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EDUCAÇÃO

O ensino pode ignorar

sua própria História?

Olavo de Carvalho
Revista Sala de Aula, ano 3 # 20 abril 1990
Não. Então por que a História da Educação só recebeu um espacinho de
nada no currículo de Habilitação, e no de Licenciatura nem isso?
Quando o legislador educacional não sabe o que fazer com uma disciplina, recorre ao
expediente de misturá-la com outra. Assim, a ditadura Médici uniu pelos laços do santo
matrimônio a Moral e o Civismo, sem se dar conta de que os cônjuges tinham certas
incompatibilidades mútuas, na medida em que o Civismo consiste em obedecer às leis e
costumes locais, e a Moral tem o dever de questioná-los em nome de princípios universais:
Sócrates foi um herói da moralidade justamente quando se opôs ao civismo grego.
O mesmo aconteceu com a História da
Educação: o currículo oficial de Habilitação para
o Magistério casou-se com a Filosofia. Pelo
critério, espontâneo e inevitável, do “dize-me
com quem andas e te direi quem és”, o
subtendido que ficava no ar diante desse enlace
era que existia afinidade entre os nudentes. Pode-
se, é claro, argumentar como o filósofo italiano
Benedetto Croce (1866-1952), que História é
Filosofia e Filosofia é História. Mas há filósofos
que dizem exatamente o contrário: que a
abordagem histórica não somente é inútil em
Filosofia, como prejudicial. E há, obviamente,
historiadores que proclamam ser a História uma
ciência positiva autônoma, que não deve
obediência à Filosofia. Enfim: o casamento não tinha razão suficiente; no meio da celebração,
já se elevavam os protestos.
O pior não era isso. Problemas conjugais todo mundo pode ter, mas quando se trata de um
casal brasileiro, surge logo a dificuldade de moradia: Filosofia & História da Educação, tão
logo unidas pela força das leis, foram espremidas juntas no 3.º ano do currículo, em quatro
horas semanais, não podendo espalhar-se nem para o antecedente, nem para o subseqüente.
Nesse exíguo Lebensraum (espaço vital) letivo deveria o professor iniciar os seus pupilos,
futuros educadores, nas questões fundamentais da Lógica, da Gnosiologia e demais disciplinas
filosóficas, bem como instruí-los quanto às idéias e práticas educacionais dos chineses, dos
gregos, dos maias e aztecas, da Idade Média Européia, do Renascimento, do Iluminismo e
assim por diante, e finalmente informá-los das sucessivas legislações e reformas da educação
nacional desde o desembarque do primeiro mestre-escola jesuíta até as recentes discussões
sobre ensino profissionalizante, democratização da escola, etc., etc.
“Impossível”, constata Nelson Piletti, professor assistente doutor da Faculdade de Educação
da USP, exibindo, consternado, a inabarcável lista de itens do programa.
Diante dessa evidência, uma recente proposta de reforma do currículo recomendou o divórcio
litigioso: Filosofia é Filosofia, História é História. Mas, quando chegou a hora da partilha dos
bens, seguiu-se à risca o princípio da sabedoria salomônica: das quatro horas semanais, cada
cônjuge ficou com duas. Divorciadas e empobrecidas, cada qual se retirou para o seu canto,
confirmando a sabedoria popular: “Ruim com ela, pior sem ela”.
Mas, antes ou depois do divórcio, o problema mais grave não era nem é apenas a exigüidade
do espaço: é o número de vizinhos que o disputam.
“O currículo de Habilitação tem um número excessivo de disciplinas”, afirma Piletti, “e por
isto falta tempo para as disciplinas essenciais, como História da Educação.”
O currículo, diz ele, insiste demais em disciplinas especializadas e detalhistas, como Técnicas
de Avaliação, Estatísticas, Tratamento de Deficiências da Linguagem, que poderiam ser dadas
em cursos posteriores e especializados. No todo, são 32 disciplinas:
“Quando se pulveriza o conhecimento a esse ponto, ninguém aprende nada. Além disto, não
há professores para todas essas matérias, e já vi escolas onde um único professor lecionava
dez delas.”
Se o excesso de moradores é o grande drama do curso de Habilitação, os currículos de
Licenciatura, por seu lado, resolveram o problema segundo uma interpretação mais radical do
princípio salomônico. Em vez de cortar ao meio a carga horária de Filosofia e História da
Educação, cortaram logo tudo de vez: não tem nem
Filosofia, nem História da Educação,
CURRÍCULO ADEQUADO
Enfim, o único lugar onde se pode estudar as duas
disciplinas, separadamente e cada qual com uma carga
horária razoável, é no curso de Pedagogia. Na USP,
por exemplo, há 240 horas de História da Educação
(correspondentes a oito cursos semestrais de 30 horas
cada, sendo cinco para História Geral da Educação e
três para História da Educação no Brasil), e há
igualmente um número decente de horas para a
Filosofia da Educação (150 horas).
No entanto, por mais que lutem, os professores ainda
não conseguiram nem inserir essas disciplinas no curso
de Licenciatura, nem instaurar no de Habilitação os
princípios do divórcio amigável com partilha justa.
Um currículo adequado para a formação de
professores deveria, segundo Piletti, escorar-se
firmemente nas disciplinas essenciais: Filosofia da Educação, História da Educação,
Sociologia, Psicologia e Didática. O resto viria em cursos especializados.
A História da Educação teria um lugar de destaque, principalmente por duas razões, diz ele:
“A primeira é que, se não acompanha a evolução histórica de um conhecimento, o futuro
educador simplesmente não entende o estado atual desse conhecimento. A segunda é que, ao
longo da História da Educação, todas as questões que foram sendo levantadas e discutidas
ainda são as que se discutem hoje em dia. O debate educacional ainda é o mesmo dos gregos”.
Mais enfático ainda é Ruy Afonso da Costa Nunes, professor aposentado de Filosofia e
História da Educação da USP e autor de uma extensa e documentada História da Educação
(já saíram quatro volumes e o trabalho prossegue em elaboração, sempre com base nos textos
originais dos grandes educadores):
“Endosso a opinião de Émile Durkheim, o fundador da Sociologia, para quem o estudo da
História da Educação é o melhor e principal meio de formação dos futuros educadores. Porque
na História não aparecem apenas as idéias gerais e as instituições que presidiam o ensino nas
várias épocas, mas também as ações reais dos educadores, na prática e no dia-a-dia”.
Para Ruy Nunes, “todas as outras disciplinas enfocam a Educação por ângulos especializados.
Até mesmo a Filosofia, por mais universal que seja, tem de se deter ao nível das questões
teóricas, como por exemplo a das finalidades da Educação. Somente a História abarca a
Educação como um todo teórico-prático, enfocando os vínculos entre as idéias e as ações”.
Somente através da História, diz Nunes, pode o futuro educador adquirir uma visão real do
seu status e do lugar do ensino na vida social.
Piletti e Nunes poderiam citar dezenas de filósofos em apoio de seus argumentos.
José Ortega y Gasset (1883-1955), por exemplo, insistia em que nada se compreende de uma
ciência tomando-a como um produto acabado e institucional, como uma coleção de verdades
prontas. “Dizemos que encontramos uma verdade quando achamos um pensamento que
satisfaz uma necessidade íntima previamente sentida por nós”, escrevia ele: “Se não nos sentimos
necessitados deste pensamento, ele não será para nós uma verdade. A precisa busca se acalma
no preciso achado: este é função daquela”. Em resultado, se o futuro educador não recapitula
em si mesmo a gênese e a formação dos problemas
– científicos, filosóficos, etc. –, capta apenas o que se
fala, mas não o de quê. Essa recapitulação, para
Ortega, se chama História: a revivescência não só
das ações, como dos motivos – sociais e pessoais.
Sem ela, toda disciplina fica no ar como um
conjunto de preceitos que caíram do céu ou
brotaram das árvores. Conhecer uma ciência desta
maneira, dizia Ortega, é adorar um fetiche.
E, se Piletti diz que “a História não é um museu de
idéias mortas, mas o instrumento para a
compreensão do presente”, Benedetto Croce ia mais
longe: “O homem, dizia ele, é um microcosmo, não
no sentido naturalístico, mas no sentido histórico: é
um compêndio da história universal”. Cada
indivíduo tem dentro de si, graças ao legado cultural
da própria sociedade em que se encontra, todo o
conjunto de possibilidades e alternativas que se
manifestaram nos outros homens e nos outros
momentos da História: na medida em que conhece a
estes, ele se conhece a si mesmo, e vice-versa. A História, para Croce, é mais que um
instrumento: é conhecimento de si, é tomada de posse do próprio poder de ação.
Isto quer dizer que o educador, ao estudar as idéias pedagógicas do passado e a sua prática no
quadro onde surgiram, conhece a um tempo as alternativas do presente, o quadro das
possibilidades já tentadas e extintas e as reservas ainda frescas que sobreviveram à passagem
do tempo. Sem esse conhecimento, corre o risco de reinventar a roda, ou, pior, de concebê-la
quadrada: “Aqueles que esquecem ou desconhecem o passado”, escreve Thomas Ransom
Giles no prefácio da sua História da Educação, “vêem-se obrigados a reviver, talvez, os
momentos mais nefastos desse processo”.
IDÉIAS E PRÁTICA
Ruy Nunes observa que alguns historiadores chegam a distinguir entre História da Pedagogia
(como história das concepções e ideais educacionais) e
História da Educação propriamente dita, isto é, História
da prática e do cotidiano do ensino. São estudos
distintos e complementares: não basta conhecer as
idéias, é preciso ver o seu poder e eficácia no quadro
de uma realidade social dada. É só aí que a História
mostra o seu benefício formativo sobre as mentes dos
futuros educadores, que são homens da prática.
Um exemplo casualmente dado por Nunes também
vem em socorro do argumento de Piletti, de que as
questões de ontem ainda são as de hoje. Quando
pesquisava para escrever seu livro, Gênese, significado e
ensino da Filosofia no século 12 (Grijalbo, 1974), ele
verificou que, no século 12, quando o ensino superior
tomou pela primeira vez uma fisionomia próxima da
atual, as Artes Liberais (Trivium: Gramática, Lógica e
Retórica; e Quadrivium: Aritmética, Música,
Geometria e Astrologia), que até então eram uma
espécie de curso secundário, foram a
matriz da nova instituição, tornando-se
uma das Faculdades, com papel
análogo ao do atual Curso Básico das
faculdades de Ciências Humanas. “As
Artes Liberais”, diz Nunes, “foram a
mãe das atuais faculdades.” A pergunta
é inevitável: sempre que se discute – e
na verdade se discute muito – a
identidade própria do secundário,
como resolver esta questão sem notar
que o secundário foi historicamente
anterior ao universitário, e na verdade
lhe deu origem? A abordagem histórica
é, no caso, imprescindível à
compreensão do presente.
A História, ninguém nega, é memória, é documento e recordação. Mas, desde que Henri
Bérgson (1859-1941) enunciou a sua famosa teoria da memória (hoje confirmada pelos
fisiologistas), ninguém mais pode ignorar que recordar não é ir ao passado, abandonando o
presente, mas, bem ao contrário, tornar presente o passado, atualizando, na imaginação,
impactos, valores, situações e opções, que então se tornam, para nós, um aspecto vivo e
atuante do presente.
A presença do passado não é só uma realidade psicológica, mas social – em educação como
em tudo o mais: “O passado do processo educativo”, diz Ransom Giles, “está presente no
atual momento sob forma de pressupostos, de práticas e atitudes e, invariavelmente, de
preconceitos”. Sedimentados pelo tempo, esses hábitos e valores são os nossos: é só
conhecendo sua origem e raiz que podemos conquistar a liberdade de extirpá-los, segundo
uma opção consciente e voluntária.
E aí nos damos conta de que as nossas alternativas não são muito diferentes daquelas com
que se defrontavam os antigos: “Ainda vigora – diz Ransom Giles – o conflito que
caracterizava a civilização ateniense: o processo educativo é, primordialmente, conservação do
passado, ou implica essencialmente um processo de criatividade?” Seja para libertar-nos das
sombras e mitos de um passado opressivo, seja para resgatarmos desse passado valores
imperecíveis e portanto sempre atuais, não há nem haverá nunca outro meio senão a História.

MAIS
● Thomas Ransom Giles, História da Educação (E.P.U., 1987).
● Ruy Afonso da Costa Nunes, História da Educação na Antigüidade Cristã; História da Educação
na Idade Média; História da Educação no Renascimento; História da Educação no Século XVII (todos
pela E.P.U. 1978-80).
● Mário Allghiero Manacorda, História da Educação da Antigüidade aos Nossos Dias (Cortez,
1989).
● Claudino Piletti e Nelson Piletti, Filosofia e História da Educação (Ática, 1988).
● Paul Monroe, História da Educação (Nacional, 6.ª ed., 1966).
● Henri-Irenée Marrou, História da Educação na Antigüidade (E.P.U., 1975).
● Nelson Piletti, História da Educação no Brasil (Ática, 1990).
● Werner Jaeger, Paidéia. A Formação do Homem Grego (Martins Fontes, 1974).
A partir do próximo número, SALA DE AULA estará publicando regularmente uma seção de História
da Educação.

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