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1a. Heráclito
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Detalhamentos
Visível como fragmento do invisível. “(...) a vista nos engana quando ela se
liga de forma demasiadamente estreita àquilo que é diretamente visível,
impedindo-nos de ver. Pois o horizonte do visível permanece invisível e o visível
não passa de um fragmento do invisível, sem bem que seja através do visível,
que presentifica o invisível, que o horizonte dos horizontes se deixa entrever,
sustentando e não sustentando os nomes que se lhe dão, que ele designa e que
ele não designa”, Axelos, K., Héraclite et la philosophie. Paris, Ed. de Minuit,
1962, p. 130.
É inegável que nos 131 Fragmentos tomados como válidos por Diels e
Kranz predominam o logos (relação com o conhecimento), o fogo (motor dos
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processos) e o tempo (relação com o ser). O logos concentra em si as
discussões epistemológicas, assim como aquelas ligadas à alma e ao conflito; o
fogo encerra o conceito do princípio unificador, para alguns, o único elemento
estável de todo o processo; já o tempo congrega o debate sobre as
temporalidades permanentes e as transitórias, assim como, por derivação, a
questão ontológica do “ser e não ser” ao mesmo tempo.
Iniciemos pelo logos e sua dimensão epistemológica. Heráclito fala em
“ouvir o logos”, isto é, ouvir a natureza fundamental do homem, fato que
Heidegger, em Carta sobre o humanismo, leu como “escuta do ser” através da
poesia. O logos está sempre presente e os homens que não se predispõem a
ouvi-lo não o conhecerão como tampouco terão capacidade de falar e de pensar.
Ouvir o logos é, naturalmente, uma forma metafórica. Logos não é a palavra e
não pode ser reduzido (ou empobrecido) a uma questão meramente lingüística.
O logos está muito além do homem. Diz Axelos, que ele não opera com
conceitos e se usa de uma linguagem “polivalente e antepredicativa”, que
permite ao homem tornar-se porta-voz esclarecido dele mas jamais seu
fundador: o logos o ultrapassa. Mais ainda, o logos está antes comprometido
com a questão epistemológica: é o saber genérico, o tomar consciência, o estar
presente no mundo.
O homem, diz Costa, sem ouvir pode estar presente mas nada apreende,
ele torna-se “presente ausente”. Deixar de se envolver diretamente no que
está vivendo é como nada vivenciar em primeira mão. Platão, ao falar, no diálogo
Fedro, sobre a invenção da escrita, destaca o “inconveniente” desta, ao realçar
que a questão, de fato, com ela, não é tanto que os homens irão se tornar mais
esquecidos, mas que eles já não falarão a partir de sua própria experiência,
mas apenas do que ouviram dizer. É uma forma de estarem ausentes da
vivência. Ou seja, o homem só se torna homem pela escuta, mas “escutar” é
mais do que apurar os ouvidos, é antes um treinamento ao bem-pensar. O
fragmento 19 fala de “pessoas que não sabem ouvir, nem falar” o que o
especialista Costa traduz como regra da sabedoria: dizer coisas verdadeiras e
agir conforme a natureza, escutando-a.
Na epistemologia do logos, o saber, o tomar consciência, mostra-se
instantaneamente, sem intermediários. Basta “estar desperto”, “estar na
escuta”, fato que só é possível durante a ocorrência da coisa, jamais depois.
Apreendemos as coisas como “de um salto” (Bernard) mas não se pode deter-se
lá. Os que dormem, dizem os fragmentos 75, 89 e 1, estão distantes do logos.
Como no conceito de sentido dos estóicos, o sentido emana imediatamente do
ato, ele é instantâneo, só é capturável naquele exato momento, o momento do
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“ser cortado” quando bisturi e carne constituem algo incorpóreo. Todas as
tentativas posteriores de recuperação serão infiéis, artificiais, forçadas e
forjadas, exercício a posteriori de se refazer aquilo que já não está ocorrendo.
Por isso, a interpretação será sempre trabalho sobre um resíduo instalado,
enquanto que a vivência é apreensão, é sentir o logos. Voltaremos a isso na
discussão do acontecimento, mais à frente.
Mas o logos também é outras coisas. Ele pode ser a alma, o “daímon” (o
intermediário entre o divino e o humano); pode ser os próprios deuses, ele é o
conflito, o combate, a morte. Vamos por partes. Logos enquanto alma não se
confunde com a alma romântica, a alma racional, a alma cristã, todas essas
subprodutos da alma platônica. Ele é alma enquanto vida, “sopro”, ou mesmo,
psiquismo. Aqui, logos é élan vital.
Como Daímon, ele é o elo entre homem e Deus, aquele que faz a ligação,
da mesma forma como em sua apropriação pelos cristianismo, como anjo da
guarda, que nos sussurra ao pé do ouvido o que devemos e o que não devemos
fazer. É, portanto, também, a “voz interior”, espécie de consciência, aquela que
deve ser ouvida. Mas essa consciência nada tem a ver com o Cogito cartesiano.
Nesse aspecto, Heráclito é bem claro: “ouvindo não a mim, mas ao logos é sábio
concordar que tudo-é-Um” (fr. 50)
Tudo é um, o cosmos é ou está em cada um de nós. Isso quer dizer que
sentimos o mundo seja pelas coisas sensíveis que se mostram a nós, seja
através da captação daquilo que não se mostra. O invisível faz parte dessa
epistemologia da mesma forma que o visível. Maurice Merleau-Ponty explorará
essa duplicidade ao dizer que é preciso ver as coisas e o vazio entre as coisas
(ver adiante item 3c).
Mas, como pode ser logos também conflito e morte ? É que logos, além
de ser aquilo que se conhece ou que nos permite conhecer (a natureza do ser),
apreensível através da escuta atenta, além de ser essa anima que nos envolve e
que nos liga ao cosmos e à divindade, além de ser o daímon, a voz interior, ele é
também um feixe, situação em que os contrários se encontram e chegam ao
equilíbrio. Logos não está, em princípio, para Heráclito, associado a discurso, a
palavra. Não tem nada a ver com qualquer interpretação lingüística ou textual;
o termo remete, antes, ao legein, que se refere “àquilo que reúne”. Trata-se da
figura subjacente em toda filosofia deleuziana, o Uno-todo “entidade que
funde todos os múltiplos”, conf. Volume 2, Cap. 4d.
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Sendo “aquilo, segundo o qual, tudo acontece” (Munier), ele é a instância
onde os contrários, juntando-se, equilibram-se; é o combate e a harmonia. Em
uma palavra: logos é força neutra e sabedoria única, diz este estudioso.
O conflito, por outro lado, é a base de tudo. Se para Anaxímandro, o
movimento é o princípio básico de todas as coisas, responsável por sua geração
e sua corrupção, para Heráclito quem provoca a dinâmica incessante na physis
não é apenas o movimento mas também o conflito. Não obstante, diferente da
dialética moderna (hegeliana), da mistura conflitual entre contrários não surge
uma síntese: dois elementos não produzem um terceiro: ou se vive ou se morre.
Do ponto de vista do conhecimento, esta postura heraclitiana coloca-se
em franca oposição à tese do sentido que desenvolvemos nesta obra, já
exposta no Volume 2, a de o sentido estar no “entre-dois” (o rizoma está
sempre “no meio”, 3n, ou, o sentido está na “película impalpável entre a palavra
e a coisa”, 4b), como também o viam os estóicos. Tampouco ele está no
intermundo, ou no “entre”, de Merleau-Ponty (cf. 3b, deste Volume).
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interpreta: “A escuta, como sempre, é anterior e determina o resto: se o
homem ouve efetivamente, ‘bem pensa’, é sábio; se ‘bem pensa’, fala e
comporta-se bem, dizendo ‘coisas verdadeiras’ e agindo ‘de acordo com a
natureza’, ou sejá, de acordo com o que ouve”, In: Costa, op. cit., p. 229.
Heidegger ultrapassa o plano vulgar da interpretação de logos como termo,
palavra, discurso no seu comentário que será visto mais adiante.
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Ouvir ao logos nada tem de cartesianismo . “O homem ouve. Se ele ouve o
‘eu’, dá ouvidos ao mundo enganoso de suas falsas impressões e ao bulício da
idiossincrasia. Esta, a audição equívoca à qual Heráclito diz ‘não’. Esse modo de
escuta acaba por constituir o ruído que ensurdece o homem para a escuta do
logos. Mas se o homem calar a interferência do ‘eu’, poderá ouvir o que o logos
lhe diz”. Costa, A., op. cit., p. 223.
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mas a terra nasce da água e a água, da alma] , Alexandre Costa diz: a morte
vivifica, dela brota a vida (p.242). Morte para X, continua Costa, é tudo que X
não é. Mas é também a passagem para o contrário, vivo e morto são a mesma
coisa (fragmento 88). Isso tem uma curiosa proximidade com Merleau-Ponty.
Este, ao falar que vemos o visível e o invisível, supõe que constatamos no ser
também seu não-ser, no que eu vejo percebo também o que não vejo. É o mesmo
que dizer que no vivo pressinto o morto e vice-versa. O morto de Heráclito é
como o nada de Merleau-Ponty, nada não como uma entidade, uma negação
determinada, mas como algo que, em princípio, não existe, constituindo-se
apenas como o inverso do ser, ou, o que lhe falta (ver, adiante, 3b).
1c. O fogo
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divinos, para ele, não são exatamente os deuses, mas a “lei fundamental do
cosmos”, uma outra forma para falar do movimento dos opostos na busca de
uma harmonia.
E é o fogo quem permite a realização do logos. Ele é a marca da eterna
presença deste, ambos reunidos sob o conceito de physis (como totalidade do
real: tanto na sua ordenação quanto nas leis que o regem), que abarca tudo,
tanta materialidade quanto as relações abstratas que a sustentam. Os
elementos que constituem o real (efêmeros, mutáveis) e o fogo (a duração, o
permanente) estão imbricados uns nos outros, sob um único e mesmo logos.
A dualidade real-fogo equivale, enquanto polaridades, ao par modelo-
cópia de Platão:
Quadro 1
Logos, cosmos, tempo e fogo são ligados entre si mas não se misturam,
adverte Axelos. O fogo é tempo físico, diz Hegel nas Preleções sobre a
História da Filosofia. Através dele realiza-se o devir, nascido da oposição de
contrários. A ele se junta o tempo, que harmoniza as transformações cósmicas
mas mantém-se autônomo. A temporalidade de Heráclito encerra os principais
componentes de sua ontologia, intimamente presa à questão do tempo.
O mundo é sempre e só este do momento agora. A cada instante ele está
recomeçando, é um outro mundo, eternamente refazendo-se, autogeração
contínua, permanente gestação em que a cada vez projeta-se para fora de si
mesmo. Não é bem que ele está “refazendo-se”, pois trata-se de uma nova
reunião: “Ligações: inteiros e não-inteiros, convergente divergente, consoante
dissonante: de todas as coisas o Um e do Um, todas as coisas” (Fragmento 10).
A cada nova reunião juntam-se outra vez presente, passado e futuro. No
eterno rejuntar-se, o mundo incorpora passado e projeta futuro, tudo nesse
“instante sem espessura”. Alexandre Costa vê no uso desses três tempos e no
seu recíproco encavalamento a idéia do eterno (Aion): a sucessão dos três
modos, diz ele, trabalha para manutenção do sempre.
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É o mesmo que diz Bergson, o passado só existe para a memória, afora
isso não há. Nisto reside a “vivacidade” do mundo, nessa qualidade de refazer-
se a todo instante como o fogo.
Por isso, perceber o mundo é um fato complexo. Diz o fragmento 52 que
o tempo é uma criança que brinca, deslocando os piões, a realeza de uma
criança. O ser é uma totalidade em movimento, uma totalidade no tempo e este
mostra-se como o brinquedo da criança que constrói e destrói constantemente.
Damo-nos conta do tempo, que, enquanto “realeza” passa indiferente a nós,
impressionamo-nos com ele e voltamos nosso olhar, diz Axelos, aos instantes do
tempo e assim “dialogamos com ele”. Mas isto é episódico, instantâneo, um
flash. Posso percebê-lo agora mas neste momento seguinte já não mais o capto,
por isso, os olhos, para Heráclito, são as melhores testemunhas. Em verdade, a
coisa jamais pode ser efetivamente apreendida: qualquer captura, apreensão,
percepção da coisa só é possível se eu detenho a coisa, se a congelo, se eu
procedo no sedimento, a posteriori. É o que Munier chama de “estabilidade
mutante”.
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simultâneos; que há uma tensão que daí sai e que é geralmente invisível, pois
não permite captar ao mesmo tempo a ação e a paixão de um pólo em relação ao
outro. Que para compreendê-la seria preciso estarmos ao mesmo tempo nas
duas extremidades.
Nosso vício é ver aqui apenas um movimento, o horizontal do rio
passando, quando há, em verdade, duas figuras mas invertidas. O rio escorre
sempre na direção água abaixo, as almas evaporam-se para cima, Hegel já o
havia dito. Diz Bernard que ambos os percursos, o fluxo descendente do rio e o
percurso ascendente das almas é sempre o mesmo percurso, um mesmo
percurso invertido.
Para ele, há aqui não apenas duas frases que representam o duplo desenho, mas
dois sentidos embutidos já nos verbos da primeira frase.
Jean-Pierre Bernard acredita que a frase, mais do que indicação do
“eterno movimento” do rio, sintetize a ambivalência do contínuo e do
descontínuo, “circulação incessante do ser” e “fluxo incessante do devir”. Ou
seja, encontramo-nos diante, novamente, do jogo entre fogo e physis. Nas
almas que evaporam-se encontramos a transcendência (do fogo, da
permanência, da duração), enquanto que no rio que desce há a imanência (do
efêmero, do movimento, da mutabilidade).
Kostas Axelos associa o fluxo do rio ao movimento das gerações: assim
como o rio passa, transcorre-se na vida o ciclo vital em que o homem nasce,
adquire a capacidade de gerar outro ser (aos 14 ou 15 anos), vê seu filho poder
engendrar outro ser (aos 30 anos) e morre. Pôr um filho no mundo já é, para
ele, o início da morte. Ele interpreta as “almas exalam o úmido” como sendo o
líquido seminal que torna o homem procriador e capaz do movimento cíclico
geracional. O tempo joga com as crianças, que são os homens, conclui Axelos.
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Fogo como “impressões digitais”, ver em Costa, op. cit., p. 235. A citação
de Diels-Kranz, é 22B 30.
Fogo, physis, logos. “Na figuração em dois níveis do mundo, que sugere
aqui Heráclito, entre o ‘invólucro’ que comanda e o ‘todo’ das coisas que é
ordenado por ele, aquilo que corresponderia ao fogo cósmico na parte
subalterna do mundo, aquilo que corresponderia à ordem desde fogo (nos dois
sentidos da palavra ordem), não seria somente o movimento que anima as coisas
sob o nome de physis, mas, agora sob o nome de logos, no sentido de relação,
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uma instância que não cessa de equilibrar as coisas... e que, ao mesmo tempo
não pára de conhecê-las”. Bernard, op. cit., p. 104-5. Ver também Axelos, a
esse respeito: “O Logos exprime a harmonia e a oposição de contrários no
Cosmos, que é um devir, pela força do Fogo; e tudo isso através do
Tempo./.../O Tempo é um e múltiplo: ele temporaliza o logos eternamente
verdadeiro, harmoniza as violentas mudanças cósmicas e une-se, sem se
identificar, ao Fogo”. Axelos, op. cit., p. 100.
A vida jamais pode ser apreendida. “Bem entendido, não é jamais o real
que coloca um problema, mas nossa relação com ele. Este tipo de dilema,
contudo, não tem nada de bizantino. Ele nos é, ao contrário, familiar, e motiva
talvez nossas mais banais reflexões. Como prova, este exemplo de que nossa
vida nos escapa a partir do momento em que buscamos apreendê-la. Vive-se
mas não se retém a vida. Não se pode possuí-la. É antes ela que nos leva e que
nos arrebata (qui nous porte, et nous emporte...)”. Bernard, op. cit., p. 65, nota.
Kostas Axelos fala que “nós engajamos um diálogo com eles (os instantes do
tempo)” em Axelos, op. cit., p. 54.
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caminho para cima (hodòs áno) e o caminho para baixo (hodòs káto) – uma
divisão, o outro a unificação”. Hegel, in: Os Pré-socráticos, op. cit., p. 96.
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obstante, só ocorre numa direção, diz ele. Contudo, entre os homens há sim um
“comércio de troca” com seus iguais.
Mas nenhuma dessas 131 citações que nos chegaram de Heráclito nos
permite que as utilizemos para construir um conceito de comunicação. Nâo
obstante, a maneira como o especialista Kostas Axelos entende o conjunto, a
totalidade, a unidade entre homem e cosmos em Heráclito nos remete a algo
que se aproxima mais ao nosso conceito de comunicação, como pretendemos
desenvolver nesta obra. Heráclito não pode ser separado em “regiões” (o
lógico, o físico, o teólogo, o mítico, o antropólogo), não dá para relativizá-lo e
interpretá-lo a partir de uma “síntese aditiva”. Heráclito não dá para ser
parcelizado, todas as parcelizações são pós-heraclitianas. O pensamento e o
mundo, a natureza e a verdade fulminante, o devir e o combate, a ordem e a lei,
o sagrado e o jogo do tempo, diz Axelos, são todos manifestações de uma
unidade de tudo o que existe. O mundo é jogo – da mesma forma como o tempo
o é – e aí institui-se um “diálogo”: presença do mundo e no mundo enquanto
presença no tempo, em que ser e pensamento buscam corresponder-se,
entremear-se, ser parte e todo ao mesmo tempo. Kostas Axelos fala, no final
de seu livro: “este ser do Cosmos que é o homem desenvolve-se na cidade e só
atinge a verdade de sua existência na busca do diálogo interrompido com o
logos universal”.
Essa “outra” interpretação da comunicação é a que realmente nos
interessa. Não aquela que grassa hoje em dia nos debates mediáticos e nos
próprios meios de comunicação, que, em essência, não tem nada de
comunicação. A ela voltaremos no final desta Obra. Mas nos interessam aqui – e
por isso iniciamos este volume com Heráclito –, também, outros conceitos.
Como, por exemplo, sua contribuição para a proposta metodológica em teoria da
comunicação, a saber, como, diante de nossa proposição de comunicação como
movimento, como “captação do acontecimento durante sua ocorrência”, como
processo que se apreende vivendo-a, como poder reter o estável?, ou – como o
formula Bernard – como compreender o parcial dentro do todo?
Marcel Conche acha que Heráclito não crê em deuses, na imortalidade da
alma, nem mesmo nas coisas ou nos seres que vemos. Que, para ele, não há
seres, só acontecimentos, fatos. Assim como nos é transmitido por Comte-
Sponville, o ser heraclitiano, conforme Conche, não passa de uma aparência de
estabilidade recortada (pela linguagem, pelo desejo e pela tradição) na
insubstancialidade do devir.
Reter ou deter o estável naquilo que é e só pode ser sempre movimento e
choque de contrários parece uma proposição contraditória, mas Heráclito não a
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refuta, já que, especialmente com os olhos (fragmento 101a: os olhos são
testemunhas mais precisas que os ouvidos), temos a chance de apreendê-lo
(isso será retomado mais adiante, Capítulo 2, com Husserl e a fenomenologia
que o segue).
Uma outra questão do método está associada também à captação do
real: como ver no invisível a fonte do movimento? Como exposto atrás, também
esse tema será redescoberto pela fenomenologia que busca escapar das ilusões
empiristas e cientificistas, que só trabalham como real aquilo que vêem e
sentem a materialidade.
Se Anaxímandro explica as coisas a partir de sua transformação e de
seu movimento; se ele se utiliza do conceito de apeiron como o movimento
eterno, ilimitado, reservatório de forças e formas, Heráclito ampliará essa
proposição a partir do conflito, da eterna mutabilidade e da “superação” final
com a substituição. Heráclito, através de suas noções de temporalidade e de
efemeridade, lança as bases para o anti-humanismo, para a doutrina da
insignificância do homem e sua transitoriedade, negando-se a explicar, por
exemplo, o universo a partir do homem ou o homem a partir do universo, já que,
para ele, homem e universo não existem um sem o outro: macrocosmo e
microcosmo, conforme Axelos, não passam de aspectos do cosmos global e
único. As posições de Heráclito foram destronadas num primeiro momento de
predomínio do pensamento platônico-aristotélico na cultura ocidental mas
foram recuperadas pelos filósofos contemporâneos mais significativos como
Hegel, Nietzsche e Heidegger, que veremos a seguir.
Heráclito é, por fim, básico em todos os estudos que se seguem neste
livro porque está na base do pensamento dos filósofos do movimento e do
conflito (Hegel), da duração e do movimento (Bergson), e de todas as correntes
que apostam na possibilidade de uma leitura do real – e talvez a única – se e
somente se puder trabalhar com a dinâmica dos processos, com a investigação
dos fatos comunicacionais em operação, com a busca da captura do vivo em
comunicação, já que os outros, os processos mortos, já não podem mais ser
catalogados como comunicacionais.
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Comunicação e diálogo, conforme Heráclito . “A verdade não se encontra
numa síntese aditiva de todos os pontos de vista, mas na comunicação com uma
unidade fundamental e total, de onde partem os raios de luz. O pensamento de
Heráclito é global desde seu ponto de partida; rigoroso e poético, abstrainte e
imagético, concreto e mítico, ele ignora estas oposições tardias, pois ele é pura
e simplesmente pensamento aberto.” Axelos, op. cit., p. 242. E ainda: “O mundo
é um, ele é, no devir, a totalidade fragmantária e aberta; no sentido mais
elevado do termo, ele é Jogo. O ser e o pensamento não estão ligados como
dois termos de uma relação, mas estão o diálogo, a homologia, a
correspondência, da qual o jogo constitui o mundo”. Idem, p. 247.
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ato de transformar-se um em seu outro. Na música, por exemplo, a repetição
de um único som não traz nada de harmônico, apenas uma seqüência repetitiva
e insossa; por isso, é preciso que haja a diferença, mas não diferença com
qualquer outro mas a partir do outro de cada som específico. Pelo fato de
Hegel ver na harmonia uma oposição determinada, o um e seu oposto, ele acaba
por sugerir em Heráclito a existência da negatividade. Mas, será mesmo que a
terra pode ser vista como “o outro” da água, o ar como “o outro” do fogo?
Mais adiante, ao comentar essas mesmas transformações, Hegel vê duas
formas opostas em Heráclito: ora fogo torna-se água, “a substância simples se
metamorfoseia em fogo e nos outros elementos”, ora, diz ele, na pág. 98 (aqui e
na seqüência: Coletânea Os pré-socráticos), que toda passagem é suprimida,
água é água, fogo é fogo, não há o conceito mas “apenas o emergir é, uma
separação exterior do que está presente”. Aqui, o filósofo não atribui às coisas
sua capacidade de mudança mas a algo que delas emerge, uma separação
exterior, um surplomb, como diz hegelianamente Munier.
Há, portanto, a emergência de algo outro que se separa, que constrói o
devir a partir de uma separação exterior, imagens estas estranhas a Heráclito
que, como visto acima, não parece permitir esse desmembramento do ser.
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criança, que brinca com areia na praia, que faz e destrói, para logo em seguida
reiniciar o jogo. É Aion jogando consigo mesmo. A um instante de saciedade
sucede o de necessidade. Conhecemos esse quadro do conceito nietzscheano de
amor fati.
Esta é a diferença radical que Nietzsche vê entre Heráclito e
Anaxágoras: enquanto o primeiro exclui toda teleologia (o Demiurgo para
Heráclito não age para fins definidos, mas em virtude de uma Díke imanente,
quer dizer, age conforme a lei mas não se propõe um determinado fim),
exercendo uma “inteligência contemplativa”, o segundo acredita que uma
vontade humana ordena o mundo, o querer consciente. Hegel estaria mais em
casa, portanto, se admitisse que sua filosofia é muito mais anaxagórica do que
de fato heraclitiana.
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a partir da experiência ocidental do ser, representado na forma da verdade da
metafísica européia e da ciência”.
Mas não foi assim que procedeu a história do pensamento. Se o ser do
ente já estava em Heráclito, enquanto ho Logos, ele foi logo depois novamente
esquecido. É que o Logos heraclitiano, altamente promissor e denso, chega à
linguagem como “expressão” - protesta Heidegger - algo puramente exterior,
algo que vem para tranqüilizar, para produzir apatia em vez de força.
Os gregos reduzem a linguagem à sua emissão sonora, à phonè, o som e a
voz. Vamos ver mais à frente que Husserl é criticado por Jacques Derrida
(Cap. 2g) exatamente porque, assim como os gregos, privilegia a voz, quer
dizer, a presença como consciência. A metafísica, a filosofia, a determinação
do ser como presença, diz Derrida, são a época da voz como domínio técnico do
ser-objeto.
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que se presenta. Assim, homens e deuses não são apenas “clarificados” na
clarificação mas iluminados a partir dela. À sua maneira, diz Heidegger, na pág.
134, eles podem efetivar o iluminar, tomando a clarificação sob sua guarda. A
clarificação os abre em seu ser, eles são conquistados pela luz, transpropriados
para o acontecimento-apropriação da clarificação e por isso nunca velados mas
desvelados.
No final do estudo, Heidegger encerra, como no caso anterior (do
Logos), decepcionado com os homens que, embora voltados “para o reunir que
desvela e vela”, desviam-se na clarificação e apenas se voltam para o que
presenta e que encontram no comércio cotidiano com tudo e cada um.
Novamente uma redução simplificadora dos homens que se voltam ao “privilégio
da presença” e com isso perdem a dimensão do ser do ente. O fragmento 9,
“Asnos prefeririam a palha ao ouro”, é usado para encerrar sua crítica: o ouro
do brilho inaparente da clarificação não se deixa apanhar, pois ele mesmo não é
capturável, ele é o puro acontecer manifestando-se. (A discussão desse
“acontecer” é retomada e aprofundada no Excurso 2, mais adiante)
Permaneçamos neste final, porque ele servirá de fundamento para nossa
proposta metodológica da razão durante: os eventos da comunicação tampouco
se deixam apanhar, pois, fazendo parte do movimento e atuando com ele e em
sua lógica, transformam-se a cada instante e são sempre outros. Só podemos
apreender o acontecimento, o manifestar-se integral do evento que, por si só,
justifica sua captura como fenômeno comunicacional.
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humanas” (Axelos), e trágico, porque vê o fragmentário sob um prisma universal
e aprofunda a fenda e o dilaceramento inerentes a tota totalidade (idem).
Heráclito nos mostra, por fim, realça Axelos, que filosofar é aprender a
viver e a morrer. O homem, continua ele, deve permanecer sereno diante do
inevitável e reconhecer o caminho inevitável que, enquanto caminho cíclico, leva
constantemente da vida à morte e da morte à vida. O homem, conclui, deve
fixar os olhos no termo fatal de sua viagem e o pensador não tentar consolar
os homens mas desmascarar sua situação, destruir suas ilusões.
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Hegel “corrige” Heráclito. Ver para isso, Hegel, Vorlesungen über die
Geschichte der Philosophie, I, Obras XVIII, Suhrkamp, 1971, traduzidas por
Ernildo Stein em Os pré-socráticos. Fragmentos, doxografia e comentários. S.
Paulo, Abril Cultural, 1978, pp. 92ss. Os trechos citados na mencionada
“correção” estão nas págs. 92 e 93. A harmonia e o processo do devir estão nas
págs. 93-94. Como nas notas musicais, lembra-nos Hegel do Banquete de Platão,
a harmonia é o absoluto devir, isto é, o transformar-se; não simplesmente devir
outro, agora este, depois aquele. O essencial, diz Hegel, é que cada diferente,
cada particular seja diferente de um outro – mas não um abstrato qualquer
outro, mas seu outro.
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Saciedade sucede necessidade, em Nietzsche. O vir-a-ser permanente
de Heráclito, o construir e o destruir eterno, é, para Nietzsche, o jogo de Aion
consigo mesmo. “Um instante de saciedade, depois a necessidade se apodera
novamente dele, como a necessidade força o artista a criar. Não é o orgulho
ímpio mas o instinto de jogo, despertado sem cessar, que chama à vida os novos
mundos. A criança atira, por um instante, seu brinquedo, mas o retoma logo,
obedecendo a seu capricho inocente. Nietzsche, ..Grecs, p. 36.
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da emissão sonora, como phoné, como som e voz, foneticamente. /.../ ...já de
antemão, a linguagem toma o caráter fundamental que nós então
caracterizamos com o nome ‘expressão’. Esta representação da linguagem,
certamente correta, mas exterior, linguagem como expressão, permanece
desde então determinante./.../Uma vez..., no começo do pensamento ocidental
fulgurou a essência da linguagem à luz do ser. Uma vez, quando Heráclito
pensou o Logos como palavra-diretriz para pensar nesta palavra o ser do ente.
Mas a fulguração apagou-se subitamente. Ninguém compreendeu seu raio e a
proximidade daquilo que ele iluminou. Vemos aquele raio apenas quando nos
postamos na tempestade do ser. Mas hoje tudo indica que apenas se
despendem esforços para dissipar a tempestade. Com todos os meios possíveis
prepara-se a fuga, para que a tempestade não perturbe nossa tranqüilidade.
Mas essa tranqüilidade não é verdadeira tranqüilidade. Ela nada mais é que
apatia e principalmente a apatia da angústia diante do pensar”. (In: Os pré-
socráticos, op. cit., p. 122-123).
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