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Entrevista
Jane Guyer
havia uma versão em francês, mas sem universidade particular e já ter feito boa
muita circulação na academia anglófona. parte do estudo considerado obrigatório,
Eu estava muito interessada em pude concluir as exigências do curso em
pensar sobre este referencial teórico para dois anos. Escrevi o meu projeto de tese
um ciclo de desenvolvimento que era no meu segundo ano de pós-graduação.
basicamente demográfico: sobre a rela-
ção entre adultos e dependentes e como FR – Quando você terminou o seu dou
ela se estabelecia ao longo do tempo, torado, o que fez? Você começou a dar
em relação ao modelo de Goody-Fortes aulas?
do ciclo de desenvolvimento, que era
jurídico-político e que tinha a ver com a Eu comecei a lecionar meio período, por-
posição da unidade doméstica em con- que nesse momento estávamos realmente
textos políticos e sociais mais amplos. Eu em função das obrigações militares do
havia tomado este tema para mim, como meu marido. Não tínhamos escolha quan-
tema para o meu trabalho e, em seguida, to ao lugar onde ficar. Foram dois anos,
o pensamento empírico nos termos do Pul enquanto ele terminava seu estágio e
Elyia de Leach como exemplo do que é residência como pediatra e, em seguida,
possível ser feito. teve o tempo do seu compromisso com o
alistamento. Então foram quatro anos, na
FR – Como esse tipo de projeto foi rece verdade, em que nos mudávamos para
bido em Rochester? Pergunto isso porque onde quer que ele fosse solicitado. Eu
não era muito americano, não era muito trabalhava em período parcial em todos
“cultural”, estava mais próximo do mo esses lugares e, então, em 1974, porque
delo britânico. havíamos gostado tanto de estar na
África, decidimos que voltaríamos para
Sim, tem razão. A liderança daquele de- lá assim que ficássemos livres para fazer
partamento havia sido treinada em Cam- isso. Ele conseguiu um emprego através
bridge. Foi um acaso da história pessoal, dos Centros para Controle de Doenças
mas também teve o fator extraordinário (Centers for Disease Control – CDC),
da sorte implicado. Para que eu pudesse filiado ao governo federal, em Camarões,
ir com meu marido, de qualquer manei- e nós vivemos lá por três anos, de 1974 a
ra, teria de ser naquele ano específico, 1977. Fiz pesquisa e dei aulas por lá.
antes da graduação dele na Faculdade
de Medicina. Uma vez ele se graduasse, FR – Como foi a experiência de vocês,
estaria sujeito ao alistamento militar, pois tanto na Nigéria quanto em Camarões,
durante a guerra do Vietnã todos os mé- como pessoas brancas num ambiente
dicos eram convocados. Ele teve que fa- pós-colonial?
zer uma equivalência para isentar-se do
serviço militar, e não podia simplesmente Na verdade, os africanos ocidentais em
escolher para onde queria ir. Então, tive geral não tendem a agir com nenhuma
que ser ágil no meu processo para que deferência particular, querem conhecer
ele pudesse tirar um ano da Faculdade as pessoas como iguais, então é muito
de Medicina para fazer sua pesquisa. agradável, é bom. O único momento
Portanto, tecnicamente, ele não estaria em que fiquei um pouco preocupada
apto para o alistamento durante aquele por nós como americanos foi quando
ano. Nós nos vimos nessas circunstâncias estávamos na Nigéria durante a guerra
afortunadas por acaso. Por eu estar numa civil. Cáritas, a Caridade Católica, estava
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delimitada. Acho que havia uma sensa- acadêmicos, criando e liderando equi
ção de que o lado federal ia ganhar, que pes como no projeto Money Struggles
era só uma questão de quando e como, (Guyer, Denzer & Agbaje 2002). Como
e que o perigo físico real na maioria das foi a experiência de estar lá trabalhando
áreas não seria tão grande, porque era na com uma equipe?
verdade uma guerra de secessão.
Bem, Money Struggles foi um projeto
FR – Você teve duas experiências dife de equipe, foi um acontecimento muito
rentes na África, uma em Camarões e a feliz. Foi lançado em 2001 nos EUA
outra na Nigéria. Você fez pesquisas em e, em 2002, na Nigéria. O trabalho
ambos os países e também criou relações de campo se deu em 1997. Mas o que
com as universidades locais. Uma de suas aconteceu nesse caso foi que em 1992
singularidades é o seu extenso trabalho eu já estava desenvolvendo um trabalho
colaborativo com colegas africanos. Você sobre dinheiro. Tendo trabalhado com
poderia nos falar um pouco sobre os produção e, particularmente, com um
constrastes e as diferenças entre esses abastecimento de alimentos urbanos no
dois lugares? interior, tal como a área onde eu estava
na Nigéria, fiquei muito intrigada com
Eu nunca ministrei cursos na Nigéria, os preços, especialmente com os preços
eu dava palestras com frequência, além de comida. Comecei a tentar entender os
de conferências e atividades do tipo, mas preços e editei aquela coleção Feeding
nunca cursos. Já em Camarões eu fui pro- African Cities (Guyer 1987a), publicada
fessora, lá eu ministrei cursos. Acho que em 1987, para tentar reconstruir o tipo de
a minha primeira colaboração foi no con- economia política de diferentes sistemas
texto de Camarões com Eno Belinga, com urbanos através do tempo. Trata-se, por-
o meu trabalho Wealth-in-People (Guyer tanto, de um livro histórico.
& Belinga 1995). De fato, tornei-me mais Enquanto eu fazia o que estava fa-
e mais consciente de como é relativamen- zendo, ficava frustrada com o fato de nós
te estreito o nosso conhecimento sobre realmente não entendermos por que os
esses lugares, mesmo quando fazemos preços são o que são, e o que as intepre-
pesquisas, porque nós temos um foco, tações sobre preços pareciam sugerir:
seguimos e documentamos isso, mas há “Bem, os preços estão altos demais”, mas
o contexto maior, o contexto histórico, também ,“os preços estão muito baixos”.
o contexto linguístico, em toda a África Eu não sei se vocês se recordam, mas
Ocidental, as poéticas da linguagem... houve um momento, durante o início do
Esse é um vasto horizonte e, desde o período de ajustes estruturais, em que o
início, comecei a ter consciência de Banco Mundial estava tentando ajustar
minhas próprias limitações em relação aspectos variados das economias afri-
à vastidão do conhecimento. Portanto, canas, mais especificamente através da
a colaboração foi uma maneira muito alteração das taxas de câmbio. E havia
estimulante de construir uma visão mais um ditado: “temos que acertar os preços”.
ampla, sem passar por cima de quem eu “Acertar os preços” fazia parte da agenda;
sou, sem abrir mão do conhecimento com para provocar o lado da demanda para
o qual eu me sentia segura. os produtores e para os consumidores
de modo que tivessem condições finan-
FR – Você encontrou diferentes maneiras ceiras para adquirir as mercadorias, e
de colaboração: trabalhando junto a também para os fornecedores e para
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tos afortunados da minha vida pouco pre- bem detalhado. Você podia ler e reler
visível. Muitas decisões foram tomadas esse trabalho e encontrar pequenos
simplesmente por que se apresentaram pontos nos quais se podia apreender a
como possibilidades boas e divertidas. história, ou você podia reler a partir de
Voltamos de Camarões em 1977, porque alguma iniciativa nova e notar que algo
meu marido teve de retomar a sua carrei- diferente estava se dando. Porque suas
ra em casa. Ele havia feito um trabalho evidências empíricas eram normalmente
muito interessante em Camarões, mas mais amplas do que suas interpretações.
precisava completar a sua formação E, de fato, isso era relevante. Lembro-
pediátrica e abrir caminhos em sua -me de que, quando era estudante de
carreira nos EUA. Então nos mudamos pós-graduação, o meu primeiro desafio
para Boston, e eu comecei a realmente analítico foi reanalisar um conjunto de
me dedicar intelectualmente à história, trabalhos empíricos publicados para
porque estava muito convencida de que, então tomar um viés teórico diferente
pela minha experiência em Camarões, o e reavaliar o que havia sido publicado.
tipo de trabalho clássico e sincronizado Acredito que a expectativa daquela ge-
para o qual eu tinha sido treinada para ração foi a de sempre publicar o máximo
fazer não seria o suficiente. Precisávamos possível de registros das evidências,
da Escola de Manchester e do tipo de mesmo se você, o autor, não fosse capaz
história social de E.P. Thompson para os de interpretar tudo aquilo. Alguém viria
estudos na África. depois. Fazia parte de uma visão cientí-
Para lugares como Yaoundé, onde a fica muito particular que essas pessoas
história colonial tinha sido tão presente, tinham, a de que a evidência pode estar
tão insistente, tão importante na forma- além de sua capacidade de interpretação,
ção e na transformação da economia, da mas era preciso que ela estivesse ali para
sociedade e da religião, era realmente que outra pessoa pudesse futuramente
preciso fazer da história parte do empre- desenvolvê-la.
endimento antropológico. Então, eu fiz Este foi um dos desafios que nos
alguns artigos históricos e eles foram os foram ensinados como estudantes: que
meus primeiros trabalhos publicados em deveríamos voltar aos registros e relê-los,
história econômica. Assim, eu tive a sorte e repensá-los e reanalisá-los, e juntar
incrível de conseguir um emprego como todos os pedaços novamente, talvez, de
docente iniciante em Harvard em 1980. uma maneira diferente. Grande parte
Trabalhei lá por seis anos. De lá fui para desse trabalho tinha essa capacidade,
a Boston University, de 1986 a 1994, e em abria essa possibilidade, permitia que
seguida, para Northwestern, de 1994 a se voltasse a ele para relê-lo, repensá-lo
2002. E depois vim para Johns Hopkins. e reanalisá-lo a partir de uma pergunta
mais histórica ou, por vezes, através de
FN – Como foi a sua leitura naquele uma grande questão, para a qual mesmo
tempo dos trabalhos de antropologia um pequeno fragmento de evidência
econômica, como, por exemplo, os de Bo poderia ser importante. E sentia-se a
hannan, que também trabalhava a partir confiança de que, se alguém trabalhasse
de uma perspectiva histórica? duro o suficiente, encontraria algo, seria
possível reconhecê-lo quando o visse,
A coisa que aquela geração de antro- pois estaria ali. No meu caso, tratava-
pólogos fez, que foi tão incrivelmente -se de um engajamento menos teórico.
importante, foi esse trabalho empírico Embora desde muito cedo eu tivesse sido
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orientada por um viés histórico, eu estava escrevi sobre isso uma vez (Guyer 1999),
muito mais interessada no neomarxismo também como resposta a uma enco-
de Claude Meillassoux, Georges Dupré, menda de texto: é o fato de que estamos
Pierre-Philippe Reyand – este tipo de sempre falando sobre a originalidade
escola de pensamento – do que em repro- da vida humana e de sua capacidade e
duzir o funcionalismo-estrutural. imaginação. Isto, é claro, é lido de modo
mais convencional como diversidade e
FR – Tenho a impressão, ao ouvi-la agora todas as culturas do mundo podem ser
e ao ler o seu trabalho, de que a antro alinhadas de modo muito particular com
pologia não é o suficiente. Quais são as o que Ruth Benedict chamou de “gran-
implicações teóricas presentes no modo de gama das possibilidades humanas”.
como você articula etnografia e história? Mas, de certa maneira, a capacidade de
identificar originalidade, acredito que
Eu não diferenciava claramente o que era isso esteja inscrito na antropologia desde
do meu temperamento e o que se devia às o início do século XIX e demande um
minhas convicções teóricas. Acho que é certo tipo de triangulação das ideias, de
preciso um bom tempo de carreira para se envio de uma ideia e da escuta de uma
perceber por que você se interessa pelo resposta, provocando a nossa percepção
que se interessa. Em algum momento, da originalidade tanto em relação às situa
a partir da década de 1990, me tornei ções específicas que estudamos quanto
consciente de que estava começando aos pensamentos de um outro povo.
a escrever obras que dialogavam dire- Aquele artigo em particular foi bastante
tamente com pessoas específicas, não divertido fazer.
apenas fazendo comentários teóricos ou Na verdade, foi o Achille Mbembe
tentando estabelecer uma nova fronteira que me pediu para escrever. Ele havia
teórica. Mas as pessoas me solicitavam, sido um ótimo colega no início da dé-
assim como você me convidou: “Venha cada de 1990, um interlocutor muito
para esta conferência, nós gostaríamos interessante para os meus trabalhos em
que você falasse sobre ‘X’, este é o nos- Camarões sobre a riqueza-nas-pessoas
so tema, você tem alguma coisa a dizer (Wealth-in-People). Em algum momento,
sobre isso?”. E eu comecei a escrever em meados dos anos 90, ele deu uma
alguns dos meus trabalhos neste forma- conferência sobre Estudos Africanos e
to, em vez de conduzi-los a partir de um África, na África do Sul. Ele me pediu
projeto de pesquisa. E então comecei a para falar sobre o que a antropologia ha-
perceber que havia toda uma série de via oferecido para os estudos africanos ao
outros tipos de inspirações e de tem- longo dos últimos 100 anos. “Últimos 100
peramentos dos quais eu gostava, que anos (!?). Isto é um artigo? Uma enciclo-
me davam alegria. Este modo de pensar pédia? O que você está me pedindo para
talvez tenha abarcado mais essas rela- escrever?”. Ele disse: “Escreva o que
ções, como no trabalho em equipe, que quiser, o que vier à sua mente.” Então eu
não só exigia uma estratégia para que resolvi escrever sobre método: a questão
se conseguisse fazer o trabalho, como da identificação de originalidade, e de
também era uma maneira de encontrar como fazemos isso, quais são os tipos de
inspiração, triangularizando meu próprio disciplinas intelectuais que nós temos,
pensamento com o de outras pessoas. treinamento da mente que nos permite
Acho que esta é uma das coisas que reconhecer e, em seguida, documentar e
eu sempre amei na antropologia, e eu pensar sobre a originalidade, tanto origi-
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e preço. Mas isso é um pouco por acaso. em várias línguas, em escritura hebraica,
Não é algo sobre o qual eu tenha desen- talvez em árabe também.
volvido um projeto de pesquisa. Mas Avner Greif trabalhou nessa coleção
acredito que o apreço pela novidade, a a partir da perspectiva da New Institu-
originalidade do nosso momento históri- tional Economics, e eu estava tentando
co no que diz respeito à vida econômica entender o sistema monetário, porque
e à valorização monetária estão sendo o Mediterâneo era um sitema de troca
reconhecidos de forma bem mais ampla enorme e rico naquele momento parti-
do que antes, e isso é muito animador. cular e um tanto dominado por Veneza.
Também penso nas pessoas que Então, ele ficava falando sobre ducados.
trabalharam na nova economia institu- Como eu havia trabalhado com um grupo
cional e nas pessoas que ficaram muito de historiadores que lidavam com múlti-
conhecidas neste tipo de campo, como a plas moedas, eu ficava pensando: “Este
Elinor Ostrom, com propriedade coletiva. é um tipo de ducado real, ou existem
Eu acho mais importante a sua insistên- vários tipos de ducados, ou se trata de
cia na questão de que existem modos de um conceito artificial de contabilidade?”.
gestão coletiva do que exatamente a nova Havia conceitos contábeis no comércio
teoria econômica institucional. Creio que de escravos do Oeste africano e em outros
a questão é absolutamente instigante comércios do mundo que não possuíam
e bastante significativa no contexto do qualquer representação tangível. Então,
trabalho teórico que esteve, por algumas de repente, enquanto eu lia Greif, seus
décadas, muito focado na racionalidade ducados pareciam precisar de um capí-
da tomada de decisão individual, e assim tulo inteiro dedicado só a eles. Quem
por diante. Por exemplo, o livro de Avner estava controlando as taxas de câmbio?
Greif sobre o comércio do Mediterrâneo Que tipo de sistema de preços foi esse?
é interessante e o material de origem Acredito que possam existir caminhos
é muito importante para compreender muito interessantes para relacionar os
o comércio do Mediterrâneo no início espaços naquele trabalho aos tipos de
do período moderno. Grande parte é questões que todos nós estamos levan-
proveniente deste enorme depósito de tando na antropologia.
documentos, a maioria é de comerciantes
judeus do Cairo e foi encontrada nesta FN – Neste sentido, e num tópico empí
sala – a geniza – basicamente deixada de rico e teórico muito similar, há também
lado porque não se pode jogar fora um o seu diálogo com o historiador Akinobu
pedaço de papel que possa ter o nome Kuroda.
de Deus nele. Em torno de uma grande
quantidade de documentos, não apenas Kuroda! Este é um dos aspectos que
documentos religiosos, mas também esqueci de mencionar a respeito de
contratos, havia a crença de que pode- Marginal gains. Bem, depois de sua
riam estar abençoados, então todos eles publicação, Kuroda me procurou em
foram lançados na geniza e esta geniza função de seu trabalho sobre múltiplas
do Cairo foi descoberta através da aca- economias monetárias, me convidando
demia do mundo ocidental na década de para juntar-me a eles, pois não tinham
1890. Havia esse enorme esconderijo de ninguém trabalhando na África. Ele
documentos sobre o qual duas gerações estava trabalhando na China, e escre-
de acadêmicos trabalharam. É um traba- veu um artigo muito inspirador sobre
lho muito difícil, eu acho que está escrito Maria Theresa Thaler no norte da África
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(Kuroda 2007). Ele organizou uma rede FN – O que significa o “mercado” nesse
de acadêmicos que trabalham com vários contexto de múltiplos sistemas de moe
sistemas monetários do passado, incluin- das? E quanto ao “mercado” no âmbito
do o seu próprio trabalho sobre a história da pluralidade do dinheiro?
da moeda chinesa e japonesa, e também
outros sobre a Índia, a Escandinávia, a O “mercado”, sim. Parece-me que a
Itália e algumas economias importantes, disciplina da antropologia deveria ter
as grandes economias, até mesmo sobre assumido a questão da história mundial
a integração monetária do Império Ro- dos mercados. Nós permitimos, de certa
mano. Porque havia casas da moeda em maneira, que os economistas simples-
diferentes partes do Império, a pergunta mente equacionassem o mercado com o
era: eles estariam cunhando as mesmas capitalismo, que é uma coisa muito estra-
moedas que estavam sendo cunhadas no nha de se ter permitido. Quero dizer que,
centro? Ou essas regiões independentes depois de Trade and market in the early
estariam produzindo moedas com as empires e a classificação que Polanyi e
mesmas palavras e os mesmos valores nu- seus colegas levaram adiante, tem havido
méricos e cálculos anexados a elas, mas uma quantidade enorme de pesquisa em
fisicamente diferentes em algum aspecto? arqueologia etc. e também em sistemas de
E quem controlava isso? Esse acadêmico mercados por toda parte. Será que temos
tradicional estava levantando estas ques- uma teoria desses sistemas de mercado ou
tões extremamente interessantes. ao menos uma compilação empírica sobre
Então, Kuroda me colocou nesta rede que tipos de relações de troca têm havido?
e eu fui a muitas de suas conferências Eu estava perguntando a um colega que
e tem sido absolutamente inspirador, trabalhou na América Central, mais uma
porque eles estão tentando montar uma vez, sobre estas pequenas questões que
abordagem teórica mais geral que dê permanecem em sua mente durante anos
conta de vários sistemas monetários. até que você encontre a resposta. Merca-
Olhar para suas combinações, olhar dorias foram distribuídas, mas não foram
para as suas historicidades comuns, se todas distribuídas através de sistemas de
existem estruturas de autoridade parti- tributo políticos; pode não ter sido assim.
culares associadas a eles, estruturas ins- E é possível encontrar no sul dos Estados
titucionais específicas. Alguns possuíam Unidos peças e pedaços arqueológicos
sistemas legais muito desenvolvidos e vindos do México, vindos da Guatemala,
outros não, e então, como é que isso fun- e assim por diante.
cionava? Fazendo estas perguntas muito Eu me recordo muito particularmente
importantes, ele me encorajou a retomar de ter ouvido sobre um trabalho a respei-
a linha da articulação. Nessa linha de to da distribuição de obsidiana, que era
pensamento sobre sistemas de moedas a lâmina principal desde a economia do
fortes e fracas, devemos apenas pensar metal de ouro e prata. Então, eu pensava
em nós mesmos como se vivêssemos em comigo mesma, será que estes arqueólo-
um sistema de moeda múltipla, no qual gos chamam a obsidiana de mercadoria?
existem níveis diferentes de moedas que Até no modo como a descrevem, ao re-
circulam de diferentes maneiras fazendo latarem suas descobertas arqueológicas,
diferentes tipos de coisas? Mesmo no sis- eles pensam na obsidiana como uma
tema monetário oficial, o que as pessoas mercadoria? Como isso é pensado por
usam pode não estar sendo necessaria- eles? Eu não fui adiante com esta per-
mente contabilizado. gunta. Este é o tipo de coisa que penso
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que os antropólogos podem fazer para mos de mais potente nesses fenômenos, o
iluminar o mercado e sua história mun- que ultrapassa o nosso caso particular. Na
dial. Temos que viver por um longo tempo economia monetária atual, eu argumentei
para dar conta de tema tão vasto… Bem, que a diferenciação entre moeda “forte” e
não estamos em número suficientemente “fraca” nos oferece certa perspectiva, uma
grande, somos um grupo muito pequeno, vez que, necessariamente, faz referência a
e é por isso que os nossos encontros são um sistema monetário internacional, pode
tão importantes, pois assim nós começa- traçar relações entre os casos num sentido
mos a cruzar as nossas ideias e a falar em literal e histórico. Isto também implica
sintonia com as agendas uns dos outros, uma atenção comparativa entre muitos
de modo que amplifique o campo inteiro. casos de instabilidade e suas mediações
Pois eu duvido que haja tantos antropólo- no mundo.
gos econômicos em todo o mundo quanto Isto torna disponível toda a literatura
há economistas no Banco Mundial. histórico-teórica sobre dinheiro, a partir
das clássicas “quatro funções” (meio
FN – Como você nos disse, seu campo de de troca, meios de pagamento, unidade
pesquisa na África Ocidental estava enre de conta e de valor), para aplicação e
dado em crises econômicas, inflação, ins nuances críticas a partir de nossas atu-
tabilidade da moeda etc. De que maneira ais condições de mercados de dinheiro
você acha que a sua pesquisa empírica e financiamento. O mundo do dinheiro
e sua perspectiva teórica foram capazes tornou-se imensamente complexo e extra-
de nos ajudar a pensar melhor (ou de ordinariamente poderoso. Enquanto mo-
modo diferente) sobre alguns problemas dos de câmbio no mercado se expandem,
da nossa contemporaneidade, problemas cada vez mais aspectos das relações que
que estão ligados à “crise econômica”, as pessoas têm umas com as outras são
à escassez de dinheiro, à multiplicação permeados. Como diz uma propaganda
de moedas e aos processos sociais da de banco vista em muitos aeroportos: “em
formação dos preços? breve não haverá mais mercado sobrando
para emergir”. Eu acho que a aproxima-
A pesquisa etnográfica coloca em evi- ção via distinção entre moeda forte/fraca,
dência alguns fenômenos particulares que é geralmente aceita como operacio-
devido à sua importância para as pessoas nal no mundo, nos permite dar atenção
envolvidas neste trabalho. Nós, então, a processos que ocorrem em diferentes
pensamos de forma mais ampla: seria níveis, e com tipos distintos de inclusão
esta uma instância de algo maior? Isto é na vida social, mantendo a capacidade
historicamente específico ou a nossa lite- de fazer ligações entre eles, por vezes se
ratura contém outros casos semelhantes distanciando ou então se aproximando
do passado e de outros lugares? O que nós para focar em pequenos detalhes.
vemos como comparável e por quê? Em
seguida – tendo preenchido nossos pró- FN – Depois de estudar o valor das moe
prios requisitos imaginativos disciplinares das e das trocas monetárias, situações de
através da observação de outras situações moedas múltiplas, conversões de escalas
(por exemplo, através da imprensa e de e medidas, você chegou a uma proposta
outras fontes), por meio da discussão com para uma nova agenda de pesquisa para
os colegas, e lendo a nossa biblioteca e a antropologia econômica (ou para a an
arquivos de fontes – nós escolhemos uma tropologia em geral). Poderia nos explicar
perspectiva que possa iluminar o que ve- os principais pontos desta agenda?
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