algo no mundo. Oferecemos algo ao outro –
aqui representado pelo leitor e pelos agentes das situações que ficcionamos –, e, nessa
oferta, estão presentes dois elementos pelo menos. O primeiro corresponde ao perigo de
acorçoar o movimento de uma engrenagem hegemônica que padroniza, homogeneíza e
naturaliza as produções históricas – funcionamento que muito se manifesta na escola. O
segundo corresponde à oportunidade de interromper ou, pelo menos, criar um novo ritmo
para a marcação do movimento desta mesma engrenagem, uma abertura.
Preocupamo-nos muito com o perigo e buscamos destacar as oportunidades de
abertura, mesmo que a possibilidade fosse dizer de um contratempo cintilante no
funcionamento escolar, que se apresenta, supostamente, fechado e completo. Tal
possibilidade foi percebida como viável quando retomamos as vivências experimentadas
no cotidiano de trabalho na escola; quando reconhecemos as pequenas-grandes recusas,

109
os acontecimentos que abarrotam, muitas vezes silenciosamente, o cotidiano escolar. É
na tensão entre o perigo e as oportunidades de abertura que encaminhamos nosso
percurso.
Reconhecemos que, inicialmente, dizer da escola por meio dos alunos nos
preocupava, porque, como mencionamos, o perigo de tender para uma forma hegemônica
de justificar os problemas nos processos de escolarização está sempre lá, marca presença.
Responder e encerrar a busca sobre as causas e razões dos conflitos que irrompem o
cotidiano vivido na escola no funcionamento individual dos alunos é uma alternativa
tentadora e já dada para explicar o que escapa do esquema programado. Afinal, os ideais
que ditam o certo, o adequado, o normal, o adaptado, estão bastante distantes dos
acontecimentos na escola, e não é necessário muito esforço para colar na ideia de que
aspectos da personalidade, da cognição e das relações familiares influenciam e
prejudicam a interação estabelecida pelos sujeitos em suas vidas.
Na escola e no mundo, concretamente, os sujeitos são o que são – processos de
produção e efeitos – e, inclusive, sua existência se dá na relação com a padronização
daquilo que foi produzido como o que seria o correto, o esperado. No perigo de tender
para uma forma hegemônica, uma questão se apresentou: o que e como dizer do campo?
De que forma seria possível trabalhar com as situações trazendo elementos que não
fortalecessem os binarismos e as dicotomias?
Se produzir algo em consonância com a engrenagem instituída era para nós
inaceitável, o perigo de fazê-lo não deixava de existir no interior do pensamento crítico
e, mesmo que de maneira sutil, poderíamos repetir, sem perceber, o que marcou a história
do encontro da Psicologia com a escola e, assim, fortalecer um certo funcionamento
institucional que produz os efeitos de padronização, patologização e naturalização nas
relações escolares.
Entretanto, sem que fosse possível perceber, o receio de dicotomizar o que é
manifestado no contexto escolar criava um pano de fundo que sorrateiramente repetia o
funcionamento do qual tentávamos nos afastar; ou seja, buscávamos encontrar uma forma
certa, adequada de falar da escola. E, ao mesmo tempo, condenávamos como errada e
inadequada uma outra forma. Foi então que percebemos concretamente, em nós, o
binarismo que compunha o pensamento sobre o campo escolar.
Ora, dizer que uma certa vertente que formaliza a crítica sobre a escola é mais
adequada que uma outra é afirmar uma operação de comparação, de oposição e predileção
de uma característica que nos agrada, na qual é mais fácil nos reconhecermos. A crítica

110
apresentada desta forma seria extremamente totalitária. Falar dos alunos, neste início,
então, não era possível.
Pensando nos perigos em relação àquilo que iríamos oferecer, outra alternativa foi
sendo considerada: a de dizer estritamente da atuação psi, aspectos da prática cotidiana
na escola e as suas implicações. Entretanto, investindo nesta ideia e produzindo os textos
que compõem o referencial teórico, percebemos que dizer estritamente da prática psi seria
descolá-la das relações, recortá-la do funcionamento que, certamente, a engendrou. Por
aí, também, não seria viável, muitos elementos seriam postos entre parênteses.
O limite desta estratégia ficou bastante claro: não faria sentido pensar nas
contribuições e ferramentas do institucionalismo e da Análise Institucional para apoiar a
escrita de algo que se constituiria de uma forma asséptica e, portanto, abstrata. Mais do
que falta de sentido, esta estratégia se mostrou impossível, pois não há como considerar
a prática separada das lógicas institucionais apontadas pela perspectiva escolhida para nos
guiar. Nesse momento talvez tenha sido mais fácil reconhecer que algo não estava sendo
acessado e que só a pesquisa poderia nos fazer acessar. Nos faltava assumir, habitar e
reencontrar a intensidade que inaugurou o desejo de escrever sobre a vivência no
cotidiano de uma escola. Os afetos, as dificuldades e tudo que pudemos aprender com
aquela experiência.
Caminhando por diferentes direções, deparando-nos com limites e insuficiências
das formas conhecidas, retomando os materiais25 e percebendo o esforço dos autores
institucionalistas em empenhar a força política na escrita daquilo que defendiam,
começamos a vislumbrar uma direção e a construir a nossa estratégia.
Reconhecer essas tendências se apresentando concretamente em todo o percurso
de escrita foi o que nos impulsionou e dirigiu26 as escolhas daquilo que gostaríamos de
dizer, o que nos interessava produzir com esta dissertação. Perceber o perigo de
reproduzir e fortalecer o que estávamos tentando colocar em questão guiou a escolha das
leituras, oferecendo uma oportunidade de inventar algo que pudesse romper com o que já
está posto ao pensar na relação entre a Psicologia e a escola.
É fato que a vivência de trabalho na escola aconteceu em um tempo anterior à
escrita da dissertação. Tal condição direciona uma ordem: dizer do que já se passou. Tudo

25
Referimo-nos aqui às anotações, diários, agendas, relatórios e registros que temos da época em que o
trabalho na escola aconteceu.
26
Incluímos as contribuições de Isabel Marazina e Marie Claire Sekkel no exame de qualificação. Ambas
chamaram a atenção para a necessidade de assumir uma posição na escrita, o cuidado com a clareza e
esclarecimento daquilo que estávamos produzindo na pesquisa.

111
que fosse elaborado e analisado não poderia ser posto à prova no campo. A partir desta
circunstância, optamos por aproveitar a experiência de convívio no cotidiano escolar para
levantar alguns elementos que proporcionassem um exercício de pensamento sobre as
relações que se estabelecem na escola.
Comprometemo-nos com a questão de como referir a experiência dando relevo às
lógicas institucionais que atravessam as relações vividas no cotidiano escolar trazendo à
baila a disputa de forças instituídas e instituintes. Para nós, dizer da prática só serviria se
fosse para trazer esta perspectiva, esse jogo que não cessa e que, necessariamente,
engendra diferentes movimentações no funcionamento da escola.
A aproximação dos textos escritos pelos psicanalistas argentinos foi fundamental
neste caminho que começava a se abrir. Marie Langer, Armando Bauleo, Frida Zmud e
Gregório Baremblitt nos ofereceram a possibilidade de sustentar uma posição política que
põe em questão o território habitado. Neste sentido, o estudo do Movimento
Institucionalista e da Análise Institucional nos serviu para compreender o campo como
uma disputa constante, que é estruturado de uma certa forma e que justamente por esse
motivo apresenta brechas e rachaduras. Há na instituição sempre as duas vertentes: o
instituído e o instituinte.
A partir desta perspectiva, rompemos com a ideia de que os elementos instituídos
impossibilitam o aparecimento das forças instituintes e nos animamos em destacar o que
aparece e não mais aquilo que oculta. Ou seja, dedicamo-nos a buscar, na experiência
prática da escola, aquilo que potencializa a vida e não mais, como em um primeiro
momento, aquilo que mortificava as existências.
Foi nos alunos indisciplinados, bagunceiros, “problemáticos” que vimos a
possibilidade de transtornar toda ordem determinada na organização escolar: os lugares,
os saberes e os fazeres. O que eles causam? O que eles dizem? O que eles fazem de nós?
Desta maneira, nossa posição se consolidou no momento em que entendemos que
dizer do outro é uma oportunidade de dar visibilidade e afirmar (com os meninos) que as
brechas existem, que as rupturas se apresentam e criam tensão. Isto porque, Gabriel,
Marcos e Danilo agem, produzindo as brechas no funcionamento que se supõe fechado e
completo.
É na compreensão do rachado, do rompido e do bagunçado que as forças de
criação são possíveis, pois as ideias tidas como verdadeiras e irrefutáveis são
questionadas. Entendemos que as possibilidades do fazer psi no campo escolar podem

112
apontar essa direção, iluminar a disputa entre o que se apresenta, a ideia que se tem do
que se apresenta e o modo como se apresenta.
Portanto, comprometer-se com os efeitos que se produz é uma condição
fundamental para exercer uma prática política na escola. Muitas vezes o esforço está em
aguentar as situações que desorganizam todos os lugares e escancaram os limites do nosso
saber, deixando-nos completamente envoltos pela dúvida e pela incerteza, pelo não saber.
Colocar-se como parte do campo é, então, oferecer o próprio corpo para alargar a brecha
que age e que nos mostra o que está em jogo.
Para nós, a prática do psicólogo na escola implica topar com as pequenas-grandes
recusas, é entrar na relação, no mínimo, com o que entraram e entram Gabriel, Marcos e
Danilo... e tantos outros no cotidiano escolar. É entrar com a implicação, é fazer
multiplicidade, operar pela desordem, dar vez à existência. É seguir pelos caminhos
acompanhando os baderneiros naquilo que os torna cavaleiros da própria luta que,
disputando com a ordem que silencia, assujeita e subjuga, fazem ver, existem.

Acreditar na existência dourada do sol


Mesmo que em plena boca nos bata o açoite contínuo da noite
Arrebentar a corrente que envolve o amanhã

Despertar as espadas, varrer as esfinges das encruzilhadas


Todo esse tempo foi igual a dormir no navio
Sem fazer movimento, mas tecendo o fio da água e do vento

Eu baderneiro me tornei cavaleiro, malandramente, pelos caminhos


Meu companheiro tá armado até os dentes
Já não há mais moinhos como os de antigamente

(João Bosco e Aldir Blanc. O Cavaleiro e os moinhos)

113
REFERÊNCIAS

ADOINO, J.; LOURAU, R. As pedagogias institucionais. São Carlos, SP: Rima, 2003.

ALTOÉ, S. (Org.) Analista Institucional em Tempo Integral. São Paulo: Hucitec,


2004.

ALTOÉ, S. René Lourau: a Análise Institucional como cultura e generosidade.


Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 298-302, 2007. Disponível em:
<http://ww.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/download/128/pdf_115
+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 15 dez. 2015.

BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e


prática. 5. ed. Belo Horizonte: Instituto Félix Guatarri, 2002.

______. (Org.). Grupos: teoria e técnica. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal; Ibrapsi, 1986.

______. Ecletismo, sim, banalidade, não. Jornal PSI, ano 17, n. 105, maio/jun. 1997.

BARROS, R. B. Grupo: a afirmação de um simulacro. 3. ed. Porto Alegre: Sulina/Ed.


da UFRGS, 2013.

______. Institucionalismo e dispositivo grupal. In: ALTOÉ, S.; RODRIGUES, H. B. C.


(Orgs.). SaúdeLoucura - número 8: Análise Institucional. São Paulo: Hucitec, 2004. p.
65-79.

BARROS, R. B.; PASSOS, E. Por uma política da narratividade. In: PASSOS, E.;
KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-
intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 150-171.

BAULEO, A. Plataforma ou história de um projeto. In: LANGER, M. (Comp.).


Questionamos 2: psicanálise institucional e psicanálise sem instituição. Belo Horizonte:
Interlivros, 1977. p. 17-23.

______. Marxismo e Psicanálise. In: LANGER, M. (Comp.). Questionamos: a


Psicanálise e suas instituições. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.

CARVALHO, J. S. F. A produção do fracasso escolar: a trajetória de um clássico.


Psicologia USP, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 569-578, 2011.

114
CASTANHO, P. Uma introdução aos grupos operativos: teoria e técnica. Vínculo,
Revista do NESME, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 1-60, 2012.

COIMBRA, C. M. B. Práticas de estranhamento, indignação e resistência. Psicologia


USP, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 579-586, 2011.

DECLARAÇÃO Grupo plataforma Argentino. Disponível em:


<http://milnovecientossesentayocho.blogspot.com.br/2015/05/grupo-plataforma.html>.
Acesso em: 16 jun. 2016.

DIAS, R. M.; PASSOS, E.; SILVA, M. M. C. Uma política da narratividade:


experimentação e cuidado nos relatos dos redutores de danos de Salvador, Brasil.
Interface, Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 20, n. 58, p. 549-558, 2016.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v20n58/1807-5762-icse-1807-
576220150342.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2016.

DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de


Janeiro: Ed. 70, 1966.

EIZIRIK, M. F. Dispositivos de inclusão: Invenção ou espanto? In: BAPTISTA, C. R.


Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação, 2009. p. 31-
41.

FERNANDES, P. J.; DUARTE, M. G. S.; RODRIGUES, H. C. B. Breve história do


Grupo Plataforma Argentino. In: JACÓ-VILELA, A. M.; CEREZO, A. C.;
RODRIGUES, H. B. C. (Org.). Clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do
Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Faperj, 2001.

______. Os psicanalistas argentinos no Rio de Janeiro: problematizando uma


denominação. In: JACÓ-VILELA, A. M.; CEREZO, A. C.; RODRIGUES, H. B. C.
(Org.). Clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro:
Relume Dumará; Faperj, 2001.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso Collège de France (1975 – 1976).


São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. Microfísica do poder. 11 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

115
______. O poder e a norma. In: KATZ, C. (Ed.). Psicanálise, poder e desejo. Rio de
Janeiro: Ibrapsi, 1979. p. 46–54.

GAUER, R. M. C. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto


Alegre: Ed. da PUC, 2009.

GUIRADO, M. Temas básicos de Psicologia: Psicologia Institucional. São Paulo: EPU,


1986.

HECKERT, A. L.C. A escola como espaço de invenção. In: JACÓ-VILELA, A. M.;


CEREZO, A. C.; RODRIGUES, H. B. C. (Org.). Clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi
na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Faperj, 2001.

HESS, R. Biografia Georges Lapassade (1924-2008). Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 4,


n. 2, p. 243-267, 2008. Disponível em:
<http://www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/155/pdf_141>.
Acesso em: 20 jun. 2016.

______. O movimento da obra de René Lourau (1933-2000). In: ALTOÉ, S. (Org.).


Analista Institucional em Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004.

JACÓ-VILELA, A. M.; CEREZO, A. C.; RODRIGUES, H. B. C. (Org.). Clio-Psyché


hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Faperj,
2001.

KESSELMAN, H. Plataforma Internacional: Psicanálise e Anti-imperialismo. In:


LANGER, M. (Comp.). Questionamos: a Psicanálise e suas instituições. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1973.

L’ABBATE, S. Análise Institucional e saúde coletiva: uma articulação em processo. In:


L’ABBATE, S.; MOURÃO, L. C.; PEZZATTO, L. M. (Orgs.). Análise Institucional &
Saúde Coletiva. São Paulo, SP: Hucitec, 2013. p. 31-88.

______. Análise institucional e residência médica em medicina preventiva e social em


Campinas (SP): a relevância da implicação na prática residente. In: L’ABBATE, S.;
MOURÃO, L. C.; PEZZATTO, L. M. (Orgs.). Análise Institucional & Saúde Coletiva.
São Paulo: Hucitec, 2013. p. 386-411.

______. O analisador dinheiro em um trabalho de grupo realizado num hospital


universitário em Campinas, São Paulo: revelando e desvelando contradições

116
institucionais. In: ALTOÉ, S.; RODRIGUES, H. B. C. (Orgs.). SaúdeLoucura -
número 8: Análise Institucional. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 79-101.

LANGER, M. (Comp.) Questionamos: a Psicanálise e suas instituições. Petrópolis, RJ:


Vozes, 1973.

______. (Comp.). Questionamos 2: psicanálise institucional e psicanálise sem


instituição. Belo Horizonte: Interlivros, 1977.

LAPASSADE, G. Grupos, Organizações e Instituições. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1983.

LARROSA, J. B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira


de Educação, n. 19, jan./fev./mar./abr. 2002.

LOURAU, R. A Análise Institucional. 2. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

______. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOÉ, S. (Org.) Analista Institucional em


Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 186-198.

______. Objeto e método da Análise Institucional. In: ALTOÉ, S. (Org.). Analista


Institucional em Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 66-86.

______. O campo socioanalítico. In: ALTOÉ, S. (Org..) Analista Institucional em


Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 224-245.

______. O instituinte contra o instituído. In: ALTOÉ, S. (Org.). Analista Institucional


em Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 47-65.

______. Pequeno manual da Análise Institucional. In: ALTOÉ, S. (Org.). Analista


Institucional em Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 122-127.

______ René Lourau na UERJ: Análise Institucional e Práticas de Pesquisa. Rio de


Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993.

______ Sociólogo em tempo inteiro: Análise Institucional e Pedagogia. Lisboa:


Estampa, 1979.

117
______. Uma apresentação da Análise Institucional. In: ALTOÉ, S. (Org.). Analista
Institucional em Tempo Integral. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 128-139.

MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. R. (Orgs.). Psicologia Escolar: em busca de novos


rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

MACHADO, A. M. Crianças de classe especial: efeitos do encontro entre a saúde e a


educação. 2. ed. São Paulo: Casa Do psicólogo, 1994.

______. Educação inclusiva: de quem e de quais práticas estamos falando? In:


BAPTISTA, C. R. Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre:
Mediação, 2009. p. 127-134.

______. Reinventando a avaliação psicológica. 1996. Tese (Doutorado em Psicologia)


- Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.

MARAZINA, I. V. Pensando sobre o operador intervenção. Vínculo, Revista do


NESME, v. 12, n. 1, p. 19-23, 2015.

MATOS, O. C. F. Paris 1968 as barricadas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense,


1989.

MOYSÉS, M. A. A; COLLARES C. A. L Inteligência abstraída, crianças silenciadas: as


avaliações de inteligência Psicologia USP, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 63-89, 1997.
Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641997000100005>.
Acesso em: 15 maio 2016.

OLIVEIRA, I. B. O cotidiano da sala de aula: compreendendo e enfrentando problemas


e buscando soluções. In: SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação.
Coordenadoria Pedagógica. Núcleo de Apoio e Acompanhamento para Aprendizagem.
Caderno de debates do NAAPA: questões do cotidiano escolar. São Paulo:
SME/COPED, 2016. p. 19-34. Disponível em:
<http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/27154.pdf>. Acesso em: 20 jun.
2016.

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia.


São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

118
______. Exercícios de Indignação: escritos de educação e Psicologia. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2005.

______. Introdução à Psicologia Escolar. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

______. Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar. São Paulo:
T. A. Queiroz, 1984.

PEREIRA, W. C. C. Movimento Institucionalista: principais abordagens. Estudos e


Pesquisa em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 10-19, abr. 2007. Disponível em:
<www.revispsi.uerj.br/v7n1/artigos/html/v71a02.htm>. Acesso em: 14 dez. 2015.

PINTO, J. A. C. França: lutas sociais anticapitalistas no maio de 1968. Revista Espaço


Acadêmico, n. 85, p. 1-5, 2008. Disponível em:
<http://www.espacoacademico.com.br/085/85pinto.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2016.

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo


Horizonte, MG: Autêntica, 2002.

ROCHA, M. L. Educação em tempos de tédio. In: TANAMACHI, E.; PROENÇA, M.;


ROCHA, M. (Orgs.). Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos. 2. ed. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. p. 185-208.

RODRIGUES, H. B. C.; ALTOÉ, S. (Orgs.). Saúde e Loucura: Análise Institucional nº


8. São Paulo: Hucitec, 2004.

RODRIGUES, H. B. C., LEITÃO, M. B. S., BARROS, R. D. B. (Orgs.). Grupos e


Instituições em Análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

RODRIGUES, H. B.C. A análise institucional e a profissionalização do psicólogo. In:


SAIDON, O.; KAMKHAGI, V. R. (Orgs.). Análise institucional no Brasil. Rio de
Janeiro: Espaço e Tempo, 1987. p. 17-35.

______. Direitos Humanos e Intervenção Clínica. In: Psicologia, Ética e Direitos


Humanos/Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de
Psicologia. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia, 1998. p. 65–89.

119
______. Notas sobre o paradigma institucionalista. Preâmbulo político-conceitual às
aventuras de ‘sócios’ e ‘esquizos’ no Rio de Janeiro. Transversões, Escola de Serviço
Social da UFRJ, Rio de Janeiro, n. único, p. 169-199, 1999.

ROSSI, A.; PASSOS, E. Análise Institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-


intervenção no Brasil. Revista EPOS, v. 5, n. 1, p. 156-181, 2014.
Disponível em:< http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epos/v5n1/09.pdf>. Acesso em 20 jan.
2016.

SANTOS, N. I. S. Movimento Institucionalista e Análise Institucional no Brasil. Revista


do Centro de Ciências Sociais e Humanas Santa Maria, Santa Maria, v. 15, n. 1, p. 55-
62, 2002. Disponível em:
<http://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/1220>. Acesso em: 15 fev.
2016.

SOUZA, M. P. R. A atuação do psicólogo na rede pública de educação: concepções,


práticas e desafios. tese (Livre Docência) – Departamento de Psicologia Escolar e
Desenvolvimento Humano - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2010.

VICENTIN, M. C. Criançar o descriançável. Caderno de debates do NAAPA: questões


do cotidiano escolar. p. 35-44, São Paulo: SME/COPED, 2016. Disponível em:
< http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/27154.pdf>
Acesso em 20 jun. 2016.

WUO, M. Aids na escola: os contextos e as representações sociais de estudantes do


Ensino Médio. PUC- Camp., SP, Tese de Doutorado, 2003.

120

Você também pode gostar