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A nova era do Capital: comodificação de dados, controle social &

antropofagia.

Paloma Dottori de Sá Barreto

“O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que
só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns,
nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em
rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição
de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos
indivíduos, passa por eles” (FOUCAULT, 1989, p. 183).

É fácil perceber que o mundo no século XXI tem sido e será cada vez mais
dinâmico. Com o advento da Internet e com o crescimento exponencial de novas
tecnologias, startups, apps, entre outros, cada vez mais faz com que antigas e
novas gerações encontram-se imersas em um cenário marcado por uma nova
ordem, novos poderes e novos tipos de relações.

Como Maquiavel bem nos disse no início do século XVI em o príncipe:

“(...) não há nada mais difícil do que se ter em mãos algo novo,
nem nada mais perigoso do que conduzir por caminhos inéditos, ou
incertos quanto ao sucesso, ao se tomar a dianteira na introdução de uma
nova ordem das coisas”.

O pensador italiano ainda se mantém atual, sobretudo, quando as


mudanças para um caminho se dão em um âmbito de incertezas em um campo
que ainda está sendo descoberto todos os dias. O que antes era dito como
“perigoso”, “arriscado” hoje a internet é desejável em todos os níveis, classes e
estados – a tecnologia se tornou o motor da sociedade contemporânea. Motor
esse que busca desvendar novos paradigmas todos os dias, como também ajuda
a entender esse universo que sempre se encontra em evolução. Proporcionando
assim, uma visão para um mundo que provavelmente será resultado em um
espaço cibernético socialmente criado, experienciando cada vez mais uma
realidade paralela. Segundo o autor de ficção cientifica, William Gibson, o mundo
como o ciberespaço, é um “espaço que não era espaço” (GIBSON, 1986, p 38).

Visões contrastantes podem ser encontradas tanto na mídia como na


acadêmica relacionada ao assunto, uma verdadeira tarefa que pode ser
considerada hercúlea diante das constantes e aceleradas transformações sem
precedente histórico quanto à radicalidade e velocidade das constantes
mudanças. Nesse contexto, em relação ao grande “Wild West” dentro dessa
esfera virtual que ainda não é totalmente compreendida e que nos encontramos
imersos a ela, já ocorrem transformações dos métodos e avanços dos
entendimentos comuns tradicionais.

No limite de nossa existência e até mesmo da disseminação do


conhecimento transmitido pelo “espaço” negro virtual, mudamos nossas relações
cotidianas, concretas e condicionadas. As redes sociais expressam a liberdade
de escolha. Um lugar onde raça, gênero, etnia e renda se encontram, um
ambiente estratificado em que as opções são apresentadas com base em quem
você é e no que você gosta, o que você consumiu no passado e no que você
busca. Um lugar onde a informação flui livremente ou onde cada bit de dados
pode ser mercantilizado; uma sociedade civil onde velhas normas de
comportamento são apreciadas e a cada dia novas ferramentas tecnológicas são
usadas a serviço da neurociência para entender como o sistema nervoso
funciona a partir de suas relações com a mente, o corpo humano e a interação
constate entre sociedade, aprendizagem e máquinas são desenvolvidas em um
estado cada vez mais hobbesiano , onde o “survive mode” prevalece.

Alguns anunciaram este mundo como "comunidade virtual" (Rheingold,


1993). Inicialmente, as imagens da fronteira serviram para cultivar um espírito
romântico e individualista: sem cercas, sem leis e sem governo. Os membros
desta comunidade virtual desenvolveriam entre si as normas e costumes
necessários para a sociedade civil na rede. Este paradigma funcionou bem para
os primeiros anos, quando a Internet ainda era povoado em grande parte para
disseminação de conhecimento cientifico por pesquisadores, acadêmicos e
técnicos informatizados ou como forma de se comunicar internamente e algumas
vezes para outras empresas através de e-mail coorporativos.

Se avançarmos para o último ano de 2017 perceberemos que houve uma


drástica mudança desde o pensamento do autor Rheingold. Segundo o artigo do
“The Guardian : Our minds can be hijacked' - the tech insiders who fear a
smartphone dystopia
There is growing concern that as well as addicting users, technology is
contributing toward so-called “continuous partial attention”, severely limiting
people’s ability to focus, and possibly lowering IQ. One recent study showed that
the mere presence of smartphones damages cognitive capacity – even when the
device is turned off. “Everyone is distracted,” Rosenstein says. “All of the time.1

Isto sem falar das últimas revelações do mundo online, desde sexismo em
tecnologia, a fazendas trolls russas que ajudaram a influenciar as eleições
americanas, ao discurso do presidente Vladimir Putin proferindo em uma “aula
aberta” via satélite abrindo o ano letivo russo :

“Artificial intelligence is the future, not only for Russia, but for all
humankind. It comes with colossal opportunities, but also threats that are difficult
to predict. Whoever becomes the leader in this sphere will become the ruler of
the world”. 2

A indústria de tecnologia está sob fogo e está sendo muito mais


desencantadora que na década de 90, em seu contexto de visão romantizada.
Aprofundada em uma cultura crescente de influência e poder, de política e medo,
e de um sexismo profundamente enraizado o setor mais influente do mundo
reinventa o mercado e as relações internacionais.

Considerando a história e o processo de construção do “mundo humano”,


das relações de poder aos operadores de dominação. Poder este que perpassa
o entendimento do mundo da política e da modernidade capitalista, pouco a
pouco, inventa-se mercadorias e relações de poder incomuns. A pretensão de
dominação da esfera global sempre dominou a mente de diferentes chefes de
governos ao redor do mundo, e agora dominar o mundo nunca ficou tão fácil, e
tendo em vista que não há necessidade de ser estado, o mundo privado que se
constrói tem seu poder.

O mundo é dual, o mundo é híbrido e multimodal, convivemos e vivemos


na atualidade em frações de segundos integrados em uma dicotomia de
estarmos presencialmente em um lugar, em massa, inércia e força com suas

1
Our minds can be hijacked'_ the tech insiders who fear a smartphone dystopia _ Technology _ The
Guardian, publicado em outubro 2017. Acessado em 12 de dezembro 2017 .
2
'Whoever leads in AI will rule the world’: Putin to Russian children on Knowledge Day. RT NEW. Acesso
em: < https://www.rt.com/news/401731-ai-rule-world-putin/> publicado em setembro 2017. Acessado
em 12 de dezembro 2017 .
relações diretamente determinadas pela lei física das coisas e de outro lado,
online presente em espaços criados em uma outra realidade, onde a vida social
em grande parte é dada dentro da “rede”. Ora, eles estão dispersos no tempo e
no espaço. Dualidade de contextos, novos espaços, sujeitos, conhecimentos,
movimentos, culturas tudo se emerge numa perspectiva que tudo coexiste e
como bem disse Lavoisier, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma”.

No texto de Friedman “The world is flat”, da obra em que ele disserta e


cria uma metáfora de um mundo plano, ele evidencia as forças tecnológicas em
uma época que ninguém notava seu poder. Paradoxalmente, a bolha da internet
teve papel crucial com sua escrita. Empresas de telecomunicação realizaram
planos incrivelmente ambiciosos de "conectar o mundo", estendendo cabos de
fibra óptica pelo fundo dos oceanos e criando uma natureza das coisas
transformada que nunca havia sido vista antes.

À medida que a Internet começava a se expandir para a população em


geral, mais adeptos este novo paradigma atraía, novos seguidores surgiam. À
medida que a Internet se torna um espaço heterogêneo, cada vez mais, se torna
um espaço comercial. Agora o público passa a ser uma esfera além dos limites
físicos e do entendimento do “comum” de comunidade. Empresas, instituições e
redes sociais, possibilitam armazenamento de registros pessoais de pessoas
para entender o valor de cada uma delas.

A tecnologia, portanto, ultrapassou a melhoria dos processos em


operação - tornando-os mais eficientes. Para empresas que cada vez mais
possuem produtos online, as redes sociais como exemplo, ou até o mailing passa
a coletar informações e prospectar novos cliente, contabilizando o potencial de
vender. Em outras palavras, entra em vigor novamente a “vigilância negativa”
segundo Orwell ou um tipo de “panóptico”, escrito por Foucault, pois coloca-se
em prática um sistema onde nossos interesses pessoais, paixões e obsessões
são validados como dados valiosos para empresas que desejam efetivamente
segmentar seu marketing ou saber como a empresa pode “roubar” a atenção do
cliente, ou ao menos transformar um potencial comprador em venda,
metrificando cada um desses em seu “funil” de vendas.3 Tal “alimentação” de
informação criando extensos bancos de dados faz com que empresas sejam
capazes de rejeitar aqueles que não se enquadram de acordo com a norma
social do mundo construído online ou que não tenham dinheiro para participar
de um mercado que cada vez vende mais com seus “e-commerces”.

Mercadoria Inventada

A modernidade capitalista foi pouco a pouco inventando mercadorias


novas e inovadoras para se reinventar. O economista austríaco Joseph
Schumpeter cria uma teoria que é a fonte da reinvenção e do empreendedorismo
chamada de “destruição criativa” (Schumpeter, 1942)dando um novo significado
para o poder aos moldes neoliberais.4

Para Karl Marx o trabalho é a fonte de todo valor, cuja mercadoria onde
seu valor é aferido pela quantidade e intensidade de tempo de trabalho que é
necessário para produzir um serviço; dependendo da quantidade e intensidade
do trabalho que é aplicado. Se tira, portanto, algumas conclusões que
influenciaram o entendimento da economia como conhecemos hoje, que seria o
entendimento sobre a desigualdade dos bens comuns, de troca (dinheiro) e das
riquezas de um Estado, que é algo comum e natural dentro da estrutura da
sociedade, haver desigualdade, pois o trabalho é o limite do direito e o valor que
decorre deste.

“ O valor-de-uso se realiza para as pessoas sem troca, por meio da relação direta
entre coisas e pessoas, enquanto o valor só realiza através da troca, isto é, por
meio do processo social. O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou
consumo, eles constituem o conteúdo material da riqueza. ” (Marx, Karl. 2008 p
104-105)

O autor Karl Polanyi5 relatava perplexo que algumas mercadorias haviam


sido inventadas e que trouxeram grande transformação à sociedade. No mundo

3
O funil de vendas é uma visão de como o trabalho de marketing e vendas estão colaborando para os
resultados da empresa.
4
Em termos sobre a Destruição criativa” , Schumpeter cria uma teoria onde há um processo incessante
de transformação industrial que destrói estruturas econômicas e cria novas, em substituição as
obsoletas. Ao implementar novidades buscando-se fazer além dos laboratórios próprios de pesquisa.
5
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. 2. ed. Tradu- ção de Fanny Wrabel.
Rio de Janeiro: Campus, 2000
contemporâneo enfrentamos os mesmos paradigmas de Marx e Polanyi, novas
mercadorias foram inventadas e a mercadoria que é subentendida aqui é que
somos “nós”. A diferença é que no mundo atual em pleno século XXI, nós não
recebemos dinheiro de forma regulamentada por nosso “trabalho”.

O dinheiro sofreu regulação complexa e altamente especulativa, podemos


olhar para dentro da bolsa de valores, entender que é na especulação financeira,
entre empréstimo e juros, que seu caráter mercadológico fica claro. Mercadorias
imaterialmente consideradas, ainda que cada uma delas tivesse seu suporte
material. A volatilidade e imaterialidade das coisas modernas chega a ser uma
irrealidade ficcional, o que seria as novas criptomoedas e o Bitcoin a não ser a
reinvenção do entendimento da moeda?

O trabalho humano, produtor de mercadoria, passou a ser passível de


compra e venda mesmo não sabendo de sua condição, ele mesmo nega o fato
de ser mercadoria, já que precisa a todo instante consumir as materialidades
produzidas e expostas no mercado, colocando em suas costas o que acredita
ser, mais um “homem livre”.

Porém, é insuficiente entender hoje sobre dominação (seja do homem,


seja da moeda, seja da informação) se não entendermos a lógica diante a um
mundo globalizado- que cada vez mais se informatizada, que hoje integrar-se
ao universo on-line é condição essencial para sobreviver socialmente. As mídias
sociais trazem um reconhecimento para aqueles que expõem suas vidas
esperando a aprovação de um terceiro para garantir um mínimo de aceitação do
outro. A, se soubesse René Descartes, desse mundo contemporâneo, em seus
moldes existencialistas, onde um grita: "Compartilho meu pensamento, logo
existo." 6

Segundo o autor, Eugène Enriquez :

“desde que não se esqueça que o que antes era invisível - a parcela de
intimidade, a vida interior de cada pessoa- agora deve ser exposto no palco
público (principalmente nas telas de tv, mas também na ribalta literária), vai-se
compreender que aqueles que zelam por invisibilidade tendem a ser rejeitados,

6
(ele deve estar se revirando em seu caixão neste momento)
colocados de lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física, social
e psíquica está na ordem do dia."7

O avanço da comunicação, traz uma quantidade de conhecimento (inútil)


diário à nossas vidas, fica claro que pensar não é nada se não for compartilhado.

A Nova, porém, Velha tragédia dos Comuns.

A internet deveria ser um lugar onde a liberdade de expressão nos


permitiria compartilhar nossas ideias - o bom e o mal. No mundo utópico
romântico, codificado por programadores sêniores, as pessoas deveriam
navegar em um fluxo de informações e se envolveram em conversas de
qualidade online. Mas isso agora parece idealista e um pouco ingênuo como
Rheingold havia pensado. Andrew McLaughlin, ex-diretor de políticas públicas
do Google, disse que a melhor metáfora do atual estado da internet é a chamada
Tragédia dos Comuns. Segundo McLaughlin

"Se você tem um espaço comum, um parque e qualquer um pode ir vê-lo sem
nenhum controle, a tragédia será que esse espaço seja destruído".

Assim como Hardin em seu conceito de "tragédia dos comuns”, se


entende como se darão os resultados das decisões individuais sobre os recursos
naturais. Se cada indivíduo persegue seu interesse individual, a tragédia
resultaria na diminuição da qualidade e a quantidade de bens comuns. "Os
comuns" é uma área não é regulamentada, e que todos aqueles que desejam
podem usufruir. Não há restrições ao acesso, porém, há um limite em quantas
pessoas podem usá-lo e o quanto desse espaço pode ser usado sem ser
degradado, a partir de acordos de cooperação sobre o uso dos bens.

No nível mais fundamental, os "comuns” aqui no mundo “online” são


denominados como a arquitetura da rede. Esta arquitetura inclui hardware,
software e equipamentos de comunicação e etc.. Neste ponto, a arquitetura da
rede é invasiva de privacidade. Os padrões em toda a rede são configurados

Eugène Enriquez "L'individu hypermoderne: l'individu pervers"?, Nicole Aubert (Org), L'
individu hypermoderne, Erès, 2004, p.49
para capturar informações sobre transações individuais sem revelar isto. E
embora partes da arquitetura de rede possam ser de propriedade ou controladas
por organizações privadas, nenhuma empresa possui um valor de controle e
grande parte da arquitetura de rede é de propriedade intelectual pública.

A tecnologia, as forças do mercado, as leis e as normas desempenham


um papel na existência, na possibilidade e na concepção dos espaços. No
mundo online, não. E nesse sentido, que pode ocorrer uma violação.

Foi em uma edição especial sobre inteligência artificial da revista Science


que foi mencionado o trabalho do Centro de Psicologia Positiva da Universidade
da Pensilvânia, onde o psicólogo Martin Seligman com algoritmos faz
experimentos para identificar sinais de depressão e outros problemas bem
humanos nas redes sociais. O projeto se chama Bem-estar Mundial. A dúvida
que se levanta aqui é: será nossa saúde mental passível a ser diagnosticada
sem nossa autorização?

A inteligência artificial que o mundo dispõe atualmente já é capaz de se


comunicar com seres humanos, entender o significado de um texto, vídeo, bem
como intenções. De acordo com especialistas, I.A é capaz de processar grandes
volumes de dados, formular hipóteses e avaliações e ainda aprender com base
em evidências. O Watson, primeiro sistema cognitivo apresentado ao mundo
pela IBM, nos faz entender que o mundo está caminhando, de forma irreversível,
para uma nova era, onde pessoas e computadores dependem um do outro. Bem-
vindo a quarta revolução industrial, ela está acontecendo agora e você faz parte
dela.

Conclusão

As forças do mercado e da tecnologia se combinam para criar espaços


"privatizados" onde o acesso pode “democratizado” é uma forma onde ações e
transações de indivíduos são monitorados.

Se colocarmos o conceito sobre hegemonia na perspectiva da elaboração


e da construção da cultura de Gramsci - hegemonia e cultura está dentro de um
sistema de força, em forma da busca por consentimento desenvolvidas por
políticas como expressão de uma concepção de mundo, estratégia para
influenciar a esfera da cultura e o sentido dos processos que acontece nesta.8

Portanto, pode se entender que existe uns novos aspectos de dominação


global, uma nova hegemonia onde EUA, China e talvez Índia estejam correndo
na frente, quase isolados dos demais países, em novo tipo de dominação que é
a internet das coisas. O resto dos países, bem, é o resto.

8
ANGELI, José Mário - Gramsci, hegemonia e cultura: relações entre sociedade civil e política.
Revista Espaço Acadêmico -Nº 122- julho de 2011

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