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lobatiana. No terceiro capítulo, em que procura dar Ismail Xavier, O olhar e a cena: melodrama,
base a essa visão a partir da leitura dos textos, por ve- Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São
zes Passiani recorre a qualificações do tipo “lingua- Paulo, Cosac & Naify, 2003, 384 pp.
gem exata”,“texto enxuto”,“texto que leva o leitor
à reflexão”, as quais sugerem certo desequilíbrio en- Sergio Mota
tre a visada sociológica e a literária, além de uma de- Professor do Departamento de Comunicação Social
fesa talvez exacerbada de seu objeto de análise. Essa da PUC-Rio
mesma defesa aparece nos trechos em que analisa o
confronto entre Lobato e Anita Malfatti, deflagrado Há quem acredite que o cinema pode ser um lugar
pelo conhecido artigo “Paranóia ou mistificação?”, de revelação, de acesso a uma verdade por outros
de 1917. Com base no trabalho de Tadeu Chiarelli, meios inatingível. Dentro do projeto de revelação
Passiani lembra que Lobato não era um crítico ama- do mundo para o olhar, toda leitura de imagem é
dor, mas um dos mais talhados analistas de artes plás- produção de um ponto de vista. É quase impossível
ticas de sua época, e que a reação dos modernistas a conceber uma cultura submetida ao olhar em que a
esse artigo só adquiriu grande proporção em razão visão não detenha prioridade. Por exemplo, ao ele-
da importância que atribuíam ao criador do Jeca ger a visibilidade como proposta para este milênio,
Tatu. Mas não discute, por exemplo, o possível pre- Italo Calvino afirma que não se pode correr o risco
conceito contra os imigrantes que poderia animar a de perder “a capacidade de pôr em foco visões de
invectiva de Lobato, hipótese que Sergio Miceli le- olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de
vanta em seu Nacional estrangeiro e que, num estudo um alinhamento de caracteres alfabéticos negros
detalhado e bem fundamentado como o de Passiani, sobre uma página branca, de pensar por imagens”.
mereceria atenção pormenorizada. Para o escritor italiano, a experiência contemporânea
Note-se, ainda, que a publicação do livro do so- é pressionada por um acúmulo de imagens sucessivas
ciólogo envolve um paradoxo curioso: o trabalho que não conseguem se sustentar por si mesmas, di-
ganhou o prêmio de melhor dissertação de mestrado luindo-se antes de adquirir consistência na memó-
no concurso CNPq-Anpocs de 2002. O selo da pre- ria daquele que vê. O que confere à visibilidade
miação é impresso de modo ostensivo na capa do estatura de proposta é, justamente, a capacidade de
livro, assim como, no prefácio, são reiteradas as refe- ser um meio transparente, através do qual a realida-
rências ao trabalho de fôlego do jovem sociólogo, de se apresenta à compreensão. Sem contar que, quan-
que “anuncia um projeto de vida intelectual de en- do Calvino elege a visibilidade como um valor lite-
vergadura” e “ultrapassa as expectativas firmadas”. É rário a ser preservado, não a situa no campo da vi-
como se, no limite, a chancela da instância de consa- são, mas no da imaginação.
gração representasse ao mesmo tempo uma reco- Vive-se hoje um mundo dominado de todos os
mendação e uma ressalva. Como se estivéssemos lados pelas imagens, e esse excesso impõe novos re-
diante de um trabalho excepcional para o início de pertórios visuais, ao lado de uma idéia recorrente
carreira, e não simplesmente de uma ótima pesquisa. que afirma que tal saturação imagética contribui para
Feitas as contas, é disso que se trata: de um livro uma “falha” no aprendizado do ver. Assim, a questão
de primeira linha, mais uma fonte da qual não pode- que se desenha é: de que forma a cena do mundo
rão fugir os estudiosos de Lobato e do modernismo. pode ser codificada diante de uma multiplicação
infinita de imagens? No que diz respeito ao olhar, é
possível alguma pedagogia que auxilie na apreensão

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desse mundo saturado, em que tudo se dá ou se põe trução ilusionista de impacto visual, cuja conse-
a ver? Os teóricos pós-modernos revelam que a su- qüência imediata provoca no herói melodramático
perabundância induz a um estado de desorientação estados emocionais reveladores que jamais se alojam
no qual a percepção não se preocupa se as imagens no meio do caminho, em pontos intermediários. É
reproduzem ou não o mundo, na discrepância entre justamente o melodrama o responsável por fornecer
imagens e realidades, olhar e cena, entre significan- a esse espectador desorientado pelos níveis de acele-
tes e significados. Convertidos em meros produtos ração advindos da Revolução Industrial uma espécie
de entretenimento, os signos podem deixar de apon- de cartilha da moralidade (um mundo que ainda
tar para um mundo de diferenças e de novas possi- tem espaço para reconciliações, conforme afirmou o
bilidades e criar a simples vertigem da representa- crítico em outra ocasião).
ção, para espectadores reais e virtuais (ver, nesse sen- Nessa delimitação das relações entre melodrama
tido, o livro Paisagens urbanas, de Nelson Brissac e cinema, Xavier reconhece que o melodrama, após
Peixoto). a Revolução Francesa e durante o século XIX, fun-
A importância que a imagem e a visualidade cionou como uma espécie de motor que impulsio-
vêm assumindo na epistemé moderna e a existência nou as origens do cinema (e, mais tarde, da televi-
de um alhures do espetáculo são investigações de O são), alimentando-o de enredos rocambolescos, de
olhar e a cena, de Ismail Xavier. Com o olhar arguto sentimentalismos e moralismos centrados no inevi-
que lhe é peculiar, o crítico arregimenta temas e fil- tável maniqueísmo, representados por atores que ti-
mes basilares da cinematografia mundial e nacional, nham na grandiloqüência e no exagero da forma
a fim de demonstrar os liames que sustentam as rela- sua principal marca. Dentro dessa perspectiva, o li-
ções entre a estrutura do drama, o lugar da cena e o vro de Ismail Xavier não deixa de ser uma historio-
papel do espectador no cinema diante da oferta de- grafia de um certo tipo de olhar que encontra no
senfreada de imagens. Em um primeiro momento, a naturalismo engendrado pela cena burguesa do sé-
sondagem teórica de Xavier passa, obrigatoriamen- culo XVIII uma aceitação tácita da ilusão. Nesse tipo
te, pela delimitação do lugar do melodrama teatral de drama, a cena se revela um lugar de autonomia
no cinema que nascia com o século XX. Resultado que não dá conta do olhar que o espectador, em
imediato de uma época marcada pela inconstância e outra instância, lança sobre ela. Reproduzir na cena
por precários índices de estabilidade (o século o mundo tal como ele se apresenta é tarefa ensinada
XVIII), a estrutura melodramática apresentou ao es- pelo Iluminismo. Nesse sentido, a cena ganha auto-
pectador a inversão desse estado de coisas. No lugar nomia pela naturalidade que sua representação en-
de uma instabilidade permanente a reboque do de- cerra e deve ser um espaço discreto, sem o uso de
senvolvimento capitalista, um universo codificado, aparentes artifícios e gestos que prejudiquem tal acei-
sem riscos, facilmente reconhecido e estruturado tação incondicional.
com rigidez, dentro de valores que se opunham na Nesse percurso crítico, é o cinema clássico o her-
simplificação de duas instâncias: o bem e o mal. Nes- deiro do lugar ocupado pelo espectador, principal-
sa rígida estrutura encontra-se, portanto, uma tam- mente pelo fato de que o dispositivo cinematográfi-
bém rígida dualidade (dicotômica, na visão de co inaugura um deslocamento importante em rela-
Xavier) e uma irremediável oposição na qual não há ção à estrutura teatral. Com o cinema, a imagem que
possibilidade de conciliação por parte dos persona- ocupa o lugar do espectador revela um espaço que se
gens. Em sua pesquisa, o crítico reconhece que tais organiza à revelia dele, dentro de uma dimensão ter-
experiências estabelecem um jogo com uma cons- ceirizada (porque externa) engendrada pelo olhar

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da câmera. O que se revela diante desse olhar, princi- comum pós-freudiano no Brasil, que passa a legiti-
palmente em relação aos dispositivos de representa- mar novas estratégias morais de inspiração humanis-
ção, é um mundo que apresenta um retrato fiel da ta. Xavier, em uma leitura precisa, identifica os es-
realidade, mais que uma instância de “naturalismo”, quemas melodramáticos de tais objetos e revela de
encenado como tal, para garantir a identificação do que maneira, principalmente em Anos dourados, apa-
espectador com a cena descrita que se amalgama rece uma certa modernização que conserva a estru-
com a vida. Como resultado imediato, olhar do es- tura do melodrama clássico, o que responde, por um
pectador e olhar da câmera são faces da mesma moe- viés conciliatório, à crise do modelo patriarcal.
da e parceiros nessa astúcia da representação.“A pro- Apesar de ser uma coletânea de textos publica-
jeção da imagem na tela consolidou a descontinui- dos em ocasiões distintas, impressiona o fato de o li-
dade que separa o terreno da performance e o espaço vro não cometer, em nenhum momento, o pecado
onde se encontra o espectador, condição para que a irreparável da falta de conjunto, comum nesses casos.
cena se dê como uma imagem do mundo que, deli- A mudança da transitoriedade de textos dispersos
mitada e emoldurada, não apenas dele se destaca mas, para a durabilidade do livro é relevante para se anali-
em potência, o representa”, define o crítico, na tenta- sar até que ponto uma reunião de ensaios pode per-
tiva de compreender a logística dessa nova forma de der o foco e a objetividade. Não é o caso de O olhar e
representação arregimentada pelo cinema. a cena, dono de uma unidade evidente que enfeixa
Essa estratégia da construção da cena como seus artigos e se ramifica por suportes teóricos dife-
imago mundi ou como microcosmo privilegiado, renciados: uma reflexão a respeito dos desdobra-
para fins de ilusionismo (algo como afirmar que o mentos do melodrama em diferentes canais de re-
espectador faz parte da cena e com ela se confunde presentação, uma tentativa de colocar em xeque “os
ou identifica), é habilmente demonstrada por Xavier, problemas enfrentados na crítica dos filmes cuja in-
que disseca esses dispositivos de representação em terpretação se enriquece a partir do cotejo com for-
dois momentos modelares, representados por D. W. mas da encenação teatral herdadas pelo cinema” e,
Griffith (clássico do cinema norte-americano em principalmente, um estudo da maneira, na saturação
formação), que se serviu em excesso do modelo me- de imagens da indústria cultural e do produto de
lodramático, e Alfred Hitchcock, que superou ironi- massa, como os filmes analisados sobrepujaram (ou
camente tal estrutura, utilizando artimanhas meta- ratificaram) o viés ilusionista do cinema e das artes.
lingüísticas, para revelar uma outra logística do espe- Esse esqueleto teórico de um pensamento críti-
táculo (nesse sentido, valem o livro as análises de dois co irrefutável encontra sua apoteose na leitura que
filmes do diretor inglês, Vertigo e, principalmente, Ja- Xavier faz da obra de Nelson Rodrigues, o que ocu-
nela indiscreta). pa boa parte do livro e um módulo inteiro (“O ci-
Em um segundo momento, Ismail Xavier volta- nema novo lê Nelson Rodrigues”). O crítico exa-
se para a produção nacional, a fim de discutir estraté- mina as adaptações cinematográficas do autor de A
gias de atualização da matriz melodramática nas mi- falecida sob a perspectiva da transformação do país
nisséries de Gilberto Braga (Anos dourados e Anos re- nos últimos quarenta anos, o que faz, pelo menos
beldes). Interessa ao crítico, nesse momento, revelar os desse capítulo, uma reflexão de referência no campo
possíveis liames entre as formas do melodrama (e a dos estudos sobre esse autor. No cinema brasileiro,
persistência de tal modelo) e o realismo, e também nunca houve um escritor que tenha inspirado tan-
demonstrar, por outro lado, de que forma a televisão tos filmes como Nelson (cerca de vinte longas), en-
foi o agente que procurou constituir um certo senso tre 1952 e 1999. Como já havia feito com as produ-

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ções anteriores, Xavier reconhece os elementos o poder, o erotismo e a sedução, na esfera pública e
melodramáticos de tal dramaturgia e a forma com na vida privada”.
que o cinema se apoderou desse repertório de cri-
ses, que não permite retorno aos padrões nem dá
espaço para reconciliações, consoante revela o críti- Ruy Coelho, Tempo de Clima. São Paulo, Pers-
co nas leituras que realiza, entre outras, dos filmes pectiva, 2002, 142 pp.
Boca de ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, e
A falecida (1964), de Leon Hirszman, que procura- Fernando Antonio Pinheiro Filho
ram solucionar tensões entre a necessidade de cons- Doutor em sociologia pela USP, professor
trução realista e os textos de que partiram. Com a da USP e da FESPSP
intenção de fazer um balanço dessa produção cine-
matográfica, a análise reconhece que o momento Primeira navegação
mais produtivo desse conjunto de adaptações se deu A reunião dos escritos publicados por Ruy Coelho
quando houve uma clara intenção, na escolha de na revista Clima entre 1941 e 1944, ora editados em
tom e gênero, de, por meio dos filmes, radiografar o livro, dá ensejo não só à apreciação direta de seus
Brasil e produzir um extrato de diagnósticos que achados e eventuais deslizes na atividade crítica, como
revelam, principalmente nas obras adaptadas por permite também, de um viés mais sociológico, acom-
Arnaldo Jabor, as contradições do processo de mo- panhar o valor expressivo dos textos como marcos
dernização, com ares tragicômicos e alegóricos. dos posicionamentos do autor no interior do grupo
Na verdade, reconhecer o lugar que ocupa o es- de redatores da revista, desse grupo no campo da
pectador em relação à cena que se disponibiliza é, crítica de arte que pretendia reconfigurar e da in-
de certa forma, dentro de uma perspectiva históri- fluência de tal episódio no direcionamento das car-
co-social e estética, entender a natureza específica reiras intelectuais dos envolvidos. Nos limites desta
da experiência audiovisual como interface espaço- resenha, pretende-se alinhavar os últimos aspectos
temporal, em que se entrechocam o tempo das nar- mencionados, buscando atribuir à obra de estréia
rativas, a linguagem de imagens visuais e o sujeito seu peso específico no desenrolar da trajetória do
projetado nesse jogo, que não é apenas o sujeito do autor.
discurso fílmico, recurso interno do texto como re- Na divisão do trabalho intelectual entre o gru-
lação de enunciação. É, também, corpo social e his- po de jovens alunos da Faculdade de Filosofia da
toricamente em processo. Como afirma o próprio USP que funda a revista em 1941, Ruy Coelho é
crítico: “Para existir em sociedade, em especial no aquele que não tem uma função específica: para fi-
império do marketing e da competição, precisamos car no núcleo central, lembremos que Antonio Can-
criar a cena, estar disponíveis diante de um olhar dido trata de literatura, Paulo Emílio Salles Gomes
que nos toma como objeto, nos oferecer como es- de cinema, Décio de Almeida Prado de teatro; a Ruy,
petáculo, cumprindo os protocolos de sua geome- o mais jovem, coube o papel do curinga (conforme
tria e de seu desempenho. Há variadas formas dessa a expressão assumida pelo próprio) que, além desses
geometria e de seus componentes, lugares específi- temas, cuida ainda de erigir uma teoria da crítica,
cos de manifestação que se mesclam ao mundo prá- ligada em sua visão à filosofia e à estética, e via de
tico e se expandem sem fronteiras claras no dia-a- regra articulada com a análise substantiva das obras.
dia, no núcleo familiar, nos confrontos em socieda- É talvez essa ausência de uma determinação mais
de, em tudo que a crítica cultural já observou sobre específica, correlata à busca de um caminho pessoal,

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