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MANA 20(3): 603-620, 2014

Entrevista

LIDANDO COM A ORIGINALIDADE

Jane Guyer

Jane Guyer é professora “George Armstrong Guyer hoje é reconhecida por


Kelly” do Departamento de Antropologia da ter contribuído de forma decisiva
Johns Hopkins University. Em 2008 foi indicada para a renovação da antropologia do
para a Academia Norte-americana de Ciências, dinheiro e dos mercados, das relações
e no ano de 2012 recebeu a máxima distinção entre moralidade e economia e entre
outorgada pela Associação de Estudos antropologia e história. Esta entrevista foi
Africanos. Nascida na Escócia, desenvolveu concedida a Federico Neiburg, Fernando
carreira acadêmica principalmente nos Rabossi e Gustavo Onto no dia 19 de maio
Estados Unidos. O seu trabalho é reconhecido de 2011, no Rio de Janeiro, por ocasião
por ter revolucionado a etnografia da África da sua participação no Colóquio “Novas
Central e Ocidental e por ter colocado uma Perspectivas em Etnografia Econômica:
nova agenda para os estudos antropológicos modalidades de troca e de cálculo
da economia. Seus artigos e livros tratam econômico”, organizado pelo Núcleo
dos dilemas da África contemporânea de Pesquisas em Cultura e Economia,
(conflitos políticos e nacionais, instabilidade no Programa de Pós-Graduação em
econômica e monetária, dificuldades no Antropologia Social do Museu Nacional.
aprovisionamento de alimentos) em diálogo Tradução de Juliana Pamplona.
criativo com as tradições antropológicas
africanistas e em conversas interdisciplinares
densas, principalmente com historiadores e
economistas.
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Fernando Rabossi – Para começar, você Federico Neiburg – No seu tempo de


poderia nos falar um pouco sobre a sua graduação, qual era a sua percepção do
trajetória? Você estudou sociologia na campo antropológico britânico?
LSE (London School of Economics), certo?
Era uma antropologia social britânica
Jane Guyer – Bem, a graduação naquele muito consciente de seu campo naquele
tempo tinha que ser em sociologia com tempo, de certa forma se diferenciando
especialização em antropologia. Não dos EUA. As pessoas percebiam que se
era possível ter um diploma apenas em tratava de um tipo diferente de antropo-
antropologia social. Tínhamos, inclusive, logia. As pessoas estavam interessadas
que cursar economia como habilitação. em antropologia francesa – Lévi-Strauss
Todos os programas disciplinares eram já tinha publicado o seu livro sobre as
compostos dessas combinações de ciên- estruturas do parentesco, em 1949, em
cias sociais. Quando fiz sociologia, tive francês. É incrível lembrar que An essay
que cursar demografia, teoria social, on the gift [O ensaio sobre a dádiva] de
política social, estatísticas sociais, todas Marcel Mauss só foi traduzido para o
as subdivisões clássicas da sociologia. inglês nos anos 1950. Então, era só o
E, em seguida, havia uma escolha: pode- começo da enorme influência da escola
ríamos seguir o caminho da antropologia durkheimiana e dos seus descendentes.
ou da política social. E eu escolhi o da Eles foram influências importantes para
antropologia. Evans-Pritchard, para Mary Douglas,
que estavam no alto escalão da academia
Gustavo Onto: Isso foi nos anos 60. Quem em antropologia quando eu era estudante
estava lá naquele tempo? na graduação. Nós lemos O ensaio sobre a
dádiva em inglês, e é claro que Durkheim
Eu comecei em 1962. O chefe de de- foi uma figura muito importante. Mas
partamento era Raymond Firth. Havia havia uma percepção de que a antropo-
o Morris Freedman, que dava o curso logia social britânica estava se ocupando
de Estudos da China. Anthony Forge, de temas muito particulares, os temas da
que dava Arte e Nova Guiné. Robin Fox, vida moral da tradição durkheimiana.
que dava aulas sobre parentesco. Lucy Então, havia a consciência de que era
Mair, que era africanista. E Herbert uma escola do pensamento naquela
Morris que trabalhava com Indonésia. época, por mais que estivessem também
Então, na verdade, me especializei ali os começos das diferenças, a compe-
em China na graduação. Fiz trabalhos tição e, na verdade, debates entre três
monográficos sobre a China porque ramificações da antropologia.
o meu orientador no último ano foi o Havia a escola de Cambridge em an-
Morris Freedman. Eu nunca tinha ido tropologia política, ou seja, Meyer Fortes.
à China. Conhecia apenas o que havia Além disso, havia Evans-Pritchard, em
lido e estudado. Bem, Freedman era o Oxford, que fora muito importante no de-
especialista em relações de parentesco senvolvimento da antropologia e religião,
na China. Eu estava trabalhando a partir cultura e linguagem. E, ainda, havia a
de sua agenda. Era bastante tradicional. Escola de Manchester, que estava se
Era sobre o que havia acontecido com formando e se tornando muito influente,
as formas sociais da China tradicional uma vez que o grupo de antropólogos li-
sob o comunismo. Este era um grande gado a Max Gluckman voltou para a Grã-
tópico no momento. -Bretanha vindo da África, onde fundou o
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Instituto Rhodes-Livingstone na Rodésia FN – Você escolheu África em Rochester?


do Norte. Eles voltaram como um grupo
para fundar uma linha específica da an- Sim. Eu acho que ao crescer na Grã-
tropologia interessada na vida da metade -Bretanha, nos anos 1950 eu era uma
do século XX: a urbanização, a África criança na escola, a independência das
industrializada, competição, estratégias, colônias era a coisa mais emocionante
esse tipo de abordagem antropológica. E que estava acontecendo no mundo. Era
Fredrik Barth, que retornava da Noruega, muito presente em nossas vidas públicas,
também era muito influente. A University em nossos jornais e tínhamos visitas
College London já estava focando na vida o tempo todo de lideranças dos vários
material, através de Daryll Forde. movimentos políticos. E a Índia, é claro,
tornou-se independente em 1947. Houve
FR – Todas essas influências já estavam uma onda crescente de interesse pelos
de certo modo presentes? movimentos de libertação entre todos
nós. Os movimentos eram muito emocio-
Sim, elas estavam presentes. Fredrik Barth nantes para nós, gente jovem, pensando
realizou seus famosos seminários “On que o mundo iria realmente mudar.
Models of Social Organization” [Sobre O livro Os condenados da Terra,
modelos de organização social] que foram de Frantz Fanon (The wretched of the
publicados e desencadearam pensamentos Earth) foi publicado em inglês; havia
novos sobre trocas. Ele lecionou na LSE. a guerra na Argélia e, é claro, foi uma
Eu estava lá, ouvindo. Ele era carismático, parte muito presente na nossa educação
fascinante. política. Então, de certa forma, as lutas
dos povos coloniais pareciam ser a coisa
FR – Como você chegou aos Estados mais interessante para o futuro. Mas isso
Unidos? era predominantemente na Inglaterra.
Os EUA já estavam avidamente envol-
Por um acaso da vida. Um acaso muito vidos no movimento dos direitos civis,
afortunado. Eu me graduei e fui para no movimento da guerra do Vietnã, no
os Estados Unidos visitar uns amigos movimento feminista. Havia também
e acabei ficando e me casando com a sensação de um movimento rumo a
Bernard Guyer, um americano nascido um futuro com muito mais liberdade,
no Uruguai. Aconteceu que, no lugar mas o foco na África era menor do que
onde ele estava, a escola de medicina na Inglaterra. Entretanto, a partir da
da University of Rochester, havia um de- minha própria história, a África parecia
partamento de antropologia com muitos mais próxima e familiar, me parecia ser o
professores antigos que haviam estudado lugar com o qual eu tinha afinidade por
no passado em Cambridge, na Inglater- ter passado a infância na Grã-Bretanha
ra. Então, quando eu entrei como aluna numa determinada época, e foi por isso
na pós-graduação, eu já conhecia boa que pensei que seria muito interessante
parte da bibliografia que eles exigiam ir para a África.
dos alunos de pós-graduação. Eu estava
adiantada no programa deles e fui fazer FR – E por que a Nigéria?
o meu trabalho de campo muito cedo,
muito jovem. Assim, fiz o meu doutorado Bem, estando casada, eu e meu marido
em Rochester sob a orientação de Robert iríamos juntos, e ele era um estudante
Merrill. de medicina. Portanto, tínhamos que en-
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contrar um local onde ambos pudessem Quando chegamos, tivemos que


trabalhar, certo? Tentamos duas comuni- descobrir onde iríamos ficar. Havia um
dades universitárias diferentes na África, experimento em curso no Departamento
uma em Uganda, Kampala University – e de Medicina da University of Ibadan,
também na Nigéria. Eram estas as duas no sentido de ter um posto avançado
melhores universidades na África angló- da universidade numa área rural, numa
fona naquele tempo, de modo que nós pequena cidade, onde os estudantes de
dois poderíamos fazer trabalhos avança- medicina poderiam fazer a formação
dos, porque eu ainda precisava estar sob em problemas e questões da saúde
orientação. Eu estava sendo orientada rural, e onde eles também poderiam
por um professor de sociologia na Nigé- fazer a coleta de dados básicos de saúde
ria como aluna da pós-graduação. E ele, pública. Esse centro universitário era
é claro, como estudante de medicina, recém-fundado, foi bem no início de sua
também precisava estar sob orientação, existência. À época, parecia aos nossos
no caso, no departamento de pediatria. amigos que a University of Ibadan era um
Nigéria foi o lugar que funcionou para bom lugar para o meu marido, porque ele
ambos nesse sentido, então fomos para poderia trabalhar nas áreas rurais, fazer
lá. Mas isso foi durante a guerra civil sua pesquisa e ainda estar sob supervisão
nigeriana e, quando chegamos, com médica. Quanto a mim, eu só precisava
toda a nossa bagagem, os militares nos estar numa área rural em qualquer lugar
cumprimentaram no aeroporto. Foi bas- para fazer o meu trabalho. Então era per-
tante intenso, na verdade. Fiquei lá por feito. Nós fomos juntos para lá.
um ano.
FN – E quais eram suas ideias antes
FN – Como você se preparou para viajar? disso em termos de objetos de pesquisa
Você tinha contato com as universidades? possíveis?
Você se lembra dos lugares que visitou,
das pessoas que conheceu? Bem, eu havia sido muito influenciada
pelo livro Pul Eliya, de Edmund Leach,
Bem, eu poderia me mover por conta que passou do Political systems of High­
própria em função dos contatos que eu land Burma para esse estudo sociopolí-
tinha com alguns britânicos. Porém, era tico extremamente detalhado e objetivo
muito óbvio que eu precisava da orienta- sobre o sistema de produção. Aliás, eu
ção desse professor nigeriano específico, havia feito um dos meus textos para exa-
Frances Okediji, que era muito conheci- me de qualificação sobre o livro Pul Eliya
do no campo de estudos sobre famílias. e eu gostava muito da forma atenta como
E meu marido, é claro, precisou estabe- ele se aproximava do empírico. Então, a
lecer contatos através de redes médicas, minha proposta foi escrita para realizar
numa situação que incluía uma orien- esse tipo de documentação nos termos
tação profissional reconhecida. Então, teóricos do “ciclo de desenvolvimento
tínhamos que decidir exatamente o que de grupos domésticos”, que havia sido
iríamos fazer, não estava dado de ante- uma iniciativa de Cambridge, publicada
mão. Eu tinha uma proposta de pesquisa em livro por Fortes e Goody. Aproxima-
e uma bolsa de estudos pequena, mas damente no mesmo período, em 1965, o
onde exatamente eu realizaria a pesquisa trabalho de A. V. Chayanov, The theory
não estava definido na proposta naquele of peasant economy, foi traduzido para
momento. o inglês pela primeira vez. Antes disso
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havia uma versão em francês, mas sem universidade particular e já ter feito boa
muita circulação na academia anglófona. parte do estudo considerado obrigatório,
Eu estava muito interessada em pude concluir as exigências do curso em
pensar sobre este referencial teórico para dois anos. Escrevi o meu projeto de tese
um ciclo de desenvolvimento que era no meu segundo ano de pós-graduação.
basicamente demográfico: sobre a rela-
ção entre adultos e dependentes e como FR – Quando você terminou o seu dou­
ela se estabelecia ao longo do tempo, torado, o que fez? Você começou a dar
em relação ao modelo de Goody-Fortes aulas?
do ciclo de desenvolvimento, que era
jurídico-político e que tinha a ver com a Eu comecei a lecionar meio período, por-
posição da unidade doméstica em con- que nesse momento estávamos realmente
textos políticos e sociais mais amplos. Eu em função das obrigações militares do
havia tomado este tema para mim, como meu marido. Não tínhamos escolha quan-
tema para o meu trabalho e, em seguida, to ao lugar onde ficar. Foram dois anos,
o pensamento empírico nos termos do Pul enquanto ele terminava seu estágio e
Elyia de Leach como exemplo do que é residência como pediatra e, em seguida,
possível ser feito. teve o tempo do seu compromisso com o
alistamento. Então foram quatro anos, na
FR – Como esse tipo de projeto foi rece­ verdade, em que nos mudávamos para
bido em Rochester? Pergunto isso porque onde quer que ele fosse solicitado. Eu
não era muito americano, não era muito trabalhava em período parcial em todos
“cultural”, estava mais próximo do mo­ esses lugares e, então, em 1974, porque
delo britânico. havíamos gostado tanto de estar na
África, decidimos que voltaríamos para
Sim, tem razão. A liderança daquele de- lá assim que ficássemos livres para fazer
partamento havia sido treinada em Cam- isso. Ele conseguiu um emprego através
bridge. Foi um acaso da história pessoal, dos Centros para Controle de Doenças
mas também teve o fator extraordinário (Centers for Disease Control – CDC),
da sorte implicado. Para que eu pudesse filiado ao governo federal, em Camarões,
ir com meu marido, de qualquer manei- e nós vivemos lá por três anos, de 1974 a
ra, teria de ser naquele ano específico, 1977. Fiz pesquisa e dei aulas por lá.
antes da graduação dele na Faculdade
de Medicina. Uma vez ele se graduasse, FR – Como foi a experiência de vocês,
estaria sujeito ao alistamento militar, pois tanto na Nigéria quanto em Camarões,
durante a guerra do Vietnã todos os mé- como pessoas brancas num ambiente
dicos eram convocados. Ele teve que fa- pós-colonial?
zer uma equivalência para isentar-se do
serviço militar, e não podia simplesmente Na verdade, os africanos ocidentais em
escolher para onde queria ir. Então, tive geral não tendem a agir com nenhuma
que ser ágil no meu processo para que deferência particular, querem conhecer
ele pudesse tirar um ano da Faculdade as pessoas como iguais, então é muito
de Medicina para fazer sua pesquisa. agradável, é bom. O único momento
Portanto, tecnicamente, ele não estaria em que fiquei um pouco preocupada
apto para o alistamento durante aquele por nós como americanos foi quando
ano. Nós nos vimos nessas circunstâncias estávamos na Nigéria durante a guerra
afortunadas por acaso. Por eu estar numa civil. Cáritas, a Caridade Católica, estava
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se aliando com Biafra e nós estávamos ou outra, os oficiais militares paravam um


no lado federal da fronteira geográfica, e caminhão de mercadorias, falavam com
por toda a família Kennedy ser católica, as pessoas, faziam alguma pressão e ha-
houve certa suspeita de que os america- via um pouco de ameaça com a presença
nos estivessem de alguma forma afiliados dessas autoridades. A presença direta das
com Biafra. Essa suspeita não estava ba- Forças Armadas era mais intimidadora do
seada em nenhuma evidência particular, que propriamente ameaçadora.
mas começava-se a ter esta impressão O sistema de mercado, no entanto, foi
porque muitos dos nigerianos orientais afetado por essa penúria de transportes.
são católicos, então, tomava-se cuidado As pessoas desenvolveram um conjunto
para não cometer desvios em relação à de métodos para tentar evacuar as plan-
lei, tentava-se manter uma atitute não tações de modo muito rápido. Havia
chamativa. Esta é a única preocupação um toque de recolher nas cidades, você
que lembro que tive. não podia entrar depois das 18 horas,
e não podia sair antes das 6 da manhã.
FN – Seu trabalho de campo foi realizado Portanto, os caminhões que iam para
no meio desse contexto de guerra civil. as áreas rurais e que alimentavam as
Como foi fazer o seu trabalho de cam­ cidades tinham que sair e voltar em um
po nessas condições tão conflituosas? dia, ou então teriam que permanecer
A guerra estava muito presente? na barreira durante toda a noite após
o toque de recolher. Desta forma, nos
Estava presente de modos muito parti- mercados atacadistas rurais, eles tinham
culares. A guerra em si estava a alguma que trabalhar muito rápido para fazer os
distância. Estava longe, nunca chegou a negócios, encher os caminhões, fazer
nós como uma guerra de armas e tiros. a troca de dinheiro, se deslocar, certo?
Mas, por exemplo, na área onde eu traba- E isso era um pouco diferente de quando
lhava com os fazendeiros, eles fundaram eu voltei, mais tarde, a esses mercados
um campo de treinamento militar para rurais. Quando voltei, achei mais tran-
recrutas, então, de uma hora para outra, quilo, era organizado de modo menos
havia uma base militar inteira bem no rigoroso. Antes, havia o efeito da guerra.
meio da minha área de campo. Na ver- Havia também contrabando, estáva-
dade, isso não me afetou tanto, exceto mos muito perto da fronteira com Benin,
pelo fato de que todos os caminhões então, os contrabandistas costumavam
de mercadorias tinham que passar pela vir através dessa área trazendo produtos:
base militar para chegar aos mercados. não equipamento militar, até onde eu
E havia muito poucos caminhões, poucos saiba, mas trazendo mercadorias que es-
transportes comerciais, porque todos os tavam em falta nos mercados nigerianos.
veículos que estavam em bom estado Mas como eu disse anteriormente sobre
eram de alguma forma requisitados ter que manter certa discrição, eu sabia
para a guerra. O sistema de mercado dessas coisas, mas não tentei investigar
era desprovido de transporte, assim, os para ter mais informações sobre isso, pois
caminhões eram sobrecarregados com era potencialmente perigoso tanto para
mercadorias. Havia sacos amarrados ao eles quanto para mim. É possível que,
lado, havia cabras no topo, havia latas àquela altura, o avanço real de Biafra em
de óleo de palma. Eu costumava viajar outras partes da Nigéria tivesse cessado,
sentada em cima de caixas de tomates. e que a guerra tenha prosseguido real-
Íamos amontoados dessa maneira e, vez mente dentro de Biafra, que é uma área
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delimitada. Acho que havia uma sensa- acadêmicos, criando e liderando equi­
ção de que o lado federal ia ganhar, que pes como no projeto Money Struggles
era só uma questão de quando e como, (Guyer, Denzer & Agbaje 2002). Como
e que o perigo físico real na maioria das foi a experiência de estar lá trabalhando
áreas não seria tão grande, porque era na com uma equipe?
verdade uma guerra de secessão.
Bem, Money Struggles foi um projeto
FR – Você teve duas experiências dife­ de equipe, foi um acontecimento muito
rentes na África, uma em Camarões e a feliz. Foi lançado em 2001 nos EUA
outra na Nigéria. Você fez pesquisas em e, em 2002, na Nigéria. O trabalho
ambos os países e também criou relações de campo se deu em 1997. Mas o que
com as universidades locais. Uma de suas aconteceu nesse caso foi que em 1992
singularidades é o seu extenso trabalho eu já estava desenvolvendo um trabalho
colaborativo com colegas africanos. Você sobre dinheiro. Tendo trabalhado com
poderia nos falar um pouco sobre os produção e, particularmente, com um
constrastes e as diferenças entre esses abastecimento de alimentos urbanos no
dois lugares? interior, tal como a área onde eu estava
na Nigéria, fiquei muito intrigada com
Eu nunca ministrei cursos na Nigéria, os preços, especialmente com os preços
eu dava palestras com frequência, além de comida. Comecei a tentar entender os
de conferências e atividades do tipo, mas preços e editei aquela coleção Feeding
nunca cursos. Já em Camarões eu fui pro- African Cities (Guyer 1987a), publicada
fessora, lá eu ministrei cursos. Acho que em 1987, para tentar reconstruir o tipo de
a minha primeira colaboração foi no con- economia política de diferentes sistemas
texto de Camarões com Eno Belinga, com urbanos através do tempo. Trata-se, por-
o meu trabalho Wealth-in-People (Guyer tanto, de um livro histórico.
& Belinga 1995). De fato, tornei-me mais Enquanto eu fazia o que estava fa-
e mais consciente de como é relativamen- zendo, ficava frustrada com o fato de nós
te estreito o nosso conhecimento sobre realmente não entendermos por que os
esses lugares, mesmo quando fazemos preços são o que são, e o que as intepre-
pesquisas, porque nós temos um foco, tações sobre preços pareciam sugerir:
seguimos e documentamos isso, mas há “Bem, os preços estão altos demais”, mas
o contexto maior, o contexto histórico, também ,“os preços estão muito baixos”.
o contexto linguístico, em toda a África Eu não sei se vocês se recordam, mas
Ocidental, as poéticas da linguagem... houve um momento, durante o início do
Esse é um vasto horizonte e, desde o período de ajustes estruturais, em que o
início, comecei a ter consciência de Banco Mundial estava tentando ajustar
minhas próprias limitações em relação aspectos variados das economias afri-
à vastidão do conhecimento. Portanto, canas, mais especificamente através da
a colaboração foi uma maneira muito alteração das taxas de câmbio. E havia
estimulante de construir uma visão mais um ditado: “temos que acertar os preços”.
ampla, sem passar por cima de quem eu “Acertar os preços” fazia parte da agenda;
sou, sem abrir mão do conhecimento com para provocar o lado da demanda para
o qual eu me sentia segura. os produtores e para os consumidores
de modo que tivessem condições finan-
FR – Você encontrou diferentes maneiras ceiras para adquirir as mercadorias, e
de colaboração: trabalhando junto a também para os fornecedores e para
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os produtores de alimentos, para que Nigéria, em uma enorme campanha para


fossem capazes de ganhar a vida com recolhê-las e substituí-las pelo dinheiro
isso. Nunca foi esclarecido como seria colonial. Então, em 1992, eu organizei
possível fazer isso, especialmente com a uma conferência em Gana sobre a turbu-
desvalorização da moeda e uma taxa de lência nos sitemas monetários, pensada
câmbio imprevisível. historicamente, e foi esta a base para
Era este o contexto a partir do qual eu Money matters (Guyer 1995), publicado
estava tentando pensar o registro hitórico em 1995.
dos preços. E quando trabalhamos nesses Mas em 1992 nós tivemos uma ex-
casos históricos, o caso em que trabalhei periência extraordinária, quando fomos
foi sobre a história de fornecimento de comprar biscoitos no intervalo da con-
alimentos em Yaoundé (Guyer 1987b); ferência com sacos de dinheiro, porque
aprendi que toda a parte inicial da his- o valor do Ghanaian Cedi havia caído.
tória se dava por requisição. Não era E nós ficávamos pensando: aqui estamos
feito num sistema de mercado. Pessoas estudando esse fenômeno historicamen-
comuns eram simplesmente requisitadas te, e não estamos fazendo nada sobre o
pelos chefes para prover alimentos para que está acontecendo agora diante de
a cidade-capital. Na verdade, foi preciso nossos olhos, o que está acontecendo
uma série de intervenções para torná-lo em nossas próprias vidas. Então, foi aí
um sistema de mercado na década de que começamos a fazer uma coleção
1950. Então, eu estava muito intriga- de artigos de jornal sobre a economia
da com toda essa questão de preços. nigeriana, para ver se nós poderíamos
E ocorreu-me num determinado momen- produzir algum tipo de arquivo de
to – afinal de contas eu sou antropóloga – materiais, para documentar dia a dia,
“vamos retornar aos próprios valores semana a semana, o que estava aconte-
das pessoas, suas próprias transações cendo em uma economia na qual o valor
comerciais e assim por diante”, o que da moeda estava caindo com guinadas
significava para mim voltar historica- imprevisíveis.
mente ao sistema de moedas indígenas LaRay Denzer, uma historiadora ra-
africanas. Depois, fui trabalhar em dicada em Ibadan, organizou a coleção
Tervuren, Bélgica, no Royal Museum of dos recortes de jornais na Nigéria ao
Central Africa, que tem uma coleção de longo de vários anos. E foi com base
moedas simplesmente extraordinária. nessa coleção que eu e LaRay escre-
Passei algum tempo lá documentando vemos uma proposta de pesquisa para
os diferentes tipos de dinheiro históri- a Fundação MacArthur solicitando
cos da África Equatorial; há um número financiamento, para analisar os mate-
surpreendente. riais e interpretar a turbulência daquela
Foi assim que eu acabei trabalhando era na economia popular. Eles ligaram
com dinheiro e tornou-se muito interes- um dia para o meu escritório. Estavam
sante para mim pensar sobre as maneiras numa reunião debatendo a proposta e
como os sistemas de valores com base disseram: “Como vocês podem fazer
nessas moedas mudaram ao longo do isso sem o trabalho de campo? Vocês vão
tempo, especialmente com a sua remoção fazer todo o estudo a partir de jornais?
e substituição por dinheiros coloniais, o Como vão fazer isso?”. E eles disseram:
que aconteceu em toda a África Central “Se vocês escreverem uma proposta in-
Ocidental. O último curso legal das cluindo o trabalho de campo entre agora
moedas africanas se deu em 1948, na e hoje à tarde, nós vamos dar-lhes um
LIDANDO COM A ORIGINALIDADE 611

pouco de dinheiro extra para o trabalho qual se referem novamente Bohannan,


de campo!”. Então pensamos: “tudo Godelier, Meillassoux – todos esses
bem, vamos fazê-lo”. pensadores das “articulações” estavam
Nós simplesmente abrimos espaço observando mudanças. Mas eles não
em nossas vidas e escrevemos uma pro- estavam necessariamente pensando
posta de alguns poucos milhares de dó- sobre o mesmo tipo de turbulência
lares, uma quantia muito pequena, e eles que nós estávamos examinando, algo
nos deram o dinheiro. Então nos confron- que não era possível determinar para
tamos com a pergunta “O que vamos fa- onde estava indo. Nós nem ao menos
zer com isso?”. A Nigéria é enorme, exis- tínhamos certeza, naquele ponto, sobre
tem 250 línguas na Nigéria! “Onde é que que tipo de “articulação” caracterizaria
vamos começar realmente a implementar o momento de ajuste estrutural, o que
esse projeto que elaboramos em poucas exatamente seria a economia do futuro.
horas?”. E foi LaRay quem teve uma Todas essas políticas começaram na
ideia brilhante. Ela disse: “Por que não África na década de 1980, portanto,
podemos simplesmente pegar o dinheiro, antes da globalização, antes da queda
montar uma equipe de pesquisadores do Muro de Berlim, antes da integração
da Nigéria e dar a todos uma pequena da China a este grande movimento na
subvenção com esse dinheiro, e assim economia mundial. Não era sempre fácil
a gente organiza um empreendimento saber com clareza qual era exatamente
coletivo?”. Assim todo mundo vai fazer a bibliografia relevante.
alguma coisa relacionada a seu campo de Então foi isso que nós fizemos, nós
conhecimento, mas apontando-a na dire- levamos o dinheiro que tínhamos para a
ção da desvalorização monetária: estudar etnografia e o repartimos. Fizemos uma
o que está acontecendo nos domínios reunião de planejamento com acadê-
em que cada um já conhece, durante o micos nigerianos muito bons e demos
período da desvalorização. Havia alguém a todos um pequeno auxílio. Nós, que
que conhecia o sistema de transportes, éramos os estrangeiros, não ficamos
alguém que conhecia religião, alguém com muito dinheiro para fazer os artigos,
que conhecia teatro… acho que quase nada, e depois ainda
fizemos uma conferência para devolver
GO – Que tipos de perguntas você ti­ a quantia retirada. Mantivemos contato
nha em mente naquele momento para uns com os outros o tempo todo e tínha-
direcionar esses problemas de pesquisa mos uma expectativa muita rigorosa: de
ligados à inflação, à instabilidade mone­ que cada artigo seria muito empírico, de
tária, ao valor do dinheiro e aos “ajustes que estávamos sendo testemunhas de
estruturais”? um momento da história que não estava
documentado, em parte por causa do
Sabe, naquela época havia muito mais regime militar. Todo mundo estava livre
desses temas na história social, não para usar qualquer método teórico ou
tanto na antropologia; não havia muita disciplinar que quisesse usar, porque
coisa na antropologia. Talvez houvesse éramos de diferentes disciplinas. E então
algum pensamento em torno disso, mas fazíamos uma conferência para criticar
não estava bem organizado como um os trabalhos uns dos outros e juntar os
conjunto de trabalhos, havia exemplos, textos, transformando esse conjunto em
lugares específicos, a entrada do dinhei- livro. Foi isso que fizemos. E sim, as
ro ocidental, esse tipo de turbulência à pessoas gostaram.
612 entrevista

FN – Dinheiro, preços, abastecimento de para além do chefe de família. E mesmo


alimentos, mercados, todos são assuntos na metodologia, não se pode presumir
econômicos. Naquele tempo, eles também que o chefe de família conheça a vida
foram alvos das então chamadas políticas econômica de todos os membros. Então,
de ajuste estrutural, tal como o que reco­ nós estávamos tentando inserir na me-
nhecíamos na América do Sul. Que tipo todologia que os estudos domésticos e
de diálogo você teve com a economia e os os dos camponeses precisavam que todo
economistas? Como é que eles receberam mundo na casa fosse entrevistado. E era
o seu trabalho? necessário haver uma teorização quanto
ao lugar específico da mulher.
Acho que eles não leram o meu trabalho. Eu escrevi um artigo em 1981 (Guyer
Existem dois tipos de posicionamentos 1981) que foi bastante citado por econo-
de economistas em relação ao meu mistas por muito tempo, porque permitiu
trabalho. Talvez existam três tipos de que eles tivessem uma visão particular
posicionamentos. Para alguns, a minha sobre os processos intrafamiliares, visão
pesquisa não dialoga com seus proble- esta que estava sendo elaborada por
mas, então eles olham um pouco de lado: antropólogos de modo mais amplo, não
O que é isso? Para que fazer isso sem ter apenas por mim. E, assim, para construir
um problema muito específico ao qual seus modelos, esses economistas aplica-
se referir? Há uma crítica ao Feeding ram a matemática da teoria dos jogos a
African Cities em que toda a avaliação é esta questão e, de fato, foram muito lon-
um lamento por este livro não tratar de ge com isso. Um livro foi publicado em
qualquer “problema”. Há um economista 1997 sobre processos intradomésticos e
que está bastante interessado em apre- foi escrito por economistas com um com-
ender as percepções dos antropólogos ponente matemático. Eu contribuí para
em geral. Ele tem sido um colega muito isso. Eles me convidaram para comentar
próximo, Chris Udry e está em Yale. Ele sobre o trabalho deles numa conferência
é um microeconomista bem sofisticado, (Guyer 1997). Há uma nova possibilidade
então ele consegue transformar as per- de engajamento entre o tipo de trabalho
cepções dos antropólogos em projetos de sócio-histórico que eu fiz e o que é cha-
pesquisa que podem incluir os tipos de mado de economia heterodoxa, e espero
modelos matemáticos que satisfazem às poder explorar isso. Então, alguns desses
normas de sua própria disciplina. Isto é intercâmbios e algumas dessas relações
interessante. entre antropologia e economia são muito
Acho que um terceiro posicionamen- interessantes e, por vezes, esses campos
to seria, portanto, de um grupo entre nós apenas passam uns pelos outros sem
que, através de toda a década de 1980, realmente se afetarem.
estava falando a partir do feminismo e
também a partir do etnográfico sobre FN – Entre a sua tese de doutorado e essa
as limitações do modelo doméstico pesquisa no final dos anos 1980, o que
(household). Se você fala sobre a vida exatamente aconteceu com você profis­
doméstica como uma unidade e não se sionalmente e pessoalmente? Depois de
pergunta quais são os relacionamen- Camarões, você voltou para os EUA, para
tos que a unidade contém, você estará a Northwestern University?
obliterando as relações de apoio, de
dominação, de restrição ou de possibili- Primeiro eu fui para a Boston University.
dade para os outros membros da família, Este é mais um dos grandes acontecimen-
LIDANDO COM A ORIGINALIDADE 613

tos afortunados da minha vida pouco pre- bem detalhado. Você podia ler e reler
visível. Muitas decisões foram tomadas esse trabalho e encontrar pequenos
simplesmente por que se apresentaram pontos nos quais se podia apreender a
como possibilidades boas e divertidas. história, ou você podia reler a partir de
Voltamos de Camarões em 1977, porque alguma iniciativa nova e notar que algo
meu marido teve de retomar a sua carrei- diferente estava se dando. Porque suas
ra em casa. Ele havia feito um trabalho evidências empíricas eram normalmente
muito interessante em Camarões, mas mais amplas do que suas interpretações.
precisava completar a sua formação E, de fato, isso era relevante. Lembro-
pediátrica e abrir caminhos em sua -me de que, quando era estudante de
carreira nos EUA. Então nos mudamos pós-graduação, o meu primeiro desafio
para Boston, e eu comecei a realmente analítico foi reanalisar um conjunto de
me dedicar intelectualmente à história, trabalhos empíricos publicados para
porque estava muito convencida de que, então tomar um viés teórico diferente
pela minha experiência em Camarões, o e reavaliar o que havia sido publicado.
tipo de trabalho clássico e sincronizado Acredito que a expectativa daquela ge-
para o qual eu tinha sido treinada para ração foi a de sempre publicar o máximo
fazer não seria o suficiente. Precisávamos possível de registros das evidências,
da Escola de Manchester e do tipo de mesmo se você, o autor, não fosse capaz
história social de E.P. Thompson para os de interpretar tudo aquilo. Alguém viria
estudos na África. depois. Fazia parte de uma visão cientí-
Para lugares como Yaoundé, onde a fica muito particular que essas pessoas
história colonial tinha sido tão presente, tinham, a de que a evidência pode estar
tão insistente, tão importante na forma- além de sua capacidade de interpretação,
ção e na transformação da economia, da mas era preciso que ela estivesse ali para
sociedade e da religião, era realmente que outra pessoa pudesse futuramente
preciso fazer da história parte do empre- desenvolvê-la.
endimento antropológico. Então, eu fiz Este foi um dos desafios que nos
alguns artigos históricos e eles foram os foram ensinados como estudantes: que
meus primeiros trabalhos publicados em deveríamos voltar aos registros e relê-los,
história econômica. Assim, eu tive a sorte e repensá-los e reanalisá-los, e juntar
incrível de conseguir um emprego como todos os pedaços novamente, talvez, de
docente iniciante em Harvard em 1980. uma maneira diferente. Grande parte
Trabalhei lá por seis anos. De lá fui para desse trabalho tinha essa capacidade,
a Boston University, de 1986 a 1994, e em abria essa possibilidade, permitia que
seguida, para Northwestern, de 1994 a se voltasse a ele para relê-lo, repensá-lo
2002. E depois vim para Johns Hopkins. e reanalisá-lo a partir de uma pergunta
mais histórica ou, por vezes, através de
FN – Como foi a sua leitura naquele uma grande questão, para a qual mesmo
tempo dos trabalhos de antropologia um pequeno fragmento de evidência
econômica, como, por exemplo, os de Bo­ poderia ser importante. E sentia-se a
hannan, que também trabalhava a partir confiança de que, se alguém trabalhasse
de uma perspectiva histórica? duro o suficiente, encontraria algo, seria
possível reconhecê-lo quando o visse,
A coisa que aquela geração de antro- pois estaria ali. No meu caso, tratava-
pólogos fez, que foi tão incrivelmente -se de um engajamento menos teórico.
importante, foi esse trabalho empírico Embora desde muito cedo eu tivesse sido
614 entrevista

orientada por um viés histórico, eu estava escrevi sobre isso uma vez (Guyer 1999),
muito mais interessada no neomarxismo também como resposta a uma enco-
de Claude Meillassoux, Georges Dupré, menda de texto: é o fato de que estamos
Pierre-Philippe Reyand – este tipo de sempre falando sobre a originalidade
escola de pensamento – do que em repro- da vida humana e de sua capacidade e
duzir o funcionalismo-estrutural. imaginação. Isto, é claro, é lido de modo
mais convencional como diversidade e
FR – Tenho a impressão, ao ouvi-la agora todas as culturas do mundo podem ser
e ao ler o seu trabalho, de que a antro­ alinhadas de modo muito particular com
pologia não é o suficiente. Quais são as o que Ruth Benedict chamou de “gran-
implicações teóricas presentes no modo de gama das possibilidades humanas”.
como você articula etnografia e história? Mas, de certa maneira, a capacidade de
identificar originalidade, acredito que
Eu não diferenciava claramente o que era isso esteja inscrito na antropologia desde
do meu temperamento e o que se devia às o início do século XIX e demande um
minhas convicções teóricas. Acho que é certo tipo de triangulação das ideias, de
preciso um bom tempo de carreira para se envio de uma ideia e da escuta de uma
perceber por que você se interessa pelo resposta, provocando a nossa percepção
que se interessa. Em algum momento, da originalidade tanto em relação às situa­
a partir da década de 1990, me tornei ções específicas que estudamos quanto
consciente de que estava começando aos pensamentos de um outro povo.
a escrever obras que dialogavam dire- Aquele artigo em particular foi bastante
tamente com pessoas específicas, não divertido fazer.
apenas fazendo comentários teóricos ou Na verdade, foi o Achille Mbembe
tentando estabelecer uma nova fronteira que me pediu para escrever. Ele havia
teórica. Mas as pessoas me solicitavam, sido um ótimo colega no início da dé-
assim como você me convidou: “Venha cada de 1990, um interlocutor muito
para esta conferência, nós gostaríamos interessante para os meus trabalhos em
que você falasse sobre ‘X’, este é o nos- Camarões sobre a riqueza-nas-pessoas
so tema, você tem alguma coisa a dizer (Wealth-in-People). Em algum momento,
sobre isso?”. E eu comecei a escrever em meados dos anos 90, ele deu uma
alguns dos meus trabalhos neste forma- conferência sobre Estudos Africanos e
to, em vez de conduzi-los a partir de um África, na África do Sul. Ele me pediu
projeto de pesquisa. E então comecei a para falar sobre o que a antropologia ha-
perceber que havia toda uma série de via oferecido para os estudos africanos ao
outros tipos de inspirações e de tem- longo dos últimos 100 anos. “Últimos 100
peramentos dos quais eu gostava, que anos (!?). Isto é um artigo? Uma enciclo-
me davam alegria. Este modo de pensar pédia? O que você está me pedindo para
talvez tenha abarcado mais essas rela- escrever?”. Ele disse: “Escreva o que
ções, como no trabalho em equipe, que quiser, o que vier à sua mente.” Então eu
não só exigia uma estratégia para que resolvi escrever sobre método: a questão
se conseguisse fazer o trabalho, como da identificação de originalidade, e de
também era uma maneira de encontrar como fazemos isso, quais são os tipos de
inspiração, triangularizando meu próprio disciplinas intelectuais que nós temos,
pensamento com o de outras pessoas. treinamento da mente que nos permite
Acho que esta é uma das coisas que reconhecer e, em seguida, documentar e
eu sempre amei na antropologia, e eu pensar sobre a originalidade, tanto origi-
LIDANDO COM A ORIGINALIDADE 615

nalidade histórica quanto originalidade domésticos. De uma forma ou de outra,


lateral, cultural. Foi isso que fiz para eu havia trabalhado sobre domicílios
aquele artigo específico. (households) por 15 anos. Então, fiz uma
justaposição de uma série de peças que
FR – Falando especificamente de Margi- pareciam possuir certa integridade que
nal gains (Guyer 2004). De certa maneira, eu ainda não havia descoberto. Mas fiz a
este trabalho teve um impacto importante série de palestras e, em seguida, é claro
nas discussões sobre África, sobre econo­ que tive que escrevê-las para publica-
mia, antropologia do dinheiro. Podemos, ção. Quando comecei a escrever, isso se
talvez, dizer que condensa esses campos ampliou e se estruturou numa arquite-
de conhecimento dos quais você está tura diferente do que foram as palestras.
falando: relações, historicidade, também Então, eu tive que trabalhar com outros
dinheiro e cálculo, neste caso. Como você campos conceituais bastante particulares
explica o projeto do Marginal gains? para possibilitar figurar ali uma ideia
de conjunto, pelo menos um plano mais
Eu fui convidada para dar as palestras coeso, porque é realmente um assunto
Morgan na Rochester University, em muito grande para se dar conta em um
1997. É claro que estou em casa neste pequeno livro. Mas eu tive a intenção
departamento, é o departamento no qual de mantê-lo pequeno e, de modo muito
me formei, e ainda estou pensando em consciente, cuidei para que cada capítulo
formas de articulação. Mesmo que eu tivesse o tamanho de uma palestra, para
ainda não tivesse feito realmente uma que contivesse o ponto de partida que
obra teórica sobre articulação, isto sem- era o próprio formato da palestra, sem
pre estivera na minha mente. O tópico notas de pé de página. Meus colegas da
que abordei foi: “Limiares e Conversões: História ficaram horrorizados: “Você tem
Explorações das economias articuladas todas essas referências, todo esse mate-
da África” (“Thresholds and Conver- rial e não há notas de pé de página?”.
sions: Explorations of Africa’s Articulated Sabe, à sua maneira, havia ali uma
Economies”). Então, eu tive uma série de qualidade artística: foi dessa forma que
ideias em torno de articulação que orga- a arquitetura do texto se apresentou para
nizei para essas palestras, e o capítulo mim e era isso o que eu queria fazer. Mas
introdutório foi dedicado a Bohannan se pensarmos sobre interlocutores, quase
e às esferas de trocas, endossando isso, todos os capítulos têm um alguém implí-
mas também lhe dando maior nuance, de cito com quem eu converso (“Como vou
modo que toda a troca parecesse e fosse, fazer isso? O que você acha sobre...?”).
de certa forma, assimétrica, potencial- Ou seja, desafiando ideias, realmente
mente assimétrica, na verdade, assimé- tentando ir fundo, retomando todas essas
trica. Este foi o meu insight desde o início linhas que mencionei anteriormente: “a
do projeto. Portanto, estava cruzando literatura diz isso e, agora, como isso
história com antropologia, em especial pode ser possível, o que está por trás
a história das transações monetárias do disso?”.
tráfico de escravos através daquela área
da Nigéria central. GO – Em termos da recepção do livro
Tive que fazer um total de quatro Marginal gains, foram muitas as rese­
palestras, trabalhei com outros temas es- nhas por parte de africanistas, antro­
pecíficos que eu já tinha em mente, como pólogos, sociólogos econômicos, como,
o do artigo da análise dos orçamentos por exemplo, Michel Callon, e também
616 entrevista

economistas, eu suponho. Eu me recordo mas já podemos enxergá-lo”. Alguns


de ter lido seu texto que abarca a questão aspectos foram assimilados muito rapida-
dedicada ao Marginal gains no African mente, eu acho, e as pessoas começaram
Studies Review, em que você tenta res­ a retomar a ideia de conversão, para
ponder a alguns comentários sobre o voltar a Bohannan, e depois aplicá-la
papel do empírico e do teórico no livro nas finanças modernas. Pessoas como
(Guyer 2007a). Então, como foi a recepção Bill Maurer usaram o meu trabalho desta
do livro? E como foi a sua reação? forma. Houve um momento de absorção
muito rápida, penso que isso não se deva
A maior parte da recepção foi positiva. a uma qualidade persuasiva, mas sim ao
Acho que ninguém teve um posiciona- reconhecimento do fenômeno por parte
mento hostil em relação ao livro, pelo que das pessoas. E continua sendo um desa-
eu saiba. É claro que é muito gratificante. fio para mim. É um trabalho inconcluso,
Também é importante pelo esforço exigi- ele possui uma completude estética, mas
do. Pois acho que, em diferentes discipli- não está encerrado intelectualmente.
nas, há sempre algum subsegmento de Agora, estou pensando que trabalhar com
nossa comunidade intelectual que quer a temporalidade é uma coisa que preciso
trabalhar de modo muito imediatista, fazer. Porque, de fato, nos EUA, o artigo
forjar classificações e seguir em frente. que fiz mais recentemente, “Prophecy
E eu me sinto muito contrária a tudo and the near future”, foi, de longe, o
isso, o mundo é muito mais interessan- mais amplamente lido. Acho que isto se
te, tem muito mais a nos dizer do que o deve ao fato de que as pessoas estão se
que temos como ferramentas conceituais sentindo muito desafiadas pelos fatores
para apreciá-lo. Portanto, o fato de que temporais (Guyer 2007b).
o livro era tão insistentemente empírico,
impedindo que as pessoas simplesmente FN – Qual a sua opinião sobre a chama­
o decifrassem rapidamente, tal como elas da Nova Sociologia Econômica? Como
poderiam ter feito com um argumento você acha que essa literatura específica
teórico forte, era uma coisa boa. Foi mui- dialoga com o seu trabalho?
to bom ter sido capaz de me posicionar
dessa maneira, porque era um desafio. Eu acho que é um trabalho notável,
Ou seja, é como dizer para os outros: “se simplesmente extraordinário! Eu não
quiser, pode reinterpretá-lo, mas vai ter mencionei que há um movimento muito
que lidar com todo esse material empírico grande nos EUA que não é sobre a Áfri-
e ver o que você pode fazer com ele”. Eu ca. Há, por exemplo, a Viviana Zelizer,
tenho uma ótima colega economista que e toda uma série de pessoas fazendo um
disse: “Meu Deus, quando você pensa trabalho absolutamente importante no
sobre todas essas conversões, agora que Ocidente, o que torna este campo muito
você as apontou, para onde quer que eu vivo porque você pode estabelecer no-
olhe, enxergo conversões, não é?”. Há vas relações, se deslocar em diferentes
coisas incomensuráveis sendo reunidas. direções, cruzando diferentes campos.
De certa maneira, acho que uma E há pessoas trabalhando na antropolo-
quantidade relevante de pessoas de gia de finanças, que também falam co-
diferentes disciplinas reconheceu o fenô- migo como se eu fosse parte de sua rede,
meno e disse: “Bem, nós reconhecemos mesmo que eu nunca tenha realmente
que, de certa maneira, não estamos exa- trabalhado diretamente com finanças,
tamente acompanhando isso na prática, exceto talvez nos artigos sobre profecia
LIDANDO COM A ORIGINALIDADE 617

e preço. Mas isso é um pouco por acaso. em várias línguas, em escritura hebraica,
Não é algo sobre o qual eu tenha desen- talvez em árabe também.
volvido um projeto de pesquisa. Mas Avner Greif trabalhou nessa coleção
acredito que o apreço pela novidade, a a partir da perspectiva da New Institu-
originalidade do nosso momento históri- tional Economics, e eu estava tentando
co no que diz respeito à vida econômica entender o sistema monetário, porque
e à valorização monetária estão sendo o Mediterâneo era um sitema de troca
reconhecidos de forma bem mais ampla enorme e rico naquele momento parti-
do que antes, e isso é muito animador. cular e um tanto dominado por Veneza.
Também penso nas pessoas que Então, ele ficava falando sobre ducados.
trabalharam na nova economia institu- Como eu havia trabalhado com um grupo
cional e nas pessoas que ficaram muito de historiadores que lidavam com múlti-
conhecidas neste tipo de campo, como a plas moedas, eu ficava pensando: “Este
Elinor Ostrom, com propriedade coletiva. é um tipo de ducado real, ou existem
Eu acho mais importante a sua insistên- vários tipos de ducados, ou se trata de
cia na questão de que existem modos de um conceito artificial de contabilidade?”.
gestão coletiva do que exatamente a nova Havia conceitos contábeis no comércio
teoria econômica institucional. Creio que de escravos do Oeste africano e em outros
a questão é absolutamente instigante comércios do mundo que não possuíam
e bastante significativa no contexto do qualquer representação tangível. Então,
trabalho teórico que esteve, por algumas de repente, enquanto eu lia Greif, seus
décadas, muito focado na racionalidade ducados pareciam precisar de um capí-
da tomada de decisão individual, e assim tulo inteiro dedicado só a eles. Quem
por diante. Por exemplo, o livro de Avner estava controlando as taxas de câmbio?
Greif sobre o comércio do Mediterrâneo Que tipo de sistema de preços foi esse?
é interessante e o material de origem Acredito que possam existir caminhos
é muito importante para compreender muito interessantes para relacionar os
o comércio do Mediterrâneo no início espaços naquele trabalho aos tipos de
do período moderno. Grande parte é questões que todos nós estamos levan-
proveniente deste enorme depósito de tando na antropologia.
documentos, a maioria é de comerciantes
judeus do Cairo e foi encontrada nesta FN – Neste sentido, e num tópico empí­
sala – a geniza – basicamente deixada de rico e teórico muito similar, há também
lado porque não se pode jogar fora um o seu diálogo com o historiador Akinobu
pedaço de papel que possa ter o nome Kuroda.
de Deus nele. Em torno de uma grande
quantidade de documentos, não apenas Kuroda! Este é um dos aspectos que
documentos religiosos, mas também esqueci de mencionar a respeito de
contratos, havia a crença de que pode- Marginal gains. Bem, depois de sua
riam estar abençoados, então todos eles publicação, Kuroda me procurou em
foram lançados na geniza e esta geniza função de seu trabalho sobre múltiplas
do Cairo foi descoberta através da aca- economias monetárias, me convidando
demia do mundo ocidental na década de para juntar-me a eles, pois não tinham
1890. Havia esse enorme esconderijo de ninguém trabalhando na África. Ele
documentos sobre o qual duas gerações estava trabalhando na China, e escre-
de acadêmicos trabalharam. É um traba- veu um artigo muito inspirador sobre
lho muito difícil, eu acho que está escrito Maria Theresa Thaler no norte da África
618 entrevista

(Kuroda 2007). Ele organizou uma rede FN – O que significa o “mercado” nesse
de acadêmicos que trabalham com vários contexto de múltiplos sistemas de moe­
sistemas monetários do passado, incluin- das? E quanto ao “mercado” no âmbito
do o seu próprio trabalho sobre a história da pluralidade do dinheiro?
da moeda chinesa e japonesa, e também
outros sobre a Índia, a Escandinávia, a O “mercado”, sim. Parece-me que a
Itália e algumas economias importantes, disciplina da antropologia deveria ter
as grandes economias, até mesmo sobre assumido a questão da história mundial
a integração monetária do Império Ro- dos mercados. Nós permitimos, de certa
mano. Porque havia casas da moeda em maneira, que os economistas simples-
diferentes partes do Império, a pergunta mente equacionassem o mercado com o
era: eles estariam cunhando as mesmas capitalismo, que é uma coisa muito estra-
moedas que estavam sendo cunhadas no nha de se ter permitido. Quero dizer que,
centro? Ou essas regiões independentes depois de Trade and market in the early
estariam produzindo moedas com as empires e a classificação que Polanyi e
mesmas palavras e os mesmos valores nu- seus colegas levaram adiante, tem havido
méricos e cálculos anexados a elas, mas uma quantidade enorme de pesquisa em
fisicamente diferentes em algum aspecto? arqueologia etc. e também em sistemas de
E quem controlava isso? Esse acadêmico mercados por toda parte. Será que temos
tradicional estava levantando estas ques- uma teoria desses sistemas de mercado ou
tões extremamente interessantes. ao menos uma compilação empírica sobre
Então, Kuroda me colocou nesta rede que tipos de relações de troca têm havido?
e eu fui a muitas de suas conferências Eu estava perguntando a um colega que
e tem sido absolutamente inspirador, trabalhou na América Central, mais uma
porque eles estão tentando montar uma vez, sobre estas pequenas questões que
abordagem teórica mais geral que dê permanecem em sua mente durante anos
conta de vários sistemas monetários. até que você encontre a resposta. Merca-
Olhar para suas combinações, olhar dorias foram distribuídas, mas não foram
para as suas historicidades comuns, se todas distribuídas através de sistemas de
existem estruturas de autoridade parti- tributo políticos; pode não ter sido assim.
culares associadas a eles, estruturas ins- E é possível encontrar no sul dos Estados
titucionais específicas. Alguns possuíam Unidos peças e pedaços arqueológicos
sistemas legais muito desenvolvidos e vindos do México, vindos da Guatemala,
outros não, e então, como é que isso fun- e assim por diante.
cionava? Fazendo estas perguntas muito Eu me recordo muito particularmente
importantes, ele me encorajou a retomar de ter ouvido sobre um trabalho a respei-
a linha da articulação. Nessa linha de to da distribuição de obsidiana, que era
pensamento sobre sistemas de moedas a lâmina principal desde a economia do
fortes e fracas, devemos apenas pensar metal de ouro e prata. Então, eu pensava
em nós mesmos como se vivêssemos em comigo mesma, será que estes arqueólo-
um sistema de moeda múltipla, no qual gos chamam a obsidiana de mercadoria?
existem níveis diferentes de moedas que Até no modo como a descrevem, ao re-
circulam de diferentes maneiras fazendo latarem suas descobertas arqueológicas,
diferentes tipos de coisas? Mesmo no sis- eles pensam na obsidiana como uma
tema monetário oficial, o que as pessoas mercadoria? Como isso é pensado por
usam pode não estar sendo necessaria- eles? Eu não fui adiante com esta per-
mente contabilizado. gunta. Este é o tipo de coisa que penso
LIDANDO COM A ORIGINALIDADE 619

que os antropólogos podem fazer para mos de mais potente nesses fenômenos, o
iluminar o mercado e sua história mun- que ultrapassa o nosso caso particular. Na
dial. Temos que viver por um longo tempo economia monetária atual, eu argumentei
para dar conta de tema tão vasto… Bem, que a diferenciação entre moeda “forte” e
não estamos em número suficientemente “fraca” nos oferece certa perspectiva, uma
grande, somos um grupo muito pequeno, vez que, necessariamente, faz referência a
e é por isso que os nossos encontros são um sistema monetário internacional, pode
tão importantes, pois assim nós começa- traçar relações entre os casos num sentido
mos a cruzar as nossas ideias e a falar em literal e histórico. Isto também implica
sintonia com as agendas uns dos outros, uma atenção comparativa entre muitos
de modo que amplifique o campo inteiro. casos de instabilidade e suas mediações
Pois eu duvido que haja tantos antropólo- no mundo.
gos econômicos em todo o mundo quanto Isto torna disponível toda a literatura
há economistas no Banco Mundial. histórico-teórica sobre dinheiro, a partir
das clássicas “quatro funções” (meio
FN – Como você nos disse, seu campo de de troca, meios de pagamento, unidade
pesquisa na África Ocidental estava enre­ de conta e de valor), para aplicação e
dado em crises econômicas, inflação, ins­ nuances críticas a partir de nossas atu-
tabilidade da moeda etc. De que maneira ais condições de mercados de dinheiro
você acha que a sua pesquisa empírica e financiamento. O mundo do dinheiro
e sua perspectiva teórica foram capazes tornou-se imensamente complexo e extra-
de nos ajudar a pensar melhor (ou de ordinariamente poderoso. Enquanto mo-
modo diferente) sobre alguns problemas dos de câmbio no mercado se expandem,
da nossa contemporaneidade, problemas cada vez mais aspectos das relações que
que estão ligados à “crise econômica”, as pessoas têm umas com as outras são
à escassez de dinheiro, à multiplicação permeados. Como diz uma propaganda
de moedas e aos processos sociais da de banco vista em muitos aeroportos: “em
formação dos preços? breve não haverá mais mercado sobrando
para emergir”. Eu acho que a aproxima-
A pesquisa etnográfica coloca em evi- ção via distinção entre moeda forte/fraca,
dência alguns fenômenos particulares que é geralmente aceita como operacio-
devido à sua importância para as pessoas nal no mundo, nos permite dar atenção
envolvidas neste trabalho. Nós, então, a processos que ocorrem em diferentes
pensamos de forma mais ampla: seria níveis, e com tipos distintos de inclusão
esta uma instância de algo maior? Isto é na vida social, mantendo a capacidade
historicamente específico ou a nossa lite- de fazer ligações entre eles, por vezes se
ratura contém outros casos semelhantes distanciando ou então se aproximando
do passado e de outros lugares? O que nós para focar em pequenos detalhes.
vemos como comparável e por quê? Em
seguida – tendo preenchido nossos pró- FN – Depois de estudar o valor das moe­
prios requisitos imaginativos disciplinares das e das trocas monetárias, situações de
através da observação de outras situações moedas múltiplas, conversões de escalas
(por exemplo, através da imprensa e de e medidas, você chegou a uma proposta
outras fontes), por meio da discussão com para uma nova agenda de pesquisa para
os colegas, e lendo a nossa biblioteca e a antropologia econômica (ou para a an­
arquivos de fontes – nós escolhemos uma tropologia em geral). Poderia nos explicar
perspectiva que possa iluminar o que ve- os principais pontos desta agenda?
620 entrevista

Tenho em mente uma série de iniciativas Referências bibliográficas


nas quais estarei trabalhando e tentando
encorajar. Todas essas iniciativas estão GUYER, Jane I. 1981. “Household and com-
preocupadas com a forma de reestabe- munity in African studies”. African Studies
lecer o estudo da economia no estudo Review, 24(3/4):87-137.
da vida social, organizações sociais e ___. (ed.). 1987a. Feeding African cities: studies
modos culturais de desenho sobre o in regional social history. Bloomington and
passado, herdando legados e aspirando Indianapolis: Indianapolis University Press.
___. 1987b. “Feeding Yaoundé, capital of Cam-
em direção ao futuro. O conteúdo exato
eroon”. In: Feeding African cities Blooming-
e as ênfases de cada trabalho dependem
ton and Indianapolis: Indianapolis University
dos colegas que querem se juntar a mim
Press. pp. 112-153.
ou ter o meu suporte, para que – eles
___. (ed.). 1995. Money matters: instability, val-
próprios – liderem o caminho através
ues, and social payments in the modern histo-
de pontos da minha “agenda” que se
ry of West African communities. Portsmouth:
cruzam com as suas próprias investiga- Heinemann.
ções. Na minha idade e neste estágio da ___. 1997. “Endowments and assets: the anthro-
minha carreira, estou comprometida com pology of wealth and the economics of intra-
a promoção de liderança para a próxima household allocation”. In: Lawrence Haddad,
geração, então eu raramente escolho e John Hoddinott & Harold Alderman (eds.), Intra-
dirijo o tema em questão. household resource allocation in developing
Uma exceção é um debate que orga- countries: models, methods and policy. Balti-
nizei para o workshop de Joanesburgo more: John Hopkins University Press. pp. 112-125.
em Teoria e Crítica deste ano, em torno ___. 1999. “Anthropology: the study of social
da questão da “confusão” na vida so- and cultural originality”. African Sociological
cial e expressiva. Mas foi um debate, Review, 3(2):149-154.
não uma palestra. Outro exemplo é a ___. 2004. Marginal gains: monetary transac-
minha escolha do tema geral da “Real tions in Atlantic Africa. Chicago: University of
Economy” (economia real), mas apenas Chicago Press.
como um conceito guarda-chuva para ___. 2007a. “Africa has never been ‘traditional’:
uma rede de pesquisadores do sul que so can we make a general case?”. African
Studies Review, 50(2):183-202.
escolhem a partir de seus interesses os
___. 2007b. “Prophecy and the near future:
seus próprios temas e tópicos especí-
thoughts on macroeconomic, evangelical and
ficos. Fora isso, estou trabalhando em
punctuated time”. American Ethnologist,
uma colaboração para uma possível
34(3): 409-450.
conferência sobre teoria, para abordar
___. & BELINGA, Samuel M. Eno. 1995. “Wealth
a interseção atual de economia, história
in people as wealth in knowledge: accumula-
econômica e antropologia econômica. tion and composition in Equatorial Africa”.
E estou dando consultoria para dois The Journal of African History, 36(1):91-120.
grupos que estão desenvolvendo seus ___.; DENZER, LaRay & AGBAJE, Adigun (eds.).
próprios projetos etnográficos sobre o 2002. Money struggles and city life: devaluation
dinheiro. É bastante estimulante que in Ibadan and other urban centers in Southern
estes tópicos estejam instigando os fu- Nigeria, 1986-1996. Portsmouth NH: Heineman.
turos trabalhos de tantos estudiosos de KURODA, Akinobu. 2007. “The Maria Theresa
uma geração mais jovem. Eu acho que dollar in the early twentieth-century Red Sea
o velho tema da sociedade-e-economia region: a complementary interface between
nunca foi tão desafiador como no mo- multiple markets”. Financial History Review,
mento presente. 14(1):89-110.

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