Você está na página 1de 23

O PRINCÍPIO DA RAZÃO DURANTE

Parte I - Os antigos e a comunicação

1a. Heráclito

Nos fragmentos de Heráclito que chegaram até nós não encontramos


nenhuma alusão explícita à comunicação ou aos seus processos. Não obstante, é
dele que vêm algumas das principais lógicas que permeiam nossa proposta
teórica. O conceito de movimento perpétuo, originalmente formulado por
Anaxímandro, encontra na proposição do choque dos contrários, de Heráclito,
sua elaboração mais abrangente e finalizada. É também dele o conceito de
apreensão instantânea e única do ser, que veremos mais adiante, tanto em
Husserl como em Henri Bergson. Da mesma forma, o jogo entre visível e
invisível, considerando o visível não mais que um fragmento do invisível, e que
Maurice Merleau-Ponty tomou depois como um dos pilares de sua teoria, já se
encontra no autor grego. Mas, essencialmente, sua teoria do acontecimento
puro enquadra-se e aplica-se plenamente na proposta da razão durante, e é, em
verdade, sua concepção mais clara e básica, modelo que desenvolveremos
melhor no final deste livro, mas cujo debate é detonado com a discussão do
excurso de Heidegger, no final deste Capítulo.
Encontramos em Heráclito uma proposta que nos sugere explicações
sobre o dilema dos estudos de comunicação, da perspectiva que tomamos,
questões estas já enunciadas por Jean-Pierre Bernard, a saber, em que medida
podemos reter o estável, até que ponto podemos ter, no invisível, a fonte do
movimento.
Aqui se funda, naturalmente, o primeiro grande conflito com os
principais autores da filosofia clássica grega, especialmente Platão e
Aristóteles. Heráclito marca a separação de duas eras fundamentais. Conforme
Lassalle, ele é o movimento de transição entre a filosofia jônica da natureza e
a teoria anaxagórica do nous, que, como veremos em Nietzsche, no final deste
Capítulo, dá início à separação entre corpo e alma. Platão, conforme Axelos, só
mantém, de toda a teoria heraclitiana, uma doutrina mobilista do fluxo
unviersal, negligenciando o logos, que é a união dos contrários e o elo universal.
Tanto Platão como Aristóteles subordinam o ser a uma potência
transcendental, a Idéia ou nous divino, inexistente em Heráclito.

1
Detalhamentos

Visível como fragmento do invisível. “(...) a vista nos engana quando ela se
liga de forma demasiadamente estreita àquilo que é diretamente visível,
impedindo-nos de ver. Pois o horizonte do visível permanece invisível e o visível
não passa de um fragmento do invisível, sem bem que seja através do visível,
que presentifica o invisível, que o horizonte dos horizontes se deixa entrever,
sustentando e não sustentando os nomes que se lhe dão, que ele designa e que
ele não designa”, Axelos, K., Héraclite et la philosophie. Paris, Ed. de Minuit,
1962, p. 130.

As questões de método podem ser vistas em Bernard : “Ter-se-á visto, na


leitura dos Fragmentos, que alguns dos problemas que Heráclito buscava
resolver poderiam se exprimir da seguinte maneira: Como deter o instável?
(fragmento 49a), ou ainda, como compreender o parcial sem conhecer o todo?
(fr. 10 e 78)./.../ Posso considerar, sem cair no mito, o invisível como uma
potência e encontrar aí a fonte do movimento? (fr. 51 e 54)”. Bernard, J.P,
L’univers..., p. 310. A questão do invisível pode levar ao equívoco de ler
Heráclito como um autor estruturalista. Isso, naturalmente, carece de
qualquer sentido, pois o estruturalismo não apenas privilegia o invisível (as
estruturas inconscientes) mas, pura e simplesmente, ignora o visível. Para o
estruturalismo, a estrutura é determinante (causalidade estrutural), enquanto
que para Heráclito, se há uma determinação ela está no fogo, que é antes um
“motor”, como Nietzsche considera também as forças, jamais um plano
inconsciente. Além do mais, o estruturalismo, como vimos na crítica de Derrida
no Volume 2 da Trilogia (item 8b), contém implícita uma metafísica, um
significado transcendental, cujo centro está fora do campo. Heráclito não
considera nenhum significado transcendental ( O logos é inapreensível, cf. fr.
45 e 108). Heráclito, por fim, diferente do estruturalismo, transcende o campo
reduzido da linguagem e caminha na direção do inapreensível ao falar na
captura do instável e na potência do invisível para produzir o movimento. A
menção a Lassalle está em Axelos, op. cit., p. 227. Sobre Platão, que só aceita a
doutrina do fluxo, idem, p. 74. Sobre Aristóteles, idem, p. 74/75.

1b. Logos: sabedoria e força

É inegável que nos 131 Fragmentos tomados como válidos por Diels e
Kranz predominam o logos (relação com o conhecimento), o fogo (motor dos

2
processos) e o tempo (relação com o ser). O logos concentra em si as
discussões epistemológicas, assim como aquelas ligadas à alma e ao conflito; o
fogo encerra o conceito do princípio unificador, para alguns, o único elemento
estável de todo o processo; já o tempo congrega o debate sobre as
temporalidades permanentes e as transitórias, assim como, por derivação, a
questão ontológica do “ser e não ser” ao mesmo tempo.
Iniciemos pelo logos e sua dimensão epistemológica. Heráclito fala em
“ouvir o logos”, isto é, ouvir a natureza fundamental do homem, fato que
Heidegger, em Carta sobre o humanismo, leu como “escuta do ser” através da
poesia. O logos está sempre presente e os homens que não se predispõem a
ouvi-lo não o conhecerão como tampouco terão capacidade de falar e de pensar.
Ouvir o logos é, naturalmente, uma forma metafórica. Logos não é a palavra e
não pode ser reduzido (ou empobrecido) a uma questão meramente lingüística.
O logos está muito além do homem. Diz Axelos, que ele não opera com
conceitos e se usa de uma linguagem “polivalente e antepredicativa”, que
permite ao homem tornar-se porta-voz esclarecido dele mas jamais seu
fundador: o logos o ultrapassa. Mais ainda, o logos está antes comprometido
com a questão epistemológica: é o saber genérico, o tomar consciência, o estar
presente no mundo.
O homem, diz Costa, sem ouvir pode estar presente mas nada apreende,
ele torna-se “presente ausente”. Deixar de se envolver diretamente no que
está vivendo é como nada vivenciar em primeira mão. Platão, ao falar, no diálogo
Fedro, sobre a invenção da escrita, destaca o “inconveniente” desta, ao realçar
que a questão, de fato, com ela, não é tanto que os homens irão se tornar mais
esquecidos, mas que eles já não falarão a partir de sua própria experiência,
mas apenas do que ouviram dizer. É uma forma de estarem ausentes da
vivência. Ou seja, o homem só se torna homem pela escuta, mas “escutar” é
mais do que apurar os ouvidos, é antes um treinamento ao bem-pensar. O
fragmento 19 fala de “pessoas que não sabem ouvir, nem falar” o que o
especialista Costa traduz como regra da sabedoria: dizer coisas verdadeiras e
agir conforme a natureza, escutando-a.
Na epistemologia do logos, o saber, o tomar consciência, mostra-se
instantaneamente, sem intermediários. Basta “estar desperto”, “estar na
escuta”, fato que só é possível durante a ocorrência da coisa, jamais depois.
Apreendemos as coisas como “de um salto” (Bernard) mas não se pode deter-se
lá. Os que dormem, dizem os fragmentos 75, 89 e 1, estão distantes do logos.
Como no conceito de sentido dos estóicos, o sentido emana imediatamente do
ato, ele é instantâneo, só é capturável naquele exato momento, o momento do

3
“ser cortado” quando bisturi e carne constituem algo incorpóreo. Todas as
tentativas posteriores de recuperação serão infiéis, artificiais, forçadas e
forjadas, exercício a posteriori de se refazer aquilo que já não está ocorrendo.
Por isso, a interpretação será sempre trabalho sobre um resíduo instalado,
enquanto que a vivência é apreensão, é sentir o logos. Voltaremos a isso na
discussão do acontecimento, mais à frente.

Mas o logos também é outras coisas. Ele pode ser a alma, o “daímon” (o
intermediário entre o divino e o humano); pode ser os próprios deuses, ele é o
conflito, o combate, a morte. Vamos por partes. Logos enquanto alma não se
confunde com a alma romântica, a alma racional, a alma cristã, todas essas
subprodutos da alma platônica. Ele é alma enquanto vida, “sopro”, ou mesmo,
psiquismo. Aqui, logos é élan vital.
Como Daímon, ele é o elo entre homem e Deus, aquele que faz a ligação,
da mesma forma como em sua apropriação pelos cristianismo, como anjo da
guarda, que nos sussurra ao pé do ouvido o que devemos e o que não devemos
fazer. É, portanto, também, a “voz interior”, espécie de consciência, aquela que
deve ser ouvida. Mas essa consciência nada tem a ver com o Cogito cartesiano.
Nesse aspecto, Heráclito é bem claro: “ouvindo não a mim, mas ao logos é sábio
concordar que tudo-é-Um” (fr. 50)
Tudo é um, o cosmos é ou está em cada um de nós. Isso quer dizer que
sentimos o mundo seja pelas coisas sensíveis que se mostram a nós, seja
através da captação daquilo que não se mostra. O invisível faz parte dessa
epistemologia da mesma forma que o visível. Maurice Merleau-Ponty explorará
essa duplicidade ao dizer que é preciso ver as coisas e o vazio entre as coisas
(ver adiante item 3c).
Mas, como pode ser logos também conflito e morte ? É que logos, além
de ser aquilo que se conhece ou que nos permite conhecer (a natureza do ser),
apreensível através da escuta atenta, além de ser essa anima que nos envolve e
que nos liga ao cosmos e à divindade, além de ser o daímon, a voz interior, ele é
também um feixe, situação em que os contrários se encontram e chegam ao
equilíbrio. Logos não está, em princípio, para Heráclito, associado a discurso, a
palavra. Não tem nada a ver com qualquer interpretação lingüística ou textual;
o termo remete, antes, ao legein, que se refere “àquilo que reúne”. Trata-se da
figura subjacente em toda filosofia deleuziana, o Uno-todo “entidade que
funde todos os múltiplos”, conf. Volume 2, Cap. 4d.

4
Sendo “aquilo, segundo o qual, tudo acontece” (Munier), ele é a instância
onde os contrários, juntando-se, equilibram-se; é o combate e a harmonia. Em
uma palavra: logos é força neutra e sabedoria única, diz este estudioso.
O conflito, por outro lado, é a base de tudo. Se para Anaxímandro, o
movimento é o princípio básico de todas as coisas, responsável por sua geração
e sua corrupção, para Heráclito quem provoca a dinâmica incessante na physis
não é apenas o movimento mas também o conflito. Não obstante, diferente da
dialética moderna (hegeliana), da mistura conflitual entre contrários não surge
uma síntese: dois elementos não produzem um terceiro: ou se vive ou se morre.
Do ponto de vista do conhecimento, esta postura heraclitiana coloca-se
em franca oposição à tese do sentido que desenvolvemos nesta obra, já
exposta no Volume 2, a de o sentido estar no “entre-dois” (o rizoma está
sempre “no meio”, 3n, ou, o sentido está na “película impalpável entre a palavra
e a coisa”, 4b), como também o viam os estóicos. Tampouco ele está no
intermundo, ou no “entre”, de Merleau-Ponty (cf. 3b, deste Volume).

Detalhamentos

Fogo, o único elemento estável. “Esta ausência de realidade estável da


alma não vai deixar de ser incomodante. Ela induz, em todo caso, a outra
questão: o fogo não seria a única realidade substancial e estável no universo de
Heráclito?”. Bernard, op. cit. p. 211. Em Hölderlin e a essência da poesia,
Heidegger fala que poesia antiga havia “fundado o ser”, fundação essa que não
seria obra dos homens, mas um dom do ser: não seria o homem aquele que fala
na poesia, mas a própria linguagem e nela o ser. O homem, assim, deve “ouvir o
ser”, numa escuta paciente do que o próprio ser irá dizer.

O logos de Heráclito não é nada lingüístico . Axelos fala do polivalente e


antepredicativo: “as palavras que ele [o logos] pronuncia são claro-escuras,
porque a um logos não operando com conceitos corresponde necessariamente
uma linguagem polivalente e antepredicativa” (Axelos, op. cit., p. 69), e que o
logos ultrapassa o homem, em: idem, p. 62. A frase de Alexandre Costa está em
Costa, A., Heráclito..., p, 226. Platão diz: “Também as figuras pintadas têm a
atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão
gravemente caladas./.../ Uma vez escrito, o discurso sai a vagar por toda parte,
não é entre os conhecedores mas também entre os que o não entendem, e
nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve”. Diálogos, Mênon,
Banquete, Fedro, p. 175. Em relação ao fragmento 19, Alexandre Costa assim o

5
interpreta: “A escuta, como sempre, é anterior e determina o resto: se o
homem ouve efetivamente, ‘bem pensa’, é sábio; se ‘bem pensa’, fala e
comporta-se bem, dizendo ‘coisas verdadeiras’ e agindo ‘de acordo com a
natureza’, ou sejá, de acordo com o que ouve”, In: Costa, op. cit., p. 229.
Heidegger ultrapassa o plano vulgar da interpretação de logos como termo,
palavra, discurso no seu comentário que será visto mais adiante.

Estar desperto, na escuta, no “durante” . Ouçamos esta citação de


Munier: “...não se deve, portanto, segundo ele, agir e falar como os que dormem
(fr. 73), nesse abrandamento que nos mantém numa distância prudente do
logos. Mas é preciso [estar] desperto, estar ao contrário na escuta, que
sozinha dá acesso ao mundo como ele é fora do sono, isto é, perpetuamente
agindo. Em geral, não temos esse acesso. Nós paramos o fluxo para perceber,
para conhecer, para pensar, para operar. Só conhecemos o imóvel, no após”.
Munier, R., Les fragments..., p. 104. A citação de Bernard esta em Bernard, op.
cit., p. 141. Em relação à oposição ao repouso, ver também: “ Logos impetuoso,
incandescente, polêmico, feito do choque sublimado de contrários, e vida em
busca de raízes e de um certo repouso, vivem mal juntos”, Munier, op. cit., p.,
102.

Fragmentos relativos ao estar desperto: “[Heráclito chama de]


dorminhoco os obreiros e colaboradores [nos acontecimentos no mundo]”
(Fragmento 75); “Os despertos têm um mundo único e comum [mas cada um
daqueles que dormem desvia-se dele e vira para seu mundo] próprio”
(Fragmento 89); “Aos outros homens, contudo, permanece inconsciente, o que
eles fazem depois do despertar, assim como perdem a consciência daquilo o que
[fazem] dormindo”(Fragmento 1, trecho).

Sobre o morto e o vivo na apreensão do logos , considere-se também a


frase de Munier: “...a alma leva consigo o espírito que congela, por seu turno, o
real para torná-lo inteligível. O espírito, que da coisa só retém a visão que ele
capta, como (algo) forçosamente imóvel. Que, se furtando por antecipação só
considera na coisa o resíduo. Que não suspeita, que não deve suspeitar
antecipadamente mas que só se encontra outra vez com ela por meio do resíduo
que ela de fato congrega, mas para deportá-lo no mesmo instante para um novo
antes”. Munier, op. cit., p. 103.

6
Ouvir ao logos nada tem de cartesianismo . “O homem ouve. Se ele ouve o
‘eu’, dá ouvidos ao mundo enganoso de suas falsas impressões e ao bulício da
idiossincrasia. Esta, a audição equívoca à qual Heráclito diz ‘não’. Esse modo de
escuta acaba por constituir o ruído que ensurdece o homem para a escuta do
logos. Mas se o homem calar a interferência do ‘eu’, poderá ouvir o que o logos
lhe diz”. Costa, A., op. cit., p. 223.

O visível e o invisível. “De fato, a esta dicotomia, para nós radical, do


cosmos e das coisas que ele contém, corresponde em geral, não somente uma
dicotomia do pensamento, mas também uma verdadeira dicotomia da atitude
humana em relação a este mundo, seja numa forma de considerar o visível, seja
numa outra forma, totalmente diferente e estranha à primeira, de visar o
invisível”. Bernard, op. cit., p. 308.

Logos como feixe. “Por que escolheu Heráclito o termo ambivalente


logos, em consonância corrente com palavra, expressão, discurso, para designar
esta instância soberana? Logos, de legein, é também, e talvez, de início, aquilo
que reúne, que faz o feixe. Aquilo que liga, e assim a profunda ‘razão’, diríamos
hoje, de tudo que chega, que acede ao aparecer (f.1)”. Munier, op. cit., p. 99.
Mais adiante ele diz: Logos é “o que preside o avançado, que regula nele a
medida nos ciclos do fogo”, idem, p. 99.

No fundo, Deleuze teria sido essencialmente heraclitiano . O Uno-todo de


Deleuze funde todos os múltiplos; a substância, para ele, diferente de
Espinosa, é entendida nos seus modos e somente nos modos. É o termo “mais
alto”, está além do Ser. Tal nos parece ser, também, Heráclito: “O Ser da
totalidade é o ser do devir, cujo logos interno une dialeticamente, ao longo do
processo universal, aquilo que é e aquilo que nega o que é. O ponto de partida da
especulação heraclitiana não é, assim, o logos ou o fogo, a divindade ou o
cosmos, enquanto conjunto de seres cósmicos, mas o Ser único (...) da
totalidade(.....) em movimento./.../ Toda a tentativa do pensamento heraclitiano
constitui um approche: ele se dirige a um centro luminoso de onde emergem as
dimensões que nós encaramos – não sem um certo artifício – como sendo as do
logos e do cosmos, da divindade, da cidade e do homem”. Axelos, op. cit., p.
241-242.

Morte como alteridade em Heráclito . Interpretando o fragmento 36


[Para as almas, morte é tornar-se água; para a água, morte é tornar-se terra;

7
mas a terra nasce da água e a água, da alma] , Alexandre Costa diz: a morte
vivifica, dela brota a vida (p.242). Morte para X, continua Costa, é tudo que X
não é. Mas é também a passagem para o contrário, vivo e morto são a mesma
coisa (fragmento 88). Isso tem uma curiosa proximidade com Merleau-Ponty.
Este, ao falar que vemos o visível e o invisível, supõe que constatamos no ser
também seu não-ser, no que eu vejo percebo também o que não vejo. É o mesmo
que dizer que no vivo pressinto o morto e vice-versa. O morto de Heráclito é
como o nada de Merleau-Ponty, nada não como uma entidade, uma negação
determinada, mas como algo que, em princípio, não existe, constituindo-se
apenas como o inverso do ser, ou, o que lhe falta (ver, adiante, 3b).

O conflito em Heráclito não é a dialética hegeliana . “A conseqüência


principal do princípio da guerra é que esta exclui de si qualquer arranjo,
qualquer compromisso, qualquer combinação. Deve-se viver ou morrer, ser ou
desaparecer. No plano dos vivos como no plano da física dos elementos, não
haveria outra via. Não haveria a terceira via”. Bernard, op. cit., p. 71.

Para Heráclito, o sentido não pode estar no “entre-dois” . “Não é,


portanto, que a verdade seja teoricamente incaptável, mas sua duplicidade
deve-se ao fato que ela se exprime no real – e se manifesta pelas palavras –
seja num sentido, seja em outro, raramente no concurso de seu ‘entre-dois’,
pois é precisamente este concurso que não chegamos a apreender em seu duplo
movimento inverso”. Bernard, op. cit., p. 317.

1c. O fogo

O fogo, para Heráclito, é o correspondente imediato do logos, assim


como o elemento motor do mundo. Alexandre Costa diz que fogo são as
“impressões digitais” que o logos empresta a todas as coisas. Ele gira em torno
das coisas ou é seu “invólucro”, como gosta de chamar Jean-Pierre Bernard.
Não é, evidentemente, apenas um invólucro porque ele, enquanto elemento
motor, de fato, gira em torno das coisas e as comanda. Diz Heráclito no
fragmento 31: “Conversões do fogo: em primeiro lugar, no mar; mas, do mar em
metade da terra, a outra metade é brasa ardente [ Gluthauch]... A terra dilui-
se em mar e este retoma seu tamanho na mesma relação que ele estava antes
de tornar-se terra”. O fogo, assim, conforme Diels-Kranz, não é obra de
nenhum deus, nem dos homens; é simplesmente o “fogo eternamente vivo”. E

8
divinos, para ele, não são exatamente os deuses, mas a “lei fundamental do
cosmos”, uma outra forma para falar do movimento dos opostos na busca de
uma harmonia.
E é o fogo quem permite a realização do logos. Ele é a marca da eterna
presença deste, ambos reunidos sob o conceito de physis (como totalidade do
real: tanto na sua ordenação quanto nas leis que o regem), que abarca tudo,
tanta materialidade quanto as relações abstratas que a sustentam. Os
elementos que constituem o real (efêmeros, mutáveis) e o fogo (a duração, o
permanente) estão imbricados uns nos outros, sob um único e mesmo logos.
A dualidade real-fogo equivale, enquanto polaridades, ao par modelo-
cópia de Platão:
Quadro 1

Modelo transcendência Eterno Aion Inteligência,


conhecimento
Cópia imanência nasce e Cronos Opiniões,
morre Crenças

Logos, cosmos, tempo e fogo são ligados entre si mas não se misturam,
adverte Axelos. O fogo é tempo físico, diz Hegel nas Preleções sobre a
História da Filosofia. Através dele realiza-se o devir, nascido da oposição de
contrários. A ele se junta o tempo, que harmoniza as transformações cósmicas
mas mantém-se autônomo. A temporalidade de Heráclito encerra os principais
componentes de sua ontologia, intimamente presa à questão do tempo.
O mundo é sempre e só este do momento agora. A cada instante ele está
recomeçando, é um outro mundo, eternamente refazendo-se, autogeração
contínua, permanente gestação em que a cada vez projeta-se para fora de si
mesmo. Não é bem que ele está “refazendo-se”, pois trata-se de uma nova
reunião: “Ligações: inteiros e não-inteiros, convergente divergente, consoante
dissonante: de todas as coisas o Um e do Um, todas as coisas” (Fragmento 10).
A cada nova reunião juntam-se outra vez presente, passado e futuro. No
eterno rejuntar-se, o mundo incorpora passado e projeta futuro, tudo nesse
“instante sem espessura”. Alexandre Costa vê no uso desses três tempos e no
seu recíproco encavalamento a idéia do eterno (Aion): a sucessão dos três
modos, diz ele, trabalha para manutenção do sempre.

9
É o mesmo que diz Bergson, o passado só existe para a memória, afora
isso não há. Nisto reside a “vivacidade” do mundo, nessa qualidade de refazer-
se a todo instante como o fogo.
Por isso, perceber o mundo é um fato complexo. Diz o fragmento 52 que
o tempo é uma criança que brinca, deslocando os piões, a realeza de uma
criança. O ser é uma totalidade em movimento, uma totalidade no tempo e este
mostra-se como o brinquedo da criança que constrói e destrói constantemente.
Damo-nos conta do tempo, que, enquanto “realeza” passa indiferente a nós,
impressionamo-nos com ele e voltamos nosso olhar, diz Axelos, aos instantes do
tempo e assim “dialogamos com ele”. Mas isto é episódico, instantâneo, um
flash. Posso percebê-lo agora mas neste momento seguinte já não mais o capto,
por isso, os olhos, para Heráclito, são as melhores testemunhas. Em verdade, a
coisa jamais pode ser efetivamente apreendida: qualquer captura, apreensão,
percepção da coisa só é possível se eu detenho a coisa, se a congelo, se eu
procedo no sedimento, a posteriori. É o que Munier chama de “estabilidade
mutante”.

Dentro desta lógica é que se deve entender a metáfora do rio. De fato, a


cada vez, não entramos no mesmo rio. Mas não é bem assim: entramos e não
entramos no mesmo rio e nós e ele só somos os “mesmos” no após, como diz
Munier. Plutarco dizia que não entramos no mesmo rio, pois pela vivacidade e
pela prontidão da mudança, a coisa se dispersa e de novo se rejunta, forma-se
e desaparece outra vez, a cada momento, daí porque o devir não conduzir ao
ser.
O sol, diz Heráclito no fragmento 6, é novo a cada dia. Mas ele não é
apenas novo a cada dia, mas, incessantemente, sempre novo, complementa
Munier. E, no fragmento 106, ele diz que a essência de cada dia é de uma só e
mesma natureza. Ou seja, ele renova-se diariamente permanecendo,
entretanto, sempre o mesmo. Como o rio.
Aliás, sobre o rio, Bernard chama a atenção para o fato de que, por
causa de nossa visão linear do tempo, o interpretamos de forma viciada. Para
corrigir esse desvio e melhor entender a posição de Heráclito, ele usa-se do
conceito de palintropia, ou seja, a de ver ao mesmo tempo dois processos em
vez de um único.
Consideremos o fragmento 12 de Heráclito: “Para aqueles que entram
nos mesmos rios, afluem outras e outras correntes de água. Mas também almas
evaporam-se do úmido”. Diz Bernard, nas pás. 125 e seguintes de seu L‘univers
d’Héraclite, que há aí um duplo desenho, dois pólos, contrários de sentido e

10
simultâneos; que há uma tensão que daí sai e que é geralmente invisível, pois
não permite captar ao mesmo tempo a ação e a paixão de um pólo em relação ao
outro. Que para compreendê-la seria preciso estarmos ao mesmo tempo nas
duas extremidades.
Nosso vício é ver aqui apenas um movimento, o horizontal do rio
passando, quando há, em verdade, duas figuras mas invertidas. O rio escorre
sempre na direção água abaixo, as almas evaporam-se para cima, Hegel já o
havia dito. Diz Bernard que ambos os percursos, o fluxo descendente do rio e o
percurso ascendente das almas é sempre o mesmo percurso, um mesmo
percurso invertido.
Para ele, há aqui não apenas duas frases que representam o duplo desenho, mas
dois sentidos embutidos já nos verbos da primeira frase.
Jean-Pierre Bernard acredita que a frase, mais do que indicação do
“eterno movimento” do rio, sintetize a ambivalência do contínuo e do
descontínuo, “circulação incessante do ser” e “fluxo incessante do devir”. Ou
seja, encontramo-nos diante, novamente, do jogo entre fogo e physis. Nas
almas que evaporam-se encontramos a transcendência (do fogo, da
permanência, da duração), enquanto que no rio que desce há a imanência (do
efêmero, do movimento, da mutabilidade).
Kostas Axelos associa o fluxo do rio ao movimento das gerações: assim
como o rio passa, transcorre-se na vida o ciclo vital em que o homem nasce,
adquire a capacidade de gerar outro ser (aos 14 ou 15 anos), vê seu filho poder
engendrar outro ser (aos 30 anos) e morre. Pôr um filho no mundo já é, para
ele, o início da morte. Ele interpreta as “almas exalam o úmido” como sendo o
líquido seminal que torna o homem procriador e capaz do movimento cíclico
geracional. O tempo joga com as crianças, que são os homens, conclui Axelos.

Detalhamentos

Fogo como “impressões digitais”, ver em Costa, op. cit., p. 235. A citação
de Diels-Kranz, é 22B 30.

Fogo, physis, logos. “Na figuração em dois níveis do mundo, que sugere
aqui Heráclito, entre o ‘invólucro’ que comanda e o ‘todo’ das coisas que é
ordenado por ele, aquilo que corresponderia ao fogo cósmico na parte
subalterna do mundo, aquilo que corresponderia à ordem desde fogo (nos dois
sentidos da palavra ordem), não seria somente o movimento que anima as coisas
sob o nome de physis, mas, agora sob o nome de logos, no sentido de relação,

11
uma instância que não cessa de equilibrar as coisas... e que, ao mesmo tempo
não pára de conhecê-las”. Bernard, op. cit., p. 104-5. Ver também Axelos, a
esse respeito: “O Logos exprime a harmonia e a oposição de contrários no
Cosmos, que é um devir, pela força do Fogo; e tudo isso através do
Tempo./.../O Tempo é um e múltiplo: ele temporaliza o logos eternamente
verdadeiro, harmoniza as violentas mudanças cósmicas e une-se, sem se
identificar, ao Fogo”. Axelos, op. cit., p. 100.

A temporalidade passado, presente, futuro, no fundo, remete ao eterno


em Heráclito. Conf. Costa, op. cit., p. 237. No fim livro, Costa diz “O reinado
da criança é também o reinado do lógos. Reinado que pode ser incorruptível e
eterno não conhece as outras duas palavras com que os antigos gregos
nomearam o tempo: aion não é cronos nem kairós, pois não conhece duração,
instante ou limite; aion é a totalidade do tempo sem bordas e livre de
determinações – o tempo do lógos é o tempo indeterminado, o tempo”. Costa,
op. cit., p. 255.

A vida jamais pode ser apreendida. “Bem entendido, não é jamais o real
que coloca um problema, mas nossa relação com ele. Este tipo de dilema,
contudo, não tem nada de bizantino. Ele nos é, ao contrário, familiar, e motiva
talvez nossas mais banais reflexões. Como prova, este exemplo de que nossa
vida nos escapa a partir do momento em que buscamos apreendê-la. Vive-se
mas não se retém a vida. Não se pode possuí-la. É antes ela que nos leva e que
nos arrebata (qui nous porte, et nous emporte...)”. Bernard, op. cit., p. 65, nota.
Kostas Axelos fala que “nós engajamos um diálogo com eles (os instantes do
tempo)” em Axelos, op. cit., p. 54.

A “estabilidade mutante” de Munier . “Mas o engodo é sentido, ele é real.


Ele é o elemento mesmo mutante, que só possui estabilidade mutante, em que
tudo se desenvolve e, se desenvolvendo, se alcança, como em repouso no seu
fluxo incessante: Mundando, ele repousa (f. 84a)”. Munier, p. 87.

Sobre a metáfora do rio. “Entramos e não entramos”, está em Munier,


op. cit., p. 90. A menção a Plutarco está em idem, p. 92. Sobre o sol, idem, p.
93.

Hegel e os dois caminhos. “De mais a mais, determinou ele [Heráclito] o


processo real, em seus momentos abstratos, distinguindo dois lados nele, ‘o

12
caminho para cima (hodòs áno) e o caminho para baixo (hodòs káto) – uma
divisão, o outro a unificação”. Hegel, in: Os Pré-socráticos, op. cit., p. 96.

Metáfora do rio, almas que exalam o úmido, ciclo de gerações . “A criança


é um ser incompleto; ela torna-se homem. A verdade do ser humano reside em
seu desenvolvimento. Por volta da idade de catorze anos, a criança entra na
fase da puberdade e começa, assim, a atingir a perfeição humana: seu líquido
seminal está formado. O úmido é sempre aquilo que está ligado ao nascimento
e, como ‘as almas exalam o úmido’, o úmido do líquido seminal é o que faz nascer
o homem como um homem adulto./../ O líquido seminal descreve com seu
movimento um círculo e retorna, por assim dizer, ao seu ponto de partida, mas
num nível superior: o círculo é fechado, o caminho para cima ‘e’ o caminho para
baixo são unidos no círculo./.../ As linhas e as cores deste afresco [dos ciclos
de uma vida: nascimento, puberdade, vida adulta e morte] são sóbrias e se
restringem ao absolutamente necessário, àquilo que torna possível o passar do
rio da vida humana no tempo”. Axelos, op. cit., p. 186.
1d. A comunicação

O fragmento 8 de Heráclito diz que “aquilo que se opõe concorda; daquilo


que difere resulta a mais bela harmonia”. O pesquisador Alexandre Costa
afirma que logos, unindo pólos opostos, realiza a comunicação entre eles. Por
isso, diz ele, o momento de unir, “comunicar”, é chamado de guerra, assim como
já havia sido chamado de harmonia. Desta forma, a comunicação é gerada
porque são colocados frente à frente os pólos em combate.
É uma acepção bastante literal de comunicação: comunicação como
contato, como mero encontro entre partes divergentes. Melhor seria, talvez,
chamar a isso de confrontação, confronto, embate, porque, efetivamente nesse
processo nada é comunicado. Essa interpretação deriva de um atributo do
logos, o de ser feixe, como visto acima, onde os contrários se esposam e se
equilibram; combate que leva ao apaziguamento, mas não “comunicando”
qualquer coisa, mas como virada: a conversão de um no outro, conforme diz o
fragmento 36: Para as almas, morte é tornar-se água; para a água, morte é
tornar-se terra; mas a terra nasce da água e a água, da alma.
Por outro lado, aparece o conceito do “incomunicável” na relação que
Heráclito estabelece entre o homem e Deus. Quando, no fragmento 24, ele diz
que “os que morrem em combate, os deuses os honram, os homens também”,
Bernard vê nisso um acolhimento dos homens pelos deuses, uma troca que, não

13
obstante, só ocorre numa direção, diz ele. Contudo, entre os homens há sim um
“comércio de troca” com seus iguais.
Mas nenhuma dessas 131 citações que nos chegaram de Heráclito nos
permite que as utilizemos para construir um conceito de comunicação. Nâo
obstante, a maneira como o especialista Kostas Axelos entende o conjunto, a
totalidade, a unidade entre homem e cosmos em Heráclito nos remete a algo
que se aproxima mais ao nosso conceito de comunicação, como pretendemos
desenvolver nesta obra. Heráclito não pode ser separado em “regiões” (o
lógico, o físico, o teólogo, o mítico, o antropólogo), não dá para relativizá-lo e
interpretá-lo a partir de uma “síntese aditiva”. Heráclito não dá para ser
parcelizado, todas as parcelizações são pós-heraclitianas. O pensamento e o
mundo, a natureza e a verdade fulminante, o devir e o combate, a ordem e a lei,
o sagrado e o jogo do tempo, diz Axelos, são todos manifestações de uma
unidade de tudo o que existe. O mundo é jogo – da mesma forma como o tempo
o é – e aí institui-se um “diálogo”: presença do mundo e no mundo enquanto
presença no tempo, em que ser e pensamento buscam corresponder-se,
entremear-se, ser parte e todo ao mesmo tempo. Kostas Axelos fala, no final
de seu livro: “este ser do Cosmos que é o homem desenvolve-se na cidade e só
atinge a verdade de sua existência na busca do diálogo interrompido com o
logos universal”.
Essa “outra” interpretação da comunicação é a que realmente nos
interessa. Não aquela que grassa hoje em dia nos debates mediáticos e nos
próprios meios de comunicação, que, em essência, não tem nada de
comunicação. A ela voltaremos no final desta Obra. Mas nos interessam aqui – e
por isso iniciamos este volume com Heráclito –, também, outros conceitos.
Como, por exemplo, sua contribuição para a proposta metodológica em teoria da
comunicação, a saber, como, diante de nossa proposição de comunicação como
movimento, como “captação do acontecimento durante sua ocorrência”, como
processo que se apreende vivendo-a, como poder reter o estável?, ou – como o
formula Bernard – como compreender o parcial dentro do todo?
Marcel Conche acha que Heráclito não crê em deuses, na imortalidade da
alma, nem mesmo nas coisas ou nos seres que vemos. Que, para ele, não há
seres, só acontecimentos, fatos. Assim como nos é transmitido por Comte-
Sponville, o ser heraclitiano, conforme Conche, não passa de uma aparência de
estabilidade recortada (pela linguagem, pelo desejo e pela tradição) na
insubstancialidade do devir.
Reter ou deter o estável naquilo que é e só pode ser sempre movimento e
choque de contrários parece uma proposição contraditória, mas Heráclito não a

14
refuta, já que, especialmente com os olhos (fragmento 101a: os olhos são
testemunhas mais precisas que os ouvidos), temos a chance de apreendê-lo
(isso será retomado mais adiante, Capítulo 2, com Husserl e a fenomenologia
que o segue).
Uma outra questão do método está associada também à captação do
real: como ver no invisível a fonte do movimento? Como exposto atrás, também
esse tema será redescoberto pela fenomenologia que busca escapar das ilusões
empiristas e cientificistas, que só trabalham como real aquilo que vêem e
sentem a materialidade.
Se Anaxímandro explica as coisas a partir de sua transformação e de
seu movimento; se ele se utiliza do conceito de apeiron como o movimento
eterno, ilimitado, reservatório de forças e formas, Heráclito ampliará essa
proposição a partir do conflito, da eterna mutabilidade e da “superação” final
com a substituição. Heráclito, através de suas noções de temporalidade e de
efemeridade, lança as bases para o anti-humanismo, para a doutrina da
insignificância do homem e sua transitoriedade, negando-se a explicar, por
exemplo, o universo a partir do homem ou o homem a partir do universo, já que,
para ele, homem e universo não existem um sem o outro: macrocosmo e
microcosmo, conforme Axelos, não passam de aspectos do cosmos global e
único. As posições de Heráclito foram destronadas num primeiro momento de
predomínio do pensamento platônico-aristotélico na cultura ocidental mas
foram recuperadas pelos filósofos contemporâneos mais significativos como
Hegel, Nietzsche e Heidegger, que veremos a seguir.
Heráclito é, por fim, básico em todos os estudos que se seguem neste
livro porque está na base do pensamento dos filósofos do movimento e do
conflito (Hegel), da duração e do movimento (Bergson), e de todas as correntes
que apostam na possibilidade de uma leitura do real – e talvez a única – se e
somente se puder trabalhar com a dinâmica dos processos, com a investigação
dos fatos comunicacionais em operação, com a busca da captura do vivo em
comunicação, já que os outros, os processos mortos, já não podem mais ser
catalogados como comunicacionais.

Detalhamentos

A comunicação em Costa. Ver: Costa, op. cit., p. 233. A troca unilateral


pode ser encontrada em Bernard, p. 298. O comentário de Marcel Conche está
em Comte-Sponville, Uma educação filosófica, p. 223-4.

15
Comunicação e diálogo, conforme Heráclito . “A verdade não se encontra
numa síntese aditiva de todos os pontos de vista, mas na comunicação com uma
unidade fundamental e total, de onde partem os raios de luz. O pensamento de
Heráclito é global desde seu ponto de partida; rigoroso e poético, abstrainte e
imagético, concreto e mítico, ele ignora estas oposições tardias, pois ele é pura
e simplesmente pensamento aberto.” Axelos, op. cit., p. 242. E ainda: “O mundo
é um, ele é, no devir, a totalidade fragmantária e aberta; no sentido mais
elevado do termo, ele é Jogo. O ser e o pensamento não estão ligados como
dois termos de uma relação, mas estão o diálogo, a homologia, a
correspondência, da qual o jogo constitui o mundo”. Idem, p. 247.

Sobre o anti-humanismo de Heráclito, ver Axelos, op. cit, p. 181.

1e. Hegel, Nietzsche e Heidegger comentando Heráclito

Em suas Preleções sobre a história da filosofia, Hegel comenta a frase


de Heráclito (“O ser não é mais que o não-ser”), dizendo que, desta forma, a
frase não produziria sentido, que ela seria apenas “destruição universal” ou
“ausência de pensamento”. Por isso, “corrige-a” com a fórmula o absoluto é a
unidade do ser e do não ser. Quer dizer, Hegel, seguindo os passos de
Aristóteles (“é apenas um o que permanece”), afirma que as determinações
absolutamente opostas estão ligadas numa unidade. Mas esta unidade, que o
filósofo chama de “absoluto” é, na verdade, discutível porque, como visto em 1b
(final), da mistura conflitual entre contrários não surge aquilo que para Hegel
seria o terceiro momento, uma síntese, mas ocorre apenas uma virada um no
outro, terra em água, água em ar, ar em fogo (fragmento 76). Em vez do ritmo
ternário tese, antítese e síntese, temos aqui um processo bipolar, movimento
perpétuo de vai-e-vem.
A lógica formal distingue duas formas de oposição de conceitos, ora
como contrários (branco e negro), ora como contraditórios (branco e não-
branco). Heráclito não trabalha com esse modelo, ele trabalha com a harmonia
e não identidade entre contrários. Apesar de surgir algo como uma “unidade”,
as oposições não se dissolvem, elas sobrevivem enquanto tal, mantê-mse o
conflito e a negação.
O verdadeiro processo do devir, conforme a leitura de Heráclito
empreendida por Hegel (apoiado em Aristóteles, “de tudo resulta um”), remete
também à harmonia, que se constrói pela diferença. A harmonia é obtida pelo

16
ato de transformar-se um em seu outro. Na música, por exemplo, a repetição
de um único som não traz nada de harmônico, apenas uma seqüência repetitiva
e insossa; por isso, é preciso que haja a diferença, mas não diferença com
qualquer outro mas a partir do outro de cada som específico. Pelo fato de
Hegel ver na harmonia uma oposição determinada, o um e seu oposto, ele acaba
por sugerir em Heráclito a existência da negatividade. Mas, será mesmo que a
terra pode ser vista como “o outro” da água, o ar como “o outro” do fogo?
Mais adiante, ao comentar essas mesmas transformações, Hegel vê duas
formas opostas em Heráclito: ora fogo torna-se água, “a substância simples se
metamorfoseia em fogo e nos outros elementos”, ora, diz ele, na pág. 98 (aqui e
na seqüência: Coletânea Os pré-socráticos), que toda passagem é suprimida,
água é água, fogo é fogo, não há o conceito mas “apenas o emergir é, uma
separação exterior do que está presente”. Aqui, o filósofo não atribui às coisas
sua capacidade de mudança mas a algo que delas emerge, uma separação
exterior, um surplomb, como diz hegelianamente Munier.
Há, portanto, a emergência de algo outro que se separa, que constrói o
devir a partir de uma separação exterior, imagens estas estranhas a Heráclito
que, como visto acima, não parece permitir esse desmembramento do ser.

Friedrich Nietzsche discorda que tivesse havido originalmente a


dualidade de mundos, descrita por Anaxímandro (de um lado, a desordem, a
falta de regras, a contradição, e, de outro, a lei, o reino da filha de Zeus,
Dike); em verdade, “ele [Heráclito] só via o devir”.
Segundo a leitura de Heráclito empreendida por Nietzsche, a essência
da realidade é atividade, não havendo nenhuma outra modalidade de ser. As
coisas são, a um só tempo, elas mesmas e seu contrário, não possuindo nenhuma
existência própria. Elas seriam apenas “clarões”, faíscas emitidas por espadas
mágicas. Ele refuta, assim, a identidade a elas atribuída por Hegel.
Discutindo o fragmento 10 (De tudo, um; de um, tudo), o filósofo fala
que o mundo é o jogo de Zeus ou o jogo do fogo consigo mesmo e que somente
nesse sentido é que o um é ao mesmo tempo o múltiplo. A explicação parte do
uso de um provérbio grego: “a saciedade engendra o crime (a hybris)”. Quer
dizer, engendra tudo o que ultrapassa a medida justa, como pode ser também o
orgulho, a violência.
Nietzsche vê em Heráclito – mais do que em Hegel e, principalmente, que
em Kant – a ausência do imperativo categórico. No construir e destruir
permanente, como no jogo do artista e da criança, não há nenhuma imputação
moral, tudo ocorre dentro de uma “inocência eternamente intacta”, como uma

17
criança, que brinca com areia na praia, que faz e destrói, para logo em seguida
reiniciar o jogo. É Aion jogando consigo mesmo. A um instante de saciedade
sucede o de necessidade. Conhecemos esse quadro do conceito nietzscheano de
amor fati.
Esta é a diferença radical que Nietzsche vê entre Heráclito e
Anaxágoras: enquanto o primeiro exclui toda teleologia (o Demiurgo para
Heráclito não age para fins definidos, mas em virtude de uma Díke imanente,
quer dizer, age conforme a lei mas não se propõe um determinado fim),
exercendo uma “inteligência contemplativa”, o segundo acredita que uma
vontade humana ordena o mundo, o querer consciente. Hegel estaria mais em
casa, portanto, se admitisse que sua filosofia é muito mais anaxagórica do que
de fato heraclitiana.

Heidegger comenta inicialmente o fragmento 50 de Heráclito: “Se não


apreenderam a mim, mas ao sentido, então é sábio dizer, em conformidade com
o sentido, [que] tudo é um”. O filósofo faz inicialmente uma pesquisa sobre o
sentido de légein, termo que inicialmente remete ao “pousar”, mas que, por fim,
pode ser levado ao dizer e ao falar.
Contra a leitura habitual (que assim o lê: “É sábio escutar a palavra do
Logos e prestar atenção, repetindo o que se escutou sob a forma: Um é tudo”),
Heidegger diz que não se trata do mero ouvir. Rastreando a etimologia da
palavra légein, como “pousar”, Logos torna-se, então, um “pousar que recolhe”
(ho Logos). Desta forma, a nova leitura do fragmento deve ser mais ou menos
assim: Não escutem a mim, o mortal que vos fala: sejam atentos ao “posar que
recolhe”... Iniciem por pertencer-lhe; daí, então, ouvirão propriamente falar...
Aí se produz o “bem-disposto”, que é o único-uno que tudo unifica.
Mas a coisa não pára aqui, pois Heidegger promove uma vinculação da
frase de Heráclito à sua figura nuclear, a do ser do ente, isto é, à
desocultação, “presença daquilo que se presenta”. Diz ele que ho Logos (o
“posar que recolhe”) dá o nome àquela coisa – ou à situação - que reúne tudo
que se presenta. A presença do presente, em grego tò eón, é o mesmo que em
latim se chama esse entium, ou, ser do ente. Quando o ser do ente torna-se
digno de ser pensado, aí então inicia-se “o Ocidente”. E isso não é pouco,
reforça Heidegger, na pág. 122, da Coletânea: “Se este começo não guardasse o
que foi e continua sendo, isto é, o recolhimento do que ainda dura, então não
imperaria agora o ser do ente, desde a manifestação da essência da técnica
moderna. Através dela passa a ser determinada e transformada a terra inteira

18
a partir da experiência ocidental do ser, representado na forma da verdade da
metafísica européia e da ciência”.
Mas não foi assim que procedeu a história do pensamento. Se o ser do
ente já estava em Heráclito, enquanto ho Logos, ele foi logo depois novamente
esquecido. É que o Logos heraclitiano, altamente promissor e denso, chega à
linguagem como “expressão” - protesta Heidegger - algo puramente exterior,
algo que vem para tranqüilizar, para produzir apatia em vez de força.
Os gregos reduzem a linguagem à sua emissão sonora, à phonè, o som e a
voz. Vamos ver mais à frente que Husserl é criticado por Jacques Derrida
(Cap. 2g) exatamente porque, assim como os gregos, privilegia a voz, quer
dizer, a presença como consciência. A metafísica, a filosofia, a determinação
do ser como presença, diz Derrida, são a época da voz como domínio técnico do
ser-objeto.

A segunda questão que trabalha Heidegger é o conceito de alétheia,


através do fragmento 16: “Como pode alguém esconder-se diante daquilo que
não tem ocaso”. A leitura que dele faz Heidegger remete a sua noção de
acontecimento (Ereignis).
Aquilo que não tem ocaso é aquilo que é sempre visto, que
constantemente emerge. Como no caso anterior, Heidegger aqui formula a sua
leitura da frase: quanto mais determinados formos em nos afastar da
representação visual da coisa que não pára de emergir, tanto mais necessária é
a informação sobre o que realmente é aquilo que é atribuído como qualidade,
aquilo que nunca tem ocaso.
Vamos ver melhor isso. Segundo o fragmento, desejamos ver, mas
precisamos ver com cautela. Heráclito pensa - sugere Heidegger - sobre o
emergir em si e não na coisa que emerge. Mais ainda, sobre uma emergência
perene, sobre algo que sempre durou e sempre dura. Por exemplo, o fogo, que é
algo que dura, “emergência durável no sentido da physis”, diz Heidegger. Só
que esse fogo (pўr) é tanto fogo sacrificial, fogo do lar, fogo da vigília, quanto
brilho das tochas, cintilar das estrelas. Mas Heidegger ainda vai mais longe:
apóia-se em Hipólito para quem o fogo ( tò pўr) é também “aquele que medita”
(tò phrónimon), que mostra a cada um seu caminho. [apresenta-lhe o lugar que
lhe cabe]
Clarear, desta forma, é também liberar; ou ainda: é “presentação que
medita e recolhe e que, assim, conduz para o espaço livre”. Conforme
Heidegger, clarear é a garantia e a duração da presença. Desta forma,
clarificar não somente ilumina mas também recolhe e abriga na presença aquilo

19
que se presenta. Assim, homens e deuses não são apenas “clarificados” na
clarificação mas iluminados a partir dela. À sua maneira, diz Heidegger, na pág.
134, eles podem efetivar o iluminar, tomando a clarificação sob sua guarda. A
clarificação os abre em seu ser, eles são conquistados pela luz, transpropriados
para o acontecimento-apropriação da clarificação e por isso nunca velados mas
desvelados.
No final do estudo, Heidegger encerra, como no caso anterior (do
Logos), decepcionado com os homens que, embora voltados “para o reunir que
desvela e vela”, desviam-se na clarificação e apenas se voltam para o que
presenta e que encontram no comércio cotidiano com tudo e cada um.
Novamente uma redução simplificadora dos homens que se voltam ao “privilégio
da presença” e com isso perdem a dimensão do ser do ente. O fragmento 9,
“Asnos prefeririam a palha ao ouro”, é usado para encerrar sua crítica: o ouro
do brilho inaparente da clarificação não se deixa apanhar, pois ele mesmo não é
capturável, ele é o puro acontecer manifestando-se. (A discussão desse
“acontecer” é retomada e aprofundada no Excurso 2, mais adiante)
Permaneçamos neste final, porque ele servirá de fundamento para nossa
proposta metodológica da razão durante: os eventos da comunicação tampouco
se deixam apanhar, pois, fazendo parte do movimento e atuando com ele e em
sua lógica, transformam-se a cada instante e são sempre outros. Só podemos
apreender o acontecimento, o manifestar-se integral do evento que, por si só,
justifica sua captura como fenômeno comunicacional.

Heráclito é uma figura ímpar na história do pensamento ocidental. É


negado por Platão, que, apesar de aceitar a doutrina mobilista do fluxo
universal, refuta a união de contrários. No Teeteto, ele fala que “se tudo se
move, qualquer resposta que se der, sobre qualquer assunto que se faça, será
igualmente correta”. É negado também por Aristóteles, em vista do princípio
da não-contradição deste último, e alterado pelos estóicos que transformam
sua concepção unitária do mundo numa filosofia moral, da consciência.
Heráclito é, além disso, equivocadamente chamado de pessimista,
quando, na realidade, trata-se aqui de um autor dramático e trágico. Os
pessimistas partem de uma posição psicológica subjetiva, de uma afetividade,
de um ferimento em relação ao mundo, há neles um lamento que sofre com a
perda do absoluto e que é elaborado na forma de uma racionalidade. Nâo é o
lamento a base da filosofia de Heráclito, já que a necessidade realiza-se
inevitavelmente, mas o apelo a viver (e sofrer) com coragem, a “viver sua vida”.
Ele é dramático, pois “exprime o mais profundo dos procedimentos e das ações

20
humanas” (Axelos), e trágico, porque vê o fragmentário sob um prisma universal
e aprofunda a fenda e o dilaceramento inerentes a tota totalidade (idem).
Heráclito nos mostra, por fim, realça Axelos, que filosofar é aprender a
viver e a morrer. O homem, continua ele, deve permanecer sereno diante do
inevitável e reconhecer o caminho inevitável que, enquanto caminho cíclico, leva
constantemente da vida à morte e da morte à vida. O homem, conclui, deve
fixar os olhos no termo fatal de sua viagem e o pensador não tentar consolar
os homens mas desmascarar sua situação, destruir suas ilusões.

Detalhamentos

Hegel “corrige” Heráclito. Ver para isso, Hegel, Vorlesungen über die
Geschichte der Philosophie, I, Obras XVIII, Suhrkamp, 1971, traduzidas por
Ernildo Stein em Os pré-socráticos. Fragmentos, doxografia e comentários. S.
Paulo, Abril Cultural, 1978, pp. 92ss. Os trechos citados na mencionada
“correção” estão nas págs. 92 e 93. A harmonia e o processo do devir estão nas
págs. 93-94. Como nas notas musicais, lembra-nos Hegel do Banquete de Platão,
a harmonia é o absoluto devir, isto é, o transformar-se; não simplesmente devir
outro, agora este, depois aquele. O essencial, diz Hegel, é que cada diferente,
cada particular seja diferente de um outro – mas não um abstrato qualquer
outro, mas seu outro.

Em Heráclito, as oposições não se dissolvem . “Como suas oposições são


oposições bipolares, antagonismos em que, alternadamente, uma força é mais
antagonista que outra, os contrastes [são] consideráveis, assim o método de
seu pensamento é igualmente antitético./.../É certo que sendo colocadas duas
‘teses’ uma unidade englobante aparece; contudo, as duas teses permanecem
separadas entre si, o conflito permanece conflito e a negação não se encontra
negada”. Axelos, op. cit., p. 63.

Munier e a “surplomb”. O mundo, em sua exposição “não é”, ele está em


gestação contínua – ele é gestação contínua de si mesmo. Seu ser está neste “ir
em direção a”, eternamente projetado como desvio de si, como “surplomb”. Cf.
Munier, op. Cit., p. 85.

Heráclito, conforme Nietzsche, “só via o devir” . O texto usado aqui é


Nietzsche, La philosophie à l’époque tragique des Grecs . Paris, Gallimard
[1997], p. 29. Sobre o mundo como jogo de Zeus, ver p. 34.

21
Saciedade sucede necessidade, em Nietzsche. O vir-a-ser permanente
de Heráclito, o construir e o destruir eterno, é, para Nietzsche, o jogo de Aion
consigo mesmo. “Um instante de saciedade, depois a necessidade se apodera
novamente dele, como a necessidade força o artista a criar. Não é o orgulho
ímpio mas o instinto de jogo, despertado sem cessar, que chama à vida os novos
mundos. A criança atira, por um instante, seu brinquedo, mas o retoma logo,
obedecendo a seu capricho inocente. Nietzsche, ..Grecs, p. 36.

Heráclito x Anaxágoras. Ilustrativo neste debate é a nota constante na


edição brasileira do texto “Heráclito”, de Nietzsche, que faz referência à obra
O nascimento da filosofia na época da tragédia grega , in: Os pré-socráticos...,
p. 108. Lá se indica a referência que Nietzsche faz à forma não-teleológica de
Heráclito em contraste com a teleologia embutida em Anaxágoras, “que os
comentadores modernos não perceberam”. Importante também, neste
contexto, é a observação de Nietzsche, de que neste momento, com
Anaxágoras, é que surge a separação corpo e alma, ou matéria e alma, um
passivo e um ativo.

Heidegger relê o fragmento 50: “Não me escuteis a mim, o mortal que


vos fala; mas sede atentos ao pousar que recolhe; começai por pertencer-lhe,
então ouvireis propriamente falar; um ouvir é, enquanto tiver lugar um deixar-
estendido-diante-uma-coisa-junto-da-outra, diante do qual se estende o
conjunto, o deixar-estendido que recolhe, o pousar que recolhe. Quando
acontece que o deixar-estendido-diante deixa estendido, produz-se, então,
alguma coisa bem-disposta; pois o bem-disposto propriamente dito, o destino,
somente é: o único-uno que tudo unifica”. Heidegger, em : Os pré-socráticos,
op. cit.,, p. 121.

Logos, na linguagem, vira “expressão”, traqüilização, apatia . “Que teria


acontecido se Heráclito – e, a partir dele, os gregos – tivesse pensado
propriamente a essência da linguagem como Logos, como o pousar que recolhe!
Teria acontecido nada menos que isto: Os gregos teriam pensado a essência da
linguagem a partir da essência do ser, até mesmo a partir do próprio ser. Pois
ho Logos é o nome para o ser do ente. Mas tudo isto não aconteceu. Em parte
alguma encontramos uma pista que mostrasse que os gregos tivessem pensado a
essência da linguagem imediatamente a partir da essência do ser. Em vez disso,
a linguagem foi representada – e, com efeito, pelos próprios gregos – a partir

22
da emissão sonora, como phoné, como som e voz, foneticamente. /.../ ...já de
antemão, a linguagem toma o caráter fundamental que nós então
caracterizamos com o nome ‘expressão’. Esta representação da linguagem,
certamente correta, mas exterior, linguagem como expressão, permanece
desde então determinante./.../Uma vez..., no começo do pensamento ocidental
fulgurou a essência da linguagem à luz do ser. Uma vez, quando Heráclito
pensou o Logos como palavra-diretriz para pensar nesta palavra o ser do ente.
Mas a fulguração apagou-se subitamente. Ninguém compreendeu seu raio e a
proximidade daquilo que ele iluminou. Vemos aquele raio apenas quando nos
postamos na tempestade do ser. Mas hoje tudo indica que apenas se
despendem esforços para dissipar a tempestade. Com todos os meios possíveis
prepara-se a fuga, para que a tempestade não perturbe nossa tranqüilidade.
Mas essa tranqüilidade não é verdadeira tranqüilidade. Ela nada mais é que
apatia e principalmente a apatia da angústia diante do pensar”. (In: Os pré-
socráticos, op. cit., p. 122-123).

O fragmento 16, segundo Heidegger : “Quanto mais resolutos formos em


afastar-nos da representação visual daquilo que não cessa de emergir, que
jamais tem ocaso, como uma coisa que se presenta, tanto mais necessariamente
torna-se uma informação sobre o que realmente é, em si mesmo, aquilo a que é
atribuído como qualidade, ‘aquilo que jamais tem ocaso’”, Heidegger, in: Os pré-
socráticos, op. cit., p. 129.

Heráclito: autor trágico e dramático, jamais pessimista . “O mundo permanece


Mundo através de todas as suas mudanças, a justiça é Justiça, quer dizer,
ligação necessária entre a existência e o pensamento de tudo o que existe. O
ritmo une e opõe os contrários, enquanto ritmo. Esta dialética não nasce de
uma afetividade subjetiva, ferida pelo movimento do mundo; não é uma
disposição psíquica que se erige em teoria racional. A dialética é uma trama e
um drama, um ritmo ao qual o homem está ligado em seu próprio ser, fragmento
do ser total”. (Axelos, op. cit., p.53) “Sua meditação, vinculando-se ao mesmo
tempo à comédia humana e divina, é dramática sem ser romântica: ela não
chora a perda do absoluto”. (idem, p. 78) “Heráclito não se lamenta em se
regozija; ele constata o que é e não sonha com aquilo que poderia ter sido. Ele
não é nem pessimista ne otimista, mas, de forma bem natural, trágico”, (idem,
p. 121) “Heráclito olha, às vezes com alegria, às vezes com pesar, o grande
espetáculo trágico da sucessão de gerações na terra” (idem, p. 189). A frase
final de Axelos está nas págs. 190-191 da mesma obra.

23

Você também pode gostar