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HISTORIA

DA INFÂNCIA SEM FIM


Sandra Mara Corazza

HISTORIA
DA INfÂNCIA SEM FIM
2 ã edição

fe
(INIJCll

Ijuí
2004
© 2000, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 1364
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98700-000 - Ijuí - RS
- Brasil -
Fone: (0_55) 3332-0217
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Editor: Gilmar Antônio Bedin


Editor Adjunto: Joel Corso
Capa: Ubiratan L. O. Pereira e Elias Ricardo Schüssler
Responsabilidade Editorial e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Serviços Gráficos: Sedigraf
Ilustração/capa: La-Família de Felipe IV o "Las Meninas"
Diego Velázques de Silva (1599-1660)
Primeira edição: 2000
Segunda edição: 2004

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária
Mario Osório Marques - Unijuí

C788h Corazza, Sandra Mara


História da infância sem fim / Sandra Mara
Corazza. - 2. ed. -- Ijuí: Ed. Unijuí, 2004. - 392 p.
- (Coleção fronteiras da educação).
ISBN 85-7429-182-X
1.Educação 2.Psicologia educacional 3.Educa-
ção infantil 4.Infantilidade 5.Ética I.Título II.Série
CDU : 37.015
v 37.015.3 j
Editora Unijuí afiliada:

Associação Brasileira
das Editoras Universitárias
^Hjy||lí,^!nfr!ttB!> f UM «KlSelrjp editorial '"^nn^tfyflgBflLif''" visa^r
,náflfali"*7TP ilr m.ni|HI' ^' que. co«y<;riativida<|e e ousadia, apresentam
^jj^ÉrtWGç&BssjgM%£||j|£ayngM^Ml^^iaeáreadaedu^j|§. Aten-
dem ao perfil dessa coleção' as "pesquisas que, emergindo do campo da
educação, propõem revisões críticas em nível dos seus pressupostos,
apontando para novas perspectivas em termos epistemológicos, éti-
cos, axiológicos, estéticos, políticos e t c , e conseguem estabelecer um
diálogo crítico e fecundo com outras ciências e outros campos de reflexão,
como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a estética e a psicanálise.

CONSELHO EDITORIAL
1 - Jacques Therrien (UFC) - Filosofia e Pedagogia
2 - Gaudêncio Frigotto (UFF) - Filosofia e Economia
3 - José Carlos Libâneo (UFG) - Pedagogia
4 - Magda Becker Soares (UFMG) - Linguagem e Alfabetização
5 - Valdemar Sguissardi (UNIMEP) - Política da Educação
6 - Elenor Kunz (UFSC) - Educação Física
7 - Janete Bolite Frant (Santa Ursula - RJ) - Educação Matemática
8 - Lúcio Kreutz (UNIS1N0S) - História e Filosofia da Educação
9 - Margareth Schaefer (UFRGS) - Psicologia e Pedagogia
10 - Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) - Pedagogia

COMITê DE REDAçãO
1- José Pedro Boufleuer - Presidente
2- Ruth Marilda Fricke
3- Elza Maria Fonseca Falkembach
4- Joel Corso
Editora ÍJMiJCi!
FRONTEIRAS" - €DUCACÃ0
1 - Por Uma Teoria da Pedagogia: Pesquisas Contemporâneas sobre o Saber
Docente
Clermont Gauthier
Stéphane Martineau
Jean-François Desbiens
Annie Maio
Denis Simard
2 - O Tortuoso e Doce Caminho da Sensibilidade: Um Estudo Sobre Arte e
Educação
Angela Maria Bessa Linhares
3 - Co-Educação Física e Esportes: Quando a Diferença É Mito
Maria do Carmo Saraiva
4 - A Escola no Computador: Linguagens Rearticuladas, Educação Outra
Mario Osório Marques
5 - Inter-Relação: A Pedagogia da Ciência - Uma Leitura do Discurso
Epistemológico de Gaston Bachelard
Ilton Benoni da Silua
6 - História da Educação Brasileira: Formação do Campo
Carlos Monarcha (Org.)
7 - A Eticidade da Educação: o Discurso de uma Práxis Solidária/Universal
Alvori Ahlert
8 - Não Brinco Mais: a (des)construção do brincar no cotidiano educacional
Maria Sílvia Pinto de Moura Librandi da Rocha
9 - Do "Manifesto de 1932" à Construção de um Saber Pedagógico: en-
saiando um Diálogo entre Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira
Pedro Ângelo Pagni
10 - Economia Popular e Cultura do Trabalho: Pedagogia(s) da Produção
associada
Lia Tiriba
11 - História da Infância Sem Fim
Sandra Mara Corazza
Para

Hugo,
Paulo, André e Sérgio,
com quem aprendi
a ser mulher e mãe
no jogo amoroso da vida.
UMARIG

PREFACIO 13

AURORA 15
Era uma vez ... quer que conte outra vez? 31
Espectros de infantil 35

HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS & CIA 39


A-VIDA-A-MORTE 56
Na Roda 60
Disparate da proveniência 114
A identidade: começos inumeráveis 116
Infantes, soldados, lacaios, servos, peões,
pequenos... Este homem é de uma infância! 124
Secundárias, débeis, ignorantes, incapazes
de conversa ou defesa, miúdas,
insignificantes, incompetentes,
anjinhos felizes, párvulos, "papel blanco" 134
Mulheres, anciãos, efeminados 146
Plebeus, camponeses,
escravos negros, amas, criadas 149
A loucura é infância 151
Doente, primitivo, criança 157
O corpo: superfície de inscrição 161
Dormindo/morto 163
Imobilizado 169
Afastado 173
Afrontamento da emergência 184
Cenas 185
Cena zero. Ponto de surgimento: criança-mãe 185
Cena um. Infância bem-educada 187
Cena dois. Infância em afanise no telégrafo 190
Cena três. Infância a-edípica 196
Cena final. Cai o pano 201
A natimorta no camarim-trincheira 203
MAIS-VALIA 209
O processo de produzir mais-valia 223
Trabalho pedagógico 230
Temer o demônio e a si-mesma 230
Educar(-se) para libertar(-se) 234
Pedagogizar a sexualidade. Moralizar a pedagogia.. 244
Infantilizar(-se) 256
Trabalho diurno e noturho.
O trabalho das mulheres e das crianças 261
Controlar a urina e as fezes 261
Falar(-se) do sexo-soberano 263
Sexualizar a pedagogia. Moralizar o sexo 275
Sexualizar(-se) 292
Nos espelhos do Grande-Outro 300

A ÉTICA DA INFANTILIDADE 327


Ser-si: sujeito na dobradura 331
Figuras de infantil 338
Sofia 338
Emílio 340
Graciliano 343
El Nino/La Nina 345
Nós 348
Resumo 361

REFERÊNCIAS BIBUOGRAFICAS 363


PREFACIO

Neste livro, nascido de sua Tese de Doutorado em Edu-


cação, Sandra Corazza magistralmente descreve a complexa
trama de enunciados de um discurso que, nas sociedades
contemporâneas, não deixa de afirmar a saudade de um
inocente jardim das delícias, ou de um eterno paraíso perdi-
do, embora anuncie e denuncie todos as formas perversas e
violentas de expropriação da infância. Para contar esta his-
tória sem fim do infantil, Sandra apodera-se competente e
criativamente das ferramentas oferecidas pelo genial pensa-
mento de Michel Foucault, articulando uma densa narrativa
dos modos pelos quais temos problematizado o infantil, ou
seja, dos modos pelos quais temos produzido verdades e
temos investido poderes na constituição de identidades-cri-
ança. Adentramos este texto quase como se estivéssemos
num trem-fantasma, sujeitos a sons e a movimentos, a core-
ografias e gestos, enfim, a figuras que num susto se nos
aparecem e subitamente se iluminam, fazendo-nos excla-
mar: "É isto! Eu já vi isto!". Desfilam diante de nós, entre
tantas, a figura da criança-pai (ela é a origem, é nela que
aprendemos a ser), da criança-do-mal (ela será então excluí-
da, separada, educada), da criança-objeto-científico, da cri-
ança-cotidiano (objeto de cuidados e ternura), da criança-
tempo (ela é o próprio lugar de apego do humano em rela-
ção a si mesmo), da criança-inferioridade, da criança-pro-
1 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

messa-de-felicidade, da criança-roubada. Elas são ditas e


mostradas muitas e outras vezes, até que a autora se per-
gunta, ao final, sobre uma ética da infantilidade, que nos
vem pensada também a partir de novas figuras - £/ Nino/
La Nina, por exemplo. Concluímos a leitura e parece que
precisamos voltar ao início, a nos reencontrar em cada uma
dessas imagens, enredados numa infância sem fim, talvez
porque nos seja por demais árduo, por demais doloroso de-
saparecer, assim, como escreveu Foucault, feito um rosto de
areia à beira-mar.

Rosa Maria Bueno Fischer


Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - Brasil
Aurora
AURORA 1 *y

Oh! que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
(Abreu, 1954, p. 193-4)

Parece que, por muito tempo, teríamos encontrado


um mito de origem do sujeito moderno e nele buscaríamos
até hoje nossa verdade primeva, sujeitando-nos a seus de-
cretos, ordens e promessas: estado de excelência do ser hu-
mano autêntico; forma ontogenética de um ser único repe-
tindo a filogênese da espécie; modelo positivo que induz à
valorização do melhor e do mais real do humano; mecanis-
mo de representação fiel que serve para explicar a unidade
de sua natureza; ou, em linguagem figurada: mundo maravi-
lhoso e encantado; jardim das delícias; paraíso de pureza e
inocência pletóricas; viveiro de felicidades; subterrâneo não
socializado - selvagem, arcaico, primitivo, insondável, belo,
inato, perfeito, livre -, onde mora o que foi reprimido poste-
riormente; em suma, aurora de nossas vidas. Neste lugar e
constituindo-o, um ser: ao mesmo tempo, Mesmo e Outro,
o Próximo e o Longínquo.
Não é que este ser - ora soberano de lídima pátria, ora
súdito renegado - não tivesse existido antes; mas é que, por
não ser um fato de natureza, mas de cultura - cuja história é
a das culturas que o dizem infantil e o governam - como as
outras figuras de saber, da baixa Idade Média e da Renas-
cença, repetia-se apenas no parentesco, na vizinhança e na
afinidade infindável dos signos e da semelhança, os quais
asseguravam a monótona correspondência, em forma de anel,
das coisas de um mundo indefinido, fechado, pleno, tautológico
(cf. Foucault, 1968).
1 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Fraturada a fronteira desse grande texto da similitude


pelas andanças de Don Quixote - limiar em que as palavras
e as coisas nunca mais se assemelharão como no século XVI
-, será na época clássica da representação que a natureza
humana desse ser principiará a ser pensada e esclarecida
como um ponto na série; porém, apenas para ser compara-
da e entrar na hierarquia da ordem.
Embora a cultura ocidental tenha configurado, nos sé-
culos XVII e XVIII, uma nova epistéme - em que o semelhan-
te, por intermédio da medida e da comparação, dissocia-se
numa análise feita em termos de identidade e diferença -, o
Ser que aqui interessa não estará ainda colocado no quadro
dos seres. Mesmo que a tela de Velázquez - Las Meninas -
tenha por título este que tem, "as meninas", tais como hoje
as conhecemos, não puderam estar aí presentes, pela im-
possibilidade da pintura de representar o próprio ato de re-
presentar e o ser que o organizava. As luzes do Iluminismo
terão feito do "quadro" - apesar de seus espelhos, reflexos,
retratos, imitações - o exercício derradeiro que produz a
opacidade representacional.
Se Deus não ordenava mais o mundo; se as noções de
mathesis, de taxionomia e de gênesis não sustentavam mais
o projeto de uma ciência geral da ordem; se os nexos dessa
ordem - até então preexistente e independente do humano
- não eram mais passíveis de serem representados nos qua-
dros ordenados das identidades e das diferenças; e se, des-
ses quadros, os humanos transbordavam, por estarem exila-
dos dos outros seres vivos, é porque novos sulcos vinham
sendo traçados na superfície iluminada dos saberes.
A mutação arqueológica do final do século XVIII exigi-
rá uma nova relação entre os discursos, as práticas e seus
ordenamentos: não se pedirá mais à história natural, à aná-
lise das riquezas e à reflexão sobre a linguagem que repre-
1 9

sentem os seres naturais, as trocas e a moeda, as palavras.


Com o final da representação clássica, as coisas mesmas
serão buscadas: a vida deverá definir as condições de possi-
bilidade do vivo; o trabalho indicará as possibilidades da
mudança, os lucros e a produção; a linguagem designará as
condições históricas do discurso e a gramática.
Quando a vida, o trabalho e a linguagem deixam de
representar-se segundo os quadros taxionômicos e retroagem
a suas leis, duas coisas estarão acontecendo: o humano pas-
sa a ser determinado por sua vida, sua produção e seu traba-
lho, para se fazer alguém que é um ser finito, temporal. Um
vazio se faz então no saber, que reivindica ser preenchido
por este ser ambíguo e limitado, cuja finitude é anunciada
pela positividade de seu próprio saber. Apenas nesse mo-
mento de despertar do sono antropológico - manhã da qual
parece que ainda não nos desprendemos -, numa reflexão
de nível misto, é que o transcendental e o empírico se preo-
cuparão com o humano, cuidando para defini-lo como ser
vivo, indivíduo no trabalho e sujeito falante; somente aqui é
que o sujeito - que vive, trabalha e fala - pôde ser pensado,
tornando-se mais do que um sujeito entre objetos: o sujeito e
o objeto de seu conhecimento.
As leis da Biologia, da Economia Política e da Filologia
descobrem e positivam a exterioridade e a anterioridade da
vida, do trabalho e da linguagem, em relação com a ambí-
gua figura epistêmica de objeto para um saber e de sujeito
que conhece. Ao introduzir a contingência, a Modernidade
põe às claras, para o humano, sua própria finitude, pensada
a partir da finitude mesma e não mais na negatividade
metafísica do infinito: finitude positiva da vida, do trabalho
e da linguagem, a partir da finitude fundamental do humano
e da finitude de sua vida, de seu trabalho e de sua lingua-
gem. Instalado o humano no espaço vazio da frente e do
2 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

centro de Las Meninas - prisioneiro como fica dos limites


positivos da vida, do trabalho e da linguagem -, é aqui que
este se autoriza a tomar o lugar de Deus, reivindicando o
conhecimento total, implicado pelo fato mesmo de não ser
infinito.
Com o fim da epistéme clássica, também "a infância"
'' e "a criança" - como "a loucura" e "o louco", "a doença" e
"o doente" - entrarão em uma nova relação que se estabele-
ce entre as palavras, as coisas e sua ordem; pois, como disse
Foucault, o humanismo do Renascimento e o racionalismo
dos clássicos puderam dar um lugar privilegiado aos huma-
nos na ordem do mundo, mas o que não puderam foi pensar
o homem - nem, muito menos, o que Foucault não disse,
puderam pensar a mulher e a criança.
Quando o saber tinha parado de ziguezaguear entre as
semelhanças, cuja busca final provocara ilusões e delírios;
quando as palavras se divorciaram definitivamente das coi-
sas e passaram a representar suas representações e a cons-
ciência que as representava; foi quando o sujeito se reconhe-
ceu como objeto e sujeito finito, cujo ponto infinito, que
esclarecia a finitude, era a Morte. A nova matriz da finitude
gerará múltiplas mortes em vida, antes da morte biológica: o
corpo adoece, pelo estado mórbido; a razão esmorece ou se
aliena, pela desrazão ou pela loucura; o trabalho não susten-
ta condições de sobrevivência, pela exploração; a linguagem
não representa, pela afasia filológica e gramatical; e o uni-
verso adulto descobre o velho tema de que as crianças vi-
vem, para além da morte de suas mães e pais.
Fora necessário que o humano entrasse no pensamen-
to da finitude, mantendo-o implicado em sua temporalidade;
referenciando-o à sua própria destruição; fazendo dele tanto
a imagem de sua verdade quanto a eventualidade de sua
morte; fixando-o na dialética da vida e da morte, por amar a
AURORA 2 i

Eros e temer a Tanatos-. isso para que a criança ocidental


pudesse aparecer como elemento deste devir - uma criança
que, desse modo, parecia nascer da Morte e nesta encontrar
sua matriz geral.
Nova figura na paisagem social, é quem recordaria a
cada humano a finitude do que fala, trabalha e vive; lembra-
ria o nada de sua existência; emblematizaria sua contingên-
cia - o que foi não é mais, deixará definitivamente de ser:
dentre os personagens ocidentais, "o infantil" é o que me-
lhor tematizaria a temática do fim, por ter começado a ser o
começo de todos eles. A um só tempo, funcionaria como
escudo contra a finitude: nele, o humano se perpetuaria,
evitando a Morte, fazendo-se outra vez partícipe da infinitude,
driblando o Derradeiro; seria o espelho que, secretamente,
reflete o sonho da presunção infinita do humano que se des-
cobrira finito.
Só que, doravante, "a infantilidade" - essa qualidade,
esse estado, essa propriedade, esse modo de ser do infantil
- tomará parte das medidas da Razão, do trabalho da Verda-
de e das tecnologias de Poder. Por isso é que o infantil - a
infância, as crianças & Cia. - , produzido pelo dispositivo
que infantiliza, tem como matriz geral não a Morte - que o
inscreve no conjunto moderno de uma finitude que não é
mais transportada sobre a infinitude da presença divina, nesta
sua relação obstinada com a morte: "Em Nome da Morte",
poder-se-ia dizer - , mas a Vida, que inventa sua identidade
para si, de sua idade. Apenas um poder capaz de causar a
vida ou devolver à morte poderia ter engendrado, como um
de seus dispositivos, esse de infantilidade: por meio de pro-
cedimentos de poder disciplinares; por fazer a anátomo-polí-
tica do corpo infantil; e, através de intervenções e controles
reguladores sobre a população, por realizar a biopolítica de
uma população agora dividida em infantil e adulta.
2 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Quando a velha potência de morte do Pai, a pátria


potestas, cai em desuso e outra sociedade constituída por
outro tipo de poder reúne-se na hora do parto - em substi-
tuição à comunidade feminina das parteiras, comadres e
vizinhas -, bem como ao redor do berço -, que deixará de
ser móvel de morte para ser chave de significação vital -,
somente aí é que se abrem as condições históricas de possi-
bilidade para métodos de poder político que gerem a vida
daquele ser constituído ao nível da vida, da espécie, da raça
e da população. Investidas pelo biopoder em seus corpos
sujeitados, "as crianças" serão seres vivos, cuja vida se calcu-
lará e cujo fato de viver cairá no campo de controle do saber
e de intervenção do poder, os quais se deixarão implicar em
sua saúde, alimentação, condições de existência, necessida-
des, interesses, desejos, identidade.
Esse poder - atuado cada vez mais pela Norma e me-
nos pela lei do gládio - agenciará concretamente "a infân-
cia", tornando-a uma idéia histórica complexa, formada no
seio do dispositivo de infantilidade, e um ponto ideal e ima-
ginário fixado por este mesmo dispositivo. Idéia e ponto
pelos quais todos os infantis deverão passar para atingir suas
próprias inteligibilidade e identidade; os quais todos precisa-
rão esmiuçar, perseguir nos sonhos, suspeitar por trás dos
pequenos sintomas cotidianos, sussurrar no escuro pegajoso
do confessionário e no lusco-fusco tépido do diva, comprovar
nas grandes loucuras e nos crimes hediondos; ao mesmo
tempo em que tal idéia e ponto vão tornando-se temas de
operações políticas, de intervenções econômicas, de campa-
nhas ideológicas de moralização e de escolarização: índices
de força de uma sociedade, que revelam tanto sua energia
política, quanto seu vigor biológico.
Embora a experiência da infantilidade não tenha sido
um fato maciço, nem haja formado um conjunto homogêneo
- surgindo em pontos múltiplos, de forma dispersa -, per-
23

tence ao domínio dessas experiências fundamentais da so-


ciedade e da cultura ocidentais, nas quais essas arriscam os
valores que lhe são próprios, compromete-os na contradição
e, a um só tempo, os previne contra elas: por constituir a
infantilidade como um dos enigmas fundamentais da verda-
de ontológica dos seres humanos, do qual só a Esfinge - com
rosto e seios de mulher, corpo de leão e cauda de serpente -
da porta de Tebas possuiu a chave, antes de se precipitar no
abismo, por ter Édipo decifrado o enigma: "Qual o ser que
na manhã de sua vida anda de quatro, ao meio-dia, de duas,
e à tarde, de três pernas"?
Desde que começa a viver tal experiência, nossa cultu-
ra não parará mais de falar do outro-infantil, que lhe é a um
tempo interior e estranho, sua mesmidade e outridade, seu
igual e diferente, seu incessante Fort-Da: jogo de carretei
que mostra a face do Mesmo - subjacente a tudo que so-
mos, guardião do segredo mais profundo de nossa essência,
de nossa definição e funcionamento, ao qual rogamos, insis-
tentemente, atribuição de sentido, decodificação e domínio;
jogo de vai-e-vem que traz o pequeno-outro condenado à
exclusão, do qual nos esforçamos por conjurar o perigo inte-
rior de devoramento, ao qual precisamos fechar, para lhe
reduzir a perigosa alteridade e defini-lo para, perpetuamen-
te, regulá-lo. Este não será nunca um outro qualquer, mas o
Próximo implicado por uma ambigüidade: a quem se consti-
tuirá como diferente, de quem se quererá sempre livrar, por
ser próximo e, ao mesmo tempo, longínquo, por ser o mais
familiar e o mais estranho, por não ser o mesmo e ser, no
subterrâneo, nós-mesmos.
Atração e repulsão, duas forças coexistentes: identifi-
cação entre adulto e criança, lugar de busca e encontro da
ontologia constitutiva; também negação em se reconhecer
no infantil, destinado ao mundo da exclusão, e luta para,
2 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

conhecendo-o, não ser nunca mais ele. No redemoinho des-


sas forças - antagônicas e convergentes -, a infantilidade e
o processo de infantilização fundam a verdade de um conhe-
cimento, a possibilidade de uma prática do infantil e um
tipo de poder que se exerce sobre quem, produzido por
essas mesmas forças, passa a ser visível, enunciável e, aci-
ma de tudo, educável.
No vazio deixado pela ausência dos deuses, um traba-
lho hercúleo: instituições e espaços sociais serão reconfigu-
rados, práticas e poderes exercidos, verdades e saberes cons-
tituídos: duradouro reino, de potente produção discursiva,
cujo Soberano é o ser infantil - seus cuidados, higiene, saú-
de, educação, felicidade -, do qual diz-se que a família con-
jugai burguesa foi seu território privilegiado e a dupla parental
seu exército mais aguerrido. Fala-se também de território e
soberano positivados pela sociedade industrial, como força
de trabalho para o desenvolvimento capitalista emergente,
que os integrou, por puro interesse, a seus modos de produ-
ção: de forma encarnada, estariam presentifiçados - mais
do que as/os próprias/os trabalhadoras/es dóceis e úteis -
seus embriões.
O triedro dos saberes ou dos modelos da epistéme
moderna, com as suas não-ciências que são, segundo Foucault,
as Ciências Humanas, ou com as suas contraciências, que
são a Psicanálise e a Etnologia - neste lugar que é o de
nossa contemporaneidade, o da idade de nosso pensamento
-, descreverá a infância como vida original, semente, célula
mater, passado anunciado no presente e sentenciando o fu-
turo. Até a exaustão, enunciará o corpo e a alma do Sujeito-
Infantil - que, se não substitui o próprio Rei e a Rainha,
porque este é o lugar dos humanos adultos, fica no lugar,
não menos nobre, do Príncipe e da Princesa, ou melhor, do
Infante e da Infanta -, dirigindo-lhe um olhar atento e orien-
25

tado e atribuindo-lhe condição diferente: características pró-


prias, cognição, sensibilidades particulares; uma vida em tudo
distinta, inscrita nas dobradiças da Morte, do Desejo e da
Lei-Linguagem.
Essa idéia do infantil, como "o outro" do adulto, não
foi somente objeto de teorias que se aplicaram a dizer a
verdade de sua identidade; foi também objeto de práticas
culturais e educativas, destinadas a modificar sua economia
no real e a mudar seu futuro. Foi para este pequeno-outro
que o século XVIII principiou a constituir um mundo à altura
- irreal, abstrato, arcaico -, com regras pedagógicas ade-
quadas a seu desenvolvimento, objetivando preservá-lo do
mundo conflitivo dos adultos.
A pedagogia ocidental, desde então, só fez aumentar
a distância que separa, para o humano, sua vida de criança
de sua vida de adulto, não lhe permitindo liquidar o passado
e assimilá-lo ao conteúdo atual da experiência; ao mesmo
tempo em que fortalecia a idéia de que conhecer o infantil o
libertava deste modo de ser. Nas práticas educacionais, nos-
sa cultura sonhou sempre com uma "Idade de Ouro do Infan-
til", ao projetar, em suas instituições escolares, não direta-
mente a realidade cultural, com seus conflitos e contradi-
ções, mas refletindo-se indiretamente através de mitos que
a perdoam, justificam-na e idealizam-na numa coerência
quimérica.
Tornou-se corrente afirmar que a infância "é ela mes-
ma" e que, por isto, deve ter respeitados e garantidos seus
direitos. Benefícios foram distribuídos a esta locução, crian-
do todo um conjunto de normas nas relações adultos-crian-
ças, sentimentos de piedade e ternura, amor materno/pa-
terno-filial, teorias científicas, saberes profissionais, poderes
ensejadores de responsabilidades e de experiências, uma certa
política da verdade: produção pródiga, economia abundante
2 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

de discursos sobre a infância, implicados por interesses que


lhes deram sustentação, por silêncios e estratégias que apoia-
ram e atravessaram sua discursividade.
Entretanto, em nossa história presente, a experiência
da individualidade infantil sofre uma fratura; a identidade de
si um desacoplamento; a unidade presumida desta configu-
ração muita desordem; a história do saber sobre a infância
uma descontinuidade; a regularidade de tal discurso um cor-
te; a grandeza de tal experiência uma vilania: diz-se agora
"o fim da infância". As práticas de infância passam a ser
vistas como tendo sido degradadas e perdidas suas virtudes,
de modo tal que viveríamos uma outra economia em que a
criança - antes constituída como um sujeito distinto com
uma identidade específica - perdeu seus privilégios e mes-
mo o devido respeito: leis, manifestos, estatutos, regras,
associações, conferências mundiais, pactos internacionais
objetivam defendê-la desse fim, perda, falta, negação, es-
poliação, roubo, ultraje.
Colocar a infância em discurso, incitar a produção de
saberes sobre ela, regular relações de poder e práticas
institucionais em seu nome, construir ideais religiosos e laicos
de vida e de sociedades futuras, produzir mitos infantis: tudo
isto entra em colisão com a nova faceta do dispositivo de
infantilidade - a perda da infância - , de onde proviria a
figura de um novo mesmo do sujeito adulto, próprio das
sociedades contemporâneas. Começam a funcionar outros
enunciados e a operar outras práticas sociais e subjetivas,
entrecruzados com os anteriores, explicitamente hierarqui-
zados, dispostos sob a forma de oposições binárias, todos
articulados em torno de um novo feixe de relações de poder.
Entre o fim-de-infância e o poder existiria uma relação
de dominação tal, que uma transformação radical de nossas
sociedades implicaria que fosse modificada também esta re-
27

lação: onde a infância não mais estivesse ameaçada pela


modelagem adulta, exploração, violência, assassinatos, abu-
sos sexuais, trabalho precoce, prostituição, morte prematu-
ra, patologias deixadas de herança às adultas e aos adultos
desajustadas/os em quem as crianças, expropriadas de in-
fância, inevitavelmente se transformam.
A idéia de uma infância que vem perdendo-se, que
vem sendo roubada, negada, vitimada, deformada pela volúpia
narcísica dos/as adultos/as inquietos/as em fazer deste ou-
tro um Si-Mesmo/a - onde as crianças não conseguem mais
ser crianças porque são cada vez mais pensadas e tratadas
como se fossem adultos/as -, tornou-se objeto de cuidados e
de inquietação, elemento para reflexão e debates, questão e
problema social de ordem moral, tratados com pânico e ur-
gência, e também matéria de estilização. As sociedades di-
tas pós-industriais, entre suas violências, estariam cometen-
do mais esta: a de retirar da infância a possibilidade de ser
infantil; e nossas lutas emancipatórias deveriam voltar-se,
com prioridade, no mínimo absoluta, contra essa modalida-
de de perversão em direção à libertação da infância, ao
direito de ser criança, ao direito de ter preservados seus
direitos infantis.
Nos anos 90, com um sentido inteiramente novo e
numa cultura diferente, as formas de exclusão social da
criança - acrescidas pela persistente demanda moderna de
reintegração espiritual da infância - subsistem. Para esse
sentido despedaçado da infância, as regularidades enunciativas
das práticas culturais indicam como remédios sociais e mo-
rais: a diminuição ou supressão da pobreza e da miséria
econômicas; famílias emocional e moralmente melhor
estruturadas; respeito aos direitos e atendimento às necessi-
dades da infância; mais saberes especializados, que resulta-
riam em maior sensibilidade por sua condição infantil; mais
2 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

efetiva escolarização, funcionando como salvaguarda para a


perda de infância. Nessas práticas, o fim da infância apare-
ce sempre ligado à privação da educação escolar, por acre-
ditarem que, se a criança para ali fosse e permanecesse,
este fim seria adiado, abreviado, mesmo suprimido, e ela
poderia continuar a ser criança e a viver o e no Mundo
Infantil.
É neste último ponto que situo a analítica do que deno-
mino "dispositivo de infantilidade", para a qual o busílis, o
nó cego, o xis, a equação pertinente, com uma enorme e
aterradora incógnita, pode organizar-se do seguinte modo:
mal-doença social/cultural = fim-da-infância, remédio mo-
ral/institucional/político = mais e melhor escolarização, cujo
efeito continuaria sendo = a infância-sem-fim.
Derivada do estranhamento causado por essa atual rup-
tura no dispositivo de infantilidade, tal equação enreda-se no
estabelecimento das seguintes interrogações: como e por
que pode ser enunciado o fim-da-infância, justo numa época
em que as práticas políticas encontram-se abundantemente
empenhadas na produção e na defesa de uma infância sem
fim? Nas práticas discursivas e não-discursivas de nosso pre-
sente, que política da infância e qual identidade de infantil
são enunciadas, que justificam que a escolarização das crian-
ças se constitua como uma salvaguarda contra o fim-de-
infância? Em que medida e com que forças o discurso da
educação faz funcionar e mantém o dispositivo de
infantilidade, contribuindo para assim fixar o ponto imaginá-
rio da "infância" e a identidade ideal de "criança", instaura-
dos há quase quatro séculos por este mesmo dispositivo?
Em relação à infantilidade formulo três dúvidas: 1) a
produção do infantil, como um "outro" do sujeito ocidental,
seria mesmo uma evidência, na assim chamada "história da
infância"? 2) a mecânica do poder disciplinar seria da ordem
29

de produção de um outro-criança, ou foi desde sempre de


um "mesmo" que tratou? 3) o discurso crítico que se dirige
contra o fim-da-infância seria uma via de barrar este fim, ou
faria parte da mesma rede histórica daquilo que denuncia?
Em outras palavras: existiria uma ruptura histórica entre a
"Idade da Infância", a análise crítica do "Fim da Infância", e
os anseios e práticas culturais em prol de uma "Infância Sem
Fim"? Ou todos estes mecanismos integram as grandes e
descontínuas linhas históricas que tecem e enodam os pode-
res, saberes e verdades do dispositivo de infantilidade?
Essas dúvidas objetivam muito menos mostrar que o
infantil não está desregrado - que o fim da infância é falso,
que nada está ocorrendo que mereça nossa atenção, que as
crianças continuam iguais ao que sempre foram - do que
recolocar tal identidade numa nova economia de poder-sa-
ber-verdade no seio das sociedades contemporâneas. Por
que se continua a falar da infância e da criança e o que delas
é dito? Quais os efeitos de poder induzidos por essa abun-
dância discursiva? Quais as relações entre esses discursos, os
efeitos desse poder e as práticas educacionais nos quais se
investem? Que saberes aí se formam? Qual o sentido do
dispositivo de infantilidade em conexão com o fim-da-infân-
cia, em termos de suas relações com a verdade do sujeito
ocidental, a qual parece objetivar uma infância-sem-fim, matriz
da tecnologia política do poder de infantilidade?
Trata-se de determinar, em seu funcionamento e em
suas formas de ser, os jogos estratégicos de verdade - tanto
os que adotam a configuração de uma ciência, de uma reli-
gião, de uma teoria, quanto os que podem ser encontrados
em instituições ou em práticas de controle — que susten-
tam, nos tempos presentes, o discurso sobre o infantil, por
levar em consideração o fato discursivo da infância e sua
colocação em discurso: o fato de se falar da infância, quem
3 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

fala, o que se diz, as instituições que estão autorizadas a


fazê-lo, que incitam este discurso, o armazenam e o difun-
dem, excitando aquilo que flui em tal discurso para positivar
a verdade - ontológica, deontológica, ascética, teleológica,
escato-teológica - do ser adulto.
Não refiro a história da infantilidade à instância da
infância; mas mostro como "a infância" se encontra na his-
tória da infantilidade - esta condição histórica muito real -,
como um efeito de superfície, uma centelha, um resplendor,
um clarão, um fulgor, uma cintilação; como uma faísca que
brota do jogo, do choque, do enfrentamento, da luta, do
combate, do produto da confluência, do compromisso, do
lance de dados, do acaso de duas rupturas: a-vida-a-morte e
mais-valia de uma infância sem fim.
O ponto importante a ressaltar será aquele que mostra
a incessante vontade de infantil do dispositivo de infantilidade,
seus mecanismos de saber, suas relações de poder, sua arte
de governar a infância e as crianças & Cia., como uma
vontade de verdade-infantil sobre o Si-Mesma/o da/ o adul-
t a / o . Vontade que leva este Si-mesma/o a fabricar e a se
servir do poder-saber do fim-de-infância e da infância-sem-
fim, como duas horas de um mesmo dia - seu meio-dia e
sua meia-noite - , que o implicam nas práticas de liberdade
de um certo cuidado de si, enquanto uma das formas prefe-
ridas de sua subjetivação como indivíduo moral, e também
em determinados processos de liberação em suas relações
com os outros. Em que medida, por quais saberes e técnicas
de poder, em que direção subjetiva, afinal, as práticas de
nossa história presente (des)constroem o Infantil? Na direção
do Mesmo? do Outro? como um Outro-Eu? um Outro-Des-
de-Nós-Mesmos/as? um Outro-Na-Nossa-Medida? um Ou-
tro-Como-Outro? Na direção inusitada, ainda indecidível, de
uma prática reflexiva da liberdade?
ERA UMA VEZ...
QUER QUE CONTE OUTRA VEZ?

O infantil que fomos e que alegamos conhecer tão bem


começou a viver e como - se fosse uma lei vital-mortal -
tudo o que vive também morre, este estudo é, ao mesmo
tempo, uma maneira de indicar alguns pontos significativos
da sua história e também de esboçar certos problemas teóri-
cos acerca das formas de conceber seu nascimento, de fazê-
lo entrar em um regime de mais-valia e de produzir o desa-
parecimento de tal condição infantil, por meio do dispositivo
de infantilidade. Dispositivo que, disseminado por toda a
sociedade e em nichos institucionais, talvez ainda resista e
persista na fabricação de uma infância sem fim.
Meu problema é saber como se pôde fazer a questão
do infantil ser tão problemática, que podia e devia ser pen-
sada e falada, e mesmo funcionar como um discurso com
função e estatuto de verdade (cf. Foucault, 1991j; 1995a),
até se tornar uma "experiência fundamental" - ao lado das
experiências da criminalidade, da doença, da loucura, da
sexualidade - dos sujeitos da sociedade ocidental moderna
(cf. Foucault, 1990b; 1991c, g). Experiência que correlaciona,
em nossa cultura, campos de saber, tipos de normatividade
e formas de subjetividade e que, por isso, nos leva a pensar
a nós próprios/as e aos/as outros/as como indivíduos que,
3 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

irrefutavelmente, são, serão ou foram infantis de uma deter-


minada maneira - mesmo que da infância seja dito que está
em vias de extinção (cf. Aviram, 1992; Bellingham, 1988;
Fuller, 1979; Gélis, 1995; Ghiraldelli Jr., 1994, 1995; Hoyles,
1979; Pollock, 1983; Stone, 1974; Wilson, 1980).
Não estou interessada e - devido a esse desinteresse -
nem vou perguntar sobre a ontologia tornada natural desse
sujeito-criança, quem foi, como é, muito menos o que será,
nem qual a identidade essencial desta parcela da sociedade
ocidental a que chamamos "infantil". Mas, por que é que a
infância prossegue sendo conceptualizada e falada como um
estágio, uma etapa, uma condição que, à primeira vista,
deve ser reprimida e superada para que possamos ir em
direção a outros estágios, etapas, condições, tais como a
puberdade, a adolescência, a adultez ou a velhice - os quais
nos acostumamos a nomear por oposição àquela condição
de infantil. Quero saber de ontologias, sim, mas, ao modo
de Foucault (1995b), da ontologia histórica de nós mesmas/
os, em relação à verdade que nos constituiu como sujeitos
infantis de conhecimento; da ontologia histórica de nós mes-
mos/as, implicada nas relações de poder que nos consti-
tuem como sujeitos infantis atuando sobre os demais; da
ontologia histórica de nós mesmas/os, na relação ética, por
meio da qual nos constituímos como sujeitos infantis de ação
moral.
Para isso, tomarei apenas uma das práticas organiza-
doras de nossa cultura, no caso a do dispositivo que infantiliza.
A partir dela, produzirei uma análise histórica da infantilidade,
tal como esta foi colocada em termos de verdade, no interior
do discurso da Modernidade, em que o infantil devia e deve
dizer alguma coisa acerca da verdade de quem é a criança
que educamos, o sujeito adulto que foi criança, ou os modos
de operar da instituição escolar que educou e educa essa
33

criança. Passarei em revista textos diversos e lhes pergunta-


rei a respeito da vontade de saber e de poder que os conduz
e a prática estratégica que os sustenta; usando mais ou me-
nos - sempre é do jeito que cada uma/um pode - a pers-
pectiva geral da teorização social pós-estruturalista, com for-
te atenção para a "caixa de ferramentas" (Foucault, 1990e,
p.71; 1991a, p.88; s.d.a, p . l l ) deixada pela produção de
Michel Foucault.
Analisarei as relações entre a experiência fundamental
da infância, os saberes que a constituíram e como o poder
disciplinar vem exercendo-se sobre essa experiência, de
maneira que tais conhecimentos e poder nos converteram
nas subjetividades infantis que somos. O que farei será parte
da história de nosso presente, por partir da questão do fim
da infância, nos termos em que se coloca atualmente; e,
desde esse diagnóstico, poder realizar uma analítica do po-
der infantilizador, que tão eficazmente produziu a vida do
infantil e que, parece, vem auxiliando naquilo que se clama
como sendo a sua morte.
Se a infância se constituiu para nossa sociedade oci-
dental como um domínio a conhecer, quero saber quais são
as relações de poder que a instituíram como objeto possível,
e se, entre outros, o dispositivo de infantilidade pôde tomá-
la por foco, como se tornou possível investir sobre ela atra-
vés de técnicas de saber e de procedimentos discursivos?
Como foi que a subjetividade infantil e sua identidade social
constituíram-se como uma problemática para a sociedade
ocidental? Como foram produzidas, enquanto questão, pelas
práticas discursivas e não-discursivas da Pedagogia e da Es-
cola, e entraram no vértice de suas relações de dominação?
Por que a infância foi constituída como uma condição huma-
na, em que se pode aí encontrar verdades subjetivas?
3 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Realizarei as operações necessárias para dar conta des-


sas perguntas assim: não contarei uma história das idéias,
das ideologias, das representações, ou dos costumes, nem
mesmo dos comportamentos, ou ao modo da história social
da infância e sim, como Foucault, por seu trabalho teórico,
mostrou o jeito de fazer, articularei uma história dos modos
em que o infantil foi sendo problematizado e refletido e pen-
sado pelo discursos culturais, em relação a uma verdade do
sujeito ocidental moderno e a uma certa arte de viver e de
cuidar de si.
De onde tirarei essa história das relações de poder-
saber e das formas de subjetivação do modo moderno de ser
infantil? Ela não está em nenhum lugar, à espera de que eu
vá buscá-la (cf. Corazza, 1996b); ao contrário, ela será mol-
dada, cortada, alinhavada e costurada com os utensílios teó-
ricos de que disponho. De posse deles, contarei a história
das duas descontinuidades que consegui isolar da história da
infantilidade, por querer saber acerca das vontades de poder
e de verdade expressas n'a-vida-a-morte e na mais-valia de
uma infância sem fim. O que farei para contar outra vez o
"era-uma-vez" narrado pela história da infância? Um traba-
lho de investigação pós-crítica, para enunciar e dar uma
visão do que o dispositivo de infantilidade vem fazendo com
essa sua invenção da infância e das crianças, em nome de
seu caráter atribuído de serem infantis dependentes, adul-
tos, sexuados e educados, até chegar a desenhar cinco figu-
ras de uma ética da infantilidade.
ESPECTROS DE INFANTIL

Como toda história "de horror" que se preze tem seus


fantasmas, a nossa é obsidiada por alguns espectros, que a
fazem meditar sobre a vida e a morte das verdades infantis:
isto é, sobre as questões de democracia e de emancipação,
do discurso universal sobre os direitos humanos, da nova
ordem internacional, dos juros do mercado mundial, das
dívidas interna e externa, do futuro da infância, de nós
próprias/os, e de tudo o mais que esse conceito "infantil"
metonimiza. O conjunto fantasmático da infantilidade deslo-
ca-se como o movimento dessa história, liberta-nos de quem
faz a lei, e nos deixa entregues à voz e às aparições dos
espectros, levando-nos a perguntar: como essas figuras po-
dem retornar e apresentar-se de novo? Como podem valer
para todas as vezes que alguém diz "infantil"?
Durante a leitura, não se deve lembrar de tal conjunto
com uma devoção passadista, nem como uma simples e
imóvel repetição de algo que vai tão mal no mundo de hoje;
apenas tomá-lo no que é: um conjunto de transformações do
qual somos todas e todos, quer queiramos ou não, saibamos
ou não, todos os homens, todas as mulheres, sobre a terra
do Ocidente inteiro, são hoje, numa certa medida, herdeiras
e herdeiros. Fantasmas que, em seu tráfico de influências,
perturbam as mutações tecno-científico-econômico-midiáti-
cas, as filosofias da técnica e o sistema onto-teo-teleológico
da infância.
3 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Para que essa lembrança? Para proceder de maneira


hipercrítica, ou seja: criticar interminavelmente, utilizando
um método pronto à sua autocrítica; exercitar a postura
problematizadora; produzir acontecimentos; convocar a no-
vas formas de ação, de prática, de organização; etc.; sem as
afirmações emancipatórias e messiânicas constituintes de
uma determinada experiência da promessa, tal como o pa-
dre ascético de Nietzsche enunciaria acerca da salvação do
infantil. Ao contrário, com Derrida (1994), lembrar desse
conjunto fantasmático da infantilidade, nossa herança, para
produzir um lugar e uma experiência da espectralidade, em
que o espectro de infantil torne-se alguma coisa difícil de ser
nomeada: nem alma nem corpo e uma e outra coisa.
Figura epistêmica positiva: grade de compreensão de
si mesmo: o primitivo, arcaico, originário: a criança como "o
Pai" e "o Mestre" do "Homem" (sic).
Figura histórica negativa: o Outro, desordem da ra-
zão, o inumano, o anormal: na Geografia do Mal, negado,
abandonado, excluído, confinado, educado.
Figura da ciência: objeto de poder de discursos, um
saber positivado, uma subjetividade descrita, mas que não
sustenta discursos sobre si mesmo.
Figura social: família fracassa em manter o infantil na
esfera privada: objeto de solicitude caritativa, filantrópica,
de investimento estatal, do capital.
Figura cotidiana: objeto de ternura, cuidados, distra-
ções, amores.
Figura do tempo: apego do humano a si, relaciona-
mento que mantém consigo, comprometimento de si nesta
relação, comportamento explicado pela hermenêutica da
própria infância.
37

Figura antropológica: no mesmo plano dos negros,


orientais, insensatos, insanos, alienados, loucos, desatina-
dos, degenerados, imbecis, parvos, patetas, pobres, miserá-
veis, indigentes, enfermos, irracionais, doentes venéreos,
velhas-infantis, velhos caducos, mulheres, negras, moças in-
corrigíveis, prostitutas, histéricas, invertidos, inocentes mal-
formados e disformes, deficientes, aqueles com espírito ar-
ruinado, pais dissipadores, libertinos, irracionais, desajustados
sociais.
Figura moral: promessa antecipada, profecia realiza-
da, mito moral em que o humano racional se garante de si
próprio: criança feliz = mundo feliz / infância melhor = mun-
do melhor.
Figura regressiva: ameaça patológica: ao se perceber
finito - criminoso, doente, louco, anormal -, retorno ao esta-
do de menoridade jurídica, à pequenez moral, à inferiorida-
de subjetiva: infantilismo.
Figura de juízo e definição: relacionamento de posse,
obscura dependência: "Esta é uma criança". "Esta é minha
criança". Suficientemente adultos/as para reconhecer a infan-
tilidade: reconhecimento que marca, sinaliza e emblematiza
a consciência da adultez, mas que não pode atestar a exis-
tência da infância sem comprometer-se nestas relações.
Figura de pânico: infância roubada, inocência perdi-
da, encantamento negado, desaparecimento, morte da in-
fância. Do "sentimento de infância" ao "direito de infância"
contemporâneo: é necessário preservar o direito de ser cri-
ança, respeitar os direitos das crianças, construir na plenitu-
de o sujeito social de direitos infantis. A criança É IGUAL ao
adulto: FIM.
HISTÓRIAS DE GOVERNO
CRIANÇAS & CIA
HISTÓRIAS DE BOVERNOI CRIANÇAS E C I A . 4 1

Se este estudo estivesse situado na velha "história ofi-


cial", relatada a partir de grandes narrativas, com seus efei-
tos hegemônicos de verdade; ou na "história social" da vida
cotidiana que acontecia nas casas e nos pátios das classes
letradas; ou, quem sabe, em sua versão mais recente da
"história vista de baixo", narrada a partir de pequenas, frag-
mentárias e obscuras referências dos que escreveram sobre
a gente comum, que não pôde deixar registros deste tipo;
também se estivesse posicionado na "história das mentalida-
des" ou na "história das idéias", com seu caráter comparati-
vo e regressivo, que parte do que se sabe sobre os compor-
tamentos de hoje, compara-os com os dados do passado e, a
seguir, considera este novo modelo como uma segunda ori-
gem e desce novamente até o presente; ou, se tivesse por
sítio a linha da "psico-história coletiva", em que a evolução
psicológica é tomada como postulado para explicar as mu-
danças históricas nas relações humanas; mesmo se preten-
desse realizar uma história dos comportamentos e das repre-
sentações, ou uma história das condutas e das práticas, con-
forme suas formas sucessivas, sua evolução e difusão; se
quisesse analisar as idéias científicas, religiosas ou filosófi-
cas, através das quais foram representados os comporta-
mentos, sentimentos, ou concepções: em qualquer um des-
ses casos, a história da infância seria monótona.

Monotonia implicada em todas as "histórias dos histo-


riadores" - como Foucault as chamava -, por seu dever
auto-imposto de tudo compreender e de tudo aceitar, sem
fazer diferença; por invocarem a objetividade, a exatidão
dos fatos, o passado inamovível; por sua grande amizade
com Platão, que as fez mergulhar nas profundidades dos
acontecimentos e nos obscuros interiores da consciência,
garimpando suas leis subjacentes, finalidades metafísicas e
boas intenções; pela constância que caracteriza sua vontade
4 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de perfurar a opacidade e o segredo das coisas, buscando


incessantemente as continuidades, tomadas como ponto de
partida e também de chegada; por traçar as curvas lentas
das evoluções, utilizando-se das teorias progressivistas que
explicam a mudança histórica; por seu desassossego em
interpretar as verdadeiras finalidades e as primitivas essên-
cias; pelas gêneses lineares que traçam de identidades uni-
versais a serem fixadas; por sua obsessiva pesquisa da ori-
gem, dos significados profundos escondidos, dos pontos ina-
cessíveis da verdade histórica (cf. Dreyfus & Rabinow, 1995;
Foucault, 1990d).
Agora, se este estudo se ancorasse no porto que Foucault
chamou de "história efetiva" ou "história do presente" e
operasse a partir de uma "perspectiva genealógica" (cf. Díaz,
1993, 1995; Gordon, 1991; Machado, 1981; Morey, 1991;
Veiga-Neto, 1996; Veyne, 1995; entre outros/as), tomando
"a infância" como o elemento mais especulativo, mais ideal
e ao mesmo tempo mais interior do dispositivo de infan-
tilidade - tal como ancora e considera - , a história do infantil
poderia ser narrada em um tom distante de toda finalidade
monótona.
Então, se demoraria em marcar a singularidade dos
acontecimentos, por suspender a insistência do tema de que
a sucessão é um absoluto; aplicar-se-ia em soltar todos os
fios dos modelos lineares da palavra e da escritura, bem
como do fluxo de consciência, que a paciência histórica d o s /
as historiadores/as da infância ligara; multiplicaria as dife-
renças - levando-as muito a sério e, assim fazendo, dizendo
em que consistem e diferenciando-as -, por embaralhar as
linhas de comunicação, por se esforçar para tornar as passa-
gens mais difíceis; e, acima de tudo, por aplicar-se em
"problematizar": afinal, todas tarefas de uma história que se
opõe à história dos comportamentos ou das representações,
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 4 3

cujo encargo é definir as condições nas quais o ser humano


problematiza o que ele é, e o mundo no qual ele vive (Foucault,
1972; 1990b, d; s.d.a).
Ancorado aí, contaria uma história da verdade infantil,
que não é nem nominalista nem essencialista, embora traba-
lhe com os usos da palavra "infantil". História que envolve
dispositivos, mais precisamente, zonas de problematização:
uma história da verdade infantil como história da
problematização do infantil, e mesmo como sua arqueolo-
gia, através da qual o ser infantil aparece como podendo e
devendo ser pensado. Trata-se de analisar justo a
problematização em que o pensamento do ser infantil cruza
as práticas culturais e a genealogia das práticas de si, atra-
vés das quais ela se formou.
Com sua vigilância reflexiva e o cuidado de pensar
dentro de sua especificidade, tal história reivindica, para
uma outra ocasião, a problematização de sua própria
problematização: também esta poderá interrogar a si mes-
ma, com o mesmo cuidado arqueológico e genealógico que,
metodicamente, aqui prescreve. Por enquanto, vejamos como
este estudo escreve a história da infantilidade, inicialmente
indicando as duas coordenadas teóricas - a de "dispositivo"
e a de "história do presente" - selecionadas para orientá-lo;
em seguida, mostrando-as em operação, quando servirem
de guia para a narração d'a-vida-a-morte e da mais-valia de
uma infância sem fim.
A história do presente dis-positivo? "Dispositivo" é um
termo técnico que Foucault introduz nos anos 70, para tra-
balhar a genealogia do sujeito moderno, mostrando o desen-
volvimento das técnicas de poder orientadas para os indiví-
duos. Um termo que, desde aí, encontra-se espalhado em
sua produção, sendo designado como: "dispositivos discipli-
nares"; "dispositivos de saber e poder"; "dispositivo da pri-
4 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

são", ou "do encarceramento"; "do internamente"; "de" ou


"da sexualidade"; "da loucura"; "da doença mental"; "da
neurose"; "de aliança"; "da confissão"; "da escuta clínica";
"da seleção" [entre os normais e os anormais]; "de seguran-
ça"; "de verdade"; "de luta"; "de guerra"; "de batalha";
"das petições"; "da polícia"; "das lettres de cachet"; entre
outras designações (cf. Deleuze, 1996; Dreyfus & Rabinow,
1995; Foucault, 1989; 1990h; 1993) .
Embora Foucault não tenha explicitado suficientemen-
te a idéia de dispositivo, os domínios - nos quais este estudo
se movimenta, seja dito, de um modo "metodológico" - para
os quais este termo aponta são mais ou menos visíveis: 1)
diferencia-se de epistéme, por abranger práticas discursivas
e não-discursivas; 2) é heterogêneo, por incluir discursos,
instituições, disposições arquitetônicas, regulamentos, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, moralidade, filantropia, etc; 3) a partir destes
componentes díspares, pode ser estabelecido um conjunto
de relações flexíveis, reunindo-as em um único dispositivo,
de modo a se poder isolar um problema específico; 4) por
reunir poder e saber, o dispositivo permite a constituição de
uma grade específica de análise; 5) dispositivo é, ao mesmo
tempo, as práticas culturais elas mesmas, atuando como
aparelhos, constituindo sujeitos e organizando-os; 6) temos
um dispositivo quando se consegue isolar estratégias de rela-
ções de força que suportam tipos de saber e vice-versa; 7) o
dispositivo, para o/a investigador/a, será utilizado como fer-
ramenta de análise e não como um fim em si mesmo; 7)
sendo assim, o dispositivo é uma tentativa inicial de nomear,
de apontar um problema do campo social.
Pode-se encontrar a mais longa elucidação que Foucault
(1990h) faz de "dispositivo" na entrevista em que discute
com as/os psicanalistas da International Psychoanalytical
HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A . 4 5

Association (IPA) francesa, mesmo que, nela, afirme: "A


respeito do dispositivo, encontro-me diante de um problema
que ainda não resolvi". Nesta entrevista, Foucault afirma
que, por meio deste termo, tenta demarcar: 1) "um conjunto
decididamente heterogêneo", onde "o dito e o não-dito são
os elementos do dispositivo", e este "é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos"; 2) "a natureza da rela-
ção que pode existir entre estes elementos heterogêneos",
de modo que o discurso do dispositivo pode aparecer como
"programa de uma instituição", ou como elemento "que per-
mite justificar e mascarar uma prática que permanece muda",
ou como "reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a
um novo campo de racionalidade"; 3) Foucault diz entender
o dispositivo "como um tipo de formação que, em um deter-
minado momento histórico, teve como função principal res-
ponder a uma urgência", adquirindo, portanto, "uma função
estratégica dominante"; da qual cita como exemplo o impe-
rativo estratégico da população flutuante que, para uma eco-
nomia mercantilista, era incômoda: este imperativo funcio-
nou como "matriz de um dispositivo" que, pouco a pouco,
tornou-se o dispositivo de "controle-dominação da loucura,
da doença mental, da neurose".
Interrogado acerca do caráter de um "certo tipo de
gênese" que talvez estivesse atribuindo ao dispositivo - além
da definição de sua estrutura feita de elementos heterogêne-
os -, Foucault concorda, dizendo que, em tal gênese, vê dois
momentos essenciais, quais sejam: um primeiro, que é o da
predominância de um objetivo estratégico; e, em seguida, a
condição do dispositivo constituir-se enquanto tal e de conti-
nuar sendo dispositivo, por englobar um duplo processo: 1) o
de "sobredeterminação funcional", em que cada efeito do
dispositivo estabelece uma relação de ressonância ou de con-
tradição com outros dispositivos, exigindo uma rearticulação
4 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente; 2)


o processo de perpétuo "preenchimento estratégico", do qual
cita, como exemplo, o dispositivo do aprisionamento, tal
como analisado em Vigiar e punir, a) medidas de detenção
como o instrumento mais eficaz para o fenômeno da
criminalidade; b) efeito - constituição de um meio delin-
qüente; c) acontecimento - a prisão funcionando como isola-
mento deste meio delinqüente; d) a partir de 1830, a
reutilização imediata deste efeito involuntário e negativo em
uma nova estratégia "que de certa forma ocupou o espaço
vazio ou transformou o negativo em positivo", fazendo com
que o meio delinqüente fosse reutilizado com finalidades po-
líticas e econômicas diversas: "a extração de um lucro do
prazer, com a organização da prostituição", operadora do
preenchimento estratégico do dispositivo de aprisionamento
(ib., p.244-7).
Para Deleuze (1991), no livro Foucault, "dispositivo" é
sinônimo de diagrama ou de máquina abstrata que é causa
dos agenciamentos concretos da escola, da oficina, do exér-
cito, da prisão, do asilo, os quais expõem e efetuam as
relações de forças que constituem o poder. Já no texto
Qu'est-ce qu'un dispositif?, Deleuze (1990) trata deste con-
ceito operatório em um sentido mais amplo, referindo-o às
três dimensões que constituem a produção foucaultiana -
saber, poder, ética - e não mais dizendo respeito apenas ao
poder. Dessa perspectiva, o dispositivo forma um conjunto
multilinear, composto por linhas de diferentes naturezas que
não abarcam sistemas, onde cada um é homogêneo por sua
conta, tal como c sistema do sujeito, do objeto, da linguagem.
Conjunto que é composto por linhas que não possuem
coordenadas constantes; seguem direções diferentes; susci-
tam outras linhas que se cruzam e se mesclam; variam e
mudam de disposição; formam processos em desequilíbrio -
HISTÓRIAS DE GQVERND: CRIANÇAS E CIA. <4 "7

linhas, em suma, que se aproximam e se afastam umas das


outras. Em um dispositivo, cada linha está quebrada e sub-
metida a variações de direção - "bifurcada, enforquilhada",
diz Deleuze -, implicada pelas seguintes derivações: os obje-
tos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercí-
cio, e os sujeitos em posição que são como vetores ou
tensores, constituidores das cadeias de variáveis relaciona-
das entre si e que ocupam as três grandes instâncias trata-
das por Foucault: saber, poder e subjetividade.
Como a continuidade deste estudo descreverá, a
infantilidade é operada como um dispositivo técnico-históri-
co, ou seja, como uma "máquina" (Deleuze, 1990, p.155),
a qual: 1) faz ver, por suas curvas de visibilidade; 2) faz falar,
por suas curvas de enunciação; 3) está implicada em linhas
de forças de poder-saber, 4) em linhas de objetivação, que
são linhas de subjetivação - que são também linhas de fuga
-, as quais constituem nossos processos de individualização;
5) em linhas de ruptura, de fissura, de fratura, que são aque-
las que nos permitem distinguir o que somos, o que já não
somos, e o que vamos sendo enquanto "sujeitos-infantis" -
objeto subjetivado por esse mesmo dispositivo.
Para percorrer tais curvas e desemaranhar as linhas do
dispositivo de infantilidade será necessário desenhar o terre-
no, cartografando as linhas já existentes da história da infân-
cia - linhas que estão sedimentadas em outras referências
teóricas e metodológicas, mas que, por serem móveis, como
é da natureza mesma do dispositivo, permitirão que sejam
desarranjadas na promoção das fissuras, fraturas, rupturas.
Cartografia que, para se exercitar, estará atenta àqueles
pontos mais fortes que permitam delinear a analítica do dis-
positivo de infantilidade, quais sejam:
1) Ao regime de luz do infantil - considerando "infância"
como um dos pontos imaginários e necessários fixados
pelo dispositivo de infantilidade não como uma luz geral
4 8 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

que ilumina um objeto preexistente, e sim como a luz que


cai, difunde-se, quando distribui o visível e o invisível do
infantil, fazendo nascer, esmaecer ou desaparecer o obje-
to histórico "infantil", o qual não existe sem ser por ela
iluminado.
2) Ao regime de enunciação da infância - não como uma lei
de significantes constitutivos do infantil, os quais, após
criados, apontariam para o signo universal "infantil", e
sim como componentes de um "arquivo da infância": a)
constituído por linhas de enunciação do que é e do que
deve ser tomado por infantil; b) por onde se distribuem as
posições diferenciais de seus elementos; c) que é a lei do
que pode ser dito e que rege o aparecimento dos enuncia-
dos como acontecimentos singulares, definindo seus mo-
dos de enunciabilidade, de funcionamento e de atualida-
de; d) que produz mecanismos positivadores de saberes,
multiplicadores de discursos e verdades que induzem ao
prazer, ou ao sofrimento, e geram poderes.
3) Às linhas de força da infantilidade - que se produzem em
toda a relação de um ponto ao outro do dispositivo, pas-
sando por todos os seus lugares e penetrando as coisas e
as palavras infantis: de um certo modo, invisíveis e indizí-
veis, estas são as linhas mais estreitamente mescladas com
as outras. Por articularem poderes e saberes, as linhas de
força são as que melhor diagnosticam o dispositivo de
infantilidade, como disposição estratégica de formas so-
ciais e práticas discursivas acerca do infantil, da infância,
das crianças & Cia.
4) Às linhas de objetivação e subjetivação do infantil - que
constituem a curva realizada dentro do dispositivo de infanti-
lidade, quando alguém se pergunta: "Como cruzar as li-
nhas de força, como passar ao outro lado"? Curva que ocorre
quando uma força, em lugar de entrar em relação linear
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇA5 E CIA. 4 9

com outra força, volta-se para si mesma, afetando-se a si


própria. Nesse processo de subjetivação, pode-se pergun-
tar se estas linhas são as bordas extremas do dispositivo
que, talvez, esbocem a passagem da infantilidade, dispo-
sitivo antigo, para um novo; sendo que, neste caso, po-
dem ser estas as linhas que preparam aquelas de ruptura.
5) Às linhas de fissura, de fratura, de ruptura da infantilidade
- as quais, como é próprio do dispositivo, repudiam os
universais e o eterno, bem como os valores transcenden-
tes, para apreender um novo infantil. Novo que se refere
à criatividade variável dentro do dispositivo, sem preocu-
par-se com a originalidade de uma enunciação, porque
considera unicamente sua "regularidade" (Foucault, 1972,
p. 51): ou seja, seu teor de novidade, de criatividade, que
marca, ao mesmo tempo, a capacidade do dispositivo de
infantilidade de transformar-se e projetar-se como um dis-
positivo do futuro que rompe com o antigo.
Este estudo considera a infantilidade como um dos
dispositivos concretos da história genealógica do sujeito oci-
dental, tendo sido ele que suscitara, dentre tantos elementos
necessários a seu funcionamento: 1) como elemento
especulativo, a noção de "infância"; 2) como elemento polí-
tico de poder, a identidade social do "infantil"; 3) e como
elemento moral de subjetivação, a condição "infantil". Por
isso, examinará o dispositivo de infantilidade - no que se
refere a seus elementos de saber da infância, de poder com
as crianças e de subjetivação do infantil -, atentamente, não
se colocando fora dele, mesmo porque isso seria impossível,
já que "pertencemos a certos dispositivos e trabalhamos ne-
les" (Deleuze, 1991, p. 159).
Tomará, portanto, a infantilidade como sendo de natu-
reza eminentemente estratégica, o que supõe tratar-se de
uma certa manipulação das relações de força, de uma inter-
5 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

venção racional e organizada nessas relações, seja para


desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-
las, estabilizá-las, utilizá-las etc. (Foucault, 1990h). Como
um dispositivo que está inscrito em um jogo de poder, ligado
às configurações de saber que dele nascem, mas que tam-
bém o condicionam, do mesmo modo que faz suceder com
as formas de subjetivação infantil. Dispositivo que, ao proce-
der à mise en discours do infantil, emparelha-o com uma
série de técnicas, estratégias e sistemas, deste e de outros
dispositivos, para corroborar a instalação e a existência de
um mesmo objeto: "o infantil", formado na conjunção de
vários tipos de condições, regras, condutas, relações e sabe-
res, discursivos ou não, que nos fazem dizer a verdade da
infância - nossa e a das/os outras/os.
Porque diagnostica problemas de produção, de status
e de efeitos da verdade infantil em nosso tempo presente,
este estudo fará a genealogia das relações de força, dos
desenvolvimentos estratégicos e das táticas, ao isolar as po-
líticas do enunciado "infância", os regimes desse discurso e
as economias das relações de poder com os infantis (cf.
Foucault, 1990j). Estando empenhado em situar a infância
no interior de uma economia geral do discurso histórico,
mostrará sob que formas a infância vem sendo interrogada
para que diga sua verdade, passando a constituir algo digno
de ser inquirido, investigado, classificado e apropriado, tor-
nando-se um legítimo objeto de conhecimento das Ciências
Humanas e Sociais.
Contará a história do que foi e é dito acerca da infân-
cia, perguntando aos textos: o que exatamente as práticas
discursivas da história da infância, constituídas pelo disposi-
tivo de infantilidade, fazem? Não determinará "a verdade"
de suas teses, constituídas desde diversas posições historiográ-
ficas, mas se deterá na noção cotidiana e recente de infân-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A .

cia, para dela distanciar-se, ao contornar sua evidência tão


familiar. Analisará o contexto teórico e prático ao qual a
infância é associada, como uma experiência historicamente
singular da sociedade ocidental que gira ao redor de três
eixos: 1) a formação histórica dos saberes que se referem à
infância; 2) os sistemas de poder que regulam nossas rela-
ções com os infantis; c) as formas pelas quais os indivíduos
podem e devem reconhecer-se como sujeitos da infantilidade.
Não atentará aos esquemas suaves e continuistas de
desenvolvimento que, usualmente, são admitidos na chama-
da "história da infância"; mas, relendo estes e outros textos,
com uma ênfase genealógica, empenhar-se-á em descrever
como foi possível que, em certos momentos históricos, em
certas ordens de saber e sob determinadas relações de po-
der, ocorressem mudanças bruscas, precipitações de evolu-
ção, modificações globais. Portanto, analisará as "rupturas"
(Foucault, 1972, p. 207; p. 211-2) da história da infantilidade,
descrevendo a disposição sistemática de seus descontínuos,
por usar a descontinuidade como "conceito operatório", di-
ferentemente daquilo que recebe do material histórico a
tratar; e também por realizar uma "prática de análise histó-
rica" (Foucault, 1976, p. 58-9), diferentemente de qualquer
sistema.
Municiado por suas ferramentas analíticas, este estudo
montará duas grandes linhas de rupturas que passam a ser
ressignificadas e narradas, na prática histórica do dispositivo
de infantilidade, como se formando no nível dos saberes acerca
da infância, das relações de poder com as crianças e das
formas de subjetivação do infantil, quais sejam: 1) a-vida-a-
morte, 2) mais-valia de uma infância sem fim. Rupturas
constituídas por quatro conjuntos estratégicos e suas figuras
específicas, respectivamente: 1) subordinação da identidade
infantil e adultização das crianças/infantilização dos adultos
5 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

- com as figuras correspondentes do infantil dependente e


adulto; 2) pedagogização do corpo-alma e sexualização do
infantil/infantilização do sexo - com as figuras do infantil
educado e sexuado.
Como fará isso? Ora, fazendo uma "história do presen-
te" (Foucault, 1990f, p. 151; 1991h, p. 198), por ter enun-
ciado o dispositivo de infantilidade como um componente
vital do poder moderno e por haver "diagnosticado" (Foucault,
1991d, p. 42) a situação atual da infância - em sua orienta-
ção inequívoca de fim-de-infância (Corazza, 1997; 1998, p.
38-191) - , localizando algumas manifestações desse ritual
meticuloso de poder nas práticas culturais. A partir dessa
perspectiva, poder abandonar, entre outros, ao menos dois
tipos de história: o presentismo e o finalismo.
Pelo presentismo, tomar do presente a significação, o
sentimento, a identidade, a subjetividade, o conceito, as prá-
ticas do infantil, e encontrar, quase por definição, paralelos
no passado; pelo finalismo, encontrar a origem, as verdades
seminais do infantil do presente, em algum ponto distante
do passado, do qual o presente é o ponto máximo do desen-
volvimento sucedido, de modo que tudo tem um lugar, um
sentido: "tudo está situado a partir do objetivo final que a
história alcançará" (Dreyfus & Rabinow, 1 9 9 5 , p. 132).
Foucault denomina de "ceticismo radical" - "mas sem
agressividade" - essa sua "precaução de método", também
adotada por este estudo, em relação à perspectiva de pro-
gresso, a qual se dá por princípio não tomar o ponto em que
nos encontramos pelo final de um progresso que caberia
aos/às historiadores/as reconstituir com precisão
Por concordar com Foucault (1990i, p. 140) que colo-
car o problema "Por que progredimos?" é um "mau méto-
do", este trabalho não buscará uma história ordenada do
passado, nem as conexões de causa-efeito entre fatos reais
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 5 3

de uma realidade acontecida com os fatos atuais; não apre-


sentará nenhum compromisso com uma teleologia da razão,
já que esta é compreendida como um produto de circunstân-
cias históricas; nem historicizará as idéias ou as mentalida-
des, já que estas não são objetos de existência contínua que
possam ser acompanhados ao longo do tempo. Perguntará:
- como foi mesmo que chegamos até aqui? Para responder,
isolará os componentes centrais de ruptura da tecnologia
política da infância e os traçará para trás, de posse da se-
guinte pergunta-guia: o que era a infância nos tempos mais
antigos e o que se tornou hoje? Usará como lentes de au-
mento, para poder variar as ênfases (cf. Foucault, 1990i), os
jogos das vontades e sua história das sujeições e lutas; isto é,
das estratégias de dominação, das relações de força, das
disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos,
que constituem a longa história do dispositivo de infantilidade.
Abordará os escritos dos/as historiadores/as, de modo
que, a partir daí, possa descrever a história das muitas inter-
pretações que nos têm sido impostas (cf. Foucault, 1989),
pela pesquisa: 1) da procedência (Herkunft) - que não fun-
da, mas, ao contrário, "agita o que se percebe imóvel",
"fragmenta o que se pensava unido", mostrando "a
heterogenei-dade do que se imaginava em conformidade con-
sigo mesmo" (Foucault, 1990d, p. 21); 2) da emergência
(Entestehung) - que faz entrar em cena as forças: "sua in-
terrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para
o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude"
(ib., p. 24). Pacientemente, a escuta histórica deste estudo
escutará as histórias já narradas, para opor-se ao desdobra-
mento meta-histórico das significações ideais e das indefini^
das teleologias, se, não por acaso, com elas se deparar.
Assim, o "sentido histórico" da infantilidade poderá
retornar às três modalidades da história que Nietzsche reco-
nhecia em 1874, embora tentando superar as objeções que
5 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ele então lhes fazia, em nome da vida, de seu poder de


afirmar e criar. Retornar a essas modalidades, pela via das
metamorfoses operadas por Foucault (1990d, p.33-7), ao
adotar os usos que ambos opuseram às modalidades platôni-
cas da história, quais sejam:
1) o uso paródico e burlesco que se opõe ao tema da histó-
ria-reminiscência, reconhecimento: ao infantil despedaça-
do de nosso presente não oferecer identidades sobressa-
lentes, melhor individualizadas e mais verdadeiras do que
a sua porque o genealogista [e também "a" genealogista,
por certo] saberá o que é necessário pensar de toda "essa
mascarada"; bem como a levará ao extremo, por colocar
em cena "um grande carnaval do tempo", em que as más-
caras infantis reaparecem sem cessar;
2) o uso dissociativo e destruidor da identidade que se opõe
à história-continuidade ou tradição - não tentar encontrar
as raízes da identidade infantil, mas ao contrário, obstinar-
se em dissipá-la; não demarcar o território único de onde
vieram os infantis - essa primeira pátria, essa aurora de
nossas vidas, à qual tantos prometeram que retornaríamos,
enquanto outros/as nos ameaçam com o degredo porque
dela não conseguimos sair -, mas fazer aparecer todas as
descontinuidades que o atravessam; "tarefa antiquaria"
essa, cuja função é demonstrar os sistemas heterogêneos
que, sob a máscara de nosso eu infantil, nos proíbem toda
outra identidade;
3) o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à
história-conhecimento - pela injustiça que é própria da
vontade de saber, querer saber sobre o infantil, a infância
e as crianças não se aproxima de uma verdade universal;
não nos dá um exato e sereno controle da natureza; ao
contrário, esta vontade multiplica os riscos, faz nascer os
perigos, abate as proteções ilusórias, desfaz a unidade do
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 5 5

sujeito e libera nele tudo o que se obstina em dissociá-lo e


destruí-lo. Em poucas palavras, trata-se "de arriscar a des-
truição do sujeito de conhecimento na vontade, indefini-
damente desdobrada, de saber".
Desses modos, a história da infantilidade que, desde
aqui, começa a ser formulada: 1. partirá "de um problema"
- no caso deste estudo, o problema do infantil, das crianças
e Cia.; 2. "nos termos como é formulado atualmente" - do
chamado "fim" ou desaparecimento da infância, como a
descontinuidade mais visível na história contemporânea do
dispositivo de infantilidade; 3. e realizará "sua genealogia".
Por quê? Ora, é simples, falou Foucault (1991c, p. 237):
porque fazer genealogia "quer dizer que realizo a análise
partindo de uma questão presente".
A-VI DA-A-M D RTE

A-vida-a-morte não exerce somente a função de um


título, nem a de dar nome a uma seção; é visível que exerce
também estas funções, mas, acima de tudo opera como
uma posição analítica, cuja "lógica" é outra que não aquela
da binaridade, do sim ou não; uma lógica, portanto, que não
é a do logos filosófico ocidental. Derrida (1995a, p. 9-13)
refere que Platão, no Timeu, já a designara sob o nome de
khôra - lugar, local, localização, região, território - que pa-
recia desafiar essa lógica da não-contradição dos filósofos,
essa lógica da binaridade, do isso ou aquilo.
Não sendo nem sensível, nem inteligível, a khôra per-
tence a um terceiro gênero; sobre ela não se pode nem
mesmo dizer que não é nem isso, nem aquilo, ou que é ao
mesmo tempo isso e aquilo; ela não nomeia nem isso, nem
aquilo, nem diz isso e aquilo. O que desafia e mesmo emba-
raça o Timeu manifesta-se da seguinte forma: algumas ve-
zes a khôra não parece ser isso nem aquilo, outras simulta-
neamente isso e aquilo. Essa alternativa entre a lógica da
exclusão e a da participação talvez deva-se a uma aparência
provisória e às coerções da retórica, ou até mesmo a uma
inaptidão em nomear.
O discurso sobre a khôra não procede do logos natural
ou legítimo, mas muito mais de um raciocínio híbrido, bas-
tardo - logismô nothô -, mestiço. Ele se anuncia como em
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA. 5*7

um sonho, o que pode tanto privá-lo de lucidez quanto con-


ferir-lhe um poder de adivinhação. Sua oscilação não se dá
entre dois pólos, mas é entre dois gêneros que a khôra osci-
la: a dupla exclusão - nem/nem -, e a participação - ao
mesmo tempo ... e, isto e aquilo. Também para Derrida
(1995c, p. 7-11), quando se pretende falar segundo o que
chamam de "apófase" ou, em outras palavras, segundo a
voz imparcial, a via da teologia dita ou autodenominada
negativa, essa voz se reduz a si mesma: ela diz uma coisa e
seu contrário, ela diz - Deus que é sem ser ou Deus que
(está) além do ser. Sim e não. Então a frase apofática não
será somente equívoca, mas dotada de um equívoco essen-
cial, significante, apenas decisivo em sua própria indecidi-
bilidade.
Tanto a /chora quanto a apófase são exemplos de
indecidíveis - indécidables -, isto é, elementos ambivalentes,
sem natureza própria, que não se deixam compreender nas
oposições binárias; elementos irredutíveis a qualquer forma
de operação lógica ou dialética. Ao contrário deles, o discur-
so da filosofia ocidental - platonismo e antiplatonismo -
repousa sobre o princípio da discernibilidade, ou seja, a pos-
sibilidade de distinguir o falso e o verdadeiro, o isso e o
aquilo, o que uma coisa é ou seu contrário. Este discurso
ontológico tem no "ente presente" a forma matricial da subs-
tância, da realidade, que distingue da aparência, da ima-
gem, do fenômeno. O recurso à verdade daquilo que é sem-
pre permite sempre decidir sobre ela (cf. Derrida, 1971, p.
260-284; Santiago, 1976, p. 49).
A ausência de significado transcendental, postulada a
partir de uma determinada aquisição teórica e de uma ope-
ração de "desconstrução" (cf. Culler, 1985; Derrida, 1971,
p. 229-252; 1973; 1993) assinala que o ente presente, o
referente, não se dá como percepção ou intuição. Mesmo
5 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

com essa ausência permanece a referência e inscreve-se aí


uma marca - pura e impura - , sem pólos decidíveis, sem
termos independentes e irreversíveis, ficção sem imaginário,
mímica sem imitação, aparência sem realidade dissimulada,
traços que nenhum presente teria precedido ou sucedido.
Essa marca produz um milieu - "essência" anaidética
do pharmakon, espaço onde se constitui o suplemento - ,
enquanto meio, como elemento que contém os dois termos
- pura e impura -, ao mesmo tempo. Constituindo um "lu-
gar" sem lugar marcado, atópico, o milieu mantém-se entre
dois termos, funcionando como a barra - lugar entre - que
se situa no limite dos diferenciandos. A esta marca, Derrida
chama "indecidível", isto é, unidades de simulacro, falsas
propriedades verbais, nominais ou semânticas que não se
deixam compreender na oposição filosófica - binaria; e que,
no entanto, habitam-na, resistem-lhe e a desorganizam, sem
jamais constituir um terceiro termo, sem jamais dar lugar a
uma solução na forma da dialética especulativa (cf. Santia-
go, 1976, p. 49-50).

Exemplos de indecidíveis: o pharmacon não é nem o


remédio, nem o veneno; o suplemento não é nem um mais
nem um menos; o hímen não é nem a confusão nem a dis-
tinção; o espaçamento não é nem o espaço nem o tempo; o
encetamento não é nem a integridade de um começo nem a
simples secundariedade (cf. Derrida, 1973; 1991). Quanto
a saber, em Espectros de Marx (Derrida, 1994a), se Marx e
seus herdeiros ajudaram-nos a pensar e a tratar o fenômeno
do poder tecno-midiático, a resposta, diz Derrida, é, ao mes-
mo tempo, sim e não, sim a tal respeito, não a tal outro. O
que é preciso é assumir a herança do marxismo, assumir a
mais "viva", ou seja, paradoxalmente, o que nunca se afas-
tou da questão da vida, do espírito ou do espectral, "de a-
vida-a-morte para além da oposição entre a vida e a morte".
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 5 g

Posição, portanto, para além das oposições, que tam-


bém faz Derrida (1971) religar, na desconstrução do texto de
Freud, Mais além do princípio do prazer, a-vida-a-morte
por meio da análise dos valores de nexum, de desmos, de
liga, de estreitura, utilizando esse "mais além" - em francês,
pas au-delà - para empregar pas como "passo", e fazê-lo
oscilar, muitas vezes, em seu seminário La carte postale
(Derrida, 1986), enquanto advérbio negativo: "passo-de-
mais". Assim como "o segredo", de Paixões (Derrida, 1995b),
que não responde, que não se deixa encobrir pela relação
com o outro, pelo estar-com, ou por nenhuma forma de
"laço social". Embora o segredo seja aquele que torna possí-
vel a consciência, o sujeito, o Dasein em seu poder ser au-
têntico, ele é o que não responde. Nenhuma responsiveness,
diz Derrida. E indaga: "Será isso chamado a morte? A morte
dada? A morte recebida? Não vejo razão alguma para não
chamar isso a vida, a existência, o rastro" (Derrida, 1973,
p. 22) E não o contrário.

Para esse "título" que chega com o nome de A-vida-a-


morte, o elemento indecidível, que não pode ser apreendido
pelas oposições binárias, não é nem a morte/nem a vida,
nem vital/nem mortal, sendo ao mesmo tempo ou bem a
vida, ou bem a morte, ou bem vital, ou bem mortal: o
indecidível do dispositivo de infantilidade que produziu a-
vida-a-morte dos infantis, porque se constituiu na cadeia
eternamente aberta da differánce. Cadeia cujos elos foram
produzidos, em sua Herkunft e Entestehung, pelo dispositi-
vo da Roda.
ÊD HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

NA RDDA

Eis onde e como se pode situar a khôra do indecidível


"a-vida-a-morte" infantil das sociedades ocidentais: no vão
estreito e ligeiramente oval de um muro de pedra, ocupado
por um mecanismo giratório. A "Roda" não passou de um
restrito episódio: alguns séculos somente e localizado em
poucos países - Itália, França, Alemanha, Portugal, Brasil.
Nem por isso é menos importante na história dos mecanis-
mos de poder-saber do dispositivo de infantilidade, enquan-
to sua dobradiça por excelência, seu dispositivo de eixo gira-
tório.
Antes dela, as crianças, as quais não se matavam dire-
tamente, mas que, por motivos os mais diversos, não se
criavam, eram deixadas em qualquer lugar: no lixo, em vias
públicas, na entrada de casas aristocráticas, nos pátios, ter-
renos baldios, nos átrios de mosteiros e conventos, em por-
tais de igrejas, hospícios, hospitais gerais, nas fímbrias de
bosques, matos, florestas - pela mãe, pai, por ambos os
progenitores, parentes, vizinhos, amigos, inimigos -, logo
após o nascimento, ou nos primeiros dias, meses, anos de
vida.
Essa "exposição" de crianças consistia em pô-las à vis-
ta, apresentá-las, mostrá-las, exibi-las publicamente; bem
como "as expostas" eram aquelas crianças que estavam à
vista, oferecidas aos outros, ofertadas à-vida-à-morte. A
criança implicada por essa prática foi chamada de "enjeita-
da", "achada", "abandonada", sendo que "criança exposta"
consistiu o termo genérico e corrente com o qual foi histori-
camente designada. Como se verá, tais expressões, que po-
deriam parecer simplesmente "terminológicas", tiveram im-
plicações políticas, educacionais e subjetivas importantes.
H I S T ó R I A S DE G D V E R N D : CRIANçAS E CIA. Q 1

A exposta, geralmente, era deixada vestida, em cai-


xas, cestas, pequenos berços; acompanhavam-na uma saco-
la ou trouxa com um humilde ou luxuoso enxoval, um bilhete
ou carta contendo informações, tais como o primeiro nome,
se fora ou não batizada, se existia ou não a intenção futura
de ir buscá-la, os motivos pelos quais estava sendo deixada.
Também era freqüente encontrar junto a ela objetos para
sua posterior identificação, como medalhas, moedas, cola-
res, figas; ou nada disso, sendo deixado apenas um corpo:
vivo, semimorto, morto.
Os limites entre a prática de expor crianças e as diver-
sas formas que o infanticídio assumiu na história ocidental
são tênues; uma e outras produziram, no mais das vezes, a
morte das crianças e provocaram uma dispersão de efeitos,
muitos dos quais nos alcançaram, tais como os registros es-
critos: essas objetivações que hoje nos permitem pensá-las e
delas falar, colocando em jogo linguagens sociais organizadas
e valoradas em termos de verdade e poder.
A exposição diferenciou-se do infanticídio por consti-
tuir um sistema de forças que articulava a exposta, os/as
expositores/as, e alguém/uma instituição que recolhesse,
ou não, aquela que fora exposta. Por relacionar essas forças,
tal sistema requisitava, como seu correlato imediato e mais
operante, a terceira delas: a efetivação das práticas de reco-
lhimento, acionando e criando instituições, procedimentos e
políticas de recolha que "salvassem" as crianças expostas,
para evitar que ficassem abandonadas ou que morressem.
No sistema infanticida, operavam apenas a mão que mata-
va e a criança morta; na exposição, alérn da mão que expu-
nha e a exposta, funcionaram sempre as linhas de força das
práticas culturais que atribuíram significações diversas, às
vezes antagônicas entre si, e operaram atos diferentes "de
salvação" do corpo infantil.
6 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Desde a Antigüidade, a exposição articulou a emer-


gência de mecanismos individuais e coletivos - ora de cará-
ter religioso, piedoso, caritativo e missionário, ora filantrópi-
co, assistencial e educacional, ou então mesclados -, os quais
provocaram descontinuidades nas práticas de significação
culturais. Por exemplo, no final do século XIX e início do XX,
pode-se identificar o deslocamento entre as formas de assis-
tência regidas pela filantropia caritativa e a assistência regida
pelos princípios médico-higienistas, fundados na fé, na ciên-
cia e no humanitarismo (cf. Kuhlmann Jr., 1997, p.6-9).
A partir do Renascimento, o "problema" das expostas
foi sendo tematizado cada vez com maior ênfase e tratado
de formas as mais diversas, até que, na Modernidade, cons-
tituiu-se como uma séria questão de governo para os Esta-
dos: questão moral e biológica da raça, da espécie, do corpo
social, e do corpo de cada indivíduo, principalmente das
mulheres e das crianças; questão ligada ao aumento e à
necessidade de regular a população, de distribuir e agrupar
os indivíduos nas cidades e vilas, de administrar os recursos
na gestão econômica das riquezas.
A exposição moderna positivou um feixe múltiplo de
problematizações, umas mais gerais, outras mais específi-
cas: problemas da natalidade e da mortalidade infantis; ques-
tões acerca da família conjugai e de suas práticas sexuais;
problemáticas da mulher, de seu corpo biológico-moral e de
sua sexualidade, em correlação com a maternidade, o alei-
tamento, o amor filial, os cuidados das crianças; configura-
ções e funcionamentos das sociedades e dos grupos em rela-
ção com as morais correspondentes; a categoria social de
"criança exposta" e os binarismos daí derivados entre identi-
dades de filhos "bastardos" e "naturais", de "legítimos" e
"ilegítimos"; formas diferenciadas de governo e de educação
das crianças; saberes acerca do infantil "padrão" e dos in-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . g 3

fantis "anômalos" etc. A literatura tratou de "motivações"


que induziam à prática de expor, bem como dos processos
de inserção social dessas crianças (cf. Machado de Assis,
1962; Guimarães, s.d.); e, por exemplo, durante o século
XIX, no Brasil, o discurso médico-higienista elegeu a assis-
tência às crianças expostas como um de seus alvos prioritários,
tornando-a um suporte instrumental para intervir nas condu-
tas da família patriarcal assentada em uma sociedade
escravocrata (cf. Costa, 1989).
Diz-se que, se o sistema geral da exposição foi consti-
tuindo-se de modo descontínuo, duas de suas linhas se man-
tiveram invariáveis: a exposição das crianças, a partir da
Antigüidade até os séculos XII e XIII, teve por característica
uma relativa desordem espacial e temporal, e um grau tam-
bém relativo de incerteza acerca dos destinos das expostas.
O que este esquema de poder produzia eram modelos mais
ou menos caóticos de exclusão-rejeição e de acolhimento-
salvação, já que expor uma criança sempre foi, de certa
forma, entregá-la aos desígnios de Deus ou do Destino.
Porém, as práticas mais antigas de exposição consisti-
ram em deixar as expostas em lugares ermos ou em lugares
de acesso público, em que tivessem nenhuma, menor ou
maior possibilidade de serem encontradas, por tais ou quais
pessoas ou grupos, que apresentavam de antemão mais ou
menos chances de criá-las. Lidava-se, é certo, com a prová-
vel proteção dos deuses e com a expectativa de que a cari-
dade alheia induzisse a seu recolhimento, mas, de algum
modo, podia-se vislumbrar aí uma certa ordem, expressa
em um cálculo de perdas e ganhos, no qual os indicadores
eram a vida ou a morte das expostas. Tanto Sargão, Moisés
e Édipo, quanto Rômulo e Remo, entre outros conhecidos
expostos por fatores ditos político-religiosos, tiveram suas
exposições cercadas de algumas precauções para que sobre-
6 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

vivessem até serem encontrados, das quais é exemplo o fato


de que os cinco foram colocados a navegar nos rios em ces-
tos devidamente calafetados (cf. Bíblia, 1982, p. 83).
Em função desse cálculo, integrante de uma desordem
ordenada, é que se encontra, inserida nas práticas escravistas
do Mediterrâneo, na Antigüidade, a organização de elemen-
tos que já anunciava um "sistema", materializado no comér-
cio especializado em crianças, as quais eram, em sua maio-
ria, meninas destinadas à prostituição. Muitas eram recolhi-
das pelos traficantes nas ruas onde seus pais as expunham
desde o nascimento, sendo que essa exposição de filhas
neonatas era considerada uma necessidade para as famílias
de poucos rendimentos: "Com efeito, para os pobres, uma
filha representa uma boca inútil a alimentar e é assim vota-
da à exposição antes mesmo de ter nascido". Essas expos-
tas eram colocadas perto das latas de lixo, nos cantos das
ruas, embora houvesse o cuidado de pô-las dentro de vasos
ou em marmitas, para protegê-las dos cães errantes.
As mais antigas leis de Roma, as chamadas "Leis de
Rômulo", impuseram aos pais o dever de criar "todos os
filhos homens e a primeira filha mulher a nascer", o que foi
feito por muitos romanos, até avançado o Período Imperial.
Na cidade, existiam lugares especiais, como o sopé da Colu-
na Lactária, destinados à exposição de crianças indesejadas,
em geral meninas, mas às vezes meninos ilegítimos, defor-
mados ou cujo nascimento fora acompanhado por maus pres-
ságios: umas poucas eram recolhidas por estranhos e adotadas
ou criadas como escravas, mas a maioria era deixada à mor-
te em suas cestas, pela exposição ao tempo ou à fome (cf.
Oliveira, 1990, p. 51-52; Mello e Souza, 1996, p. 31).
Integrava essa ordem, relativamente calculada, um aná-
tema geral sobre a exposição das filhas mulheres, do qual
são exemplos: 1) Um operário egípcio escreveu as seguintes
instruções a sua mulher que estava grávida: "Quando deres
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. S 5

à luz, se for um menino, guarda-o; se for uma menina, deves


expô-la". 2) Em documento de um autor cômico do século III
lia-se: "Um filho é criado por qualquer pessoa, mesmo que
seja pobre; uma filha é sempre exposta, ainda que os pais
sejam ricos". 3) Em uma comédia de Terêncio Varrão, um
homem repreendia sua mulher que entregara a filha para
uma velha expor: "Que estupidez! Tua filha, que deste a
esta velha, é agora uma prostituta, ou então foi vendida em
leilão" (Salles, 1983, p.46-47). Dela, também fez parte uma
ênfase ao caráter menos cruel do infanticídio em relação à
prática de expor recém-nascidos, tal como a indicada por
Tertuliano, em 198 d . C , ao censurar as condutas dos pa-
gãos:

Todavia, vocês são infanticidas (...); vocês que matam seus filhos
recém-nascidos pela exposição (...). O fato de que o assassinato
que cometem não seja ritual, nem realizado pela espada, não
constitui uma diferença. Ao contrário, o ato é ainda mais cruel,
por causa do frio, da fome ou dos animais, se vocês expuserem
a criança; ou por causa da morte mais lenta nas águas, se vocês
a afogarem (Oliveira, 1990, p. 42).

Aristóteles, em Política, ao discutir o tamanho das pro-


priedades e sua importância na segurança do Estado,
considerou a necessidade de limitar o número de filhos para
evitar o empobrecimento dos cidadãos, estabelecendo a ne-
cessidade do infanticídio, desde que a exposição não fosse
permitida pelos costumes da polis:

Quanto a rejeitar ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma


lei segundo a qual nenhuma criança disforme será criada; com
vistas a evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades
impedem o abandono de recém-nascidos deve haver um dispo-
sitivo legal limitando a procriação; se alguém tiver um filho con-
trariamente a tal dispositivo, deveria ser provocado o aborto
Ê 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

antes que comecem as sensações e a vida (a legalidade ou a


ilegalidade do aborto será definida pelo critério de haver ou não
sensação e vida) (Aristóteles, 1988, p. 149).

Após a chamada desagregação do Mundo Antigo, a


exposição de crianças continuou a ser praticada nas socieda-
des ocidentais. Em todo mundo cristão, a Igreja Católica
condenou-a, juntamente com o aborto e o infanticídio, e
foram algumas ordens religiosas as primeiras que providen-
ciaram a institucionalização do recolhimento das crianças
expostas. Também as monarquias adotaram medidas para
regulamentar e incrementar a assistência a essas crianças,
conjugando-se com o clero e as mulheres da alta nobreza,
infantas e rainhas. Durante os séculos VI e VII, em diversas
cidades da França, existiu junto à porta das maiores igrejas
uma "concha de mármore" onde as recém-nascidas eram
expostas, recolhidas e criadas pelas cortes e pelos eclesiásti-
cos. Em 1273, a rainha portuguesa D. Beatriz, esposa de D.
Afonso II de Castela - "sensibilizada com a situação dos
bebês abandonados, que muitas vezes morriam ao relento,
sem assistência e sem batismo" -, fundou um hospital para
os meninos órfãos de Lisboa. Erguido na rua da Porta de São
Vicente de Mouraria, o Ecclesia Innocentus Hospitalis
Puerorum "destinava-se a recolher os expostos e velar pelo
seu bem-estar físico e moral, preparando-os para ganhar seu
próprio sustento na juventude" (Marcilio, 1997, p.56).
Albergues, asilos, hospitais, hospícios, casas de reco-
lhimento distribuíram-se e se organizaram para o recolhi-
mento das crianças expostas - em Milão (787), Siena (832),
Pádua (1000), Montpellier (1070), Eibeck (1200), Florença
(1317), Santarém (1321), Nuremberg (1331), Paris (1362),
Lisboa (1492) -, na mesma proporção em que se dissemina-
va a formulação da problemática da exposição como uma
das questões de governo, enquanto correlacionada com as
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 6 7

práticas sexuais extraconjugais e a gestão moral das condu-


tas individuais e coletivas das famílias, das mulheres e de
suas crianças.
A assistência aos expostos, na França dos séculos XV e
XVI, distinguia os recém-nascidos provenientes "do pecado"
daqueles provenientes "da miséria", no intuito de privilegiar
o recolhimento dos segundos. Por serem "os bens dos hospi-
tais" considerados como "bens dos pobres", não se poderia
receber os expostos indiscriminadamente, além de tal aco-
lhimento servir de estímulo ao pecado, como argumentou
Carlos VII, em 1445:
Se recebêssemos sem distinção as crianças ilegítimas, seriam
em grande quantidade, porque muita gente as abandonaria e
continuaria pecando, pois veria que os frutos do pecado seriam
alimentados melhor e que os pais não teriam os encargos nem
os cuidados. Tais hospitais não conseguiriam oferecer e suportar
isso por muito tempo. (Flandrin, 1988, p. 199-200)
Alguns bispos franceses reservavam para si o direito de
absolver aqueles que abandonavam as crianças nos hospitais
ou em lugares públicos. As avaliações teológicas não eram
unívocas: um bispo do século XVI considerava pecado expor
crianças em lugar público ou privado quando os pais pos-
suíam "meios de alimentá-las". No século XVIII, outro teólo-
go, apesar de ser partidário daqueles que desaconselhavam
o enjeitamento dos filhos por uma mulher, fosse para preser-
var sua honra, fosse por não ter como alimentá-los - pois
"isto seria abrir as portas ao desregramento" -, citava vários
teólogos de sua época e de séculos anteriores, que expressa-
ram opinião contrária: "Há os que dizem que a mulher pode
enjeitar o filho em uma ou outra dessas circunstâncias (...),
desde que não se exponha essa criança ao perigo de morrer
de frio ou de fome". Em 1780, um Abade escrevia: "Sob o
pretexto de aliviar a miséria, nossos 'hotéis' de crianças acha-
das propagam o concubinato" (Flandrin, 1988, p. 200-202).
GB HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

No século XVIII, na cidade de Mariana, em Minas Ge-


rais, todo exposto recolhido das ruas ou portas deveria ser
declarado à Câmara Municipal, receberia uma matrícula, e
aquele que o recolhera, três oitavas de ouro por mês, perfa-
zendo 36 oitavas anuais, para sua criação. Entre os anos de
1753 a 1759, foram encontradas algumas destas matrícu-
las, onde a Câmara expressava o seu propósito de não criar
"mestiços, mulatos, negros, cabras, crioulos", exigindo que,
além da certidão de batismo, fosse apresentada também
uma certidão de "brancura", passada por um médico ou
cirurgião. Tal como se lê no seguinte Termo de Matrícula
da Enjeitada por nome Maria, digo por nome Clara:

Aos vinte e três dias do mês de Maio de mil setecentos e cincoenta


e três anos nesta Leal Cidade Mariana e casas de moradas de
mim escrivão adiante nomeado apareceu presente Manoel
Rodrigues Viana morador nesta cidade e reconhecido de mim
escrivão e por ele me foi apresentada uma sua petição com o
seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais
da câmara para efeito de se matricular a enjeitada por nome
Clara à qual assiste o Senado com três oitavas de ouro cada mês
para a sua criação, com declaração porém que a todo o tempo
que se vier no conhecimento ser mulata e não branca lhe não
correrá o dito estipêndio de três oitavas mas antes será o dito
obrigado a repor ao Senado tudo o que tiver recebido por conta
da dita criação (...). E declaro que a dita enjeitada a deu a criar
a Luiza Rodrigues do Couto preta forra moradora nesta cidade
e reconhecida de mim escrivão a quem pertence o dito ordena-
do enquanto criar a dita enjeitada e de como a recebeu assinou
com uma cruz por não saber ler nem escrever (Mello e Souza,
1996, p. 40).

Em 1803, o governador da Capitania de São Paulo,


Antônio Joze da Franca e Horta escrevia ao Vice-Rei
acerca da
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. £ g

precizão q. há de Caza para os Expostos: são muitos os infeliz, e


muitos os q. na Cidade de Sam Paulo, e em Santos se encontrão
dislacerados por Animaes, quando de noite expostos sem Cau-
telas nas Portarias das Commonidades, outros semi vivos em
dezamparo na rua, e só remidos por alguma mão benéfica q. os
encontra (Marcilio, 1997, p. 68).

Alguns pesquisadores de demografia histórica da Amé-


rica Latina, tendo consultado, entre outros, os registros pa-
roquiais de batizados dos séculos XVIII e XIX, identificaram
as seguintes variações da prática da exposição no Brasil,
nesse período: 1) as crianças eram deixadas indiscriminada-
mente em casas de famílias ricas, de senhores de engenho,
mas também em casas de roceiros, costureiras, fiandeiras,
prostitutas, mendigos; 2) a prática de criar filhos alheios foi
amplamente difundida e aceita no Brasil, sendo raras as
famílias que, mesmo antes de existir o estatuto da adoção,
não possuíam um filho de criação; 3) os caiçaras, que viviam
de pequenas roças de subsistência, e os índios não expu-
nham os filhos nem as filhas; 4) paróquias urbanas centrais
como a da Sé de São Paulo ou a de São José do Rio de
Janeiro apresentavam as maiores taxas de exposição, ca-
racterizando-a como um fenômeno especificamente urbano;
5) no Brasil, a exposição nunca chegou aos níveis conheci-
dos na Europa do século XIX - tida como "a época da expo-
sição em massa de bebês" (Mello e Souza, 1996, p. 31-32);
6) o que caracterizou a natalidade geral brasileira foi a eleva-
da taxa de ilegitimidade por raça: em Salvador, Bahia, na
virada do século XVIII, 81,3% das crianças livres eram mula-
tas e 86,3% das crianças negras que nasciam eram ilegíti-
mas, contra 33% das brancas (cf. Marcilio, 1997, p. 68-71).
A partir dos séculos XVII e XVIII, algumas instituições
caritativas, particularmente aquelas entregues às irmanda-
des de misericórdia, passaram a ser conhecidas por "Casa
7 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

da Roda", "Casa dos Enjeitados", ou "Casa dos Expostos",


cujos propósitos eram os de recolher e cuidar das crianças
abandonadas para que não ficassem desprotegidas ou mor-
ressem. O nome simples e abreviado de "Roda", com o qual
foram designadas, devia-se à adoção do dispositivo onde
eram depositadas as crianças, e foi o primeiro mecanismo
conhecido destinado a racionalizar a recepção das expostas,
ordenar e centralizar a antiga prática da exposição indiscri-
minada.

A Roda consistia em um cilindro de madeira, incrusta-


do em uma parede de pedra, onde era preso por um eixo
vertical que a fazia girar, com uma parte da superfície lateral
aberta, por onde eram introduzidas as crianças. Tal dispositi-
vo permitia que, do lado de fora, pudesse ser colocada a
exposta e, após um giro, esta passasse para dentro do esta-
belecimento, sem um contato direto entre quem estivesse
em seu interior com quem estivesse no exterior, de modo
que tanto o depositário quanto o recebedor não pudessem
ver-se reciprocamente. Puxava-se então uma corda com uma
sineta, para avisar a vigilante, ou "Rodeira", que uma ex-
posta acabava de ser deixada, e o expositor retirava-se do
local, sem ser identificado. Na forma e ao modo das seguin-
tes descrições, respectivamente, de 1 9 4 5 , 1909, 1887 e
1851:

Bem ao lado da Capela dos Passos [Capela do Senhor dos Pas-


sos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre], em um
janelão vetusto dos tempos coloniais, solidamente guarnecido
por um gradil de ferro, havia uma pequena abertura da qual
emergia estranha caixa cinzenta. Circular, dividida em duas par-
tes simétricas, girava macia, em torno de um eixo. E quando o
fazia, o tilintar de um sino rasgava o silêncio. Roda dos Expostos
(Maia Neto, 1945, p. 10).
H I S T ó R I A S D E GOVERNO: CRIANçAS E C I A . «7 1

A Roda dos Expostos era uma porta de grossa madeira sobre a


qual se via uma janela ou fresta, mais alta do que larga, tapada
por um meio cilindro também de madeira, apresentando uma
face convexa e outra côncava. Na segunda, existiam duas pra-
teleiras onde se colocava o enjeitado. Com suma facilidade, o
meio cilindro girava no sentido vertical. Dando pequeno impul-
so, desaparecia da janela ou fresta a parte convexa do cilindro
para dar lugar à parte côncava. Uma campainha, posta em
comunicação com o aparelho giratório, servia de aviso à irmã
de caridade para, principalmente, à noite, tirar da prateleira a
criança abandonada (Oliveira, 1990, p. 6, citando descrição de
um médico higienista do Rio de Janeiro, de 1909).
O edifício dá para a calçada e nada indica em sua fachada para
que serve a não ser, talvez, o lugar onde as crianças são deposi-
tadas; e isso não chama a atenção do transeunte que não conhe-
ce o edifício, porque o vão da parede mal aparece. O que pare-
ce ser um vão estreito e ligeiramente oval na parede, numa
moldura de pedra, é a parte exterior da 'roda', uma espécie de
mecanismo giratório com três lados abertos na parte inferior. O
lado externo fecha firmemente e é preciso um puxão firme para
girá-lo e abrir as prateleiras para a rua. Quando se faz isso, um
recém-nascido pode ser colocado numa das prateleiras; e quan-
do a roda gira de novo, a criança é introduzida no interior do
asilo, no que se poderia chamar de recepção e ao mesmo tem-
po soa um sino bem alto. (Leite, 1996, p. 106, referindo diário
de viagem de diplomata norte-americano, de 1887).
Esta Roda ocupa o lugar de uma janela dando face para a rua e
gira num eixo vertical. É dividida em quatro partes por compar-
timentos triangulares, um dos quais abre sempre para fora, con-
vidando assim a que dela se aproxime toda mãe que tem tão
pouco coração que é capaz de separar-se de seu filho recém-
nascido. Tem apenas que depositar o exposto na caixa, e ir-se
embora sem que ninguém a observe (Leite, 1996, p. 100, indi-
cando anotações de missionários protestantes, de 1851).
7 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A origem desses cilindros rotatórios de madeira é atri-


buída àqueles usados nos vestíbulos de mosteiros e conven-
tos medievais, como meio de enviar objetos, alimentos, men-
sagens, orações, promessas, aos seus residentes. Rodava-se
o cilindro e os depósitos iam para o interior da casa, sem
que os internos vissem quem os deixara. A finalidade deste
mecanismo era evitar todo contato dos religiosos enclausu-
rados com o mundo exterior, garantindo-lhes a vida
contemplativa. Os mosteiros passaram a receber também os
oblatos puerorum, isto é, crianças destinadas ao serviço de
Deus, as quais, sendo "indevidamente" colocadas no cilin-
dro, fizeram desse uso ser aproveitada a Roda para receber
as expostas.
As primeiras rodas específicas, de que se têm registro,
destinadas a receber as crianças expostas, foram as da Ida-
de Média, na Itália, junto com a emergência das confrarias
de caridade, no século XII. Tais confrarias funcionavam
circunvizinhas aos hospitais, para recolhimento e assistência
aos pobres, aos peregrinos, aos doentes, leprosos, loucos e
também às crianças expostas. Buscavam assim realizar as
"Obras de Misericórdia", que eram sete materiais e sete
espirituais: Visito-poto-cibo-redimo-tego-colligo-condo.
Consule-carpe-doce-solare-remitte-fer-ora, quer dizer, "Eu
visito, sacio, alimento, resgato, visto, curo, enterro. Aconse-
lho, repreendo, ensino, consolo, perdôo, suporto, rezo"
(Marcilio, 1997, p. 54).
O Hospital do Santo Espírito, em Roma, foi o primeiro
a utilizar a Roda para a recepção de expostas, no ano de
1198 (cf. Russel-Wood, 1981; Marcilio, 1997); e no Hospi-
tal de Santa Maria in Saxia, também em Roma, nos anos de
1201 a 1204, organizou-se o primeiro sistema institucional
de proteção à criança exposta, do qual a Roda constituía o
centro de acolhimento, organização e funcionamento. Em
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E C I A . *J 3

Portugal, pela Ordem Regia de 1783, as rodas deviam ser


instaladas em cada cidade ou vila, sendo atribuição da pes-
soa encarregada levar os recém-nascidos expostos ao magis-
trado da localidade, que os entregaria às amas-de-leite pa-
gas com os recursos da Câmara Municipal. Muitas cidades
em Portugal não estabeleceram a Roda e, em algumas de-
las, organizou-se uma espécie de "feira", onde apareciam
mulheres chamadas de "recoveiras" que levavam as expos-
tas para as rodas das terras mais ricas, "havendo até algu-
mas câmaras que pagavam as tais 'recoveiras', livrando-se
assim do encargo de ter rodas" (Oliveira, 1990, p. 54). Na
França, o Decreto de 1811 determinava que em todo distri-
to deveria existir um estabelecimento para recolher as crian-
ças expostas, sendo que em cada um existiria uma Roda
para recebê-las. O sistema da Roda tornou-se o modelo pre-
ferido para a admissão dos expostos, tendo a França conta-
do, ainda no mesmo ano, com 269 rodas espalhadas pelo
país (cf. Donzelot, 1980).
No Brasil, a Roda de Salvador foi aberta em 1726,
junto à Portaria do "Recolhimento das Meninas", na Santa
Casa de Misericórdia. O objetivo, conforme consta nas atas
da Mesa desta Santa Casa, era o de
evitar-se o horror e a deshumanidade que então praticavão com
alguns recém-nascidos, as ingratas e desamorozas mães,
desasistindo-os de si, e considerando-as a expor as crianças em
vários lugares imundos com a sombra da noite, e de quando
amanhecia o dia se achavão mortas, e algumas devoradas pelos
cães e outros animais, com laztimoso sentimento de piedade
catholica, por se perderem aquelas almas pela falta do Sacra-
mento do Baptismo (Marcilio, 1997, p. 58).

A segunda Casa da Roda foi criada em 1738, no Rio


de Janeiro, com os objetivos declarados de proteger a honra
da família colonial dos nascimentos ilegítimos e a vida das
7 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

crianças expostas. A terceira e última Roda do período colo-


nial brasileiro foi instalada na Santa Casa de Misericórdia do
Recife, em finais do século XVIII: no primeiro ano de seu
funcionamento a casa contava com "quarenta meninos que
têm sido recolhidos, e dados a criar a amas-de-leite". Com a
Independência do Brasil continuaram a funcionar as três ro-
das coloniais e, por vigorar a determinação das Ordenações
Filipinas, toda assistência às crianças expostas continuava
sendo obrigação de cada Câmara Municipal.

Tal encargo fora, desde o início das rodas, aceito com


relutância pelas câmaras (cf. Mello e Souza, 1996) e, a par-
tir de 1 8 2 8 , com a promulgação da Lei dos Municípios,
passou para as assembléias legislativas provinciais. Estas de-
terminaram que, em toda cidade onde houvesse uma Casa
de Misericórdia, a Câmara deveria usar de seus serviços para
instalação da Roda e assistência aos enjeitados nela recebi-
dos. Oficializava-se assim a Roda de Expostos nas Misericór-
dias, colocando-as a serviço do Estado; ao mesmo tempo
em que a iniciativa particular era incentivada a assumir a
criação das crianças, liberando as municipalidades. Com base
nesse espírito dual, filantrópico e utilitarista, surgiram novas
rodas, como solução asilar de assistência, dentre as quais
três na província do Rio Grande do Sul: Porto Alegre (1837),
Rio Grande (1838) e Pelotas (1849) (cf. Marcilio, 1997, p.
60-62).

Thomas Ewbank, um dos fundadores da American


Ethnological Society, dos Estados Unidos, deixou um diário
sobre o cotidiano urbano do Rio de Janeiro de meados do
século passado. Nele descreve a visita que fez a uma Roda:

Tendo ouvido falar muito sobre a exposição diária de crianças e


as facilidades que se dão a fim de que os que queiram livrar-se
delas possam fazê-lo discretamente, resolvi ir observar o lugar
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. *7 5

de recepção. E isto, até há pouco, dava-se no Hospital, mas


agora é numa rua quase deserta, para escândalo da Mãe Sa-
grada das Monjas, cujo nome leva. O engenho para receber as
crianças consta de um cilindro oco e vertical, e girando em tomo
de um eixo. Um terço dele é aberto para dar acesso ao interior,
e o fundo é coberto com uma almofada. O aparelho é constituí-
do de tal modo que é impossível aos de dentro verem os do lado
de fora. Caminhei por toda a extensão da Rua Santa Teresa
sem perceber nada, mas voltando, uma placa, de apenas algu-
mas polegadas sobre uma porta fechada de um edifício normal,
chamou a minha atenção. A inscrição era clara: EXPOSTOS
DA MISERICÓRDIA N9 30. Enquanto a lia, veio de dentro um
rumor de confirmação. A única janela da fachada era próxima
da porta e era, de fato, o receptáculo. O que eu tomara quando
passei pela primeira vez, por um postigo verde, vi agora que
era ligeiramente encurvado. Toquei-o, a sua abertura girou ra-
pidamente. Hesitei por um momento, mas quando os morado-
res de uma casa do lado oposto abriram suas janelas para ver
quem estava abandonando ali um enjeitado à plena luz do dia,
bati rapidamente em retirada (Leite, 1996, p.104, citando
excerto de diário, de 1846).

Com o século XIX, chegaram ao Brasil as influências


da filosofia das luzes, do utilitarismo, da medicina higienista,
de novas formas de exercer a filantropia e o liberalismo, e as
santas casas não conseguiam mais subsidiar os gastos com a
assistência aos expostos. Para contornar essas dificuldades e
satisfazer as novas necessidades, os governos provinciais,
junto com os bispos católicos, trouxeram da Europa as "fi-
lhas de caridade", religiosas tais como as Irmãs Vicentinas e
de São José de Chamberry, as religiosas Dorotéias, as filhas
de Santana, as Irmãs Franciscanas da Caridade e da Peni-
tência. A partir de 1830, o caráter de assistência às crianças
expostas deixava de ser uma ação descentralizada, a cargo
das municipalidades e das confrarias de leigos, para tor-
nar-se uma questão centralizada de governo das províncias.
7 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Em meados deste século, começou forte campanha


para a abolição da Roda, com argumentos fundados no pro-
gresso contínuo, na ordem e na ciência: a Roda foi conside-
rada imoral e atentatória aos interesses da Nação, por agre-
gar filhos de prostitutas, produtos de uniões ilegais, crianças
com defeitos físicos ou mentais; enfim, "o resultado do esta-
do de pobreza em que viviam os estratos mais baixos das
populações" (Pereira, 1994, p. 95). No Brasil, sua extinção
foi inicialmente pedida pelos médicos-higienistas, alarmados
com os altos níveis de mortalidade reinantes dentro das ca-
sas dos expostos, sendo que, em 1852, a cifra era de 82%.
A Casa da Roda do Rio de Janeiro foi avaliada como
mais um foco autóctone de mortalidade infantil, pela pobre-
za de suas instalações e meios de manutenção. Um higienis-
ta da época assim se pronunciou perante a Imperial Acade-
mia de Medicina do Rio de Janeiro, em sessão de 6 de julho
de 1886:

Antes das estatísticas que com sumo cuidado obtivemos antes de


procedermos à análise minuciosa dos dados existentes, guiados
unicamente pelo coração, éramos partidários decididos das "ro-
das"; depois do estudo o nosso espírito vacila e quase que afir-
ma a inutilidade delas, se não for possível diminuir a sua mortan-
dade excessiva e se a justiça pública não intervier para punir os
crimes de infanticídio, principalmente por omissão, que muitas
vezes encontram nas rodas um meio mais fácil de ocultá-los,
entregando-lhes crianças semimortas, senão mesmo mortas (Cos-
ta, 1989, p. 164-165, apresentando excerto de tese médica).

Considera-se que o movimento contra as rodas inseriu-


se também nas lutas pela melhoria da raça humana, levanta-
das com base nas teorias evolucionistas, pelos eugenistas; a
literatura brasileira apontou a imoralidade da Roda, tal como
fez Macedo (1961), em A luneta mágica; a eles agregaram-
se os juristas, que propunham novas leis para proteger as
r
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 7r7

crianças abandonadas e para corrigir a questão social da


adolescência infratora, problema emergente. Exemplar des-
se movimento é a reportagem de João Maia Neto (1945),
sob o título Um convite ao pecado sob o manto da noite -
publicada, com chamada de capa, no jornal Diário de Notí-
cias de Porto Alegre, em 1945, acerca do fechamento da
Roda da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e de
sua substituição pela Maternidade -, onde pode ser lido:

A Roda dos Expostos já conheceu melhores dias. Tempo houve


em que, noite após noite, por essa pequena abertura eram jo-
gados os minúsculos párias da vida. A mão nervosa da jovem
transviada (esfomeada, talvez) fazia girar o rústico cilindro. A
sineta rompia o silêncio pesado levando à guardiã do hospital
uma nova mensagem de vida, a síntese de um novo drama.
Depois, o portoalegrense compreendeu que "a roda" não era a
carinhosa "mãe de todas as crianças". Sentiu ser ela uma auxi-
liar discreta.

Um anônimo, a quem Maia Neto entrevistou para rea-


lizar a reportagem, falou assim sobre a Roda:

Era o manto de misericórdia que acobertava os desgraçados


espúrios e, no mesmo passo, era a mão de ferro destinada a
tapar a boca da maledicência e evitar o zum-zum do escândalo.
Foi o cofre que guardou para sempre, em sigilo inviolável, o
epílogo de grandes dramas. Os enjeitadinhos eram trazidos altas
horas da noite, enrolados num trapo ou num lençol que, às ve-
zes, inda vinham salpicados de sangue gotejado do cordão umbi-
lical atado às pressas na ânsia de dar sumiço ao intruso. Alguns
traziam num pedaço de papel a indicação de um nome vago:
José... Maria, Antônio. Outros nem isso. Fram passageiros clan-
destinos atirados à praia do esquecimento. A Roda devia ter no
frontispício a legenda de Dante: Lasciate ogni speranza voi chi
entrate. Esperança de ser identificado. Sua voz inda ressoa em
nossos ouvidos. Dolorida. Como se cada um daqueles inocentes
fosse um pedaço de si mesmo.
V B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Para o jornalista, na Roda terminavam "todas as histó-


rias de fraqueza, de miséria, de pecado. Era tão simples.
Bastava lançar a testemunha indiscreta, a boca para a qual
não havia alimento". Depois, podia-se "iniciar nova vida ou
continuar na senda já trilhada", da mesma forma como ocor-
ria com aqueles que não tocavam mais a sineta e, mais
recentemente, procuravam os fasseures d'anges: "Até pa-
recia que não se pecava mais em Porto Alegre"! Mas não
era isso que se dava: "Uma profissão nova estava ganhando
adeptos em nossa capital"; por isso, "os encarregados dos
Expostos não sabiam a que atribuir a 'crise' de crianças". As
rivais da Roda ofereciam uma série de vantagens: "a discri-
ção era a mesma"; "cortava-se o mal pela raiz"; era "evita-
do um longo período de fuga às vistas inquisitórias dos vizi-
nhos". "É verdade", escreve Maia Neto, "que havia um cer-
to perigo de vida muito desagradável", e, "naturalmente, a
morte da criança era inevitável, mas isso era o de menos"! A
Roda foi assim "se desmoralizando" e aos poucos "sendo
esquecida". Os amigos da Roda - "pois muito os havia e até
hoje há quem reclame sua volta" - lembravam com tristeza
"o ano da graça de 1876, quando a sineta tocou nada me-
nos de 196 vezes".
"E a Roda morreu...". Até hoje, diz Maia Neto, "há
quem se bata por ela. Mas está definitivamente morta":
Morreu mesmo. E nem poderia ser de outra forma. Foi uma
instituição que deu seus frutos... em sua época. Depois se tor-
nou anacrônica; nos tempos idos em que conheceu seu fastígio
ela poderia ser, de fato, útil. Então os homens serviam-se de fios
de barba para selar contratos. A mulher que usava pinturas era
estigmatizada. O mais leve deslize, o olhar franco e simples de
dois entes atraídos pela força suprema - um labéu eterno. E
assim mesmo é discutível. Afirmam-no as autoridades no assun-
to, daqui e de algures, que as rodas serviram mais como cúmpli-
ces discretas de crimes.
H I S T ó R I A S DE GDVERNO : CRIANçAS E C I A . 7 g

O doutor Mario Totta, uma vez eleito Mordomo dos


Expostos da Santa Casa, foi quem "encetou a luta sem tré-
guas contra 'a mãe de todas as crianças'"; e de um seu
ofício, "justificando a própria vitória", o jornalista cita:
Contra sua supressão altearam a voz, movidos, aliás, por senti-
mentos os mais nobres, partidários exaltados, que viam na Roda
uma uma de caridade e um escudo de grande valia contra o
escândalo e o crime; no outro lado formou luzida plêiade de
espíritos de escol, condenando de modo formal a vetusta institui-
ção a cujo ativo são encarregados malefícios de monta entre os
quais avulta a separação definitiva que ela estabelece entre mãe
e filho. Os primeiros aferram-se aos seguintes argumentos: a
Roda previne o infanticídio, toma inviolável o segredo da deson-
ra e desta arte, evita escândalos sociais de conseqüências incal-
culáveis. Ora, já de há muito tempo se verificara - na França
principalmente - que a Roda longe de evitar os infanticídios
antes os favorecia. Os tours de Paris recebiam mais cadáveres
de recém-nascidos do que recém-nascidos vivos (Maia Neto,
1945, p. 10).

As rodas adentraram o século XX: a do Rio de Janeiro


foi fechada em 1938, a de Porto Alegre, oficialmente, em
1940, as de São Paulo e de Salvador somente na década de
1950, sendo as últimas do gênero existentes nessa época
em todo o mundo ocidental (cf. Marcilio, 1997). Com exce-
ção da Roda de Porto Alegre, as expostas deixadas nas treze
rodas que funcionaram na história do Brasil foram, em sua
grande maioria, filhos e filhas de escravas que tendo sido ali
abandonados, passavam a gozar da condição de "libertos"
(Mello e Souza, 1996, p. 37). Após a Lei do Ventre Livre,
em 1871, os médicos higienistas constataram a diminuição
do número de expostos; o Marquês de Lavradio afirmou, em
1887, que a diminuição dos expostos devia-se a dois fato-
res: primeiramente, a redução do número de escravas que
procuravam esconder os filhos nascidos da prostituição, in-
BQ HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

clusive com os próprios senhores; e, em segundo lugar, a


redução do número de escravas que eram obrigadas a expor
os filhos para serem alugadas como amas-de-leite (cf. Costa,
1989; Lima e Venâncio, 1996; Mello e Souza, 1996). A
Roda teria servido para as seguintes finalidades: evitar o
"mal maior" consubstanciado no aborto e no infanticídio;
defender a honra das famílias cujas filhas engravidavam fora
do casamento; como mecanismo para regular o tamanho
das famílias, dado que não havia métodos eficazes de con-
trole da natalidade.
Na França, foram partidários da Roda todos os defen-
sores do poder jurídico da família: homens como Lamartine,
A. de Melun, Le Play. Eles exaltavam sua "função purgadora
dos desvios sexuais" e, a fim de amenizar o excessivo núme-
ro de abandonados, propunham "revalorizar o peso jurídico
da família restaurando os procedimentos de busca de pater-
nidade", em desuso desde a Revolução Francesa; instaurar
"um imposto sobre o celibato"; separar "o registro dos indi-
víduos inscritos no quadro familiar do registro dos bastar-
dos", os quais podiam ser destinados às tarefas externas de
colonização, ou como substitutos dos filhos de família para o
serviço na milícia. Eram hostis à Roda os homens da filantropia
esclarecida, como Chaptal, La Rochefoucauld-Liacourt,
Decpétiaux, partidários de uma racionalização da assistên-
cia pública e do desenvolvimento da adoção: "portanto, de
uma primazia da conservação dos indivíduos sobre a preser-
vação dos direitos do sangue".
Desde o final do século XVIII, as administrações dos
hospícios franceses começaram a "desconfiar que suas insti-
tuições eram objeto de um desvio fraudulento", produzido
pela "utilização popular da Roda", que nada tinha em co-
mum com sua destinação primeira: a retirada dos "objetos
de escândalo", que eram os filhos adulterinos. Necker, em
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . Q 1

U administration des finances de Ia France, afirma que,


sem dúvida, a Roda impedira "que seres dignos de compai-
xão fossem vítimas dos sentimentos desnaturados de seus
pais", mas, "insensivelmente fomos acostumados a ver os
hospitais para menores abandonados como casas públicas
onde seria justo o soberano alimentar e manter as crianças
mais pobres dentre seus súditos; esta idéia, estendendo-se
afrouxou, no seio do povo, os vínculos entre o dever e o
amor paterno" (Donzelot, 1980, p. 31).
O sistema comportara "fraudes" e "abusos": mães que
levavam seus próprios filhos para a Roda e, em seguida,
apresentavam-se na instituição oferecendo-se como amas-
de-leite, de modo a receberem o pagamento mensal; senho-
res que mandavam suas escravas depositarem os filhos na
Roda, para depois irem buscá-los a fim de serem amamen-
tados com estipêndio e, finda a criação paga, continuarem
com as crianças como escravas; amas-de-leite que não de-
claravam a morte das crianças à Santa Casa para continua-
rem recebendo os salários, como se as crianças estivessem
vivas; "amas 'externas' [que] costumavam escravizar ilegal-
mente os abandonados"; tesoureiros desonestos que "matri-
culavam" expostos já mortos, pagavam criadeiras inexisten-
tes, forjavam listas de rações com preços exorbitantes, in-
ventavam dotes às meninas expostas de idade inferior a
dezoito anos, faziam constar das despesas crianças que
não tinham mais direito à pensão pela idade completa, ou
que haviam ficado em casa das criadeiras, ou que tinham
sido adotadas (cf. Flores, 1985; Pereira, 1994; Marcilio,
1997).
As comissões de inquérito, formadas no século XIX, na
França, constataram um número considerável de filhos legíti-
mos entre os expostos, ainda mais depois da redução da
mortalidade nos hospícios; mas, o mais grave, segundo os
B 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

gestores, foi que não apenas as famílias legítimas abandona-


vam seus filhos por causa da pobreza, como também certas
famílias os expunham para que fossem alimentados pelo
Estado, arranjando-se para recebê-los de volta como nutrizes,
tal como é relatado por Terme e Maufalcon, em 1837:

Desde que a legislação regularizou a condição dos menores aban-


donados atribuindo um salário às nutrizes, uma nova espécie de
exposição começou a aparecer repentinamente e ganhou, em
pouco tempo, um desenvolvimento extraordinário. Agora, a mãe
que expõe um recém-nascido na Roda de um hospício, não tem
a menor intenção de abandoná-lo; separa-se dele apenas para
retomá-lo alguns dias mais tarde, com a cumplicidade das men-
sageiras. Quando os hospícios ficaram sobrecarregados com um
grande número de recém-nascidos, logo perceberam a impossi-
bilidade de rodeá-los dos cuidados adequados no seu interior.
Tornou-se indispensável recorrer a nutrizes do campo. As crian-
ças lhes foram confiadas, estabelecendo-se um salário para esse
serviço. Mensageiros levavam os recém-nascidos do hospício à
mulher que devia amamentá-los e cedo estabeleceram-se gra-
ves desordens. Essas moças e mulheres do campo acreditaram
que teriam vantagem em expor os seus recém-nascidos; se, atra-
vés de entendimento com os mensageiros, pudessem se reapossar
de seus filhos, isso significaria garantir meses de salário como
nutrizes e, mais tarde, uma pensão. A fraude desafiava qual-
quer inquérito. Quando a mãe, impedida por algum fato parti-
cular, não ousava criar o seu filho em sua própria casa, algum
vizinho se encarregava oficialmente do recém-nascido (Donzelot,
1980, p. 32)

Em 1827, o ministro do Interior, De Corbière, baixou


uma circular que prescrevia a transferência das crianças para
um outro Departamento, a fim de impedir as mães de ama-
mentarem, como assalariadas, os filhos expostos na Roda,
ou de os visitarem em casas de nutrizes a cujos cuidados eles
fossem confiados. O resultado foi que, das 32 mil crianças
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. B 3

transferidas, em dez anos, oito mil foram reclamadas por


suas mães, que as trouxeram de volta, e quase todas as
outras morreram por causa dessas transferências. Em 1837,
De Gasparin sancionou o fracasso dessa política, através de
um relatório ao Rei, onde emitiu a idéia de substituir o reco-
lhimento hospitalar por um sistema de assistência domiciliar
para a mãe, "o que significaria saldar junto à mãe os meses
pagos pelo hospício a uma nutriz, em princípio estranha".
A perda de iniciativa da administração, seguida dos
desvios no sistema da Roda, fizeram com que o "segredo da
origem" fosse trocado por um "sistema aberto", o qual bus-
cava desencorajar a exposição e atribuir o controle à investi-
gação administrativa da situação das mães. Os efeitos dessa
decisão de fornecer uma assistência financeira e médica às
mulheres mais pobres, como também às imorais, provocou
um mecanismo implicado na "generalização desses tipos de
serviços a todas as outras categorias de mães para não se
correr o risco de ser acusado de atribuir um prêmio ao ví-
cio". O que começou a ser dado como auxílio às mães soltei-
ras, transformou-se num direito ainda mais legítimo para as
viúvas pobres cheias de filhos, depois, para as mães de fa-
mília numerosa e para as mães operárias, a quem não se
devia desencorajar a reprodução. O "salário-família" nasceu,
assim, na França do início do século XIX, no ponto de con-
fluência entre uma prática assistencial que estendeu o círcu-
lo de seus administrados, e "uma prática patronal do pater-
nalismo, feliz em se livrar, em plano nacional, de uma gestão
cujos embaraços eram iguais aos benefícios que propiciava"
(Donzelot, 1980, p. 33).
Daí decorreu também a extensão do controle médico
sobre a criação dos filhos de família popular, com o
surgimento, em 1865, das primeiras sociedades protetoras
da infância em Paris, que assumiam como objetivo garantir
B 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

a inspeção médica das crianças colocadas pelos pais em


nutrizes, e aperfeiçoar os sistemas de educação, os métodos
de higiene e a vigilância das crianças das classes pobres. Os
comitês patronais avaliavam que as crianças mais bem-tra-
tadas eram aquelas que dependiam da Assistência Pública,
conforme um relatório de 1882:
Apesar dos conselhos desinteressados dos médicos e das pes-
soas esclarecidas, a rotina, a teimosia brutal dos camponeses e
os conselhos estúpidos das matronas, entretêm hábitos fatais para
as crianças cuja higiene é muito mal dirigida; basta acrescentar
um detalhe característico: é que as únicas crianças de boa saúde
nos Departamentos pobres, crianças cuja mortalidade baixa a
seis por cento, são os filhos de mães solteiras que conseguiram
obter auxílios mensais do Departamento e que são controladas
especialmente por um inspetor da prefeitura a quem temem e
cujos conselhos escutam (Donzelot, 1980, p. 34).

No Brasil, as casas de misericórdia não podiam abrigar


todas as crianças que voltavam "da criação" e a maioria
delas não tinha para onde ir, ficando então nas ruas, prosti-
tuindo-se ou vivendo de esmolas e pequenos furtos. As ad-
ministrações das rodas buscavam famílias que recebessem
as crianças como aprendizes, no caso dos meninos, e como
empregadas domésticas, no caso das meninas. As meninas,
devido à preservação da honra e da castidade, eram objetos
das maiores preocupações: para elas foram criadas junto às
maiores misericórdias recolhimentos "de Meninas Órfãs e
Desvalidas" que estiveram sempre ligadas às casas da Roda.
Para os meninos havia também a possibilidade de
serem enviados para as companhias de Aprendizes Mari-
nheiros ou de Aprendizes do Arsenal da Guerra, escolas
profissionalizantes destinadas aos expostos, dentro de dura
disciplina militar. Nessas companhias, os meninos viviam ao
lado de presos, escravos e degredados; sua alimentação era
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. g 5

à base de farinha de mandioca, sendo que a maioria acaba-


va definhando e morrendo. No testemunho de um médico
do Rio de Janeiro, que observou os meninos expostos do
Arsenal da Marinha, a maioria "comia terra" e tinha "o cor-
po enfraquecido pelos parasitas intestinais": o menino en-
trava "robusto, alegre, brincalhão, e bem nutrido" e começa-
va "a definhar, emagrecer, tornar-se triste, melancólico e
adquirir uma cor pálida, macilenta, terrosa, amarelada... era
a tuberculose que se aproximava" (Marcilio, 1997, p. 74).
Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, passa-
das a Revolução Farroupilha e a cholera morbus, que che-
gara a Porto Alegre em 1855, as preocupações dos adminis-
tradores do hospital eram duas: uma era reforçar as grades
do "Asylo dos Alienados" para evitar que eles quebrassem
os vidros; e a outra era os "Meninos do Arsenal", expostos
na Casa da Roda que, ao atingirem idade conveniente, con-
seguiam trabalho no Arsenal de Guerra. O provedor, mare-
chal de campo Manuel Luiz de Lima e Silva, escreveu, à
época:

Para pôr um termo às travessuras dos menores do Arsenal de


Guerra que nas enfermarias eram tratados e não se podia con-
seguir que estivessem em suas camas e só sim queriam vagar
pelos corredores e quintal em desenvolturas e romperem rou-
pas da casa e enquanto não se tratava de fazer a respectiva
enfermaria designada no Regimento Interno, os fiz provisoria-
mente remover para um salão fechado que existe no fim do
Asylo dos Alienados para, por este meio, podê-los conter, pois
devereis saber que esses meninos que se acumulam nesta Santa
Casa e mor parte sem terem moléstia alguma e só inventam
enfermidades para vadiarem e não estarem sujeitos, pois quem
está verdadeiramente doente não anda de pé, não corre e não
quer brincar no quintal, além de estragarem roupas, utensis,
sujarem paredes e riscar portas pintadas e fazer todos os danos
próprios da infância desenvolta (Guimarães, 1984, p. 24-25).
B 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A partir de 1860, no Brasil e em outros países, surgi-


ram inúmeras instituições de proteção à infância desampa-
rada, de caráter público ou privado, tais como: casas pias e
seminários, para "cuidar na sustentação e ensino de meni-
nos orphãos e desvalidos, afim de que, convenientemente
educados, e com profissões honestas venham depois a ser
úteis a si e à nação, que muito lucra com seus bons costu-
mes e trabalho"; também institutos de menores artesãos;
asilos para a infância desvalida; colégios para as meninas
enjeitadas; colônias agrícolas "orphanologicas"; etc. Tais ins-
tituições combinavam a moral cristã da caridade e da
filantropia utilitarista com o bom aproveitamento do indiví-
duo para aumentar a riqueza da nação: ordens religiosas de
caridade fundaram asilos e orfanatos por toda parte; os
salesianos criaram liceus de artes e ofícios; a Ordem de São
Carlos fundou asilos para os órfãos e desamparados, filhos
de imigrantes europeus (cf. Lima e Venâncio, 1996).
A filantropia constituía-se e se fortalecia como modelo
assistencial, fundamentado na Ciência, para substituir o mo-
delo de caridade. Desde 1930, muitas associações foram
criadas com base neste modelo para amparo e assistência à
infância exposta, tais como a Liga das Senhoras Católicas, o
Rothary Club, o Lyons Club, a Associação Pérola Bygthon. A
partir dos anos 60, foi criada a Fundação de Amparo e
Bem-Estar do Menor, seguida da instalação, nos Estados,
das fundações estaduais de bem-estar dos menores. Em 1988,
com a Constituição Cidadã, inseriram-se os Direitos Interna-
cionais da Criança, proclamados pela ONU nos anos 50; e
em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente fez com
que o Estado assumisse a responsabilidade sobre a assis-
tência aos desvalidos, tornando as crianças e os adolescen-
tes "sujeitos de Direito", pela primeira vez na história do
Brasil.
H I S T ó R I A S DE GDVERNO: CRIANçAS E CIA. 8*7

Em Porto Alegre, na década de 40 "surgiu algo de


grandioso", "um símbolo", afirmava o jornalista Maia Neto,
do jornal Diário de Notícias, descrevendo a Maternidade que
viera ocupar o lugar da Roda:
Primorosamente instalada, servida pela dedicação de jovens
enfermeiras especializadas e pelos sextanistas da Faculdade de
Medicina e uma plêiade de médicos, para quem uma criança é
mais do que um pedacinho de gente. Seu berçário onde cin-
qüenta e mais berços estão reunidos é cercado com vidro, tem-
peratura constante, umidade controlada. Tudo científico. Tudo
perfeito.

Os recém-nascidos prematuros, "isolados dos demais


empreendem a luta tremenda e desigual pela existência"; e
todos os "pequeninos enjeitados" são, a partir de agora,
"filhos adotivos da Maternidade oficialmente considerados
como tais".
Ao nascer [o enjeitado] recebe no pulso minúsculo uma pulseira
com um número - o número que orna o braço da mãe. Todos os
dias há visita. Um pouco de saudade... e muita fome. Vem com
mais este companheirinho, deitado em comprida maça. Fazen-
do algazarra numa inconsciência deliciosa. E vai crescendo.

Quando a mãe está restabelecida e se acha em condi-


ções de sair, o enjeitado recebe uma caderneta que lhe infor-
ma ser considerado, até completar seu primeiro ano de ida-
de, filho adotivo da Casa [Santa Casa de Misericórdia] Sua
"mamãe é levada para a cozinha da instituição onde recebe
um curso completo que se poderia intitular: 'Como alimen-
tar meu bebê'. [Essa caderneta] contém os primeiros conse-
lhos; (...) uma ficha de identificação [e] espaço para as ano-
tações periódicas, [já que a Maternidade] faz questão cerra-
da que o petiz [a] visite ao menos uma vez por mês (...)
Controle de peso. Exame completo. E mais instruções para
a mãe. É bem melhor do que a velha Roda".
8 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

E os "casos complicados"? Esses continuam a existir:


"Os homens e as mulheres são tão tentados quanto os de
antigamente. Talvez até mais; se ceder (que Deus não o
permita), como procederá"? É simples, pois a Santa Casa
acabou com a Roda, "mas manteve viva a idéia que ela
simbolizava". A Roda "era um convite ao pecado"; um "con-
vite ao abandono dos filhos"; hoje, "a Maternidade convida
isso sim cada mãe a permanecer junto de seu filho".

Tenha ela a origem que tiver. Ele merece, o pobre inocente, um


pouco de sacrifício. Ela, se seguir o conselho, sentirá mais tarde,
o manancial de prazer que isso lhe trará. Um prazer que nasce
do próprio sofrimento. Da angústia das noites mal dormidas à
cabeceira do doente. Do medo atroz de perdê-lo. Um prazer
infinito que só os pais conhecem.

Para aquelas mães "que não quiserem conservar a crian-


ça", a Maternidade oferece alguma coisa, ainda sigilosa:

Em lugar de se dirigir, alta noite, a um recanto afastado (e o era


antigamente) para introduzir a criança em um orifício aberto na
parede, vai em pleno dia ou manda alguém por si. E deposita
seu filho nos braços do Mordomo dos Expostos ou de outra pes-
soa encarregada. Pode dizer, se quiser, o nome por que deverá
ser chamado. Se desejar, dirá o seu próprio ou fará qualquer
indicação que lhe permita, mais tarde, vir buscá-lo. Do contrá-
rio, não dirá nada. E nada lhe será perguntado. Entregará o
pequeno e sairá pela porta que lhe deu entrada. Silenciosa!
Cercada do sigilo acolhedor.

Então, a criancinha terá seu próprio destino: "A lei da


oferta e da procura, sustentáculo do liberalismo econômico,
tem sua aplicação nos setores mais estranhos. Até na Santa
Casa". Uma vez "de posse do pequeno, o Mordomo dos
Expostos trata de assegurar-lhe um futuro"; trata-o se esti-
ver doente; ajuda-o se necessário; e procura uma família em
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. Q g

condições de proporcionar-lhe "uma infância feliz, como pró-


logo de uma existência útil". A Maternidade examina, com
cuidado, as famílias dispostas "a oferecer-lhe um lar e afinal
o entrega".

E essa escolha é bastante trabalhosa. Paradoxalmente, enquan-


to uns procuram desfazer-se de seus filhos, outros empenham
tudo para conseguir ao menos um alheio. No momento, por
exemplo, a Maternidade Mario Totta está com dezenove pedi-
dos para o primeiro enjeitado que surgir. Casais sem filho. Que
não querem ser tragados pela esterilidade assassina. Que dese-
jam deixar após a si alguém que os recorde com carinho, que
derrame uma lágrima por eles. Casais que dispõem de uma
reserva imensa de afeto. Todos em disputa dos minúsculos párias
da vida que a Maternidade redimiu.

Felizmente, afirma Maia Neto (1945), "vida oferece


compensações". Daqui a alguns anos, quando esse enjeitado
que os dezenove casais estão esperando, visitar, braço dado
com a mãe, as brancas salas da Santa Casa, "não saberá a
qual das duas reverenciar com mais gratidão". É que ele, "o
pequeno miserável que a própria mãe recusou, dividirá seu
afeto entre as duas que o acolheram" (ib., p.10).
Por interesse, regressemos à Roda - se é que dela já
tínhamos saído. A Santa Casa de Misericórdia de Porto Ale-
gre, fundada em 1803, teve a Casa da Roda instituída em
1837, quando a Câmara Municipal comprometia-se a pas-
sar para a Santa Casa todos os expostos sob sua responsabi-
lidade, assim como "todos os bens móveis, semoventes, ou
de raiz, direitos, acções e obrigações activas e passivas per-
tencentes aos Expostos deste Município para os administrar,
e pôr a rendimento" (Irmandade..., 1882, s.p.). Na Apre-
sentação escrita por Saturnino de Souza e Oliveira, Provedor
em 1842, ao Regimento da Caza dos Expostos da Santa
Casa da Mizericordia da Cidade de Porto Alegre, lê-se:
9 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A obrigação de prover á creação e amparo dos infelizes, que


são abandonados ao nascer pela ingratidão de quem lhes dêo a
existência, é uma das mais nobres e importantes que tem hoje a
nossa Pia Confraria: encarregada desta delicada e benéfica ta-
refa pelo § l 9 do art. 7 da Lei Provincial n. 9 de 22 de novem-
bro de 1837, ella estabelecêo a Casa da Roda desta Cidade,
que até hoje tem-se regido sem estatutos [...]; o pouco tempo
que tenho tido a honra de presidir-vos, como vosso Provedor,
me tem feito conhecer quam urgente é a necessidade de dar-
mos um Regimento escripto á Casa da Roda, de introduzir a
Ordem, e a regularidade no seo serviço, para que desempe-
nhemos nossa missão com maior proveito dos infelizes Expos-
tos, da humanidade, e da Pátria na conservação destes seos
filhos confiados aos nossos cuidados e desvellos (Irmandade, 1842,
P-2)

Assim que era recebida no interior da Casa da Roda,


quase sempre à noite, "a Rodeira", que dormia junto à Roda,
recolhia a criança imediatamente, entregando-a à "Regen-
te", com o enxoval ou qualquer objeto que trouxesse com
ela. A Regente examinava a exposta, prestando socorro ime-
diato às enfermas e maltrapilhas, e colocava em seu pesco-
ço uma pequena chapa numerada, de acordo com o "Livro
de Matrículas". Neste livro, anotava o número de entrada,
sexo, cor, idade aproximada, estado de saúde, o dia, a hora,
o mês e o ano em que fora achada na Roda. Apontava
também o enxoval ou roupa, qualquer papel escrito, meda-
lha ou sinal, pelos quais a criança pudesse ser identificada,
se algum dia viessem buscá-la. Depois, a Regente designava
a "Ama-de-Leite" e a "Ama-de-Criação", encarregadas de
seu tratamento. No outro dia, o Médico ou Cirurgião exami-
nava o enjeitado, anotando todos os sinais e marcas, vaci-
nando se fosse necessário. Então, o "Irmão Mordomo" fazia
batizar o inocente para que não morresse nem crescesse
pagão (cf. Irmandade..., 1842; 1882; 1997).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . g 1

Umas das preocupações centrais do sistema da Roda


para com a exposta era a de providenciar sem tardar seu
batismo (Mattoso, 1996, p. 88-89), "salvando a alma da
criança: a menos que trouxesse consigo um escritinho - fato
muito corrente - que informava à rodeira de que o bebê já
estava batizado" (Marcilio, 1997, p . 52). Nos arquivos da
Roda de Porto Alegre, a maioria dos escritos examinados
dizia que a criança ainda não fora batizada e pedia que o
fizessem, tais como estes:

Antônio Maria. Foi exposto na Roda em 4 de Fevereiro de


1841, acompanhava-o hum bilhete em que pedião fosse
baptizado com o nome de Antônio M§, para por ele ser procu-
rado.
Maria da Conceição. Foi exposta na Roda em 2 de março de
1841 pelas 9 horas da noite. Trazia hum escripto do theor se-
guinte: Roga-se á Uma. Snra. Directoria da Roda dos Expostos,
que por beneficência aceite essa menina; e não estando ella
ainda baptizada, quando o for, se chamará Maria da Conceição
a fim de que possa seu Pae, recebel-a e felicital-a.
Germano. Ás 10 horas da noite de 2 de março de 1854 foi
lançado na Roda desta Santa Caza da Misericórdia hum menino
de côr branca que parecia ter oito dias. Acompanha hum bilhe-
te que dizia não ter sido baptizado.
Francisco. Ás dez horas da noite de 14 de abril de 1856, foi
lançada na Roda desta Santa Caza da Misericórdia huma meni-
na recém nascida e de cor branca. Vinha pobremente vestida e
acompanhava hum bilhete que declarava não ter sido baptizada
esta innocente e pedião á Regente que a não desse a crear para
fora do estabelecimento. (Irmandade..., 1882, respectivamen-
te, p. 29; p. 35; p. 170; p. 189)

Quando era registrado nos escritos deixados junto à


exposta que ela fora batizada, mas os responsáveis pela
instituição tivessem qualquer dúvida sobre a validade do ba-
9 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

tismo anunciado, batizavam-na de novo, sub conditionem,


como decretavam as leis do Direito Canônico. Após o batis-
mo, a criança era dada a uma "Criadeira" - desconhecendo-
se os critérios com os quais eram selecionadas algumas das
expostas para serem criadas na própria Casa da Roda -, a
qual, em troca de pagamento, responsabilizava-se por cui-
dar do menino até os sete e da menina até os oito anos,
devolvendo-os para a Casa (cf. Flores, 1985; Irmandade...,
1842). Os meninos que eram devolvidos pelas criadeiras iam
para o Arsenal de Guerra aprender uma profissão; enquanto
as meninas ajudavam a cuidar dos menores, como amas-
secas, estudavam bordado, costura e as primeiras letras (cf.
Flores, 1985, p. 52; Irmandade..., 1882, p. 37-8), e rece-
biam um dote quando chegavam aos dezoito anos para se
casarem. Estas "Recolhidas", como passavam então a ser
chamadas, viviam isoladas, sendo expressamente proibida
qualquer comunicação sua com o mundo exterior, e as raras
visitas ocorriam sempre em presença da Regente (cf. Irman-
dade..., 1842, p. 19).
Os dispositivos da Roda e do Batismo, conjugados, con-
figuravam o ingresso da criança em uma nova vida de
salvação e, no mesmo momento, decretavam a morte de
uma identidade. Através da Roda, as crianças expostas en-
travam em outro espaço, não mais desordenado e sujeito
aos "fados", como o da exposição indiscriminada, mas em
um espaço cujo esquema suscitava um policiamento tático,
não tão rígido quanto o da educação escolar que a substitui-
ria junto ao corpo infantil, mas que efetivava seu disciplina-
mento. A criação de tal dispositivo e a institucionalização de
seus mecanismos incitaram o recolhimento das crianças, o
impedimento de identificar os genitores, e uma especificação
da prática de expor em relação às diversas formas de
infanticídio. A expectativa de que a criança seria recolhida
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. CJ 3

"em vida" afastou esta prática daquela do infanticídio, sem


que fosse necessário entregar a sorte dos filhos "nas mãos de
Deus, já responsável pelo nascimento", elidindo a intenção
de matar, tal como a prática da "sufocação" havia feito
(Flandrin, 1988, p. 243). Dava-se assim a entrada do infan-
til num eixo de preocupações que conferia outra racionalidade
à exposição: a piedade pelas expostas justificava os proce-
dimentos de acolhimento, mas não a tolerância que lhe era
correlata.
O anonimato dos expositores era mantido, inclusive
através de procedimentos legislativos, ocorrendo em cada
localidade uma responsabilização coletiva pelo custeio da cria-
ção dos enjeitados. Uma das justificativas para preservar
esse anonimato foi a defesa da vida das crianças, pois acre-
ditava-se que não as identificando era-lhes possibilitada ou-
tra alternativa que não o infanticídio ou o aborto (Badinter,
1985, p. 42-3). Presidindo a sessão da Câmara da Vila de
Nossa Senhora do Desterro, em 22 de agosto de 1812, o
Juiz de Fora, doutor Francisco Lourenço de Almeida, propôs
o estabelecimento de uma casa com Roda, assegurando que
tal tipo de casa seria um dos "mais eficazes remédios" para
evitar

os infanticídios dos miseráveis inocentes que têm a infelicidade


de deverem o seu nascimento à desordenada licença do debo-
che e da luxúria, e sendo informado da pouca ou nenhuma aten-
ção que até o presente tem merecido um objeto de tanto peso e
ponderação quanto é o interesse que ao Estado resulta do au-
mento da população [...] principalmente onde esta ainda jaz no
seu berço; propunha por isso ele Ministro a ser da maior impor-
tância erigir-se nesta vila uma Roda dos enjeitados, sendo colo-
cada em um sítio escuro retirado e mais apto para a culta re-
cepção dos referidos inocentes (Oliveira, 1990, p. 57).
9 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Diante das finanças precárias da municipalidade, o


Conselho Municipal de Desterro decidiu que fossem "convo-
cados por Edital a nobreza e o povo da vila" para deliberar
"se era ou não de pública utilidade e necessidade" a Roda e
se era ou não útil que "à Sua Alteza Real se pedisse algum
novo imposto sobre exportação de gêneros desta Ilha" para
atender às "despesas dos filhos da falha" (Oliveira, 1990, p.
58-60). Filhos da falha humana, do deboche, a Roda salvava
não apenas as crianças, como também suas mães, cuja mor-
talidade devida aos abortos era mais elevada do que a oca-
sionada pelos partos, além de positivar a honra do chefe de
família bem como a da Família, como instituição.

A alta mortalidade das crianças que eram abrigadas


nas casas da Roda - "morreram, antes de um ano, mais de
90% das crianças abandonadas no asilo de Rouen, 84% em
Paris, e 50% em Marselha" (Badinter, 1985, p. 141); das
8.086 crianças, recebidas pela Casa dos Expostos do Rio de
Janeiro, entre 1861 e 1874, morreram 3.545 (Costa, 1989,
p. 165-6); entre 1911 e 1912, na mesma casa faleceram
68% do total das crianças (Oliveira, 1990, p. 94) - possibili-
ta situar a Roda menos como um mecanismo de salvação da
vida infantil e mais como um mecanismo destinado ao go-
verno dos costumes das populações. Depuração da consciên-
cia: desestímulo às práticas do aborto e do infanticídio; eli-
minação do espetáculo de crianças mortas nos espaços de
circulação pública. Depuração da experiência da morte: anu-
lava-se o ato de matar com as próprias mãos; esquecia-se a
banalidade cotidiana de topar com as mortas. Depuração da
desordem: a-morte-a-vida infantil ingressava em procedimen-
tos institucionais e administrativos. Depuração da luxúria: os
filhos e as filhas da falha, minúsculos párias da vida, teste-
munhas indiscretas, não pararam de ser produzidos, mas,
via o cilindro oco de madeira, eram ocultos/as pela anulação
HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. g 5

das identidades e dos acontecimentos de sua geração e ex-


posição, pelo rompimento entre a criança e suas origens,
pela preservação da reputação moral dos/as faltosos/as, pela
cumplicidade social dos/as habitantes, pela manutenção
da paz da família, pelo fomento dos interesses e lucros do
Estado.

Uma instituição "imaginária" que equacionaria em um


só lugar a salvação das crianças, a paz das famílias e os
interesses do Estado foi proposta, em 1769, por Rétif de Ia
Bretonne - em Le pornographe ou Idées d'un honnête
homme sur un projet de réglement pour les prostituées
propres à prevenir les maiheurs qu'occasionne le publicisme
des femmes -, visando a integrar as funções dos conventos,
as das casas de tolerância e as das casas de expostos da
seguinte maneira: em tal instituição exemplar, seriam rece-
bidas as moças que não eram destinadas ao casamento; as
mais belas poderiam receber clientes e, talvez mesmo, ca-
sar; as outras cuidariam da criação das crianças que nasces-
sem dessas relações; e o Estado teria "um viveiro de súditos"
que não estarão diretamente a seu encargo (já que os clien-
tes pagarão), e sobre os quais "ele terá um poder ilimitado,
já que os direitos paternos e os do soberano se confundirão"
(Donzelot, 1980, p. 29).

Uma forma de racionalidade da assistência aos expos-


tos que tornasse tal atividade útil ao Estado foi propugnada
pelo filantropo Monsieur de Chamousset, em sua Mémoire
politique sur les enfants, publicada na França, em 1756:

É aflitivo ver que as despesas consideráveis que os asilos são


obrigados a fazer com as crianças expostas produzem tão pou-
cas vantagens para o Estado (...). A maioria dessas crianças morre
antes de chegar a uma idade em que se poderia extrair delas
alguma utilidade (...). Não se encontrará um décimo delas com
SS HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

20 anos de idade (...)• E o que vem a ser esse décimo, tão caro,
se lançarmos à conta dos que sobrevivem a despesa feita com os
que morrem? Um número muito pequeno aprende ofícios; os
outros, saem dos asilos para serem mendigos e vagabundos, ou
se transferem para Bicêtre com uma certidão de pobreza
(Badinter, 1985, p. 156).

O projeto de Chamousset era o de transformar a perda


em lucro para o Estado, fazendo desse "peso morto (peso de
mortos) uma produção rentável para a sociedade", através
das seguintes medidas: 1) exportar para a Louisiana essas
crianças, previamente alimentadas com leite de vaca, desde
os cinco ou seis anos, para cultivar a colônia; 2) imediata-
mente após o desembarque, seriam ocupadas na criação do
bicho-da-seda - "operação fácil, que proporcionaria grande
lucro" -, trabalho "que lhes proporcionará naturalmente uma
recreação", tal como se as vê divertindo-se nos intematos; 3)
ocupá-las, desde os dez anos, até que casem, aos domingos
e feriados, com exercícios militares, reservando-se um tem-
po para a aprendizagem dos princípios da Religião; 4) entre
os vinte e 25 anos seriam casados, e se lhes daria tanta terra
quanto pudessem cultivar.
O cálculo dos lucros para a França deveria ser feito
com base nos seguintes dados: a) somente na cidade de
Paris, eram abandonadas cerca de 4.300 crianças; b) se o
resto do país produzisse o dobro desse número, ter-se-ia
então cerca de doze mil crianças achadas, a cada ano; c)
adotando-se a proposta de aleitamento artificial, que dimi-
nuiria a mortalidade, restariam pelo menos nove mil crian-
ças para serem exportadas todos os anos; d) ao fim de trinta
anos deste regime, as colônias francesas se teriam enrique-
cido de duzentos mil colonos; e) em menos de um século, a
França teria povoado um país maior e mais fértil, que lhe
aumentaria consideravelmente as riquezas.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 9 7

Chamousset sugeria outras utilizações para as crianças


expostas, dentre as quais a de enviá-las às numerosas guer-
ras, para não ter mais de recrutar os jovens de "famílias
legítimas" retirados da agricultura; pois, essas crianças
que não conhecem outra mãe senão a Pátria (...) devem perten-
cer a esta e ser empregadas da maneira que lhes seja mais útil:
sem pais, sem apoio além do que um sábio governo lhes pro-
porciona, elas não têm ao que se apegar, e nada a perder.
Poderia a própria morte parecer temível a esses homens que
nada parece prender à vida, e que se poderiam familiarizar
desde cedo com o perigo, caso se lhes destinasse ao serviço
como soldados (Badinter, 1985, p. 158)?

Pelo fato de que "a educação pode tudo", acrescenta-


va o filantropo, não seria difícil que as crianças expostas
aprendessem a olhar com indiferença a morte e os perigos,
sentimentos dos quais elas não correriam o risco de serem
afastadas por qualquer ternura recíproca ou por laços de
parentesco. O Estado e sua administração deveriam esfor-
çar-se para conservar as expostas vivas, aperfeiçoar sua hi-
giene e o aleitamento, de modo que sobrevivessem aos pri-
meiros anos. Cada aldeia que quisesse ficar isenta do serviço
militar deveria encarregar-se de, no mínimo, oito dessas crian-
ças, até que entrassem no exército; assim, cada pai e mãe
cuidariam delas convenientemente, pois veriam em sua sub-
sistência a liberdade dos próprios filhos. Para indenizar o
Estado das despesas feitas com sua criação, os jovens milicia-
nos serviriam à Pátria até os 2 5 ou trinta anos e, durante
seus anos de serviço, o Estado economizaria um salário de
marinheiro ou de soldado, bem mais elevado do que o custo
anual de uma criança (Badinter, 1985, p. 159-160).
Em 1873, um anônimo que se subscrevia como "Ami-
go do Brasil" publicou um projeto para a fundação de uma
Fazenda-Escola ou Colônia Agrícola de Órfãos e Meninos
9 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Abandonados ou Sem Trabalho. Após referir-se à recente


liberdade concedida aos "filhos nascidos de ventre cativo",
explicava:

O que, pois, a agricultura receia é que o governo os mande


para os arsenais da Marinha de Guerra, ou que se lhes dê uma
educação ligeiramente estranha à vida dos campos: e esses re-
ceios não são infundados, pois que até aqui todos esses rapazes
abandonados, pobres ou infelizes, têm ficado encerrados nos
estreitos limites da cidade, ou completamente estranhos à vida
agrícola (Lima e Venâncio, 1996, p. 71-2).

A criação da fazenda-escola propiciaria "uma instru-


ção séria, compatível com as necessidades da agricultura e
do país". Para lá, os juizes de órfãos enviariam os meninos
expostos, pois, como lembra o anônimo: "Nas nossas mãos
temos um paliativo, senão um remédio, para os males que
possam cair sobre a agricultura"; afinal, "temos os meninos
do país", que podem tornar-se "excelentes obreiros, bons
agricultores; temos todos esses crioulinhos libertos".
Se a Roda foi um dos mecanismos que ajudou a pensar
uma nova racionalidade de Estado e a calcular seus lucros,
financeiros, administrativos, morais, as práticas de recolhi-
mento e de segregação promovidas por ela somente são
inteligíveis em relação aos axiomas que regiam o antigo
sistema de alianças e de filiações, já que se incumbiam dos
"restos" inevitáveis de tal regime familiar. Por livrarem as
famílias "dos indesejáveis da ordem familiar", tanto amplia-
ram o espaço de intervenção do Estado, na conservação e
utilização dos indivíduos, quanto funcionaram como ponto
de partida para o desencadeamento de ações corretivas e
moralizadoras das condutas; estabelecendo-se assim não uma
aliança estratégica entre as duas ordens - a da família e a do
Estado -, e sim uma "conivência tática", na qual a Roda -
"este dispositivo técnico engenhoso, como a chamou Donzelot
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . g g

- rompia, "sem alarde e sem escândalo, o vínculo de origem


desses produtos de alianças não desejáveis", bem como de-
purava "as relações sociais das progenituras não conformes
à lei familiar, às suas ambições, à sua reputação" (Donzelot,
1980, p. 28-31).
Exemplar da reviravolta na relação Estado-família, o
sistema da Roda dispôs para o Estado, primeiramente, a
absorção dos excluídos da ordem familiar, o estímulo a que
vivessem para então integrá-los, e, finalmente, seu aprovei-
tamento enquanto corpos úteis, proveitosos e lucrativos.
Para a mãe de família popular, tal sistema a transformou em
nutriz, mandatada pelo Estado, e foi desse modelo que ela
retirou a dupla dimensão de sua condição a acompanhá-la
por longo tempo: a remuneração coletiva e a vigilância mé-
dico-estatal. Para as expostas, articulou sua condição de "fi-
lhos da Pátria", produtos de um confronto entre a mulher
popular e a assistência estatal, e sobre quem lançou a sus-
peita de se fora ou n ã o desejado seu e n g e n d r a m e n to
(Donzelot, 1980, p. 34-5).
Sem dúvida, pode-se afirmar que a Roda integrou o
que Foucault chamou "prática do internamento", constituída
por uma rede de instituições implantada a partir do século
XVII, na Europa [e, como já vimos, não apenas lá]: uma
nova reação à miséria, um novo patético; de um modo mais
amplo, um outro relacionamento do sujeito humano com
aquilo que pode haver de mais inumano em sua existência.
O pobre, o miserável, o homem, a mulher e a criança da
Roda que não sabiam responder por sua própria existência,
assumiram no decorrer do século XVI uma figura que a Idade
Média não teria reconhecido; isto é, a miséria despojada de
sua positividade mística, por um duplo movimento do pen-
samento: "o que retira à Pobreza seu sentido absoluto e à
Caridade o valor que ela obtém dessa pobreza socorrida"
(Foucault, 1991e, p. 48).
1 DD HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

De um modo específico, o Estado reorganizava e regu-


lava a pobreza, a Igreja Católica, sua caridade e vice-versa.
Nesses movimentos, é exemplar que São Vicente de Paula,
em 1632, em Paris, funde as primeiras Couche, ou abrigos
das crianças achadas, que são consideradas os "embriões de
creches" (Priore, 1996, p. 24). Através delas se afinava o
pioneirismo jesuítico com o papel atribuído pelo Estado mo-
derno à educação: centralização dos abandonos; atribuição
de finalidade estatal ao encargo dessas crianças; antagonis-
mo à utilização que a corporação dos mendigos fazia das
expostas, a qual, "por meio de mutilações sem número,
tornavam-nos objetos próprios a suscitar a 'compaixão'"
(Donzelot, 1980, p.27; p. 59).
O exílio daquela antiga criança exposta e a moderna
reclusão da Roda não trouxeram consigo o mesmo sonho
político, embora ambas conservassem o anonimato de quem
expunha: um era o de uma comunidade caritativa, o outro,
o sonho de uma sociedade disciplinar que, em seus primei-
ros gestos, ainda não necessitava nem queria ver quem ex-
punha, mas que, talvez por isto mesmo, o que fazia era
positivar e governar de forma disciplinar os corpos infantis
expostos que assim se publicizavam. Tanto o exílio quanto a
Roda, em sua maior ou menor intimidade com a morte, não
configuraram de início "problemas públicos": isso foi consti-
tuindo-se de modo descontínuo, desde que as primeiras ins-
tituições de assistência, bem como a Roda, foram, por mui-
to tempo, "problemas" do clero, das confrarias de caridade,
dos homens e das mulheres da alta elite que se dedicaram a
recolher esmolas e a proceder a legados e a doações para
amparar a pobreza das crianças abandonadas (cf. Guima-
rães, 1984; Irmandade..., 1997; Lima e Venâncio, 1996).
Centralizando a exposição desordenada e funcionando
como uma estratégia de governo frente à mendicidade, o
internamento da Roda ligou-se a uma problematização mais
IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 D 1

ampla da moral e da ordem, em uma época na qual a ética


se tornava laica e a virtude dos indivíduos aparecia como um
objeto a ser administrado pelo Estado, da mesma maneira
que o comércio e a produção: "os muros da internação en-
cerram de certo modo o lado negativo desta cidade moral,
com a qual a consciência burguesa começa a sonhar no sé-
culo XVII" - cidade onde impera uma "espécie de soberania
do bem em que triunfa apenas a ameaça, e onde a virtude
(...) só tem por recompensa o fato de escapar ao castigo". A
sombra dessa cidade, nasceu uma estranha república do bem
imposta pela força a todos os suspeitos de pertencer ao mal:
as leis do Estado e as do coração finalmente identificavam-
se umas com as outras (cf. Foucault, 1991e, p. 75-6).

Retirando a positividade mística que envolvia a misé-


ria na Idade Média e recusando a necessidade das obras de
caridade para a salvação eterna, a Reforma realizou um novo
recorte da pobreza: além de ser o sinal de um castigo de
Deus, passou a ser concebida como um efeito da desordem,
um obstáculo à ordem. Também o catolicismo chegou, por
caminhos diferentes, a resultados análogos: converteu os bens
eclesiásticos em obras hospitalares, atribuindo a estas um
alcance geral e avaliando-as conforme a sua utilidade para a
ordem dos estados. O mundo católico adotou um modo de
percepção da miséria que se havia desenvolvido no mundo
protestante: a partir dela, os miseráveis não eram mais re-
conhecidos como o pretexto enviado por Deus para suscitar
a caridade do cristão e com isso dar-lhe a oportunidade para
sua salvação. Ao redefinir a miséria, a Igreja investiu em
uma cisão que inexistia no mundo medieval: entre os bons e
os maus pobres, os de Jesus Cristo e os do Demônio. Por tal
divisão, o internamento justificava-se duas vezes: a título de
benefício e a título de punição; ora era assistência, ora era
castigo, conforme o valor moral daquele a quem se aplicava.
1 O 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A "Grande Internação" inseriu-se na laicização da caridade,


que assumia a forma de uma razão de Estado, colocando sob
seus cuidados e os da cidade moral toda a população de po-
bres, incapazes, expostos (cf. Foucault, 1991e, p. 56-63).
Se a exposição exaltara a miséria e glorificara a expe-
riência de recolhimento, pela salvação e alívio que propicia-
va, a Roda suprimiu a criança miserável, fez a esmola desa-
parecer, deu cabo da dialética da humilhação e da glória. Foi
ela que introduziu o corpo infantil na relação entre a desor-
dem e a ordem, encerrando-o numa culpabilidade. Foi ela
que começou a fazer deste corpo o corpo de um sujeito
infantil moral, retirando-o da desordem das ruas para deposi-
tá-lo na rotação da ordem da Roda e da previdência dos
Estados.
Crianças da roda, filhas da falha, bocas para as quais
não havia alimento, minúsculos párias, sobras da vida, des-
graçados espúrios, sim; mas não mais expostos em qualquer
lugar. Doravante, encerrados na hospitalidade camuflada de
uma moldura de pedra, em um sítio escuro e retirado, seus
corpos eram agora encarados apenas no horizonte da moral,
dentro dos muros de uma casa vizinha a de todos os seus
semelhantes. Desde então este corpo se destaca sobre o
fundo formado por um problema de "polícia", referente à
ordem dos indivíduos na cidade. Outrora, ele fora recolhido
porque vinha de outro lugar. Agora, era excluído/incluído
porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os
pobres, os miseráveis, os vagabundos, os loucos, os doentes.
Acolhido, saneado, registrado, batizado, o corpo infantil es-
tará assim na Roda fora do caminho, pois que perturba o
espaço social.
Problema de polícia: o corpo da Roda é já da alçada
dos Estados administrativos, caracterizados pela multiplica-
ção das atividades que passam a ser objeto de sua interven-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 Q 3

ção, nas quais incorporam funções anteriormente executa-


das pela Igreja e por particulares. Corpo que exige a atua-
ção das duas faces da polícia: a da segurança que garante o
poder do Estado sobre as forças internas e assegura sua
defesa contra as forças externas; a do bem-estar que deve
aumentar a riqueza e a felicidade públicas. Nada mais sim-
ples de pensar: o sexo não se julgava apenas, administrava-
se. Exigia procedimentos de gestão. Sobrelevava-se ao po-
der público. Devia ser assumido por discursos analíticos; o
sexo se tornava uma questão de polícia no século XVIII.
Então como teria sido possível deixar fora desta questão
sexual "administrativa" o corpo infantil exposto, nascido do
sexo, e de um sexo no mais das vezes "mau"? Como deixar
de introduzi-lo não na repressão da desordem, mas na
majoração ordenada das forças coletivas e individuais do Es-
tado? A Roda exaltava a função purgadora dos desvios se-
xuais e era essa espécie de confessionário que, ao mesmo
tempo, registrava e absolvia os produtos das faltas, tam-
bém, mas acima de tudo administrava um novo corpo de
criança que dela nascia.

Os tratados de polícia, alicerçados na distinção entre


Razão e Desatino, já tinham prescrito no século XVII o re-
colhimento daqueles que se entregavam à devassidão: es-
cândalo público e interesse das famílias. O internamento
tinha sido o instrumento que a monarquia absoluta dera para
uso da família burguesa. Saúde e doença, normal e anormal:
a Época Clássica doara uma ética sexual que ultrapassava a
questão da legitimidade ou da ilegitimidade das relações. A
vida do corpo exposto na Roda é objeto da polícia: seu indis-
pensável, seu útil e seu supérfluo deviam ser por ela regula-
dos na medida exata. Era missão da polícia garantir que
esse corpo sobrevivesse, vivesse e inclusive fizesse algo mais
do que viver: fosse feliz e útil e reforçasse a potência do
Estado, enquanto população infantil.
1 D 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Portanto, uma questão de govemamentalização do Es-


tado: o corpo infantil somente pôde ser depositado na Roda
em função do desbloqueamento da arte de governar em co-
nexão com a emergência do problema da população - a
perspectiva da população, a realidade dos fenômenos pró-
prios à população, suas variáveis. Corpo que daqui para a
frente giraria, não só na Roda, mas também nas técnicas e
táticas de governo que definiam a cada instante se ele devia
ou não ser responsabilidade do Estado, se era público ou
privado, se era estatal ou não. Governamentalidade de um
corpo onde se encontraram as técnicas de dominação
exercidas sobre outros corpos e as técnicas de si: o exposto
implicado no governo de si mesmo, na arte de se governar
adequadamente uma família e na ciência de bem governar o
Estado. Constituição de "outra família", de outro "quadro
familiar": célula de sujeitos morais da razão, não mais mode-
lo quimérico e concreto de governo, mas elemento no inte-
rior da população e instrumento privilegiado da arte de go-
vernar. Gestão de uma família agora instrumental em rela-
ção à população, tal como demonstrado pelas campanhas
contra a mortalidade, as relativas ao casamento, as campa-
nhas de vacinação, as de aleitamento.
Forma de governo não apenas de "um" corpo, mas de
vários: corpos anônimos dos pais/mães; corpo familiar não
conspurcado e em ordem; corpo social agindo pelos ditames
da Lei e da Razão. Modo de cultura das disciplinas: a desar-
ticulação dos mecanismos feudais de exercício do poder,
bem como das organizações corporativas e comunitárias de
controle e assistência, requisitara a constituição de um sujei-
to jurídico responsável ante uma sociedade regida por um
contrato da Razão. Nesse processo, demarcava-se uma se-
paração entre aquilo que é seu ser de Razão daquilo que era
vivido como experiência do Desatino. Se a cultura das dis-
H I S T ó R I A S D E G D V E R N O : CRIANçAS E C I A . 1 D 5

ciplinas tirara dos indivíduos sua inocência e os levara a gui-


ar suas condutas pela Razão, não mais possíveis de serem
estabelecidas em conformidade com a Previdência ou com o
Destino, a Roda foi um de seus mecanismos de ruptura e,
ao mesmo tempo, de passagem para um tempo em que
cada indivíduo será tido por um ser único, capaz de respon-
der pelas próprias atitudes.
Na supressão da tutela dos costumes, o ingresso na
maioridade supôs ainda a tutela do Estado e de suas institui-
ções que cuidaram de fazer superar a menoridade. A expo-
sição das crianças na Roda talvez tenha sido o início de uma
operação eminentemente pedagógica, enquanto operação
de administração das condutas e das contingências a que os
indivíduos se viam sujeitos; talvez tenha sido o complemento
necessário para uma época de Iluminismo, que ainda não
era uma época esclarecida, como disse Kant. A exposição
dos cinco filhos de Rousseau na Roda pode ser exemplo da
passagem dessa tutela do exterior para a tutela interior (cf.
Oliveira, 1990, p. 85-92), ou, em outras palavras do gover-
no pelos outros para o governo de si:

Enquanto eu filosofava sobre os deveres do homem, um aconte-


cimento veio obrigar-me a refletir mais sobre os meus. Thérése
engravidou pela terceira vez. (...) Meu terceiro filho foi, portan-
to, posto na Roda, assim como os primeiros, e o mesmo aconte-
ceu com os outros dois que se seguiram, pois foram cinco ao
todo os filhos que tive. Tal arranjo me pareceu tão bom, tão
sensato, tão legítimo, que se não me gabei abertamente, foi
apenas por consideração a Thérése. (Rousseau, s.d., p. 235-6)

Rousseau inicialmente justifica para si, e para seus lei-


tores, tal atitude, vinculando-a a uma sujeição aos costumes
do grupo:
1 D 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Enquanto eu engordava em Chenonceaux, minha pobre Thérése


engordava em Paris, mas de outra maneira; e quando voltei
verifiquei que minha obra estava mais adiantada do que pensa-
ra. Isso me teria lançado, visto minha situação, num embaraço
extremo, se companheiros de mesa não me tivessem fornecido
o único recurso para dele sair (Rousseau, s.d., p. 226).

O grupo que se reunia na casa de madame La Selle -


mulher de um alfaiate, que fornecia "comida má", mas cuja
mesa não deixava de ser procurada por causa da "compa-
nhia certa e boa" que ali se reunia - ensinava a Rousseau
"loucas anedotas divertidas", e também "as máximas" que
ali se estabeleciam: pessoas honradas ridicularizadas, mari-
dos enganados, mulheres seduzidas, partos clandestinos, eram
os assuntos mais comuns, "e os que forneciam crianças para
os Enfants-Trouvés eram sempre os mais aplaudidos".

Isso me seduziu; formei meu modo de pensar de acordo com o


que via dominar entre pessoas tão gentis e no fundo tão honra-
das; e a mim mesmo disse: - Já que é este o costume da terra,
posso segui-lo porque nela vivo. Eis o que eu procurava. Resolvi
segui-lo com a alma leve, sem o menor escrúpulo; e o único que
tive que vencer foi o de Thérése, com quem tive o maior traba-
lho do mundo para obrigar a adotar aquele meio único de salvar
sua honra. A mãe que além disso receava novos embaraços com
a filharada, tendo vindo em meu auxílio. Thérése deixou-se con-
vencer (Rousseau, s.d., p. 226-7).

Quando nasce seu terceiro filho, Rousseau constrói um


paradoxo de si mesmo, enquanto indivíduo no uso da razão:
fala de seus sentimentos de justiça, amor, amizade, genero-
sidade e ternura, para indagar "se tudo isso pode ser harmo-
nizado na mesma alma com a depravação que faz calcar aos
pés, sem escrúpulos, o mais doce dos deveres" - o de ser
pai. Responde:
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 D V

Não, sinto-o e digo-o em voz alta, não é possível. Nunca, num só


instante de sua vida, Jean-Jacques pode ser um homem sem
sentimentos, sem entranhas, um pai desnaturado. Pude enga-
nar-me, porém não ficar empedernido. Se expuser minhas ra-
zões, direi demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão
muitos outros: não quero expor os jovens que me possam ler a
que se deixem arrastar pelos mesmos erros. Contentar-me-ei
em dizer que foram tais, que ao entregar meus filhos à educa-
ção pública, por não poder educá-los eu mesmo, destinando-os
a ser operários e camponeses em vez de aventureiros e cava-
lheiros de indústria, julguei agir como cidadão e como pai, e
considerava-me como um membro da república de Platão
(Rousseau, s.d., p. 236).
Os riscos de entregar seus filhos "àquela família mal-
educada" de Thérése, faz com que Rousseau opte pela edu-
cação pública, cuja única via era a exposição na Roda, usan-
do o argumento da razão: "Os riscos da educação nos Enfants-
Trouvés eram bem menores". Em Os devaneios do cami-
nhante solitário, na Nona caminhada, escrita em 1778,
ano de sua morte, Rousseau retoma a mesma justificativa:
Compreendo que a censura por ter colocado meus filhos na
Roda de Expostos tenha facilmente degenerado, forçando-se
um pouco os fatos, na de ser um pai desnaturado e de odiar as
crianças. Contudo, é certo que foi o medo de um destino para
eles mil vezes pior e quase inevitável, na falta de qualquer outro
caminho, que mais me determinou nessa diligência. Se eu fosse
mais indiferente ao que se tornariam e sem as possibilidades de
os criar eu mesmo, teria sido necessário, na minha situação,
permitir que fossem criados por sua mãe, que os teria mimado,
e por sua família, que deles teria feito monstros. Tremo ainda ao
pensar nisso (Rousseau, 1995, p. 118).
Diz ainda que, em virtude das perseguições que lhe
moveram, das armadilhas que lhe armaram, vê confirmada
essa sua atitude: "sabia que a educação menos perigosa
1 DB HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

para eles seria a do asilo de enjeitados e lá os coloquei".


Com bem menores dúvidas, acrescenta Rousseau, faria hoje,
se tivesse de voltar a fazê-lo: "e sei bem que nenhum pai é
mais terno do que eu teria sido para com eles, contanto que
o hábito tivesse ajudado um pouco a natureza" (Rousseau,
1995, p. 119).
Embora o coração censurasse Rousseau por expor os
filhos, a razão provava que agira com acerto:

Mais de uma vez (...), os gemidos de meu coração me disseram


que me havia enganado; mas, longe de minha razão me dizer o
mesmo, freqüentemente bendisse o céu por tê-los resguardado
desse modo do destino do pai e daquele que os ameaçava quan-
do me visse obrigado a abandoná-los. Bem pesadas as coisas,
escolhi o melhor para os meus filhos, ou pelo menos o que julga-
va ser o melhor. Teria querido mais ainda: preferia ter sido edu-
cado e criado como eles o foram (Rousseau, s.d., p. 236).

Ainda que Rousseau faça passar pelo cálculo de "per-


das-benefício" a decisão de expor seus filhos, sua fala tam-
bém se implica na categoria de "anormalidade", quanto à
prática de expor os filhos, incompatível com a razão e os
sentimentos paternos normais:

A resolução que eu tomara a respeito de meus filhos, embora


pudesse me parecer razoável, não tinha podido deixar meu co-
ração tranqüilo. Ao meditar em meu Traité de 1'éducation,
senti que havia negligenciado os meus deveres aos quais não
poderia fugir de modo nenhum. Os remorsos finalmente se tor-
naram tão fortes que quase me arrancaram a confissão pública
de minha falta no começo de Émile, e traços dela ali estão, e
tão claros que, depois de tal passagem, é surpreendente que
tivessem tido a coragem de me censurarem por causa dela
(Rousseau, s.d., p. 236).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 0 9

À medida que "explicava" a exposição dos filhos na


Roda, Rousseau se deixava afetar por três forças e por três
formas diferentes de sujeição: 1) a força dos costumes leva-o
à segurança do pertencimento a um grupo; 2) a força da
razão encaminha-o à condição de cidadão como pertencente
a um Estado; 3) a força da natureza humana integra-o, pela
via da censura, à condição de "verdadeiro pai". Parece que,
para exercer o auto-governo, Rousseau - e depois dele todo
indivíduo ocidental - teve de "naturalizar" suas forças e for-
mas de subjetivação: o instinto materno, a paternidade res-
ponsável, o infantil natural, a família monocelular, a
heterossexualidade, a procriação, o verdadeiro sentimento
em relação às crianças, a infância sem fim, a criança educada
(cf. Foucault, 1981; 1991e,g ; 1993; Oliveira, 1990).
A "exposição" e a "exposição na Roda": dois esque-
mas diferentes, mas não incompatíveis: o primeiro, inte-
grante de um regime dominado pela estrutura da soberania;
o segundo, componente de um regime dominado pelas téc-
nicas de governo. Lentamente, eles se aproximam, combi-
nam-se, cruzam-se, afastam-se, vão e vêm em seus movi-
mentos ora de 1805, ora de 360 9 , após a girada do cilindro
e o toque da sineta. Desde a prateleira côncava, com ou
sem almofada, a-morte-a-vida infantil faz sua entrada em
cena no quadriculamento disciplinar: o recorte fino dos espa-
ços e dos tempos cotidianos de vida de cada criança em sua
relação com os institucionais; a individualização pela atribui-
ção numérica e pelos registros escritos; a interpelação e a
divisão binaria entre as crianças "da Roda" e as "de famí-
lia"; a determinação coercitiva e a repartição diferencial acer-
ca de quem é essa criança, onde e com quem deve ficar até
que idade, como caracterizá-la, como reconhecê-la se vie-
rem buscá-la, como exercer sobre ela uma vigilância cons-
tante, como alimentá-la, o que lhe dar de comer, o que deve
1 1 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

vestir, onde e como dormir, quando deve ser mudada, qual


medicação, em que quantidade e em qual horário, qual será
o seu destino - "primário", "secundário", "final" - , etc.
Se para o pai/a mãe parecia que a Roda funcionava
por uma lógica oposta à do Panóptico, para a criança ex-
posta existia só um único momento de escuridão: aquele
átimo de instante em que o cilindro de madeira girava, da
rua para dentro da Casa. Depois dele, o som da campainha
confirmava a técnica de governo a que fora destinada, lan-
çando-a na armadilha da visibilidade: as janelas da torre cen-
tral de todas as santas casas, a luz dos refeitórios, a contraluz
das salas de banhos, o candeeiro sempre aceso dos quartos
de dormir, as camas com espaços brancos entre elas - próxi-
mas, mas sempre separadas (cf. Irmandade..., 1842, p.20).
O visível finalmente do infantil, não mais obscurecido por
monturos de lixo, soterrado por trapos, escondido em terre-
nos baldios, sendo tragado pela escuridão das goelas dos
cães e dos porcos, fechado em cestas calafetadas com betu-
me e piche; não mais desordenado como no infanticídio,
mas diagramando toda sua vida, implantando seu corpo nos
espaços, distribuindo-o em relação aos outros, organizando-
o hierarquicamente, dispondo-o conforme os centros e os
canais de poder, definindo-o de acordo com as formas de
intervenção, assistência, caridade, impondo as tarefas, as
dívidas, as culpas.
O som da campainha alarmava e promovia a enuncia-
bilidade da individualização: a cada criança reservava-se uma
página do grande livro de registros de entradas, pois todas
as eventualidades de sua vida eram cronologicamente aí ins-
critas - número de matrícula, sexo, cor, sinais, vacinas, hora,
mês, ano, o batismo com a atribuição de nomes, os pró-
prios, os dos padrinhos, os dos santos padroeiros, das cria-
deiras, das amas, os registros ao longo do tempo das apti-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 1 1

does, condutas, faltas, erros, crimes, punições, condições


de saúde, saídas para casas de amas, para prestar serviços,
emancipação da casa, data do casamento, valor do dote,
número e nomes dos filhos, data da morte, causa mortis.
Todo um sistema de documentação individualizante e per-
manente: um boletim individual, um parecer descritivo de
vida inteira, uma conta moral em nome de uma economia
em material, em pessoal, em tempo; em nome da eficácia
da prevenção; em nome de um funcionamento contínuo e
da instalação de mecanismos contínuos; em nome da moral
pública, da família, do sexo heteroconjugal, da homofobia,
da sociedade ameaçada pelas crianças expostas; pelo uso
de mecanismos que entrevistavam, testavam, inquiriam, exa-
minavam, interrogavam, fazendo com que o infantil se con-
fessasse e finalmente assumisse em toda extensão e inten-
ção o visível e o enunciável da denominação genérica e cor-
rente que lhe fora atribuída há muitos séculos atrás: a de
CRIANÇA EXPOSTA - dada a outros, dada a ver, dada a
ser dita; revelada, descoberta, exibida, mostrada; para ser
batizada, quadriculada, educada.
Nada de externo uersus interno, senão de efeitos
estruturados de práticas sociais: as casas da Roda foram a
majoração produtiva e o laboratório de poder acerca do in-
fantil; seus mecanismos de observação ganharam em eficá-
cia e em capacidade de penetração no comportamento das
crianças; seus mecanismos de registro descobriram novos
objetos a serem conhecidos em todas as superfícies onde
este se exercia. Mecanismos de um poder surgidos de uma
nova escala de observação e de um novo +<po de registros os
quais fizeram nascer um novo objeto discursivo. Mecanismos
e estratégias que, ainda agora, estão dispostos em torno do
infantil, tanto para marcá-lo quanto para modificá-lo, tanto
para apontar o normal quanto, com mais motivos, para tra-
1 1 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

tar do anormal. A Roda foi o engenho, a máquina, a engre-


nagem giratória e ótica, o arranjo, a figura da tecnologia
política disciplinadora do infantil. Ela foi capaz de exercer
muitas funções: de educação, terapêutica, de produção, de
castigo, de moralização, de saneamento, de subjetivação e
de dominação. Ela fez emergir objetos infantis pois remeteu-
se a instituições, processos econômicos e sociais, formas de
comportamento, sistema de normas e técnicas.
A Roda: esta espécie de antecâmara do "Ovo de
Colombo" na ordem política do Panóptico. Simples objeto
da época que condensa uma transição. O esquema da Roda
se difundirá no corpo social, tomar-se-á uma função genera-
lizada. A educação escolar fará suas vezes, fará a parte que
lhe cabe, recebendo, acolhendo as crianças: não somente
"as expostas", no sentido antigo, mas também as outras,
"as expostas" à cultura, à racionalização, à moralização, à
educação, à escolarização. Serão outras essas "rodas
educativas", bem mais metafóricas, aquelas que exigirão
nunca mais o anonimato, mas uma forte "aliança" entre
quem expõe e quem acolhe o infantil ainda exposto.
Tal como a matriz da escola cristã, nossas "rodas
educativas" não podem apenas formar crianças dóceis; de-
vem permitir vigiar também os pais e as mães, informar-se
de suas maneiras de viver, seus recursos, suas piedades,
seus costumes. Minúsculos observatórios sociais, essas ro-
das: penetrar nos adultos e exercer sobre eles um controle
regular; mau comportamento de uma criança, sua ausência,
são pretextos legítimos para interrogar os vizinhos, princi-
palmente se a família não diz a verdade; depois o pai/a
mãe, para verificar se sabem o catecismo e as orações, se
estão decididos a arrancar os vícios das crianças, quantas
camas há e como eles se repartem nelas durante a noite; a
visita termina com esmola, presente de uma imagem, ou
doação de camas suplementares (cf. Foucault, 1989).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 1 3

O modelo continua sendo o corpo objetivo da criança


sem amparo a ser amparado pelo poder educacional. De
todo modo, a raiz de poder prossegue sendo esse infantil,
como suporte para intervenções estratégicas; como um meio
de governar, direta ou indiretamente, suas condutas e as dos
adultos; como base para criar novas técnicas de cuidados,
regulação e controle das populações. As práticas de "salvar
as crianças" - do século XVII pelo recolhimento da exposi-
ção nas ruas, do século XVIII pela Roda - dão lugar, nos
séculos XIX e XX, às práticas de "educar as crianças", mes-
mo porque aqui continua tratando-se de "salvação".
Afinal, não foi por nada que a Razão de Estado desco-
brira que, ao salvar o Outro infantil, pela internação, produ-
zia não apenas seu recolhimento, mas sua criação, gerando
um estranhamento em relação àquela figura familiar do coti-
diano. Os gestos e mecanismos que proscreveram a criança
exposta, acolhendo-a, desfizeram a trama, alteraram seu
rosto na paisagem social, fizeram dela uma figura bizarra
que ninguém reconhecia mais: suscitaram "A Estrangeira"
ali mesmo onde ninguém a pressentira.
Refazer a história desse processo de banimento do cor-
po infantil é fazer a arqueologia de uma alienação: descrever
os gestos que com ele foram realizados; voltar a escrever os
registros que dele foram escritos; demonstrar as operações
específicas que se equilibraram na totalidade por ele forma-
da; inventariar de qual horizonte provinha aquele corpo que
partiu junto com todos os outros sob o golpe da mesma
segregação; escavar as experiências que fazia de si mesmo
no exato momento em que alguns dos perfis mais costumei-
ros começaram a perder sua familiaridade e sua semelhança
com aquilo que reconheciam como suas próprias imagens
(cf. Foucault, 1991e, p. 81-2).
1 1 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

O dispositivo da Roda instalou um corte abrupto que


provocou medidas administrativas sobre o corpo infantil; o
qual, sem dúvida nenhuma, faz parte das camadas históricas
da história da infantilidade, por materializar, na dura realida-
de do cilindro giratório, engastado em uma moldura de pe-
dra, que da rua mal se via, os arranjos d'a-vida-a-morte do
infantil e da mais-valia dos quais forneceu ambas as fórmu-
las. Tendo passado pela madeira escura da Roda, o infantil
moderno finalmente ingressara na Casa de Vidro do
panoptismo, toda ela atravessada e penetrada por mecanis-
mos disciplinares. Millieu indecidível onde nós, chegada a
nossa vez, o recolhemos: para otimizar o cálculo e o diagra-
ma de eficácia na constituição de seu corpo produtivo.

DISPARATE DA PRQVENIENCIA

A busca da proveniência - Herkunft -, neste estudo,


permitirá reencontrar, seguindo Foucault (1990d), sob o as-
pecto único do conceito "infantil", a proliferação dos aconte-
cimentos "através dos quais (graças aos quais, contra os quais)
eles se formaram". Esta espécie de genealogia não recuará
no tempo para restabelecer a "grande continuidade" da his-
tória - dos/as historiadores/as - da infância, a qual, graças
a seu evolucionismo, trata o objeto "infância" ao modo de
uma vida biológica: nascimento, crescimento, maturidade,
morte. Sua tarefa não é a de mostrar que "o passado ainda
está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segre-
do, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso
uma forma delineada desde o início". Ao contrário, é a tare-
fa de manter o que se passou com o infantil, na dispersão
IISTÓRIAS DE GOVERND: CRIANÇAS E CIA. 1 1 5

que lhe é própria, demarcando os acidentes, os pequenos


desvios, e também as inversões completas - "os erros, as
falhas na apreciação, os maus cálculos" - que deram "nasci-
mento" à infância que existe e tem valor para nós; desco-
brindo que, na raiz do que conhecemos sobre ela, e daquilo
que somos enquanto "infantis", "não existem a verdade e o
ser, mas a exterioridade do acidente" (cf. Foucault, 1990d).
A proveniência, aqui e em outras histórias de inspira-
ção genealógica, diz sempre respeito ao corpo e a tudo que
se refere ao corpo. Por isso, ela "se inscreve no sistema
nervoso, no humor, no aparelho digestivo. Má alimentação,
má respiração, corpo débil e vergado daqueles cujos ances-
trais cometeram erros; que os pais tomem os efeitos por
causas, acreditem na realidade do além, ou coloquem o va-
lor eterno, é o corpo das crianças que sofrerá com isto". O
corpo: "superfície de inscrição dos acontecimentos (enquan-
to que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar
de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade
substancial), volume em perpétua pulverização".
A análise da proveniência "está portanto no ponto de
articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o cor-
po inteiramente marcado de história e a história arruinan-
do o corpo" (Foucault, 1990d, p. 22). Esse é o "dever" deste
estudo daqui para a frente: mostrar como o corpo infantil foi
marcado de história e de que modo a história arruinou esse
corpo; para, desacreditando da metafísica, escutar mais a
história, operando na direção de constituir uma história das
rupturas que produzem e são produzidas por uma outra
história que não a da infância: a do dispositivo que infan-
tiliza.
1 1 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

A IDENTIDADE: C ü M E ç D S INUMERáVEIS

Emblemático do direito de pátria potestas na socieda-


de ocidental é o gesto da criança "elevada". Imediatamente
após o parto, desembaraçado das lides das mulheres, o re-
cém-nascido romano era exposto diante da porta, deposita-
do no solo, cabendo ao pai reconhecê-lo, por tomá-lo em
seus braços, quer dizer, elevá-lo - elevaie - do chão. Esta
elevação física, em sentido figurado, convertia-se em aceitar
criá-lo. Se o pai não "elevava" a criança, esta era deixada
na porta, tal como era feito com os filhos não desejados dos
escravos, com os filhos da miséria e do adultério, ou com as
crianças livres não desejadas.
Entretanto, para a história da infantilidade, o reconhe-
cimento pela via da elevatio não simbolizou, como queria
Aries (1986, p. 5-6), a questão de uma "vida dupla", que
era dada à criança duas vezes - a primeira quando saía do
ventre da mãe e a segunda quando o pai a elevava -; mas
era sim uma questão de morte, já que, com este gesto, o pai
marcava seu poder sobre a vida do filho, pela morte que
tinha o direito de exigir. O tipo de poder que produziu esta
prática foi o de um poder absoluto e direto sobre a vida das
crianças, calcado no postulado de que quem tivesse dado a
vida, tinha o direito de tirá-la.
Foucault (1993, p. 127-149) articula o direito paterno
do pátria potestas ao direito de vida e morte exercido pelo
rei sobre seus súditos: ambos são assimétricos e, em seu funcio-
namento, manifestam um mesmo tipo de poder que atua
sobre sujeitos jurídicos - os filhos e os súditos -, sobre os quais
seu último acesso era a morte, efetivamente exercida ou
contida. Se o direito paterno da potestas não conhecia limi-
tes - sendo mais soberano do que o do próprio soberano -, e
era sempre direto, o do rei era limitado, tendo deixado de
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 1 "7

ser absoluto para ser mais uma espécie de direito de réplica,


e fora relativizado sob duas formas: direto, ao tirar a vida do
súdito, sob a forma de castigo, quando este o ameaçara em
sua sobrevivência; e indireto, expondo sua vida nas guerras
necessárias para defender o território, ou a legitimidade do
próprio soberano.
Esse poder sobre a vida, funcionando pela morte que
tinha o direito de exigir, estava representado pelo direito
jurídico de vida e morte, delegava a quem o exercia a esco-
lha entre causar a morte ou deixar viver e era simbolizado
pelo gládio. Sob essa figura jurídica, encontramos um tipo
histórico de sociedade, onde o poder era confiscante,
extorsivo, apropriador: de parte do soberano, extorsão dos
bens, produtos, trabalho, sangue dos súditos; da parte pater-
na, confisco da vida e do sangue dos filhos. Tanto um quanto
o outro implicavam-se em um poder cujos mecanismos qua-
lificavam a morte sob uma variada abundância de formas.
A partir da Época Clássica, ocorre uma transformação
desses mecanismos de poder, de tal modo que o direito de
morte desloca-se, apoiando-se sobre um poder que gera e
ordena a vida. Aqui, o confisco e a supressão são apenas
algumas das peças com funções de reforço, controle, vigilân-
cia, majoração e organização das forças vivas. A questão
não é mais a do direito de vida e morte - seja real, seja
parental -, mas passa a ser a questão biológica de uma
população: o poder que era aquele do direito de causar a
morte ou de deixar viver é substituído - não sem justaposi-
ções, interações e ecos - por um poder capaz de causar a
vida ou devolver à morte, situado e exercido no nível da
vida, da espécie, da raça, dos fenômenos da população. É
sobre a vida que esse novo poder estabelece seus pontos de
fixação, fazendo com que a morte se desqualifique, que seus
rituais entrem em desuso e passe a ser o limite, o momento
1 1B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

que lhe escapa - por exemplo, o momento no qual os pais


choram, quando lhes morre um filho. Porque este poder
parental e político assume a tarefa de gerir a vida, mata, em
nome da necessidade de viver, aqueles que constituem um
perigo para os outros, fazendo com que os massacres e
genocídios tornem-se vitais.
A tecnologia política própria deste poder - devida ao
grande crescimento demográfico do ocidente europeu du-
rante o século XVIII; à necessidade de coordenar esta acu-
mulação humana e de integrá-la ao desenvolvimento do apa-
relho de produção; e de controlá-la por mecanismos de po-
der mais rigorosos - fez surgir "a população", com suas variá-
veis de números, de repartição no espaço e no tempo, de
longevidade e de saúde: não somente como objeto de vigi-
lância, análise, intervenções, operações transformadoras, mas
também como problema teórico (cf. Foucault, 1990d).
Tecnologia da população desenvolvida em dois pólos: um,
anatômico, em que o corpo passa a ser visto como máquina,
a partir das disciplinas do corpo - famílias, escolas, colégios,
casernas, oficinas, hospitais, asilos -, produzindo uma anáto-
mo-política do corpo humano, em torno das quais se desen-
volve a organização do poder sobre a vida; e o outro, biológi-
co, a do corpo-espécie, surgido para regular as populações,
por meio de uma biopolítica, cujas tarefas consistem nas
observações econômicas, no controle da longevidade, da na-
talidade e da morbidade, da saúde pública, da habitação, da
migração: técnicas diversas para obter a sujeição dos corpos
e o controle da população.
Essa era do biopoder foi um elemento indispensável ao
capitalismo, mas este exigiu mais: corpos para os aparelhos
de produção e conhecimento dos fenômenos da população
para prever os processos econômicos. Assim, a vida e seus
fenômenos entram no campo das técnicas políticas; a um só
IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 1 9

tempo em que a vida entrava na história, fazendo com que


seus processos fossem levados em conta pelos procedimen-
tos de poder e de saber que tentaram calculá-los, modificá-
los e controlá-los. Agora, o poder estava às voltas com seres
vivos; o império que exercia sobre eles devia situar-se no
nível da própria vida e as tecnologias políticas dele derivadas
e que o constituíam irão cada vez mais investir sobre o cor-
po, a saúde, a alimentação, as condições de vida e o espaço
das existências. É preciso distribuir os vivos, encarregar-se
da vida, por meio de mecanismos contínuos, reguladores e
corretivos, em prol da norma e não mais da lei (cf. Ewald,
1993). O "direito" não é mais aquele derivado da lei, tal
como se apresentava para o sistema jurídico clássico: esse
"direito à vida", num sentido amplo, torna-se a réplica polí-
tica aos novos procedimentos de poder, elaborados durante
a Época Clássica e postos em ação no século XIX.
Somente essa nova economia dos mecanismos de po-
der poderia ter produzido o chamado "nascimento da infân-
cia", derivado do dispositivo de poder-saber da infantilidade,
pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contem-
porâneas e do qual se indaga: de que modo articulou-se esse
dispositivo à medida que se desenvolveram as tecnologias
modernas de poder que tomaram por alvo a vida infantil?
Por que se articulou o objeto histórico "infância", engendra-
do e tornado necessário pelo dispositivo de infantilidade e
por seu funcionamento? Estimativas demográficas, cálculo
da pirâmide das idades, previsão das diferentes esperanças
de vida, contagem das taxas de morbidade, estudo das rela-
ções entre o crescimento das riquezas e da população, inci-
tações ao casamento e à natalidade conjugai, desenvolvi-
mento da educação escolarizada e da formação profissional,
todos esses problemas, que giram em torno do "corpo infan-
til" - superfície de inscrição no corpo de cada indivíduo e no
corpo das populações -, precisam ser levados em considera-
ção para responder a essas perguntas.
1 2 O HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Uma coisa é certa: com aquele velho poder e sua po-


tência de causar a morte e com o domínio do direito jurídico
de vida e morte em ação, "a infância" não teria "nascido";
já que a nova condição histórica de possibilidade somente
pôde ser criada pela eficácia produtiva do biopoder que de-
via encarregar-se dos corpos, não mais para exigir deles o
serviço do sangue, protegê-los dos inimigos, assegurar os
devidos castigos, extorquir as rendas ou dar-lhes a morte,
mas para ajudá-los a garantir sua saúde e bem-estar. Caso
se queira estabelecer datas, temos que, do início até o fim
da Idade Média, o dispositivo de infantilidade não teve por
função "cuidar do infantil", e sim zelar pelos cuidados da
descendência, pelas relações de submissão e de posse entre
pais/mães e filhos/as, pela guerra e pela paz.
Até os séculos XVII e XVIII, o poder político do disposi-
tivo de infantilidade efetuou-se e foi disputado em outras
instâncias políticas de poder-saber, como naquelas que pro-
duziram: governantes-governados, médicos-doentes, confes-
sores-fiéis, homens jovens-anciãos, diretores de consciência-
dirigidos, psiquiatras-loucos, racionais-sem razão, ricos-po-
bres, homens-mulheres, aios-pupilos, cultos-ignorantes, ho-
mens livres-escravos, agentes penitenciarios-prisioneiros,
mestres-discípulos, etc; todo um conjunto heterogêneo no
qual, sem dúvida, algo e alguns/algumas - grupos e indivi-
dualidades da sociedade ocidental - já vinham sendo
infantilizados/as; e onde, por efeitos dessa operação, arti-
culava-se a proveniência da instância moderna "adultos-
infantis".
O dispositivo de infantilidade distribuiu, regionalmen-
te, as emergentes individualidades infantis junto às outras
individualidades dependentes e sujeitadas, já existentes e
conceitualizadas, por estarem sendo operadas por esse mes-
mo poder. A especificação e a partição desse conjunto hete-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 2 1

rogêneo, todo ele recoberto pelo dispositivo de infantilidade,


produziram, como elemento essencial de seu próprio discur-
so e funcionamento, a idéia de "infância": esse objeto ima-
ginário, historicamente datável, que passo a tratar como nas-
cido dos mecanismos desse poder, e a descrever suas passa-
gens de uma simbólica do sangue a uma analítica da
infantilidade.
Por muito tempo, disse Foucault (1993), o sangue cons-
tituiu um elemento importante nos mecanismos de poder,
em suas manifestações e rituais. Na história do dispositivo
de infantilidade - da qual provém e emerge a infância -, o
poder dos laços de sangue, a partir dos séculos II e III, acres-
centa outra dimensão social e moral ao matrimônio que este
não possuía na Roma antiga: a união dos corpos torna-se
sagrada, bem como os filhos, frutos dela, e estende-se para
além da vida, à morte - como comprovam as inscrições nos
túmulos funerários (Aries, 1986, p. 6) -, e os vínculos car-
nais e sangüíneos passam a ser mais importantes do que
aqueles vínculos eletivos que definiam as decisões da vonta-
de paterna no gesto da elevatio.
Inicia-se um longo período, pautado pelo mesmo tipo
de poder, que só terminará na Época Moderna. Em uma
sociedade dos laços de sangue dos séculos X e XI, em que a
família [a mesnie] convivia com a linhagem - onde a solida-
riedade era extensiva a todos os descendentes de um mes-
mo ancestral, vivendo segundo um tipo de posse chamado
frereche ou fraternitas, em uma mesma propriedade que se
haviam recusado a dividir -, os nascimentos eram considera-
dos uma riqueza e os filhos um produto indispensável, já que
permitiam dominar os demais: a fidelidade mais segura era
a do sangue, a do nascimento, e o sistema de progenitura
garantia a permanência do nome e a salvaguarda do
patrimônio; as filhas mulheres eram moedas correntes de
1 2 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

intercâmbio no regime de alianças; com muitos filhos, nos


castelos, uma família tornava-se mais poderosa e, nas caba-
nas, tinha aumentada a segurança dos grupos e a quantida-
de de mão-de-obra (cf. Aries, 1981, p. 211-4).
Nesse tipo histórico de sociedade, o poder falava atra-
vés do sangue: onde predominavam os regimes de aliança, a
forma política do soberano, a diferenciação em ordens e
castas, o valor das linhagens; e onde a fome, as epidemias,
as guerras, o verdugo e os suplícios faziam da morte presen-
ça contínua, o sangue constituía um dos valores essenciais e
seu preço se devia, ao mesmo tempo: a seu papel instru-
mental - "poder derramar o sangue"; a seu funcionamento
na ordem dos signos - "ter um certo sangue, ser do mesmo
sangue, dispor-se a arriscar seu próprio sangue"; à sua pre-
cariedade - "fácil de derramar, sujeito à extinção, demasia-
damente pronto a se misturar, suscetível de se corromper
rapidamente" (Foucault, 1993, p. 138). Da realidade do
sangue, com função simbólica, em que as famílias e os filhos
são incitados pelo patrimônio e pela carne, e dispostos "do
lado da lei, da morte, da transgressão, do simbólico e da
soberania" (ib., p. 139), passar-se-á para a realidade de uma
infantilidade, em que as famílias e os filhos - agora incitados
pela monogamia indissolúvel do sacramento do matrimônio,
pela afeição conjugai, pelo "sentimento de infância" (Aries,
1981, p. 77) -, serão colocados do lado da norma, do saber,
da vida, do sentido, das disciplinas e das regulamentações.
É possível ver como essa ruptura d'a-vida-a-morte pro-
duziu-se, inicialmente isolando da continuidade sem inter-
rupção da história da infância - no cruzamento com alguns
livros de Foucault (1991b,e) - uma grande unidade estraté-
gica: a subordinação da identidade infantil, na qual poder e
saber fundiram-se em mecanismos específicos, construídos
em torno deste tronco: "o infantil". Por sua relativa persis-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 2 3

tência e por operar as primeiras descontinuidades, os pri-


meiros cortes de significação, de sentido, de progresso, na
história da infantilidade, tal unidade criou as condições para
que fossem unificados e inventados um indivíduo, um tipo
social, um sentimento e uma idéia, cujos pertencimentos a
um grupo da mesma "baixeza" nos permitem, ainda hoje,
apontar e dizer: "Este é o/um infantil". "Isto é infantil";
fazendo com que, da exterioridade de todos esses acidentes,
"nascesse" a infância que existe e tem valor para nós.
Proveniência de um corpo marcado de história cuja
análise permite especificar dois mecanismos, operados em
dois pólos: 1) nas instâncias do biopoder, a regulação do
pólo biológico do corpo-espécie que se aglutina sob o signo
subordinado de mais uma identidade dependente, entre as
outras, em relação à classe social, gênero, idade, raça, ra-
zão, saúde; 2) no pólo anatômico do corpo como máquina, o
segundo mecanismo, por seu funcionamento interdiscursivo,
reforça o primeiro, reunindo-se em torno de velhos mecanis-
mos que advinham do poder do sangue, dos quais acaba por
se separar, provocando efeitos de poder-saber que se enodam
no corpo subordinado de um infantil sujeitado.
Sujeição como transformação da subjetivação do indi-
víduo moderno, a qual, aqui, nessa primeira ruptura da
infantilidade, consiste na submissão ao Outro pelo controle e
pela dependência; sujeição realizada por todos os procedi-
mentos de individualização e de modulação que o poder de
infantilizar instaura, atingindo a vida cotidiana e a inferioridade
daqueles infantis que ele chama "seus sujeitos". Essa identi-
dade infantil é sujeitada pelo funcionamento do conjunto das
instituições disciplinares, tais como a Família, o Quartel, a
Igreja, a Escola, o Hospício, o Hospital, o Asilo, a Casa da
Roda; e é consubstanciada em uma figura inequívoca: a do
"infantil-dependente", enquanto "o outro" do "Adulto": um
1 2 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

infantil diferente, impróprio, diverso, desigual, distinto,


dessemelhante, alterado, inexato, desavindo, malquisto,
alheio, desgraçado, infortunado, desastrado, inconveniente;
o infantil fora-da-norma, disforme, desconforme, desajustado,
discrepante, desproporcionado, divergente, irregular; este
infantil pequeno, acanhado, apoucado, dependente, subal-
terno, prejudicado, subordinado, carente, assujeitado, defi-
ciente, imaturo, inconstante, impróprio, errado, incerto, ir-
regular, desproporcionado, injusto, pervertido; este infantil
fugido, alien, allius, forasteiro, estranho, esquisito, exótico,
desgarrado, extraviado, desencaminhado, peregrino, erran-
te, perdido, emigrado, proscrito; o infantil a ser expedido,
remetido, enviado, despachado, desembaraçado, apartado,
segregado, exilado, banido, desterrado, degredado, depor-
tado, expatriado para um país estrangeiro (ausiand) - o
País da Educação.

INFANTES, SDLDADDS, LACAIOS, SERVOS, PEõES,


PEQUENOS... ESTE HOMEM é DE UMA INFâNCIA!

Examinando as palavras do século XVII que serviam


para designar a infância, dentro da configuração das "Idades
da Vida", Aries (1981, p. 29-49) afirma que a idéia de
infância esteve ligada à idéia de dependência: as palavras
fils, valets e garçons eram também palavras do vocabulário
das relações feudais ou senhoriais de dependência; e só se
saía da infância ao se sair da dependência, ou, ao menos,
dos graus mais baixos de dependência. Essas palavras liga-
das à infância iriam subsistir para designar familiarmente,
na língua falada, os homens de baixa condição, cuja submis-
são aos outros continuava a ser total: os lacaios, os auxilia-
res, os soldados. Por exemplo, um petit garçon não era
necessariamente uma criança, e sim um jovem servidor; em
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 2 5

1549, o diretor de um colégio escrevia ao pai de um de seus


alunos, a propósito de seu enxoval e de seu séquito: "No que
concerne ao seu serviço pessoal, basta um petit garçon".
Aries acrescenta: "da mesma forma hoje, um patrão ou um
contramestre dirão de um operário de 20 a 25 anos: 'É um
bom menino', ou 'esse menino não vale nada'".
No início do século XVIII, o dicionário de Furetière pre-
cisou o uso do termo enfant:

- Enfant é também um termo de amizade utilizado para saudar


ou agradar alguém ou levá-lo a fazer alguma coisa.
- Quando se diz a uma pessoa de idade: 'adeus, bonne mère
(boa mãe), 'até logo, grand-mère' (avozinha), na língua da Paris
moderna, ela responde 'adeus, mon enfant' (ou 'adeus, mon
gars', ou 'adeus, petit' ).
- Ou então ela dirá a um lacaio: 'mon enfant, vá me buscar
aquilo'.
- Um mestre dirá aos trabalhadores, mandando-os trabalhar:
'coragem, enfants, agüentem firme'.
- Os soldados da primeira fila, que estavam mais expostos ao
perigo, eram chamados de 'enfants perdus' (crianças perdi-
das). (Aries, 1981, p.43)

Desse mesmo dicionário, extraem-se provérbios que


aparecem junto à palavra enfant: "é um enfant gâté (crian-
ça mimada), aquela a quem se deixou viver de um modo
libertino, sem corrigi-la"; ou, '7/ n'y a plus d'enfant eqüiva-
le a dizer que alguém começa a ter juízo e malícia cedo"; ou,
"inocente como a criança que acabou de nascer". O francês
precisou tomar emprestado de línguas estrangeiras palavras
para designar a criança: assim foi com o italiano bambino
para bambin; com o provençal pitchoun; com marmousets
para marmots, na língua popular - "moleques de queixo
engordurado que enfiam o dedo em todos os pratos"; ou, no
1 2 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

século XIX, do inglês baby, para bébé; também das gírias


dos colégios latinos e das academias esportivas e militares -
frater, cadet, populo, petit peuple.
Na mesma época, nas famílias nobres em que "a de-
pendência era somente uma conseqüência da fragilidade fí-
sica", diz Aries, o vocabulário da infância designava a pri-
meira idade; no fim do século XVI, a palavra petit designava
todos os alunos das "pequenas escolas", mesmo aqueles que
não eram mais crianças; na Inglaterra, a palavra petty tinha
o mesmo sentido que em francês, e um texto de 1627 men-
cionava a escola dos /yrí/e petties, ou seja, dos alunos me-
nores. Foi a literatura moral e pedagógica - "que exprimiu
uma necessidade de ordem moral difundida por toda parte,
e da qual Port-Royal era também um testemunho" - que
estabeleceu para uso escolar e ampliou o número de termos,
dando-lhes o sentido moderno para designar a infância: os
alunos de Jacqueline Pascal eram divididos em petits, moyens
e granas.
Aries (1981, p.44) valoriza positivamente essa cria-
ção de palavras para expressar a infância: "o século XVII,
que parecia ter desdenhado a infância, ao contrário, introdu-
ziu o uso de expressões e de locuções que permanecem até
hoje na língua francesa". Ele destaca, mais adiante: "[no
século XVII], o fato de estar na 'dependência' de outrem
ainda não havia assumido o caráter humilhante que adquiriu
depois, pois, entre os criados e os senhores, a relação era de
proteção e piedade, "o mesmo sentimento que se tinha pe-
las crianças" (ib., p. 262-3).
Já para esta história da infantilidade, o que interessa
destacar é a relação entre as palavras que designam a infân-
cia e a dependência por elas produzida. Lerena (1983) ana-
lisa o campo semântico em que o Século das Luzes criou o
neologismo "educação" para designar o novo "processo de
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 2 7

produção de homens" - autônomos e soberanos -, e refere


que tal neologismo deriva do poder do senhor e do "possuir"
do dono ou do amo: poder e possuir que criavam nomes
e produziam a realidade, como, por exemplo, a de seus
objetos e produtos: o criado, o filho, o discípulo, o servo (ib.,
p. 10).
Também Elias (1994), ao examinar o manual de civili-
dade de Erasmo de Rotterdam, De ciuilitate morum
puerilium, de 1530, escrito para a educação das crianças -
entenda-se a educação dos meninos nobres -, mostra, entre
os costumes, maneiras, etiquetas, códigos de conduta etc,
a mesma correspondência entre infância e servilismo. Por
exemplo, no colóquio Proci et puellae, sobre o Namoro,
quando o jovem corteja a moça, pede-lhe que imagine como
seria lindo quando ele como rei e ela como rainha "governas-
sem seus filhos e serviçais"; ou então, em outro manual para
meninos, Johannis Morisoti mediei colloquiorum iibri
quatuor, ad Constantinum filium, de 1549, Morisot "apre-
senta a vida aos meninos", com a justificativa de que estes
vivem desde cedo na esfera dos adultos, "mesmo sendo sub-
missos e socialmente dependentes" (ib., p.171, 175). Tais
sinonímia e estrutura mental entrarão em um sistema de
racionalização e de sistematização quando a pequena bur-
guesia entrar historicamente em ação; porém, continuarão
operando por muito tempo na direção da equivalência de
um poder que atribui às crianças, filhos/as, alunos/as e, de
modo geral, a todos os "diferentes", uma posição social,
subjetiva e política servil, enquanto filhos, criados e discípu-
los eternos.
Em língua portuguesa, o mecanismo epistemológico
de dependência da identidade infantil é facilmente identifi-
cado no português falado, quando as palavras apontam pes-
soas ou grupos sociais significados como dependentes e in-
1 Z B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

feriores, ou quando se pretende sujeitar o adulto - homem,


senhor. Em dicionários consultados de começo do século XX
até o Aurélio (Ferreira, 1974), para o vocábulo "infância"
(do latim, infantia), encontra-se o sentido expresso ("Brás.
Pop.") de "ingenuidade" (Pequeno..., 1951, Ferreira, 1974),
acrescido de "simplicidade" (Ferreira, 1974), que precede o
exemplo: - Este homem é de uma infância! (Pequeno...,
1951, Ferreira, 1974), o qual é modificado, no Aurélio
(1974), por: - Aquele senhor é de uma infância!
Em dicionários de 1912 (Diccionario...) e 1946 (Ferreira,
Dicionário...), tal exemplo não aparece. O primeiro define
infância como "meninice", "as crianças", "primeiro período
de uma arte" e "instituição" (p. 671); o segundo conserva
"as crianças" e "meninice", porém atribui sentido figurado
ao termo: (Fig.) "O começo da existência de alguma coisa: a
infância da ciência" (Dicionário..., 1946, p. 912) O dicioná-
rio de 1946b indica "nascimento, origem, princípio, apare-
cimento, começo", sem atribuir sentido figurado, e dá os
seguintes exemplos: "A infância do mundo, da fé, da reli-
gião" (Ferreira, 1946, p.528). A partir de 1951, esse senti-
do de "primeiro período" inclui também "sociedade" junto a
"arte", "instituição", "etc." (p.679), prosseguindo na atri-
buição de sentido figurado, mas sem retomar os exemplos -
"do mundo, da fé, da religião".
A definição de "primeiro período" é conservada nos
dicionários posteriores - para arte, instituição, sociedade e
etc. -, mas, a partir de 1946, desloca-se para o sentido não-
figurado de: "período da vida" (Dicionário..., 1946), "de
crescimento" (Pequeno..., 1951, Ferreira, 1974). Tal indi-
cação de "período" sofre duas modificações: em 1946, defi-
ne-se infância como "período da vida desde o nascimento
até os sete anos", sucedido, após uma vírgula, pela locução
"mais ou menos". No Pequeno Dicionário Brasileiro da Lín-
HISTóRIAS DE GOVERND: CRIANçAS E C I A . 1 2 9

gua Portuguesa (1951) e no Aurélio (1974), "vida" é subs-


tituída por "crescimento", especificado por "no ser huma-
no", sendo dito de tal período que "se estende do nascimen-
to até a puberdade".
No Aurélio (1974), é acrescentado um quinto sentido
aos quatro anteriores: 1) período de crescimento, no ser hu-
mano, que vai do nascimento até a puberdade; 2) meninice,
as crianças [mais "puerícia", no Aurélio]; 3) primeiro perío-
do de uma [da existência de uma] sociedade, instituição,
arte, etc. (fig.); 4) ingenuidade, simplicidade, seguido do
exemplo: Aquele homem [senhor] é de uma infância! (Brás.
Pop.) -, qual seja, o significado "Psicol." [Psicológico], que
indica características e introduz a divisão da infância em três
estágios, separados por idade: "Período de vida" - aqui, é
retomado o vocábulo "vida" que só foi encontrado no
Diccionario Etymologico, Prosódico e Orthographico da
Lingua Portugueza (1912) -, "que vai do nascimento à ado-
lescência" - expressão não existente nos dicionários anterio-
res -, "extremamente dinâmico e rico, no qual o crescimen-
to se faz, concomitantemente, em todos os domínios, e que,
segundo os caracteres anatômicos, fisiológicos e psíquicos,
se divide em três estágios: primeira infância, de zero a três
anos; segunda infância, de três a sete anos; e terceira infân-
cia, de sete anos até a puberdade" (Ferreira, 1974, p. 767).
Para "infante" [do lat. infante), são indicados três sen-
tidos que produzem similaridade entre: 1) "pueril, infantil (o
que está na infância)", 2) "o peão" [no Brasil, usado para
amansador de cavalos, burros e bestas; condutor de tropas;
trabalhador rural; e no Rio Grande do Sul, para serviçal de
estância, conchavado], 3) "o soldado da infantaria" [que é
dito da tropa militar que faz o serviço a pé], 4) "o filho de
reis que não tem direito a herdar a coroa" [nesta acepção
tem por feminino "infanta"].
1 3 0 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Para "infantil" [do lat. infantile], encontram-se três


definições: 1) "relativo a crianças, próprio de crianças"; 2)
mas também, "ingênuo" (Diccionario..., 1912, Fernandes,
1946, Ferreira, 1974), "inocente" (Diccionario..., 1912, Di-
cionário..., 1 9 4 6 , Fernandes, 1 9 4 6 , Pequeno..., 1 9 5 1 ,
Ferreira, 1974), "simples, tolo" (Ferreira, 1974), "cândido,
pueril"; 3) "frívolo" (Fernandes, 1946); 4) apenas no Aurélio
(1974) consta o sentido de "próprio para crianças: exemplo
'contos infantis'". Para "infantilidade" (grafado como
"infantibilidade", no Diccionario Etymologico (1912) e em
Fernandes (1946), encontra-se: 1) "qualidade de infantil"; 2)
"ação, modos, ou dito próprios de crianças"; 3) "criancice,
puerilidade" (Ferreira, 1974, Fernandes, 1946), "ingenuida-
de, simplicidade"; 4) "frivolidade, futilidade" (Fernandes,
1946). A ação de "infantilizar" é definida como: 1) "tornar
infantil"; "dar feição e aspecto infantil a"; 2) "tornar-se in-
fantil"; "praticar atos próprios da infância"; 3) não consta no
Diccionario Etymologico (1912), no Dicionário Enciclopé-
dico Brasileiro Ilustrado (1946) e em Fernandes (1946),
enquanto "infantilização" é encontrado somente no Aurélio
(1974, p.768), como - "Ação ou efeito de infantilizar(-se)".

"Infantilismo" define-se como "anomalia" ou "anorma-


lidade": 1) não consta no Diccionario Etymologico (1912) e
em Fernandes (1946); 2) o Dicionário Enciclopédico (1946)
apresenta-o como um "termo da Medicina" - "Anomalia
que consiste na persistência, quando adulto, de certos
caracteres físicos e mentais da infância. O infantilismo é um
sinal de degenerescência, que resulta, as mais das vezes, de
uma intoxicação crônica (alcoolismo, saturnismo) ou de uma
infecção (sífilis) dos pais" (p. 912); 3) nos outros dicionários
- "Med. Persistência anormal dos caracteres da infância na
idade adulta" (o Aurélio escreve "anormal" entre vírgulas).
Vê-se como o exemplo da língua portuguesa - Este homem
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 3 1

é de uma infância! - encontra-se carregado de sentidos e


sentimentos equivalentes àqueles encontrados por Aries e
Lerena.
Sentidos e sentimentos também presentes nos vocábu-
los do campo "pequeno". Por exemplo, "pequeno", no
Diccionario Etymohgico (1912), é definido como o adjetivo
usado para o "que tem pouca extensão ou volume"; aquele
"que é criança"; "limitado, que tem pouco valor"; ou, o que
é "mesquinho", "humilde"; indica, como substantivo mascu-
lino, "menino"; e, no plural, "o povo miúdo". No Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (1951), "pe-
queno" designa o que é "de tamanho diminuto"; "é crian-
ça"; "de baixa estatura"; "limitado" (comparativo de inferio-
ridade: menor ou mais pequeno)"; no plural, denota "os hu-
mildes, a classe inferior da sociedade".
Do mesmo campo semântico são, tanto no Diccionario
Etymologico (1912) quanto no Pequeno Dicionário (1951),
pequeninho [também pequenino] - o que é muito pequeno,
pequenito, pequetito, menino -; pequenote; pequerralho;
pequerrucho; pequenada - para filharada, porção de peque-
nos, grupo de rapazitos, filhos pequenos, meninos -;
pequename - como gíria escolar para indicar raparigas, as
namoradas -; e pequenez - como qualidade do que é pe-
queno, meninice \fig.], mesquinhez, humildade. Os sentidos
se mantêm nos outros dicionários consultados, os quais o
Aurélio sintetiza para "pequenez": 1) qualidade de pequeno;
2) meninice, infância; 3) pequena estatura; 4) [fig.] mesqui-
nhez, insignificância, modéstia: a pequenez da esmola, do
presente; 5) [fig.] pouca elevação intelectual ou moral: pe-
quenez de espírito, de sentimentos.
Na História do cerco de Lisboa, de Saramago (1989),
narrada por Raimundo Silva, os soldados portugueses reivin-
dicam o direito de saque, se a tomada de Lisboa aos mouros
T 3 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

fosse bem-sucedida, e um dos oficiais diz, referindo-se a


eles, "São parvos", o que pretende significar, "são peque-
nos". Naquele tempo ainda se ligava à etimologia, não era
como hoje, quando não se pode chamar parvo a ninguém,
ainda que obviamente minorca, sem que fique logo aberta
uma querela por ofensa (Saramago, 1989, p. 338-9). No
Aurélio, "parvo" (do lat. parvulu, diminutivo de parvus, pe-
queno) significa: "pequeno, limitado, apoucado. V. tolo"; e
"parvidade", a "qualidade de parvo; parvoíce. Pequenez,
pouquidade".
Na linguagem falada, entre adultos/as, os tratamentos
"meu filho", "minha filha", "filho", "filha", "filhinho" e "filhi-
nha" costumam expressar posição de superioridade por par-
te de quem os emprega para indicar a posição subordinada
de quem é nominado dessa forma. Exemplo, ocorrido em
março de 1997, foi a entrevista televisiva dada pelo ex-
presidente Fernando Collor de Melo à jornalista Sônia Bridi,
da Rede Globo, quando a chamou, por diversas vezes, de
"minha filha", "filha", "filhotinha", fazendo acompanhar tais
locuções de expressões faciais, gestos e palavras, cujo pre-
tendido efeito visível era o de desqualificar as perguntas for-
muladas, bem como a atuação da jornalista.
Criticando o ocorrido, a jornalista Célia Ribeiro (1997),
do jornal Zero Hora, em matéria intitulada Modos & Manei-
ras, relata o caso de um colega seu, mais jovem do que o
chefe, que "durante uma troca de opiniões diversas a respei-
to de assunto de trabalho, ficou profundamente chocado quan-
do seu chefe o tratou de "meu filho": - '"Esta não, agora eu
vou me irritar', falou, sentindo-se diminuído pelo tratamento
que o fez lembrar a subordinação da criança aos pais". Auto-
ra do livro Etiqueta na prática para crianças, da L&PM
Editores, 1997, Célia Ribeiro afirma que "criança não quer
ser subestimada. Ela gosta de ser tratada com uma lingua-
gem simples e correta, que pressupõe sua capacidade de
compreensão e raciocínio lógico" (ib., p. 2).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 3 3

No dia 22 de julho de 1997, o então governador do


Rio Grande do Sul, Antônio Britto, "em um discurso ácido e
contundente", feito a dezenas de empresários e políticos
que assistiam à divulgação dos nomes dos primeiros doze
fornecedores da General Motors, disse: "Era de se prever
que os nossos simpáticos meninos do PT não assistissem a
tanto desenvolvimento sem tentar atrapalhar". O governa-
dor responsabilizava "os simpáticos meninos do PT" pela
invasão da área destinada à GM, em Gravataí. "Não é preci-
so ter idade", afirmou, "para lembrar o que já ocorreu em
horas como essa" (Britto culpa PT..., 1997, p. 6).
No dia anterior, o jornal Correio do Povo publicara um
A Pedido, assinado pelo Sindicato dos Telefônicos, com o
seguinte título: "Britto e Fernando Henrique Cardoso: 'Os
bons meninos'". O parágrafo inicial do informe dizia: "Britto
e FHC continuam executando o projeto neoliberal
globalizante, ditado pelo grande capital internacional - FMI,
Banco Mundial e Bird -, e enquanto continuarem sendo "bons
meninos" vão ganhando a sua mesada". Como "bons meni-
nos" ainda eram designados: "seus parceiros da grande im-
prensa engajada"; "lá de Brasília"; "os banqueiros incompe-
tentes"; "todos os adesistas de plantão". Para deixar os '"bons
meninos' bem contentes, [Britto] consegue mais isenções e
empréstimo como aquele da "GM" e do "Gerdau". Afinal de
contas, este 'bom menino' nunca falha". Aproveita, "para
não ficar tão feio, faz demagogia com o Povo e tenta calar a
boca do magistério, da polícia civil e militar, cria um 'fundinho'
para dar um aumento de 'faz-de-conta', para que eles pa-
rem de incomodar". A nota terminava com a seguinte ad-
vertência: "Britto e seus 'bons meninos' que se acalmem,
pois foram longe demais" (Sindicato..., 1997, p. 15).
1 3 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

SECUNDARIAS, DéBEIS, IGNORANTES,


INCAPAZES DE CONVERSA DU DEFESA, MIúDAS,
INSIGNIFICANTES, INCOMPETENTES,
ANJINHOS FELIZES, PáRVULOS, "PAPEL BLANCO"

Na Terra de Santa Cruz, no século XVI, a Companhia


de Jesus privilegiou as crianças indígenas como o papel
blanco, a cera virgem, a tabula rasa, para escrever e inscre-
ver-se. O propósito era conquistar as alminhas virgens, onde
os pecados destas terras ainda não se tinham instalado: "mau
caminho que esta terra leva", dizia Nóbrega em 1559 (Priore,
1996, p.10). Do sucesso dessa missão dependia a afirma-
ção da Companhia perante o papado romano; para realizá-
la, foram trazidas da Europa duas representações infantis: a
da criança mística e a da criança que imita Jesus. Com elas,
os jesuítas investiram nos "culumins", nos "meninos da ter-
ra", nos "indiozinhos, filhos de gentios", "tantos e tão boni-
tos", formando "um exército de pequenos-Jesus a pregar, e
a sacrificar-se entre as 'brenhas' e os 'sertões', para a salva-
ção e conseqüente adestramento moral e espiritual destas
índias do Brasil" (Priore, 1996, p. 13).
Em 1554, Nóbrega funda em São Vicente o primeiro
colégio de catecúmenos que houve no Brasil, ordenando que
fosse uma "Confraria do Menino Jesus", formada por órfãos
que vieram de Portugal e por alguns mestiços da terra. Valo-
rizando o pequeno indígena como "um inocente, mui ele-
gante e formoso", ou "muchachos que quase criamos a nos-
sos peitos com o leite da doutrina cristã"; ou ainda afirman-
do que "alguns destes meninos são mui bons e mui bonitos",
a Companhia afagava o "meúdo" e o "mínimo" que devia
ser castigado, açoitado e também amado por seu aproveita-
mento, costumes e vida cristã. Amor feito de disciplina se-
vera, castigos e ameaças, seus mecanismos foram os
autossacramentais alegóricos, as musicarias e os sermões. A
HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 3 5

fala dos padres jesuítas tinha gosto de sangue: "Como um


cirurgião que dá um botão de fogo ao seu filho ou lhe corta
uma mão em que entra herpes, o qual ainda que pareça
crueldade não é, se não misericórdia e amor, pois com aque-
la ferida lhe sara todo o corpo", dizia Anchieta em um ser-
mão (Priore, 1996, p. 26).
A trajetória desse amor correcional é contemporânea
dos textos de Gerson, de Cordier, da literatura pedagógica
de Port Royal e, sobretudo, escorada no Ratio Studorium
(cf. Ullmann, 1991) inaciano e na sua disposição para a
meditação, a concentração, a disciplina do espírito e a sub-
jugação dos sentidos. Observando os preceitos do Ratio, os
padres faziam com que todos os meninos morassem com
eles em São Vicente, para os instruir otimamente na fé cris-
tã, no estudo dos elementos e no escrever. Para realizar sua
tarefa messiânica de doutrinação, através das crianças indí-
genas de uma humanidade simultaneamente edênica e
diabolizada, era preciso evitar os pecados medonhos que "o
demônio, seu pai, os ensina" (Priore, 1996, p. 15). A infân-
cia era o momento oportuno para a catequese porque era
momento de unção, iluminação, revelação e, ainda, mo-
mento de renúncia da cultura autóctone, uma vez que certas
práticas ainda não se tinham sedimentado. As crianças das
tribos tupis e tamoios, por serem infantis, estavam aptas a
receber e a responder ao chamado divino e à aculturação.
Em 1550 e 1553, duas expedições foram enviadas de
Portugal com mais onze padres para trabalhar, no Brasil, em
companhia de sete órfãos vindos de uma escola de Lisboa.
Estes órfãos foram ensinados a falar tupi-guarani, tendo como
tarefa a confissão dos nativos: eram os chamados "meninos-
língua". O registro desses meninos, que iam da Bahia para
São Vicente, demonstra a mobilidade espacial das crianças
que riscavam o litoral na companhia de irmãos e padres.
1 3 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Essa mobilidade deveria alcançar Coimbra, ao menos para


aqueles "dos quais tenho alguma esperança que serão de
Nosso Senhor e que serão proveitosas para nossa Compa-
nhia se lançarem boas raízes em virtudes; e para esse efeito
os mando e para aprender", diz uma carta de Nóbrega para
Inácio de Loyola em 1555.
Era comum ainda que "quatro ou cinco órfãos dos nas-
cidos de pais português mas mãe brasileira que viviam em
casa sob regimento do pai" fossem recolhidos por algum
tempo ao colégio; enquanto outros tantos eram pedidos ao
cacique indígena. Assim, crianças índias e mestiças, chama-
das os "órfãos da terra", reuniam-se sob cuidados jesuíticos
nas "Casas de Muchachos". Nessas casas, os muchachos
em suas atividades desdobravam-se em "recitar juntos na
igreja a ladainha e depois do meio-dia, entoado o cântico
'Salve Rainha' se dispersavam"; em cada sexta-feira "disci-
plinando-se com uma devoção até fazerem sangue" saíam
em procissão; cantavam hinos e entoavam o nome de Jesus;
tinham aulas de flauta e canto; confessavam-se de oito em
oito dias; à tarde, "saíam a caçar e a pescar", pois cada um
"precisava prover a sua subsistência, [e] se não trabalharem
não comem" (Priore, 1996, p. 17-18).
Os corpos desses órfãos tropicais andavam nus. Nóbrega
reclamava disso e exigia do Reino "mandar lá muito algo-
dão, para que mandem pano de que se vistam os meninos".
No Espírito Santo, ensinavam-se às moças indígenas "o te-
cer e o fiar" para vesti-los. O lazer acontecia no costumeiro
banho de rio; mas, por ser prazeroso demais, a eles ensina-
vam muitos jogos usados pelos meninos de Lisboa, como o
jogo das argolinhas, o canto e a dança, com flautas, gaitas,
pandeiros com soalhas, mandados buscar na Metrópole.
Muitos eventos coloridos e barulhentos eram organizados para
conquistar mais meninos, semear na sua sensibilidade um
novo saber e um novo modo de ser cristianizados.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 3 7

Batismo e procissão, dois rituais festivos: nos batis-


mos, os "indiosicos" eram enfeitados com "roupetinhas bran-
cas, com capelas de flores na cabeça" e "palmas nas mãos
(...), sinal de vitória que alcançavam contra o demônio"; nas
procissões, carregavam as cruzes, candeias acesas, e em
coro diziam Ora pro nobis, traziam grinaldas nas cabeças e
palmas nas mãos, diademas feitos de penas coloridas, ra-
mais de contas brancas ao pescoço. Tanto um ritual quanto
o outro eram acionados em momentos críticos vividos pelas
comunidades indígenas, como os dos surtos epidêmicos: "logo
os meninos dos lugares se ajuntavam com eles e toda a
gente se maravilhava de coisa tão nova". Quando partiam
"dos lugares também saíam cantando as ladainhas e alguns
dos meninos deixavam seus pais e mães e iam com eles"
(Priore, 1996, p. 21).
O corpo infantil embelezado nos rituais era, no enten-
der da Companhia, "um monte de estéreo", como preconi-
zava Santo Inácio. Para o constituir, no novo saber ocidental
cristão, era necessário impor-lhe uma pedagogia do medo
que inspirasse desapreço pela carne e pelas necessidades
físicas. Daí a exposição do corpo à "disciplina" não somente
nas procissões, mas durante toda a semana, nas sextas-fei-
ras em especial, ou depois de varrer as ruas, no tronco, com
palmatoadas, com diversos castigos físicos, privação alimen-
tar. Os que se negavam a participar do processo doutrinai
sofriam corretivos pedagógicos para que se salvassem.
As cartas jesuíticas registram o desapontamento dos
padres ao constatarem que o edênico jardim de infância
inicial era invadido pelas ervas daninhas à medida que tais
corpos se tornavam maiores:
Chegando aos anos da puberdade, começaram a apoderar-se
de si, vieram a tanta corrupção que tanto excedem agora a seus
pais em maldade, quanto antes em bondade, e com tanto maior
1 3 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

vergonha e desenfreamento se dão às borracheiras e lascívias,


quanto com maior modéstia e obediência se entregavam dantes
aos costumes cristãos e divinas instruções. (Priore, 1996, p. 23)

Diante desse corpo crescido, onde as "raízes" falavam


mais alto, os jesuítas tinham saudades da criança "meúda",
na qual podiam exercitar a figura da criança mística e proje-
tar a criança santa do Menino. Se seguiam a seus pais, por
meio de práticas gentílicas, mesmo depois de toda catequese,
era hora da Companhia de Jesus investir mais na instrução
desses corpos do que apenas em sua formação cristã. Des-
pojados da fantasia de pequenos jesusinhos, os infantis índios,
mamelucos, mestiços, estavam prontos para serem educa-
dos. No início do século XVII, a Companhia adotou um ma-
nual de bons modos, o Galatéo, abandonou o hábito do cas-
tigo físico por influência de Port Royal e inspirou-se em João
Batista de La Salle que difundira o ensino básico através de
escolas dominicais (Priore, 1996, p. 24-5).
Nas famílias brancas do Brasil Colonial, a criança-filho
ocupava uma posição instrumental como elemento secundá-
rio, posto a serviço do poder paterno (Costa, 1989, p. 153-
62). A família funcionava como um epicentro do direito do
pai, que monopolizava o interesse da sociedade, dos/as fi-
lhos/as e da mulher. Os registros da época indicam que,
muito provavelmente, o número de filhos legítimos nas famí-
lias da elite colonial era grande: nas famílias patriarcais
paulistas do século XVI este número variava entre sete e
quinze filhos; no XVII, a variação ia de sete à dezoito e, no
século XVIII, de oito a 25.
Se a taxa de natalidade era elevada, também o índice
de mortalidade era alto, bem como a quantidade de filhos
"ilegítimos". Em inventários recolhidos, um certo Antônio
Pedroso de Barros dizia no testamento: "ficam alguns bas-
tardos que não sei a verdade de quantos são meus". Em
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 3 9

outro testamento, lê-se: "uma criança que dizem ser filho


dele testador (...) que dizem ser seu filho (...) que dizem ser
meus". Pascoal Monteiro, testante, declara: "libertei um moço
da casa de Domingos Dias pelo amor de Deus, só por me
dizer o dito Domingos que era meu filho e ter ele essa pre-
sunção". E João da Costa disse: "F. diz que é meu filho; tudo
pode ser; e, se o for, ele dará mostras de si".
A criança brasileira, até o século XIX, permaneceu pri-
sioneira do papel social do filho. A família colonial dos três
primeiros séculos ignorava e subestimava essa figura, já que
seu universo cultural compunha-se do culto à propriedade,
ao passado, à religião, no qual "o pai, o homem-adulto, o
chefe da casa, condensava "a majestade". Na estrutura eco-
nômica da Colônia, a parcela dos homens livres na ordem
escravocrata era mínima, sendo que a sociedade dividia-se,
basicamente, em senhores e escravos. A luta pela proprie-
dade e pela subsistência social eram indissociáveis. A cria-
ção e a preservação do patrimônio capitalizavam a força e a
disponibilidade de todos os membros do grupo familiar, le-
vando o pai a ser considerado o único que possuía a energia
necessária para explorar escravos, produzir bastardos, des-
truir opositores e vingar atentados à moral da família da
"casa-grande".
O patriarca e seu poder, prestígio e honorabilidade
não deveriam ser tocados, sob pena de perder-se a vitalida-
de doméstica. Descritas por cronistas e historiadores da épo-
ca, ações da autoridade paterna enclausuravam as filhas-
mulheres desobedientes em casas de recolhimento, onde
nenhuma autoridade civil podia entrar para instaurar lá um
processo. Um pai matara com uma faca a filha que vira
agitando um lenço no ar "tomando o manejo por sinal feito a
qualquer namorado". Outro, com ciúme do filho mais novo
por causa de uma escrava, "obrigou o filho mais velho a
matar o próprio irmão" (Costa, 1989, p. 156).
1 4 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

Os castigos físicos eram severos: espancamentos com


palmatórias, varas de marmelo, às vezes contendo alfinetes
na ponta, cipós, galhos de goiabeira e outros objetos puniti-
vos ensinavam os filhos que a escrita obediência era o único
modo de escapar às punições. Em Infância, Graciliano Ra-
mos (1994) conta que, aos quatro ou cinco anos, suas "pri-
meiras relações com a justiça" foram dolorosas. Sua mãe o
havia surrado com uma corda nodosa que pintara suas cos-
tas de manchas sangrentas, deixando-lhe nas costelas "gran-
des lanhos vermelhos", nos quais depois a avó colocara pa-
nos molhados com água de sal; e o pai, dando pela falta de
um cinturão, acusara-o:

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-


me num canto, (...). Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas
era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido,
sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos,
atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
(...) Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que
tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado
me achava. Situações desse gênero constituíram as maiores tor-
turas da minha infância, e as conseqüências delas me acompa-
nharam. O homem não me perguntava se eu tinha guardado a
miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente.
Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se
esgoelou de semelhante maneira. Onde estava o cinturão? Hoje
não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte,
desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece,
uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível
sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
(...) Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço,
açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes:
comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta
de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as
tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram menos
um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 4 1

sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-


me, num desespero. (...) Solto, fui enroscar-me perto dos cai-
xões, cocar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e
embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi
meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo
se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a
que desprendera a fivela quando se deitara. (...) Sozinho, vi-o de
novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, mi-
údo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas
que trabalhavam na telha negra. Foi esse o primeiro contato
que tive com a justiça. (Ramos, 1994, p. 29-32)

A condensação operada na figura do patriarca fazia


com que mulheres e crianças vissem nele o patrão e o prote-
tor exclusivo, de um modo que "fora da casa não havia
salvação". A imagem projetada pelo meio social da Colônia
era, tal como as das mulheres e crianças, de fraqueza diante
do senhoriato, e nenhuma outra instituição social propu-
nha-se a abrigar os/as transgressores/as. As "Ordenações
do Reino" concediam ao pai o direito de castigar os/as escra-
vos/as, filhos/as e mulheres, "emendando-lhes as más ma-
nhas".

Junto à ordem jurídica vigente, esse pai-proprietário


tinha, no regime sucessório de bens, o mecanismo que asse-
gurava suas riquezas e sua dominação. A instituição do
"morgadio" determinava que o primogênito homem, o mor-
gado, fosse o único herdeiro da propriedade. Por meio desse
dispositivo legal, as riquezas continuavam sendo indivisas; o
morgado herdava e era autorizado a acumular todos os privi-
légios do pai; as mulheres ficavam excluídas do quadro de
herança e decisões familiares. Essa situação persistiu até o
século XIX, quando a lei de 6 de outubro de 1835 extinguiu
o morgadio, fixando a data da ruptura do pater famílias e
de sua dominação - ao menos jurídica - das mulheres e das
crianças.
1 4 2 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

A posição privilegiada do pai também exercia-se na


ordem dos saberes, já que o pai sábio e eficiente era aquele
que conseguia reeditar, com a maior fidelidade possível, as
fórmulas de dominação de seus antecessores. A solidez ma-
terial da propriedade dependia desse conhecimento, oriundo
da tradição oral e da experiência transmitida. O velho era
muito mais importante do que o novo; o atraso cultural do
país não permitia a circulação de inovações técnicas; as in-
formações úteis tinham sua fonte exclusiva no passado; a
vida em família era uma permanente escuta do que passou
e o chefe da casa consistia no tradutor e porta-voz das lições
dos ancestrais. Para isso, seus interlocutores deviam estar à
altura do que ele, agora, encarregava-se de transmitir: sem
ter vivido o bastante para entender o passado e sem respon-
sabilidade suficiente para respeitar a experiência, o "párvulo"
não merecia consideração.
Do ponto de vista da propriedade, a criança não inte-
ressava e sim o filho, homem e adulto, com capacidade para
herdar os bens, levar adiante o trabalho e enriquecer a famí-
lia. A criança tinha uma vida paralela à economia domésti-
ca, donde o fenômeno da "adultização" precoce da infância,
registrada por Freyre (1968), em Sobrados e mucambos.
Caso chegasse à puberdade, os filhos-homens eram levados
a assumir a postura dos adultos, adquirindo então o direito a
uma maior participação familiar.
Tanto a organização socioeconômica familiar quanto o
saber do passado eram cimentados pela visão religiosa da
cultura. Segundo o catolicismo colonial brasileiro, o filho-
criança era o resultado inevitável da concupiscência humana
e, como tal, desprezado. Sua vida marcava o controle religio-
so sobre os desregramentos da carne e, assim como o pró-
prio casamento, representava a incapacidade do homem em
renunciar aos prazeres mundanos. Já que o catolicismo não
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 4 3

podia coagir todo adulto ao celibato, o casamento era tido


como um "mal menor", e a criança era mostrada e aceita
como prova da obrigação do adulto em propagar "o gênero
humano". A Igreja somente interessava o adulto, capaz de
responsabilizar-se diante de Deus por suas boas ou más obras.
Como a imortalidade era o foco principal da catequese e dos
cuidados religiosos, o que importava não era a vida durante
a existência, mas a vida após a morte, pouco valendo a
natureza biológica ou a formação emocional da criança, as
quais não influíam em sua salvação, e sim sua função espiri-
tual.
A criança só foi relevante para o catolicismo enquanto
signo de pureza e inocência. Neste caso, o modelo de per-
feição espiritual que ela encarnava servia de exemplo e cor-
reção à alma pecadora do homem e mais ainda da mulher.
O "anjinho" era venerado e circulava em todos os recantos
culturais da Colônia. Nas festas religiosas, meninos e meni-
nas desfilavam vestidos/as de anjos, reativando periodica-
mente esta imagem de infância. Os missionários protestan-
tes Kidder e Fletcher, em 1835, descrevem uma procissão
da Quarta-Feira de Cinzas, que partia da Igreja da Misericór-
dia, através das principais ruas do Rio de Janeiro, até o
Convento de Santo Antônio. Nessa procissão aparecem "as
pequerruchas":

Antes de cada grupo de imagens vem marchando um "anjinho",


conduzido por um padre, e espalhando folhas e pétalas de rosa
pelo caminho. (...) Como o leitor pode estar ansioso em conhe-
cer que espécie de anjo é esse que toma parte no espetáculo,
devo explicar que há uma classe de anjo? criada para a ocasião,
e que agem sob a tutela dos santos exibidos. Pequerruchas de
oito a dez anos são geralmente escolhidas para servirem de
anjinhos, sendo para isso preparadas com as mais fantásticas
vestimentas. O principal objetivo destas vestimentas é exibirem
1 4 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

um corpete e duas asas; a saia e as mangas são de grandes


dimensões, utilizando-se para isso rodas e armações de vime,
nas quais flutuam sedas, gazes, fitas, rendas, lantejoulas e plu-
mas de diversas cores. Na sua cabeça colocam uma espécie de
tiara. Seus cabelos caem em anéis pelo rosto e pelo pescoço, e
o ar triunfal com que marcham mostra como plenamente com-
preendem a honra de ser o principal objeto de admiração (Lei-
te, 1997, p. 39-40).

Foi sobretudo no culto à criança morta que a força da


representação do "anjinho" manifestou-se com mais limpidez.
A criança morta mereceu devoção especial, de um modo tal
que o inglês Luccock escandalizou-se diante dessa reação à
morte, relatando, chocado, uma dessas cenas:

Em uma dessas ocasiões foi ouvida uma mãe que assim se expri-
mia: 'O como estou feliz! O como estou feliz, pois que morreu o
último de meus filhos! Que feliz que estou! Quando eu morrer e
chegar diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar,
pois que ali estarão cinco criancinhas a me rodear e a puxar-me
pela saia e exclamando: Entra Mamãe, entra! Ó que feliz que
sou'! repetiu ainda, rindo a grande. Se isso fosse um exemplo
isolado de sentimentos maternais estranhos, poderia ainda ser
considerado efeito de um desvio mental passageiro; o caso, po-
rém, é que a satisfação em tais momentos é geral demais, e por
demais ostensiva, para que deixe lugar à desculpa dessa espé-
cie. Não posso ter uma opinião boa sobre o futuro de um Estado
onde assim se dissolvem os mais fortes laços dos seres deste
mundo (Costa, 1989, p. 160).

O norte-americano Burton confirma a difusão desse


hábito: "um anjinho ou inocente, criança muito jovem, mor-
re sem ser lamentada pois sua felicidade futura é certa".
Seidler e Ewbank fizeram observações semelhantes. Luis
Edmundo oferece um testemunho dessa realidade, o da bati-
da dos sinos: no extenso repertório de batidas dos sinos colo-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 4 5

niais, as que anunciavam a morte de crianças tinham a se-


guinte versão na língua falada: "Feliz anjinho/ Que vai p'ro
céu// Feliz anjinho/ Que vai p'ro céu" (Costa, 1989, p.
160-1). Freyre (1969), em Casa grande e senzala, apresen-
ta a hipótese desse tipo de representação haver sido forjada
pelos jesuítas: diante do número alarmante de crianças índi-
as mortas no século XVI, eles teriam disseminado, para con-
solo das mães e interesses catequéticos, que era "uma felici-
dade" os pequeninos irem para o céu. De todo modo, sabe-
se que o costume de representar, através da pintura, a crian-
ça como "criatura angelical", figura sagrada, ou alegoria da
alma do adulto, data do catolicismo medieval.
Durante todo o período colonial brasileiro, a represen-
tação social e religiosa da criança monopolizou "o sentido"
de sua vida. Ela foi considerada um "adulto incompetente",
um "filho incapaz", mas, um "anjinho feliz". Diferentes dos
adultos, portanto, mas sem que a condição infantil moderna
de etapa biológico-moral fosse tida como matriz físico-emo-
cional do adulto. Entre o adulto e a criança as ligações exis-
tentes eram as da propriedade e da religião somente; fora
disto, nenhuma relação, sendo a descontinuidade e a
alteridade radicais. Era como se "o infantil" fosse dotado de
uma "segunda natureza humana", de tipo imprecisa,
expectante, em estado larvar até o despertar da puberdade.
Os elos que uniriam a cadeia das gerações só foram
criados quando a família colonial pôde dispor de outra repre-
sentação da criança pelas noções de evolução, diferencia-
ção, gradação, heterogeneidade, continuidade. Viu então na
criança e no adulto "o mesmo" e "o outro", e "a criança"
passou a determinar a função e o valor do filho e da filha.
Tal redistribuição deveu-se, em grande parte, à reação dos
higienistas em face da taxa de mortalidade das crianças: por
ela, a criança morta deixou de ser vetor da esperança religio-
sa dos pais para tornar-se um libelo contra o sistema familiar
por eles mantido.
1 4 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

MULHERES, ANCIADS, EFEMINADDS

Analisando os trajes das crianças européias, Aries (1981,


p. 69-81; 1986, p. 13-4) afirmou que, a partir do século
XVI, nas classes nobres e burguesas, estas começam a ser
dotadas de um modo próprio de se vestir: primeiramente, os
meninos - e somente eles, já que as meninas, exceto em
alguns detalhes, continuaram por muito tempo ainda sendo
vestidas como as senhoras -, assim como os anciãos, traja-
ram um vestido antiquado, uma espécie de sotaina abotoa-
da na frente, tal como a toga dos magistrados da Idade
Média, enquanto os homens adultos já haviam adotado o
traje curto. A partir do século XVII, os meninos passaram a
usar um traje que, cada vez, parecia-se mais com o das
mulheres - saia, vestido com gola de rendas e avental. Para
Aries, estava ocorrendo um processo de efeminação do me-
nino pequeno:
Essa efeminação do menino pequeno, observado já em meados
do século XVI, de início foi uma coisa nova, apenas indicada por
alguns poucos traços. Por exemplo, no começo, a parte de cima
da roupa do menino conservava as características do traje mas-
culino. Mas logo o menino pequeno recebeu a gola de rendas
das meninas, que era exatamente igual à das senhoras. Tornou-
se impossível distinguir um menino de uma menina antes dos
quatro ou cinco anos, e esse hábito se fixou de maneira definiti-
va durante cerca de dois séculos. (...) o hábito de efeminar os
meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial (Aries,
1981, p. 78).

O historiador diz que esse fato é bastante curioso por-


que, à medida que a sensibilidade para com a infância faz-
se mais intensa e íntima, esta mesma sensibilidade ressalta
os elementos de sua "ternura" e "fragilidade". Como mos-
trar, indaga ele, essa ternura para com o infantil, senão com
uma assimilação deste ao feminino? O surgimento da infân-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. "| 4 "7

cia parece ter distinguido menos as meninas dos adultos do


que os meninos: "Vêem-se, pois, em retratos do século XVII,
meninos com traços marcados, sem sinais de efeminamento,
vestidos do mesmo modo que as meninas". O historiador
indaga: "O que será que pensam disso os psicanalistas com
sentido da história"? e formula a seguinte hipótese: "Possi-
velmente, esta 'moda do vestido' responde a uma mais forte
oposição à homossexualidade masculina da época" (Aries,
1986, p. 13).
Lynd (s.d., p. 11-2) afirma que à medida que as crian-
ças inglesas cresciam, começavam a usar uma espécie de
camisola, comprida até os pés, que era igual para os meni-
nos e as meninas; por baixo, usavam uma espécie de túnica
curta, em geral feita de tricô. Aos seis anos, os meninos
passavam a usar chausses, ou calças compridas e justas,
com os pés numa só peça. Usavam também uma camisa e
uma túnica, ou tabardo, com um cinto no qual penduravam
o canivete e a bolsa. Quando fazia frio, vestiam por cima
disso um capote, e ainda um capuz, com uma ponta nas
costas e bastante fazenda, em torno do pescoço, para cobrir
os ombros. Usavam luvas e sapatos sem salto, feitos de pano
ou de couro; mas, isso não era para os pobres: as crianças
pobres andavam descalças. "As meninas tinham menos sor-
te do que os meninos", diz Lynd, pois passavam a vida intei-
ra metidas em vestidos compridos, ou bliauts, que chega-
vam até os pés e sob os quais usavam saias também longas.
No Brasil do início do século XIX é registrado no "livro
de viagem" do inglês Luccock que, em virtude do "clima tão
quente", "não se exige do desvelo das mães que se ocupe
desde cedo com as roupas das crianças", já que tanto meni-
nos como meninas "vivem a trançar nus pela casa, até que
atinjam cerca dos cinco anos", e durante três ou quatro anos
ainda, após essa idade, "nada mais usam do que a roupa de
1 4 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

baixo". Neste estado só as vêem as pessoas de casa, ou os


amigos íntimos, pois, quando, em raras ocasiões, as crian-
ças têm que ir à Igreja ou em visitas "vestem-nas com toda a
elegância rígida de uma época que já passou", não existindo
diferença, "salvo nas dimensões, entre os trajes de um rapaz
que faz pouco adquiriu o garbo viril e os de seu pai, entre os
de uma menina e os de sua majestosa mãe" (Leite, 1997,
p. 28).
As crianças européias eram pensadas em termos hie-
rárquicos e encontravam-se no nível mais baixo da escala
social: se fosse nobre, o mais importante era seu sexo e,
para governar, dizia-se, "pior do que uma mulher somente
uma criança" (Tucker, 1995, p. 257-8). Na nobreza, bem
como nas outras classes, a infância masculina é a primeira
que se especifica como tal, sendo também a primeira desti-
natária dos colégios, de modo que a imensa maioria das
meninas não tinha infância nem juventude: desde cedo, eram
preparadas para o casamento, ou contratadas como servi-
çais, às vezes, entre os cinco e sete anos de idade; a escola
das meninas era o lar, o próprio ou o alheio, onde serviam
em troca de alimentação e de uma ajuda para o dote (cf.
Vinyoles y Vidal, 1986, p. 99, Varela, 1986, p. 169).
Em relação à família, Aries (1981, p. 212-3) examina
de que modo, durante o século XIII, as novas formas de
economia monetária, a extensão da fortuna mobiliária, a
freqüência das transações, os progressos da autoridade do
Príncipe - quer fosse um rei capetíngio ou o chefe de um
grande principado -, bem como o incremento da segurança
pública, provocaram uma independência da família conju-
gai, estreitando as solidariedades da linhagem e o abandono
das indivisões patrimoniais. Contudo, a nobreza não retornou
ao mesmo tipo de família do século X, onde havia uma
indivisão dos bens dos dois cônjuges, cada um gerindo seus
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA. "| ^ g

bens hereditários; ao contrário, a autoridade do pai foi


fortalecida e a "capacidade da mulher entrou em declínio",
com a introdução do regime da comunhão de bens do casal,
administrados pelo homem, e com a adoção do direito de
primogenitura, que fortalecia o grupo formado pelo pai e os
filhos-homens. Séculos mais tarde, quando "o sentimento de
infância" já se evidencia nos retratos, vêem-se as mulheres,
meninas e crianças pequenas representadas de um lado da
tela, enquanto os homens e meninos maiores de outro, tal
como nas pinturas, ex-votos, calendários, nos jazigos fune-
rários.

PLEBEUS, CAMPONESES,
ESCRAVOS NEGROS, AMAS, CRIADAS

A dependência das crianças em relação aos adultos -


homens fortes e racionais -, manifestava-se também nos
jogos e brincadeiras. Até princípios do século XVII, não exis-
tia separação entre as brincadeiras e os jogos reservados às
crianças e aqueles dos adultos. Quando tal especificação co-
meçou a ocorrer - pela "constituição definitiva da idéia de
nobreza" -, de um lado, foram organizados os jogos dos
adultos e dos fidalgos e, do outro, os jogos das crianças e dos
plebeus. Alguns jogos de salão - os mais simples - ficaram
restritos às crianças e ao povo, às "pessoas ignorantes e
grosseiras"; enquanto aqueles que dependiam "de um pouco
mais do espírito", como o jogo das rimas, eram utilizados
apenas pelos "cavalheiros e damas de alta dignidade" (Aries,
1981, p. 115-6).
Brincadeiras e jogos de crianças e brincadeiras e jogos
dos adultos das classes populares foi uma equivalência que
se constituiu também em relação aos jogos de cavalaria e
aos de boliche e críquete, abandonados pela nobreza e pela
1 5 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

burguesia e passados aos "adultos dos campos e às crian-


ças"; aos jogos de azar, proibidos às crianças, por seu perigo
moral - "uma paixão perigosa, um vício grave" -; à dança -
reprovada pela Igreja - por sua "indecência"; aos disfarces e
fantasias - abandonados, a partir do século XVIII, pela alta
sociedade - e reservados às crianças, enquanto o carnaval
tornou-se popular - "e atravessou o oceano, impondo-se aos
escravos negros da América" (ib., p. 108, p. 124). Esse
rompimento da antiga comunidade dos jogos - ao mesmo
tempo entre as crianças e os adultos e entre os plebeus e a
aristocracia - permite verificar a distribuição regional entre
o sentimento de infância e a classe social, bem como entre
infância e raça, exemplificada pelo carnaval.
Também os contos de fadas eram narrados, indistinta-
mente, às crianças e aos adultos, particularmente às damas
de Versalhes, ou, como se dizia na França da época: "com
os quais elas são mimadas" (ib., p. 119). Na segunda meta-
de do século XVII, a exemplo dos jogos e brincadeiras, co-
meçou-se a considerar esses contos "simples demais". As
recitações orais "tradicionais e ingênuas" transformaram-se
em um gênero literário da moda, por meio de publicações
reservadas às crianças - com os contos de Perrault -, e em
outro diferente de "publicações mais sérias, destinadas aos
adultos, e das quais se excluíam as crianças e o povo". Co-
meçou-se a fixar a tradição de dizer acerca de certos contos:
- Aqueles que me contaram "quando eu era criança", ou, -
O conto "que minha ama contava" (ib., p. 120). Jogos,
brincadeiras e contos, desde então "infantis", serão transfor-
mados por um sentido moralizador e estrategicamente utili-
zados no processo de escolarização, inicialmente pelos jesuí-
tas e depois pela pedagogia ativa.
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 5 1

Aqui começa a dizer algo específico sobre a criança enquanto aquele que escapa a norma.

A LOUCURA E INFÂNCIA

Nas histórias da loucura e da doença, realizadas por


Foucault (1987; 1991b,e), encontram-se alguns elementos
que ajudam a montar esse primeiro conjunto estratégico de
subordinação da identidade infantil - seja essa física, racio-
nal, social, ou o nome que se lhe puder dar -, estabelecidos
historicamente pela sociedade ocidental e expressos nas re-
lações entre infância, loucura e doença e criança, louco e
doente. Em História da loucura, a intersecção entre a crian-
ça e o louco aparece pela primeira vez com a figura da
criança proibida e maldita, encerrada numa barquinha e en-
tregue à errância das águas que a levam para um outro
mundo (Foucault, 1991e, p. 12): aproximados pela água e
pela navegação, como passageiros, diferenciam-se no mo-
mento em que a criança retorna à verdade, enquanto para o
louco, prisioneiro perpétuo da passagem renascentista em
busca de sua sanidade, este momento não existia.
O que interessa destacar é a homologia derivada de tal
simbolismo, qual seja, a que possibilita incluir as duas identi-
dades na história do Diferente: como o louco, a criança é o
outro em relação com os demais; o outro, no sentido da
exceção, entre os outros. Entre o louco, a criança e o sujeito
que pronuncia - É um louco./ É uma criança. - abriu-se
uma distância: aquela que mantém longe os/as que esca-
pam à regra e à norma, constituindo a legião das identida-
des rechaçadas, desordenadas, caóticas, impensadas da cul-
tura a serem excluídas, especificadas, distribuídas em outras
regiões. Para tais operações, há necessidade de incluir essas
identidades na enumeração, classificação, registros, estudos,
disciplinas, ciências do indeterminado desse outro: mecanis-
mos que reduzem e dissolvem suas alteridades no "mingau"
doce e fluido da domesticação do que é a identidade do
Mesmo.
1 5 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

É possível encontrar, em História da loucura, outros


argumentos que possibilitam aproximar os dois conjuntos - a
loucura e a infância, o louco e a criança -, como: 1) a condi-
ção de que ambos, antes das práticas de internamente, inte-
graram as figuras fáceis, alegres, cômicas e ligeiras da
desrazão; 2) dizem respeito, não tanto à verdade e ao mun-
do, quanto ao homem/à mulher e à verdade de si mesmo/a
que ele/ela acredita distinguir; 3) transformam-se em sabe-
res e por isto fascinam; 4) configuram sutis relacionamentos
que o sujeito ocidental mantém consigo mesmo; 5) foram
criados pelo universo inteiramente moral do final da Idade
Média, no qual o homem/a mulher pôde inventar as irregu-
laridades de sua conduta; 6) fazem parte das medidas da
razão e do trabalho da verdade, produzindo tanto o Asilo
quanto a Escola para fazer o Elogio da Razão e da Ordem; 7)
foram objetos das práticas de internamento do século XVII -
medida econômica e de saneamento, precaução social, nova
sensibilidade que procede a escolhas a fim de banir, preocu-
pação burguesa de pôr a cidade e o mundo da miséria em
ordem, dever de caridade, necessidade de excluir, assunto
de "polícia", religioso e moral -, que os/as integram em
seus estatutos éticos e em suas "casas hospitaleiras", para
que tanto o/a louco/a quanto a criança nunca mais entras-
sem em suas barcas/cestas fugidias por estarem retidos/as
e seguros/as (cf. Foucault, 1991e, p. 20-78).
No mundo correcional, inicialmente, as crianças e os/
as loucos/as ficaram juntos, formando, com todos "os ou-
tros", uma companhia, uma cumplicidade e um parentesco:
inocentes malformados e disformes, crianças da correição,
filhos ingratos, filhos pródigos, moças incorrigíveis, velhas
infantis, velhas senis ou enfermas, mulheres caducas, loucas
violentas, prostitutas, epilépticas, alienados e loucos, imbe-
cis, insanos, pais dissipadores, pobres bons, grandes e pe-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 5 3

quenos paralíticos, doentes venéreos, convalescentes,


blasfemadores, mendigos, preguiçosos, intrujões e libertinos,
doentes e criminosos, debochados, espíritos arruinados, ve-
lhos indigentes, crianças (Foucault, 1991e, p. 80, p. 82-3).
Nesta Pátria da loucura moderna - fato positivamente uni-
forme de organização, estranho domínio fechado de experi-
ência silenciosa e original, exílio uniforme do Desatino, flagelo
da culpabilidade, forma mista de castigo e remédio -, en-
contraram-se todas/os as/os desonradas/os da Propriedade,
da Razão, da Raça, da Família, da Moral, da Norma.

Mais tarde, a quadriculação do poder disciplinar sofistica


a partição dessa "Companhia", alterando a consciência da
loucura e da infância, fazendo evoluir e progredir as institui-
ções que vão do Hospital Geral à Prisão, ao Hospital Psiqui-
átrico, ao Quartel, à Clínica, à Escola. Em Foucault (1991e),
pode-se encontrar de que modo, tanto nas primeiras ex-
periências uniformes da loucura quanto nas novas divisões,
estabelece-se um isomorfismo entre o louco e a criança, a
loucura e a infância, do qual são exemplos:
1) As categorias da jurisprudência de Zacchias, do século
XVII, acerca da fatuitas, isto é da imbecilidade, que pres-
sagia a classificação de Esquirol. No primeiro posto de
uma ordem decrescente, Zacchias designa "os parvos" que
podem testemunhar, testamentar e casar-se; porém, não
entrar para as ordens nem administrar, "pois são como
crianças que se aproximam da puberdade". A seguir, apa-
recem "os imbecis propriamente ditos" - fatui -, aos quais
não se lhes pode confiar responsabilidade alguma, pois
"seus espíritos estão abaixo da idade da razão, como as
crianças de menos de sete anos" (ib., p. 130).
1 5 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

2) O grupo de conceitos aparentados com a demência, que


permanecia abstrata e negativa, o qual incluía a estupi-
dez, a imbecilidade, a idiotia, a patetice. Na prática, de-
mência e imbecilidade eram considerados ainda sinôni-
mos: sob o nome de Morosis, Willis designava tanto a
demência adquirida quanto "a estupidez que se pode ob-
servar nas crianças desde os primeiros anos de vida"; sen-
do que, nos dois casos, tratava-se de "uma afecção que
envolve ao mesmo tempo a memória, a imaginação e o
juízo". No século XVIII, a distinção entre as idades já esta-
va firmada e a demência era tida como uma espécie de
incapacidade de julgar e raciocinar de modo sadio; tendo
recebido diferentes nomes, conforme as diferenças entre
as idades em que se manifestava: na infância, era "nor-
malmente chamada de 'besteira', 'patetice'"; chamava-se
"imbecilidade" quando se estendia "pela ou surgia na ida-
de da razão"; e quando aparecia na velhice, era conhecida
pelo nome de "disparate" ou por "condição infantil" (ib.,
p. 259-60).
3) Quando o pensamento médico e a prática do internamento
cruzaram-se, ao final do século XVIII, havia chegado a
hora da sociedade burguesa sentir-se mais inocente diante
da miséria e também de reconhecer sua responsabilidade
diante da loucura, trabalhando para delas proteger o ho-
mem privado. Tuke e Pinei definiram o arquétipo do asilo
moderno; Brissot traçou o rigor da geometria de uma
correição perfeita, a qual era, a um só tempo, arquitetural
e moral; Musquinet estabeleceu as relações da consciência
burguesa entre o trabalho, o lucro e a virtude; e o interno
passou então a ser um único produto e dois sistemas de
ganho: controle moral para si e lucro econômico para os
outros. A Revolução Francesa anunciou o extenuamento
da internação, e a alienação começou a ser um problema
HISTÓRIAS DE GDVERNO: CRIANÇAS E CIA. 1 5 5

em si e para si, diferenciando-se a loucura internada da


loucura tratada, a loucura aproximada do desatino e a
loucura aproximada da doença: em suma, foi aqui o pri-
meiro momento da alienação mental no sentido moderno
da palavra. A assistência social, como manifestação de
uma piedade natural, foi exigida para os loucos, que a
mereciam como todos aqueles que não podiam prover as
próprias necessidades. Foucault cita um excerto da Instru-
ção impressa por ordem e às custas do governo a respei-
to do modo de governar e tratar os insensatos, de 1785,
a qual afirma: "É aos seres mais fracos e infelizes que a
sociedade deve a proteção mais acentuada e os maiores
cuidados; assim, as crianças e os insensatos sempre foram
objeto da solicitude pública". No entanto - escreveu
Foucault -, "a compaixão naturalmente sentida pelas
crianças" foi "uma atração positiva", enquanto para os/as
loucos/as, a piedade foi compensada e eliminada "pelo
horror" que se sentia por "essa existência estranha", vota-
da às suas violências e a seus furores (Foucault, 1991e, p.
424-8, p. 429).

4) Com o nascimento do asilo moderno e o início do "traba-


lho do olhar", o Medo surgiu como personagem central no
tratamento dos/as loucos/as, para constituir a autocon-
tenção. Vigilância e julgamento produziam a loucura no
Retiro dos quakers (ib., p. 81-2), dominado pela autori-
dade de Tuker, o qual, a partir de agora, representava os
que estão "do outro lado", com todo rigor de sua razão
desarmada de instrumentos de coação e armada apenas
do olhar e da linguagem (ib., p. 476-503). Louco e não-
louco defrontavam-se naquilo que interessa a este estudo:
a loucura representava uma "Idade Menor", um aspecto
de si mesma sem direito à autonomia, e que só pode viver
enxertada sobre o mundo da razão. "A loucura é infân-
1 5 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

cia", disse então Foucault, pois tudo estava organizado no


asilo para que os alienados fossem diminuídos, menorizados.
Ali, eram considerados "como crianças com um excesso
de força e que a utilizam de forma perigosa". Por isso,
necessitavam de castigos e de recompensas constantes e
presentes: "tudo aquilo que é um pouco distanciado não
tem efeito sobre eles". Era preciso aplicar "um novo sis-
tema de educação, dar um novo curso a suas idéias,
subjugá-los de início, encorajá-los a seguir, aplicá-los no
trabalho", que deve lhes parecer agradável através de meios
atraentes. O estado de menoridade já existia na situação
jurídica para proteger os sujeitos de direito, mas não era
um modo concreto de relações, um modo de soberania,
um estilo de existência como passa a ser para os loucos e
seus guardiães. Instituindo-se como uma "grande família",
a comunidade asilar, liberta das correntes, entrega o lou-
co, como sujeito psicológico, à autoridade e ao prestígio
do homem de razão, "que para ele assumia a figura con-
creta do adulto, isto é, ao mesmo tempo de dominação e
de destinação" (ib., 483). Desnecessário é lembrar que o
dispositivo de infantilidade, aqui operando no asilo, con-
servará para o louco, por um longo tempo, a razão nos
traços do Pai.
Foucault dirá, mais adiante em seu livro, que "a loucu-
ra é uma espécie de infância cronológica e social, psicológi-
ca e orgânica do homem" e acrescentará a constatação de
Pinei: "Quanta analogia entre a arte de dirigir os alienados e
a de educar os jovens!" (ib., p. 512). Sem dúvida, Rousseau
já caminhava, talvez com Emílio, nas imediações campes-
tres deste Retiro. Afinal de contas, se a infância possui mes-
mo correlações com a loucura, as "educações" de que ambas
se ocupam podem ser mais "nobres" do que isso?
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 5 "7

DPENTE, PRIMITIVO, CRIANÇA

Em Doença mental e psicologia (Foucault, 1991b), a


relação entre infância e doença surge na primeira parte do
livro em que Foucault analisa a descrição puramente negati-
va que a Psicologia do século XIX fazia da doença mental.
Sublinha então o caráter positivo das atividades de substitui-
ção que vêm preencher as funções abolidas pela evolução
normal da doença: na história da libido, tal como proposta
por Freud, por exemplo, "a psicanálise acreditou poder es-
crever uma psicologia da criança, fazendo uma patologia do
adulto".
Para a criança da Psicanálise - que, para Foucault, é o
adulto patologizado -, os primeiros objetos de alimentação,
a organização do sistema de defesa agressiva, o reconheci-
mento de si no espelho, a escolha objetai que deve implicar
uma fixação heterossexual, pela identificação com o pai/a
mãe do mesmo sexo, constituem estágios libidinais que for-
mam uma estrutura patológica virtual. Examina o conceito
de "força psíquica" de Janet (Foucault ib., p. 29-32) e afir-
ma que tanto essa quanto a libido de Freud criam dois mitos:
o primeiro, de tipo científico, diz respeito a uma certa subs-
tância psicológica; o segundo, de teor ético, estabelece iden-
tidade entre o doente, o primitivo e a criança - "mito atra-
vés do qual se tranqüiliza a consciência escandalizada diante
da doença mental e consolida-se a consciência presa a seus
preconceitos culturais".
O primeiro mito é logo abandonado, porém o segundo
- "porque justifica mais do que explica" - "permanece vivo
ainda" (ib., p. 27-9). Foucault indaga sobre o sentido que
possa existir em restituir uma identidade entre a personali-
dade mórbida do doente e a normal da criança ou do primi-
tivo. Seria inútil, do ponto de vista explicativo, dizer que o
1 5 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

homem, adoecendo, volta a ser uma criança, mas do ponto


de vista descritivo "é exato dizer que o doente manifesta, na
sua personalidade mórbida, condutas segmentárias, análo-
gas às de uma idade anterior ou de uma outra cultura", já
que a doença descobre e privilegia condutas normalmente
integradas.
Discute ainda Foucault (1991b, p. 39; 41-53; 74), com
base em alguns casos clínicos relatados por Freud, as ques-
tões da fabulação infantil, das utilidades terapêuticas dos
processos infantis de metamorfose do real, do desvaneci-
mento das condutas adultas diante das condutas infantis,
simples e inadaptadas, para perguntar: "Que sentido há em
reencontrar os fantasmas terrificantes da vida infantil, em
substituir os distúrbios maiores de uma afetividade ainda
mal regulada pelas formas atuais de atividade? Por que fugir
do presente, se é para reencontrar tipos de comportamento
inadaptados"?
Na segunda parte do livro, Foucault diz que a doença
mental caracteriza-se, na evolução, por seu aspecto regressi-
vo, ocasionando condutas infantis ou formas arcaicas da per-
sonalidade. Embora isso ocorra, o evolucionismo engana-se
ao ver nesses retornos a própria essência do patológico e sua
origem real, já que a regressão à infância manifesta-se nas
neuroses somente como um efeito. A conduta infantil é sim,
para o doente, um refúgio, em função de que a sociedade
instaura entre o passado e o presente do indivíduo "uma
margem que não se pode nem deve transpor". Nossa cultura
teria, para Foucault, bem-delineada essa marca: a de não
integrar o passado, a de não forçá-lo a desaparecer.
Quando Rousseau e Pestalozzi preocuparam-se em cons-
tituir para as crianças um mundo que estivesse à sua altura,
o século XVIII permitiu que se formasse ao redor delas "um
meio irreal, abstrato e arcaico, sem relação com o mundo
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 5 9

adulto" (ib., p. 91). Desde então, o que fazem as regras


pedagógicas é buscar este objetivo: preservar as crianças
dos conflitos dos adultos, acentuando "a distância que sepa-
ra, para um homem, sua vida de criança de sua vida de
homem feito". Para poupar às crianças os conflitos, a peda-
gogia contemporânea as expõe a um conflito ainda maior:
"à contradição entre sua infância e sua vida real".
Caso se acrescente que, em suas instituições pedagó-
gicas, uma cultura não projeta diretamente a sua realidade,
mas "a reflete indiretamente através dos mitos, que a per-
doam, justificam-na e idealizam-na numa coerência quiméri-
ca", e também caso se acrescente que, numa pedagogia,
uma sociedade sonha com sua Idade de Ouro - "lembrem-se
daquelas de Platão, Rousseau, da instituição republicana de
Durkheim, do naturalismo pedagógico da República de
Weimar" -, pode-se compreender que "as fixações ou re-
gressões patológicas" só são possíveis numa cultura na qual
as formas sociais multiplicam-se para impedir que se liquide
o passado e não se possa assimilá-lo ao conteúdo atual da
experiência.
Da perspectiva dessa história da infantilidade, pode-se
dizer que a equivalência do doente ao primitivo e à criança,
sob a forma regressiva, dá-se pelo funcionamento ininterrupto
da infantilidade que nos faz buscar na infância a natureza
neurótica do adulto e mesmo a substância seminal de nosso
Eu, o qual se manifestaria naquelas ocorrências em que
estamos fragilizados/as, carentes, dependentes. Para Foucault,
as "neuroses de regressão não manifestam a natureza neuró-
tica da infância, mas denunciam o caráter arcaizante das
instituições que lhe concernem", o que serviria de paisagem
a essas formas patológicas seria o conflito, "no seio de uma
sociedade, entre as formas de educação da criança, onde ela
esconde seus sonhos, e as condições que [esta sociedade] faz
aos adultos, onde se lêem pelo contrário seu presente real, e
suas misérias" (ib., p. 92).
1 6Q HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Em O nascimento da clínica, Foucault (1987) inicia o


capítulo V, sobre A lição dos hospitais (ib., p. 71-97), falan-
do da "reforma da pedagogia", nas "cadeiras de medicina
clínica", que modifica o modo de ensinar e dizer, e que se
torna maneira de aprender e de ver. Mesmo que seja em
apenas um parágrafo, Foucault escreve alguma coisa acerca
da pedagogia como "sistema das normas de formação", o
qual, no final do século XVIII, articulava-se diretamente com
a teoria da representação e do encadeamento das idéias.
Vejamos, por partes, alguns de seus argumentos até que ele
retome a questão do passado infantil e do presente do ho-
mem, e aqui - na única passagem relativa à infância deste
livro - atribua ao "olhar" clínico sobre as doenças e a morte,
forjado nos hospitais, a possibilidade do homem reconcili-
ar-se com sua infância: "O que permite ao homem reconci-
liar-se com a infância e alcançar o permanente nascimento
da verdade é esta ingenuidade clara, distante e aberta do
olhar" (ib., p.72).
Antes disso, a infância e a juventude das coisas e dos
homens estavam carregadas de um poder ambíguo: "dizer o
nascimento da verdade; mas também colocar à prova a ver-
dade tardia dos homens, retificá-la, aproximá-la de sua nu-
dez"; a criança se tornara "o senhor imediato do adulto", à
medida que "a verdadeira formação se identifica com a pró-
pria gênese do verdadeiro". Em cada criança, as coisas re-
petiam sua juventude, o mundo retomava contato com sua
forma natal, de modo que ele nunca era adulto para quem o
olhava pela primeira vez. Só quando o olhar abandonar seus
velhos parentescos (cf. Corazza, 1996c, p. 57-63), é que o
olho se abrirá no nível das coisas e das idades e, "de todos os
sentidos e saberes, ele terá a habilidade de poder ser o mais
inábil, repetindo agilmente sua longínqua ignorância". Por
ter um parentesco íntimo com a luz, este "Olhar-Infância"
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 6 1

suportará apenas seu presente. Para esse tipo de olhar, a


filosofia do século XVIII desejou fundar seu começo em duas
grandes experiências míticas: "o espectador estrangeiro em
um país desconhecido e o cego de nascença conduzido à
luz". Mas, acrescenta Foucault, numa referência à
pedagogização das crianças, "Pestalozzi e os Bildungsromane
também se inscrevem nesse grande tema do Olhar-Infân-
cia", de maneira que "o discurso do mundo passa por olhos
abertos, e abertos a cada instante como que pela primeira
vez .

D CORPO: SUPERFíCIE DE I N S C R I ç ã O

As transformações da história da infantilidade descritas


até aqui - e que constituem a linha de força da identidade
infantil subordinada e dependente - implicavam-se na nova
tecnologia política que tomava os traços biológicos e men-
tais de uma população como elementos pertinentes para a
gestão econômica e o governo dos indivíduos; além de fazer
necessário organizar, em volta desses traços, dispositivos que
assegurassem soluções para uma infância tornada um pro-
blema econômico, político e moral colocado às coletividades
e que elas deveriam tentar resolver no nível de suas decisões
de conjunto.
Um pouco antes e mesmo durante os tempos históri-
cos, nos quais o corpo dos indivíduos e da população e o
corpo dos infantis - enquanto corpo de cada um e parcela
dessa população - se tornassem um "problema", exigindo o
exercício de um poder encarregado de gerir a vida, bem
como determinando um encargo coletivo para que esses cor-
pos fossem mais ou menos utilizáveis, mais ou menos susce-
tíveis de investimentos rentáveis, com mais ou menos chances
1 6 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de sobrevivência, de morte ou de doença, sendo mais ou


menos capazes de aprendizagem efetiva, é preciso ver como
tais corpos vinham sendo, pelo disparate da Herkunft, his-
toricamente "assujeitados". Assujeitados pela forma de po-
der que faz dos indivíduos "sujeitos", nos dois significados
atribuídos por Foucault (1991h): 1) sujeito a alguém pelo
controle e dependência - tal como é produzido pelo conjunto
estratégico examinado até aqui; 2) preso à sua própria iden-
tidade por uma consciência ou autoconhecimento - sentido
que constitui a segunda descontinuidade na história da
infantilidade, a ser descrita a seguir. Tanto um quanto o
outro sentido "sugerem uma forma de poder que subjuga e
torna sujeito a" (ib., p. 235).
É possível desenhar, ainda, desde a paisagem da histó-
ria da infância, três figuras de corpos infantis que se repe-
tem, em menor ou maior medida, nos estudos, quais sejam:
1) dormindo/morto; 2) imobilizado; 3) afastado. Por meio da
descrição dessas figuras, será possível isolar mecanismos de
um determinado tipo de poder, o qual, em conjunção com o
velho direito de pátria potestas, realiza a torção para uma
potestas parentaí: em que o pai e a mãe representam o
poder da potestas em suas respectivas famílias e o exercem
sobre os filhos de ambos os sexos, sob formas múltiplas,
corporifiçado em seu afastamento, doação, mutilação, mor-
te. Todos mecanismos de poder-saber do dispositivo de
infantilidade a mostrar que é o "baixo" e o "horror" que são
encontrados nos começos da história da infância; os quais,
mais tarde, por efeitos do poder disciplinar, irão conver-
ter-se em discursos verdadeiros, sérios, respeitáveis, científi-
cos, humanitários, em detrimento desses outros discursos
que se perderão nas sombras ou ficarão expostos ao acaso -
ao menos até passado os meados do século que nos tocou
viver.
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 6 3

Por enquanto, nos confins habitados por esses corpos,


o futuramente chamado "Mundo Infantil" ainda é o mundo
das mulheres, dos plebeus, dos rústicos, dos sem-razão, dos
pecadores, dos despudorados, dos débeis: um mundo no qual
a natureza dessas singularidades e totalizações por pouco
não é a mesma dos animais. As técnicas desse poder -
locuções, trajes, jogos, brincadeiras, contos de fada, que tal-
vez possamos chamar "abstratas" ou "enunciáveis"; bem
como as técnicas, que talvez possamos chamar "concretas"
ou "visíveis", como o enfaixamento, a lactância, os cortes
na língua dos recém-nascidos, os enemas, os espancamen-
tos - colocaram em movimento um tipo de poder que pro-
duziu a infância em situação servil de fraqueza e de depen-
dência, sujeitando-a, por controlar seus corpos. Gerados no
redemoinho de categorias binárias, aos corpos infantis toca-
rá o lugar do segundo termo, hierarquicamente desqualificado:
por sua sujeição desprezível e dependência intolerável, a eles
corresponderá a necessidade de humilhação e de castigo, de
vigilância e de regulação, de contenção e de morte; isto é,
de suplência, ou seja, de Educação.

DDRMINDD/MDRTD

Conta-se que as manifestações de ternura com as fi-


lhas e os filhos - dos pais e das mães de outras épocas -
ocorriam, com maior freqüência, quando a criança não pe-
dia nada, em especial, quando estava dormindo ou morta
(cf. DeMause, 1995; Lyman Jr., 1995). Quando não se en-
contrava em nenhuma dessas duas condições, existia a figu-
ra da "criança-estorvo", gerada dentro de práticas culturais
para as quais o infanticídio somente foi passível de pena
capital no ano de 374 - quando o cristianismo já era uma
religião de Estado -, sendo uma prática comum na Grécia e
em Roma, particularmente das filhas mulheres, dos filhos
ilegitimos e das crianças débeis e aleijadas.
1 6 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

As crianças eram sacrificadas aos deuses, emparedadas


nos muros e enterradas nas fundações das construções para
fortificar suas estruturas, desde as muralhas de Jerico até o
ano de 1843 na Alemanha. Os desejos de morte e a morte
efetiva das crianças conviveram com a adoção de medidas
contra a morte, sendo que os primeiros geraram formas di-
versas de matar: queimar com ferro quente, com vela acesa,
ou deixar pendurado na beira da lareira por vários dias; con-
gelar com banhos frios ou deixar sem agasalho; afogar nos
rios, no mar, em tinas de água, nos poços, ou em latrinas;
abandonar em lugares desertos, para que os animais as co-
messem; asfixiar na cama; atirar ao solo ou contra a parede;
deixá-las cair, enquanto enfaixadas, passando-as de uma ja-
nela a outra, ou jogando-as para o alto, como se fossem
bolas; deixá-las morrer de fome.
De um levantamento realizado no século XVI, de trinta
casos de infanticídio ocorridos em Essex, Inglaterra, ob-
tém-se as seguintes causas das mortes:
- estrangulados, cinco;
- sufocados, dois;
- asfixiados, com almofada, um;
- no forno, um;
- surrados, três;
- em um paiol, um;
- afogados, em balsa, quatro (um nascido morto);
- em poço, um;
- enterrado em buraco, um;
- desnucados, três;
- encerrado em um baú e depois enterrado em um monte
de estéreo, um;
- degolados, dois (um foi depois afogado);
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 6 5

- atirado contra o pilar da cama, um;


- golpeado por um homem, um;
- causa não especificada, três. (Tucker, 1995, p. 274-5)
No Rio de Janeiro, na sessão de 18 de junho de 1846,
a Academia Imperial de Medicina propunha que fossem dis-
cutidas por seus membros as seguintes questões: l e ) a que
se deve atribuir tão grande mortandade nas crianças nos seis
primeiros anos de vida? 2°) Quais as moléstias mais freqüen-
tes nas crianças? A essas perguntas foram dadas as seguin-
tes respostas:
- o hábito de mergulhar as crianças em água mais ou menos
quente;
- modo de cortar o cordão umbilical empregando sobre ele
substâncias irritantes;
- compressão sobre a cabeça das crianças pelas parteiras ou
pelas amas quando estão dormindo;
- impropriedade da alimentação e do vestuário;
- aleitamento mercenário;
- aperto das vestimentas;
- maus costumes das amas-de-leite transmitindo sífilis,
escrófulas, etc;
- abuso de anti-helmínticos;
- ausência de tratamento médico no princípio das molés-
tias;
- vermes intestinais;
- variações de temperatura;
- umidade da nossa atmosfera etc. (Costa, 1989, p. 163).
O "berço" foi, por muitos séculos, um dos instrumen-
tos mais largamente utilizados para controlar o corpo das
crianças recém-nascidas e, por isto, uma questão de sua
1 6 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

vida-morte: a técnica era sacudir o berço, até que as crian-


ças tonteassem, ou entrassem em estupor. Embora as pri-
meiras representações pictóricas desse móvel datem do sé-
culo XIII, em suas formas mais simples foi utilizado antes
disto: havia, por exemplo, um berço fundo, do tipo cesto,
fácil de transportar, no qual amarrava-se a criança com ban-
das, e existem muitas referências literárias a berços de di-
versas classes sociais, entre os quais o berço de prata, referi-
do na vida de Santa Isabel de Hungria (McLaughlin, 1995,
p. 149). Nos princípios da Idade Média, a criança inglesa
dormia numa cesta de junco e, séculos mais tarde, num
berço de osso ou de madeira. Se pertencesse à gente rica,
esse berço repousava num chão de pedra; se pertencesse à
gente pobre, num chão de argila. Os berços de madeira
eram de balanço e tinham uma coberta para proteger a
criança das correntes de ar e das cinzas que se espalhavam
cada vez que era aceso o fogo de lenha (Lynd, s.d., p. 9-10).
A disseminação do uso do berço é atribuída às admo-
estações das autoridades eclesiásticas para que os pais não
colocassem mais as crianças dormindo em suas camas, evi-
tando assim o perigo de asfixia sob o peso dos adultos;
embora, nos sermões e escritos religiosos, o que apareça
seja a justificativa moral de impedir a manipulação sexual
das crianças pequenas, durante a noite: parece que, mais do
que sanitaristas, as condições culturais que possibilitaram a
criação do berço foram morais. Sua função era a de sujeitar
o corpo das crianças de um modo tão excessivo que se pu-
desse, pelo manuseio, dispor de sua morte, muito mais do
que teria vindo libertá-las dela.
Outra causa freqüente de morte das crianças era o
excesso de pancadas. Em mais de duzentos escritos anterio-
res ao século XVIII, pelos quais formulavam-se conselhos so-
bre a criação de crianças, foi observado que, na maioria
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 6 "7

deles, o castigo corporal era aprovado e, em todos, era ad-


mitido, em determinadas circunstâncias, "com exceção de
três, cujos autores são Plutarco, Palmieri e Sadoleto, que
estavam dirigidos aos pais e aos mestres, sem referência
alguma às mães".
No século XI, Santo Anselmo tinha incitado à brandura
os professores da juventude: "Não cessais de espancá-los.
Quando chegarem à idade adulta, que espécie de homens
serão?" Mas, responde-lhe o professor: "São estúpidos e gros-
seiros." "Qual pode ser a vantagem de gastardes vossas ener-
gias preparando seres humanos para se tornarem animais
selvagens?", pergunta o santo, e passa a fazer sua conheci-
da comparação com o ourives, "que não usa apenas golpes
violentos para transformar o ouro ou a prata numa bela ima-
gem". Durante os oitocentos anos que se seguiram, nin-
guém deu atenção aos seus conselhos: "Poupa-se a vara e
estraga-se a criança." continuou a ser a máxima educacional
até a Idade Moderna. A criança era chamada de "Estrela de
minh'alma, lindo amor, querida doçura", enquanto os anti-
gos manuais sobre educação infantil prescreviam:

Se teu filho for rebelde e não quiser ceder,


Se algum dia agir mal, não o maldigas nem esbravejes.
Apanha uma boa vara e dá-lhe uma boa surra
Até que peça perdão e reconheça que errou (Lynd, s.d., p. 15).
Dentre os instrumentos de castigo corporal, figuravam
chicotes de vários tipos, incluídos os de nove pontas, paus,
bastões, varas de ferro e de madeira, feixes de varas, instru-
mentos escolares especiais, dos quais se destacava com in-
sistência a palmatória - de madeira, em formato de pêra,
cheia de buracos redondos para levantar bolhas. Um mestre-
escola alemão calculou que havia dado: "911.527 golpes
com a palmatória, 124.000 chicotadas, 136.715 bofetadas
e 1.115.800 "cascudos" (DeMause, 1995, p. 72-3).
1 6 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Era costume cortar ou espetar as plantas dos pés das


crianças, dar-lhes "pescoçadas", beliscões, puxões de ore-
lhas, tapas na boca e pauladas na cabeça. As crianças
enfaixadas não eram surradas, mas, assim que saíam do
enfaixamento, costumavam sê-lo, diariamente: o delfim Luís
XIII, desde os 25 meses, recebia sistematicamente, uma
surra pela manhã, ao despertar; no dia de sua coroação, aos
oito anos, foi açoitado e disse: - "Preferia prescindir de
tantas homenagens e honrarias e que não me batessem".
Foi no Renascimento que se começou a aconselhar modera-
ção nos castigos corporais, embora tal moderação fosse acom-
panhada da aprovação de castigos físicos, desde que sabia-
mente administrados: os pais não deveriam dar golpes na
cabeça ou no rosto de seus filhos, nem açoitá-los como se
fossem sacos, já que poderiam morrer em conseqüência dos
golpes - "o correto era bater-lhes nas costas, com a vara,
porque isso não lhes causará a morte" (DeMause, 1995, p.
75).
As mutilações eram freqüentes, particularmente para
que as crianças pudessem ser usadas como mendigas nos
passeios públicos, o que levava os adultos, logo após o nasci-
mento, a quebrarem suas pernas, braços e colunas verte-
brais; tais mutilações provocavam, em muitos casos, a mor-
te iminente, ou um pouco mais tarde, a morte por infecções
ou dificuldade para locomover-se e alimentar-se.
As primeiras medidas de que se tem conhecimento
contra a morte das crianças foram adotadas no terreno da
prevenção aos perigos ocultos que as rondavam, na forma
de exorcismos, purificações, amuletos, pela aplicação de água
fria, fogo, sangue, vinho, sal, urina, da qual é exemplar o
seguinte relato:
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . ] g g

O recém-nascido [na Grécia] dorme bem enfaixado em um ber-


ço de madeira, envolto de ponta a ponta em uma manta, de
modo que a criança jaz em uma espécie de tenda, no escuro e
sem ventilação. As mães temem os efeitos do ar frio e dos espí-
ritos malignos. Quando anoitece, a cabana ou a casa é como
uma cidade sitiada, os postigos das janelas fechados, a porta
trancada e sal e incenso são colocados em pontos estratégicos,
como na entrada, para rechaçar qualquer invasão do Diabo
(DeMause, 1995, p. 55).

Debret, pintor oficial do Primeiro Reinado no Brasil,


registrou em 1816 práticas similares:
Logo após o parto, os parentes se apossam do recém-nascido e
se revezam perto dele, dia e noite, até o dia do batismo, a fim
de preservá-lo, dizem, das bruxas ou feiticeiras que se transfor-
mam em mariposas ou morcegos e, fazendo-se invisíveis, sugam
o sangue da criança paga. A esses guardas cabe também reno-
var os ramos de arruda colocados nos cantos do berço e conser-
var religiosamente os talismãs e amuletos logo suspensos ao
pescoço da criança (Leite, 1997, p. 28-9).

IMOBILIZADO

Sujeitar as crianças com diversos tipos de faixas foi


uma prática de uso disseminado, usada por "quase todos os
povos"; inclusive, em gravuras do antigo Egito, observam-se
já crianças com "ataduras e faixas" (DeMause, 1 9 9 5 , p.
68). Da Vinci escreveu, em seus Cadernos, sob o título Crian-
ças enfaixadas:
Oh cidades do mar, vejo em vós, vossos cidadãos, homens e
mulheres, braços e pernas estreitamente atados por vós mes-
mos, por lástimas chorosas, lamentos e suspiros, vossas dores e
vossa tristeza da liberdade perdida. Pois aqueles que vos têm
atados não compreenderão vossa língua, assim como tampouco
as compreendereis (Lacan, 1988a, p. 223).
1 7 Q HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Assim que nasciam, as crianças tinham todo o corpo


imobilizado por ataduras, geralmente feitas de algodão, cuja
função consistia em privar totalmente a criança do uso de
seus membros, envolvendo-a de modo tal que parecesse uma
lenha; a cabeça também era apertada, com faixas e toucas,
para dar-lhe a forma desejada. Tal processo de enfaixamento
era complicado e demorava, no mínimo, duas horas. As van-
tagens eram que os recém-nascidos ficavam passivos, o co-
ração batia mais lentamente, choravam menos e dormiam
muito mais; além de darem menos trabalho aos adultos,
visto que dormiam sempre, ficavam horas encostados atrás
do forno aquecido, ou pendurados em ganchos cravados nas
paredes, atados com cordas a cabides, metidos em bacias e
caixas, manuseados como pacotes que eram colocados em
qualquer lugar onde não atrapalhassem.
Três razões justificavam o enfaixamento: 1) Era neces-
sário assegurar-se de que a criança adotasse uma postura
humana - em alguns lugares, era colocada dentro das faixas
uma tabuinha atrás do pescoço que firmava sua cabeça e o
tronco -, fixando rigidamente os braços junto ao corpo e
esticando suas pernas, para que não dormisse em posição
fetal, como se fosse um animal, fato que só reafirmaria a
"verdadeira natureza" da criança, isto é, sua regressão a um
estado primitivo e inferior. No caso das meninas da nobreza,
suas formas eram consideradas mais propensas à deforma-
ção, de modo que, durante muitos anos, usavam um
espartilho feito com ossos de baleia para manter o talhe
ereto. 2) Uma segunda justificativa referia-se à debilidade
do recém-nascido, carente de coordenação, fazendo movi-
mentos descontrolados que eram um perigo para si mesmo:
poderia arrancar-se os olhos, ou as orelhas, quebrar as per-
nas, deformar os ossos, assustar-se ao ver seus próprios mem-
bros. 3) A influência do clima frio europeu, para o qual as
faixas propiciavam que as crianças fossem trocadas apenas
duas ou três vezes ao dia, na beira do fogo.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 7 1

O enfaixamento da cabeça dos recém-nascidos era fei-


to com vendas bem apertadas, ou para estreitá-la ou para
alargá-la, assim como para proteger a moleira do frio. Este
costume começou a ser abandonado no início do século XVII,
por críticas estéticas: "as bandelettes que lhes alargam as
cabeças e pelas quais todo mundo reconhece as crianças
de Paris"; e também por questões médicas, as quais esten-
diam-se ao enfaixamento do corpo: assaduras, escoriações
da pele, picadas de pulgas, ferimentos com alfinetes. Para a
limpeza do corpo, era usada uma mistura de vinho e vina-
gre, às vezes, com adição de água de rosas: "o vinho era
considerado um anti-séptico natural e um remédio universal
para os males da infância, de uso interno e externo desde o
nascimento" (Marwick, 1995, p. 300-2).
Como a prática do enfaixamento foi considerada natu-
ral, os dados acerca de sua duração são irregulares, antes do
começo da Época Moderna: os romanos suprimiam as faixas
entre os 40 e 60 dias, embora Platão tenha falado em "dois
anos"; e, nos séculos XVI e XVII, o enfaixamento durava de
um a quatro meses, deixando depois os braços livres, per-
manecendo enfaixados o corpo e as pernas por mais seis ou
nove meses. O enfaixamento permaneceu como prática de
sujeição do corpo infantil até o século XVIII - em virtude da
introdução de uma concepção "naturalista" sobre a infância
e a criação das crianças - , quando as autoridades médicas
passaram a escrever manuais desaconselhando seu uso, em
função dos malefícios físicos dele derivados e também em
conseqüência de inúmeras mortes motivadas pelo "lança-
mento do enfaixado", tal como este:
Um irmão de Henrique IV morreu porque lhe deixaram cair
quando brincavam com ele, passando-o de uma janela a outra.
O mesmo ocorreu com o conde de Marle: 'um dos camareiros e
a nutriz que cuidava dele divertiam-se atirando-o de lá para cá,
1 "72 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

por cima de uma janela aberta. Às vezes, fingiam que não o


pegavam. O pequeno conde de Marle caiu e bateu contra uma
escada de pedra'. Os médicos se queixavam que os pais que-
bravam os ossos de seus filhos pequenos com o 'costume' de
jogá-los como bolas. As amas-de-leite diziam que as faixas em
que iam enroladas crianças eram necessárias porque, sem elas,
não poderiam 'lançá-los de um lado a outro' (DeMause, 1995,
p. 57).

Depois das faixas, existia uma grande preocupação


em evitar que as crianças engatinhassem. Para isto, foram
utilizadas diversas técnicas que, ao mesmo tempo, objetiva-
vam ensinar a andar e tolhiam a liberdade motora: o uso dos
tirantes ou lisières, presos nas roupas, detrás dos ombros,
para que os adultos segurassem a criança na postura erguida;
andadores estacionários, em que as crianças ficavam eretas,
antes de poder dar os primeiros passos; ou andadores mó-
veis para que caminhassem pelos pátios, como os descritos
em 1563:
Existem andadores para que as crianças fiquem de pé, nos que
podem girar em todos os sentidos; quando as mães ou amas as
põem nelas, não cuidam mais das crianças, deixando-as sós, e
vão fazer suas atividades, supondo que a criança têm tudo o que
necessita, porém não reparam na fadiga e no sofrimento da
pobre criança ... a pobre criança ... tem que ficar de pé duran-
te muitas horas, sendo que meia hora de pé já é muito. Queria
que todos estes andadores fossem queimados (DeMause, 1995,
p. 70).

As crianças eram atadas às portas ou às mesas para


que não andassem de "4 patas", pois isto também era con-
siderado próprio dos animais; no século XIX, os tirantes eram
costurados às roupas, ou presos em coletes e cintos de ges-
so, madeira e ferro, para que os adultos pudessem levá-las
de um lado a outro; quando estavam estudando, eram amar-
radas às cadeiras e seus pés colocados em cepos; para corri-
gir a postura, utilizavam-se colares de ferro.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 7 3

Após livrar-se das faixas, tiras e andadores, as crianças


ficavam desprotegidas para os castigos corporais: surras,
chicotadas, bofetadas. Nos séculos XV e XVI, o castigo cor-
poral generalizou-se, mas havia uma diferença entre o das
crianças e o dos adultos, que não existira durante a Idade
Média: entre os adultos, nem todos eram submetidos ao
castigo corporal, sendo que os fidalgos lhe escapavam, e os
modos de sua aplicação diferenciava as condições sociais;
ao contrário, todas as crianças e jovens do espaço escolástico
eram surradas. Aries escreve que a história da disciplina do
século XIV ao XVII permite fazer duas observações impor-
tantes: a primeira é a da "disciplina humilhante", promovida
pelo chicote e a delação mútua em benefício do mestre; a
segunda é a dilatação da idade escolar submetida ao chico-
te: reservado de início às crianças pequenas, estendeu-se a
toda população escolar.
Essa "humilhação deliberada" das crianças e jovens
englobava-os no regime disciplinar adotado para os plebeus:
"O sentimento da particularidade da infância, de sua diferen-
ça com relação ao mundo dos adultos, começou pelo sentimen-
to mais elementar de sua fraqueza, que a rebaixava ao nível
das camadas sociais mais inferiores" (Aries, 1975, p. 345-
6). Foi preciso considerar o infantil como um corpo vil, subme-
tido à corrupção do pecado original, vivendo em uma idade
servil; ou seja, foi necessário humilhá-lo para distingui-lo.

AFASTADO

Diz-se que as amas-de-leite, ou nutrizes constituem uma


personagem central na vida das crianças, desde os tempos
bíblicos, aparecendo no Código de Hammurabi, nos papiros
egípcios e na literatura grega e romana - organizadas sob a
1 7 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

forma da Coluna Lactária -, até mais ou menos o século


XVIII, quando os moralistas, médicos e eclesiásticos retoma-
ram os conselhos de Galeno e Plutarco e passaram a criticar
as mães que enviavam seus filhos para fora do lar, para
serem amamentados por estranhas, ao invés de amamentá-
los elas próprias. O costume persistiu até o século XVIII, na
Inglaterra e nos Estados Unidos, até o século XIX, na França,
e até o século XX, na Alemanha.
Na França, a abertura da primeira agência de amas-
de-leite, em Paris, data do século XIII, quando o hábito de
contratá-las para os filhos limitava-se às famílias aristocráti-
cas; a partir do final do século XVI é que se generalizou entre
a burguesia, enquanto, no XVIII, o envio das crianças para a
casa das amas estendeu-se por todas as camadas da socie-
dade urbana. Conforme Badinter (1985), em 1780, em Pa-
ris, "em cada grupo de 21 mil crianças que nascem anual-
mente (numa população de oitocentos a novecentos mil ha-
bitantes), menos de mil são amamentadas pelas mães, mil
são amamentadas por uma ama a domicílio. Todas as ou-
tras, ou seja, 19 mil, são enviadas para a casa de amas"
(DeMause, p. 63; p. 66-72).
Pela tradição das classes abastadas, pela grande quan-
tidade de nascimentos nos matrimônios; pela má saúde da
mãe; pelo fato de esta não ter leite suficiente; ou mesmo
devido às gestações sucessivas que enfraqueciam a mulher;
também para que a mulher pudesse acompanhar o marido
em festas e viagens; assim que lhe nascia uma criança era
enviada à casa de uma ama-de-leite, para que fosse ama-
mentada e ali passasse os primeiros anos. Caso sobrevives-
se, aos dois anos de idade voltava para a casa dos pais,
sendo cuidada por outros serviçais, geralmente pelas amas-
de-criação, também chamadas de "amas-secas". Se fosse
do sexo masculino, saía da casa paterna aos sete anos, para
H I S T ó R I A S DE G Q V E R N D : CRIANçAS E CIA. 1 7 5

servir em outras casas, aprender um ofício ou ir à escola; se


fosse menina, mais ou menos aos nove ou dez anos, entrava
em um convento, ou no máximo aos dezesseis, era dada em
matrimônio.
Em função dos recursos financeiros, podia-se instalar a
ama na residência da família; porém, na maioria dos casos,
as amas-de-leite moravam distantes da casa de origem da
criança, pois provinham das classes camponesas ou de gen-
te do povo; sua contratação era feita pelos pais dos recém-
nascidos - na maioria das vezes, por intermédio de agentes
- e lhes era fornecido um enxoval e uma remuneração regu-
lar para pagamento dos serviços. Essa era uma prática con-
siderada natural, uma necessidade, bem como um símbolo
de dignidade e decoro, tal como para as classes médias ita-
lianas do século XIV (cf. Ross, 1995).
Muitas recomendações eram feitas no sentido de que
se encontrasse uma nutriz que reunisse as condições devidas
e conservá-la - pois a troca de amas-de-leite era freqüente -,
tais como: que fosse parecida com a mãe, já que o lactente
tendia a assemelhar-se a ela, por força de beber seu leite;
que não tivesse maus costumes, porque a criança estaria
bebendo sangue contaminado - acreditou-se, por muito tem-
po, que o leite era sangue batido até tornar-se branco; que
se tivesse certeza de que não daria leite de animais, já que a
criança ficaria parecida com o animal correspondente, ou
débil. Os médicos italianos do século XVI deixaram registrados
os seguintes requisitos a serem observados para escolher uma
nutriz:

De 25 a 35 anos de idade, o mais possívci parecida com a mãe,


que tenha boa cor, colo e peito fortes, que não seja fraca, senão
de boas carnes, duras e lustrosas, porém não demasiado, que
não tenha mau hálito e que traga os dentes limpos. E, quanto a
seu caráter, livre-se das soberbas, das coléricas e das melancóli-
1 7 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

cas, que não seja medrosa, nem estúpida, nem grosseira. Que
seus peitos sejam entre macios e duros, grandes porém não
excessivamente grandes; seu leite deve ser moderado no que
respeita à quantidade, de cor branca e não amarelo nem verde,
e ainda menos escuro, de bom cheiro e de sabor nem salgado
nem amargo, e sim doce e sempre uniforme, porém não
espumoso, e abundante. E levai em conta que a melhor é a ama
que teve um filho homem. Desconfiai daquela que "ande dando
maus passos", como as que seus maridos não deixam sozinhas,
e da que esteja grávida (Ross, 1995, p. 216).

Os filhos dessas amas-de-leite ou tinham morrido logo


após nascerem, ou eram criados junto com os filhos das
classes abastadas, ou eram abandonados para que a nutriz
pudesse exercer a nutrição remunerada, enquanto muitos
vinham a morrer, em detrimento dos cuidados que estas
deviam prestar aos outros filhos; embora também a mortali-
dade das crianças ricas enviadas às nutrizes fosse elevada,
em função de falta de cuidados higiênicos, por carência de
leite, por amamentação artificial, por fome ou frio. As visi-
tas dos pais aos filhos, durante o período da amamentação,
eram raras, de modo que quando as crianças retornavam
para junto da família deparavam com pessoas que sequer
conheciam.

Das baíie italianas ficaram registradas músicas do car-


naval renascentista, como esta:
Aqui viemos, as balie de Casentino,
buscando cada uma criança,
e aqui estão nossos maridos
que nos ensinam o caminho;
aquele que tenha uma criança;
todo o que tenha uma criança,
que nos traga
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 1 "77

macho ou fêmea, nos dê igual.


A cuidaremos bem
e estará tão bem alimentada
que logo se porá de pé
como um altivo cavalheiro.
Se a criança adoece
ou se enfraquece um pouco
a cuidaremos tão bem
que logo se recuperará:
porém temos que atendê-la
mudando-a com freqüência;
quando estiver molhada, a secaremos
e a lavaremos com um pouco de vinho.
Estamos contentes por nossa sorte
somos rápidas e eficientes em nosso ofício
sempre que a criança chora
sentimos que o leite nos vem:
com energia e presteza
cumprimos nosso dever,
a tiramos do berço
secando-lhe a carinha.
De abundante e bom leite
estão cheios nossos peitos.
Para evitar toda suspeita,
que o médico os veja,
porque neles se encontra
a vida e o ser da criatura,
pois o leite bom alimenta
sem doenças e endurece as carnes ...
Somos casadas jovens
experimentadas em nosso ofício
1 7 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

podemos envolver a criança em um instante


e ninguém precisa ensinar-nos
a pôr os panos e as faixas;
enquanto a cuidamos, a colocamos bem
pois se sente frio
a criança sofre e colocam a culpa na balia.
Trocamos três vezes ao dia
as roupas de lã e de linho e as faixas brancas
e nunca nos cansamos nem nos enojamos
estando com ela para que não chore
(Ross, 1995, p. 216; p. 219-21).
Adotada no Brasil, a prática de entregar recém-nasci-
dos a amas-de-leite tornou generalizados o aluguel e a com-
pra de escravas negras para amamentarem os filhos das
famílias brancas. Esse costume teve como contrapartida a
separação das cativas de seus filhos e os anúncios de jornais
do Rio de Janeiro do século XIX indicam isso:

Na rua do Espírito Santo há uma ama-de-leite para alugar, pa-


rida de 8 dias, sem pensão do filho (Jornal do Commercio, 24
de fevereiro de 1850).
Vende-se uma preta da nação, com bastante leite e da primeira
barriga, sem cria, mui vistosa e rapariga (Diário do Rio de Ja-
neiro, 4 de julho de 1850).
Aluga-se uma preta, para ama com muito bom leite, de 40 dias
e do primeiro parto, é muito carinhosa para crianças, não tem
vício algum e é muito sadia e também se vende a cria (Jornal do
Commercio, 3 de agosto de 1850) (Lima e Venâncio, 1996,
p.67-8).

Para as crianças expostas, filhos ilegítimos ou legíti-


mos não desejados que eram abandonados nas portas das
igrejas, ou nas rodas dos orfanatos, hospitais ou hospícios
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 7 9

das grandes cidades, as amas-de-leite costumavam ser es-


cravas compradas pelo prior, ou alugadas pelos donos me-
diante o pagamento de seus serviços; ou eram integrantes
da lista de nutrizes da própria instituição (cf. Vinyoles y Vidal,
1986, p. 99-123). Por exemplo, durante o século XIX, ain-
da era prática da Santa Casa de Misericórdia, em Porto
Alegre, empregar "criadeiras" remuneradas para cuidar das
crianças expostas até os sete anos se era menino, até os oito
anos se fosse menina: "depois dessa idade, cessavam os
pagamentos mensais" (Fonseca, 1989, p. 115).
Hobbes escreveu, em meados do século XVII:
A menos que se lhes dê tudo quanto pedem, as crianças são
irritáveis e choram continuamente e, às vezes batem em seus
pais; e tudo isso lhes vêm da natureza. Entretanto, não são cul-
páveis, e tampouco podemos dizer que sejam perversos ... por-
que faltando-lhes o livre uso da razão estão isentos de todo de-
ver. Quando chegam a uma idade mais madura ... se continuam
fazendo as mesmas coisas, então certamente ... se lhes pode
considerar perversos. De modo que um homem perverso é qua-
se o mesmo que uma criança crescida, forte e robusta ... e a
malícia é a mesma coisa que um defeito da razão, nesta idade
em que a natureza deve estar melhor governada mediante a
boa educação e a experiência (Marwick, 1995, p. 286).

Este é um tempo em que a sociedade ocidental come-


ça a positivar a "natureza" da criança e a domesticá-la pela
via da educação. Não é possível esquecer que estamos nos
umbrais da Ilustração e que, por enquanto, as crianças são
consideradas, por natureza, irritantes e fastidiosas. Segundo
a terminologia médica da época, a natureza temperamental
e intelectual, mais do que física - o natureí da criança -,
começava em sua constituição e podia ser de quatro tipos:
aquosa, melancólica, colérica ou sangüínea. Por exemplo,
Luis XIII foi julgado por Héroard como de tipo "fundamental-
1 BD HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

mente sangüíneo, mas com tendência ao colérico", o que


lhe dava, "por natureza, rapidez", ao mesmo tempo que o
sangue "cumpria uma função moderadora e restritiva"
(Marwick, 1995, p. 287).
Nesse regime de "sangüinidade" - como Foucault
(1988, p. 138) quase ia dizer -, que convivia com os meca-
nismos nascentes do biopoder, a amamentação realizada pelas
amas-de-leite começou a ser criticada porque as autoridades
médicas acreditavam que o leite era, literalmente, sangue
menstrual, que desaparecia durante nove meses para ali-
mentar o embrião no útero; e, depois de ser desviado e
purificado, seguir alimentando a criança. As amas podiam
passar às crianças que amamentavam sua melancolia, fanta-
sias, traços de temperamento como preguiça, promiscuida-
de, impiedade e até mudar seu sexo: se fosse muito quente
para um menino, ele resultaria efeminado; se fosse frio de-
mais para a menina, ela poderia ficar masculinizada.

Os conselhos dos médicos sobre as técnicas de lactância


variavam conforme a classe social: para as aristocratas, re-
comendavam que o peito devia ser dado após alguns dias ou
semanas, pois o leite novo não era aconselhável para crian-
ças de origem nobre - enquanto houvesse o colostro, dotado
de uma viscosidade perigosa para os condutos da criança,
podia-se colocar um filhote de cachorro para mamar ou retirá-
lo manualmente; para os pobres, estes conselhos não valiam
e dizia-se que as mães eram obrigadas a dar o peito desde o
primeiro dia. Para o desmame, era recomendável colocar
nos seios mostarda, vinagre ou outra substância de sabor
desagradável, de modo que a criança não quisesse mais pegá-
los. Então começava outro tipo de alimentação, em muito
similar à dos adultos. Era costume cortar a membrana situa-
da abaixo da língua, pois acreditava-se que ela prejudicava a
adaptação à lactância. Isso era feito pelos médicos, com
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 B 1

tesouras, ou pelas amas-de-leite e, nas classes populares,


pela parteira, com as unhas. Devido às inúmeras infecções
provenientes desses procedimentos, foi recomendada sua não
utilização, à medida que crescia o número de mães que
amamentavam os filhos.
A forma de afastamento institucionalizado, pela via da
entrega das crianças às amas-de-leite, convivia com outras
formas de afastamento, generalizadamente utilizadas pelas
diversas classes sociais, tais como: a simples entrega dos
filhos a outras pessoas, parentes ou não; a venda direta dos
filhos, como escravos, legal na época babilônica, por exem-
plo, e possivelmente em muitas nações na Antigüidade; o
emprego dos filhos como reféns políticos, no lugar do pai,
por tempo determinado ou indeterminado; sua utilização
como forma de pagamento de dívidas assumidas pelo pai
(cf. DeMause, 1995, p. 59-61).
Além desses afastamentos, encontram-se outros, tais
como os estudados por Pastor (1986), referentes às crianças
das linhagens da alta nobreza e de linhagem real, na Espanha
medieval: 1) a oblatio puerorum - direito absoluto até o
século XII -, pela qual se oferecia o filho e a filha, desde seu
nascimento, à Igreja, sem que o/a oferecido/a tivesse qual-
quer possibilidade, depois de crescido/a, de reverter tal dis-
posição; 2) oferecimento para que outros criassem os filhos,
como vassalos, mediante o pagamento de uma quantia anu-
al, até que o menino completasse dez anos, quando então
seus trabalhos eram retribuídos pela alimentação e sustento;
3) entrega dos filhos como pupilos a "aios", que podiam ser
nobres titulares de outros condados e de alta casta, cuja
função era criar o infante, instruindo-o no manejo e uso das
armas, para os combates, torneios e caça, e cuidando de
sua instrução nas disciplinas liberais e na religião (ib., p. 87-
97).
1E3Z H I S T Ó R I A DA I N F Â N C I A S E M FIM

As primeiras crianças inglesas que visitaram os con-


quistadores normandos fizeram a sua visita em condições
que não tinham nada de agradáveis: como reféns. Mais tar-
de, os filhos de fidalgos foram mandados para os castelos
normandos para aprenderem o francês, língua sem a qual
nenhuma criança podia ter esperanças de vencer no mundo.
Os pobres despachavam suas crianças, o mais cedo possível,
para espantar passarinhos, tanger o gado, colher, levar reca-
dos; os ricos mandavam-as como pajens para a casa de al-
gum amigo ou parente rico. Alguns séculos mais tarde,
Montaigne afirmaria:

Quanto a mim, não sinto nenhuma simpatia por essas inclina-


ções que surgem em nós independentemente da nossa razão.
Por exemplo, a respeito do que estou comentando, não posso
conceber que se beijem as crianças recém-nascidas ainda sem
forma definida, sem sentimento nem expressão que as tornem
dignas de amor. Por isso foi com desagrado que as tive educadas
ao meu lado. Uma afeição sincera e justificável deveria nascer
do conhecimento que nos dão de si e com esse conhecimento
crescer, a fim de que então, se o merecerem, e desenvolven-
do-se de par com o bom senso essa disposição para as amar,
cheguemos a uma afeição realmente paternal. Se não forem
dignos desta, nós o perceberemos dando sempre ouvido à ra-
zão, apesar das sugestões ao contrário da natureza. Amiúde é o
inverso que ocorre. Sentimo-nos mais comovidos com os trejei-
tos, os folguedos e as bobagens das crianças do que mais tarde
com seus atos conscientes, e é como se delas gostássemos à
maneira de símios e não de homens (Montaigne, 1991, p. 180).

A casa de uma família rica era um campo de treina-


mento, onde a criança, sob as vistas imparciais de estra-
nhos, aprendia boas maneiras e acostumava-se a ser útil,
em vez de constituir um incômodo para os mais velhos: "uma
criança que já começava a adquirir sabedoria". Aos oito anos
de idade, eram mandadas para casas alheias: as meninas,
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 B 3

como camarareiras de honra, para aprenderem a falar fran-


cês, fazer reverências perfeitas - sem inclinarem-se muito
para a frente, nem muito para trás - , fazer conservas de
frutas, destilar perfumes, beber cerveja e vinho moderamente,
tocar instrumentos de música, dançar, cantar e, se tivessem
sorte, encontrar um marido; as donzelas que não aproveitas-
sem dessa forma o período de treinamento acabavam vol-
tando para casa, onde as esperava a roca e o fuso; como
pajens, os meninos aprendiam a manejar toda espécie de
armas, montar a cavalo, caçar, nadar, lutar e praticar diver-
sos jogos.
Um jovem fidalgo, que estivesse numa casa-grande,
tinha direito a dois criados para servi-lo. Por sua vez, ele e
outros meninos serviam o dono da casa. Se fosse apenas um
filho mais moço, ou o filho de um grande proprietário rural,
só teria direito aos serviços de um criado, conjuntamente
com outro menino da mesma classe social, e ele, por sua
vez, serviria um menino de classe superior. Havia príncipes
que serviam reis, ou irmãos mais moços que pajeavam os
irmãos mais velhos; nesse caso, usavam o escudo do irmão,
no gorro ou na manga. O pajem aprendia a pôr uma mesa,
trinchar assados e servir de copeiro - devendo, ao apresen-
tar os pratos na mesa, curvar o joelho -, vestir e despir o
senhor e, se necessário, lavá-lo e preparar o seu banho;
devia saber fazer uma cama, servir o vinho e assim por
diante.
Quanto à sua própria pessoa, o pajem devia andar
sempre limpo, lavar o rosto e as mãos, pentear o cabelo e
usar sempre o lenço no bolso; não podia arrastar os pés,
fazer barulho com os calcanhares, gesticular, falar ou beber
com a boca cheia, nem brincar com a colher e o garfo nas
refeições. A principal regra de cortesia para os pajens era:
silêncio, imobilidade e fisionomia impenetrável. As crianças
1 B 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

inglesas aprenderam a ficar imóveis como estátuas, durante


horas, junto das mesas normandas. Algumas instruções para
a educação nas cortes eram:

Não coces a cabeça ou as costas, como se estivesses procurando


uma pulga, nem passes a mão pelo cabelo, como se estivesses
catando um piolho. Não faças contrações, nem cuspas longe
demais, nem fales alto demais. Cuidado para não fazer caretas
nem caçoar dos outros. Não mintas. Nem lambas um prato para
limpar a poeira.

A cortesia, dizia um manual do século XIV, "desceu


dos céus quando Gabriel saudou a Virgem e Maria e Izabel
se encontraram". Por isso, "contra vosso senhor", prosse-
guia, "nunca luteis com urna palavra sequer", nem "aposteis
com quem apostar quiser", nem "jogueis dados com qual-
quer jogador"; com alguém de posição superior "nunca vos
igualeis em acordo ou discussão" (Lynd, s.d., p. 17-8).

AFRGNTAMENTD DA EMERGêNCIA

A pesquisa da emergência - Entestehung -, neste es-


tudo, tem por encargo não dar conta da emergência "do
infantil" por seu "termo final", afirmando, de modo metafísico
e muito fácil, que o dispositivo de infantilidade desde o pri-
meiro momento emergiu para infantilizar, mas mostrar o
jogo das forças deste dispositivo que historicamente infantili-
zam: as maneiras como estas lutam umas contra as outras;
seus combates frente a circunstâncias adversas; as tentativas
que fazem, redistribuindo-se, para escapar do que, contem-
poraneamente, é chamado de "fim" ou "desaparecimento"
da infância - força que recobra o vigor a partir de seu pró-
prio enfraquecimento.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 S 5

Isso tudo porque acontece de uma força lutar também


contra si mesma, não apenas para dividir-se no momento
em que apresenta um excesso, mas no momento em que se
enfraquece: contra "sua lassidão ela reage, extraindo sua
força desta lassidão que não deixa então de crescer, e se
voltando em sua direção para abatê-la, ela vai lhe impor
limites, suplícios, macerações, fantasiá-la de um alto valor
moral e assim por sua vez se revigorar" (Foucault, 1990d, p.
23-4). Revigoramento da força da infantilidade que produziu
"a-vida-a-morte" da infância, seu excesso e enfraquecimen-
to, expressa na "mais-valia de uma infância sem fim", como
se terá oportunidade de presenciar.

CENAS

CENA ZERO. PONTO DE SURGIMENTO: CRIANçA-MãE

Uma vez nascidas, as crianças convertiam-se em "pai


de sua mãe e de seu pai", sem que se levasse em conta sua
idade (DeMause, 1995, p. 38-45). Eram vestidas não ape-
nas como adultos em miniatura, mas como "mulheres em
miniatura" (cf. Varela, 1986, p. 179-191), independente-
mente do sexo: suas roupas eram as da "mãe do pai" - não
apenas um vestido largo, mas antiquado, ao menos de uma
geração anterior - de modo que a criança funcionasse como
adulto - um "adulto-mãe": a idéia de que a avó renascia na
criança era comum na Antigüidade, a qual parece estar ex-
pressa pela semelhança entre as palavras inglesas baby (crian-
ça) e baba, Babe (avó).
O filho perfeito era aquele que dava de mamar aos
pais, sendo que os adultos costumavam lamber, beijar, chu-
par e apertar os peitos dos recém-nascidos e o pênis dos
1 8 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

meninos; por exemplo, a Luis XIII, as pessoas que o rodea-


vam beijavam seu pênis e seus peitos. Uma crença comum
era a de que havia leite nos peitos dos recém-nascidos, o
qual era preciso extrair. Derivada desta "criança como pei-
to", existia o costume de permitir que a criança chupasse os
lábios dos adultos, como registrou um pediatra do século
XIX: "Tive oportunidade de observar como definhou um for-
moso menino, em conseqüência de ter estado chupando os
lábios de sua avó enferma durante mais de seis meses".
Também havia o costume de lamber os recém-nascidos, como
escreveu um pai do século XVIII a respeito de sua filha: "A
nutriz a traz toda manhã na cama para que eu possa lambê-
la com a 'língua de engraxar'. Gosto tanto disto, que seguirei
fazendo até que ela chegue à idade do juízo".
As crianças cuidaram dos adultos, sob formas muito
concretas: desde a Época Romana, serviam seus pais à mesa,
durante as refeições e festividades, e, na Idade Média, todas
as crianças, exceto as de sangue real, atuavam como ser-
ventes, em suas casas ou em casas alheias, fazendo os tra-
balhos domésticos; cuidavam dos adultos, particularmente
das mães, também na "interação emocional", acalmando-
as, acariciando-as, secando seu pranto. Essa atitude figura-
da foi encontrada, por DeMause (1995, p. 41), em mais de
quinhentos quadros de mães e filhos de todos os países:
"comprovando que os quadros em que as crianças olham,
sorriem e acariciam as mães são anteriores e, além disto,
mais numerosos do que aqueles em que as mães olham,
sorriem e acariciam as crianças, atitudes raras nas mães em
qualquer pintura".
"Crianças-adultas" brasileiras foram descritas pelo in-
glês Edgecumbe, em 1886, o qual concluiu que aqui "não
existiam crianças" no sentido inglês:
IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E O A . 1 B "7

A menor menina usa colares e pulseiras e meninos de 8 anos


fumam cigarros. Encontrei um bando de meninos voltando da
escola, uma tarde. Um pequeno de aparentemente sete anos
tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu a cada um de
cada vez. Ninguém demonstrou qualquer desaprovação de um
menino tão pequeno estar fumando. A linguagem desses meni-
nos é terrível, embora eu precise admitir que, como os cocheiros
de Londres, não percebem que estão usando expressões chulas
(Leite, 1997, p. 37).

CENA UM. INFâNCIA BEM-EDUCADA

A prática discursiva e não-discursiva de institucionaliza-


ção da educação centrou seus esforços iniciais na infância e
mesmo que, progressivamente, tenha se estendido por todo
o conjunto da população, pareceu persistir a idéia e a de-
manda de que é da infância que preferencialmente deve
ocupar-se. Vê-se quão repetidamente esse enunciado sobre
a escolarização ainda funciona, política e socialmente, como
uma das "saídas" - solução, recurso, meio de superação e
resguardo, expediente - mais importantes contra o avanço
dessa nova visibilidade e enunciabilidade de fim-da-infância,
sendo significada como uma das garantias para que a infân-
cia possa continuar a ser produzida e tenha seus direitos
assegurados (cf. Corazza, 1998, p. 38-191). Examinemos
como a mesma instituição social que organizou o começo
histórico do infantil na Modernidade é enunciada como uma
das instituições, senão a única, que ainda pode operar como
salvaguarda contra sua morte anunciada.
Boom e Narodowski (1996) indicam a possibilidade
que se teria hoje de observar a revalorização da função da
educação em torno de novos pólos de atração e de novas
finalidades sociais, das quais derivariam diversas estratégias
1 B B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

que marcam a transformação de formas de direção e gover-


no das populações, a partir de diferentes modalidades de
vida social e de utilidade pública. A escola é significada como
o espaço privilegiado que possibilita a "formação do cida-
dão" e, por isto, as populações devem passar pela escola, já
que ela "é garantia de uma língua comum, de uma identida-
de nacional, de hábitos de comportamento e de uma
racionalidade determinada".
A proliferação dos discursos sobre o educativo institu-
cionalizado distribui-se de um modo tal que a escola passa a
ser considerada como um bem em si mesma e, por isto,
uma necessidade de primeira grandeza, a qual é exigida
pelas populações ocidentais, em nome da mobilidade social
e do vínculo internalizado entre educação e desenvolvimento
social. Inúmeros estados nacionais reorientam recursos e cré-
ditos para atender a essa demanda, de maneira a colocar a
educação como instrumento básico para obter maiores ní-
veis de produtividade, bem como para superar a pobreza, a
ignorância e o atraso (ib., p. 11-2). Se a instrução pública do
século XIX estava vinculada ao exercício político de formar o
cidadão e de constituir as nações, a chamada "mundialização
da educação" vincula-se a um determinado projeto econômi-
co que tem como um de seus postulados inserir os países da
América Latina e do Terceiro Mundo na modernidade
neocapitalista, pela via da escolarização-educação.
Desde que foi constituída como instituição moderna, a
escola tornou-se um ponto de referência de diferentes seto-
res sociais, enquanto "espaço de disputas que concentra os
olhares, gera discursos especializados e expressa campos de
força, tensões e enfrentamentos" (ib., p. 13). Espaço con-
testado que, ao lado de outros, põe em jogo a governa-
mentalidade da população, especialmente a infantil, e seu
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA. 1 5 9

disciplinamento em termos da conformação de um corpo


dócil e utilitariamente funcional às diversas estratégias da
dinâmica social. Entre algumas de suas linhas invariáveis, ao
lado das dissimilitudes regionais, nacionais ou locais, a esco-
la - com seus mecanismos e táticas de normalização, im-
plantação de hábitos e rotinas, transmissão de conteúdos
uniformes, horários, distribuição espacial, execuções disci-
plinares, operacionalização de formas determinadas de
racionalidade e de subjetividades, criação de interesses, ne-
cessidades, afetos e desejos - produz a infância, por meio
do discurso pedagógico que, no infantil e em seu desenvolvi-
mento, encontra razões sociais, culturais, econômicas e polí-
ticas que justificam sua necessidade cultural, existência polí-
tica e subsistência institucional.
Ao lado do dispositivo de familiaridade, a Época Mo-
derna implementou também a escolarização abrangente da
sociedade ocidental, direcionando essas duas práticas sociais
para, entre outros efeitos, constituir a infância. Os poderes
e os saberes efetivados pelo dispositivo de infantilidade fize-
ram com que a Pedagogia, cada vez mais concebida como
uma disciplina cientificamente orientada, se encarregasse
dessa tarefa política, de modo que a infância representasse
"o ponto de partida e o ponto de chegada da pedagogia",
"motivo de quase todos seus cuidados e fonte de boa parte
de suas preocupações", "conditio sine qua non da produção
pedagógica" (Narodowski, 1994, p. 23).
A infância tornou-se, por efeitos de tal mecanismo pe-
dagógico, uma infância-escolar: segregada de modos diver-
sos - por idade, raça, etnia, gênero, cl^óse e grupo social,
religião e crenças, diferença e escolha sexual, capacidade
intelectual ou física e identidade nacional -, nos guetos que
integraram os sistemas assistenciais, de recuperação, tutela-
res, de capacitação, educação, reeducação e terapêuticos.
1 9 Q HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Sistemas que, para funcionar, utilizam-se do Exame, em


suas diversas formas, seguido de qualificativos, das normas e
de violências disciplinar es, dos currículo oficiais e daqueles
"em ação", de planos racionalizados e burocratizados, da
defesa dos direitos e da exigência de cumprimento dos de-
veres infantis.
A infância-escolar veio a dar em uma infância minu-
ciosamente pedagogizada, em seus corações e mentes, pe-
las disciplinas educativas, de modo que todo seu comporta-
mento passa por ser codificado em conceitos de normalida-
de, através de métodos de normalização cada vez mais exa-
tos e criteriosos. A "conquista da criança pela ciência" fez-se
acompanhar de uma pedagogia que "cerca o caminho da
vida humana com cartazes de sinalização" (Brinkmann, 1986,
p. 16-7); mas que também trata da vida infantil desviada,
deficiente e patológica com recursos farmacológicos, quimio-
terápicos, ortopédicos e psicoterapêuticos.

CENA DOIS. INFâNCIA EM AFANISE NO TELéGRAFO

Contemporaneamente, essa infância - nascida e cria-


da no surplus escolar e pedagogicista, no afeto e na dedica-
ção da família burguesa, no espaço urbano, nas instituições
educacionais - depara-se com uma outra enunciação en-
quanto categoria social e individual: a infância não é mais
produzida somente pela família e pela escola, como quise-
ram inicialmente Aries e quase todos/as os/as historiado-
res/as da infância que o seguiram, já que começam a ser
descritos outros espaços e práticas sociais que produzem
uma infância - ou uma "não-infância" - em quase tudo
diferente daquela formada desde a Época Clássica até mais
ou menos os anos 50 do século XX.
HISTÓRIAS DE G O V E R N ü : CRIANÇAS E C I A . 1 9 1

Aquela infância - pequenina, distinta, dependente,


subordinada, inocente, culpada, má, selvagem, amoral, irra-
cional, temente, maleável, racionalizável, moralizável,
aterrorizável, imobilizável, controlável, libertavel, conscien-
tizável, regulável; numa só palavra, educável - estaria em
processo de afanise, de desaparecimento, de scomparsa.
Todas as características que colocaram sua natureza em po-
sição de ser cuidada, disciplinada, formada, educada pelos
indivíduos adultos e suas instituições foram dadas por Johanes
Gensfleich Gutemberg e perdidas por obra de Samuel Finley
Morse.
Outra não é a posição do livro de Postman (1984), o
qual, dentre outros analistas da infância contemporânea (cf.
Corazza, 1998, p. 305-36), aponta que a infância já é pas-
sado: nascida, desde quando Gutemberg inventou a impres-
são do livro com caracteres móveis; falecida, desde quando
Morse inventou o sistema alfabético, que leva seu nome, e o
telégrafo de escrita eletromagnética. A invenção da impren-
sa, em 1450, teria feito aparecer a idéia de infância, en-
quanto o telégrafo, criado em 1844, precursor dos contem-
porâneos meios eletrônicos, teria colocado em jogo o recen-
te processo de seu desaparecimento e o fim dessa idéia.
Para Postman, a necessidade social de aprender a ler e
a escrever, e a conseqüente incapacidade das crianças para
fazê-lo, produziram uma nova idéia de adultez, esta sim ca-
paz dessas ações: criava-se uma nova figura adulta, a do
literatus, isto é, do "homem culto" que sabia ler e escrever;
figura que, "ao fazer-se presente, havia deixado atrás de si a
infância". Anteriormente a esse mundo circundante, a infân-
cia encerrava-se aos sete anos e o homem entrava direta-
mente na idade adulta. Com o surgimento dessa nova
literalidade social, promovida por um outro mundo simbóli-
co, no qual existe assédio e repressão à cultura oral pela
1 <3Z HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

escrita, o adulto deixaria de ser criança quando acedesse a


tal literalidade e a criança seria criança somente até que o
fizesse: "A imprensa produziu uma nova definição de adultez,
fundada na capacidade de ler e, de modo correlato, criou
uma nova concepção de infância, sustentada na incapacida-
de de ler".
Dessa "revolução" que deu origem à infância podem
ser indicados quatro efeitos pedagogicamente importantes:
1) fazem-se necessárias organizações especializadas que te-
nham o propósito de exercitar as crianças nas artes de ler e
escrever, já que elas não são mais adultos pequenos, mas
crianças-escolares; sendo que sua participação na aprendi-
zagem escolar organizada converte-se em nova característi-
ca essencial do infantil, por estabelecer a escola como centro
de sua vida; 2) resulta possível, em uma medida antes des-
conhecida, um controle do ambiente simbólico das crianças
pelos adultos, e estes concebem, ao mesmo tempo, funda-
mentos pedagógicos para introduzir as crianças em uma parte
da cultura escrita, retirando-as de outros espaços culturais;
3) o livre acesso aos mistérios culturais do mundo dos adultos
e de seus conhecimentos converte-se em critério de demar-
cação central para a infância, já que o adulto possui os sabe-
res que se julgam pouco indicados para as crianças (cf.
Brinkmann, 1986, p. 12); 4) pelo aprendizado da leitura,
reestrutura-se a mente da criança, colocando-se diante dela
um novo mundo de experiências, que lhe exige um aumento
da compreensão e a utilização de símbolos abstratos que
enriquecem seu imaginário (cf. Trisciuzzi e Cambi, 1989, p.
143).
Paradoxalmente, entre os anos de 1850 e 1950, quan-
do a infância teria vivido, como categoria social, um período
denso de plenitude - por assim dizer, "o clímax de sua jorna-
da" (Postman, 1984, p. 68) -, aí mesmo, a idéia social de
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 9 3

infância teria começado a perder-se, a entrar em declínio, a


cair no ocaso, a desaparecer, por efeitos da transformação
das condições de comunicação, dos mass media e da infor-
mação. A idéia central da tese de Postman, acerca do desa-
parecimento da infância, é que "a época discursiva da con-
trovérsia e da cultura literária, simbolizada pela imprensa, é
substituída pela época narrativa do show-business e da cul-
tura visual, sob a tirania dos meios eletrônicos" (Brinkmann,
1986, p. 14).
A qualidade da notícia industrializada teria provocado
os deslocamentos do discursivo ao não-discursivo, do lingote
tipográfico à imagem, do intelectual ao afetivo. Enquanto a
linguagem do período da palavra impressa era uma abstra-
ção a partir da experiência, agora as imagens seriam repre-
sentações concretas da experiência. Em conseqüência, es-
ses "Novos Meios" fraturam o monopólio parental e escolar
dos controles informativos, bem como desajustam suas me-
didas psicológicas e pedagógicas de transmissão seletiva dos
saberes e da ilustração sobre os mistérios do mundo e da
vida.
A infância eclipsa-se porque os mass media, especial-
mente a televisão, não distribuem seu público, fornecendo
as informações indistintamente tanto aos adultos quanto às
crianças. "Olhar" televisão, diferentemente do "ler" moder-
no, não pressupõe nenhuma capacidade analítica nem refle-
xiva e não requer instruções porque não formula exigências
elevadas ao pensamento nem à ação, não existindo dificul-
dade alguma em decodificar as imagens. Esse "meio de re-
velação total" mostra tudo, sem ocultar nenhum segredo; e,
sem mistérios adultos, não pode existir uma coisa tal como a
infância. Diante da televisão, as crianças e os adultos são
iguais, abastecem-se na mesma fonte de notícias e de entre-
tenimento. A televisão faz com que termine a distinção his-
1 9 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

toricamente construída: entre duas culturas, uma infantil,


outra adulta, e entre dois tipos de conhecimento, como a
leitura e a escrita haviam promulgado. A televisão é fácil:
"oferece uma alternativa bastante primitiva, mas irresistível,
à lógica linear e conseqüente da palavra impressa e tende a
eliminar a dificuldade própria de uma educação formal";
não requer nenhuma instrução anterior para ser compreen-
dida em sua forma; não impõe questões difíceis de natureza
intelectual ou ética (Postman, 1984, p. 102-3).
Dando cabo da distinção moderna adulto/criança, a
televisão - assim como todo o restante da vida social,
midiatizado - opera na direção de acelerar o desenvolvimen-
to infantil, adultizando a criança e infantilizando o adulto,
por incorporá-los conjuntamente a uma mesma moral de
c o n s u m o e a uma m e s m a d e p e n d ê n c i a da sociedade
tecnológica e dos milagres da técnica.
Respondendo a uma das questões que ele mesmo for-
mula - "Existirá alguma instituição suficientemente forte para
resistir ao declínio da infância?" - , Postman (1984, p. 150-
2) afirma que apenas duas instituições têm interesse em
praticar tal resistência: a Família e a Escola. Quanto à pri-
meira, em função de sua estrutura atual, a autoridade fami-
liar apresenta-se sensivelmente diminuída em seu controle
sobre as informações proporcionadas às crianças. Se a tele-
visão é a "Segunda Mãe " / o "Segundo Pai", como dissera
Margaret Mead, dentro da Television Age, os pais podem
ser considerados como os "Quarto" ou "Quinto Pai/Mãe",
em lugar subalterno atrás da televisão, do rádio, dos filmes,
das músicas, do telefone, que funcionam hoje como seus
substitutos.
Se a mídia diminui e enfraquece o papel das famílias
na produção e mudança dos valores e das sensibilidades in-
fantis, costuma ser tomada por essas mesmas famílias como
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 9 5

a fonte de verdade sobre suas crianças: os pais atribuem aos


médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familia-
res, psicanalistas, professores e jornalistas um saber mais
confiável e demandam que eles/as lhes digam o que devem
fazer e como se relacionar com seus filhos. Essa necessidade
de aconselhamento e de orientação implica uma perda da
intimidade, da dependência filial-patemo e da confiança que
caracterizaram as antigas relações pais-filhos. Tais relações
são agora significadas como essencialmente "neuróticas" e
os filhos são melhor entendidos e atendidos pelas instituições
especializadas do que por suas famílias.
Ainda "mais devastador", diz Postman, para o poder
da família é o movimento de liberação das mulheres: sua
ocupação nos negócios, artes, indústrias, profissões, implica
um acentuado declínio dos padrões tradicionais de cuidado e
educação dos filhos. Se foram elas quem, preferencialmen-
te, observaram, cuidaram e protegeram as crianças, hoje
encontram-se espalhadas pela sociedade. Tanto para essas
mulheres, quanto para os homens, o melhor mesmo é "o fim
da infância" e que termine o mais cedo possível. Por todos
esses motivos, "a família americana não faz forte oposição
ao desaparecimento da infância".
Restaria a Escola como a instituição que ainda funcio-
na, baseada no pressuposto de que existem diferenças im-
portantes entre a infância e a adultez e que, por isso, os
adultos têm coisas de valor a ensinar às crianças. Essa insti-
tuição que, talvez, tivesse interesse e forças suficientes para
resistir ao fim da infância, ainda produz pedagogos otimistas
que escrevem livros para mostrar como os professores de-
vem conduzir a si mesmos e, sobretudo, como eles podem
conservar as funções de educadores e os empregos que têm.
Contudo, o declínio da autoridade escolar tem sido farta-
mente demonstrada, especialmente em termos de sua supe-
1 9 S HISTÓRIA DA INFÂNCIA 3EM FIM

ração por mudanças radicais na estrutura das comunicações,


como mostrou Marshall McLuhan: as escolas, hoje, são mui-
to mais "casas de detenção" das crianças do que "casas de
atenção" às crianças.
Acrescente-se a essa situação o fato de que os educa-
dores e educadores encontram-se confusos quanto a sabe-
rem se estão lidando com telespectadores ou com crianças:
em muitas escolas, essas são tratadas como adultos em mi-
niatura. Não poderia ser diferente, já que as escolas refle-
tem as tendências sociais muito mais poderosamente do que
conseguem opor-se a elas. Tendo sido criada pela necessida-
de social de ensinar a ler e a escrever, a instituição escolar
não é um joguete facilmente manipulado pela mídia, tal
como o é a instituição familiar. Embora não tenha como
diluir os efeitos midiáticos, a Escola ainda é a última defesa
contra o desaparecimento da infância. Sem esquecer, afir-
ma Postman, das dificuldades advindas do fato de que tanto
seus professores quanto seus administradores são também
produtos dos mass media.

CENA TRêS. INFâNCIA A-EDIPICA

Trisciuzzi e Cambi (1989) ressaltam a continuidade do


reconhecimento do valor da infância no século XX e o deslo-
camento do "sentimento de infância" ao "direito da infân-
cia", como o aspecto mais significativo de tal reconhecimen-
to, atribuindo-o a fatores como: 1) o crescimento econômico
que, ao distribuir melhor a renda, levou também as famílias
pobres a colocarem as crianças no centro de suas vidas; 2) o
sentido burguês dominante das sociedades de massa, que
individualizou a criança e seus cuidados e fortaleceu um sis-
tema de valores, para o qual a Família e o Estado foram
considerados como formas essenciais de vida social, bem
HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA. 1 9 "7

como a produtividade e o sucesso foram tomados como prin-


cípios da vida moral individual; 3) o modo de funcionamento
e organização da sociedade industrial que generalizou a mu-
dança da instituição familiar para o modo de família nuclear
(ib., p. 127-8).
Essa posição gira ao redor do pressuposto central de
que, enquanto as teorias reconhecessem os direitos da infân-
cia, as práticas sociais mudaram muito pouco. A sociedade
de consumo coloca em primeiro plano a figura de "uma
criança falsa e ideológica", incitando a ternura e envolvendo-
nos a todos em uma forte corrente sentimental com um
"falso de infância", com uma "infância falsa": aí se confor-
ma uma criança bela, simpática, inocente, sorridente, obe-
diente, sem problemas, feliz diante de um prato de batatas
fritas, bem-sucedida na escola. A personalidade infantil é
configurada na mídia como dependente do mundo adulto,
porém, contente por essa dependência: uma infância como
os adultos desejam - afetuosa e maleável, sem anseios de
autonomia e sem gestos de rebelião, sem traumas e sem
angústias. Desse modo, o homem contemporâneo vê e pen-
sa a infância dentro de uma irrealidade: como uma idade
serena e inocente, que possui um valor em si mesma e que
deve ser protegida e gratificada. A publicidade precisa sedu-
zir o adulto consumidor para levá-lo a um produto, é certo;
mas, para realizar isso, representa a infância de maneira
ilusória, tornando-se nefasta ao criar na própria criança fal-
sos desejos e, no adulto, modelos ideológicos de infância que
prejudicam suas relações com as crianças concretas, de car-
ne e osso. Em conseqüência, a infância perde sua autono-
mia por ser interpretada e codificada de forma universal,
definitiva e enganosa.
Se o Novecentos atribuiu à infância um lugar central
na sociedade, exaltando-a, nosso século não terminou com a
antiga violência contra as crianças; ao contrário, inventou
1 9 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

novas formas de abandono e de exploração infantis, das


quais são exemplares o confinamento e o isolamento a que
as crianças são submetidas diante da televisão: "a infância e
a adolescência são domínios da ideologia dos meios de co-
municação de massa". O século XX melhorou as condições
materiais e psicológicas de vida das crianças, mas a explora-
ção comercial e o abandono e isolamento que inventamos
para elas fazem com que a identidade social dessa infância
seja contraditória: encontramo-nos diante de uma infância
que se prolonga no tempo e, paradoxalmente, exigimos dela
um desenvolvimento acelerado. Se, por um lado, a condição
privatizada da infância coloca-a por um longo tempo sob a
tutela dos pais e a infância vive, na escola, uma situação de
constante subalternidade, por outro, a idade infantil con-
trai-se, através da linguagem, do conhecimento das coisas,
das experiências adultas. A infância dilata-se em seu tempo
de duração, porém contrai-se em sua própria estrutura. Tais
movimentos dão vida a um ser híbrido que é muito infantil e
muito adulto, muito dependente e muito autônomo: "Um
híbrido, de fato, contraditório" (ib., p. 130-3).
Aceitando a tese principal de Postman, Trisciuzzi e
Cambi afirmam que, através da televisão, a criança se
adultiza, tendo acelerado seu desenvolvimento de maneira a
ficar privada da própria fantasia e da capacidade de parar
para refletir: morte em gestação, a qual, se não está total-
mente realizada, encontra-se em curso de produção por efei-
tos do mundo tecnológico. Quando se fala em direitos das
crianças, de sua identidade psicológica e cognitiva, não se
estaria falando de um sujeito em vias de extinção?, pergun-
tam eles. Pode-se pensar, respondem, que agora existe uma
"outra criança", que não aquela da revolução burguesa, cons-
tituída por duas identidades sociais: a "criança violentada" e
"a criança expropriada" (ib., p. 134-43).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 1 9 9

A "violentada" é a criança que aparece nas páginas


policiais dos jornais, inserida numa condição marcada pela
violência, miséria e abandono: desnutrição, abandono em
massa, violência familiar, prostituição, comércio sexual, por-
nografia, incesto. A insuficiência econômica, a neurotização
da vida familiar, a exploração comercial, o enfraquecimento
do tabu do incesto explicariam tal condição, embora sejam
causas ambíguas: se, por um lado, ao demonstrar isso, a
imprensa torna a opinião pública mais sensível ao problema
dessas crianças, criando instrumentos de vigilância e inter-
venções corretivas e de sustento, por outro, configura uma
disposição mental coletiva para prosseguir aceitando que a
infância possa ser tratada dessas formas. Para Trisciuzzi e
Cambi, deve-se continuar trabalhando "para implantar, no
tecido social, uma norma moral que regule as relações com a
infância. Uma norma que obrigue, se não a amá-la, ao me-
nos a respeitá-la".

A outra criança, a "expropriada", é aquela criança real,


produto de ações conjuntas da mídia e do consumo; expro-
priada de um direito fundamental: "a possibilidade de viver
plenamente e segundo seu tempo uma idade importante
que deve conduzi-la em direção a uma maturidade baseada
no equilíbrio". Uma criança que é produto da família e da
sociedade até mesmo em seu inconsciente, e para quem a
escola torna-se menos importante e bem menos incisiva, já
que passa mais tempo e com maior densidade imersa em
universos que antes eram próprios do mundo adulto: está
em qualquer parte do mundo pela televisão, sua linguagem
evolui rapidamente, sua lógica é formal e dedutiva precoce-
mente, usa o computador. Todas essas ações, agora infan-
tis, funcionam para "racionalizar a infância", originando a
criança cognitiva de nossa época: "sedentária e contempla-
tiva, que espera, que não manipula nem explora em pri-
Z D D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

meira pessoa. É uma criança capturada em um universo


de imagens, mas que não o cria, somente o recebe e incor-
pora".
A escolarização não consegue corrigir a tendência que
cria essa criança expropriada; ao contrário, aceita-a e mes-
mo a estimula: aceita-a quando delega o papel de maior
importância ao crescimento cognitivo da criança, limitando-
se a ordenar o processo de apropriação precoce do esquema
cognitivo do adulto; estimula-a quando se torna uma escola
exclusivamente cognitiva e instrutiva, na qual a Ciência e
seus métodos são centrais, tal como exigem a sociedade e a
cultura, delegando a posições secundárias os desejos da crian-
ça, seus elementos sociais e afetivos. Ao atribuir maior aten-
ção à relação entre a criança e a Ciência, direcionando-se
para a criança cognitiva, a Escola dá vida a uma criança
nova e diferente daquela do passado: "Uma criança mais
adulta e mais racional, sobretudo adulta e racional muito
cedo, uma criança da e para a civilização da técnica"
(Trisciuzzi e Cambi, 1989, p. 140). Essa é a mais recente
revolução cognitiva da infância: pela via do conhecimento,
não temos mais a criança que manipulava, que operava con-
cretamente, como postulou Piaget; não temos mais a crian-
ça que lidava e brincava com os animais, mas aquela que
"sabe" sobre eles. Nessa escola contemporânea, os aspectos
racionais subsumem a raiva, o medo, o desejo; as fantasias
e os heróis são agora reinterpretados pelo mito tecnológico
dos desenhos animados.
Dessa criança cognitivo-tecnológica, também o incons-
ciente é transformado - afirmam Trisciuzzi e Cambi -, não
em sua pulsão ou dinâmica fundamentais, mas em sua ma-
nifestação histórica. Pode-se pensar na relação edípica, em
que o modelo freudiano não funciona mais, já que as figuras
do pai e da mãe são menos opostos e menos rígidos: o pai
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 D 1

não é mais autoridade e a mãe é menos protetora e gratifi-


cante; tanto um quanto a outra estão distantes da criança, já
que a mãe trabalha fora de casa; em casa, o pai opera como
a mãe, cuidando, dialogando, jogando: ambos fabricam a
nova criança a-edípica.

CENA FINAL. CAI U PAND

A infância, dizem Trisciuzzi e Cambi, em condições


sociais pós-modernas tende a desaparecer "não de todo",
mas a transformar-se, a empobrecer-se, a anular-se como
mundo à parte, como valor específico e como etapa singu-
lar: declina, extingue-se, está quase morrendo. Teria entra-
do em eclipse uma idéia de infância que teve uma caracteri-
zação precisa e uma identidade histórica particular. Pergun-
tam, inicialmente: "Quais os elementos que desapareceram
daquela infância que já é passado"? Postman respondera a
essa questão sublinhando a diferenciação em relação ao adulto
e o distanciamento advindo por um uso mais sofisticado da
mente, realizada através da leitura, hoje substituída pela ima-
gem. Os historiadores italianos concordam e acrescentam: a
perda, ou o redimensionamento da fantasia e da operativi-
dade do plano cognoscitivo; a racionalização precoce; o modo
de fazer experiências concretas; o imaginário que é suprimi-
do; o inconsciente que se modifica radicalmente; as perso-
nalidades e os sentimentos infantis que s ão hoje empobre-
cidos.
Como será a infância pós-moderna que nasce do desa-
parecimento daquela infância criada pela sociedade e pela
cultura modernas? Se, hoje, aquela infância desapareceu,
encontrando-se em processo de afanise, o que fazer? Não
pretender voltar ao passado ou viver em sua nostalgia, res-
pondem Trisciuzzi e Cambi, e sim repensar a infância de
Z D 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ontem e a de hoje, dando vida a uma "cultura da infância",


que seja "consciência histórica, psicológica e filosófica da
criança", com o objetivo de esclarecer essa complexa identi-
dade; partir daqui para "corrigir ou integrar, tanto quanto
seja possível, a situação na qual a criança atual vive" (Trisciuzzi
e Cambi, 1989, p. 143).
O que se vai fazer diante dessa morte? Compreender
acima de tudo; aceitar sim, mas sem rendição total, se pos-
sível (ib., p. 147-8): fazendo agir, seja a recordação do pas-
sado daquela infância que está desaparecendo, seja a de-
núncia do totalitarismo do presente - da criança tecnológica
-, para deixar aberta alguma possibilidade de esperança na
condição atual da criança violentada, "à qual cabe prevenir e
defender, criando mecanismos oficiais ou voluntários para
uma operação articulada de educação" (ib., p. 136). E ne-
cessário criar condições políticas para que nosso futuro se
realize: "ou como triunfo da técnica, ou como gradual enfer-
midade do homem, de quem a criança é a matriz e o anún-
cio" (ib., 148).
Postman conclui seu livro dirigindo-se aos pais, publici-
tários, comunicadores, jornalistas, educadores e a todos os
profissionais que trabalham com a infância para que promo-
va-se "a resistência ao espírito da época": "Não é concebí-
vel que nossa cultura esqueça que necessita das crianças.
Mas parece estar se esquecendo que também as crianças
necessitam da infância. Aqueles que insistirem em lembrar
disto, estarão prestando à sociedade um nobre serviço"
(Postman, 1984, p. 153). Como ele próprio, certamente.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 O 3

INICIIA AQUIII

A NATIMDRTA ND CAMARIM-TRINCHEIRA

Embora até os séculos XVII e XVIII ainda fosse encon-


trada uma rarefação dos mecanismos contínuos, reguladores
e corretivos do infantil, o início de seu funcionamento que
penetrava nos corpos, nos gestos e nos comportamentos de
grupos e de individualidades, sinalizava, na consecução de
seu próprio princípio de dispersão, para o posterior direito
das crianças à vida em um mundo especificamente infantil.
Mundo que seria produzido e fortalecido pelos mecanismos
disciplinares, dedicados a operar, por meio de diversas
tecnologias, outro tipo de controle de um corpo que, por
longos séculos, fora prioritariamente imobilizado, afastado,
castigado, adoecido, enlouquecido.
Estranhamente, não é que esse "Mundo Infantil", por
efeitos da própria identidade que nele habitaria, foi sendo
produzido como um "Mundo Adulto"? Pois não é surpreen-
dente que essa figura do infantil-adulto não seja exatamente
tão contemporânea, tal como os enunciados do discurso crí-
tico contra o "fim da infância" podem talvez sugerir, mas
apenas o atual episódio de uma série de submissões bem
mais antigas? Pois não é de espantar que o infantil, sujeita-
do, sob múltiplas formas, pelo dispositivo de infantilidade,
como dependente ao Outro, foi adultizado justamente pelo
tipo de sujeição que lhe objetivou?
A análise genealógica de alguns mecanismos discipli-
nares de saber e de poder permitiu a este estudo distinguir,
a partir da Época Clássica até o presente, a ruptura no
dispositivo de infantilidade d'a-vida-a-morte, constituída pe-
los dois conjuntos estratégicos que se empenharam em fabri-
car tal dispositivo: a submissão da identidade infantil ao Ou-
tro e sua adultização. Conjuntos que, através de relações de
Z D 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

dominação e de técnicas de sujeição polimorfas, municiaram-


se de instrumentos de intervenção material, eventualmente
violentos, e levaram as forças das figuras por eles produzidas
- a do infantil-dependente e a do infantil-adulto - a prolon-
garem-se, penetrarem nas instituições, corporificarem-se em
políticas públicas, em leis e regulamentos, e também em
fazer uma das forças enfraquecer e a outra recobrar todo seu
vigor a partir desse mesmo enfraquecimento.
Se o indecidível a-vida-a-morte pôde ser articulado sem
nenhum espaço "de maturação" entre seus termos, é conve-
niente perguntar se a história da infantilidade não estaria
terminada, nada mais havendo a contar nem a escrever, por
inscrever-se, ali, nos hífens que ligam suas palavras, toda a
história que a vem ocupando. Acontece que a análise tanto
da Herkunft quanto da Entestehung, em seu disparate e
afrontamento, levam este indecídivel a antagonizar com qual-
quer evolucionismo ou desenvolvimentismo, por operarem
não ao modo de uma história-relato e sim ao modo de uma
história-problema, para a qual não existe nenhum "proble-
ma" se uma identidade, um sentimento, uma idéia, um indi-
víduo ou um sujeito não tem de passar pelo etapismo do
tipo " nasce-cresce-morre ".
O tempo desse indecidível é um tempo sem cronolo-
gia, sem sucessões, sem calendário. Sua história não apre-
senta uma recorrência linear, que trace o processo histórico
em termos de etapas necessárias para o "bom fim", em que
as coisas vão do inferior ao superior. Sua epistemologia his-
tórica desfaz a concepção evolucionista, por acentuar a di-
versidade e a descontinuidade, assinalar as singularidades e
as fissuras na continuidade, atribuir ao tempo uma duração
diferencial e provocar a quebra na homogeneidade tempo-
ral: em poucas palavras, produzir fenômenos de ruptura.
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 • 5

A-vida-a-morte não é uma evidência epistemológica,


nem cronológica, por certo. Consiste numa série histórica,
estabelecida mediante o ordenamento dos conjuntos "a vida"
e "a morte", que se formou pela repetição do valor "infan-
til", seu enlace seqüencial. Frente a causalidades lineares e
estruturais, o acontecimento dessa série substitui o positivismo
dos fatos "a vida" e "a morte", bem como o idealismo de
seus signos; indica suas durações dissímeis, estritamente de
acordo com a heterogeneidade do tipo de acontecimento
referido e com a série de relações, ambos marcados na
materialidade múltipla do tecido documental examinado: re-
latos, registros, instituições, regulamentos, técnicas, objetos,
costumes. Suas mudanças emergiram, no campo enunciativo,
quando apareceram novos problemas, enunciados de com-
posição inédita, variações dos modos de enunciação e trans-
formações no estilo de tratamento do infantil.
Se é razoável pensar que a linha originária da história
da infância - a inocência infantil - somente pôde ser ativada
pela matriz geral do sacramento do Batismo (cf. Corazza,
1998, p. 192-290), a linha de força por onde seguiu a edu-
cação escolarizada situa-se do lado daquele outro "senti-
mento" descoberto por tal história: do lado de uma identida-
de primordialmente culpada, transformada na dependência
desprezível própria dos irracionais e na submissão necessária
dos imorais. Foi este acidente, pequeno desvio, e também
inversão completa, que deu proveniência ao corpo infantil; e
não uma dinâmica cultural, nem longa nem gradual, ligada à
maior privacidade da família conjugai e à melhoria do pro-
cesso de escolarização.
Se, nos tempos presentes, a infância vem desapare-
cendo, sendo perdida, negada, ultrajada, morta, extermina-
da, a inclusão do fim-de-infância no mesmo eixo d'a-vida-a-
2 D 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

morte, justifica-se pela condição de emergência do infantil


ocidental, o qual, desde que "nasceu", foi significado como
uma identidade "natimorta": ou seja, como uma identidade
que nasceu morta ou que, tendo vindo à luz com sinais de
vida, logo morreu (Aurélio, 1974, p. 971). A unidade estra-
tégica da adultização, que produz a morte do infantil, pôde
constituir-se porque essa identidade dependente, distribuída
junto às outras também nascidas subordinadas, não nasceu
nada bem: unidade produzida, como vimos, pelo dispositivo
da Roda e por seu sucedâneo, o da escolaridade.
Embora considerando as infâncias "concretas", trata-
das social e politicamente de formas diferenciadas, interessa
marcar que esse deslocamento atual no discurso "abstrato"
da infância, sobre seu desaparecimento ou negação, impli-
caria que a transformação das condições sociais modernas é
que teria produzido o chamado "fim-da-infância"; assim como
nos veríamos subtraídas/os aos encantos da pedagogização,
já que a pedagogia moderna ficaria excluída "como esque-
ma normal de explicação e predição das ações empreendi-
das sobre e pela infância escolarizada", virando somente "uma
peça de museu que deve ser visitada em busca da compre-
ensão de um fenômeno - a infância moderna - que já dei-
xou de existir" (Postman, 1984, p. 199). Isto é, estaríamos
implicadas/os, não somente no fim da infância, como em
outros "fins", a este articulados: da adultez, da Pedagogia,
da Escola, de todas as práticas discursivas e não-discursivas
em que são exercidos processos educativos pelas/os adul-
tas/os sobre as crianças e todos os infantis.
Deixando de lado o "tom" nostálgico e apocalíptico
com que esse enunciado de "fim" introduz-se na história
das/os historiadoras/es, cabe dizer que nem tudo e nem
HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A . 2 D "7

sempre pode ser dito apenas desse modo. Por enquanto,


talvez, se possa dizer o "fim-da-infância", sim; porém, sim-
plesmente como "o nome" do enunciado mais atual de inci-
tamento da infantilidade, promovido pelo jogo de poder e
pela explosão do jogo discursivo acerca do infantil. Jogos
que, ao acenarem com o "desaparecimento" da infância,
revestem-na de um mais alto valor moral; fazem com que a
força d'a-vida lute contra a força d'a-morte, dentro do pró-
prio dispositivo de infantilidade; redistribuindo todas as for-
ças, levam tal dispositivo a revigorar suas forças, por extraí-
las daquelas que são apresentadas como enfraquecidas; im-
põem limites, suplícios, macerações a este movimento de
lassidão-fortalecimento, levando-nos a continuar obsessiva-
mente falando e praticando "uma infância", mesmo que
perdida, a ser resgatada, defendida, e perpetuamente pro-
duzida.

Chega-se assim ao ponto crucial do presente, no que


se refere ao infantil: àquela encruzilhada de onde este estu-
do partiu para escavar as camadas possíveis e desemara-
nhar algumas linhas da infantilidade, de onde deriva "a in-
fância" - esta idéia, este imaginário, esta ficção, se se qui-
ser; de todo modo, esta instância de poder-saber-verdade.
Daqui para a frente, resta, não a análise do "resíduo infan-
til", como gostaria a Psicanálise, mas o prosseguimento da
tarefa analítica que buscará, ainda outra vez, visualizar e
descrever o revigoramento das novas forças do dispositivo de
infantilidade; por surpreendê-lo funcionando em outros dois
conjuntos estratégicos, que talvez sejam as últimas trinchei-
ras da infantilidade deste século: a pedagogização e a
sexualização do corpo e da alma infantis.
2 D B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Falta responder ainda às seguintes perguntas pertinen-


tes ao infantil de nosso presente: por que uma identidade
como esta, emergindo como uma identidade natimorta, pros-
segue requerendo operações sociais, culturais, políticas de
governo de nós mesmas/os e das/os outras/os, cuja urgên-
cia e carga de sobretrabalho apontam para a extração de
uma mais-valia do infantil? Quais os interesses de nossas
instituições, costumes, condutas, técnicas, necessidades, prá-
ticas, que justificam uma extração de formas e forças de tal
identidade? Por que prosseguimos falando do infantil não
para expressar pensamentos - traduzindo o que já sabemos,
fazendo jogar as estruturas da língua - , mas para "fazer
algo"? Qual "o preço" que pagamos para poder dizer a ver-
dade sobre nós mesmas/os como sujeitos-infantis? A que
custo falamos "sinceramente" sobre nós, levando em conta
que se foi, se é, ou será "um/a infantil"? Qual o preço pago
pela relação de eu-a-eu, cujo ponto de aplicação concerne
ao infantil como "outro", e pelo qual se paga não somente o
preço teórico, mas também o institucional e o econômico,
como determina a organização escolar, por exemplo?

Vejamos como as peças continuam a ser montadas para


instituir a segunda ruptura na história da infantilidade e equipar
de verdade o terceiro e o quarto conjuntos estratégicos; os
quais, se ainda dotam o infantil de alta coerência, permi-
tem-lhe atingir mais do que certa eficácia na ordem do po-
der e produtividade na ordem do saber: o lucro sobre uma
mercadoria que, esta sim, apresenta-se como bem mais con-
temporânea: "a-intàr.cia-sem-fim".
MAIS-VALIA

Mais-valia pensada com algumas ferramentas conceituais


de Economia Política elaboradas por Marx (1978a,b; 1980;
1987) e usadas, neste trabalho, em suas unidades mais sim-
ples, de forma seletiva e resumida: 1) sob a rubrica " 1 " , ao
modo como Marx as desenhou; 2) sob a rubrica "2", em
termos das relações analógicas já configuradas por este estu-
do e também como problemáticas ainda em exame; após o
asterisco [*], remetendo o que foi analogizado ao texto da
rubrica " 1 " , para ser lido à luz dos ditos de Marx.
Poder e não vontade
"Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista con-
siste em encher os bolsos, o mais que possa. E o que temos
a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar
o seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limi-
tes" (Marx, 1978b, p. 59).
Ferramentas
A mercadoria 1. A mercadoria é um objeto externo,
uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, prove-
nham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira
como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamen-
te, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indi-
Z1 • HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

retamente, como meio de produção. Cada coisa útil pode


ser considerada sob duplo aspecto, segundo qualidade e quan-
tidade. Cada objeto é um conjunto de muitas propriedades e
pode ser útil de diferentes modos. Constituem fatos históri-
cos a descoberta desses diferentes modos, das diversas ma-
neiras de usar as coisas, e a invenção das medidas, social-
mente aceitas, para quantificar as coisas úteis.
A mercadoria 2. O infantil - a infância, as crianças &
Cia. -, tal como produzido pelo dispositivo de infantilidade.*
Valor-de-uso 1. A utilidade de uma coisa faz dela um
valor-de-uso. Esta utilidade não é algo aéreo, mas determi-
nado pelas propriedades materialmente inerentes à merca-
doria, somente existindo através delas. A própria mercado-
ria é um valor-de-uso, um bem. Esse caráter da mercadoria
não depende da quantidade de trabalho empregado para
obter suas qualidades úteis. O valor-de-uso só se realiza com
a utilização ou o consumo. Os valores-de-uso constituem o
conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma
social dela. Na forma de sociedade capitalista, os valores-de-
uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-
troca.
Valor-de-uso 2. Qual a utilidade do infantil, identidade
natimorta, na forma da sociedade ocidental do presente?*
Valor-de-troca 1. O valor-de-troca revela-se, de início,
na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies di-
ferentes, na proporção em que se trocam: relação que muda
constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor-de-
troca pareceria algo casual e puramente relativo: um valor-
de-troca imanente à mercadoria. Mas, duas mercadorias so-
mente podem ser trocadas se forem iguais a uma terceira,
que por sua vez delas difere. Cada uma das duas, como
valor-de-troca, é reduzível, necessariamente, a essa terceira.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 11

Essa coisa comum não é a propriedade material das merca-


dorias, a qual só interessa pela utilidade que dá à mercado-
ria e não para estabelecer suas relações de troca. Os valores-
de-troca das mercadorias não passam de funções sociais de-
las e nada têm a ver com suas propriedades naturais: a
substância criadora de valor, comum a todas as mercadorias,
é o trabalho.
Vaíor-de-troca 1. Quais as funções sociais da merca-
doria infantil, que determinam seu valor-de-troca, hoje?*
Trabalho 1. Para produzir uma mercadoria tem-se de
inverter nela ou a ela incorporar uma determinada quantida-
de de trabalho; e não simplesmente trabalho, mas trabalho
social. Aquele que produz um objeto para seu uso pessoal e
direto cria um produto, mas não uma mercadoria. Como
produtor que se mantém a si mesmo, nada tem com a socie-
dade. Mas, para produzir uma mercadoria, não só tem de
criar um artigo que satisfaça a uma necessidade social qual-
quer, como também o trabalho nele incorporado deverá re-
presentar uma parte integrante da soma global de trabalho
invertido pela sociedade. Tem de estar subordinado à divi-
são de trabalho dentro da sociedade e dar origem a valor-de-
uso social. Tempo de trabalho socialmente necessário é o
tempo de trabalho requerido para produzir um valor-de-uso
qualquer, nas condições de produção socialmente normais,
existentes, e com o grau social médio de destreza e intensi-
dade do trabalho. A quantidade de trabalho necessário para
produzir uma mercadoria varia constantemente, ao variarem
as forças produtivas do trabalho aplicado. Quanto maiores
são as forças produtivas do trabalho, mais produtos se elabo-
ram num tempo de trabalho dado, e quanto menores o são,
menos se produz na mesma unidade de tempo. As forças
produtivas do trabalho dependem das condições naturais do
trabalho: fertilidade do solo, riqueza das jazidas minerais etc;
2 1 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

do aperfeiçoamento progressivo das forças sociais do traba-


lho por efeito da produção em grande escala, da concentra-
ção do capital, da combinação do trabalho, da divisão do
trabalho, maquinaria, melhoria dos métodos, aplicação dos
meios químicos e de outras forças naturais, redução do tem-
po e do espaço graças aos meios de comunicação e de trans-
porte e todos os demais inventos pelos quais a ciência obriga
as forças naturais a servir ao trabalho e pelos quais desenvol-
ve o caráter social ou cooperativo do trabalho.

Trabalho 2. O tempo de trabalho socialmente neces-


sário incorporado ao infantil é constituído pelo trabalho his-
tórico de quase quatro séculos. Quais são as forças produti-
vas do infantil do presente, pelas quais se desenvolve o cará-
ter social do trabalho do dispositivo de infantilidade?*
Valor 1. Uma mercadoria tem valor por ser a cristaliza-
ção de um trabalho social. A grandeza de seu valor, ou seu
valor relativo, depende da maior ou menor quantidade relati-
va de trabalho necessária à sua produção. Portanto, os valo-
res relativos das mercadorias se determinam pelas corres-
pondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, rea-
lizadas, plasmadas nelas. As quantidades correspondentes
de mercadorias que foram produzidas no mesmo tempo de
trabalho são iguais. Ou, dito de outro modo, o valor de uma
mercadoria está para o valor de outra, assim como a quanti-
dade de trabalho plasmada numa está para a quantidade de
trabalho plasmada na outra. Todo trabalho é, de um lado,
dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológi-
co, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato,
cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado,
é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma espe-
cial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de traba-
lho útil e concreto, produz valores-de-uso.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 1 3

Valor 2. O valor da mercadoria infantil em relação


com a mercadoria adulta está na razão direta dos tempos de
trabalho invertidos em suas produções e na razão inversa das
forças produtivas dos trabalhos empregados.*
O preço 1. É uma forma particular tomada pelo valor.
Em si mesmo, o preço outra coisa não é senão a expressão
em dinheiro do valor de uma mercadoria.
O preço 2. O valor do infantil se determina, como o de
qualquer mercadoria, pela quantidade de trabalho humano
necessário à sua extração. Na conversão do valor em preço,
trata-se de um processo por meio do qual se dá ao valor
dessa mercadoria uma forma independente e homogênea,
por que se exprime esse valor como quantidade de trabalho.
Que relação guardam o valor do infantil e seu preço do mer-
cado? As oscilações de seu preço no mercado, em determi-
nadas épocas, excederam o valor, ou preço natural, e em
outras ficou abaixo dele, dependendo das flutuações da ofer-
ta e da procura. Se a oferta e a procura se equilibram, os
preços do infantil no mercado correspondem a seu preço
natural, isto é, a seu valor, o qual é determinado pela res-
pectiva quantidade de trabalho necessário para a sua produ-
ção. Agora, abarcando o período de tempo longo, que vem
da Época Clássica até o presente, encontramos que a
flutuação do preço do infantil no mercado, seus desvios de
valor, suas altas e baixas, se compensam umas com as ou-
tras e se neutralizam de tal maneira que, postas à margem a
influência exercida pelos monopólios e algumas outras restri-
ções que aqui temos de passar por alto, vemos que esta
espécie de mercadoria se vendeu pelo seu respectivo valor
ou preço natural. Acontece, analisando um período de tem-
po curto, como o de meados do século XX até hoje, que o
lucro do infantil brotou de uma majoração do preço desta
mercadoria, ou do fato de que se vendeu por um preço que
2 1 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

excedeu consideravelmente o seu valor. Ora, o absurdo des-


ta idéia evidencia-se desde que a generalizamos: o que al-
guém ganhasse constantemente como vendedor, haveria de
perder constantemente como comprador.
Força de trabalho 1. O que o operário vende não é
diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho,
cedendo temporariamente ao capitalista o direito de dispor
dela. Podemos determinar o valor do trabalho, como o de
todas as outras mercadorias.
Força de trabalho 2. O que o infantil vende não é
diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho. O
valor do infantil é, como para todas as outras coisas, o seu
preço; quer dizer, o que se pagaria pelo uso de sua força.
Podemos determinar o valor do trabalho do infantil, nas socie-
dades ocidentais, como o de todas as outras mercadorias.
Mas, antes de fazê-lo, poderíamos perguntar: de onde pro-
vém esse fenômeno singular de que no mercado nós encon-
tremos um grupo de compradores, que possuem coisas, pro-
dutos de trabalho, e, por outro lado, um grupo de vendedo-
res que nada têm a vender senão sua força de trabalho, os
seus braços laboriosos e cérebros? Como se explica que um
dos grupos compre constantemente para realizar lucro e en-
riquecer-se, enquanto o grupo dos infantis vende constante-
mente para ganhar "o pão de cada dia"? A investigação
desse problema deve chamar-se "expropriação originária",
mas ela cai fora da órbita de nosso tema atual. Que é, pois,
o valor da força de trabalho? Como o das outras mercado-
rias, o valor da força de trabalho do infantil se determina
pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la. A
força de trabalho do infantil consiste, pura e simplesmente,
na sua individualidade viva. Para poder crescer e manter-se
como infantil, uma criança, por exemplo, precisa consumir
uma determinada quantidade de meios de subsistência; a
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 1 5

criança, como a máquina, se gasta e tem de ser substituída


por outra criança. Além da soma dos artigos de primeira
necessidade exigidos para o seu próprio sustento, ela preci-
sa de outra quantidade dos mesmos artigos para que sejam
criadas outras crianças, que hão de substituí-la no mercado
de trabalho e perpetuar a raça dos infantis. Ademais, tem
de gastar outra soma de valores no desenvolvimento de sua
força de trabalho e na aquisição de certa habilidade, a ne-
cessária para continuar sendo um infantil produtivo. O valor
da força de trabalho é determinado pelo valor dos artigos de
primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver,
manter e perpetuar a força de trabalho do infantil nas cultu-
ras ocidentais.
O fetichismo da mercadoria 1. À primeira vista, a
mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compre-
ensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho,
cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. Seu ca-
ráter misterioso não provém dos fatores determinantes do
valor, mas da própria forma que o produto do trabalho apre-
senta ao assumir a forma de mercadoria. A mercadoria é
misteriosa simplesmente por encobrir as características so-
ciais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como
características materiais e propriedades sociais inerentes aos
produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social
entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho
total, ao refleti-la como relação social existente, à margem
deles, entre os produtos de seu próprio trabalho. Através
dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mer-
cadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e
imperceptíveis aos sentidos.
0 fetichismo da mercadoria 2. O fetichismo do infan-
til esteve sempre grudado nos produtos do trabalho histórico,
desde quando o infantil - a infância, as crianças & Cia. - foi
2 16 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

gerado como mercadoria. O fetichismo é inseparável da pro-


dução dessa e de outras mercadorias. O objeto útil "infân-
cia" se tornou mercadoria, por ser produto de trabalhos pri-
vados, independentes uns dos outros. O conjunto desses tra-
balhos particulares, realizados por meio de mecanismos de
terror, de controle visceral, de sexualização, de escolarização,
de infantilização e também por outros mecanismos que não
são tratados neste estudo, mas que podem ser descritos por
outros trabalhos analíticos, formou a totalidade do trabalho
social. Processando os contatos sociais entre os produtores,
por intermédio da troca de seus produtos de trabalho, só
dentro desse intercâmbio se patentearam as características
especificamente sociais de seus trabalhos privados com o
infantil. Só com a troca, os produtos do trabalho com o
infantil, como valores, adquiriram uma realidade homogê-
nea, distinta da sua heterogeneidade de objetos úteis, per-
ceptíveis aos sentidos. Essa cisão do produto desse trabalho
em coisa útil e em valor somente atuou na prática, depois
de ter a troca atingido tal expansão e importância que se
produziu o infantil útil para ser permutado, considerando seu
valor já por ocasião de ser produzido. O produtor particular
do infantil percebeu o caráter socialmente útil de seu traba-
lho sob o aspecto de que o produto do trabalho tem de ser
útil, e útil aos outros, e o caráter social da igualdade dos
diferentes trabalhos apresentou-se a ele sob o aspecto da
igualdade de valor que se estabeleceu entre os produtos do
trabalho, essas coisas materialmente diversas. Por exemplo,
as forças individuais de trabalho com o infantil na Família
operaram como órgãos de força comum e, por isso, o dis-
pêndio das forças individuais de trabalho, medido pelo tem-
po de sua duração, manifestou-se, aqui, simplesmente, em
trabalhos socialmente determinados. A Economia Política
analisou, de fato, embora de maneira incompleta, o valor e
sua magnitude e descobriu o conteúdo que ocultavam. Mas
HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 1 "7

nunca se perguntou por que ocultavam esse conteúdo, por


que o trabalho era representado pelo valor do produto de
trabalho e a duração do tempo de trabalho pela magnitude
desse valor. Fórmulas que pertenciam, claramente, a uma
formação social em que o processo de produção dominava o
homem e não o homem o processo de produção, foram
consideradas pela consciência burguesa uma necessidade tão
natural quanto o próprio trabalho produtivo. Por isso, deram
às formas pré-burguesas de produção social o mesmo trata-
mento que os santos padres concederam às religiões pré-
cristãs. Uma parte dos economistas está iludida pelo fetichismo
dominante no mundo das mercadorias ou pela aparência
material que encobre as características sociais do trabalho.
A forma infantil mercadoria é a mais geral e mais elementar
da produção burguesa, razão por que surgiu nos primórdios,
embora não assumisse a maneira dominante e característica
de hoje em dia. Pela mesma razão parece ainda relativa-
mente fácil penetrar em seus atributos fetichistas. Nas for-
mas mais desenvolvidas se desvanece essa aparência de sim-
plicidade. Donde provieram as ilusões dos mercantilistas?
Segundo eles, o ouro e a prata, na função do dinheiro, não
representavam uma relação social de produção, mas eram
objetos naturais com peculiares propriedades sociais. Sem
maior avanço nessa análise, ilustramos com mais alguns ele-
mentos o fetichismo do infantil. Se essa mercadoria pudesse
falar, diria: "Meu valor-de-uso pode interessar à humanida-
de. Não é meu atributo material. O que me pertence como
meu atributo material é meu valor. Isto é o que demonstra
meu intercâmbio como coisa mercantil. Só como valor-de-
troca estabeleço relações com outras mercadorias".

A produção da mais-ualia 1. O processo de produção


das mercadorias deve exprimir simultaneamente o processo
de trabalho e o processo de criação do valor, o qual pressu-
2 1 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

põe também a produção de um certo excedente de valor,


em nome do qual o capitalista organiza a produção; ou seja,
o capitalista quer produzir não apenas um valor de uso, mas
uma mercadoria, não apenas valor-de-uso, mas valor, e não
apenas valor mas também mais-valia.

A produção da mais-valia 2. O produto, de proprieda-


de do capitalista, é um valor-de-uso, fios, calçados, infantis,
etc. Mas, embora infantis sejam úteis à marcha da socieda-
de e nosso capitalista seja um decidido progressista, não
fabrica infantis por paixão aos infantis. Na produção de in-
fantis, nosso capitalista não é movido por puro amor a seu
valor-de-uso. Produz esse valor-de-uso apenas por ser e en-
quanto for substrato material, detentor de valor-de-troca. Tem
dois objetivos. Primeiro, quer produzir o valor-de-uso, que
tenha valor-de-troca, o artigo destinado à venda, a mercado-
ria infantil. Segundo, quer produzir a mercadoria de valor
mais elevado que o valor conjunto das mercadorias necessá-
rias para produzi-la, isto é, a soma dos valores dos meios de
produção e força de trabalho, pelos quais antecipou seu bom
dinheiro no mercado. Além do valor-de-uso do infantil quer
produzir mercadoria infantil, além de valor-de-uso do infan-
til, valor infantil, e não só valor infantil, mas também valor
excedente (mais-valia do infantil). Focalizemos sua produção
do ponto de vista do valor. Sabemos que o valor da mercado-
ria infantil é determinado pela quantidade de trabalho mate-
rializado em seu valor-de-uso, pelo tempo de trabalho histó-
rico socialmente necessário à sua produção. Isso se aplica
também ao produto que vai para as mãos do capitalista,
como resultado do processo de trabalho. De início, temos de
quantificar o trabalho materializado nesse produto. Supondo
que a quantidade média diária do artigo infantil exija seis
horas de trabalho para sua produção, e que essas seis horas
eqüivalham a três reais, três reais é o preço do valor diário
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 1 9

da força de trabalho da criança que produz o infantil. Mas, a


criança é uma obreira assalariada na sociedade capitalista.
Portanto, vende sua força de trabalho a um capitalista. Se a
vende por três reais, vende-a pelo seu valor. Mas, nesse
caso, não iria para o capitalista nenhum sobreproduto al-
gum. Ao comprar a força de trabalho da criança e ao pagá-
la pelo seu valor, o capitalista adquire, como qualquer outro
comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria com-
prada, no caso o infantil como mercadoria. A força de traba-
lho de uma criança é consumida, ou usada, fazendo-a traba-
lhar, assim como se consome ou se usa uma máquina fazen-
do-a funcionar. O capitalista adquire o direito de fazê-la fun-
cionar durante todo o dia ou toda a semana. O valor da força
de trabalho se determina pela quantidade de trabalho neces-
sário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso
dessa força só é limitado pela energia vital e a força física da
criança. O valor diário da força de trabalho difere do funcio-
namento diário dessa mesma força de trabalho, como a quan-
tidade de ração e o tempo que o cavalo pode carregar o
cavaleiro. A quantidade de trabalho que serve de limite ao
valor da força de trabalho da criança não limita a quantida-
de de trabalho que sua força de trabalho pode executar. Em
nosso exemplo, para recompor sua força de trabalho, com o
valor diário de três reais, a criança precisa trabalhar seis
horas por dia, mas isso não lhe tira a capacidade de traba-
lhar dez ou doze horas diárias. O capitalista, ao pagar o valor
diário da força de trabalho da criança, adquire o direito de
usar essa força durante todo o dia ou toda a semana. Fará a
criança trabalhar doze horas diárias, além das seis horas ne-
cessárias para recompor o seu salário, ou o valor de sua
força de trabalho. Essas horas produzem o sobretrabalho, o
qual irá traduzir-se em uma mais-valia e em um sobreproduto.
Como a criança vendeu sua força de trabalho ao capitalista,
todo o valor, ou todo o produto por ela criado pertence ao
Z Z D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

capitalista. Por conseguinte, desembolsando três reais, o ca-


pitalista realizará o valor de seis, pois com o desembolso de
um valor para seis horas, receberá em troca um valor no qual
se cristalizam doze horas. Repetindo diariamente essa ope-
ração, o capitalista desembolsará três reais por dia e embolsará
seis, cuja metade inverte no pagamento de novos salários,
enquanto a outra metade forma a mais-valia, pela qual o
capitalista não paga equivalente algum. Esse tipo de inter-
câmbio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à
produção capitalista, ou ao sistema do salariado, e tem de
conduzir à reprodução da criança como infantil e do capita-
lista como adulto.
Mais-valia absoluta e relativa 1. A produção da mais-
valia absoluta gira exclusivamente em torno da duração da
jornada de trabalho; a produção da mais-valia relativa revo-
luciona totalmente os processos técnicos de trabalho e as
combinações sociais.
Mais-valia absoluta e relativa 2. Sob certo ponto de
vista, parece ilusória a diferença entre mais-valia absoluta e
mais-valia relativa. A mais-valia relativa é absoluta por exi-
gir a prolongação absoluta da jornada de trabalho além do
tempo necessário à existência do infantil. A mais-valia abso-
luta é relativa por exigir um desenvolvimento da produtivida-
de do trabalho que permita reduzir o tempo de trabalho
necessário a uma parte da jornada de trabalho do infantil.
Mas, quando focalizamos o movimento da mais-valia, desva-
nece-se essa aparência de identidade. Assim que se estabe-
lece o modo de produção capitalista e se torna o modo geral
de produção do infantil, sente-se a diferença quando o pro-
blema é elevar a taxa da mais-valia da infância.
Taxa de mais-valia 1. Inicialmente fazemos o capital
constante = 0. O capital desembolsado se reduz assim de c
+ v a v, e o valor do produto (c + v) + m ao valor gerado (v +
m). Dado o valor gerado = 1 8 0 libras em que se representa
HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A . 2 2 1

o trabalho operante durante o processo de produção, temos


de deduzir o valor do capital variável = 90 libras, para obter
a mais-valia = 90 libras. A quantia 90 libras = m expressa
aqui a magnitude absoluta da mais-valia criada. Sua magni-
tude relativa, isto é, a proporção em que aumenta o valor do
capital variável, é evidentemente determinada pela relação
entre a mais-valia e o capital variável, expressando-se pela
fórmula m / v. No exemplo acima, ela é 90 / 90 = 100%. A
esse aumento relativo do valor do capital variável ou a essa
magnitude relativa da mais-valia, chamo taxa da mais-valia.
Taxa de mais-valia 2. A taxa de mais-valia da infância
depende da proporção existente entre a parte da jornada
que a criança tem de trabalhar para reproduzir o valor da
força de trabalho do infantil e o sobretempo ou sobretrabalho
realizado para o capitalista. Dependerá, por isso, da propor-
ção em que a jornada de trabalho se prolongue além do
tempo durante o qual a criança, com o seu trabalho, se
limita a reproduzir o valor de sua força de trabalho ou a
repor o seu salário.
Lucro 1 2. A mais-valia, ou seja, àquela parte do valor
total da mercadoria que incorpora o sobretrabalho, ou traba-
lho não remunerado, nós chamamos "lucro". Lucros normais
e médios se obtêm vendendo as mercadorias não acima do
que valem e sim pelo seu verdadeiro valor.
No melhor dos mundos possíveis 1 2. O sistema capi-
talista surge sobre um terreno econômico que é o resultado
de um longo processo de desenvolvimento. A produtividade
do trabalho que encontra e que lhe serve de ponto de partida
é uma dádiva não da natureza mas de uma história que
abrange milhares de séculos. A metamo' íuae que o capitalis-
ta faz ao transformar seu dinheiro em capital, se sucede na
esfera da circulação e não se sucede nela. Por intermédio da
circulação, por depender da compra da força de trabalho no
mercado. Fora da circulação, por essa servir apenas para
2 2 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

chegar à produção da mais-valia, que ocorre na esfera da


produção. E assim, "tudo que acontece é o melhor que pode
acontecer no melhor dos mundos". Ao converter dinheiro em
mercadoria infantil, que serve de elemento material de novo
produto ou de fator do processo de trabalho, e ao incorporar
força de trabalho viva à materialidade morta desses elemen-
tos, transforma valor, trabalho pretérito, materializado, mor-
to, em "capital infantil", em valor que se amplia, um mons-
tro animado que começa a "trabalhar", como se tivesse o
diabo no corpo.
Gerações 1 2. Uma sucessão rápida de gerações ra-
quíticas e de vida curta manterá abastecido o mercado de
trabalho tão bem como uma série de gerações robustas e de
vida longa.
Puerüidade 1. Um homem não pode voltar a ser crian-
ça sem cair na puerüidade. Mas não acha prazer na inocên-
cia da criança e, tendo alcançado um nível superior, não
deve aspirar ele próprio a reproduzir sua verdade? Em todas
as épocas, o seu próprio caráter não revive na verdade natu-
ral da natureza infantil? Por que então a infância histórica da
humanidade, precisamente naquilo em que atingiu seu mais
belo florescimento, por que essa etapa para sempre perdida
não há de exercer um eterno encanto? Há crianças mal-
educadas e crianças precoces. Muitos dos povos da Antigüi-
dade pertencem a essa categoria. Crianças normais foram
os gregos. O encanto que a sua arte exerce sobre nós não
está em contradição com o caráter primitivo da sociedade
em que ela se desenvolveu. Pelo contrário, está indissoluvel-
mente ligado ao fato de as condições sociais insuficiente-
mente maduras em que essa arte nasceu, e somente sob as
quais poderia nascer, não poderão retornar jamais.
Puerüidade 2. Como se pode demonstrar a "verdade
natural" e o "eterno encanto" da mais-valia de uma infância
sem fim?*
HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. Z23

O PROCESSO DE PRODUZIR MAIS-VALIA

Foucault (1990a, p. 198-9) afirma que a saúde e a


doença foram problematizadas no século XVIII como fato de
grupo e de população a partir de instâncias múltiplas, em
relação às quais o Estado desempenhou papéis diversos. Essa
noso-política apresentou duas características: 1) a primazia
da higiene e o funcionamento da Medicina como instância
de controle social; 2) o privilégio da infância e a medicalização
da família. Nesse segundo domínio, o aparecimento do pro-
blema político e econômico da população acrescentou ao
"problema das crianças" - isto é, do número de seus nasci-
mentos e da relação natalidade-mortalidade - "o problema
da infância", qual seja: a sobrevivência até a idade adulta,
as condições físicas e materiais dessa sobrevivência e os
investimentos necessários e suficientes para que tal período
de desenvolvimento se tornasse útil; em suma, a organiza-
ção dessa fase da vida humana, entendida como específica
e finalizada, que devia então ser redistribuída e gerida de
forma conveniente.

A importância das novas regras, que modificaram as


relações pais-filhos e as relações adultos-crianças, residiu na
tarefa imprescindível de fazer da infância algo problemático,
tratando-a como um problema, visto que, sem pensá-la e
praticá-la, como coordenar e integrar a população à regula-
mentação econômica, às medidas de ordem, às regras ge-
rais de higiene, de saúde, de urbanização? Sem o infantil,
transformado pelo dispositivo de infant;,'dade em um dos
problemas centrais dessa noso-política, teria sido impraticá-
vel esquadrinhar e regular a população no que se referia, por
exemplo, à melhor idade do casamento, nascimentos legíti-
mos e ilegítimos, práticas contraceptivas, natalidade e
2 2 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

antinatalidade, morbidade, fecundidade e esterilidade, fre-


qüência de relações sexuais, estados de saúde e de doença,
formas de moradia, locomoção, alimentação, legados por
herança, organização e governo da família.
A partir de tal perspectiva, pode-se afirmar que a in-
fância não foi constituída como prática discursiva e não-
discursiva por efeitos de mudança na "mentalidade" das fa-
mílias, a qual teria originado uma atitude de cumplicidade
sentimental com as crianças, levando-as a evoluir do primei-
ro sentimento de mignotage, reservado às crianças peque-
nas, para tornar-se um lugar de afeição necessária, organi-
zar-se ao redor da criança, colocar no centro de suas preocu-
pações os estudos dos filhos e seu futuro, fazer a criança sair
de seu antigo anonimato; nem foi uma mudança nas estru-
turas educativas em que a escola substituiu a aprendizagem
como meio de educação, chamando as crianças à razão,
através de um grande movimento de moralização promovido
pelos reformadores católicos e protestantes, ligados à Igreja,
à Lei ou ao Estado - tal como enuncia a chamada "segunda
tese" de Aries (1975; 1981; 1986) acerca do nascimento da
infância moderna.
Não se tratou de uma "revolução escolar e sentimental
familiar", como aquela que a história da infância encontrara
na origem da correlação entre o valor da infância e um tipo
de família e de escola, empenhadas em sua educação e
manifestas anteriormente na Roma dos primeiros séculos da
era cristã e nos monastérios da Idade Média, sendo reativada
no século XVIII; não foi a "renovação psicológica" promovi-
da pela escolarização da educação, nem "a descoberta" da
infância por efeitos psicológicos de qualquer sensibilidade
conjugai, familiar, educacional; mas tratou-se, isto sim, das
novas práticas do biopoder, ligadas aos emergentes meca-
nismos de governamentalidade das populações e dos indiví-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . Z Z 5

duos: poder que pôde ser captado em suas extremidades,


em suas últimas ramificações, lá onde seus pontos se torna-
ram capilares, nas instituições e formas mais regionais e
locais; e onde ele se difundia e se exercitava sobre um ser
infantil cada vez menos jurídico: ser que se instituía, cada
vez mais, como um problema econômico-político, uma pre-
ocupação médico-moral, uma inquietude religiosa e um en-
cargo pedagógico.
A família e a escola entraram em nova série descon-
tínua - assim como outras instituições disciplinares e sua
correlata "epistemologia social" (cf. Popkewitz, 1984) -, ar-
ticulada por múltiplas táticas e estratégias, porque um novo
poder se trançava neste período histórico. Os agenciamentos
concretos deste poder trabalharam em torno de um foco
principal que, aliás, não foi específico das crianças, mas a
elas atingiu fortemente: o domínio de si mesmas. O jogo de
forças do biopoder agia pela capacidade dos/as adultos/as
em conduzir as ações das crianças, de um modo que a mo-
dalidade de seu poder não fosse mais despótico, não se
desse mais pelo castigo público do corpo infantil, mas em
que a coerção passasse pela norma e pela disciplina, e tam-
bém pelas penalidades, que podiam ser ou não corporais.
Assistia-se a uma passagem do antigo corpo submetido pelo
castigo a um corpo controlado e autocontrolado: o castigo
agora deveria cair sobre a "alma" da criança, mais do que
sobre seu corpo; só que, como à alma chegava-se através do
corpo, os agenciamentos operavam sobre o corpo desse novo
"bio-infantil", imerso em relações disciplinares, que povoa-
ram outro campo político.
As práticas foram as mais diversas, umas gerais, ou-
tras específicas: controle da evacuação de fezes e urina, em
nome da limpeza e da higiene; controle da masturbação,
com a objetivação da sexualidade e a perseguição dos cor-
2 2 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

pos, em nome da saúde física, mental e moral do indivíduo e


da espécie; governo pelo medo e pelo terror, para que as
crianças fossem m e n o s imprudentes e ingovernáveis;
escolarização e pedagogização, em nome da racionalidade,
da moralidade e dos bons costumes; em suma, ações sobre
ações infantis, cuja idéia norteadora era enunciada pelo se-
guinte adágio oitocentista: "Com o açúcar se pegam mais
moscas do que com o vinagre"; embora, neste caso, tanto o
açúcar quanto o vinagre tenham sido utilizados com a mes-
ma eficácia produtiva.
Com a entrada em cena da infância, patrocinada pela
subordinação de sua identidade social e individual, a coloca-
ção do infantil em discurso foi submetida a um mecanismo
de crescente disseminação e implantação e a vontade de
saber-poder acerca das crianças obstinou-se em constituir
novas ciências e novas instituições que dessem conta de re-
parar tal identidade, nascida dependente. Estabeleceu-se,
por essa via, o segundo conjunto estratégico de forças que
encontrou seu ponto máximo de revigoramento justamente
em nosso presente: a adultização do infantil, cuja positivação
propiciou instâncias de produção discursiva, produção de
poder e vontade de saber acerca da verdade de uma identi-
dade constituída ao modo especular.
Nessa história da infantilidade, combinar esses dois
conjuntos na mesma série histórica leva a pensar na monta-
gem de uma e n g r e n a g e m, cuja ênfase totalizadora de
regulação da infância distribuiu os corpos infantis sob as for-
mas individualizadora e combinatória, instituiu a utilização
controlada de seu tempo e montou esquemas de vigilância
total, repartindo-os ordenadamente, ao lado da família, no
espaço regional da escola. Embora permanecesse ativa e
operante em todo o campo cultural, a conjunção "identidade
dependente-necessidade de adultização" extraiu da prática
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 2*7

escolar os ensinamentos capazes de aprimorar seus próprios


mecanismos, pelo registro contínuo dos saberes aí produzi-
dos; bem como daí extraiu técnicas de poder capazes de
aperfeiçoar a intencionalidade de suas relações: ensinamentos
e técnicas que se fixaram como peças materiais do dispositi-
vo de infantilidade.
Tal conjunção criou também a necessidade de outra
engrenagem, cuja ênfase fosse mais individualizadora para o
governo da infância: a sexualização do corpo e da alma in-
fantis, na qual os dispositivos de infantilidade e de sexualida-
de combinaram-se, sexualizando o infantil e infantilizando o
sexo. Promovido, com grande intensidade, pelo campo
discursivo da Psicanálise, este ponto de cruzamento das li-
nhas de força dos dois dispositivos pôde funcionar como o
lugar de articulação de uma verdade central ao sujeito oci-
dental: a verdade sexual de seu ser infantil, ou a verdade
infantil de seu ser sexual. As estratégias de poder e os sabe-
res aí produzidos insistiram na proliferação de mil aconteci-
mentos que pareciam perdidos: produziram o necessário
mistério e a conseqüente intensificação dos prazeres adul-
tos; a estimulação desmedida pelo controle dos corpos infan-
tis; a incitação ao discurso acerca da infância; a formação
de conhecimentos sobre a sexualidade e seu infantilismo; o
reforço dos controles e das resistências conscientes e seus
encadeamentos inconscientes; a busca de cada um/a de nós,
seres falantes, enquanto "a criança magnífica da Psicanáli-
se"; isto é, o sujeito que fala e pensa com palavras do Pai
atraído pelo gozo da Mãe: "a criança que não sabe aquilo
que diz sem mesmo poder gozar" (Nasio, 1988, p. 47).
Se, pela análise da dinâmica dos conjuntos estratégi-
cos constitutivos d'a-vida-a-morte, que permitiram mover o
estancamento da sincronia histórica da infância, foi possível
afirmar que o infantil encontra-se em permanente processo
Z 2 S HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de produção, também é possível analisar o excedente de


valor do infantil, sua mais-valia, justamente na bifurcação
dos conjuntos estratégicos da pedagogização e da sexualização
do corpo e da alma das crianças, os quais criam, respecti-
vamente, as figuras do infantil-educado e do infantil-sexuado.
Na produção de um infantil desse tipo, o processo exprime,
de modo concomitante, o trabalho do biopoder e a criação
do valor-de-uso do infantil, do valor-de-troca da infância e de
um certo excedente de valor: esse valor suplementar para
além do valor da sua força de trabalho, considerado, por este
estudo, como o "domínio de si", pelo qual o infantil é inves-
tido.
Não pelo domínio de si da tradição filosófica grega do
estoicismo, dos períodos helenísticos e imperiais, enquanto
consideração progressiva do Eu, obtida pela aquisição e assi-
milação da verdade, a qual era resgatada ao fim de cada dia
por meio de recursos mnemotécnicos sobre o que alguém
fez e deveria ter feito, e da comparação entre estes dois
tipos de ações; recursos e técnicas estóicas do Eu para for-
mular regras de conduta encontrados por Foucault (1991h)
nas cartas aos amigos e na revelação do Eu, no exame de si
e de consciência, como métodos para fazer algo correta-
mente, por se ter aceito a realidade deste mundo; e sim,
com muito mais motivos, na linha de força do domínio de si
cristão, calcado não mais sobre regras de conduta para se
ocupar de si mesmo e da cidade, mas sobre as leis da reli-
gião de salvação que deviam funcionar na preparação de
outra realidade, sua meta final (cf. Fischer, 1996, p. 81).
Para a infância e as crianças, Rousseau e o Século das
Luzes instituíram um novo cuidado de si, através da grande
"Tecnologia do Eu-Educado", constituída pela pedagogização
do infantil, cuja centralidade é a renúncia ao próprio Eu que,
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 2 9

para isso, deve ser decifrado e, em estado de julgamento


permanente, revelar seus segredos naturais, racionais e mo-
rais mais importantes. Para a infância e as crianças, Freud e
a Psicanálise instituíram um novo cuidado de si, através da
grande "Tecnologia do Eu-Sexuado", constituída pela
sexualização do infantil, cuja centralidade é a assunção do
Eu-originário inconsciente que, para isto, deve sofrer um
deciframento permanente da própria sexualidade, ser julga-
do em seus sintomas, interpretado nos sonhos, nas confu-
sões, esquecimentos, atos falhos; e, em estado de decodifi-
cação permanente, revelar-se como o núcleo consciente da
criança, do homem e da mulher ocidentais, enquanto sujei-
tos de desejo.
Ressignificadas na escolarização, pelas "pedagogias
psicológicas" (cf. Corazza, 1 9 9 4 ; 1995a,b ; 1996a,c,d;
Donald, 1992; Hunter, 1994; Larrosa, 1994, 1996, 1998;
Narodowski, 1996; Palamidessi, 1996; Popkewitz, 1998;
Rose, 1989; Silva, 1993, 1994a,b, 1998; Varela, 1 9 9 1 ,
1994, 1996; Walkerdine, 1988, 1998; dentre outros/as),
bem como nas práticas analíticas e terapêuticas, as técnicas
da confissão, seguida da penitência, implicarão que esses si-
mesmos infantis ocupem-se de suas más intenções, empe-
nhem-se em descobrir os pecados e as culpas, as verdades e
as falsidades, os desejos mais recônditos, de modo a poder
renunciar cada um a si-mesmo e à realidade; já que aquele é
parte desta à qual se deve renunciar para aceder a outro
nível de realidade; já que aquele é o verdadeiro Eu -
pedagogizado e sexuado -, pelo qual somos determinados/
as e identificados/as e o qual temos o dever de reconhecer
pela assunção do "Princípio de Realidade".
Por ação desses dois conjuntos estratégicos de individua-
lização, o processo cultural de produção da mercadoria in-
fantil produz não apenas um valor-de-uso, mas também va-
2 3 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

lor, não apenas valor-de-troca, mas também a mais-valia de


uma infância que não deve ter fim: para que a imagem
adulta possa continuar obtendo os lucros de ser especularizada,
esbatendo a promessa ameaçadora de sua própria desaparição
e anunciando sua futura aparição, governando o infantil e a
si-mesma. Tanto o "trabalho pedagógico" quanto o "traba-
lho diurno/noturno de sexualização" do infantil realizam o
segundo sentido - o primeiro, como vimos na descontinuidade
d'a-vida-a-morte, refere-se à submissão ao outro pelo con-
trole e pela dependência -, atribuído por Foucault à
subjetivação do indivíduo moderno, no domínio da história
da infantilidade: o apego de cada infantil à sua própria iden-
tidade, mediante a consciência e o conhecimento de si, pro-
movido pelas ciências morais e humanas que formam o sa-
ber do sujeito-infantil.

TRABALHO PEDAGóGICO

TEMER a DEMôNIO E A SI-MESMA

Uma das justificativas utilizadas na Idade Média para


assustar as crianças era a de que elas eram menos capazes
do que os adultos e, portanto, deveriam ter seu espírito for-
talecido para que fossem mais corajosas e se comportassem
de acordo com as restrições da moral (cf. Lyman Jr., 1995).
Figuras fantasmáticas, religiosas e míticas, bruxas, demôni-
os, monstros, animais e cadáveres foram convenientemente
presentifiçados às crianças, até o século XIX, para fazer-lhes
sentir o terror de que, à noite, viriam raptá-las, comê-las,
picá-las em pedaços e chupar-lhes o sangue, o cérebro ou a
medula dos ossos.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 3 1

Após a Reforma, o próprio Deus foi a principal figura


usada como fantasma e escreveram-se muitos opúsculos,
em linguagem infantil, que descreviam um sem-número de
torturas aplicadas no Inferno: "A criança está queimando na
fogueira. Escuta como grita querendo sair (...) Bate com
seus pezinhos no chão" (DeMause, 1995, p. 30). Quando a
religião deixou de ser o foco das campanhas de terror, foram
utilizadas figuras mais próximas da casa: o Homem-Lobo
comerá as crianças desobedientes; o Barba Azul levará as
meninas e as prenderá junto com suas mil mulheres; a Ciga-
na roubará os meninos para vender; o Homem-do-Saco le-
vará as crianças embora e as picará em pedacinhos; ficarão
presas no sótão e os ratos roerão até seus ossos; o Homem
de Areia jogará punhados de areia nos olhos, de modo que
estes saltem sangrando da cabeça, os colocará num saco e
levará para a meia-lua, para alimentar seus filhos.
As amas confeccionavam máscaras para assustar as
crianças, a fim de que estas dormissem à noite ou para que
pudessem sair. Susan Shibbald recordava os fantasmas como
um elemento real de sua infância, no século XVIII:
Os fantasmas aparecendo era um acontecimento muito freqüen-
te. Recordo perfeitamente de uma noite, em que duas amas de
Fowey queriam sair. Ficamos calados quando ouvimos lúgubres
gemidos e uivos do outro lado da porta, junto à escada. A porta
se abriu de par em par e, oh, horror!, entrou um personagem,
alto e vestido de branco, que parecia lançar fogo pelos olhos,
nariz e boca. Estivemos a ponto de sofrer um ataque e nos sen-
timos mal durante vários dias, mas não nos atrevíamos a contar
o que ocorrera (DeMause, 1995, p. 31).

Em 1882, uma mãe conta o caso de uma menina de


dois anos, filha de uma amiga sua, cuja ama, querendo sair
à tarde com as demais empregadas, enquanto os pais esta-
vam fora, tomou medidas para não ser molestada, dizendo à
2 3 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

menina que um horrível fantasma estava escondido na casa,


para pegá-la no momento em que se levantasse da cama ou
fizesse algum barulho. Construiu um grande boneco com as-
pecto de fantasma, com olhos amedrontadores e uma boca
enorme, e o colocou aos pés da cama, onde a menina dor-
mia. Quando terminou o passeio, a ama voltou, abriu a
porta do quarto e viu a menina sentada na cama, as mãos
crispadas, os olhos esbugalhados, no paroxismo do terror,
fixos no espantoso monstro que se achava diante dela: "Es-
tava morta!" (DeMause, 1995, p. 32).
No século XVII, essas imagens de perigos externos des-
locam-se, sem desaparecer totalmente, para imagens de
perigos internos: o ascetismo religioso tratava de reformar a
consciência e o caráter, no interior da criança, em vez de
conseguir sua obediência formal às exigências do adulto. As
figuras dos anjos-da-guarda cumprirão dois papéis interme-
diários, mediando os perigos externos e os internos, bem
como os controles feitos pelos adultos e a já cobiçada auto-
restrição; referidos em sua onipresença amorosa e proteto-
ra, esses seres fantásticos ocupam o lugar dos adultos na
regulação das atitudes e dos desejos, não tendo ainda cedido
lugar ao medo e à vergonha de si mesma.
Daqui para a frente, não se tratará mais de lutar con-
tra o Demônio ou contra o Inferno, nem mesmo contra os
anjos que tanto amam as crianças: o novo mecanismo privi-
legia a implantação do sentimento de culpa e de vergonha,
mais do que a intensificação do terror ou a vergonha diante
dos anjos. Era agora contra o Eu, que os açoites vinham,
como escreveu Santa Chantal: "Temos que aceitar os açoi-
tes que Nosso Senhor nos dá e beijar ternamente as verges,
pois Ele nos castiga por amor" (Marwick, 1995, p. 314).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 3 3

Por efeitos do dispositivo de escolarização, as alunas


de Port-Royal - convento e escola para meninas - experi-
mentarão, em seus corpos, ao mesmo tempo, o "vinagre"
misturado com o "açúcar" de pegar mais moscas, que os
alunos dos jesuítas já tinham provado: derivada da disciplina
eclesiástica e religiosa, uma disciplina laica, constante e or-
gânica, em muito diferente da violência de uma autoridade,
calcada em uma vigilância constante, que tudo via e tudo
escutava, de dia e de noite; a qual, aliada à vergonha, funcio-
nava para obter a obediência estrita e para internalizar moti-
vações religiosas e morais no sentido de se portar bem, de
se tornar uma menina ou uma moça bem-educada.
Jacqueline Pascal, a diretora, deixou uma literatura
extensa, repleta de normas pedagógicas, tais como: pendu-
rar cartazes nos pescoços das meninas pequenas e médias,
em que estivesse escrita a falta cometida em letras garrafais
- "basta uma ou duas palavras", ensinava ela, "como 'pre-
guiçosa', 'negligente', 'mentirosa'" (Marwick, 1995, p. 311).
Às meninas maiores podia-se predispor a obrar diretamente
por amor de Deus, salvo em algumas ocasiões em que era
recomendável impor-lhes penitências humilhantes, tais como
ir à missa sem o véu na cabeça ou rezar suas orações no
refeitório, ao invés de na capela, já que, acreditava-se, mais
do que os açoites, os meios eficazes de controle eram as
orações. Desde os quatro anos de idade, as meninas tinham
horários determinados para colocar a consciência individual
a serviço de Deus e, desde que levantavam da cama, todas
as normas tinham relação com essa finalidade, tal como pen-
tear-se e se vestir depressa "a fim de dedicar o menor tem-
po possível para enfeitar um corpo que há de servir de comi-
da aos vermes" (ib., p. 312).
Uma vigilância perfeita e uma atenção totalitária e
paciente ao comportamento das crianças estavam presentes
também nas normas de João Batista de La Salle, que reco-
2 3 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

mendava aos educadores censurar a linguagem do corpo e a


palavra falada: o menino - no caso dos colégios lassalistas -
deveria permanecer quieto, porém não com uma postura
rígida demais, ou mesmo lânguida, que parecesse insolente;
tampouco deveria revelar suas emoções, com movimentos
faciais ou de cabeça; ao deitar, deveria fazê-lo de tal modo
que aquele que se aproximasse não pudesse distinguir as
formas de seu corpo. Deste modo, o aperfeiçoamento moral
e espiritual adviria durante o próprio processo de escolarização
de uma educação séria, a qual, pouco a pouco, substituía as
sanções externas pelos controles internos da própria criança
sobre seu corpo e sua alma. Controles que, uns dois ou três
séculos mais tarde, seriam enunciados, pelo discurso
(psico)pedagógico, como a triunfante passagem da hetero-
nomia para a autonomia.

EDUCAR(-SE) PARA LIBERTAR(-SE)

Como diz Lerena (1983), com o termo "Educação"


não estamos diante de um conceito e sim de um preceito: o
preceito humanista com o qual as classes burguesas do Sé-
culo das Luzes inauguram a legitimação de uma nova estra-
tégia política. Essa jurisdição de poder, por efeitos da secu-
larização, cobre, com o manto do espiritualismo naturalista,
a concepção cristã da formação dos indivíduos, ao tomar os
sujeitos como objetos de produção em sua singularidade,
individualidade e liberdade. Pela natureza prometéica das
novas classes, o poder que as investe agora deve apagar as
arbitrariedades daquele antigo e heterônomo poder masculi-
no e colocar em seu lugar o da Mãe-Natureza: "a educação
mais pura deve ser natural, negativa e liberadora e, rigorosa-
mente falando, 'educar' deve ser um verbo e uma operação
conjugados de forma pronominal: auto-educação, em suma"
(ib., p. 11).
HISTóRIAS DE G D V E R N D : CRIANçAS E C I A . 2 3 5

Passado o tempo do pastoreio errante do Mestre que,


por delegação do Criador, criava, guardava, cuidava, guiava
e governava, a "família Rousseau" - constituída pelos opos-
tos do binômio reprimir-liberar: "Mamãe Rousseau, Papai
Comte, e no meio e mediando - tirando e colocando, admi-
nistrando cientificamente as doses da repressão e da libera-
ção, como sábio médico das almas dos modernos sigmundos
- o primogênito Sigmund Freud" (ib., p. 15) - poderá dar
início à sua cruzada de salvação civil, utilizando-se de sutis
operações de dominação, através da rede de aparatos posta
em marcha por asilos, prisões, quartéis, hospitais, partidos,
sacristias, oficinas, fábricas, escolas. Os construtores das es-
colas-quartéis e das escolas-jardins são cúmplices da mesma
lógica que fez proliferar a nova educação para produzir no-
vos hábitos, novas estruturas mentais em novos indivíduos,
com especial atenção para a produção de novas crianças da
emergente população.
Nessa tarefa de produção dos indivíduos, ganha impor-
tância a "descoberta" da debilidade da criança e as possibili-
dades e responsabilidades do adulto em sua educação, a
"descoberta" da educação da mulher, a "descoberta" do va-
lor estratégico da disciplina. Pode-se encontrar dois exem-
plos, no que se refere à primeira dessas "descobertas": o de
Vitor e o do Dr. Schreber.
Em 1800, foi encontrado, em uma floresta da região
de Aveyron, na França, um menino de doze anos: de nome
atribuído Vitor, cognominado "o Selvagem de Aveyron". Ele
não era a primeira criança encontrada em estado de total
abandono; casos similares, registrados a partir do século
XIV, provocaram a curiosidade, o assombro e a crueldade
dos captores. Entretanto, será Vitor quem mobilizará, em
torno de si e de sua educação, um grande aparato científico
de observação, validação de hipóteses, produção de teorias.
2 3 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Logo após ser encontrado, Vitor é levado a um instituto de


Rodez, onde um professor de História Natural escreve suas
observações que são publicadas em Paris, fazendo com que
o Selvagem torne-se alvo da preocupação generalizada de
filósofos, naturalistas, médicos, pedagogos, dentre os quais,
Pinei, Sicard, Itard, Virey. Meses depois, quando Vitor che-
ga, acorrentado, a Paris, "toda a sociedade da época desfi-
lou perante sua cela, ávida de observação de dados positi-
vos" (Lajonquière, 1992, p. 40).
Três instituições pós-revolucionárias debruçaram-se so-
bre o corpo e a alma de Vitor - a Société des Observateurs
de }'Homme, o asilo de Bicêtre e a Escole pour l'Education
des Enfants Sourdes (ib., p.39) -, para indagar e resolver
questões que envolviam a idéia do Homem Natural (ib., p.
42-3) e a primitiva constituição do ser humano. A estratégia
central de investigação consistia em demorar, retardando, o
processo de civilização de Vitor, controlando e regulando as
intervenções, de modo que se pudesse avaliar a influência
do meio social sobre a naturalidade física dos sentidos, con-
ferindo os prejuízos de abandonar-se a condição humana a si
mesma. Cedo, Pinei confirma "a semelhança entre o meni-
no selvagem e seus idiotas asilados" (Avanzini, 1987, p.
235); e Vitor causa crescente repugnância àqueles que, nele,
tentavam encontrar "o virtuosismo de Emílio" (Lajonquière,
1992, p. 41). Depois de um ano, só alguns poucos cientistas
continuaram ocupando-se de Vitor, e, destes, o mais persis-
tente foi o Dr. Jean Marc Gaspard Itard que se intitulava
"médico-pedagogo" (Maistre, 1987, p. 235).
Sustentando a primazia do social sobre o natural e con-
firmando a inexistência de lesões congênitas em Vitor, Itard
dedicou-se durante dez anos à sua reeducação. Integrando a
Société des Observateurs de l'Homme, Itard e seus colegas
acreditavam que esse exemplar filho da natureza não pode-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 3*7

ria ser o mais natural, já que, somente no seio da Sociedade,


o homem encontra o nível eminente que a Natureza lhe
destinou. Eles não confundiam Vitor com Emílio: "O primei-
ro é tão somente uma monstruosidade cultural e o segundo,
se por acaso se tornasse real, encarnaria o Homem Natural"
(Lajonquière, 1992, p. 42).
No Prólogo a suas memórias acerca dos primeiros pro-
gressos de Vitor, Itard escreveu:
Lançado a este mundo sem forças físicas e sem idéias inatas,
apesar de obedecer por si mesmo às leis constitucionais de sua
organização, que lhe chamam a ocupar o primeiro lugar do sis-
tema dos seres, o homem só pode encontrar no seio da socieda-
de o lugar eminente que lhe foi estabelecido pela Natureza, e
seria, sem a civilização, um dos animais mais débeis e menos
inteligentes. Na horda selvagem mais errante, assim como na
nação européia mais civilizada, o homem não é senão o que se
lhe faz ser; necessariamente educado por seus semelhantes,
adquire seus costumes e necessidades; suas idéias não são suas;
goza da melhor prerrogativa de sua espécie, a possibilidade de
desenvolver seu entendimento através da imitação e da influên-
cia da sociedade (Maistre, 1987, p. 236).

Se, nas florestas francesas, a natureza humana não


fora encontrada, Itard deveria demonstrar que, através da
"Medicina Moral" - nome que Itard dera a seu trabalho com
o Selvagem - , seria possível: 1) vincular Vitor à vida social,
fazendo com que esta fosse mais agradável do que aquela
que conheceu na floresta e mais semelhante à vida que aban-
donou; 2) despertar sua sensibilidade nervosa através de es-
tímulos energéticos e provocar, às vezc-, os afetos mais vi-
vazes do espírito; 3) ampliar o campo das idéias, provocan-
do em Vitor novas necessidades e multiplicando seus relacio-
namentos com os seres a seu redor; 4) induzi-lo à utilização
da palavra, determinando o exercício da imitação, através
2 3 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

da imperiosa lei da necessidade; 5) exercitar, durante algum


tempo, as operações mais simples do espírito sobre os obje-
tos de suas necessidades físicas, para depois aplicá-las sobre
objetos que pudessem instruí-lo (Lajonquière, 1992, p. 41).
De todos os lados, parecia que o médico-pedagogo tinha
encontrado um "aluno ideal": aquele que lhe permitiria es-
culpir, na integralidade, sua natureza. As narrativas mostram
que o Dr. Itard encontrou muitas dificuldades em sua obra, e
mesmo o "fracasso" de seus objetivos, embora tivesse inven-
tado diversas táticas para aculturar Vitor (cf. Maistre, 1987,
p. 237).
O segundo exemplo é o do médico alemão do século
XIX, Daniel Gottlieb Moritz Schreber (Freud, 1974a, p. 71)
- que se dizia um "déspota esclarecido" em "missão
civilizadora" -, escritor de livros de Anatomia, Fisiologia,
Higiene, Cultura Física e Pedagogia, cujos princípios aplicou
na criação de seu filho, Daniel Paul Schreber, resultando em
uma disciplina impecável e totalizadora que cobria todos os
atos do menino de todas as horas do dia e da noite. O Dr. D.
G. M. Schreber era um homem "de autoridade", sendo es-
cutado por educadores, médicos e pais, acerca de "regras
de vida", como as chamava, "fundadas numa disciplina im-
pecável". Essa autoridade moral era exercida plenamente
em sua família: a mulher, declarava ele, deve-se manter
"inexistente, apagada, não deixando o seu lugar a não ser
pela voz de comando do pai". Sua autoridade era duplicada
pelas circunstâncias de ser um médico eminente; encarnava
assim um saber médico, com poder de curar, e também um
saber educacional, com poder de corrigir a maldade natural
da criança: "Um educador, dizia ele, é um homem que tem
resposta para tudo" (Mannoni, 1977, p. 28).
Para que pudesse exercer os dois poderes, precisava
de "pacientes" capazes de submissão total, de "abandono
radical do seu corpo e do seu ser". Esse tipo de submissão,
H I S T ó R I A S DE GDVERND: CRIANçAS E C I A . 2 3 9

"que se adquire mediante um treinamento físico e moral dos


mais precoces" - desde os primeiros meses de vida -, é o
único a permitir que, no caso de doença, a criança seja salva
da morte por um pai, nas mãos de quem ela confia a sua
vida. Aquela que renunciasse à obediência nada mais estaria
fazendo do que renunciar à própria vida. Uma "moral e uma
pedagogia do terror" serviriam de fundamento aos pais, edu-
cadores e médicos como método científico para educar as
crianças.
Os princípios educativos do Dr. Schreber eram os se-
guintes (ib., p. 28-9): 1) a criança é má de nascença: é
necessário separá-la de sua natureza e submetê-la a um ades-
tramento moral e físico - alternação de abluções de água
fria e quente desde os três meses de idade, alternação de
terror e sedução; 2) a criança deve adquirir precocemente a
arte da renúncia, deve-se "tomar posse" do ser da criança
para garantir o domínio do mesmo. Todo problema da crian-
ça que chora, dos humores que vêm em seguida e da teimo-
sia, pode ser assim resolvido, no primeiro ano de vida. Esse
é o melhor momento para exercitar a criança na "arte da
renúncia". Trata-se de fazer com que a criança sinta o dese-
jo de alguma coisa, para lhe recusar em seguida aquilo que
ela não deixará de pedir. A ama, com a criança em seu colo,
é convidada a comer e beber, com o único propósito de opor
em seguida uma recusa ao pedido oral ou gestual da crian-
ça. Cumpre suprimir o desejo infantil para deixar somente
subsistir os automatismos - "a fome a horas certas"; 3) o
controle que o adulto adquire sobre as tendências da criança
deve poder adquirir igualmente sobre r corpo dela; daí o
desenvolvimento de uma "ideologia corretiva do corpo" que
encontra a sua expressão na ginástica médica e em diversas
aplicações ortopédicas para o corpo infantil (cf. Mannoni,
1977, p. 54-5).
2 4 0 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

D. P. Schreber - o filho - foi educado para sentir um


afeto e uma liberdade "autênticas", as quais só se tornaram
possíveis por meio da "boa educação", que se dispunha a
controlar totalmente sua mente e seus atos; de um modo
que, por exemplo, levava-o a apertar a mão do pai e sorrir-
lhe, de forma agradecida, depois que este lhe surrava (cf.
Robertson, 1995, p. 454). O menino foi uma criança tran-
qüila, um rapaz dócil e um magistrado de grande renome
nos tribunais da Saxônia; o que teria, de todas as maneiras,
mostrado o êxito das práticas educativas do pai, não fora
por um detalhe: depois de ter publicado o livro, Memórias
de um neurótico, em 1903, tornou-se conhecido como o
mais famoso psicótico da literatura psicanalítica. Como na
vida monástica, era de uma obediência total ao Mestre de
que se tratava nesta Tecnologia do Eu; a única permissão
que Daniel Paul não solicitou a seu médico-educador foi a de
enlouquecer (cf. os "delírios" de Schreber-adulto em Freud,
1974a, p. 14-108).

Para este estudo, o que conta nesses dois exemplos


não é o "sucesso" ou o "fracasso" dos objetivos ou princípios
apresentados, mas o que tais práticas produziram na história
dos sentidos das concepções e dos mecanismos pedagogi-
zadores, com os quais o Emílio de Rousseau virá duelando,
até nossos dias, para conformar, no binômio reprimir-liber-
tar, o que hoje praticamos como a educação escolarizada.
De um lado, postam-se o Dr. Itard e Vitor, bem como o Dr.
Schreber-pai e o Dr. Schreber-filho, como figuras paradigmá-
ticas de uma pedagogia intelectualista e racionalista, com
estatuto científico, moral e cognitivo a um só tempo: utopia,
templo e prática dos enciclopedistas; do outro lado, perfi-
lam-se Rousseau e Emílio - numa posição subordinada, So-
fia - , como emblemáticos de uma pedagogia do sentimen-
to, da emoção e da estética, que persegue o afeto e a ade-
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 4-1

são, caçando a infância sem trégua. Lados que somente


interessam porque fazem parte do mesmo exercício de po-
der e produção de saber infantilizadores.
Vitor não era o Homem Natural, porque o destino na-
tural do homem é o de viver em sociedade. Extraviando-se
do social, Vitor afastara-se do estado de natureza. O médi-
co-pedagogo não podia confiar na natureza de seu aluno-
paciente, já que, nele, o princípio da Natureza encontrava-
se inativo. Itard desenvolve então um método científico para
interceder sobre o corpo deformado e as ações repugnantes
de Vitor. Schreber-filho tinha por única natureza concebida a
de obedecer, já que era mau de nascença. O pai não se
perguntava sobre a ausência ou a presença de qualquer ou-
tra natureza que não esta. Logo, o único caminho rápido era
o do disciplinamento total por meio de um método de con-
trole integral. Uns e outros não tinham a paciência de escu-
tar a natureza, conforme Rousseau recomendara que se fi-
zesse com Emílio. Vitor não a tinha, era uma monstruosida-
de. Schreber-filho a tinha em excesso, de um modo que não
valia a pena ser escutada. A de Emílio era um enigma mis-
terioso e ao mesmo tempo uma natureza-falante que deve-
ria ser decifrada.
O que os três meninos possuíam em comum era a
necessidade de serem educados, sua "educabilidade" - como
diz Narodowski (1994, p.33) -, sua capacidade "natural" de
ser formado por uma ação educativa: domínio moral, físico,
cognitivo e sentimental a ser executado por uma empresa
de exame, de controle e de disciplina. Escultor da natureza,
educador que tem resposta para tudo, operador de auto-
educação: três combinações de formas de um mesmo calei-
doscópio, o do discurso pedagógico. Um cientista observa-
dor do Homem, um pai-pedagogo, um pequeno-burguês
contrário ao espírito enciclopédico: três passagens de areia
2 4 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

da mesma ampulheta, a que confina a vida infantil. Uma


natureza deformadamente inativa, outra natureza má, e a
terceira de um bom-selvagem: três cartas de um mesmo
baralho, cujo coringa é a infância essencializada. Um meni-
no-lobo, um filho bem-educado, um menino-homem natural:
três personagens de uma mesma agonística, o processo de
infantilização. Asilo, família, comunidade rural: três dese-
nhos para um mesmo projeto institucional, a escola. Itard,
D. G. M. Schreber, Rousseau; Vitor, D. P. Schreber, Emílio:
três homens, três meninos-educados, e uma mesma exclu-
são, Sofia.

Emílio ou da educação (Rousseau, 1992) é a pedra


sobre a qual se edifica essa particular igreja da cultura oci-
dental que chamamos sistema de ensino: é ela que descobre
a infância, nomeando-a e normatizando sua existência; situ-
ando-a naquela posição das coisas que merecem um nome
e, portanto, serem estudadas e respeitadas. A pedagogização
da infância não é, definitivamente, "coisa de crianças" (cf.
Lerena, 1 9 8 3 , p. 35). Igreja que tem por ritual o Exame
Escolar; por catecismo a Disciplina; por mística a Teoria
Burguesa da Educação e da Cultura; por primeiro Papa
(Mama?) Rousseau; e por deontólogo (cf. Muricy, 1988, p.
482-3) mais importante o criador do sistema pan-ótico,
Jeremy Bentham, que foi quem formulou a seguinte doutri-
na a ser sacralizada:

A educação não é outra coisa que o resultado de todas as


circunstâncias em que uma criança está colocada. Velar sobre
a educação de um homem é velar sobre todas as suas açõec.
é colocar-lhe em uma posição tal que se possa influir sobre
ele como se queira, pela escolha dos objetos que se lhe apresen-
tem e das idéias que se fazem nascer nele (Lerena, 1983, p.
129).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 4 3

Com Bentham, chega-se ao ponto de dizer - se é que


ainda não tinha sido dito com a devida ênfase - que tanto a-
vida-a-morte, quanto a mais-valia de infância somente pu-
deram ser produzidas pela prática educativa instituciona-
lizada. A taxa do surplus - ou taxa de exploração, diria
Marx - do infantil pedagogizado é obtida não pelo que Aries
denominou de "ternura", que teria prevalecido sob influên-
cia de Rousseau e do Século das Luzes, e sim pelo auto-
domínio desse indivíduo assim constituído. A demanda in-
cessante da burguesia - calcada sobre a mortificação cristã
de renunciar ao mundo e a si mesmo - para que a educação
funcionasse como antídoto contra a influência corruptora do
mundo não foi um "ideal"; foi isso e também práticas bem
concretas de alquebrar as vontades, controlar as emoções,
disciplinar os intelectos.
As faixas de algodão ou linho que imobilizavam as
crianças de antigamente foram substituídas pelas "faixas"
da consciência do Eu, de cuja produção a escola e a família
se encarregaram. Desigualdade entre os indivíduos; a educa-
ção concebida como busca e desenvolvimento de atitudes
inatas ou adquiridas ou construídas; o processo educativo
concebido como processo de diferenciação e de hierarqui-
zação; o princípio de seleção segundo as atitudes e os com-
portamentos; a educação considerada uma cruzada que atende
interesses e necessidades infantis; a investigação das leis
naturais ou cognitivas que regem o desenvolvimento infantil;
a criança universalizada e trans-histórica; a mulher como a
educadora por excelência da infância (cf. Pestalozzi, 1967);
as disciplinas; a religião do coração e a da personalidade; o
alargamento do tempo da infantilização; o fortalecimento da
infantilidade para amplos segmentos dos "outros" e "outras":
tudo isso fez crescer a mais-valia absoluta e relativa da infân-
cia, enriqueceu o processo de produção do infantil e aumen-
tou o valor moral das crianças no interior do dispositivo de
infantilidade.
2 4 4 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

PEDAGGGIZAR A SEXUALIDADE.
MORALIZAR A PEDAGOGIA

No Prefácio à Quarta Edição, escrito em 1920, ao


texto de 1905, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
Freud (1972; 1981a) reafirma "a importância da sexualida-
de em todas as realizações humanas e a tentativa que [este
livro] faz para ampliar o conceito de sexualidade". Acusada
de "pan-sexualismo" e de tudo explicar pelo sexo, a Psica-
nálise, escreve Freud, poderia espantar-se caso fosse possí-
vel esquecer "como os fatores emocionais tornam as pessoas
confusas e esquecidas". Há muito tempo, Schopenhauer já
havia mostrado à humanidade o quanto suas atividades eram
"determinadas pelos impulsos sexuais, no sentido comum da
expressão"; e teria sido impossível que um grande número
de leitores tivesse banido de suas mentes uma afirmação de
tal importância. Quanto à "extensão" do conceito de sexua-
lidade tornou-se necessária "pela análise de crianças e dos
que se chamam os pervertidos"; assim, quem quer que olhe
com desdém a Psicanálise do alto de sua superioridade, "de-
veria recordar quão intimamente essa idéia da sexualidade
ampliada da Psicanálise coincide com o Eros do divino Platão"
(Freud, 1972, p.134).

O texto inicia-se sob o título As aberrações sexuais,


onde é afirmada a inadequação da opinião popular a respei-
to da natureza e das características do instinto sexual; o
qual, acredita-se, "está ausente na infância", somente mani-
festando-se na puberdade, por ocasião da "chegada da ma-
turidade", e revelado "nas manifestações de uma atração
irresistível exercida por um sexo sobre o outro", que seu fim
"está constituído pela cópula sexual ou por aqueles atos que
a ela conduzem". O conceito popular do instinto sexual é
refletido na lenda segundo a qual os primeiros seres huma-
nos foram divididos em duas metades - o homem e a mulher
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 4 5

- que estão, eternamente, procurando unir-se pelo amor. O


que espanta à Psicanálise é descobrir que "há homens cujo
objeto sexual é outro homem e não uma mulher, e mulheres
cujo objeto sexual é outra mulher, e não um homem". Os
indivíduos desta espécie, diz Freud, são chamados homosse-
xuais; "ou melhor, ' invertidos', por terem sentimentos se-
xuais contrários e o fato é conhecido por 'inversão'" (Freud,
1972, p. 135-6, 1981a, p. 1.172-3).
É analisado o comportamento dos invertidos, quer se-
jam "absolutos" ou "invertidos anfigênicos"; e também, em
relação ao tempo, "invertidos ocasionais", "pouco antes ou
depois da puberdade", "depois de um longo período de ati-
vidade sexual normal", "após ter tido uma experiência pe-
nosa com um normal"; examina-se também a natureza da
inversão, em relação à degenerescência e a seu atribuído
caráter congênito, para afirmar que ela não pode ser explicada
por esses fatores; assim como não é suficiente buscar expli-
cações na bissexualidade, isto é, em um "hermafroditismo
psíquico", associado com um hermafroditismo anatômico.
Em uma Nota de rodapé, acrescentada em 1910, acer-
ca da "natureza bissexual do indivíduo", Freud refere-se, pela
primeira vez, à infância, nesse texto, escrevendo ser verda-
de que a Psicanálise ainda não apresentou uma explicação
completa da origem da inversão; entretanto, descobriu o
mecanismo psíquico de seu desenvolvimento e prestou cola-
boração essencial à exposição dos problemas em questão.
Sendo assim, em todos os casos examinados,

expusemos o fato de que os futuros invertidos, nos primeiros


anos de sua infância, atravessam uma fase de fixação muito
intensa, mas muito curta, em uma mulher (geralmente sua mãe)
e que, depois de ultrapassada esta fase, identificam-se com uma
mulher e se consideram, eles próprios, seu objeto sexual. Isto é,
partem de uma base narcísica e procuram um rapaz que se
2 4 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

pareça com eles próprios e a quem eles possam amar como


eram amados por sua mãe. [...] Seu desejo compulsivo de ho-
mens acabou sendo determinado por sua incessante fuga das
mulheres (Freud, 1972, p. 145-6).
Em Nota de 1915, é escrito que a pesquisa psicanalíti-
ca opõe-se a que se dê destaque aos homossexuais, colocan-
do-os "em um grupo à parte do resto da humanidade", já
que, estudando as excitações sexuais, descobriu "que todos
os seres humanos são capazes de fazer uma escolha-de-obje-
to homossexual" e, na realidade, o fazem em seu incons-
ciente. A Psicanálise considera que a escolha de um objeto,
independentemente do sexo do indivíduo - "tal como ocorre
na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos pri-
meiros períodos da história" -, é a base original a partir da
qual desenvolvem-se tanto os tipos normais como os inverti-
dos. Entre os fatores acidentais que influenciam a escolha de
objeto, descobriu-se a frustração - "na forma de uma inibi-
ção prematura da atividade sexual, pelo medo"; bem como
a presença de ambos os pais - "a ausência de um pai forte
na infância não raro favorece a ocorrência de inversão" (ib.,
p. 146-7).
Após apresentar diversos casos de "aberrações esporá-
dicas", manifestas por "indivíduos sãos, e em raças inteiras
ou meios sociais", como a escolha de pessoas sexualmente
imaturas enquanto objetos sexuais - "abusar sexualmente
das crianças é prática inquietantemente freqüente entre pro-
fessores e simplesmente porque são eles que têm mais opor-
tunidade de fazê-lo" -; relações sexuais com animais - "o
que não é absolutamente raro, principalmente entre os cam-
poneses, em que a atração sexual parece derrubar as barrei-
ras da espécie" -, enquanto os loucos demonstram tais aber-
rações de forma mais intensificada; Freud examina Os des-
vios em relação ao objetivo sexual, tais como: a supervalori-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 4 7

zação do objeto sexual; o uso da membrana mucosa dos


lábios e da boca; o uso sexual do orifício anal; a significância
de outras regiões do corpo, como o pé ou os cabelos; o tocar
e o olhar; sadismo e masoquismo; e t c , para concluir este
primeiro ensaio sob o título: Indicação do infcmtilismo da
sexualidade, afirmando:

a constituição suposta que mostra os germes de todas as perver-


sões não pode ser revelada melhor do que nas crianças, embora
nelas não apareçam todos estes instintos mais que em modesta
intensidade. Desta forma chegamos à fórmula de que os neuró-
ticos conservam sua sexualidade em estado infantil, ou regridem
de volta a ele. Portanto, nosso interesse se dirigirá para a vida
sexual das crianças, e iremos agora investigar nelas o funciona-
mento das influências que governam o processo evolutivo da
sexualidade infantil até que ela se converta em perversão, neu-
rose ou vida sexual normal. (Freud, 1972, p. 175; 1981a, p.
1194)

O segundo ensaio leva por título A sexualidade infan-


til e inicia-se pela atribuição de "erro" à idéia popular de
que o instinto sexual está ausente da infância: um erro que
"não é puramente um erro simples", mas "que tem tido
graves conseqüências", pois a ele "devemos nossa atual ig-
norância das condições fundamentais da vida sexual". Para
Freud, "um penetrante estudo das manifestações sexuais
infantis nos revelaria provavelmente os traços essenciais do
instinto sexual", além de nos fazer descobrir seu desenvolvi-
mento e sua composição por elementos procedentes de di-
versas fontes. Lamenta que, até o momento, os autores te-
nham se ocupado muito mais com a investigação e a expli-
cação das qualidades e reações do indivíduo adulto em rela-
ção com a vida de seus antepassados, do que com "a época
infantil do sujeito", atribuindo maior influência à hereditarie-
dade do que à infância. Em Nota de rodapé, de 1 9 1 5 ,
2 4 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

acrescenta: "Não é possível, além disso, determinar acerta-


damente a parte correspondente à hereditaridade, sem ha-
ver estudado antes a correspondente à infância" (Freud,
1981a, p. 1.195).

Embora constate que "o exame científico das manifes-


tações tanto físicas quanto psíquicas da sexualidade infantil"
ainda esteja "em seus simples começos", a Psicanálise pre-
tende corrigir tal situação. São analisados então os seguintes
pontos: 1) Amnésia infantil: esquece-se a infância como "re-
sultado da educação" e, em parte, devido "à repressão" de
tipo histérica - "sem amnésia infantil não haveria amnésia
histérica" (cf. Freud, 1976a, 1976b, p. 328-54). A amnésia
infantil que "transforma a infância de todos em algo seme-
lhante a uma época pré-histórica" e lhes "oculta o início de
sua própria vida sexual" é responsável "pelo fato de, em
geral, nenhuma importância se atribuir à infância no desen-
volvimento da vida sexual". 2) O período de latência sexual
na infância e suas interrupções: as inibições sexuais; a for-
mação reativa e a sublimação; interrupções do período de
latência (Freud, 1972, p. 181-4). 3) As manifestações da
sexualidade infantil: chupar o dedo; o auto-erotismo (Freud,
p. 187). 4) O objetivo sexual da sexualidade infantil: carac-
terísticas das zonas erógenas; o objetivo sexual infantil (Freud,
1972, p. 188-9). 5) Manifestações sexuais masturbatórias:
atividade da zona anal; atividade das zonas genitais; segun-
da fase da m a s t u r b a ç ã o infantil; r e t o r n o da primeira
masturbação infantil; disposição perversa polimorfa; instin-
tos componentes (Freud, 1972, p. 192-9). 6) As pesquisas
sexuais da infância (cf. Freud, 1981c): o instinto de saber; o
enigma da esfinge; complexo de castração e inveja do pê-
nis; teorias do nascimento; o conceito sádico das relações
sexuais; malogro típico das pesquisas sexuais infantis (Freud,
1972, p. 199-203). 7) As fases de desenvolvimento da or-
HISTÓRIAS DE GDVERND: CRIANÇAS E CIA. 2 4 9

ganização sexual: organizações pré-genitais; ambivalência;


escolha difásica de objeto (Freud, 1972, p. 203-6). 8) As
fontes da sexualidade infantil: excitações mecânicas; ativi-
dade muscular; processos afetivos; trabalho intelectual; va-
riedades de constituição sexual; caminhos da influência mú-
tua (Freud, 1972, p. 207-12).
Em 1907, na Carta aberta ao doutor M. Fürst, Freud
(1981b) responde à questão acerca da conveniência em pres-
tar esclarecimentos sexuais às crianças e, em caso afirmati-
vo, qual a idade mais adequada e de que modo fazê-lo.
Inicia sua resposta afirmando não compreender por que "as
explicações sobre a vida sexual humana" vêm sendo nega-
das. Encontra, nas cartas familiares do pensador e filantropo
Multatuli, razões mais do que suficientes para a "dissimula-
ção", levada a efeito pelos pais e educadores, as quais cita:
Em meu modo de pensar, algumas coisas são, em geral,
exageradamente encobertas. Age-se com acerto procurando
conservar pura a imaginação das crianças; mas não é a ignorân-
cia o melhor meio para preservar essa pureza. Ao contrário,
acredito que a ocultação conduz a criança a suspeitar mais do
que nunca da verdade. A curiosidade nos leva a esmiuçar coisas
que teriam pouco ou nenhum interesse para nós, se tivéssemos
sido informados com simplicidade. Caso fosse possível manter a
criança em absoluta ignorância, eu poderia aceitá-la, mas isso é
impossível. O convívio com outras crianças, as leituras que indu-
zem à reflexão, e principalmente a dissimulação de seus pais e
educadores intensifica a vontade de saber. Este desejo, satisfeito
apenas parcialmente e em segredo, excita seu sentimento e
perverte sua fantasia, de forma que a criança começa a pecar
em períodos nos quais seus pais acreditam que ainda ignora o
que seja o pecado (Freud, 1981b, p. 1.244-5).

Freud aconselha que o sexual seja tratado, desde o


início da vida da criança, da mesma forma que qualquer
outra ordem de conteúdos dignos de serem sabidos, para
2 5D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

que sua curiosidade nunca atinja uma intensidade exagera-


da. Afirma ser dever da escola esclarecer a sexualidade,
iniciando com os grandes fatos da reprodução no estudo do
mundo animal e fazendo constar, logo após, que o homem
compartilha o essencial de sua organização com os animais
superiores. A explicação das características especificamente
humanas da vida sexual e de sua significação social pode-
riam dar-se ao final da educação básica, aos dez ou onze
anos. Por ocasião da Confirmação deveriam ser "explicadas
as obrigações morais que estão associadas à satisfação real
do instinto sexual". Assim, um esclarecimento gradativo, sem
interrupções e por iniciativa da própria escola primária pa-
rece a Freud ser "o único adaptado ao desenvolvimento da
criança e que consegue evitar os perigos que estão envolvi-
dos" nessa tarefa. Considera um avanço significativo na edu-
cação infantil que, na França, o Estado tenha introduzido,
em lugar do catecismo, um manual que dá à criança as
primeiras noções "de sua situação como cidadão e dos deve-
res éticos que deverá assumir mais tarde". No entanto, afir-
ma Freud, essa educação continuará com "sérias deficiên-
cias enquanto não abranger o campo da sexualidade" (Freud,
1981b, p. 1.247-8).
No texto de 1913, O interessse científico da psicaná-
lise, na parte intitulada O interesse educacional da psica-
nálise, Freud (1974b) diz que a importância que a Psicanáli-
se apresenta para a teoria da educação baseia-se no fato de
que somente alguém que "possa sondar as mentes das crian-
ças será capaz de educá-las"; e nós, pessoas adultas, "não
podemos entender as crianças porque não mais entendemos
a nossa própria infância". A amnésia infantil prova o quanto
"nos tornamos estranhos à nossa infância". A Psicanálise
trouxe à luz os desejos, as estruturas mentais e os processos
de desenvolvimento da infância. Todos os esforços anterio-
H I S T ó R I A S DE GOVERND: CRIANçAS E CIA. 2 5 1

res feitos foram incompletos e enganadores por terem des-


prezado por inteiro "o fator inestimavelmente importante da
sexualidade em suas manifestações físicas e mentais". A
incredulidade com que têm sido acompanhadas as descober-
tas estabelecidas com maior grau de certeza pela Psicanálise
sobre o tema da infância - "o complexo de Édipo, o amor a
si próprio (ou 'narcisismo'), a disposição para as perversões,
o erotismo anal, a curiosidade sexual" - é uma "medida do
abismo que separa nossa vida mental, nossos juízos de valor
e, na verdade, nossos processos de pensamento daqueles
encontrados mesmo em crianças normais".
Quando os educadores familiarizarem-se com essas
descobertas da Psicanálise, escreve Freud, será mais fácil se
reconciliarem com "certas fases do desenvolvimento infan-
til", além de não correrem o risco de "superestimar a impor-
tância dos impulsos socialmente imprestáveis ou perversos
que surgem nas crianças". Ao contrário, abster-se-ão de qual-
quer tentativa de suprimir esses impulsos pela força, por
terem entendido que esforços desse tipo produzem resulta-
dos menos indesejáveis que a alternativa "de dar livre trânsi-
to às travessuras das crianças". A Psicanálise tem observado
"a perda de eficiência e capacidade de prazer" derivada de
uma severidade inoportuna ou exagerada. Também pode
demonstrar que preciosas contribuições para a "formação do
caráter são realizadas por esses instintos associais e perver-
sos" na criança, se não forem submetidos à repressão e sim
"desviados de seus objetivos originais para outros mais valio-
sos, através do processo conhecido como 'sublimação'". Nossas
mais elevadas virtudes desenvolveram-se como "formações
reativas e sublimações de nossas piores disposições". A edu-
cação deve abster-se de submeter tais fontes de ação e res-
tringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias
são conduzidas, ao longo de trilhas seguras. Freud conclui
2 5 2 HISTÓRIA DÁ INFÂNCIA SEM FIM

escrevendo: "Tudo o que podemos esperar a título de


profilaxia das neuroses no indivíduo encontra-se nas mãos
de uma educação psicanaliticamente orientada" (Freud,
1974b, p. 224-6).
Na Lição XX. A vida sexual humana - integrante das
Lições introdutórias à psicanálise, uma série de conferên-
cias pronunciadas em Viena e Leipzig, nos anos de 1915-6
e 1916-7 -, Freud (1981e) afirma que a investigação psi-
canalítica dirigiu sua atenção sobre a vida sexual infantil em
virtude de que as recordações e as associações surgidas "na
imaginação dos enfermos, durante a análise de seus sinto-
mas", relacionaram-se sempre com os primeiros anos infan-
tis. As hipóteses formuladas por esse método foram confir-
madas, ponto a ponto, na "observação direta de sujeitos
infantis". Comprovou-se também que todas "as tendências
perversas têm suas origens na infância", e que as crianças
trazem dentro de si uma "predisposição geral às perversões",
manifestando-as de modo compatível com a fase imatura de
vida em que se encontram; ou seja, "a sexualidade perversa
não é outra coisa senão a sexualidade infantil ampliada e
decomposta em suas tendências constitutivas".
Embora exista ainda a tendência em negar que as
crianças possuam uma vida sexual, bem como a exatidão
das observações psicanalíticas que encontram na conduta
das crianças uma afinidade com aquilo que, a título de per-
versão, é condenado nos adultos, Freud diz ser necessário
analisar a causa dessa resistência, para então apresentar a
totalidade de suas conclusões. Segundo ele, a sociedade con-
sidera, como uma de suas principais missões educativas,
obter que o instinto sexual encontre uma vontade individual
obediente à coerção social que o refreie, limitando e domi-
nando tal instinto. Ao mesmo tempo, interessa-se em garan-
tir que o desenvolvimento completo da necessidade sexual
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 5 3

fique retardado até que a criança alcance um certo grau de


maturidade intelectual, já que, com a total aparição do ins-
tinto sexual, fica colocado um fim a toda influência educativa.
Caso a sexualidade infantil se manifestasse precocemente,
romperia todos os limites e anularia toda a obra da civiliza-
ção, fruto de um penoso e prolongado trabalho. Essa missão
de conter a necessidade sexual não é nada fácil e, ao realizá-
la, peca-se por excesso ou por insuficiência. A base da socie-
dade é de natureza econômica; não possuindo meios sufi-
cientes de subsistência para permitir a seus membros viver
sem trabalhar, a sociedade acha-se obrigada a limitar o nú-
mero destes e a desviar sua energia da atividade sexual para
o trabalho.

A experiência mostrou aos educadores que a tarefa de


submeter a vontade sexual das crianças não é realizável se-
não quando se começa a influir sobre elas "desde muito
cedo", fazendo sua vida sexual obedecer a uma rigorosa
disciplina, já que é "uma preparação para a vida sexual do
adulto". Essa prática acabou por atribuir uma falta de sexua-
lidade às crianças, a qual transformou-se em teoria científi-
ca. A criança é considerada, sem exceção alguma, "como a
mais completa representação de pureza e inocência", e tudo
aquilo que se atreve a julgá-la diferentemente é acusado de
"sacrilégio e de atentado contra os mais ternos e respeitá-
veis sentimentos da Humanidade". As crianças são as únicas
a quem essas concepções não enganam, pois, apesar delas,
"fazem valer com toda ingenuidade seus direitos animais",
mostrando a cada instante que a pureza é algo de que não
possuem a menor idéia. É significativo v-i: como os educa-
dores e pais, que negam totalmente a existência de uma
sexualidade infantil, nem por isso renunciam à educação, e
condenam com severidade as manifestações daquilo mesmo
que se recusam a admitir. Também é interessante, desde o
2 5 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ponto de vista teórico, que os cinco ou seis primeiros anos


de vida, isto é, a idade na qual o juízo de uma infância
assexuada resulta mais equivocado, sejam os anos envoltos,
para uma imensa maioria de adultos, por uma nebulosa
amnésia, que somente a investigação analítica consegue dis-
sipar, embora já se tenha mostrado permeável em certas
formações oníricas (Freud, 1981e, p. 2.316-7).
Ao contrário do que se diz sobre o fato de que a Psica-
nálise atribuiu uma extensão exagerada à sexualidade para
manter suas afirmações sobre a causalidade sexual das neu-
roses, o que a investigação analítica tem feito nada mais é
do que ampliar a noção de sexualidade na medida necessá-
ria "para incluir nela a vida sexual dos perversos e das crian-
ças; ou dito de outra maneira, não fizemos outra coisa que
restituir a este conceito sua verdadeira amplitude". Aquilo
que se entende por "sexualidade" fora da Psicanálise "é uma
sexualidade extremamente restrita e posta a serviço da pro-
criação; ou seja, apenas aquilo que se conhece com o nome
de vida sexual normal" (ib., p. 2.321).
O pastor, psicanalista e pedagogo de Zurique, Oskar
Pfister - o primeiro reconhecido por Freud (1974c, p.50)
como formulador de uma "pedagogia analítica", ou de uma
"educação psicanalítica" - escreve no livro El psicoanálisis y
Ia educación (Pfister, 1943) que a Psicanálise, como um
método da Pedagogia, pode ser praticada "com qualquer
fundamento ético, pelos maometanos, judeus, cristãos, pa-
gãos e ateus, pelos bons e pelos maus". O educador, afirma
Pfister, persegue, com sua análise pessoal, um "fim deter-
minado completamente moral": supressão das inibições pro-
duzidas por forças psíquicas inconscientes e submissão des-
sas forças ao domínio da personalidade moral. Quando esse
fim é comprovado, conclui-se que a educação psicanalítica
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 5 5

"deve incluir-se na pedagogia geral". Se Freud não quer pro-


porcionar os fundamentos éticos da educação analítica, por
sua situação de médico, bem como nunca pretendeu fazer
da Psicanálise uma WeJtanschauung, os educadores não
podem esquecer sua "orientação moral". São conscientes de
sua grande responsabilidade: para eles, "não é homem são
apenas aquele que se curou de seus sintomas patológicos,
senão o que é sadio moralmente". Por isso, os educadores
devem dedicar-se à Psicanálise: "porque detrás dos sintomas
neuróticos ocultam-se relações morais" e devem os edu-
cadores realizar seu "trabalho educativo" (Pfister, 1943, p.
161-2).

Seria útil, assinala Pfister, que todos os especialistas


em disciplinas pedagógicas tivessem os conhecimentos mais
fundamentais no campo da Educação Psicanalítica: "Seria
de grande valor para a higiene e a direção da escola" (ib., p.
192-3). O inconsciente é "o reino dos espíritos subterrâneos.
Muitas vidas psíquicas estão sepultadas ali e gritam pedindo
liberdade". O educador que tiver uma visão penetrante em
questões psicanalíticas verá um enorme contingente dessas
"vítimas da repressão", o qual ameaça fazer-se maior por-
que "o pedagogo, quase sem exceção, carece de recursos*
contra as causas repressoras". Nem todos são chamados para
"penetrar no país das sombras e libertar as almas presas";
porém, aquele que, apesar de tudo, reconheça-se capacita-
do para essa grande tarefa, deve dedicar-se a ela com todas
as suas forças, "sem preocupar-se com as perseguições de
seus inimigos". A maior satisfação que pHem experimentar
é, sem dúvida nenhuma, "conseguir a liberdade dos homens
acorrentados" (ib., p. 194).
2 5 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

INFANTILIZAR(-SE)

O filme de Francis Ford Coppola (1996), Jack, conta a


história de um menino, acometido de uma doença genética
que faz as células de seu corpo envelhecerem quatro vezes
mais rápido do que as dos meninos normais. Somente quan-
do Jack deixa a reclusão do lar - adaptada à sua condição
especial por uma mãe e um pai solícitos, protetores e amo-
rosos -, e vai para a escola, é que seu corpo de 40 e seu
desenvolvimento mental de dez anos começam a apresentar
e a criar problemas. O corpo de Jack cresce sem que a
mente o acompanhe e o filme mostra "o quanto existe de
criança em cada adulto", bem como "o quanto pode haver
de adulto em uma criança" (Araújo, 1996, p. 5).
Deixo de lado as análises de que o filme seria uma
parábola sobre a sociedade norte-americana, onde os corpos
crescem sem que a mente os acompanhe; ou de que a pro-
blemática tratada seria a de um mundo composto por pes-
soas sempre diferentes em relação a si mesmas; ou mesmo
que Jack encarnaria um dos tantos "desviados" que o cine-
ma norte-americano gosta de construir para fortalecer a nor-
malidade dos indivíduos e de uma população modelar; ou de
que é mais um filme da safra atual dos "politicamente corre-
tos"; ou como os personagens normais vão aos poucos
escandindo sua anormalidade, sendo então que se desajustam
em função de Jack: não por considerar tais análises isentas
de interesse, mas porque quero marcar a função da escola
nessa trama. Sublinhar que não foi à toa que Coppola fez
Jack ir para a escola, ponto central do roteiro a partir do
qual desencadeia-se toda a trama envolvendo os outros me-
ninos, as duas meninas que o atormentam, a professora e o
diretor da escola, as aprendizagens e os exames; marcar
que, diante de nossa cultura, era necessário que Jack fre-
qüentasse a escola, que se inserisse no processo de escolari-
zação para se socializar, educar-se, infantilizar-se, em suma.
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 5 7

No processo de infantilização de uma parte da socie-


dade, a escola ocupa um papel central. Baquero e Narodowski
(1994; Narodowski, 1994), a partir de uma resenha feita
em autores da história da infância, afirmam que escolarização
e infantilização parecem ser dois fenômenos paralelos e com-
plementares. Por processo de infantilização entendem aque-
le mediante o qual a sociedade começa a amar, proteger e
considerar as crianças como agentes heterônomos; é nesse
sentido que a Pedagogia, ou melhor, o discurso pedagógico,
apresenta-se como a produção discursiva destinada a
normatizar e explicar a circulação dos saberes nas institui-
ções escolares, constituindo-se como o relato que conceberá,
através da escola, uma infância desejada - às vezes, uma
"infância normal" -, em uma sociedade desejada.
Dessa perspectiva, seria impossível compreender - e
para Coppola desenvolver - toda a dramática condição de
Jack sem acioná-la por meio de sua pedagogização, já que é
impossível compreender o processo de construção de uma
infância moderna se não se leva em conta o discurso peda-
gógico, o qual propõe uma analítica capaz de dotar de cer-
tos sentidos os enunciados sobre a infância (ib., p. 62-3). Ou
seja, era preciso transformar Jack em "aluno" para que o
filme fosse produzido, para que as relações, antes harmonio-
sas e pacíficas, com seus pais entrassem "em crise" e, inclu-
sive, para que, vivendo mais intensamente sua infância e,
como infantil, emocionando-se mais densamente, Jack ti-
vesse acelerado o processo de seu envelhecimento e anteci-
pado a hora de sua morte. A se acreditar nessas relações,
isso não é pouca coisa.
O personagem interpretado por Robin Willians pode
ser tomado como emblemático da "infantilidade" porque suas
ações e ditos próprios de crianças, presentes em um corpo
adulto, causam estranhamento e irritam aqueles que com
2 5 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ele se relacionam. Se a escolarização deve promover seu


desenvolvimento, pelo processo de infantilização, também a
escola, embora se esforce em direção contrária, fica irritada
diante da puerilidade e do "infantilismo" de Jack. Para Aries
(1981), esse sentimento de irritação diante da infantilidade
das crianças tem, pari passo com o sentimento da infância,
uma história que data do século XVII, quando a literatura
pedagógica destinada aos pais e educadores começou a fa-
lar da fragilidade e da debilidade da infância (ib., p. 138-
40). O historiador entende essa ênfase dada ao "lado des-
prezível" da infância como conseqüência do espírito clássico
e de sua insistência na razão; mas, acima de tudo - diz ele -
foi uma reação contra a importância que a criança havia
adquirido dentro da família e dentro do sentimento da famí-
lia: os adultos de todas as condições sociais gostavam de
brincar com as crianças pequenas - em função do primeiro
sentimento de infância, o de paparicação -, e foi esse hábi-
to que passou a provocar irritação diante da infantilidade, a
qual é considerada como "o reverso moderno do sentimento
de infância".

A esse sentimento de irritação somava-se o desprezo


que a sociedade do XVII, constituída por "homens do ar
livre" e por "homens mundanos", sentia pelo professor, pelo
mestre do colégio, pelo "pedante". A antipatia pela infanti-
lidade das crianças demonstrada pelos "espíritos sérios e pre-
ocupados" é mais um testemunho - acredita o historiador -
do papel, a seu ver demasiadamente importante, que esta-
va sendo reservado à infância. É nessa instância de exaspe-
ração que se forma "uma concepção moral da infância", a
qual insistia em sua fraqueza mais do que em sua "natureza
ilustre", associando sua "fraqueza à sua inocência" - "verda-
deiro reflexo da pureza divina" - e colocando a educação
"na primeira fileira das obrigações humanas".
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 5 9

Para Aries, a obrigação de educar a infantilidade -


irritante e exasperante da infância - reagia contra: 1) a
indiferença medieval pela infância; 2) o sentimento terno e
egoísta de tomar a criança como brinquedo; 3) o desprezo
do homem racional. Para este estudo, é justamente aqui, na-
instância hostil à "infantilidade infantil" - se esta expressão
não fosse demasiado redundante -, que é preciso andar mais
uma vez na contramão do pensamento da história da infân-
cia, buscando analisar - não o sentimento de irritação diante
da infantilidade c o m o o reverso do m o d e r n o sentimento de
infância, mas, isso mesmo que ela chama de "reverso", ou
seja, o próprio dispositivo de infantilidade que cria suas figu-
ras, como a infância, a criança, o aluno, a aluna, o infantil, o
infantilismo, a infantilização, justamente nas práticas escola-
res e pedagógicas. Em síntese, para a história da infantilidade,
se não fosse "a descoberta" da infantilidade e os sentimen-
tos sociais e culturais de irritação, exasperação e hostilidade
contra tal qualidade, estado, propriedade, modo de ser in-
fantil, nem a Escola nem a Pedagogia teriam sido criadas.

Além das necessidades práticas de regulação das po-


pulações e dos indivíduos (cf. Foucault, 1990g), pode-se as-
sim retirar, da história da infância, mais esse elemento que
situa a escolarização e a pedagogização não como bens per
se, valorados positivamente e significados como acima de
qualquer suspeita, no que tange à sua natureza humanizadora
e socializadora, mas como mecanismos insidiosos que se ins-
talaram e aperfeiçoaram-se para borrar e apagar a
infantilidade, qualidade do infantil: um desses tantos outros,
um desses tantos diferentes que são inaceitáveis pelas iden-
tidades-padrões e que devem ser negados, redistribuídos,
repartidos, transformados em outra coisa que não eles pró-
prios, para que recorrentemente tais identidades continuem
fabricando um mesmo, um idêntico, um si-próprio. Não foi
2 6 0 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

para produzir a infância que a escola institucionalizou-se; foi


para fazê-la cada vez menos infantil, para acelerar - sempre
mais, individual e massivamente, - o processo de afanise do
infantilismo do infantil, conjurando e renegando sua
infantilidade.
O curioso talvez seja encontrado na circunstância se-
guinte: se o processo de escolarização das crianças reagiu
sempre contra sua infantilidade, pode ser pensado que,
concomitantemente, ele institucionalizou-se e vem funcio-
nando por todos esses séculos unicamente para produzir essa
mesma infantilidade, um modo de ser infantil, a qualidade
de infantil, o estado de infantil, a propriedade do infantil.
Pois não foi o próprio Aries que, em diversas circunstâncias,
mostrou que os colégios, a escola provocaram o alargamento
da infância, o prolongamento da idade da infância? Porém,
a infantilização própria do processo de escolarização não é
aquela que o primeiro sentimento de infância relevou - no
caso, a distração e a brincadeira -, mas a infantilização que
vem logo em seguida: a dos moralistas e dos educadores que
formaram esse "outro sentimento de infância, que inspirou
toda a educação até o século XX, tanto na cidade como no
campo, na burguesia e no povo", manifesta através do "in-
teresse psicológico e da preocupação moral" (Aries, 1 9 8 1 ,
p. 162).
Como mostrei, em A-vida-a-morte, foi a subordinação
da identidade social das crianças à primeira maquinaria de
produzir afetos, técnicas e instituições que conformaram a
infância moderna. A infantilidade, a puerilidade das crian-
ças, se aceitas e incrementadas, produziam "crianças mal-
educadas"; o "erro antigo" fora o dos adultos acomodarem-
se "à leviandade das crianças"; a criança não devia ser vista
nem como "divertida nem agradável": era preciso "antes
conhecê-la melhor para corrigi-la, e os textos do fim do sé-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 6 1

culo XVI e do século XVII estão cheios de observações sobre


a psicologia infantil" (Aries, 1981, p. 162-3). Aries afirma
que, no século XVIII, encontra-se na família os dois "elemen-
tos antigos": o primeiro sentimento de infância - a papari-
cação - e o segundo, destinado a preservar e a disciplinar a
racionalidade e os costumes morais, associado com um ele-
mento novo "a preocupação com a higiene e a saúde física"
(ib., p. 164). O que Aries não pôde dizer é que esses "senti-
mentos", seja o antigo seja o novo, mais do que sentimen-
tos, foram práticas discursivas e não-discursivas produzidos
pelo mesmo dispositivo, o de infantilidade, dispositivo que
estava em operação antes de fazer sua aparição no campo
da infância, encontrando-se numa espécie de vigência que
se utilizava das mesmas estratégias e táticas para produzir
formas de subjetivação similares: locupletando-se sobre iden-
tidades subordinadas, corpos assujeitados, almas de indiví-
duos dependentes, a serem governados pela pedagogização
e pela sexualização de seus eus.

TRABALHO DIURNO E NOTURNO.


D TRABALHO DAS MULHERES E DAS CRIANçAS

CDNTROLAR A URINA E AS FEZES

A pedagogização e a sexualização dos corpos e almas


das crianças começava cedo: no berço, pode-se dizer. Além
dos horários regulares para alimentar os recém-nascidos,
higienizá-los, fazê-los dormir, etc, em seu corpo eram intro-
duzidos supositórios, purgantes e clisteres, os quais constituí-
ram a primeira forma dos adultos relacionarem-se com o
interior do corpo das crianças. Estando sãs ou doentes, elas
2 6 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

eram submetidas a esses mecanismos para controle urinário


e da evacuação, limpeza geral do intestino, eliminação das
lombrigas. Também tomavam suadores - banhos escaldantes
com infusões de camomila ou matricária. No século XVII,
acreditava-se que era conveniente ministrar purgantes de
ruibarbo às crianças antes de dar-lhes de mamar, a fim de
que o leite não se misturasse com as fezes. As crianças do
povo faziam suas necessidades nos pátios, dentro das mora-
dias, nas escadas, nas vias públicas. Nas residências aristo-
cráticas, existiam urinóis, colocados sob cadeiras com bura-
cos, em que as crianças eram deixadas por muitas horas:
pelo menos desde os dezesseis meses de idade, escreveu
Héroard, o Delfim permanecia sentado neste petit séant
durante horas, com seus jogos diante de si em uma mesa
(Marwick, 1995, p. 303).
O diário de Héroard está cheio de descrições minucio-
sas do que entra e do que sai do corpo do futuro rei: sua
urina matinal era recolhida e conservada em temperatura
moderada e ao abrigo da luz; após sete horas, era avaliada
em termos de cheiro, cor, transparência, gosto, etc.; todas
as variações eram interpretadas como expressando estados
físicos e emocionais do Delfim. Também suas evacuações
eram examinadas com freqüência para que fosse determi-
nado seu estado interior: supunha-se que os intestinos do
menino continham uma matéria dirigida ao mundo dos adul-
tos, ora com insolência, ora, em tom ameaçador, ou com
malícia e insubordinação; caso seus excrementos tivessem
um aspecto e um odor desagradáveis significava que, no
mais profundo de seu corpo, residiam más inclinações; tanto
o excremento quanto a urina eram considerados como men-
sagens de um demônio particular que indicava os maus hu-
mores que ocultava em seu interior (Hunt, 1972, p. 144).
HISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 6 3

O controle esfincteriano não era ainda motivo de luta


entre adultos e crianças, e nem os médicos estavam de acor-
do entre si sobre a necessidade de provocar ou não a evacu-
ação: a luta entre pais e filhos sobre o controle da urina e
das fezes, bem como o consenso médico sobre a necessida-
de dessa regulação serão inventos do século XVIII. As discus-
sões que se seguiram sobre a idade de tirar as fraldas, a
melhor estação do ano, o clima propício, as técnicas mais
eficazes a empregar para iniciar o controle esfincteriano, os
investimentos emocionais aí depositados, ocuparão muitas
páginas de manuais, gerarão muito debate entre os profis-
sionais e na vida cotidiana, palmadas, gritos, choros, recom-
pensas.
Entre as modalidades do novo poder, encontramos mais
esta: a exigência de uma sociedade civilizada para que crian-
ças de poucos meses controlassem os produtos escatológicos
de seu corpo, seguida do progressivo estabelecimento de
"uma idade ótima" para o fazer. Inclusive, em determinados
espaços sociais do século XIX, a criança ideal era aquela que
não podia suportar nenhuma sujeira em seu corpo, em sua
roupa, ou no que a rodeava, em momento algum (cf.
DeMause, 1995, p.72). Mais uma vez, tratava-se de domi-
nar a si-mesmo/a, por razões higiênico-sanitárias neste caso.

FALAR(-SE) DD SEXD-SOBERANO

As crianças, durante muitos séculos, foram manipula-


das e utilizadas sexualmente: os escolares, pelos pedagogos
e mestres; os filhos, pelo pai e mãe; os jovens, pelos homens
livres e criados; os bebês, pelas amas; as crianças entre si e
consigo mesmas. Suetonio censurava Tibério porque este
ensinava a crianças de tenra idade, a quem chamava seus
"peixinhos", a brincar entre suas pernas enquanto se banha-
2 6 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

va. Àquelas que não haviam ainda sido desmamadas, mas


eram fortes e sãs, lhes metia o pênis na boca. Contudo, a
prática sexual preferida não era a estimulação oral do pênis,
senão a cópula anal. Marcial diz ser preciso abster-se de
excitar a glande manuseando-a, pois a Natureza dividiu o
corpo do menino: uma parte foi feita para as mulheres,
outra, para os homens. "Usai a vossa parte" (DeMause, 1995,
p. 80), recomendava. Nos vasos que registram cenas eróti-
cas de jogos sexuais com meninos impúberes, o pênis destes
nunca é mostrado em ereção, embora um dos conselhos de
Falopio aos pais consistia em que estes deviam empenhar-
se em aumentar o pênis do menino, pela manipulação diária
da glande.
A castração dos meninos, logo depois de nascidos, fun-
cionou como um motivo a mais para a excitação sexual: um
dos sistemas usados era o de compressão, que consistia em
mergulhá-los durante algum tempo em uma bacia com água
quente; depois, quando os testículos amoleciam, eram aper-
tados com os dedos até que desaparecessem. O outro siste-
ma era colocá-los em um banco ou mesa e cortar-lhes cs
testículos. Existiam pedagogos, mestres, prisioneiros, servi-
çais, cantores castrados; mas nem todos tinham sido castra-
dos para fins sexuais: os meninos também eram castrados
para a cura de diversas enfermidades ou para sua utilização
em rituais mágicos (DeMause, 1995, p. 8 1 ; Lynd, s.d., p.
21-2).
A concepção da inocência infantil, reconfirmada pelo
sacramento cristão do Batismo, fortalecia o entendimento
de que a criança era imune à corrupção sexual, por não ter
sensibilidade para sentir prazer nem dor; que era pura e
bem-aventurada por não ter pensamentos nem faculdades
carnais, sendo por isso incontaminável. No século XV, Ger-
son surpreende-se que os adultos lhe digam que nunca ouvi-
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 6 5

ram falar que a masturbação fosse pecaminosa e instrui os


confessores para que perguntem diretamente aos adultos: -
"Irmão, tocas ou manipulas o pênis como é costume fazer
com os meninos"? Tal pergunta difere muito do que Héroard
relata (cf. Aries, 1 9 8 1 , Hunt, 1972) de Luis XIII antes de
um ano: "Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o
pênis com a ponta dos dedos"; "chama um pajem com um
'Hei!' e levanta a túnica, mostrando-lhe o pênis"; "Muito
alegre, ele manda que todos lhe beijem o pênis"; "Ele riu
muito para as visitas, levantou a roupa e mostrou-lhes o
pênis, mas sobretudo à menina; então, segurando o pênis e
rindo com seu risinho, sacudiu o corpo todo"; "Diante de
uma pequena senhorita, levantou a túnica, e mostrou-lhe o
pênis com tal ardor que ficou fora de si. Ele se deitou de
costas para mostrá-lo melhor"; quando lhe perguntam: "Onde
está o benzinho da Infanta [de Espanha, prometida em casa-
mento, quando Luis XIII tinha pouco mais de um ano de
idade]? Ele põe a mão no pênis". O Renascimento principia
a disseminar a reprovação do auto-erotismo e da utilização
das crianças para fins sexuais; o século XVII dá continuidade
a essa campanha e o XVIII promove um giro totalmente
novo: castiga o menino e a menina por tocarem suas pró-
prias genitálias.

Como na exigência de controlar a evacuação, os pais


punem severamente os filhos por masturbarem-se e codifi-
cam a masturbação em um sistema de sinais incessante-
mente buscados: olheiras, espinhas, insônias, agressividade,
pêlos nas mãos - todos denotativos dessa condenável ativi-
dade antes isolada e solitária, deixada à margem da atenção
social. É difundida a idéia de que a masturbação provoca a
epilepsia, a cegueira, a loucura e até a morte, além de
prejudicar, de modo irremediável, a mente e o corpo do
futuro adulto, sujeito à debilidade, a abortos e à esterilidade.
2 6 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Os colégios transformam-se em agências de detecção, caça


e repressão aos inocentes do crime onanista e os médicos
utilizam, para o tratamento de suas conseqüências, bromuretos
de potássio, cânfora, sódio, amônia, lúpulo e calmantes, e
para sua prevenção, meios mecânicos como camisola de
força, neurotomia esquio-clitoridiana e aderência dos gran-
des lábios. São exercitados mecanismos de controle como
médicos e padres ameaçando cortar os genitais, com facas e
tesouras; a circuncisão (cf. Aries, 1981, p.131), a clitoridec-
tomia e a infibulação como prevenção e castigo; dispositivos
restritivos, como moldes de gesso e gaiolas com dentes. As
intervenções cirúrgicas chegam ao clímax de utilização entre
1850 e 1879 e os mecanismos para impedir a masturbação
entre 1880 e 1904 (cf. DeMause, 1995, p. 84).
Os médicos especializados em onanismo indicavam as
seguintes lesões nos sistemas: 1) digestivo - meteorismo,
vômitos, gastrites, gastralgias, enterites, diarréias, constipa-
ções, absorção intestinal imperfeita -; 2) circulatório -
hipertrofias dos músculos cardíacos, dilatações musculares,
aneurismas, síncopes, apoplexias, etc. -; 3) respiratório -
dicção difícil, gagueira, discordância nos sons, voz fraca, rou-
quidão, tosse seca, ansiedade torácica, falta de desenvolvi-
mento do tórax, respiração difícil, sufocação, catarro crôni-
co, tuberculose, etc; 4) nervoso - coréia, epilepsia, histeria,
nervosismo, insônia, hipocondria, hiperestesia, vertigens, etc.;
5) os mais diversos malefícios que trazia ao aparelho gênito-
urinário.
Um higienista do Rio de Janeiro escreveu sua Tese de
Medicina em 1886 acerca d' O onanismo na mulher: sua
influência sobre o físico e o moral. Nela, lê-se a detecção
dos seguintes sinais apresentados pelas meninas:
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 6 7

Emagrecem quase rapidamente, os olhos tomam-se turvos, cer-


cados por uma fita lívida, tristes, as pálpebras ingurgitadas, ver-
melhas, pesadas, sobretudo as superiores, coladas ao desper-
tar, olhar fixo e atoleimado, dirigido para o chão, fisionomia
triste e taciturna, estado de languidez, aumento do apetite para
compensar as despesas da economia, andar cambaleante, falta
de coordenação nos movimentos, fraqueza muscular na região
lombar, tremor nos membros, suores noturnos, urina turva e
sedimentosa, calafrios quase contínuos, voz rouca, palidez (Cos-
ta, 1989, p. 187).

Relatos dos "onanistas" brasileiros referiam:

Tive ocasião de ver uma infeliz mãe que pediu-me que fosse ver
sua filha vítima do hábito funesto, objeto de sua maior dor. Esta-
va-se no inverno, era noite; conduzido por esta senhora a uma
janela de uma saleta, que se abria para o jardim; vede, disse-me
ela, afastando um dos postigos da sala, se não me devo lastimar!
Vejo com efeito uma pessoa, de 30 anos, no máximo, sentada
junto de uma mesa com um castiçal; o pescoço e o peito mal
cobertos, as mãos automaticamente abandonados sobre as co-
xas, pés nus, cabelos desgrenhados, face descarnada, espáduas
e extremidades de seus membros salientes sob as vestes e enfim
esta pessoa se achava em imobilidade completa.
Entrou neste ano para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia
um menino epiléptico e já idiota pelos efeitos do onanismo; sua
face estampava o vício e o padecer; teria ao muito doze anos;
seu corpo era franzino e atrofiado, mas os órgãos genitais eram
prodigiosos e tão completamente desenvolvidos como se fossem
de um homem (Costa, 1989, p. 188).

Se o tratado de Erasmo, do século XVI, teve por fun-


ção cultivar sentimentos de vergonha diante de outras pes-
soas das cortes, os anjos-da-guarda foram referidos, por lon-
go tempo, como seres onipresentes para condicionar as crian-
ças a afastarem-se da satisfação dos prazeres; as razões hi-
2 6 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

giênicas e de saúde, acopladas àquelas de natureza religiosa


e moral, recebem, a partir do século XVIII, mais ênfase na
obtenção de um elevado grau de controle dos impulsos e das
emoções sexuais: nas famílias e nos colégios, especialmente
nos internatos, serão implementados, junto aos conselhos
dos confessores, modificações nos mecanismos de coabita-
ção e de educação, bem como o estabelecimento de um
novo comportamento dos adultos com relação às crianças,
tais como: aumentar o número de recreios e durante sua
realização fazer muitos exercícios ginásticos para distrair as
crianças da masturbação; não dormir na mesma cama, nem
com outras crianças, nem com adultos; não se tocar, princi-
palmente se os corpos estiverem desnudos, seja nas brinca-
deiras ou em outras situações; tomar banho, vestido com
uma fina e longa camisola; não deixar as crianças serem
beijadas ou acariciadas; denunciar outros colegas ou irmãos
se cometerem alguma falta contra a decência e o pudor;
conservar uma lamparina acesa no dormitório durante a noi-
te (cf. Aries, 1981, p. 143); evitar as amizades íntimas; não
fornecer livros duvidosos, expurgando os clássicos das cenas
ou alusões sexuais e amorosas, e escolhendo aqueles que
tenham bons temas e pureza de linguagem; não tirar as
calças das crianças quando estas forem surradas; cuidar da
linguagem, evitando palavras "feias"; proibir o baile, a co-
média, o romance, as canções modernas, que falam de pai-
xões desregradas, equívocos indecentes e obscenidades; não
deixar as crianças sozinhas com os criados; evitar o trata-
mento por "tu" e usar "vós" que marca distância; tomar
banhos frios, ao se sentir "em tentação"; atar as mãos da-
queles e daquelas mais renitentes; encaminhá-los/as aos
médicos quando houver excesso do "vício higiênico"; etc.
Em 1855, o médico José Bonifácio Caldeira de Andrada
Júnior, nas conclusões de sua tese, Esboço de uma higiene
dos colégios aplicável aos nossos, apresentada na Faculda-
IISTóRIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 6 9

de de Medicina do Rio de Janeiro, aconselhava aos respon-


sáveis pelas crianças internas nos colégios "extrema vigilân-
cia moral", seguida de outras medidas:

Todos os meios de investigação deverão ser postos em prática a


fim de surpreender-se o segredo, em geral difícil de ser ocultado
aos olhos do observador perspicaz, e, descoberto este, restará
empregar os meios que a razão nos dita e que a ciência nos
aconselha para desenraizarmos o mal, se possível for, ou pelo
menos atenuarmos a acrimônia das suas conseqüências; nestas
investigações, porém, deve reinar a maior circunspecção, para
que não se vá despertar em uma alma cândida e pura a idéia de
um desvario a que até então tenha sido inteiramente estranha.
Não só o estado da constituição dos alunos será observado e
seguido em suas diversas modificações, mas perscrutar-se-á tam-
bém as suas disposições morais por meio de questões
astuciosamente redigidas e os seus leitos e vestes serão todos os
dias examinados, quando houver suspeitas sobretudo; da fiel exe-
cução destes e de outros preceitos de igual simplicidade depen-
de muitas vezes o futuro de uma vida inteira.

As regras tendentes a prevenir os estragos e a disseminação do


mal entre os freqüentadores serão pouco mais ou menos as se-
guintes: 1Ê) Não admitir no seio da comunidade mancebos de
costumes e hábitos suspeitos. 2a) Proibir aos alunos a conserva-
ção e a leitura de livros eróticos, as palestras levianas, e tudo o
que possa excitar para mal a sua imaginação ardente. 3a) Re-
partir completa separação de idades. 4Ê) Proibir uma comunica-
ção muito livre entre os pensionistas e os alunos externos, quan-
do os hajam de uma e outra classe. 5a) Prevenir o despertar
precoce da sensualidade por meio de c u r a d o s bem dirigidos,
pela abolição de alimentos excitantes, etc. 6a) Punir o culpado
repreendendo-o asperamente, ou, segundo a gravidade do cri-
me, expelindo-o do colégio. 7a) Medicá-lo se carecer dos socor-
ros da arte médica (Costa, 1989, p. 189-90).
Z 7 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

Aries diz que, nesses séculos, estava ocorrendo a pas-


sagem do despudor à inocência - "uma noção essencial se
impôs: a da inocência infantil" (Aries, 1981, p. 136) -, que
tentava, por vários meios, preservar a castidade de quem,
através desta passagem, começava a nascer. Pode-se pen-
sar, com Foucault, que todas essas medidas, ao invés de
contribuírem para o nascimento da infância em um registro
de inocência, o que faziam era colocar em movimento o
dispositivo de sexualidade, aliado ao da infantilidade, pelo
qual todos os indivíduos ocidentais deviam reconhecer-se como
sujeitos de desejo. Na relação dos adultos com as crianças e
dessas consigo mesmas, a incitação de dizer a verdade da
sexualidade infantil, por meio desse dispositivo, operou como
uma linha de força derivada da primeira conexão da infância
com a carne pecadora, da qual as sociedades cristãs criaram
a necessidade do batismo, da confissão e do exame de cons-
ciência. Dessa perspectiva, os colégios incitavam uma am-
pliação das formas de sexualidade onanistas e também ho-
mossexuais, como pode ser encontrada na descrição de um
médico brasileiro:

Os colégios, os internatos, as casas de educação são, não poder-


se-á dissimular, focos de contágio moral que se estendem aos
recém-admitidos de toda idade; e se o vício endêmico desses
estabelecimentos poupa uma criança, ela não tarda a sucumbir
às solicitações espontâneas dos órgãos genitais que se desper-
tam e lhe criam um novo sentido. O onanismo reina como se-
nhor entre a mocidade dos colégios e casas de educação. Com
efeito, a maior parte dos alunos dos internatos tem atingido a
idade de 14 anos; começa para eles a época da puberdade. A
aparição da viriüd^.de causa-lhes tristeza e melancolias que os
faz procurar a solidão; e aí a natureza lhes inspira desejos que os
leva muitas vezes a descobertas tão contrárias à sua saúde como
aos bons costumes. Com a reclusão, a instigação diária e muitas
vezes quase contínua da excitação vai, pouco a pouco, embo-
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA. 2 "7 1

tando as faculdades intelectuais, o seu desenvolvimento orgâni-


co não continua; há mesmo parada do desenvolvimento geral
do organismo, enquanto que os dos órgãos solicitados se faz com
assustadora precocidade. Vício quase tão velho como o mundo,
praticado por todos os povos da antigüidade histórica, nasce do
isolamento ou da vida comum de indivíduos do mesmo sexo e de
parentesco distinto. Ora é a pederastia, fazendo esgotar todas
as energias funcionais pelo exercício de uma função que a novi-
dade das sensações convida a pôr em prática, sujeitando os
meninos às moléstias dependentes desta ordem de causas cujas
conseqüências apresentar-se-ão mais cedo ou mais tarde. O in-
temato é deplorável a todos os respeitos e particularmente an-
tipático ao higienista, mais ainda para os rapazes do que para
as raparigas, cujo regime sedentário é a vocação. O internato é
nulo para a educação e torna-se odioso para os pensionistas
(Costa, 1989, p. 191).

Foucault (1993) descreve como a Época Clássica trans-


formou a conduta sexual da população em objeto de análise
e alvo de intervenção, montando uma teia de observações
sobre o sexo, analisando as condutas sexuais, suas determi-
nações e efeitos, nos limites entre o biológico, o econômico
e o político, como coisa pública e questão de Estado. O sexo
das crianças entra na mesma rede discursiva, ao invés da
ocultação da qual se acreditava que os Três ensaios para
uma teoria sexual ([1905]Freud, 1981a), em sua segunda
parte, A sexualidade infantil, ou As teorias sexuais infantis
([1908] Freud, 1981c), seguidas da Análise da fobia de um
menino de cinco anos ([1909] Freud, 1981d) - ou o caso do
pequeno Hans - haviam desvelado, liberando-o da "negli-
gência do infantil", como Freud escreve.
Não é que se falasse menos do sexo: falava-se de outra
maneira; eram outras pessoas as que falavam, a partir de
outros pontos de vista e para obter outros efeitos. Não é que
as relações de poder exercidas com o sexo infantil tivessem
2 7 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

por estratégia central a repressão antimasturbatória; ao con-


verter o onanismo em uma das categorias nosológicas do
sexo desregrado e transgressivo dele foi feito um objeto de
atenção dentro dos aparatos disciplinares e um objeto im-
portante na organização social. Dentro da unidade recém-
criada entre sexo, amor, matrimônio e procriação, o / a
masturbador/a era tido como u m / a irresponsável, incapaz
de avaliar a incidência social de sua mesquinha prática de
prazer, prática tão ilícita quanto a sexualidade fora do casa-
mento: amor livre, coito pré-conjugal ou extraconjugal; a
sexualidade sem amor, como a prostituição, e a sexualidade
sem procriação: homossexualidade, sexualidade infantil, se-
xualidade do climatério (Ussel, 1974, p. 58).
Gerson e Luis XIII são dois discursos expressivos da
descontinuidade do dispositivo antimasturbatório: se um
menino não podia mais dizer, impunemente e como motivo
de riso para os adultos, como Luis XIII, "meu pênis parece
uma ponta levadiça: levanta e abaixa" (Aries, 1981, p. 127);
os pais, parentes, padres, professores, conselheiros, psiquia-
tras, pediatras, médicos, seriam aqueles que falariam, anali-
sariam, interpretariam um dito desse tipo, acrescentando,
como fez Gerson, que o peccattum molhcei "tira a virginda-
de da criança, mais do que se o menino, com a mesma
idade, tivesse freqüentado mulheres" (ib., p. 132); ou, em
outras palavras, transformando as crianças em "perversas
polimorfas", como disse Freud, mostrando que, desde o ber-
ço, o que movimenta seus corpos e suas almas e seu desejo
é sua/nossa sexualidade.
Foucault chama a atenção para a disposição arqui-
tetônica, os regulamentos de disciplina e a organização inte-
rior dos colégios do século XVIII, onde todos esses arranjos
tinham um único propósito - o de alerta perpétuo: o espaço
da sala, a forma das mesrs, o arranjo dos pátios de recreio,
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 7 3

a distribuição dos dormitórios (com ou sem separações, com


ou sem cortina), os regulamentos elaborados para a vigilân-
cia do recolhimento e do sono: "tudo fala da maneira mais
prolixa da sexualidade das crianças". Palavras e silêncios
foram redistribuídos e determinaram-se o que podia ser dito
e o que não podia, que tipo de discurso estava autorizado,
quem podia falar e quem devia calar, que modos de discri-
ção e de prolixidade eram exigidos.
Cuidar da sexualidade dos filhos não foi somente um
problema moral para os pais, mas também uma fonte de
prazer: excitação e satisfação sexual adultas. Foucault (1996,
p. 91-3) afirma ter encontrado textos que chegam a "uma
sistematização da violação da atividade sexual dos filhos rea-
lizada por seus pais". A intervenção em uma atividade pes-
soal, secreta, como a masturbação, não representava uma
posição neutra: não era somente uma questão de poder, de
autoridade ou ética; também era um prazer - o prazer de
intrometer-se. O fato de que a masturbação estivesse tão
estritamente proibida para as crianças era causa de ansieda-
de; mas também era um motivo para intensificar essa ativi-
dade, para a masturbação mútua e para o prazer de manter
uma comunicação secreta entre as crianças sobre esse tema.
Isso deu uma determinada forma à vida familiar, à relação
entre as crianças e seus pais e às relações entre as crianças.
Os efeitos foram não somente repressão, mas uma intensifi-
cação de ansiedades e de prazeres e toda a trama emocional
e erótica gerada ao redor dessa atividade.
A medicalização da família e o privilegiamento da in-
fância, promovidas pelo século XVIII, não produziram so-
mente a inoculação e a vacinação das crianças, mas elabora-
ram preceitos, pareceres, advertências médicas, casos clíni-
cos, esquemas de reforma e planos de instituições ideais,
2 7 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

em torno do sexo do filho, da filha e do/a colegial, cujos


objetivos eram os mesmos que o dispositivo da sexualidade
tinha para todos os indivíduos e para a população: inoculá-
los contra o mutismo acerca do sexo. Falar do sexo das
crianças, fazer falarem dele em abundância, falar de sexo
com as crianças, fazê-las falar de seu sexo, encerrando-as
numa teia de discurso que ora se dirigem a elas, ora falam
delas, impondo-lhes conhecimentos canônicos, ou forman-
do, a partir delas, um saber que lhes escapa - "tudo isso
permite vincular a intensificação dos poderes à multiplica-
ção do discurso".

Através da sexualidade infantil, tornada importante e


misteriosa, o fim era constituir uma rede de poder sobre a
infância, na encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da
moral, da educação e do adestramento, da confissão e do
exame de consciência sobre os segredos e as armadilhas do
sexo; desde que revelados até a humilhação, no escuro pe-
gajoso e excitante do confessionário, em que o padre pedia
mais e mais detalhes do ato, excitando-se ele mesmo; ou
sussurrados aos ouvidos atentos dos especialistas, em que se
devia falar de todos os pensamentos, palavras e atos envol-
vendo a mãe, pai, irmãos, irmãs, amigos, amigas e a si-
mesma. De algum modo, seria como se a criança tivesse
sido "batizada" de uma outra maneira, ficando finalmente
liberta do que a submetia, degradava, frustrava, alcançando
assim a purificação pelo acesso à verdade do sujeito e a
salvação da espécie humana; quando o que esse discurso
fazia era aprisionar as crianças em um tipo de "insularidade
sexual" (Foucault, 1990f, p.235), onde crescia a necessida-
de de dominar a si próprias, pelo domínio da emergência
histórica de sua sexualidade.
H I S T ó R I A S DE GDVERNO; CRIANçAS E CIA. 2 7 5

SEXUALIZAR A PEDAGOGIA. MORALIZAR a SEXO

Feito um deus-pedagógico, com palavras similares àque-


las com as quais Deus, no Gênesis, anunciara a criação da
mulher - "E o Senhor Deus disse: 'Não é bom que o homem
esteja só. Vou-lhe dar uma auxiliar que lhe corresponda'"
(Bíblia, 1982, p. 30) -, Rousseau (1992, p. 423-581) inicia
o Livro Quinto do Emílio ou da educação, dizendo: "Não é
bom que o homem fique só. Emílio é homem e nós lhe
prometemos uma companheira. É preciso dar-lha". Na pá-
gina que abrira o Livro Quarto (ib., p. 233-422), havia che-
gado o momento de dispor o problema da educação sexual
de Emílio. Este momento, requerido pela Natureza, é, para
Rousseau, o de um segundo nascimento: "Nascemos, por
assim dizer, em duas vezes: uma para existirmos, outra para
vivermos; uma para a espécie, outra para o sexo". Antes
desse nascimento, "o pequeno-homem" é, de certa forma,
assexuado: "Até a idade núbil, as crianças dos dois sexos
nada têm de aparente que as distinga; mesmo rosto, mesmo
porte, mesma tez, mesma voz, tudo é igual; as meninas são
crianças, os meninos são crianças; a mesma palavra basta
para seres tão semelhantes" (ib., 1992, p. 233). Essa pala-
vra, "criança", teria, desse modo, marcado a posição relati-
vamente nova em sua época, mas que seria adotada por
quase todo o século XIX: o lado naturalmente assexuado da
criança; embora fosse aí, nessa "ausência de sexo", que a
sexualidade infantil se constituía. Como veremos, o Livro
Quinto, consagrado à educação das meninas, contradiz em
parte a posição assexuada da infância, ao estabelecer a ne-
cessidade de sexualizar a pedagogia, pela via da moralização
"do sexo" - que é o modo como Rousseau refere-se às mu-
lheres.
Z 7 S HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

No início do Emílio, Rousseau afirma que a educação


da criança começa desde o seu nascimento - "antes de falar,
antes de compreender", já ela se educa -; e esta educação
consiste em assujeitar a criança de todas as maneiras possí-
veis: todos os nossos costumes não passam de "sujeição,
embaraço e constrangimento" (ib., 1992, p. 17). O homem
civil nasce, vive e morre na escravidão: ao nascer, envolvem-
no em faixas; ao morrer, encerram-no em um caixão. Sem a
educação, as crianças não seriam nada. Propõe que imagi-
nemos que uma criança ao nascer tivesse a estatura e a
força de um homem feito: este "homem-criança seria um
perfeito imbecil, um autômato, uma estátua imóvel e quase
insensível"; não veria nada, não compreenderia nada, não
conheceria ninguém, "não saberia voltar os olhos para o que
tivesse necessidade de ver".
Tal homem não perceberia nenhum objeto fora de si,
nem levaria nenhum ao órgão do sentido para percebê-lo: as
cores não estariam nos seus olhos; os sons não estariam nos
seus ouvidos; os corpos que tocasse não estariam no seu,
nem saberia que tem um corpo; o contato de suas mãos não
estaria no seu cérebro; todas as sensações se reuniriam em
um só ponto, no sensorium comum. Ele teria uma só idéia:
a do "eu" a que atribuiria todas as sensações; e essa idéia e
sentimento seriam as únicas coisas que teria a mais do que
"uma criança comum". Ele não saberia erguer-se sobre os
próprios pés, talvez nem mesmo o tentasse: "verieis esse
grande corpo forte e robusto não sair do lugar como uma
pedra ou arrastar-se rastejando como um cachorrinho". O
homem-criança sentiria o incômodo das necessidades, mas
não imaginaria um meio de atendê-las. Não existe nenhuma
comunicação imediata dos músculos do estômago com os
dos braços e pernas e mesmo que estivesse cercado de ali-
mentos, o homem-criança não daria um passo sequer para
pegá-los: "morreria de fome antes de se mexer, a fim de
procurar sua subsistência" (ib., p. 41).
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 7 7

O abade de Saint-Pierre chamava os homens de "crian-


ças-grandes" e, diz Rousseau, poder-se-ia, reciprocamente,
chamar às crianças "pequenos-homens". Quando Hobbes dizia
de um homem mau que era uma "criança robusta", afirma-
va uma coisa contraditória: toda maldade vem da fraqueza,
"a criança só é má porque é fraca"; mas, para Rousseau, se
a fortalecermos, pela educação, ela será boa, pois, somente
"a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal". Antes da
idade da razão, fazemos o bem e o mal sem o saber, "e não
há moralidade em nossas ações, embora haja por vezes no
sentimento das ações de outrem em relação a nós". O senti-
mento de sua fraqueza torna a criança ávida de perpetrar
atos de força e de provar a si mesma seu próprio poder.
Mas, se o "Autor da Natureza" dá às crianças esse princípio
ativo, ao mesmo tempo, cuida que seja pouco nocivo outor-
gando-lhes pouca força para que a ele se entreguem. Para
manter a educação que lhes damos dentro do "Caminho da
Natureza", devemos seguir as seguintes "máximas": l â ) dei-
xar que as crianças empreguem todas as forças que têm,
sem abusar delas; 2-) ajudar as crianças a suprir do que
carecem, seja em inteligência, em força, em tudo que diz
respeito às necessidades físicas; 3~) restringirmo-nos, no au-
xílio que se lhes dá, ao útil real, sem nada conceder à fanta-
sia ou ao desejo sem razão; 4â) estudar sua linguagem e seus
sinais, a fim de que, numa idade em que não sabem dissi-
mular, possamos distinguir em seus desejos o que vem da
Natureza do que vem da opinião. O espírito dessas regras
concentra-se em "conceder às crianças mais liberdade ver-
dadeira e menos voluntariedade, em deixá-las com que fa-
çam mais por si mesmas e exijam menos dos outros" (ib., p.
48-9).
O dever dos homens é o de serem humanos: isso em
todas as idades, em todas as situações sociais. Pois, que
sabedoria haveria fora da humanidade? Para não sacrificar o
2 7 B HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

presente da criança a um futuro incerto; para não cumulá-la


de cadeias de toda a espécie, fazendo-a miserável a fim de
prepará-la para uma pretensa felicidade, da qual não gozará
nunca; mesmo sabendo que muitas vozes se erguerão contra
ele, Rousseau recomenda:
Amai a infância; favorecei seus jogos, seus prazeres, seu amável
instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso, às vezes, dessa
idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em
paz? Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de um
tempo tão curto que lhes escapa, de um bem tão precioso de
que não podem abusar? Por que encher de amarguras e de
dores esses primeiros instantes que a natureza lhes dá; desde o
momento em que possam sentir o prazer de serem, fazei com
que dele gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus as
chame, não morram sem ter gozado a vida (Rousseau, 1992, p.
61).

O caráter assexuado das crianças, bem como essa exor-


tação não valem para todas as crianças, como é o caso da
menina-mulher Sofia. Emílio é homem e lhe fora prometida
uma companheira. Onde se abriga? "Para encontrá-la é pre-
ciso conhecê-la", diz Rousseau. Sofia ou a mulher é o título
do Livro Quinto. Sofia deve ser mulher como Emílio é ho-
mem, isto é, ter tudo o que convém à constituição de sua
espécie e de seu sexo "para ocupar seu lugar na ordem
física e moral". É preciso examinar as conformidades de seu
sexo com o do homem e as diferenças entre ambos.
Em tudo o que não se prende ao sexo, a mulher é
homem. Tudo o que têm de comum é da espécie, e o que
têm de diferente é do sexo. Tais relações e diferenças
influem na moral e comprovam a futilidade das discussões
acerca da igualdade dos sexos. No que têm de comum, são
iguais; no que têm de diferente, não são comparáveis. Na
união dos sexos, cada qual concorre para o objetivo comum,
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2*7 9

mas não da mesma maneira. Dessa diversidade nasce a di-


ferença entre as relações morais de um e de outro. Um deve
ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que
um queira e possa, basta que o outro resista um pouco.
A mulher é feita especialmente para agradar ao ho-
mem. O mérito do homem está na força; se este deve agra-
dar à mulher é necessidade menos direta pela simples razão
de ser forte. Isso é lei da Natureza anterior à do amor. Sendo
a mulher feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornar-
se agradável ao homem em vez de provocá-lo. Sua violência
está nos seus encantos; é por eles que ela deve constranger
o homem a encontrar sua força e empregá-la. A arte segura
de animar essa força consiste em fazê-la necessária pela
resistência. Daí nascem o ataque e a defesa, a ousadia de
um sexo e a timidez de outro, a modéstia e o pudor com que
a natureza armou o fraco para escravizar o forte.
Com tão grande desigualdade na conduta comum, se a
reserva não impusesse a um a moderação que a Natureza
impõe a outro, ocorreria a ruína de ambos e o gênero huma-
no pereceria. Com a facilidade que as mulheres têm de
impressionar os sentidos dos homens, o que seria da espécie
se o pudor não as contivesse? O Ser Supremo deu ao ho-
mem inclinações sem medida, mas também deu-lhe a lei
que as regula, a fim de que seja livre e senhor de si; deu-lhe
paixões imoderadas e a razão para governá-las; entregando
a mulher a desejos ilimitados, juntou a estes desejos o pudor
para contê-los. Além disso, acrescentou uma recompensa ao
bom emprego das faculdades da mulher: o gosto que adqui-
rem pelas coisas honestas quando faz delas a regra de suas
ações.
A Natureza proveu o mais fraco de força suficiente
para resistir quando quer aos desejos do mais forte: por isso,
queira ou não satisfazê-los a mulher defende-se sempre, mas
ZBO HISTORIA DA INFÂNCIA SEM FIM

nem sempre com a mesma força e com o mesmo êxito. A


conseqüência dessa constituição dos sexos é que o mais for-
te, aparentemente senhor, depende, na realidade, do mais
fraco. Isso decorre de uma lei invariável da Natureza: dando
à mulher maior facilidade de excitar os desejos do homem,
do que a este de satisfazê-los, faz depender o homem da
boa vontade da mulher e o leva a agradar-lhe para conseguir
que ela consinta em deixá-lo ser o mais forte. O mais doce
para o homem em sua vitória está em duvidar se é a fraque-
za que cede à força ou se é a vontade que se rende; a
malícia habitual da mulher está em deixar esta dúvida entre
ambos. Assim o físico leva inevitavelmente ao moral e da
grosseira união dos sexos nascem as doces leis gerais do
amor.
Quanto à conseqüência do sexo, não há nenhuma pa-
ridade: o macho só é macho em certos momentos, a fêmea
é fêmea durante a vida toda, ou, ao menos, durante sua
mocidade. Tudo leva a mulher a seu sexo e necessita de
uma constituição que a prenda a ele: precisa cuidados du-
rante a gravidez; repouso quando do parto; vida fácil e se-
dentária para amamentar os filhos; paciência e doçura, zelo
e afeição para bem os educar. Os deveres dos dois sexos
não são nem poderiam ser os mesmos. A desigualdade não
é uma instituição humana, e sim da razão: cabe a quem a
Natureza encarregou do cuidado dos filhos a responsabilida-
de disso perante o outro. Todo marido infiel que priva a
mulher da única recompensa aos deveres de seu sexo é um
homem injusto e bárbaro; mas a mulher infiel vai além, ela
dissolve a família e rompe os laços da Natureza. Não basta
que a mulher seja fiel e sim que assim seja julgada por seu
marido, por seus próximos, por todo mundo; importa que
seja modesta, atenta, reservada e que apresente aos olhos
de outrem, como aos seus próprios, o testemunho de sua
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 3 1

virtude. Cabe às mulheres, pela diferença moral dos sexos, o


dever e a conveniência que prescreve especificamente o cui-
dado mais escrupuloso de sua conduta, de suas maneiras, de
sua atitude.
Já que o homem e a mulher não são constituídos da
mesma maneira, nem de caráter nem de temperamento,
segue-se que não devem receber a mesma educação. Se-
guindo as diretrizes da Natureza, devemos agir de acordo
com ela, mas não fazer as mesmas coisas: a finalidade dos
trabalhos educativos é o mesmo, mas eles são diferentes e
também os gostos que os dirigem. Depois de ter formado
Emílio, o homem natural, para não deixar imperfeita sua
obra, Rousseau indica como se deve educar também a mu-
lher que convém a este homem. Para isso temos de seguir as
características que a natureza atribuiu a cada sexo. As mu-
lheres queixam-se de que os homens as educam para serem
fúteis e coquetes, que as divertem com puerilidades para
permanecerem os senhores. Primeiro, não são os homens
que educam as mulheres. Segundo: que impede as mães de
as educarem como lhes agrade? Lamentam que não existam
colégios para as meninas, mas, diz Rousseau: "Grande des-
graça! Oxalá não os houvesse para os rapazes! Seriam mais
sensata e honestamente educados" (Rousseau, 1992, p. 431).
Caso se queira educar as mulheres como homens, me-
nos os governarão e então é que eles serão os senhores. A
mulher vale mais como mulher e menos como homem; em
tudo em que faz valer seus direitos, ela leva vantagem; em
tudo em que quer usurpar os dos homens fica abaixo deles.
Cultivar nas mulheres as qualidades dos homens e negligen-
ciar as que lhes são peculiares é trabalhar contra as mulhe-
res. Disso deduz-se que devam ser educadas na ignorância
de tudo e adstritas às tarefas do lar? Não, assim não o man-
dou a Natureza, que deu às mulheres um espírito agradável
2 8 2 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

e versátil; "ao contrário, a natureza quer que elas pensem,


julguem, amem, conheçam, cultivem seu espírito como seu
rosto"; são estas as armas que lhes dá para suprir a força de
que carecem e para dirigir a dos homens. As mulheres de-
vem aprender muitas coisas, mas as que lhes convém saber.
Tanto a destinação particular do sexo da mulher quan-
to suas inclinações e deveres apontam para a forma de edu-
cação que lhe convém. A mulher e o homem são feitos um
para o outro, mas sua dependência é diferente: os homens
dependem por seus desejos; as mulheres dependem dos ho-
mens por seus desejos e necessidades; os homens subsisti-
riam mais sem as mulheres do que elas sem os homens. Elas
dependem dos sentimentos dos homens, do valor que eles
dão a seus méritos, da importância que atribuem a seus
encantos e virtudes. Pela lei da Natureza, as mulheres, tanto
por elas como por seus filhos, estão à mercê do julgamento
dos homens:

não basta que sejam estimáveis, cumpre que sejam estimadas;


não basta que sejam belas, é preciso que agradem; não basta
que sejam bem comportadas, é preciso que sejam reconhecidas
como tal; sua honra não está apenas na sua conduta, está na
sua reputação, e não é possível que a que consente em passar
por infame seja um dia honesta. (...) a mulher, agindo bem, só
cumpre metade de sua tarefa, e o que pensam dela lhe importa
tanto quanto o que é efetivamente (Rousseau, 1992, p. 432).

Segue-se daí que o sistema de educação das mulheres


deve ser o contrário do dos homens: se a opinião dos outros
é o túmulo da virtude para os homens é o trono entre as
mulheres. Toda sua educação deve ser relativa ao homem:
serem úteis e agradáveis a eles, honradas, educá-los jovens,
cuidar deles quando forem grandes, aconselhá-los, consolá-
los, tornar-lhes o viver mais doce - "eis os deveres das mu-
lheres em todos os tempos e o que lhes devemos ensinar já
H I S T ó R I A S DE GQVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 8 3

na sua infância". Toda mulher quer agradar aos homens, e


deve querer isso, embora exista diferença entre querer agra-
dar ao homem de mérito e aqueles "pequenos divertidos que
desonram seu sexo e a quem imitam". Nem a natureza nem
a razão podem levar a mulher a amar nos homens o que a
ela se assemelha, nem é assumindo as maneiras deles que
ela deve procurar fazer-se amar.
Se o corpo nasce antes da alma a primeira cultura
deve ser a do corpo: esta ordem é comum aos dois sexos.
Mas o objeío dessa educação é diferente: no menino é o
desenvolvimento de suas forças, na menina o da sedução.
As mulheres não devem ser robustas como os homens, mas
para que eles, que nascem delas, o sejam também. Como as
jovens de Esparta, as meninas devem ter jogos ao ar livre,
exercícios, muito movimento: para terem filhos fortes. Suas
roupas devem ser confortáveis, não aquelas que cortam a
mulher em dois como uma vespa. A delicadeza da cintura
tem, como o resto, suas proporções, as quais, se ultrapassa-
das, chocam a vista e fazem a imaginação sofrer. Um seio
caído, um ventre saliente, etc. desagradam muito numa pes-
soa de vinte anos, mas isso não impressiona mais aos trinta.
E, como estamos, queiramos ou não, "sempre de acordo
com a Natureza, e como o olho do homem não se engana,
tais defeitos são menos desagradáveis em qualquer idade
que a tola afetação de parecer uma mocinha de quarenta
anos".
As meninas preferem, para brincar, o que dá na vista e
serve de adorno: espelhos, jóias, trapos, sobretudo bonecas.
A boneca é o principal divertimento desse sexo: seu gosto é
determinado por sua destinação natural. Na boneca, a meni-
na põe seu coquetismo. Eis o primeiro gosto específico: bas-
ta segui-lo e regrá-lo. Quase todas as meninas "aprendem
com repugnância a ler e a escrever, mas manejar a agulha
2 3 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

elas o aprendem sempre de bom grado". Essa deve ser sua


primeira lição para que se imaginem grandes e pensem,
com prazer, que tais talentos poderão servir um dia para se
enfeitarem. Primeiro, a costura, o bordado, a renda, e daí
até o desenho. Não para desenhar figuras ou paisagens e
sim folhagens, frutas, drapejamentos, tudo o que pode servir
para dar um contorno elegante a seus trajes, ou para fazer
um cartão de bordado. As mulheres não podem entregar-se
a nenhum talento em prejuízo de seus deveres, já que sua
vida, embora menos laboriosa, deve ser mais assídua a suas
tarefas corriqueiras.
As jovens são em geral mais dóceis do que os jovens,
mas isso não quer dizer que se deva exigir delas algo cuja
utilidade não possam perceber. A inteligência das meninas é
mais precoce do que nos meninos, mas, nem por isso, deve-
se sobrecarregá-la com estudos ociosos, cuja utilidade a crian-
ça não pode prever. Se não se deve forçar um menino a
aprender a ler, com muito mais razão, a menina não deve
ser forçada a aprender a ler antes que possa sentir para que
serve a leitura. Qual a necessidade de ler muito cedo? Terá
ela muito logo um lar a governar? Existem muitas que abu-
sam dessa ciência fatal, mais do que a usam. As meninas
deveriam aprender a calcular antes de tudo; pois não existe
utilidade mais sensível em todos os tempos, que apresenta
maior emprego e dá menos margem a erros.
É preciso justificar sempre as tarefas que impusermos
às jovens, mas devemos sempre impor-lhes tarefas. A ocio-
sidade e a indolência são os dois defeitos mais perigosos
para elas e de que dificilmente se curam após contraí-los. As
jovens devem ser vigilantes e laboriosas desde cedo e tam-
bém contrariadas desde cedo. Essa desgraça, se é que é
uma desgraça, é inseparável do sexo das mulheres. Estarão
a vida inteira escravizadas a constrangimentos contínuos e
HISTORIAS DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 B 5

severos, os do decoro e das conveniências. Devem ser exer-


citadas a tais constrangimentos, a fim de que não lhes pe-
sem; a dominarem suas fantasias para submetê-las às vonta-
des dos homens. Para isso, devemos ensinar-lhes sobretudo
a se dominarem. A existência de uma mulher honesta é um
combate perpétuo contra si mesma; "é justo que este sexo
partilhe as penas dos males que causam aos homens".
Importa impedir que as jovens se aborreçam com suas
ocupações e se apaixonem por seus divertimentos. Elas são
aduladoras, dissimuladas e sabem muito bem disfarçar; por
isso, devem ser estudadas para que se possa julgar os seus
verdadeiros sentimentos, não confiando no que dizem. O
apego, as atenções, o hábito farão com que a filha ame sua
mãe, a menos que esta faça tudo para provocar o ódio. A
severidade com que a dirigir, bem-orientada, longe de enfra-
quecer a afeição, há de aumentá-la, "porque sendo a de-
pendência condição natural das mulheres, as jovens se sen-
tem feitas para obedecer" (Rousseau, 1992, p. 439). Pela
mesma razão que têm ou devem ter de gozar de pouca
liberdade, elas se excedem na que lhes deixam. Essa paixão
deve ser moderada, porque a inconstância, própria das mu-
lheres, faz com que se entusiasmem por um objeto que des-
prezará amanhã. "Não lhes tireis a alegria, os risos, o ruído,
as brincadeiras loucas, mas impedi que se fartem de uns
para correr aos outros; não admitais que num só momento
da vida elas não conheçam freio". Resulta desse constrangi-
mento habitual uma docilidade de que as mulheres necessi-
tam a vida toda, porque nunca deixarão de estar submetidas
ou a um homem ou ao julgamento dos W—Tiens, e não lhes
será permitido colocarem-se acima de tais juízos. A primeira
e mais importante qualidade de uma mulher é a doçura:
"feita para obedecer a um ser tão imperfeito quanto o ho-
mem, ela deve desde cedo aprender a sofrer até injustiças e
Z S 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

a suportar os erros do marido sem se queixar; não é por ele,


é por ela mesma que deve ser doce". Cada qual deve con-
servar o tom de seu sexo.
Que as filhas sejam sempre obedientes, mas que as
mães não sejam sempre inexoráveis. Para tornar doce uma
jovem cumpre não fazê-la infeliz; para torná-la modesta, cum-
pre não embrutecê-la. Não se trata de tornar-lhe sua depen-
dência penosa, basta que a sinta. A astúcia é talento natural
"do sexo" e portanto deve ser cultivada; trata-se apenas de
evitar o abuso. Essa habilidade particular dada "ao sexo" é
uma compensação justa da força que tem a menos; sem isso
a mulher não seria companheira do homem, seria sua escra-
va. Em virtude dessa superioridade de talento, ela se man-
tém igual a ele: governa-o obedecendo-lhe. A mulher tem
tudo contra si: sua timidez, sua fraqueza, os defeitos do
homem; tem por si unicamente sua arte e sua beleza. A
beleza perece; somente o espírito é o verdadeiro recurso "do
sexo": o espírito de sua condição de mulher, ou seja, a arte
de tirar proveito dos homens e de prevalecer sobre suas
vantagens. Essa arte da mulheres é útil aos homens e acres-
centa encantos à relação dos dois sexos: "quanto ajuda na
repressão à petulância das crianças, quanto contém os mari-
dos brutais; quanto mantém a felicidade nos lares que a
discórdia perturbaria sem ela".
A mulher pode brilhar pelo adorno, mas só agrada pela
pessoa. A jovem realmente bela dispensa os diamantes, os
enfeites pretensiosos, as rendas. As mulheres que têm a
pele bastante branca para dispensar as rendas provocariam
muito despeito nas outras em não as usando. São quase
sempre as pessoas feias que inventam as modas a que as
demais têm a tolice de se submeter. O verdadeiro cuidado
de se apresentar exige pouco toucador. Deve-se dar uma
educação de mulher às mulheres, fazendo com que gostem
HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E C I A . 2 B "7

das tarefas de seu sexo, que sejam modestas, que saibam


cuidar de seu lar, ocupar-se com sua casa; o rebuscamento
então cairá por si mesmo e elas estarão vestidas com bom
gosto.
Os educadores severos querem que não se ensine can-
to às jovens, nem dança, nem nenhuma arte agradável. Cum-
pre atentar para o que convém à idade, tanto quanto ao
sexo. O cristianismo exagera os deveres e os torna imprati-
cáveis e vãos. Proibindo às mulheres o canto, a dança e
todos os prazeres da sociedade, ele as torna insossas, rabu-
gentas, insuportáveis em seu lar. Perguntam se as jovens
devem ter professores ou professoras. Rousseau diz: "Não
sei; gostaria que não precisassem nem de uns nem de ou-
tras, que aprendessem livremente aquilo por que têm tão
grande inclinação em querer aprender e que não víssemos
sem cessar deambularem pelas nossas cidades tantos bailari-
nos enfeitados" (Rousseau, 1992, p.446). Não devemos ofe-
recer-lhes lições, as jovens é que precisam pedi-las. Pela
habilidade e os talentos o gosto se forma; pelo gosto o espí-
rito se abre às idéias do belo "e, finalmente, às noções
morais com que se relacionam".
O sentimento da decência e da honestidade se insinua
mais cedo nas jovens do que nos rapazes. O talento de falar
ocupa o primeiro lugar na arte de agradar. As mulheres têm
a língua fácil, falam mais cedo, mais desembaraçadamente
e mais agradavelmente do que os homens. O homem diz o
que sabe, a mulher o que agrada; ele, para falar, tem neces-
sidade de conhecimento, ela de gosto; um deve ter por prin-
cipal objeto as coisas úteis, outra as anr:a laveis. Seus discur-
sos não devem ter formas comuns senão as da verdade. Não
cabe refrear a parolagem das jovens como a dos rapazes
com esta interrogação dura: "Para que serve isto"? e sim
com: "Que efeito terá isto"? As jovens devem ser verdadei-
2 8 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ras sem grosseria. A educação lhes ensina a evitá-la. O ho-


mem procura mais servir e a mulher agradar. Segue-se daí
que sua cortesia é menos falsa do que a dos homens. Nada
custa às jovens serem polidas e o são inclusive umas com as
outras. É comum que se beijem e se acariciem com mais
graça diante dos homens, orgulhosas por aguçarem o desejo
deles pela imagem dos favores que sabem fazer com que os
desejem.
Devemos proibir às jovens perguntas indiscretas. Po-
rém, sem admitir suas interrogações, é importante que as
interroguemos muito, que as façamos conversar, que as ati-
cemos para que falem, para torná-las vivas nas respostas,
para desatar-lhes a língua e libertar-lhes o espírito. Tais con-
versações constituiriam um divertimento delicioso para essa
idade e poderiam levar "aos corações inocentes dessas jo-
vens as primeiras e talvez as mais úteis lições de moral que
tomariam em sua vida", ensinando-lhes, com a "isca do pra-
zer e da vaidade, a que qualidades os homens dão verdadei-
ramente sua estima e em que consiste a glória e a felicidade
de uma mulher honesta".
Como a razão das mulheres é uma razão prática, deve-
se falar o mais cedo possível da religião, pois se fôssemos
esperar que estivessem em condições de discutir metodica-
mente esses problemas profundos, correr-se-ia o risco de
nunca falar-lhes deles. A relação social dos sexos é admirá-
vel: dessa sociedade resulta uma pessoa moral de que a
mulher é o olho e o homem é o braço, mas com tal depen-
dência um do outro, que é com o homem que a mulher
aprende o que é preciso ver e com a mulher que o homem
aprende o que é preciso fazer. Pelo fato da conduta da mu-
lher se achar submetida à opinião pública, sua crença sub-
mete-se à autoridade. Toda jovem deve ter a religião de sua
mãe e toda mulher a de seu marido. Ainda que essa religião
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 8 9

seja falsa, a docilidade que prende a mãe e a família à


ordem da Natureza elimina, junto a Deus, o pecado do erro.
Incapacitadas de serem juizes elas próprias, devem receber
a decisão dos pais e dos maridos como sendo a da Igreja.
Desde que a autoridade deve regular a religião das mulhe-
res, trata-se menos de explicar-lhes as razões de crer que de
lhes expor claramente o que se crê. Importa pouco que as
jovens saibam logo sua religião, importa que a saibam bem
e sobretudo que a amem. Para explicar-lhes artigos de fé, é
bom fazê-lo em forma de instrução direta e não por pergun-
tas e respostas. Elas não devem responder senão o que pen-
sam, nunca o que lhes foi ditado.

"A que reduziremos as mulheres se não lhes damos por


leis senão os preconceitos públicos"? Existe para toda a es-
pécie humana uma regra anterior à opinião: o sentimento
interior. A inflexível direção dessa regra devem ater-se todas
as outras. O sentimento sem a opinião não dará às mulheres
a delicadeza de alma que adorna os bons costumes com a
honra da sociedade; a opinião sem o sentimento não fará
senão mulheres falsas e desonestas que põem a aparência
no lugar da virtude. Importa cultivar uma faculdade que sirva
de árbitro entre os dois guias, que não deixe a consciência
perder-se e que corrija os erros do preconceito. Essa faculda-
de é a razão. A razão que leva o homem ao conhecimento
de seus deveres não é complexa; a razão que leva a mulher
ao conhecimento dos dela é mais simples ainda: a obediên-
cia e a fidelidade que deve a seu marido, a ternura e os
cuidados que deve a seus filhos. Sujeita ao julgamento dos
homens, a mulher deve merecer a estima deles; deve sobre-
tudo alcançar a de seu esposo; não deve apenas fazê-lo amar
sua pessoa como fazer com que aprove sua conduta; ela
deve justificar perante o público a escolha que ele fez e
tornar o marido honrado com a honra outorgada à mulher.
2 9 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Procurar verdades abstratas e especulativas, princípios,


axiomas nas ciências, tudo o que tende a generalizar as
idéias não é da competência das mulheres: seus estudos
devem voltar-se para a prática. Cabe às mulheres fazer a
aplicação dos princípios que o homem encontrou e cabe a
elas fazerem as observações que levam o homem ao estabe-
lecimento de tais princípios. As obras de invenção ultrapas-
sam o alcance das mulheres; elas não têm precisão e aten-
ção para brilhar nas ciências exatas e, quanto aos conheci-
mentos físicos, cabem a quem dos dois é mais atuante, mais
ativo e vê mais objetos; cabem a quem tem força e a exerce
mais em julgar as relações dos seres sensíveis e das leis da
natureza. A mulher, que é fraca e não vê nada exterior,
aprecia e julga os móveis que pode empregar para suprir
sua fraqueza e esses móveis são as paixões do homem. Cum-
pre que a mulher estude a fundo o espírito do homem, e não
por abstração o espírito do homem em geral, mas os espíri-
tos dos homens que a cercam, dos homens a que está sujei-
ta, ou pela lei ou pela opinião. E preciso que aprenda a
penetrar os sentimentos deles pelos seus discursos, ações,
olhares, gestos. Os homens filosofarão mais brilhantemente
sobre o coração humano, mas ela verá melhor no coração
dos homens. Cabe às mulheres encontrarem "a moral expe-
rimental", aos homens, o cuidado de sistematizá-la. A mu-
lher tem mais espírito, o homem mais gênio; a mulher ob-
serva, o homem raciocina. O mundo é o livro das mulheres;
quando o lêem mal, cabe-lhes a culpa ou alguma paixão as
cega.

Para gostar da vida doméstica, as jovens precisam


conhecê-la e ter sentido sua doçura desde a infância. É so-
mente na casa paterna que se adquire o gosto por sua pró-
pria casa e toda mulher que não tenha sido educada por sua
mãe não gostará de educar seus filhos. Tudo consiste em
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 9 1

conservar ou restabelecer os sentimentos naturais. Não se


trata de aborrecer as jovens com longos discursos, nem de
declamar secas moralidades. As moralidades para ambos os
sexos são a morte da boa educação. Tudo que deve ir ao
coração deve sair do coração; expor às jovens seus deveres
de modo preciso e fácil, sem carrancas, sem arrogâncias; o
catecismo de moral deve ser tão curto e claro quanto o de
religião, mas não deve ser tão grave. É preciso mostrar nos
próprios deveres a fonte de seus prazeres e o alicerce de
seus direitos. Qualquer que seja o século as relações naturais
entre os sexos não mudam, a conveniência ou a inconveniên-
cia que delas resulta permanece a mesma, os preconceitos
só modificam sua aparência. Será sempre belo e grande
reinar sobre si mesmo. A castidade deve ser uma virtude
deliciosa para uma mulher que tem beleza de alma.
Inspirar às jovens o amor aos bons costumes implica
fazê-las sentir o valor do bom comportamento e levar a amá-
lo. Pintar o homem de bem, o homem de mérito; ensinar a
reconhecê-lo, a amá-lo; provar que amigas, esposas ou aman-
tes, somente esse homem pode torná-la felizes. Mostrar a
virtude pela razão; fazer com que sintam que o império de
seu sexo e todas as suas vantagens não se prendem somente
a seu bom comportamento, a seus costumes, como também
aos dos homens. Fazer nascer nelas a ambição de reinarem
sobre as almas grandes e fortes: a mulher honesta, amável e
circunspecta força os seus a respeitá-la; a que tem reserva e
modéstia manda-os, com um simples gesto, ao fim do mun-
do, ao combate, à guerra, à morte, se quiser. Esse império é
belo e vale a pena adquiri-lo.
Dentro desse espírito, afirma Rousseau, Sofia foi
educada, seguindo seu gosto mais do que o contrariando.
Pondo de lado os prodígios, Emílio não é um, nem Sofia
tampouco: "Emílio é um homem e Sofia uma mulher; eis
2 9 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

toda a sua glória. Na confusão dos sexos que reina entre


nós, já é quase um prodígio ser do seu próprio" (Rousseau,
1992, p. 471). Com a inclusão de Sofia no discurso pedagó-
gico, realiza-se a sexualização da Pedagogia, pelo acréscimo
de sua duradoura tarefa moralizadora "do sexo" infantil.

S E X U A L I ^ ;
:
c »**,sf':v ...
Para^^bfítipfuar seu exercício, o poder moralizador que
pedagogiza,. jpfantilizando - e, o que dá no mesmo, o que
infantiliza,%jedâgogizando -, pode ser relacionado com ou-
tro dos dispositivos estudados por Foucault: o da sexualida-
de. Para existir um discurso sobre o sexo, que revelasse a
verdade do sujeito ocidental e sobre o qual se formulasse
uma demanda incessante de verdade foi necessário colocar
o sexo no centro de uma petição de saber. Estabelecendo as
coordenadas para realizar a história dessa vontade de verda-
de, dessa obstinação e tenacidade, que, por tantos séculos,
íez brilhar o sexo, Foucault diz ser preciso tomar os mecanis-
mos positivos, produtores de saber, e segui-los nas suas con-
dições de surgimento e de funcionamento, além de definir
as estratégias de poder imanentes a essa vontade de saber,
constituindo sua economia política. Para realizar tal tarefa é
necessário dirigir-se menos para uma teoria do que para
uma analítica do poder, ou seja, "para uma definição do
domínio específico formado pelas relações de poder e a de-
terminação dos instrumentos que permitem analisá-lo"
(Foucault, 1993, p. 86; 1990c).
Tecendo argumentos que diferenciam a análise históri-
ca pretendida da história das idéias, Foucault indica que vai
analisar a formação de um certo tipo de saber sobre o sexo,
não em termos de repressão ou de lei, mas em termos de
poder, buscando a multiplicidade de correlações de força
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 9 3

imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de


sua organização; descrevendo o jogo que transforma, refor-
ça, inverte as multiplicidades, as forças; evidenciando os apoios
que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas, ou, ao contrário, ressaltando
as contradições que as isolam entre si; enfim, analisar as
estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou fixa-
ção institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na for-
mulação da lei, nas hegemonias sociais (Foucault, 1993, p.
88-9).
Apresenta então cinco proposições sobre o poder: 1)
o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a
relações desiguais e móveis; 2) as relações de poder têm um
papel diretamente produtor com respeito a outros tipos de
relações - processos econômicos, relações de conhecimen-
tos, relações sexuais que lhes são imanentes; 3) o poder vem
de baixo, não existindo nem matriz geral, nem oposição
binaria e global entre dominadores e dominados; 4) as rela-
ções de poder são intencionais e não subjetivas, são atraves-
sadas de fora à fora por um cálculo que visa a uma série de
miras e de objetivos; 5) onde há poder há resistência e esta
nunca está em posição de exterioridade em relação àquele,
sendo o outro termo nas relações de poder (ib., p. 89-92;
s.d.b., p. 26-31).
Pensar estratégias imanentes à correlação de forças
leva Foucault a estabelecer - "preliminarmente", ele escreve
- quatro regras, as quais podem ser deslocadas para a pro-
blemática específica deste estudo, do seguinte modo:
1) Regra de imanência: se a infantilidade constituiu-se como
um domínio a conhecer foi a partir de relações de poder
que a instituíram como objeto possível; em troca, se o
poder do dispositivo de infantilidade pôde tomar o infantil
como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ele
2 9 4 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos,


entre os quais as técnicas e os procedimentos (psico)peda-
gógicos e psicanalíticos.
2) Regra das variações contínuas: indicar não se os adultos
têm o poder ou o direito de saber na ordem da infantilidade,
nem se as crianças são privadas dele ou mantidas à força
na ignorância, mas, ao contrário, buscar o esquema das
modificações que as correlações de força da infantilidade
implicam através de seu próprio jogo, por meio das matri-
zes de transformações constituídas pelas relações de po-
der-saber de tal dispositivo.
3) Regra do duplo condicionamento: não procurar nenhum
foco local de poder do dispositivo de infantilidade - como
poderia ser pensado em relação à escola/ Pedagogia ou
ao consultório/Psicanálise -, opondo-o a uma injunção de
nível macroscópico, já que entre eles não existe nenhuma
descontinuidade e também nenhuma homogeneidade, mas
pensar em um duplo condicionamento, em uma estraté-
gia global, através da especificidade das táticas de infantili-
dade possíveis e, destas, aos invólucros estratégicos que a
fazem funcionar.
4) Regra da polivalência tática dos discursos: o que se diz
sobre o infantil não deve ser analisado como a tela de
projeção dos mecanismos de poder, mas reconhecer que o
discurso da infantilidade, concebido como uma série de
segmentos descontínuos e cuja função tática não é unifor-
me nem estável: a) articula poder e saber; b) que nele não
existem o discurso admitido e o excluído, mas uma
multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar
em estratégias diferentes; c) para que se possa recompor
sua distribuição, é necessário atentar para as coisas ditas
e ocultas; para as enunciações exigidas e interditas; para
o que se supõe de invariantes e de efeitos diferentes se-
HISTÓRIAS DE GOVERND: CRIANÇAS E C I A . 2 9 5

gundo quem fala, sua posição de poder, o contexto


institucional, os deslocamentos e as reutilizações das fór-
mulas idênticas para objetivos opostos; d) assim como o
silêncio não é submetido de uma vez por todas ao poder,
nem oposto a ele, mas entra em um jogo complexo e
instável em que pode ser instrumento e efeito de poder e
também obstáculo, ponto de resistência e de partida de
uma estratégia discursiva oposta; e) não existe de um
lado, como discurso de poder e, diante dele, um outro que
se lhe contrapõe, mas podem existir discursos diferentes e
até contraditórios dentro da estratégia da infantilização;
assim como podem circular sem mudar de forma entre
estratégias opostas; e) não cabe perguntar a este discurso
sobre o infantil de que teorias implícitas deriva, ou que
divisões morais introduz, ou que ideologia representa; e
sim interrogá-lo nos níveis de sua produtividade tática -
que efeitos recíprocos de poder e saber proporciona -, e
de sua integração estratégica - que correlação de forças
torna necessária sua utilização em tal ou qual episódio dos
confrontos produzidos.
Ao tomar o modelo estratégico, como sugere Foucault
(s.d.c), em vez do modelo de direito jurídico, constituidor da
soberania - já que é um dos traços das sociedades ocidentais
as correlações de força terem sido investidas na ordem do
poder político - , deixa-se de privilegiar as interdições para
enfocar o ponto de vista da eficácia tática; abandona-se o
privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e
móvel de correlações de força; opta-se pelo ponto de vista
do objetivo em vez do da lei, já que naquele se produzem
efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis de domina-
ção (Foucault, s. d. c , p. 97; p. 191).
Posto isso, Foucault distingue, a partir do século XVIII,
quatro grandes conjuntos estratégicos que operam dispositi-
vos específicos de saber e poder a respeito do sexo. Como
2 9 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

este estudo se permite pensar, todos eles possuem relações


com o dispositivo de infantilidade, embora de modos múlti-
plos; mas todos, sem exceção, integram e implicam, em
seus processos, o infantil, tal como produzido pelo dispositi-
vo de infantilidade. A coerência que assumem, a eficácia na
ordem do poder e a produtividade na ordem do poder que
atingem podem ser descritas pela presença constante do
elemento infantil, da infância e das crianças. Vejamos como
pode ser feito este exercício de pensamento.
No primeiro conjunto estratégico, Histerização do Corpo
da Mulher - em que o corpo da mulher foi submetido a
análises, pelas práticas médicas, e diagnosticado como se-
xualmente saturado -, as relações que a partir desse corpo
são estabelecidas ocorrem com: 1) o corpo social, cuja
fecundidade devia ser regulada; 2) com o espaço familiar, no
qual devia ser elemento substancial e funcional; 3) com a
vida das crianças que produzia e devia garantir, por meio de
uma responsabilidade biológico-moral existente durante o
período da educação; dessas relações resulta "a Mãe", com
sua imagem em negativo da "Mulher Nervosa", a forma
mais visível da histerização das mulheres (Foucault, 1993, p.
99). Sem a infância e as crianças constituídas pelo dispositi-
vo de infantilidade, tal conjunto poderia estrategicamente
ter sido definido?
No segundo, Pedagogização do Sexo das Crianças, é
a própria criança que é definida como ser sexual liminar, ao
mesmo tempo, aquém e já no sexo, sobre uma perigosa
linha de demarcação: germe sexual precioso e arriscado,
perigoso e em perigo, dele deviam encarregar-se continua-
mente os pais, as famílias, os educadores, os médicos, psi-
quiatras e, mais tarde, os psicólogos e psicanalistas. Essa
pedagogização ampliada manifestou-se na guerra contra o
onanismo (cf. Fischer, 1996, p. 92-3), atividade ao mesmo
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 2 9 7

tempo "natural" e "contra a natureza", que trazia consigo


perigos físicos e morais, coletivos e individuais (Foucault,
1993, p. 99). Sem as crianças, o sexo infantil - também o
sexo dos adolescentes, dos homens, das mulheres, distribuí-
dos por oposição à condição do sexo das crianças - poderia
ter sido pedagogizado?
O terceiro conjunto estratégico que desenvolveu dispo-
sitivos de saber e poder a respeito do sexo, Socialização das
Condutas de Procriação, incidiu sobre o quê? Sobre o maior
ou menor número de filhos que os casais deviam ou não ter:
socialização econômica, através de medidas sociais ou fis-
cais que incitavam ou freavam a fecundidade dos casais;
socialização política, mediante a responsabilização dos ca-
sais diante de todo corpo social; socialização médica, pelo
valor patogênico atribuído às práticas de controle de nasci-
mentos das crianças, com relação ao indivíduo ou à espécie
(ib., p. 100). De quem se trata, mais uma vez, aqui central-
mente, senão das crianças?
O quarto conjunto, Psiquiatrização do Prazer Perver-
so, diz respeito à análise clínica de todas as formas de ano-
malia que podiam afetar o instinto sexual, tendo antes sido
devidamente isolado como instinto biológico e psíquico autô-
nomo; a este instinto foi atribuído um papel de normalização
e patologização de toda a conduta, buscando-se então
tecnologias corretivas para tais anomalias (ib., 1993, p. 100).
Neste conjunto estratégico, poderá parecer que as rela-
ções entre o dispositivo de sexualidade e o de infantilidade
ficam mais difusas; porém, não tardará quase nada - 1905
- para que a Psiquiatria, a Psicanálise e a Psicologia bus-
quem as causas do prazer perverso justo aonde? Na infância
dos anormais, dos desviados, dos invertidos; ou seja, no in-
fantil do adulto, patologizado pelo infantilismo de sua
sexualidade.
2 9 S HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Nessas estratégias de que se trata? Da própria produ-


ção da sexualidade e da infantilidade como dispositivos his-
tóricos. A sexualidade seria esta grande rede cuja superfície
encontra-se com outra grande rede de superfície, que esta
história busca traçar: a da infantilidade. As estratégias de
poder e de saber que produzem a sexualidade - estimulação
dos corpos, intensificação dos prazeres, incitação ao discur-
so, formação dos conhecimentos, reforço dos controles e das
resistências e seus encadeamentos - teriam, desde este
enfoque, sido impossíveis historicamente se já não houvesse
emergido e estivesse em funcionamento a infantilidade, pro-
duzida pelas seguintes estratégias de poder e de saber: su-
bordinação e assujeitação da identidade infantil, adultização
das crianças, pedagogização de seus corpos e almas,
sexualização do infantil, e infantilização do sexo.
No século XIX, as quatro figuras que se esboçaram
como alvos privilegiados de saber do sexo - a mulher histé-
rica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto
perverso - não poderiam ser pensados, percorridos e utiliza-
dos pelo poder da sexualidade se não viessem sendo pensa-
das, percorridas e utilizadas pelo poder da infantilidade, es-
tas outras quatro figuras do infantil: o dependente, o adulto,
o educado, o sexuado.
Também a história das problematizações éticas, feita
a partir das práticas de si, que Foucault vai buscar no com-
portamento sexual, tal como refletido pela cultura greco-
romana, enquanto campo de apreciação e de escolhas mo-
rais - feita nos volumes 2 e 3 da História da sexualidade
(Foucault, respectivamente 1990b; 1985)- como poderia ter
sido realizada sem que já se anunciassem essas figuras infan-
tis? Como analisar o "sujeito de desejo" (cf. Fischer, 1996,
p. 78), encontrado na intersecção entre uma arqueologia
das problematizações e uma genealogia das práticas de si,
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 2 9 9

sem que as crianças-filhos/as estivessem em jogo, por exem-


plo, na Econômica d'A sabedoria do casamento, e mesmo
na Erótica das relações com os rapazes (Foucault, 1990b,
respectivamente p. 127-36; p. 165-98)? Como problematizar
as formas de relação consigo e analisar os procedimentos e
técnicas, os exercícios pelos quais o sujeito se deu como
objeto a conhecer, as práticas de si que permitiram transfor-
mar seu modo de ser, sem ter as crianças - ao menos como
sombra chinesa - atuando nas relações de conjugalidade,
cujas mudanças serviam para definir um modo de existên-
cia? Operando n ' 0 papel matrimonial, na prática e n'Os
prazeres do casamento? Na arte da maternidade e da pa-
ternidade, partes integrantes da cultura de si? No amor pe-
los rapazes que entra em debate com o amor pelas mulhe-
res? N'A mulher (Foucault, 1985, respectivamente p. 79-
87; p. 177-92; p. 187-224; p. 147-76), nas artes de se
conduzir no casamento e na estilística do vínculo individual
implicada pelos cuidados com a casa e sua gestão, pelos
nascimentos e a procriação dos/as filhos/as? Nas relações
entre a atividade sexual e a morte, a procriação e o desapa-
recimento da espécie ou a imortalidade, ao deixar "os filhos
dos filhos" (Foucault, 1990b, p. 121)? Como não encontrar
- se essa história pudesse aqui ser escrita - a criança, desde
a Antigüidade, como um dos elementos especulativos do
jogo que articula o sexo, a morte e a vida como obra que
sobreviverá à existência passageira do humano moderno?

Pode-se pensar que o poder que infantiliza é correlato


àquele mesmo que sexualiza e que se a infância não fosse
um dos pontos de fixação do exercício do poder que sexualiza,
ela talvez não se efetivasse enquanto tal; ou seja, como este
apoio encontrado pelas correlações de força do dispositivo
de sexualidade. E que se o sexo não fosse um dos pontos de
fixação do exercício do poder que infantiliza, ele talvez não
3 D O HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

se efetivasse como tal; ou seja, como o apoio encontrado


pelas correlações de força do dispositivo de infantilidade. No
sentido que essas relações criam, este estudo terá terminado
de enunciar o quarto conjunto estratégico do dispositivo de
infantilidade, qual seja, exatamente este: a sexualização do
infantil e seu correlato, a infantilização do sexo. Conjunto
que, entrecruzado com a pedagogização do infantil e a
infantilização da pedagogia, constitui a segunda ruptura da
história da infantilidade, sua mais-valia, cuja materialidade
pode ser dita e vista em espelho.

NOS ESPELHOS DD G R A N D E - D LITRO

A ética da Modernidade radica na exclusão da alteridade


(cf. Abraham, 1989, p. 105-32), obcecada como foi pelo
tema do Duplo. Sua maior tarefa consistiu em modificar o
humano: o homem e a mulher que vivem, trabalham e fa-
lam; e, com mais motivos, seus infantis. A forma desta ética
foi, logo de entrada, e na sua própria espessura, um certo
modo de ação. Desde então não houve moral possível, por-
que a partir do século XIX, o pensamento já não é teoria;
assim que pensa, fere ou reconcilia, aproxima ou afasta,
mas não pode coibir-se de libertar e de subjugar aqueles que
surgiram em uma vida que lhes era dada, foram instrumen-
tos de uma produção que os antecedeu, e veículos para
palavras que tinham uma existência prévia. Antes de pres-
crever, de traçar um futuro, de dizer o que se deve fazer, de
exortar ou apenas de alertar, o pensamento moderno, so-
mente por existir, é em si uma ação, um ato perigoso (cf.
Foucault, 1968, p. 426-7).
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E CIA. 3 D 1

No que foi pensado por esse pensamento, dentro do


quadro da finitude desenhado por Foucault, pode-se inventar
a figura de um grande-outro: o "Sujeito- Verdadeiro", cuja
existência é postulada para fundar o endereçamento de cada
indivíduo temporal. Ele é quem nos sabe e nos governa até a
minúcia. Em tal época histórica, os saberes humanos dedi-
caram-se à previsão das condutas e os poderes à adaptação
destas à Norma. O fundamental era a possibilidade de cons-
tituição e fabricação do "pequeno-outro", de todos os pe-
quenos-outros. A maleabilidade de suas subjetividades é, por
isto, infinita. Necessário e possível formar o homem e a
mulher, começa-se por seus Duplos: os outros-infantis. For-
mação composta de características especulares, cujo reflexo
de iguais acontece na busca nunca concluída da Diferença, e
que faz imago - na qual os latinos entenderam primeiramen-
te a estátua, a imitação, o retrato do ancestral, e depois o
espectro, a aparição - em dois espelhos bem familiares.
Um deles, o de Velázquez: aquele de 1656 que "apa-
rece" (cf. Marías, 1995b, p. 15; p. 280) em Las Meninas.
Colocado no cerne da representação clássica, este espelho
mostrava o que estava representado; mas como um reflexo
longínquo, imerso num espaço irreal, estranho a todos os
olhares que se voltavam para o outro lado. Sua generosidade
talvez fosse simulada; talvez ocultasse tanto ou mais do que
manifestava. A função de seu reflexo era a de atrair para o
interior do quadro o que lhe era estranho: o olhar que o orga-
nizou e aquele para o qual ele se desenrolava. O pintor e o
visitante não se alojaram aí; da mesma maneira que aqueles
que apareciam no fundo do espelho apenas o fizeram por-
que encontravam-se fora do quadro, sendo representados.
Las Meninas mostrou a lei prévia do jogo especular
moderno: a representação tentava representar-se a si mes-
ma, em toda exuberância de seus elementos. Porém, existia
3 D 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

um vazio: suas linhas interiores, sobretudo as que vinham do


reflexo central, apontavam àquilo que era representado, mas
que estava ausente. As linhas que atravessam o quadro são
incompletas: falta-lhes uma parte de seu trajeto. Nele ocor-
reu a desaparição necessária daquele a que a representação
se assemelhava e daquele aos olhos do qual ela não passava
de semelhança. Lacuna devida à ausência do Rei, diz Foucault,
artifício de pintor. Este artifício recobriu e designou um es-
paço vazio imediato: o do pintor e o do espectador quando
compunham ou olhavam o quadro. Estes sujeitos mesmos
foram elididos. Liberta da relação de semelhança que a
acorrentava, a representação pôde então oferecer-se como
pura representação. Com este quadro a Época Clássica in-
terrompeu, na prosa do mundo, as relações de semelhança
com o modelo, com o soberano, com o autor, com o espec-
tador, e também com as Meninas, como veremos, substi-
tuindo-as pelas relações com o Duplo.
Simultaneamente objeto e sujeito da tela, o hóspede
deste lugar ambíguo é o espectador cujo olhar o transforma
num objeto. Aquele que tece os fios entrecruzados da repre-
sentação em quadro jamais se encontra lá presente, ao me-
nos antes de terminar o século XVIII. As/Os espectadoras/
es, nós mesmas/os, o nosso corpo, os nossos olhos, estamos
a mais nele, e nunca pudemos estar inteiramente presentes.
Fomos, certamente, acolhidas/os pelo olhar do pintor, mas,
ao mesmo tempo, expulsas/os e substituídas/os pelo mode-
lo, que sempre esteve ali, antes de nós. Os olhos de Velázquez
nos colocaram no campo de seu olhar, nos captaram, obriga-
ram-nos a entrar no quadro, determinando o lugar privilegia-
do e obrigatório que ali deveríamos ocupar. Fomos feitos
visíveis a esses olhos pela mesma luz com que o víamos. No
momento em que í?mos ser apreendidas/os, transcritas/os
pela sua mão, como num espelho, deste não conseguimos
surpreender mais do que o reverso sombrio: seu outro lado.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 D 3

Defronte de nós, na tela, há uma série de quadros


suspensos; dentre eles, um brilha com singular fulgor: o
espelho das Meninas. Sua claridade vem de um espaço que
parece interior. Nele, as/os espectadoras/es deveriam mi-
rar-se, ou o pintor, ou as meninas. Mas, ali encontram-se
duas silhuetas e uma pesada cortina púrpura. Este espelho é
o único, dentre todos os elementos que oferecem represen-
tações, que deixa ver aquilo que deve manifestar: nada con-
testa, nem oculta, nem dissimula. Oferece o encanto do
Duplo, que as pinturas afastadas recusam e o jogo de luz no
primeiro plano da tela ironiza. De todas as representações, o
espelho é a única visível; mas ninguém o olha, ninguém frui
de seu espetáculo de espelho desolado no fundo da sala:
pequeno retângulo brilhante, a mais pura visibilidade, regi-
me de luz. Ele nada diz do que já foi dito, nada mostra do
quadro, embora sua posição seja central: é um espelho que
se recusa a refletir o Duplo perfeito.
Ele capta o além do quadro, sua face exterior, as per-
sonagens que aí estão dispostas. Despreza o que poderia
facilmente apreender, atravessa todo campo da representa-
ção, restitui visibilidade ao que se encontra fora do alcance
do olhar. São os modelos que ele faz brilhar, as figuras que o
pintor olha, e que olham, por sua vez, para o pintor. Nesse
jogo trata-se de conduzir cada uma destas duas formas da
invisibilidade ao lugar da outra, numa sobreposição instável,
atirando-as para a extremidade oposta do quadro: para esse
pólo que é o de uma profundidade de reflexo no interior de
uma profundidade de quadro.
E a Infanta faz o quê ali? Por que o i^culo XIX intitulou
o quadro deste modo: Las Meninas (cf. Marías, 1995a, p.
248; 1995b, p.13; Emmens, 1995, p. 66; Searle, 1995, p.
103; Brown, 1995, p. 68; Elias, 1995, p. 216-7)? Como é
possível articular a criança com o espelho? O conjunto de
3 0 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

personagens constitui, conforme a atenção que se presta ao


quadro, ou o centro de referência que se escolhe, duas figu-
ras: uma, no cruzamento de duas linhas, que formam um
"X", tem em seu centro o olhar de Margarita (Searle, 1995).
O rosto da menina está a um terço da altura total do quadro,
e uma linha mediana que dividisse a tela ao meio passaria
entre seus dois olhos. A outra figura é a de uma vasta curva,
em que os seus dois limites são determinados, à esquerda,
pelo pintor, e, à direita, pelo cortesão; o recôncavo coincide
com o rosto da Princesa. Esta linha desenha uma espécie de
concavidade que ao mesmo tempo delimita e projeta, no
meio do quadro, o espaço refletido pelo espelho.
Existem dois centros: no do X, o movimento é imóvel.
Imobiliza-se um espetáculo que seria invisível se as persona-
gens, de súbito, imóveis, não oferecessem como que no in-
terior de uma taça a possibilidade de ver no fundo do espe-
lho o duplo de sua contemplação. No sentido da profundida-
de, a criança sobrepõe-se ao espelho; no da altura, é o refle-
xo que se sobrepõe ao seu rosto. A perspectiva torna o
espelho e a criança muito próximos; tanto de um como de
outra sai uma linha inevitável: a que sai do espelho transpõe
toda a espessura representada; e a outra é mais curta, pois
parte do olhar da Infanta e apenas atravessa o primeiro
plano. Estas linhas sagitais são convergentes, formando um
ângulo agudo, e o seu ponto de encontro situa-se diante do
quadro, aproximadamente no ponto de onde nós o vemos.
Ponto duvidoso, visto que não o vemos; e, no entanto, per-
feitamente definido, pois é determinado por essas duas figu-
ras principais, e confirmado por outras linhas adjacentes que
nascem do quadro e também saem dele (Foucault, 1968, p.
17-33).
Que há ne«te ponto? Que lugar é este? Qual é o espe-
táculo que aí se oferece? Las Meninas está pintado em pers-
pectiva: é a perspectiva do Rei e da Rainha, e também do
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 D 5

espectador e do pintor (cf. Snyder, 1995, p. 135-6; p.146;


Stoichita, 1995, p.308-9). Para eles e seu olhar no espelho
é que a Infanta mostra o cabelo côr-de-ouro enfeitado de
flores e o vestido de festa ataviado de rendas. Aparente-
mente desprezado, esse olhar ordena o quadro e faz surgir
seu centro, simbolicamente soberano. A este olhar adulto -
soberano, ordenador, distributivo, educador - o olhar da crian-
ça e a imagem do espelho estão, no fim das contas, subme-
tidos: a princesa em relação a seus pais pode ser caracteri-
zada como em "situação pedagógica" (Emmens, 1995;
Snyder, 1995). Aí reside o tema central da composição, o
próprio objeto da pintura, e aquilo mesmo que interessa
enfatizar.
Quando, ao extinguir-se o discurso clássico em que o
ser e a representação encontravam o seu espaço comum,
surgindo então "o homem", em sua posição de objeto para
um saber e de sujeito que conhecia; quando o soberano foi
deslocado e nós, espectadores/as olhados/as, surgimos aí,
nesse lugar do Rei e da Rainha, que Las Meninas antecipa-
damente atribuíram; quando todo o espaço da representa-
ção ficou referido ao olhar de carne do humano: com seu ser
próprio; com o poder de se atribuir representações; princí-
pio e meio de toda a produção; determinado pelas forças do
corpo, do desejo e da linguagem; descobridor da finitude e
dos limites que ela lhe impunha; quando tudo isso aconte-
ceu, fraturando a Época Clássica, o espetáculo novo de uma
linguagem que não mais alcançava as coisas, deixou um
resíduo para ser analisado no âmbito deste estudo: a função
das Meninas em seu espelho, ou o espelho das Meninas
como função no interior do dispositivo de infantilidade.
Ocorre que o pensamento moderno, desde o primeiro
passo da analítica da finitude, desviou-se para um certo pen-
samento do Mesmo, onde a Diferença passou a ser a mes-
3 D 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ma coisa que a Identidade. Nossa modernidade principiou


quando o humano começou a existir, antropologizado pelo
conhecimento; ou dito de outro modo, quando sua finitude
deixou de ser pensada como o negativo de um infinito, e
passou a ser pensada numa referência interminável a si mes-
ma: no coração dos conteúdos dados pelo saber finito, como
as formas concretas da existência finita do humano. O limiar
da Modernidade situa-se no dia em que se constituiu, para
este ser, seus Duplos. Pode ser dito que, para não ser nada
mais do que um objeto da natureza ou um rosto que se
desvanecesse na história, a finitude anunciou-se na positivi-
dade de um saber acerca do Infantil, já que sabia que o
humano tinha desaparecido, prisioneiro como ficara das leis
da Biologia, da Filologia e da Economia Política.
Estar na origem, ao modo clássico, era ser vizinho de
algo bom, natural, simples. Para o pensamento moderno, a
Origem não está no começo, mas se pode ter um vínculo
com ela, articular-se com outra coisa. Entre o ser e o huma-
no estabeleceu-se uma fissura: o mundo da vida, da lingua-
gem e do trabalho ocuparam este vazio. Pensado não mais
pela metafísica do infinito e sim por estas temporalidades
particulares, o humano atribui então seu originário àquele
em quem reencontra o começo de si e que, ao mesmo tem-
po, espanta seu próprio fim. Somente sendo possível nas
margens de uma vida que o transcendia, de uma economia
que não o pressupunha, e de uma linguagem que ele não
gerara e que persistiria para além dele, o humano busca o
nível do originário no que estava mais próximo: na delgada
superfície de seu Duplo-Infantil. Superfície que ele percor-
re, descobrindo figuras tão jovens como o seu olhar, pois
pertencem a um tempo que não tem as mesmas medidas
nem os mesmos fundamentos do que ele; imagem invertida
de um espelho; forma complementar e, ao mesmo tempo,
necessidade de que seja si-mesmo.
H I S T ó R I A S DE: GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 D 7

Na analítica da finitude, o humano é um Duplo: um


ser no qual se toma conhecimento do que faz possível todo
conhecimento. Neste "par" Empírico-Transcendental, a que
se chamou "o homem", o segundo elemento fica dotado de
significação infantil, desde quando se passou a analisar o
vivido. O infantil assim antropologizado funciona como o
mais novo Transcendental do humano, que durará até de-
pois de sua morte. No Duplo formado pelo Cogito-Impensa-
do, o humano dirige seu pensamento ao Impensado infantil
e com ele se articula, fazendo-o um seu "gêmeo": um outro,
nascido dele e nele; e também a idêntica novidade sexual,
numa dualidade irreversível. Se o Impensado pôde ser dito,
pelo discurso psicanalítico, como as formas do inconsciente,
o infantil é, sem dúvida, dentre elas, enunciado como cen-
tral: região abissal, sombra projetada no adulto, mancha cega
a partir da qual é possível conhecer a estrutura desejante
inconsciente. O infantil: elemento insistente desses inesgo-
táveis duplos que se oferecem ao saber reflexivo do humano
moderno; projeção confusa do que ele é na sua verdade;
fundo prévio a partir do qual deve unificar a si mesmo e
reportar-se à sua verdade; como o louco, o infantil é o refle-
xo do que o humano ignora de si. De posse dessa significa-
ção as/os modernas/os avançam na direção de que o Duplo-
Infantil se faça e prossiga sendo o Mesmo.

A historicidade do ser finito deixou delinear-se a ne-


cessidade de uma origem que lhe seria a um só tempo inter-
na e estranha: como o vértice virtual de um cone em que
todas as diferenças, todas as dispersões, todas as
descontinuidades fossem estreitadas até formarem apenas
um ponto de identidade, na impalpável figura do Mesmo-
Infantil: a qual teria no entanto o poder de explodir sobre si
mesma e de se tornar outra. Na relação do ser do humano
com o tempo, sua Identidade foi buscada em algo que era
3 OS HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

outro em relação a si, mas que não deixava de ser ele mes-
mo, apenas distanciado no tempo, que fora o de sua vida e
também o de sua morte. A finitude radical do humano, essa
dispersão que o afastava da origem e lhe prometia a distân-
cia insuperável do tempo, teve a função de mostrar como o
Outro, o Longínquo, era também o Próximo e o Mesmo. O
pensamento moderno dirigiu-se para o trabalho de efetuar o
Mesmo, sempre a conquistar o seu oposto (Foucault, 1968,
p.395-502).
E esse Duplo no espelho de Velázquez? Ainda era cedo
para que as "meninas" fossem diretamente refletidas em
sua imagem. No espelho, estavam sendo representados os
soberanos, organizando as Meninas, trocando olhares com
elas, que para eles se voltavam, assistindo a seu jogo. No
entanto, não esqueçamos que o espelho e a criança ocupa-
vam o mesmo ponto, no centro de todas aquelas representa-
ções: era como se assinalasse para a/o "Visitante da
Modernidade" que, daí a algum tempo, ela/ele poderia tan-
to em outra criança como em outro espelho, definitivamen-
te, se mirar.
Deverão passar-se quase três séculos para que tal es-
pelho - integrante do fundo de um outro tempo, envolvido
por outra moldura de relações de poder-saber, disposto em
um campo diferente de visibilidades luminosas e de dizibili-
dades enunciativas - permita situar aquele antigo visitante
em um lugar já não tão ambíguo, e realizar a junção das
"meninas", enquanto duplos-infantis do humano moderno,
com o Grande-Outro; para aí então, refletindo-as, constituí-
las em seu novo reino: o espelho de Lacan (cf. 1985a,b;
1986; 1988b,c; 1990; 1992a,b,c; s.d.a.b). Sendo a ques-
tão deste espelho formulada em oposição a toda filosofia
saída diretamente do Cogito, sua presença desenha-se na
disposição singular que aquele Impensado do século XIX
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 D 9

assume no XX, em que as palavras e as coisas já se terão, há


muito, separado; e cuja ordem, agora disciplinar, disciplinante
e disciplinadora, reserva a esses duplos o lugar "dramático"
da interiorização do lado de fora, pela reduplicação do Outro
e pela repetição do Diferente (cf. Deleuze, 1991, p. 105).
O "Estágio do Espelho", como é chamado, unifica a
teoria lacaniana do sujeito (Ogilvie, 1988, p. 105); e, nesta,
é pensado para a "função do 'Eu'[Je]", como posição simbó-
lica, que se distingue do Eu [Moi], como construção imaginá-
ria. No espelho, "a cria do homem" - como Lacan a chama
-, "em uma idade em que se encontra por pouco tempo,
porém por algum tempo, superada em inteligência instru-
mental pelo chimpazé", reconhece sua imagem, fixando-a
em um aspecto instantâneo. Esta atividade é reveladora,
para Lacan, "menos de um dinamismo libidinal que de uma
estrutura ontológica do mundo humano". O estágio do espe-
lho é uma "identificação", no sentido dado a esta operação
pelo trabalho de análise, qual seja, "a transformação produ-
zida no sujeito quando assume uma imagem". A assunção
de sua imagem especular manifesta a matriz simbólica na
qual o Eu se precipita numa forma primordial, antes de
objetivar-se na dialética da identificação com o Outro, e
antes que a linguagem lhe restitua no universal sua função
de sujeito. Esta forma deveria designar-se como Eu [Moi]-
Ideal (cf. Corazza, 1995c; 1996e), pois situa a instância do
Eu, desde antes de sua determinação social, em uma linha
de ficção. A forma total do corpo é dada ao sujeito como
Gestalt, ou seja, em uma exterioridade onde esta forma é
mais constituinte do que constituída; mas onde, acima de
tudo, "aparece-lhe com uma relevância de estatura que a
coagula e sob uma simetria que a inverte, em oposição à
turbulência de movimentos com que o sujeito-infantil se ex-
perimenta a si mesmo, animando-a" (Lacan, 1990, p. 86).
3 1 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Esse espelho é ordenado a partir de uma experiência


de identificação fundamental, durante a qual o infans faz a
conquista da imagem de seu próprio corpo. A identificação
da criança com esta imagem promove a estruturação do Eu,
terminando com a vivência psíquica singular designada como
"fantasma do corpo esfacelado". Antes de se visualizar neste
espelho, a criança não experimenta seu corpo como uma
totalidade unificada, mas como alguma coisa dispersa. A
experiência fantasmática do corpo esfacelado é realizada
nessa "dialética do espelho", cuja função é neutralizar a dis-
persão angustiante do corpo, favorecendo a unidade do cor-
po próprio (Lacan, 1990, p.90).
Considerado, pela teoria psicanalítica, como um "dra-
ma", enquanto estágio, o espelho lacaniano conjura os fan-
tasmas da imagem fragmentada do corpo atribuindo-lhe a
forma ortopédica de uma totalidade. Precipitando-se da in-
suficiência à antecipação, a dialética temporal do espelho
projeta na história do sujeito a formação do indivíduo, dando
a este a armadura de uma identidade alienante, que vai
marcar com a rigidez de sua estrutura, todo o seu desenvol-
vimento mental e identitário. Ao se olhar neste espeiho,
forja-se a formação do Eu, que constitui subjetivamente o
pequeno infante e a pequena infanta.
A experiência do infans no espelho organiza-se em
torno de três tempos, que pontuam a conquista progressiva
da imagem de seu corpo. Inicialmente, tudo se passa como
se a criança percebesse esta imagem como a de um ser real
de quem ela procura aproximar-se ou apreender. Este pri-
meiro tempo testemunha em favor de uma confusão primei-
ra entre si e o outro; confusão confirmada pela relação que a
criança tem com seus semelhantes, atestando, que é sobre-
tudo no outro que ela se vivência e se orienta no início: a
criança que bate diz ser batida, a que vê a outra cair, chora.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 3 11

Se esse primeiro momento do espelho torna visível o


assujeitamento da criança ao registro do imaginário, o se-
gundo momento constitui uma etapa decisiva no processo
identificatório: aqui, a criança descobre que o outro do espe-
lho não é um outro real, mas uma imagem. Não procurando
mais apoderar-se da imagem, parece distinguir a imagem
do outro do real do outro. O terceiro momento dialetiza os
outros dois, porque a criança não somente está segura de
que o reflexo do espelho é uma imagem, mas, sobretudo,
porque se convence de que não é nada mais que uma ima-
gem, e que é a dela. Reconhecendo-se através desta ima-
gem, a criança recupera a dispersão do corpo esfacelado
numa totalidade unificada, que é a representação do corpo
próprio. A imagem do corpo é deste modo estruturante para
a identidade do sujeito, que através dela realiza sua identifi-
cação primordial.
Porém, esta conquista da identidade é sustentada pela
dimensão imaginária, expressa na condição de que a crian-
ça identifica-se a partir de algo virtual - a imagem ótica -
que não é ela enquanto tal, mas onde ela se reconhece. Não
se trata, pois, de nada mais do que um reconhecimento
imaginário; e se a fase do espelho simboliza uma espécie de
pré-formação do Eu, ela pressupõe em seu princípio
constitutivo o destino de alienação deste Eu no imaginário.
O re-conhecimento de si a partir da imagem do espelho
efetua-se, por razões óticas, a partir de índices exteriores e
simetricamente invertidos (cf. Dor, 1989, p. 77-80).
A unidade do corpo infantil esboça-se como exterior a
si e invertida. A dimensão deste re-conhecimento prefigura,
para o sujeito que advém, na conquista de sua identidade, o
caráter de sua alienação imaginária, de onde delineia-se o
desconhecimento crônico que não cessará de alimentar em
relação a si mesmo. Por isto, tal "identidade" é contradito-
3 12 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

ria, pois é como se fosse uma identidade reunida, acabada,


unificada, resolvida, embora exista como uma identidade
imaginária, cuja inteireza fantasia-se de unidade plena. Nessa
alienação, o sujeito-infantil "se perde" nas formas
identificatórias através das quais imagina estar sendo visto
por outros. Psicanaliticamente, continua buscando "A identi-
dade" e construindo biografias que tecem as diferentes par-
tes de seus eus divididos numa unidade porque procura
recapturar esse prazer fantasiado de plenitude (Hall, 1997,
p.42-3). Diante da própria imagem no espelho, o infantil se
"fixa-se" na síntese aí realizada, voltando a dela se ocupar a
cada vez que "um espelho" lhe informe: - "Eu te vejo as-
sim", tentando tocar outra e outra vez a imagem idealizada
pela designação e pelo desejo alheios.
O "júbilo", diz Lacan, desse momento especular é iden-
tificado pela criança que se olha e, ao mesmo tempo, volta-
se para um olhar adulto que autentifique sua descoberta.
Olhar e palavra adultas que dizem: - "Sim, tu és Maria,
minha filha". Esse olhar imaginário e essa nomeação simbó-
lica incluem a criança na linguagem, na sociedade, na cultu-
ra, na diferença sexual, enfim, no registro simbólico. A "mãe"
- entendida como uma função, a função-materna, a ser
exercida por um/a adulto/a - a instaura em sua identidade
particular, lhe dá um lugar, a partir do qual o mundo poderá
ser organizado, poderá incluir o real e, ao mesmo tempo,
formá-lo.
Interessa fixar esse momento em que o adulto, presen-
te no espelho, juntamente com a criança, aponta-a e, neste
gesto, também ele se identifica, numa assunção de sua pró-
pria identidade, ao indicar a imagem invertida e dizer: - "Tu
és ...". O que acontece aí? O problema do Outro, a questão
da alteridade. O espelho de Lacan organizaria a diferencia-
ção Eu/não-Eu, sob a forma de discriminação do núcleo
HISTÓRIAS DE GOVERNO! CRIANÇAS E CIA. 3 1 3

aglutinado inicial, mãe-filho/a, necessária à relação Eu-obje-


to (cf. Lacan, 1986; 1992c; 1993; Millot, 1989; Souza,
1985). Em outra linguagem, diz-se que, existindo um indiví-
duo denominado a em relação com outro indivíduo denomi-
nado a', observa-se a seguinte tendência constante: que a
procure o atributo (linha), que define diferencialmente a', de
modo a transformar-se à imagem e semelhança do Outro,
em cuja relação se achava inscrito, produzindo, à maneira
de efeito, uma supressão da diferença. Este efeito possui
um caráter ilusório, porque a (o infantil), havendo incorpora-
do um atributo (linha) de seus maiores, termina sentindo-se
em tudo igual a eles (a'). No registro imaginário, acontece
um efeito de analogia que, no nível simbólico, é legível como
o efeito de apropriação de um emblema e, por fim, uma
tendência à supressão de uma diferença.
Mas, esse "Outro" é um indivíduo ou é um lugar? O
Outro tem duas condições: trata-se de um lugar e, neste
sentido, é anônimo, importando pouco que indivíduo o ocu-
pa; o que importa é o cumprimento de uma função, a de ser
um referente estável - o Sujeito-Verdadeiro. A função é um
lugar, a ser preenchido ou ocupado por alguém concreto, no
caso, os/as adultos/as. A linguagem é a operação por exce-
lência desse lugar, pelo qual o sujeito será falado, exercitado
pela língua. O Outro é um lugar simbólico - como era o
lugar do Rei, ou melhor, a função deste lugar no quadro de
Velázquez -, e é também um código, enquanto tal, impesso-
al. Tudo isso concerne à problemática da identificação in-
fantil.
A identificação da criança no espelho da Psicanálise
converte-a, enquanto se identifica - ou seja, enquanto cap-
tura os atributos do Outro -, em um significante para os
outros. Para se identificar, é preciso apoiar-se em um duplo
movimento: de aceitação e repúdio da falta [da castração,
3 1 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

dirá este discurso]. No espelho, a fragmentação corporal não


é problemática enquanto a criança ainda não logrou a
concreção da unidade de seu corpo. Após esta concreção, é
que a percepção de um corpo despedaçado, de uma identi-
dade fragmentada, parecerá terrorífica. O sujeito temerá
perder a unidade, uma vez conseguida a distinção - imagi-
nária - Eu/não-Eu. Assim limitado o campo do sujeito, este
aceita que o Outro lhe falta, e repudia seu despedaçamento,
ancorando-se no que o Outro lhe mostra e diz. Pela identifi-
cação, esta operação pela qual um sujeito transforma-se à
imagem e semelhança de um objeto, o infantil pareceria
traduzir a frase de Freud - Wo es er, soll ich werden (Freud,
1981f) - para: "Onde o Outro era, ali o Eu há de vir".
A identificação conduz como resultado à discriminação
Eu/não-Eu, e, como efeito desse esboço de discriminação,
forma-se o seguinte dualismo (Freud, 1981g): a constituição
da identidade exige do infantil a tarefa de metabolizar certos
atributos que são registrados como alheios, visto que o ponto
de apoio para aquela constituição do Eu está localizado no
Outro; o Eu aparece então como uma estrutura álter ou
alheia, como uma instância de alteridade instalada no pró-
prio sujeito. O sujeito relaciona-se, deste modo constituído,
sob a condição de ser re-conhecido, com quem esteja dis-
posto a reconhecer, antes de tudo, que se trata de "alguém"
e, além do mais, de "alguém importante". Por isso, pode-se
dizer que o sujeito é sujeito enquanto o Outro o alimenta
como tal (cf. Cabas, 1982, p. 169-231): esta afirmação na-
da mais seria do que a repetição da fórmula lacaniana, segun-
do a qual "o Inconsciente é o discurso do Outro". O infantil
então formula: -"Há um outro que já sabia algo sobre mim
que eu só vim a saber agora - que eu sou esta imagem do
espelho"; há alguém que pode dizer sobre ele coisas que ele
desconhece, ver nele o que ele não vê, saber dele a partir de
fora, desejar nele o que ele não sabe o que é, possuir o
código para decifrá-lo (cf. Kehl, 1989, p. 412-3).
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E C I A . 3 1 5

Para a problemática que nos implicou nesses dois es-


pelhos - a mais-valia extraída da identidade infantil -, subli-
nhemos que tal identidade apenas se forja na captação e na
relação de poder-saber com o Grande-Outro. Pois, também
em face do espelho de Velázquez, o infantil-humano não é
infantil (cf. Alpers, 1995, p.160), nem humano, se o Outro
não o alimentar como tal; em outras palavras, se o Rei e a
Rainha não estiverem fazendo com que Las Meninas exista
pela função de seu lugar, no espelho, vendo como Margarita
se pavoneia e como suas damas-de-honra lhe prestam servi-
ços, oferecendo água em uma jarra de barro, e lhe rendem
homenagens, fazendo reverência. Constituinte de uma si-
tuação pedagógica, tal espelho - "espelho de princesas" -
reflete mais do que a aparência da infanta, reflete sua "edu-
cação" (Snyder, 1995, p.151): o estudo da verdade, da prá-
tica e da exibição de ideais. No segundo espelho - "espelho
de famílias"? - outras "meninas" [e meninos] se olham, mas
elas [eles] apenas continuam se vendo, se re-conhecendo, se
identificando e se educando, pelo olhar de outros "reis" e de
outras "rainhas": nós, indivíduos modernos, apenas anuncia-
dos enquanto espectadores/as, hóspedes, visitantes do qua-
dro de 1656, mas já convidados a entrar e a tomar parte no
que ali estava ocorrendo; hoje, integrantes do quadro, a ocu-
par a mesma função de lugar pedagógico que então era
ocupada pelos soberanos.

Nesses espelhos [os quais, para simplificar, vimos cha-


mando pelos nomes próprios de "Velázquez" e "Lacan"], a
parelha - constituída, no primeiro, pelo pai e pela mãe re-
ais; e, no segundo, preferencialmente, pela mãe não mais
real, mas, nos dois casos, função de parelha-adulta-parental
- é, para as crianças e para os "quadros" correspondentes,
sua raison d'être. Vistas pelo olhar dos outros, as crianças
vêem-se a si mesmas do modo como os outros as vêem: em
3 16 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

ambos os espelhos o espelho do infantil é o próprio olhar


adulto. A capacidade de ver-se através dos olhos dos outros,
e também o desejo de ver-se desta forma (Elias, 1995),
implica em que, em ambos espelhos, onde o infantil é mira-
do e somente pode mirar-se no e pelo olhar do Outro, a
pluralidade infantil assuma a forma de uma unidade cultural,
com determinados matizes ilusórios e visuais. Para a conse-
cução desta unidade há duas exigências: a exigência "Um",
onde reside a exigência de ser um, de ser único: ideal de
máxima perfeição, de plenitude, de onipotência - que, para
a Psicanálise, assume a forma material do "falo", este objeto
imaginário suscetível de preencher a falta do outro; exigên-
cia "Dois": como nenhum sujeito se constitui senão median-
te um referente, o paradoxo se lhe apresenta à medida que
todo referente é bifrontal; se o infantil quer ser único, deve
ocupar simultaneamente dois lugares: ser ele mesmo, e ser
o Outro - para Freud e Lacan, na problemática fálica: ser
aquele que interessa à mãe, do qual deriva a exigência de
ser ele mesmo e ser seu pai.
Por esta exigência "a dois", instala-se a clivagem -
fading, eclipse, desdobramento, Spaltung, a refenda do su-
jeito - que alicerça o fenômeno do Duplo. À criança o Outro
indica que ocupe uma dualidade de lugares, por apresentar-
lhe a exigência de ser uma criança; ao mesmo tempo que a
olha e faz com que olhe para o Grande-Outro, para que
respeite e siga o seu modelo, com ele identificando-se. Em
ambos os espelhos, a conquista da identidade infantil é obti-
da através de uma imagem, vivida como imagem de um
outro, assumida como imagem própria. Por ser a partir da
imagem deste outro que o infantil acede à sua identidade,
ele entra num movimento de subjetivação correlativo em
relação ao Outro. Sob a forma do outro especular é que o
sujeito percebe igualmente o Outro.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 1 7

Talvez essa possa ser uma descrição dos mecanismos


subjetivadores pelos quais nossas crianças, há alguns séculos,
vêm sendo convertidas em infantis e em adultas, pelas estra-
tégias da pedagogização e da sexualização: "espelhos da
consciência" (Steinberg, 1995, p. 100-1) do sujeito ocidental
moderno, podemos chamá-los? Tanto um quanto o outro é
um speculum morale, um speculum doctrinale? Se não,
vejamos: o sujeito-infantil - educado e sexuado - somente
pode dizer "eu" porque o Outro, presente na superfície pla-
na e brilhante do espelho, o interpelou para que se olhasse,
chamando-o: - "Ei, você aí!" (cf. Althusser, 1983). Neste
movimento de se voltar - o movimento físico de 180 e , na
cena teórica de rua de Althusser - , ou, o que resulta no
mesmo efeito, no movimento de olhar de frente para a ima-
gem na cena teórica do espelho de Lacan - , quando a mãe
aponta e diz - "Tu és ..." -, o indivíduo torna-se "sujeito",
apegando-se à própria identidade pelo reconhecimento
de si.

Em sua primeira relação consigo mesmo, o sujeito-


infantil estabelece-a como uma relação com um outro. O
Eu-sujeito aí se "precipita" - como no sentido químico, em
que um corpo se deposita por precipitação quando nasce,
sólido e insolúvel, numa fase líquida - , não preexistindo a si
mesmo. Sendo sempre já sujeitos, antes mesmo de nascer,
os infantes e as infantas trazem "o Outro em seu coração";
não podendo ser "alienados", no sentido filosófico do termo,
na forma ou na linguagem, já que não existem em nenhum
outro lugar, não sendo absolutamente nada. No jogo dos
espelhos amarra-se o nó de servidão imaginária de sua iden-
tidade, o qual situa a instância do Eu rv na linha de ficção
irredutível para este indivíduo "único". Quando o sujeito se
procura, encontra-se em alguma coisa radicalmente outra: a
forma antecipada daquilo que não é, mas que não tem outra
possibilidade senão a de crer que é (cf. Lacan, 1986, p. 96).
3 1 B HISTÓRIA DA INFÂNCIA BEM FIM

Eu [Je? Moi?) quero girar os dois espelhos: pensá-los


não somente desde sua função para o infantil, muito menos,
enquanto o Eu-Ideal da Psicanálise; pensá-los não na intri-
gante "inconveniência" de que ao quadro de Velázquez te-
nha sido atribuído o nome que recebeu no século XIX; mas
pensar a imago infantil, que ambos refletem em sua superfí-
cie de aço, desde a função de lugar do Grande-Outro, ocu-
pado pelos/as adultos/as em tais espelhos; inquirir a fasci-
nação dual que sobre eles/as ocupa esse jogo especular;
para isto, é preciso convidar a um tipo de leitura invertida
do que nesta seção foi escrito acerca da constituição do Eu-
infantil; para então saber porque é preciso que o Outro se
faça majestosamente presente nos espelhos, antes mesmo
que lhe nasça o pequeno infantil.

Pelo que foi visto e dito neste estudo, na direção de


descrever, analisando, as operações históricas feitas pelo dis-
positivo de infantilidade na sociedade ocidental, pode-se
pensar a função de lugar do Grande-Outro nos espelhos dos
quais nos ocupamos, a partir da "relação dual" (Lemaire,
1986) que, no visível de seu olhar e no enunciável de suas
interpelações, estabelece e mantém com o infantil. Ora, nesses
espelhos, aparecem as formas de reduplicação do infantil,
em que se materializam e vigoram a anterioridade e a pree-
minência do Outro sobre o sujeito. A forma de sua represen-
tação estrutura um cara-a-cara: o mundo do recíproco, do
olhar, nega o espaço e afirma o lugar e o tempo do Outro. O
sujeito identifica-se com o outro, de tal forma que fica em
dúvida sobre quem é o seu eu, ou o substitui por "um estra-
nho". Há aqui urna duplicação, divisão e intercâmbio de
"eus". A perfeita reciprocidade das miradas que ali se cru-
zam e seu momento máximo de felicidade designa a morte
de uma identidade, que não pode ser tal, sem desaparecer
antes mesmo de haver nascido: a natimorta.
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 1 Ç?

O homem e seus duplos, lembremos, é como Foucault


intitula a antropologia da Modernidade. O Duplo, para
Foucault, não é uma projeção do interior, mas uma
interiorização do lado de fora; não é um desdobramento do
Um, mas uma reduplicação do outro; não é uma reprodução
do Mesmo, é uma repetição do Diferente (cf. Deleuze, 1991,
p. 91). Neste sentido, o espelho que reflete o infantil, refle-
te também o adulto, e é máscara mortuária, fotografia, eidos
ou aparência? Um Duplo não é dois: é um em dois, e dois
em um. Possui ingredientes multiplicadores e sua função é
só uma: identificar o sujeito. A dupla presença de uma
mesmidade traça um labirinto de espelhismos. A morte
identitária é dupla nestes espelhos. O Originário, o Impen-
sado, o Transcendental, aparecem sob a forma de um outro,
às vezes fraternal e gêmeo, às vezes, inimigo e fraco: ima-
gens invertidas de um espelho, que certamente não é o da
Natureza. O Duplo é uma medida de segurança contra a
destruição do Eu - tinha dito Freud (cf. 1981f, p. 2494) -,
uma enérgica negação da onipotência da morte. Se a alma
imortal foi o primeiro duplo de nosso corpo, o Duplo-Infantil,
esta dobra inventada pela Modernidade, destina-se primei-
ramente a conjurar a aniquilação, embora depois inverta seu
aspecto, transformando-se em um estranho e sinistro men-
sageiro da morte. Esta figura do Duplo incorpora-se ao Eu,
constituindo um "outro-Eu", o qual vai adquirindo novos con-
teúdos ulteriormente; mas que, de todo modo, prossegue
sendo o fator de repetição daquele outro que encontro em
mim, pela instauração da imanência de um Sempre-Outro
ou de um Não-Eu.

Invenção de reduplicar como defesa contra a extinção;


ligações que o Duplo tem com reflexos em espelhos; relação
dual entre infantis e adultos: isso começou com uma perda,
a de infinito, e prosseguiu com duas mortes, a do humano e
3 2 0 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

a de seus duplos. Nas fronteiras da transcendência e da


finitude, constituídas pelo trabalho, pela linguagem e pela
vida, antropologizadas pelas Ciências Humanas, uma das
identidades que o Grande-Outro fez nascer, nasceu morta.
Mas, nela reside uma fonte inesgotável de sua verdade e
de seu poder. Na identidade infantil, aquele rosto de areia
à beira-mar do humano moderno - com que Foucault encer-
ra As palavras e as coisas - deve se espelhar, para aglutinar-
se e não desaparecer no movimento das ondas: o infantil
seria assim o "sonho" do humano moderno educado e
sexuado ainda sonhado no sono antropológico que ainda dor-
mimos.

Buscar a verdade histórica do infantil como atividade


analítica, usar a ética como tecnologia de investigação, tra-
tar o poder como estratégia, e o saber como prática, auto-
rizam este estudo a, neste ponto, dizer o seguinte: necessi-
tamos de uma infância sem fim para não desaparecer en-
quanto sujeitos queridos da Modernidade. Na ontologia his-
tórica de nós mesmas/os em relação à verdade, como sujei-
tos de saber, ainda necessitamos da infância, para nos expli-
car e nos visualizar como educadas/os e sexuadas/os? Na
ontologia relativa a um campo de poder, como sujeitos de
ação sobre os outros, necessitamos das crianças, sobre cujas
ações agir, para regular nossas ações como sujeitos adultos/
as? Na ontologia histórica de nós mesmos em relação à éti-
ca, como sujeitos morais, precisamos nos radicar no infantil
para ancorar a imago de todas as possibilidades de nossa
existência pedagogizada que não realizamos, e que o imagi-
nário se recusa a abandonar? para armazenar todas as aspi-
rações libertárias de nosso Eu sexuado que não puderam
cumprir-se por circunstâncias adversas? para amarrar todas
as nossas decisões volitivas cortadas que produziram a ilusão
de uma autonomia fraudada?
HISTÓRIAS DE GOVERNO: CRIANÇAS E C I A . 3 2 1

A "infantilidade" é uma expressão negativa, indesejá-


vel, uma ofensa no sentido moral, sentimental, cognitivo?
Ainda nos irritamos com ela, hoje tanto quanto no século
XVII, no mesmo compasso das forças de exasperação do
Grande-Outro que impelem a continuidade de produção do
infantil? Pois, se ao que é infantil, desprezamos, é porque
existe; se existe este modo de ser infantil, é porque nós
existimos, enquanto infantis que fomos, e hoje já não somos
mais, não queremos e não devemos ser mais; se fomos in-
fantis, a eles nos identificamos para ver realizados os sonhos
antropológicos de nossos desejos. Enquanto sujeitos-supos-
tos-adultos somos subjetivados pela infantilidade justo nessa
exasperação, pois "O Infantil" confirma a existência do hu-
mano: aquele ser da Modernidade, unitário, centrado, que
pretendia pensar seu destino apoiado na razão adulta. Aquele
mesmo que morreu quando a Modernidade agonizou; agonia
que Nietzsche preparara, no interior de sua linguagem, no
século XIX, quando matara o homem, feito à imagem e
semelhança de Deus, e Deus ao mesmo tempo, assim anun-
ciando o múltiplo e renovado cintilar dos deuses e enterran-
do a Metafísica (Foucault, 1968, p. 399); cruzada sacrificial
encetada pela figura emblemática do Marquês de Sade,
modelo do homem moderno sem Deus, condenado a esca-
par de sua prisão como o sujeito de sua razão, a fim de
gozar dos objetos do desejo, destruindo-lhes a presença real,
numa abolição soberana de si mesmo; agonia preparada
também por Foucault, no século XX, quando deu novo golpe
naquele que matara Deus, examinando sua própria morte
enquanto homem que pensava, e substituindo as Ciências
Humanas pela desantropologização dos saberes. O infantil
conjura essas mortes múltiplas.
Das operações de poder-saber do dispositivo de
infantilidade necessitamos para nos confrontar, não com nossa
incompletude, mas com a unificação totalizadora, que anu-
3 2 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

laria a eterna diferença. Partidos entre o empírico e o


transcendental, o cogito e o impensado, a origem que retorna
e que está por chegar, fabricamos o Um-Todo, pleno e de-
senvolvido, que nega, por sua própria existência, qualquer
finitude e limites do Grande-Outro. Assim, podemos usufruir
de uma certa felicidade infinita, olhando para nossas "crian-
ças-esperanças" (Lajonquière, 1996, p. 31-6; Criança ...,
1997); as quais, como vimos, encarnam-se também na figu-
ra contemporânea da Criança-Desesperança, que mesmo
assim funciona para nos incitar à sua salvação, e para que
possamos nos identificar com ela. As outras figuras infantis
- a "Companhia das Crianças", podemos dizer - , como as
mulheres dependentes, as/os negras/os que cantam e dan-
çam, as/os loucos, as/os doentes, as/os regressivos, as/os
prisioneiros, os homens que não cresceram, as/os pobres
heterônomos, os poetas, as artistas, os/as revolucionários/
as, os/as irreverentes, as/os que brincam, todas estas espé-
cies de infantes-infames, fazem com que o Grande-Outro
não tenha dúvida alguma sobre sua própria grandeza, nobre-
za, dignidade: ele necessita dessas figuras para se constituir
e se exercer enquanto Sujeito-Verdadeiro que verdadeira-
mente é. Este é seu espelho preferencial, onde se mira,
para recuperar as forças, formas, linhas, contornos, língua.
Os pequenos-outros, tão carentes, subordinados, sexuados,
educáveis, moralizáveis, necessitam de sua grande vontade
de educar, de psicanalisar, de governar, de sua Biídung,
numa palavra; pois não foi ele quem secularizou os manda-
mentos divinos? não foi ele quem inverteu a imagem, ao
fazer a afirmação de si tornar-se a negação do outro? não foi
ele quem, afinal, começou por negar o que é diferente, opon-
do-se àquele que não faz parte dele próprio? E, como disse
Nietzsche (1991b,c), não é verdade que diferença engendra
ódio?
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E CIA. 3 2 3

Daí, da relação especular dual com os Duplos-Infantis


é que o Grande-Outro extrai o valor-de-uso do infantil, o
incremento das funções sociais sempre renovadas que deter-
minam o seu valor-de-troca, as forças produtivas pelas quais
se desenvolve o caráter social do trabalho do dispositivo que
incessantemente deve infantilizar, mesmo que as práticas
culturais contemporêneas neguem o infantil e lamentem o
fim da infância e chorem a incapacidade que tem nosso
aqui-e-agora de infantilizar mais e melhor. É preciso instru-
mentalizar os corpos infantis para deles extrair sua mais-
valia, excedente de valor pelo qual o Outro não paga ne-
nhum equivalente ao pequeno-outro; já que desta identidade
depende que, ao se olhar, o Grande se renove, pense ainda
que vive, para além de seu fim. E, se este pequeno ainda
não é o Idêntico, em todas as suas dobras, tantas vezes
buscado, deverá vir a ser, de-vindo como tal. Assim, trata-se
de pôr em operação tantos mecanismos e microfísicas de
poder, tantas vontades de saber, tantos usos dos prazeres,
tantos cuidados de si: é preciso que o pequeno natimorto
viva ainda e sempre; embora, pela particularidade de sua
força de trabalho viva, lhe seja permanentemente recusada
a diferença, a alteridade, a dessemelhança. Seu Eu, afinal, é
o Outro, e o Outro só é Outro por ser seu Eu.

Toda essa "história da infâmia infantil" é uma história,


ao mesmo tempo, nobre e vil, baixa e elevada. Isso porque
estes são os elementos genealógicos (cf. Deleuze, s.d., p. 7)
desta história da infantilidade; também porque do infantil
queremos só "o bem", e dele fazer "um bem", como merca-
doria que é. Do corpo deste bem - "benzinho" -, ao qual
parecemos ser mais apegadas/os do que ao próprio corpo,
nossa economia política extorque coisas enigmáticas, como
o lucro de exigir que assim que surja, desapareça, engen-
drando seu Eu nas bordas e no fluxo de nosso próprio olhar e
3 2 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

palavra. Um corpo-Estrangeiro, de qualquer modo, não é


possível, já que o corpo-Duplo não desdobra o Um, mas
reduplica o Outro; não reproduz o corpo-Mesmo, mas repe-
te o Diferente; não faz emanar o corpo-Eu, mas instaura o
de um corpo de um-sempre-outro; não é nunca o corpo-
Outro que é duplo, mas Eu é que se vê como o corpo-Duplo
do Outro.
Por isso, o trabalho-a-mais, nosso mais-de-trabalho de
subjetivar o infantil; o que quer dizer que este sujeito se
constitui, tem lugar num outro sujeito: o Grande-Outro, o
Sujeito-Verdadeiro, o Uno: função-lugar de linguagem onde
o infantil é antes falado do que falante deste lugar; função-
lugar de visibilidade, cuja luz distribui o infantil e os que o
vêem, as trocas adultos-infantis e infantis-infantis e os refle-
xos dos espelhos. Para o Grande, a mais-valia é o pequeno-
outro, ou melhor, seu corpo, que é o lugar do Outro. Afinal o
infans é um sujeito que não conhece, efetivamente, outra
miragem que não a de nossos espelhos, e outra sociedade
que não a de nossas interpelações. Quando olhamos nos
olhos de uma criança, nos vemos refletidos às avessas, como
outrora, quando éramos pequenos-outros, e também vimos
nossa imagem refletida nesses espelhos, e nos apontaram, e
nos falaram "Tu és ..."; e assim por diante. Até quando?
Talvez, até quando as forças do tempo usarem o Múltiplo
para afirmar o Uno, o Ser, já que a afirmação múltipla é a
maneira pela qual o Uno se afirma. Com efeito, como é que
o Múltiplo sairia do Uno, e continuaria saindo, se o Uno
justamente não se afirmasse no Múltiplo? O Uno, é o Múlti-
plo (Deleuze, s.d., p. 37-40; p. 85-8).
Com tais operações de mais-valia, no jogo do Múltiplo
e do Uno, a resultar em uma-infância-sem-fim, estaria o
dispositivo de infantilidade ainda maquinando, para o Gran-
de e os pequenos-outros, a resposta negativa ao problema
H I S T ó R I A S DE GOVERNO: CRIANçAS E C I A . 3 2 5

nietzscheano, qual seja: a morte de Deus não pressupõe,


igualmente, o fim de seus assassinos? Em outras palavras: o
fim da metafísica clássica não teria suposto o fim de toda
metafísica e, inclusive, daquela que colocou o humano no
centro da cultura ocidental a partir do final do século XVIII
(cf. Cotesta, 1993, p.36-7)?
No caso de tal maquinação poder ser demonstrada,
pelos mecanismos da pedagogização e da sexualização, como
espero ter feito com o dispositivo dos espelhos - que alicerça
o Duplo-Infantil e amarra o nó de sua identidade à sombra
de sua justificação, redenção, reconciliação -, haveria ainda:
a) algum Pequeno Príncipe (Saint-Exupéry, 1987) a nos
aparecer no deserto, vindo de um planeta distante - onde
existem dois vulcões, o sol se põe até quarenta e três
vezes em um dia, o solo é infestado de sementes de baobá,
onde nasceu uma flor com quatro espinhos e com horror
das correntes de ar -, e, com uma vozinha estranha, pe-
dir: - "Por favor, desenha-me um carneiro"?
b) uma espécie de Gênio Astucioso (Derrida, 1994b) do
infantil: diabo manco, situado entre Deus e o humano;
anterior ao Cogito, cartesianamente meditante, excluidor
da loucura, e também da infância; ameaça perpétua ao
acesso à Verdade, obstáculo à Razão; que nunca se deixa
surpreender porque aprendeu, com Nietzsche, a fazer fi-
losofia - não como um funcionário que se contenta em
inventariar os valores em curso, nem como um juiz de
tribunal, um juiz de paz, que vigia simultaneamente a
distribuição dos domínios e a repartição dos valores esta-
belecidos - com dois golpes de um martelo: o da criação
e o da alegria, princípios essenciais do ensino de Zaratustra?
um Gênio que faz filosofia somente para afligir?
c) um audaz cavaleiro andante de nosso presente - um Ca-
valeiro da Fé -, ao modo do Engenhoso Fidalgo Dom
3 2 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Quixote de La Mancha (Cervantes, 1984) que, com seu


fiel escudeiro Sancho Pança, recria a natureza das coisas
e dos seres sem deteriorar a realidade; indica o caminho
da salvação pessoal; pelo humor, sublima as angústias
existenciais; levanta-se contra a pobreza e a mesquinhez
do homem e da sociedade; eleva os casos da vida infantil
à dignidade da epopéia; leva a bom termo tal aventura
por nos ensinar a não ir de encontro à ordem da Nature-
za, de vez que, nesta, cada coisa engendra outra que lhe
é semelhante?
d) a taumaturgia, dionísiaca, dos Moinhos de Vento que já
obteve o efeito de opor a atividade da crítica à vingança,
ao rancor e ao ressentimento, conjurando assim essa justa
de forças infantis, que já dura tanto tempo e tantas pági-
nas?
Tendo analisado como a subjetivação do infantil é trans-
formada em sujeição, pela submissão ao Outro e pelo apego
de cada um à sua identidade - isolando os quatro conjuntos
estratégicos, que constituem as duas rupturas da história da
infantilidade -, esta história da infantilidade somente res-
ponderá [?] a essa questão se, em seu final, puder identificar
os modos como as figuras do infantil, dela mesma extraídas,
encontram-se diagramatizadas nas relações consigo (cf.
Foucault, 19911; 1994).
A ÉTICA DA INFANTILIDADE
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 2 9

Esta história da infantilidade poderia ter-se detido an-


tes; e, de certo modo, o fez. Considera que tudo está jogado
desde as primeiras páginas; ou, dito de outro modo: a partir
de agora, não fará mais do que repetir sua parada, seu
passo já marcado. Mas, a tarefa final é justamente a repeti-
ção, isto é, a possibilidade formal (especulativa?) do inteira-
mente outro. Porém, esse jogo não é óbvio, por certo. Preci-
sa-se de mais de um ângulo que atravessem as páginas e as
bordas da história: esta é a razão pela qual ainda se atarefa.
Embora, como escreveu Nietzsche, ninguém possa ouvir nas
coisas, inclusive nos textos, mais do que já sabe: "Para aqui-
lo a que não se tem acesso pela vivência, não se tem ouvi-
do" (Nietsche, 1991a, p. 383).

De qualquer modo, propõe um "retrato" das figuras


infantis que apareceram nas páginas anteriores. "Figuras"
que não devem ser entendidas no sentido retórico, mas no
sentido ginástico ou coreográfico, ou seja, no sentido grego:
não como um esquema, mas, de uma maneira mais viva,
como o gesto do corpo captado na ação, e não contemplado
no repouso, como o corpo dos atletas, dos oradores, das
estátuas: aquilo que for possível imobilizar do corpo tensio-
nado do livro. Assim, ele é apressado por suas figuras de
infantil: ele se debate num esporte meio louco, desgastando-
se como o atleta; fraseia como o orador; é captado num
desempenho, como uma estátua (cf. Barthes, 1989). A figu-
ra é o livro ainda em ação, siderado no momento de sua
suspensão, de seu final.

As figuras do infantil destacam-se, conforme se possa


reconhecer, do discurso que passou. Elas são delimitadas,
como os signos, e memoráveis, como as imagens ou os con-
3 3 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

tos. Cada uma é estabelecida se pelo menos alguém puder


dizer: "Como isto é verdade"! "Reconheço esta cena de lin-
guagem"! "Lembro disto que foi escrito"! Para essa opera-
ção de constituir as figuras, não foi preciso nada mais nada
menos que este guia: o sentimento de ter chegado ao ponto-
de-basta da história da infantilidade. E então perguntar: por
que se fez da infantilidade uma experiência moral? como
ocorreu a problematização moral da infância? como o sujei-
to-infantil, suas condutas, seus desejos, seus cuidados e
educação tornaram-se objeto de preocupação moral do Oci-
dente?
As formações culturais de cada época histórica podem
ser comparadas com figuras, e também com um conjunto de
figuras de caleidoscópio: segundo o corpus analisado e a
diagonal traçada para seu estudo tudo muda. A partir de
práticas discursivas e não-discursivas conforma-se, no centro
do caleidoscópio, uma figura, que não é uma invenção a
partir de uma figura anterior, mas que foi objetivada em sua
pluralidade pela história da infantilidade. O que interessa,
para objetivar cada figura, são as técnicas do eu, as formas
de relação moral consigo mesma, a ética da infantilidade e
seus jogos de verdade: práticas de si pelas quais o infantil
constitui a si mesmo como sujeito moral de suas próprias
ações. A pergunta a ser respondida por cada figura-infantil
é: "Que sou eu, neste tempo tempo presente da história da
infantilidade"?
SER-SI: SUJEITO NA DDBRADURA

Sujeitar(-se). Maneira pela qual os indivíduos são cha-


mados a se constituir como sujeitos de conduta moral, atra-
vés de: 1) modelos propostos para instauração e desenvolvi-
mento das relações para consigo, reflexão sobre si, conheci-
mento, exame e decifração de si por si; 2) transformações
que procura efetuar sobre si.
O continente da ética. Para analisar o que é designa-
do como "o sujeito" - isto é, as formas e as modalidades da
relação consigo através das quais o indivíduo se reconhece
como sujeito - Foucault (1990b) distingue, nas histórias das
morais: 1) os atos, ou condutas que são o comportamento
dos indivíduos em relação ao código moral (as prescrições) a
eles imposto; 2) o código moral que determina os atos per-
mitidos ou proibidos, bem como o valor positivo ou negativo
dos diferentes comportamentos possíveis; 3) as prescrições
morais que, na maioria das vezes, não estão isoladas como
tal, as quais determinam o tipo de relação que se deve ter
consigo; ou, em outras palavras, rapport à soi, que chama
de "ética", e que determina a maneira pela qual o indivíduo
deve constituir-se a si mesmo como o sujeito moral de suas
próprias ações.
Para as morais da Antigüidade grega e romana, o ele-
mento dinâmico e forte fica do lado das formas de subjetivação
e das práticas de si, cuja ênfase é dada: 1) às formas das
3 3 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

relações consigo; 2) aos procedimentos e às técnicas pelas


quais são elaboradas as formas de relações consigo; 3) aos
exercícios pelos quais o sujeito se dá como objeto a conhe-
cer; 4) às práticas que permitem transformar seu próprio
modo de ser. Essas morais "orientadas para a ética" são
importantes ao lado das morais "orientadas para o código":
entre elas há justaposições, por vezes, rivalidades e conflitos,
e, por vezes, composição.
A opção de "método" é a seguinte: isolar os elementos
de ascese - entendida não como a moral de renúncia, mas
como o exercício sobre si mesmo, mediante o qual o indiví-
duo busca elaborar, transformar e aceder a um certo modo
de ser - dos elementos do código de uma moral, não esque-
cendo sua coexistência, suas relações, sua relativa autono-
mia, nem suas diferenças de ênfase; então, privilegiar as
práticas para o cuidado de si, o interesse que elas podem
ter, e o esforço que é feito para desenvolvê-las, aperfeiçoá-
las, ensiná-las, bem como o debate a seu respeito.
"Cuidado de si" é, para o mundo greco-romano, o modo
mediante o qual a liberdade individual passa a ser pensada
como ética. Realizar a genealogia do "'homem' (sic) do de-
sejo" consiste em historicizar as formas de subjetivação mo-
ral e as práticas de si que se destinam a assegurá-las. Isto
implica em uma análise do tipo de relação que cada um
deve manter consigo mesmo, a qual permite descrever como
o indivíduo se constitui a si mesmo como sujeito moral de
suas próprias ações.
Para analisar a maneira pela qual o comportamento
sexual é refletido como campo de escolhas morais, Foucault
parte da noção então corrente entre os gregos de "uso dos
prazeres" e distingue os modos de subjetivação aos quais ela
se refere: substância ética, tipos de sujeição, formas de ela-
boração de si, e de teleologia moral.
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 3 3

Forças e pregas. A novidade dos gregos foi que eles


inventaram "o sujeito", como uma derivada, como o produto
de uma subjetivação. O sujeito é constituído em práticas
verdadeiras, ou seja, em práticas historicamente analisáveis.
A idéia importante é a de uma dimensão da subjetividade
que deriva do poder e do saber, mas que não depende deles.
A relação consigo é uma dimensão irredutível às relações de
poder e às relações de saber: entra nestas relações, se rein-
tegra nesses sistemas dos quais começaram por derivar (cf.
Deleuze, 1991; 1992).
Os gregos não apenas inventaram a relação consigo,
eles a ligaram, compuseram e desdobraram na sexualidade.
Pergunta-se: "Como a relação consigo tem uma ligação eletiva
com a sexualidade?" A resposta: "Tal como as relações de
poder só se afirmam se efetuando, a relação consigo só se
estabelece se efetuando. E é na sexualidade que ela se esta-
belece e se efetua".
O indivíduo interior é diagramatizado, de um modo
que a subjetivação do homem livre se transforma em sujei-
ção: 1) por um lado, é a submissão ao outro pelo controle e
pela d e p e n d ê n c i a , com todos os p r o c e d i m e n t o s de
individualização e de modulação que o poder instaura; 2) por
outro, é o apego de cada um à sua própria identidade,
mediante a consciência e o conhecimento de si, com todas
as técnicas das ciências morais e humanas que formam o
saber do sujeito.
A subjetivação é a relação consigo que não pára de
renascer, em outros lugares e sob outras formas. Tendo a
atuação da força dobrada, vergada, afc*'.uido a si mesmo/a,
a fórmula mais geral da subjetivação consiste em produzir
efeitos sobre si mesmo/a. Como os "quatro rios do Inferno",
diz Deleuze, existem quatro dobras, quatro pregas de subje-
tivação:
3 3 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

1) A substância ética, ou a parte material de nós mesmos


que vai presa na dobra, a parte visada pelos ditames
morais: para os gregos, o corpo e seus prazeres, os
aphrodisia; para os cristãos, a carne e seus desejos; para
nós, modernos, o desejo, como uma modalidade substan-
cial diferente.
2) O modo de assujeitamento, ou modo pelo qual reconhe-
cemos a força dos ditames morais: esta segunda dobra é
a da relação de forças no seu sentido mais exato; é sem-
pre segundo uma regra singular que a relação de forças é
vergada para tornar-se relação consigo: certamente não é
a mesma coisa quando a regra eficiente é natural, ou
divina, ou racional, ou estética.
3) Os procedimentos ascéticos e ensinantes da ética, ou os
meios acionados para os controles e as transformações
desejadas: é a dobra do saber, ou da verdade, por consti-
tuir uma ligação do que é verdadeiro com o nosso ser, e
de nosso ser com a verdade, que servirá de condição for-
mal para todo saber, para todo conhecimento: subjetivação
do saber que não se faz da mesma maneira entre os
gregos e os cristãos, entre Platão, Descartes ou Kant.
4) A quarta constitui a teleologia de todo este processo, ou a
dobra do lado de fora, que Blanchot chamou "a
inferioridade de espera": é a dobra que define o tipo de
indivíduo perseguido nos processos de subjetivação; dela,
derivam os ideais normalizadores e norteadores de todos
os processos de transformação; dela, o sujeito espera, de
diversos modos, a imortalidade, a eternidade, a salvação,
a liberdade, a moiLe, o desprendimento.
Essas dobras não são reflexos passivos das experiên-
cias humanas, mas têm, articuladas aos códigos, uma eficá-
cia constitutiva. São dobras históricas, sujeitas a amplas va-
A éTICA DA INFANTILIDADE 3 3 5

riações e múltiplas combinações, dão-se em ritmos diferen-


tes, e suas variações constituem modos irredutíveis de
subjetivação. Elas operam por sob os códigos e regras do
saber e do poder, arriscando-se a juntar a eles e se desdo-
brando, fazendo outras pregas. O Ser-Si é determinado pelo
processo de subjetivação, isto é, os locais por onde passa a
dobra.
As condições do processo de dobradura não variam
historicamente, mas variam com a história; por isto, as con-
dições não são apodíticas, mas problemáticas. O que elas
apresentam é a maneira através da qual o problema se colo-
ca em tal formação histórica: 1) que posso eu saber? o que
posso eu ver e enunciar em tais condições de luz e de lingua-
gem? 2) que posso fazer, a que poder visar e que resistên-
cias opor? 3) que posso ser, de que dobras me cercar, ou
como me produzir como sujeito? Nestas três questões o "Eu"
não designa um sujeito universal, mas um conjunto de posi-
ções singulares ocupadas num " Fala-se /Vê-se", "Combate-
se", "Vive-se".
Nós esquecemos os velhos poderes que não se exer-
cem mais, os velhos saberes que não são mais úteis; mas,
em matéria moral, não deixamos de depender de velhas
crenças, nas quais nem cremos mais, e de nos produzir como
sujeitos em velhos modos que não correspondem aos nossos
problemas. Tudo se passa como se os modos de subjetivação
tivessem vida longa e continuássemos a brincar de gregos,
de cristãos ...
Saber, política e direito. Não se faz uma história dos
sujeitos, mas dos processos de subjetive ' ^ o , sob as dobras
que ocorrem em um campo ontológico tanto quanto social.
As práticas de si mesmo não são "inventadas" pelo indiví-
duo: constituem esquemas que ele encontra em sua cultura
e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura,
3 3 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

sua sociedade e seu grupo social. Conceber a ética desde o


ponto de vista de si mesmo permite um enfoque histórico;
enfatizar a ética e não a moral significa formular a questão
das práticas formadoras do indivíduo na relação com o sa-
ber, com a política e com o direito modernos.
Modos de subjetiuação. Uma das grandes lições é que
a ontologia é suscetível de uma história. Na imanência de
um mesmo e único nível de análise, instituições, poderes e
saberes vinculam-se com "formas de reconhecimento", isto
é, com um certo tipo de subjetivação.
O sujeito não é uma substância: é uma forma, e esta
forma não é sempre idêntica a si mesma. Existem relações
e interferências entre as diferentes formas de sujeito, mas
não estamos diante do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso
- na relação sexual, institucional, econômica, etc. -, jogam-
se, estabelecem-se em relação a si mesmo formas de rela-
ções diferentes. E precisamente a constituição histórica des-
tas diferentes formas de sujeito, em relação com os jogos de
verdade, o que interessa. O sujeito se constitui; ele é efeito
de experiências reais que o experimentam, e esta constitui-
ção depende de uma forma: a forma que assume no "jogo
de verdade" em um momento histórico dado. O conceito de
sujeito é um dos efeitos dos procedimentos de verdade pelos
quais ele se fez necessário. Há sujeitos porque certo tipo de
relação com o si-mesmo foi constituído em uma cultura, e
também porque os indivíduos prestam a si uma determinada
forma de atenção, reconhecendo-se como sujeitos.
As técnicas de si, necessárias para a constituição do
sujeito, podem ser encontradas em todas as culturas de for-
mas diferentes. F>çve-se questionar as técnicas de si do mes-
mo modo como é necessário estudar e comparar as diferen-
tes técnicas de produção de objetos e de direção dos homens
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 3 7

pelos homens através do governo. É difícil estudar estas téc-


nicas por dois motivos: primeiro, as técnicas de si não exi-
gem o mesmo aparelho material que a produção de objetos
e são, portanto, técnicas freqüentemente invisíveis; segun-
do, são freqüentemente ligadas às técnicas de direção dos
outros.
As relações existentes entre sujeito e verdade: como o
sujeito faz parte de uma determinada interpretação, repre-
sentação, da verdade? Como o sujeito humano entra nos
jogos de verdade? quer sejam jogos de verdade que adotam
a forma de uma ciência, ou um modelo científico; quer se-
jam aqueles que podem ser encontrados em instituições ou
em práticas de controle. Como, no interior de uma determi-
nada forma de conhecimento, o sujeito se constituiu em su-
jeito louco ou são, delinqüente ou não-delinqüente, infantil
ou adulto, através de um número determinado de práticas
que são jogos de verdade, práticas de poder, etc?
E necessário rechaçar qualquer teoria a priori de sujei-
to para poder realizar esta análise das relações que podem
existir entre a constituição do sujeito e os jogos de verdade,
as práticas de poder, etc. Foucault, em seus textos, analisou
tais relações a partir de práticas coercitivas, como nos siste-
mas psiquiátrico e penitenciário; a partir de jogos teóricos
ou científicos, na análise das riquezas, da linguagem e do ser
vivo; e a partir da prática de si mesmo, na prática de auto-
formação do sujeito. As pesquisas genealógicas visam res-
ponder à seguinte questão: "Como constituímos nossa iden-
tidade por meio de certas técnicas éticas de si que se desen-
volveram desde a Antigüidade até nossos dias"?
Os 3 seres. Foucault realizou uma ontologia histórica
de nós mesmos/as em relação com: A verdade: interessa a
produção histórica da verdade, através da qual nos converte-
mos em sujeitos de conhecimento - falantes, produtivos/as,
3 3 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

viventes -, configurados/as segundo a epistéme de cada


época: o Ser-Saber. O poder: imersos em relações de poder
através das quais nos convertemos em sujeitos que interatuam
com outros sujeitos. Sujeitas/os às relações de poder nos
configuramos segundo os dispositivos de forças nos quais
estamos inseridas/os. O Ser-Poder, nós sujeitos modernos,
surge de práticas individualizantes. A ética: vinculados/as à
ética, através das práticas e dos discursos, nos convertemos
em sujeitos morais, a partir de certa relação de cada um/a
consigo mesmo/a e, em conseqüência, com os/as outros/
as. O indivíduo interior, o Ser-Si, acha-se codificado/a,
recodificado/a, num "saber moral" e, acima de tudo, torna-
se o que está em jogo no poder: é diagramatizado/a.
Sujeito moral. O sujeito sujeitado ao/pelo saber e ao/
pelo poder de seu tempo é, por isto mesmo, um sujeito
moral.

FIGURAS DE INFANTIL

SOFIA

A mulher. Para Sofia, figura infantil-sexuada da Histó-


ria da Infantilidade, a pergunta ética é a seguinte: "Qual o
aspecto, ou a parte de mim mesma, que está relacionado à
conduta moral"?
Problematização. Qual a substância ética que é presa
na parte material da infantil-sexuada, Sofia, e das crianças
por esta dobra subjetivadas?
Ontologia. A ontologia da infantilidade descreve a
maneira pela qual Sofia, tendo em conta sua pertença ao
grupo pedagógico de Rousseau, dá forma a si-mesma: a
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 3 9

matéria-prima de sua conduta moral, surgida do valor moral


da sexualidade conjugado com o da educabilidade que ela
aceita como tais. A matéria trabalhada pela ética da
infantilidade é aquilo que um ser-infantil não pode deixar de
ser: a essência sexuada necessária ou a necessidade de ser
sexuado; sendo que sua sexualidade consiste no atributo que
todo ser-infantil possui e não pode deixar de possuir. O in-
fantil sexualizado é uma das formas de subjetivação do sujei-
to ocidental moderno; uma instância de poder-saber em que
o indivíduo afeta-se a si mesmo; uma forma de relação con-
sigo: com o infantil de seu desejo, com o infantil da sexuali-
dade. A matéria-prima da conduta moral de Sofia - e das
subjetivações que a seguirão, a partir do século XVIII - é o
infantilismo de sua sexualidade.
Substância ética. Sofia, como figura da Ontologia-In-
fantil, implica-se nos dispositivos da sexualidade e da
infantilidade, na Época Moderna, pelos seguintes modos de
relação consigo: 1) sujeitada por técnicas de si que sexualizam
sua experiência de infância; 2) integrando a scientia sexualis
ocidental que promove transformações sobre si; 3) pela atri-
buição de primazia a seus atos, desejos e prazeres ligados à
sexualidade infantil, a qual instaura e desenvolve modelos
morais de relações consigo, além de ser significada como
forma de acesso à verdade da identidade humana ocidental.
Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade:
mais-valia de uma infância sem fim. Conjunto estratégico:
sexualização do infantil. Forma predominante de sujeição:
apego do infantil à sua identidade. Técnicas de si: auto-
controle; auto-analise; auto-educação; auto-contenção; auto-
vigilância moral; normalização da sexualidade; delação; con-
fissão; exercícios físicos; banhos frios; abdicar do narcisismo
e de seus direitos animais; dissipar a amnésia infantil;
conscientizar-se e libc-ta?- se da repressão sexual; trabalho
3 4 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

intelectual; sublimar o instinto sexual; ser moralmente e psi-


quicamente sadio; etc. Figura do conjunto estratégico: in-
fantil-sexuado. Figura da Ontologia-Infantil: Sofia.
Hermenêutica de si: a infantil-sexuada, Sofia, multiplica os
efeitos de verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua
própria sexualidade, significando e decifrando tal sujeito
como um "sujeito-infantil de desejo".

EMíLIO

O bom selvagem. Emílio, a figura infantil-educada da


História da Infantilidade, transmuda-se em figura deliberativa
quando se coloca problemas de conduta: diante de tal alter-
nativa, que fazer? como agir? Para esta figura, a pergunta
ética é: "Como sou incitado a reconhecer minhas obrigações
morais"? Ou, numa variação: "A qual regra me reconheço
ligado e como estabeleço relação com ela"? Ou ainda: "A
qual lei devo obedecer"? Ou: "Qual o modo de sujeição que
faz com que eu seja sujeito"?
Probíematização. Qual a maneira pela qual Emílio e
os infantis que o seguirão são chamados ou incitados a reco-
nhecer suas obrigações morais?
Deontologia. A deontologia da infantilidade indaga so-
bre qual deve ser o ente-infantil para que seja perfeito. A
resposta dada é: o ente-infantil perfeito é o educado; ou
então: lugar da infância é na escola. O ente-infantil perfei-
to é o escolarizado. Educabilidade: modo de sujeição pelo
qual Emílio, tendo reconhecida sua infantilidade, deve obe-
decer às leis da Educação para ser um menino bem-educa-
do: condição sine qua non para que seja feliz como um
homem-adulto normal. O infantil é um produto das normali-
dades de diferentes significações exemplares, espessuras,
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 4 1

posturas e importâncias; o qual, para ser realizado, deve


necessariamente passar por um trabalho infanticida que ul-
trapasse sua natureza infantil, iniciando-o na "vida séria"
das/os cidadãs/cidadãos de bem. Efeito, sobretudo, de um
conjunto de regras pedagógicas, que prescrevem os mesmos
atos nas mesmas circunstâncias, o infantil-educado incorpo-
ra um dos lados do dispositivo ordem-desordem, sagrado-
demoníaco, racional-irracional, civilizado-bárbaro, humano-
bestial, familiar-estranho, verdade-erro, adulto-infantil, etc.
A moralização infantil é o processo encetado pelo dispositivo
da escolaridade, aliado ao de infantilidade, através do qual é
constituído na criança um temperamento moral, obtido pela
internalização em sua subjetividade do Grande-Outro:
interiorizando a voz imperativa de comando do outro maiús-
culo, cresce no infantil aquilo que se denomina sua "alma".
O infantil deseja a norma do Outro, pois é graças a seu amor
e ao seu saber que o/a adulto/a normal realiza plenamente
sua identidade e sua verdadeira natureza: a de ser a criatura
normalizada do Outro - este Mestre ao qual o sujeito se lhe
torna obediente com conhecimento de causa. O Outro só é
internamente encarnado se atuante na conduta infantil: mani-
festa-se como a voz que dita ordens, mandatos, deveres;
como o olhar que vigia sua observância; como a mão, a voz
e o olhar que punem as transgressões à Norma, os desvios
ao metro da moralidade, bem como as desmedidas paixões
anti-disciplinares.

Modo de sujeição. Emílio, como figura da Deontologia-


Infantil, integra o dispositivo da infantilidade, na Época Mo-
derna, pelos seguintes modos de relação consigo: 1) sujeita-
do por técnicas de si que pedagogizam sua experiência de
infância, fazendo-o aprender a obedecer e desejar a nor-
malidade; 2) integrando a scientia educacionalis ocidental
que promove transformações sobre si e seu desenvolvimen-
3 4 2 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

to; 3) pela atribuição de primazia a seus atos, desejos e


prazeres ligados à sua condição de infantil-educável, a qual
somente se realiza no trabalho de educare - trabalho que
endireita o que é torto ou malformado do infantil -, de modo
que a moralidade se transforme em questão pedagógica.
Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade:
mais-valia de uma infância sem fim. Conjunto estratégico:
pedagogização do infantil. Forma predominante de sujei-
ção: apego do infantil à sua identidade. Técnicas de si:
auto-disciplinamento; auto-educação; auto-avaliação; auto-
domínio; auto-regulamento; auto-vigilância moral; auto-nor-
malização de seu infantilismo; delação; confissão; exercícios
físicos; abdicar do narcisismo e de sua patologia infantil;
controlar as paixões, os caprichos e os apetites; educar-se
para racionalizar-se, para conscientizar-se de que o amor do
Outro só quer o seu bem, para libertar-se das trevas do erro
e da ignorância; trabalho intelectual para sublimar o instinto
sexual; amadurecer rapidamente, transfigurando-se de crian-
ça em homem/mulher, adultos/as e normais; tratar-se tera-
peuticamente, quando necessário; obedecer as autoridades;
ser o mestre de si mesmo; fortalecer sua fraqueza constitucio-
nal; constituir-se como um ser autônomo que conhece seus
deveres e as razões de seus deveres; ser moralmente normal
e sadio; etc. Figura do conjunto estratégico: infantil-educa-
do. Figura da Deontologia-Infantil: Emílio. Hermenêutica
de si: o infantil-educado, Emílio, multiplica os efeitos de
verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua própria
infância; significando e decifrando tal sujeito como um "su-
jeito-infantil de pedagogia", o qual deve efetivar sua vida,
obras e pensamentos sob o registro de um permanente pro-
cesso de educação.
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 4 3

GRACILIAND

O pequeno escolar. Para Graciliano, o infantil-depen-


dente da História da Infantilidade, a pergunta ética é: "Quais
são os meios, as práticas, pelos quais posso modificar a
mim mesmo para me tornar um sujeito ético"? Ou: " O que
devo fazer para ser o sujeito ético que devo ser"?
Probíematização. Quais as práticas de si pelas quais
Graciliano e os infantis que o precederam e aqueles que o
seguirão se elaboram a si mesmos de modo a se comporta-
rem eticamente?
Ascética. O trabalho de transformação que o infantil
realiza em si mesmo: uma askésis moderna por meio da
qual se transforma em sujeito moral de conduta. O infantil
decifra sua alma como dependente, e realiza uma
hermenêutica de si enquanto identidade subordinada. A ascese
realizada pelo infantil aponta e confirma a diferença entre o
infantil e a/o adulta/o para, nesta designação, afirmar sua
carência e insuficiência: a diferença é assim transformada
em desigualdade e, esta, em inferioridade. Os exercícios
ascéticos da infantilização são operados nas relações de
adultos/as com governantes; filhos/as com pai/mãe; mulhe-
res com homens; negros com brancos; doentes com sãos;
loucos/as com normais; inferiores com superiores; menores
com maiores; etc. Em sua subalternidade naturalizada, o
infantil se re-conhece como objeto de afeto e de conheci-
mento a ser auto-governado: um pouco ao modo do habitan-
te de um mundo primitivo: semelhante às mulheres, aos
loucos e aos poetas: adultas/os infantilizadas/os. Pura
negatividade em espelho, o infantil-dependente possui duas
faces díspares: uma parte útil, de "animal domesticável",
que serve de alavanca ao trabalho pedagógico; a outra par-
te, "bicho selvagem", a qual cabe manter sob vigilância,
3 4 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

transformar em faltas, submeter à punição da sexualidade e


da dependência, enquanto produz o remorso e a vergonha
por ser o que é.
Atitude para si mesmo. Graciliano, como figura da
Ascética-Infantil, integra o dispositivo da infantilidade, atra-
vés dos seguintes modos de relação consigo: 1) sujeitado por
técnicas de si que promovem sua experiência de infância
como um "ser da falta"; 2) integrando a scientia infantilis
ocidental que promove transformações sobre sua natureza
maleável, moldável, educável; 3) pela atribuição de primazia
a seus atos, desejos e prazeres ligados à sua condição de
infantil-dependente: ameaças de um estrangeiro e de um
desconhecido que ele próprio e o Outro temem, e cujas
forças são deslocadas, corrigidas, e postas a perder pelas
práticas culturais.
Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade:
a-vida-a-morte. Conjunto estratégico: subordinação da iden-
tidade infantil. Forma predominante de sujeição: submis-
são ao Outro. Técnicas de si: auto-disciplinamento; auto-
educação; auto-avaliação; auto-domínio; auto-regulamento;
auto-vigilância moral; auto-normalização de seu infantilismo;
delação; confissão; exercícios físicos; abdicar do narcisismo
e de sua patologia infantil; controlar as paixões, os caprichos
e os apetites; educar-se para racionalizar-se, para
conscientizar-se de que o amor do Outro só quer o seu bem,
para libertar-se das trevas do erro e da ignorância; trabalho
intelectual para sublimar o instinto sexual; amadurecer rapi-
damente, transfigurando-se de criança em homem/mulher,
adultos/as e normais; tratar-se terapeuticamente, quando
necessário; obedecer as autoridades; fortalecer sua fraqueza
constitucional; constituir-se como um ser autônomo que co-
nhece seus deveres e as razões de seus deveres; ser moral-
mente normal e sadio; subjetivar-se como o ser carente que
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 4 5

é; etc. Figura do conjunto estratégico: infantil-dependente.


Figura da Ascética-Infantil: Graciliano. Hermenêutica de
si: o infantil-dependente, Graciliano, multiplica os efeitos de
verdade acerca do sujeito ocidental a partir de sua própria
condição infantil a ser erodida; significando e decifrando tal
sujeito como um primitivo "sujeito-infantil dependente", a
atitude deste infantil para consigo consiste em fazer de sua
vida um laborioso processo de transformação da diferença
em mesmidade.

EL NINO/ LA NINA

A-Menina-0-Menino-e-O-Monstro. Para El Nino/La


Nina, figura - intrometida por força das significações
circulantes neste final de história (cf. Alcântara, 1997; Ano-
malias..., 1997; Bonalume Neto, 1997; El Nino..., 1997;
Os efeitos ..., 1993; Os perigos..., 1997; Rios..., 1997; Sai
El..., 1993; Stefanelli, 1997; Tufão..., 1997) - do infantil-
adulto na História da Infantilidade, a pergunta ética é: "O
que quero ser como sujeito moral realizado"?
Problematização. Qual é o tipo de ser a que El Nino/
La Nina e os infantis que lhe são contemporâneos aspiram
quando se comportam de acordo com a moral? Como se dá
a constituição de sua conduta moral que os levam não só a
realizar ações de acordo com os valores produzidos pela
infantilidade, como também ao modo de ser um infantil-
moral?
Teleologia. A teleologia tem a ver com a inserção de
cada ação no conjunto das condutas infantis. A ação moral
do indivíduo-infantil inscreve-se em um código ao qual se
refere e em uma conduta, e tende a seu próprio cumpri-
mento, além de realizar a constituição da conduta moral. O
3 4 6 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

infantil tem necessidade de reconhecimento de si: ele é,


antes de tudo, relação consigo mesmo; por isto, são impres-
cindíveis a imagem e as palavras do Outro, que podem ver,
saber e dizer o que ele não pode, nem vê, nem sabe de si
mesmo. O telos do infantil da infantilidade - seu modo de
realização ética, a maneira como se constitui a si mesmo
enquanto sujeito moral de suas próprias condutas infantis -
pode ser dito assim: Dom Quixote desenhou o negativo do
mundo da Renascença, e seus devaneios e encantos entra-
ram em nossos conhecimentos do infantil tornados razoá-
veis. Hoje, quando o saber do Ocidente já não trata das
similitudes, mas das entidades e das diferenças, são os "mo-
inhos de vento" do El Nino/La Nina que demarcam, na
prosa e nos limites do mundo e na escrita das coisas, a
fratura do presente de nossa infantilidade. O "bom infante"
acabou. Ele é uma figura de areia entre uma maré vazante e
outra montante: é uma composição que só aparece entre
duas outras: a de um passado que o ignorava, a de um
futuro que não o reconhecerá mais. Los Ninos desenham o
negativo do mundo da Modernidade, e seus furores e flagelos
entram em nossos conhecimentos do infantil ainda não tor-
nados razoáveis.
Realização do sujeito moral. El Nino/La Nina, como
figura da Teleologia-Infantil, integra o dispositivo da
infantilidade, através dos seguintes modos de relação consi-
go: 1) sujeitado por técnicas de si que promovem sua expe-
riência de infância como um ser adultizado; 2) integrando as
Ciências Humanas e Sociais que promovem transformações
sobre sua natureza sexuada, educada, dependente, ameaça-
dora; 3) pela atribuição de primazia aos atos, desejos e pra-
zeres ligados à sua condição de infantil-adulto: ameaças de
um Diferente-Mesmo que ele próprio e o Outro, ao mesmo
tempo, temem e amam, porque "promete" ser o Grande-
Outro, cujas forças são corrigidas e postas no reto caminho
pelos dispositivos de poder-saber adultizadores.
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 4 7

Tutti sistemati. Ruptura da História da Infantilidade:


a-vida-a-morte. Conjunto estratégico: adultização do infan-
til. Forma predominante de sujeição: submissão ao Outro.
Técnicas de si: auto-disciplinamento; auto-educação; auto-
avaliação; auto-domínio; auto-regulamento; auto-vigilância
moral; auto-normalização de seu infantilismo; delação; con-
fissão; exercícios físicos; abdicar do narcisismo e de sua pa-
tologia infantil; controlar as paixões, os caprichos e os apeti-
tes; educar-se para racionalizar-se, para conscientizar-se de
que o amor do Outro só quer o seu bem, para libertar-se das
trevas do erro e da ignorância; trabalho intelectual para su-
blimar o instinto sexual; amadurecer rapidamente, transfigu-
rando-se de criança em homem/mulher, adultos/as e nor-
mais; tratar-se terapeuticamente, quando necessário; obe-
decer as autoridades; ser o mestre de si mesmo; fortalecer
sua fraqueza constitucional; constituir-se como um ser autô-
nomo que conhece seus deveres e as razões de seus deveres;
ser moralmente normal e sadio; ser o mais rapidamente pos-
sível adulto; etc. Figura do conjunto estratégico: infantil-
adulto. Figura da Teleologia-Infantil: EI Nino/La Nina.
Hermenêutica de si: o infantil-adulto, El Nino/La Nina,
multiplica os efeitos de verdade acerca do sujeito ocidental a
partir de sua conduta infantil efetivada ao modo da conduta
adulta. Significando e decifrando tal sujeito como um primi-
tivo sujeito-infantil - sexuado, educável, dependente, e amea-
çador, por sua própria natureza -, a atitude deste infantil
para consigo mesmo consiste em fazer de sua vida, ima-
gem, palavras, pensamentos, sentimentos, um permanente
processo de ruptura de suas quatro forças dobradas sobre si
mesmo: a parte material, a relação de forças, a dobra da
verdade, e a dobra do lado de fora. Ele quer e trabalha para
ser o Outro; espera que, deste modo, leve o indivíduo mo-
derno a um modo de ser em que este atinja a imortalidade,
a salvação, a liberdade, a cidadania, o bem-estar, a felicida-
3 4 8 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

de; para que este indivíduo realize assim o sonho de ser


subjetivado, em sua submissão ao Outro e no apego à sua
identidade, somente por "crianças viris", não infantilizadas,
como aquelas de Heráclito e de Nietzsche.

Nós

Para Nós, figuras familiares desta História da


Infantilidade, as afirmações e as perguntas escato-teológicas
que cabem são as que a seguir vêm dispostas. Em nossa
história presente, não desaparece um conceito de infantil,
nem um conceito de infância; não se afasta um infantil exis-
tente que se ultrapassa em direção a um super-infantil, nem
uma infância que se ultrapassa em direção a uma pós-infân-
cia. A questão não é a do composto infantil, conceptual ou
existente, perceptível e enunciável; a questão é a das forças
componentes do infantil e da infância: com quais outras for-
ças se combinam na formação histórica de nosso presente e
qual é o composto que delas advém? Pretendendo reconstituir
a unidade perdida da infância, estaremos a levar ao extremo
uma exegese, um pensamento, as marcas, os signos, a gra-
mática de um infantil que são os dos séculos precedentes?
ou estamos antes a dirigir-nos a formas que já são incompa-
tíveis com eles?
El Nino/La Nina nada mais consiste do que o novo
significante infantil operando no presente. Ao atribuir e ser
atribuído dessas significações - selvagem, furioso, cruel,
monstro, problemático, assustador, anômalo, etc. -, este "O
Menino" [que ainda é dito preferencialmente no masculino]
encerra um ciclo de problematizações, iniciado no século
XVI com a inocência daquele outro menino-morto; e, ao
fazer isto, demarca a condição histórica presente na história
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 4-9

de nossa infantilidade. Nessa atribuição de sentido ao infan-


til contemporâneo se pressente o nascimento, menos ainda,
o primeiro clarão de um dia que mal se anuncia, mas onde
adivinhamos no horizonte a silhueta de um novo sujeito-in-
fantil, cuja dispersão insistimos em negar.
Já que Nós não problematiza o que lhe apetece, mas
como apetece ao tempo em que problematiza, tais questões
acerca do infantil são as que se empenha em problematizar;
condição que autoriza Nós a escrever, ao modo de Foucault:
a estas questões, é verdade que não sei responder nem,
nestas alternativas, qual termo conviria escolher. Não adivi-
nho sequer se poderei jamais responder a elas, ou se um dia
terei razões para me determinar a tal. Todavia, sei agora a
razão porque pude formular a mim própria essas questões, e
que não posso ainda deixar de as formular.
"Este perigoso suplemento..." Na Idade Clássica, to-
das as forças do humano foram referidas a uma força "de
representação" que pretendeu extrair o que nele havia de
elevável ao infinito; de tal forma que o conjunto das forças
compusessem Deus, não o humano, e que o humano só
pudesse aparecer entre ordens de infinito. Para que o huma-
no aparecesse como composto específico, foi preciso que
suas forças componentes entrassem em relação com novas
forças que se esquivassem à da representação e a destituís-
sem. Na nova formação histórica do século XIX, essas novas
forças foram as da finitude, as quais promoveram, por seu
conjunto, o humano. As forças do humano entraram então
em relação com outras forças, de maneira a compor uma
outra coisa ainda, que não será mais ITV ^, nem o homem:
dir-se-á que a morte do humano concatena-se com a de
Deus para formar novos compostos. O infantil moderno inte-
grou a forma composta deste humano como o suplemento
necessário para driblar sua morte. Suplemento que, produzi-
3 5D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

do apenas marginalmente pela sociedade de soberania -


efetuando seu diagrama em um grau baixo -, só existiu
como dispositivo quando a exposição das relações de forças
que constituíam o poder produziu o diagrama disciplinar,
fazendo-o ultrapassar o limiar tecnológico. O composto in-
fantil, como suplemento, tem duas funções: 1) Acrescenta-
se, é um excesso, uma plenitude enriquecendo uma outra
plenitude, a culminação da presença do ser. Ele cumula e
acumula a presença. 2) O suplemento supre. Ele não se
acrescenta ao indivíduo ocidental senão para substituir. In-
tervém e se insinua em-Jugar-de; é como se cumula um
vazio. Se ele representa e faz imagem, é pela falta anterior
de uma presença. Suplente e vicário, o suplemento infantil é
um adjunto, uma instância subalterna que substitui. Enquan-
to substituto, não se acrescenta simplesmente à positividade
de uma presença, não produz nenhum relevo, seu lugar é
assinalado na estrutura pela marca de um vazio: o de infini-
to. Em alguma parte, alguma coisa não se pode preencher
de si mesma, não pode efetivar-se, a não ser deixando-se
colmar pelo suplemento.
O ponto ideal e necessário. A história escrita neste
livro mostrou como o dispositivo de infantilidade, a partir
dos séculos XVI e XVII, promoveu a idéia de que existia algo
mais do que "adultos em miniatura", constituindo alguma
coisa que possuía propriedades intrínsecas e leis próprias;
esta coisa seria o referente da palavra "infância". A infância
surgiu como o ponto ideal, tornado necessário para que se
armassem e funcionassem, dentre outros, o dispositivo de
infantilidade. Esta "ficção" cumpriu duas funções: 1) confi-
gurou certa matriz teórica pela qual o poder organizou a
apropriação dos cornos infantis, sua materialidade, suas for-
ças, suas energias, seus prazeres, suas verdades, dando-se
como princípio causai e sentido onipresente; 2) configurou
A ÉTICA DA INFANTILIDADE
35 1

uma função mais prática, na medida em que este ponto


imaginário, congelado pelo dispositivo de infantilidade, ser-
viu de ponte para que cada um/a de nós encontrasse, como
indivíduo, sua própria inteligibilidade, a totalidade de seu
corpo, e sua identidade na condição de infantil.
A infância. Estudando um dos modos pelo qual um ser
humano torna-se um sujeito, esta história escolheu o domí-
nio da infantilidade para descrever a racionalidade específi-
ca pela qual o humano é objetivado e aprende a se reconhe-
cer em tal experiência fundamental como um sujeito-infan-
til. A análise da infantilidade como dispositivo político teria
sido paradoxal se não tratasse, por menos que fosse, da
infância. Afinal de contas, o poder que se exerce através da
infantilidade não se dirige a esse elemento do real que é
c h a m a d o de "infância", a infância em geral? Para a
infantilidade, a infância é o foco em torno do qual ela distri-
bui seus efeitos. Ora, foi justamente esta idéia da infância
em geral que não se pôde receber sem exame. Mostrou-se
que a infância não é o ponto de fixação que apoia as mani-
festações da infantilidade; mas, ao contrário, uma idéia com-
plexa historicamente formada no seio do dispositivo de
infantilidade. Descreveu-se de que maneira esta idéia "da
infância" se formou através das diferentes estratégias de
poder e da função que desempenhou nisso tudo. Regis-
trou-se que foi o dispositivo de infantilidade que, em suas
diferentes estratégias, instaurou essa idéia "da infância", e a
fez aparecer, sob as quatro grandes formas: da identidade
subordinada, do corpo e da alma educados, da adultização
das crianças, e da sexualização do infant!1
Problematização. Desde os anos 50 deste século, e,
mais recentemente, nos últimos anos deste "fim de milê-
nio", um certo sentimento de calamidade generalizada faz-
se implicar em sensações de alarme e desassossego social
3 5 Z HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

para enunciar o "fim" de outras "coisas": "o fim da histó-


ria", "o fim das ideologias", "o fim da família", "o fim da
paternidade", "o fim do trabalho", "o fim da filosofia", "o
fim do homem", "o fim do equilíbrio ecológico", "o fim do
marxismo", etc; e também "o fim da infância".
Esses temas escatológicos foram denominados por
Derrida (1991), em 1980, como o Apocalipse Moderno,
enunciados em tom apocalíptico pelos Clássicos do Fim, os
quais formaram o cânon do Pão de Apocalipse. O alarde
midiático - ansioso, maníaco e enlutado - dos atuais discur-
sos sobre tais "fins", diz Derrida, parece-se a um tedioso
anacronismo; pois já Blanchot tinha escrito, em 1957, O
último homem, e, em 1959, O fim da filosofia; Fukuyama
(1992), em 1989, escrevera seu primeiro O fim da história,
e, em 1990, The end of history and the last man.
Perguntar se "o fim" não é somente o fim de um certo
conceito é muito fácil. É preciso complicar - porque as coi-
sas estão longe de ser simples - um pouco o esquema de
tais diagnósticos, para indagar do "fim" que nos interessou:
- Perdeu-se o fim, a finalidade moderna do infantil? sua
utilidade? sua função? A forma-infância teria capturado tan-
tas relações de poder por que uma operação de infantilização
contínua produziu-se, em nossa formação histórica, na or-
dem pedagógica, judiciária, econômica, familiar, sexual, vi-
sando a uma integração global?
Afirma o diagnóstico do fim-de-infância, que o infantil
entrou em decadência moral: está desonrado, corrompido,
desregrado, pervertido: encontra-se out of joint. A infância
não anda bem, vai mal, não funciona, não se passa direito,
não anda como deveria andar; é um desastre, um fracasso,
uma inadequação. Facilmente desloca-se do infantil moral-
mente desajustado so injusto. Este é o problema: como justi-
ficamos esta passagem do desajuste a uma injustiça que não
seria mais ontológica?
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 5 3

A perversão do infantil que, out of joint, não anda


bem ou anda de revés, vemo-la com que facilidade se opõe
como o oblíquo, o torcido, o torto, ou o atravessado à retidão,
à boa direção do que anda direito, ao espírito do que orienta
ou funda o direito e impele diretamente, sem desvios, para
a direção certa: um infantil com uma infância sem fim.
O dispositivo de infantilidade deveria consertar um tem-
po de infância - este tempo, estes tempos, por estes tem-
pos, o tempo destes tempos, o tempo deste mundo, um
nosso tempo, este mundo de agora, hoje, esta época e ne-
nhuma outra, o presente, o agora, o contemporâneo, este
tempo que nos é próprio e comum, o tempo desse Nós -
que anda de revés; deveria fazer justiça, endireitar as coisas,
a história, o mundo, a sociedade, a nova ordem mundial, a
época, o tempo, os/as adultos/as, as relações; colocar o
infantil do lado direito, no reto caminho, recolocar nos eixos
uma infância desconjuntada, a fim de que, em conformida-
de com as regras de seu justo funcionamento, a infância
avance direito, e segundo o direito.
A infantilização deve ser forte para consertar o infantil
errado, fazê-lo entrar em retidão, corrigir sua direção, repará-
lo, restituir a infantilidade que lhe pertence, vingá-lo, desforrá-
lo, castigar o mundo, o tempo e o social que dele roubam a
infância que é, que deve ser a sua. Tornar a juntar, recolocar
na ordem, pôr no lugar, pôr direito, fazer justiça, corrigir a
tortuosidade da infância: tarefas das tecnologias de Estado e
das práticas de si, das técnicas de governo de si mesmo/a e
dos/as outros/as - de toda atividade que requer a conduta
da conduta na relação do eu com o próprio eu, e nas rela-
ções que supõem formas de controle ou direcionamento -,
que reparem os erros deste nosso presente sem infância:
tempo desajustado, dis-junto, desarmonioso, em desconcer-
to, desacordado, demitido, fora de si, desordenado, fora dos
eixos, injusto.
3 5 4 HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

Vive Nós a experiência do fim-da-infância. Para onde


vai a infância se tudo continuar como está? Escatológica é a
vinda do por-vir do que há-de-vir: a infância-sem-fim. Ne-
cessária uma grande conjuração contra o fim-da-infância:
nova mobilização para lutar contra ele, contra isto e contra
tudo o que este fim representa e continuará a representar.
Para o combater, exorcizando-o: atos de jurar juntos/as, por-
tanto de prometer; e também de decidir, de assumir cada
um/a e todos/as a responsabilidade de salvar a infância, de
comprometer-se com ela de modo performativo. Na realiza-
ção dessa escatologia messiânica, é necessária uma Santa
Aliança, que opere o advento da Terra Prometida de uma
infância sem fim.
Um dos feitiços - encantação mágica - destinado a
evocar, a fazer vir o infantil que não está presente é o A B
C. Em nossos dias, de uma infância profanada, é o da Esco-
la, cantado por Pele; nos dias de Rousseau, de uma infância
a ser amadurecida, o feitiço é o da educação prescrita como
um sistema de suplência destinado a reconstituir o mais na-
turalmente possível o edifício da Natureza. Nos dois tempos,
que são um só, a infância é a primeira manifestação da
deficiência que chama a suplência. A Pedagogia esclarece
os paradoxos do suplemento: é preciso ajudar os infantis a
suprir o que lhes falta, seja em inteligência, seja em força,
em tudo o que é necessidade física. Todo o tempo da educa-
ção e toda a sua organização são regidos por este mal neces-
sário: suprir o que falta. Esta é a oportunidade da Humani-
dade. O que será dela se não faltar nada a que suprir?
A infância-por-vir, do porvir, e o infantil recuperado
em sua sexuação, educabilidade, dependência, modo infan-
til de ser, são acontecimentos de uma injunção penhorada
que prescreve fazer vir isto mesmo, sob a forma de uma
presença plena. Promessa infinita e forma determinada: in-
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 5 5

sustentáveis, quando menos, porque exigem o desrespeito


pela singularidade e alteridade do outro. Espera sem hori-
zonte de espera: hospitalidade com todas as restrições devi-
das, cumprimento sem signo de boas-vindas. Porque, de
imediato, deve-se reiniciar os trabalhos de disjunção.
Abertura messiânica ao que vem: este "ideal" da in-
fância-sem-fim não é proposto como um ideal regulador infi-
nito e pólo de uma tarefa sem fim: é um acontecimento.
Pois, o ideal da infância-sem-fim já teria acontecido, já se
teria apresentado em sua forma de ideal, esse acontecimen-
to teria, desde então, desde os tempos modernos, marcado
o fim de uma história finita. Esse ideal é, a um só tempo,
infinito e finito: infinito porque permanece uma tendência a
longo prazo; é contudo finito porque aconteceu já, como
ideal, e sua história de infantilidade está, desde então,
descontínua.
O fim do infantil, como limite antropológico, anun-
ciou-se ao pensamento ocidental depois do fim do humano,
como infinidade de seu telos: a infinidade de seu fim. O fim
da linearidade "a vida" e ou "a morte", bem como a impli-
cação de nosso trabalho de mais-valia escreveram e
desescreveram esse "ideal" de uma infância-sem-fim.
Situação escato-teoíógica. Nós, figura humana da
Modernidade, pensa o infantil, como se pensa a si mesmo,
numa relação de superação. Esta relação marca o fim do
infantil, o infantil passado, mas também, de imediato, o
cumprimento do infantil, a apropriação da sua essência. A
superação ou a ultrapassagem do infantil é, para o humano,
o seu telos ou o seu eskhaton. A unidade destes dois fins do
infantil, a unidade da sua morte, do seu acabamento, e do
seu cumprimento, é envolvida no pensamento, que é grego,
do telos, o qual é também discurso sobre o eidos, sobre a
ousia e sobre a aletheia.
3 5 6 HISTORIADA INFÂNCIA SEM FIM

Um tal discurso, como em toda a metafísica, coordena


indissocialmente a teleologia com uma escatologia, com uma
teologia e com uma ontologia do Infantil. O pensamento do
fim-da-infância, portanto, está sempre já prescrito na
metafísica, no pensamento do fim do humano e da verdade
do humano. O que hoje é difícil pensar é um fim-da-infância
que não seja organizado por uma dialética da verdade e da
negatividade, um fim do infantil que não seja uma teleologia
na primeira pessoa do plural.
O Nós é a unidade do saber absoluto e da antropolo-
gia, de Deus e do Homem, da onto-teo-teleologia e do
humanismo. Esta condição assegura a passagem pelo Nós
entre a metafísica e o humanismo para falar do fim do in-
fantil. No jogo do telos - como abertura determinada ou
infinidade teleológica - e da morte - como limite antropoló-
gico factual -, Nós indaga sobre a situação escato-teológica
do infantil: o desaparecimento do infantil e da infância, bem
como acerca de seu cumprimento, de sua finalidade.
No pensamento e na língua do Ser, o fim do infantil
estava desde sempre prescrito e essa prescrição não fez mais
sempre do que modular o equívoco do fim, no jogo de seu
telos e da sua morte. Na leitura deste jogo, pode-se enten-
der em todos os sentidos o seguinte encadeamento: o fim do
humano é pensamento do ser-infantil, o humano é o fim do
pensamento do ser-infantil, o fim do humano é o fim do
pensamento do ser-infantil. O humano é desde sempre o
seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio. O ser-infantil
é, desde sempre, o seu próprio fim, isto é, o fim do seu
próprio.
O humano é o que tem relação com o seu fim, no
sentido diverso desta palavra. O fim transcendental só pode
aparecer e desdobrar-se sob a condição da mortalidade
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 5 7

imanente, de uma relação com a finitude como origem da


idealidade. Os nomes do ser humano e do infantil sempre se
inscreveram na metafísica entre estes dois fins. Só têm sen-
tido nessa situação escato-teológica.
O vazio benfazejo. Por não poder deixar de formular
essas questões, é possível adiantar que a "morte" do infantil
talvez seja o contrário da morte; talvez, os gestos que se
esboçam para matá-lo liberem finalmente sua linguagem, no
exterior de seu mutismo; como o canto das sereias, pode ser
que sua sedução consista no vazio que abrem, na imobilida-
de fascinante que provocam naqueles que as escutam. Imo-
bilidade de pedra em um rosto sem expressão e sem olhos,
silêncio em uma boca que é apenas uma linha fina: rosto e
boca voltados para um outro que é ele mesmo, e não mais o
desenho de um rosto tatuado sobre o próprio rosto.
No espelho quebrado. E se El Nino e La Nina esti-
vessem estilhaçando o espelho, a prisão do reflexo? desequi-
librando as relações conhecidas? aniquilando-se, dissociando-
se, desidentificando-se nas brumas de uma infância revisitada?
dessubjetivando-se numa experiência-limite, sem funções
transcendentais, que os impedem de ser sempre os mes-
mos, que os desgarram de si, de modo que não constituam
mais o sujeito-infantil como tal, que sejam um sujeito-outro
de si mesmos? e se estiverem enriquecendo-se de novas e
diversas identificações? Se os Ni nos o que fazem é aceitar,
revelar e operar a linha de força de outra carência infantil,
não mais advinda da perfeição imaginária daquela completude
mortal na relação especular com os/as adultos/as? Se estes
Ninos estiverem mostrando a miséria do infantil moderno e
nos apontando que não basta dar "o pão da infância" às/aos
famintas/os, mas que é preciso que deixemos de produzir
um mesmo tipo de fome? E que teremos, desta vez, de
parar de subir a ladeira do "sempre mais infância", do "sem-
3 5 S HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

pre mais verdade da infância" à qual séculos nos haviam


fadado, e inventar de A a Z uma relação e um modo de vida
com os infantis, uma cultura e uma ética, ainda sem forma e
sem forças definidas. Talvez, se o pintor pudesse hoje pintar
outro Las Meninas, na tela, poderíamos vislumbrar a silhue-
ta do Príncipe, fosse ele quem fosse, quem, com seu beijo
amoroso de estrangeiro, já esteja revivendo a menina, sub-
traindo-a da dependência ao olhar e ao código soberanos.
Outra aurora de nossas vidas? Será tudo isso o anún-
cio de uma nova aurora de nossas vidas, da qual não sentire-
mos tantas saudades assim? Afinal, sabe-se como, no fim do
Zaratustra, com a chegada do signo, quando das Zeichen
Kommt - Quando o Sinal chega -, Nietzsche (s.d.) distingue,
na maior proximidade, numa estranha semelhança e numa
última cumplicidade, na véspera da última separação, do
grande Meio-Dia, o homem superior {hõherer Mensch) e o
super-homem (Übermensch). O primeiro é abandonado ao
seu infortúnio com um último movimento de piedade. O
último - que não é o último homem - acorda e parte, sem
se voltar para o que deixa atrás de si. Queima o seu texto e
apaga as marcas dos seus passos. O seu riso explodirá então
em direção a um retorno que não terá mais a forma da
repetição metafísica do humanismo nem também, sem dú-
vida, o para-além da metafísica, a do memorial ou da guar-
da do sentido do Ser, a da casa e da verdade do Ser. Ele
dançará, fora da casa, esse esquecimento ativo, essa festa
cruel de que fala A genealogia da moral. Sem dúvida algu-
ma, apela-se a um esquecimento ativo do Ser.
Momento da despedida e de luta. Quem sabe seja
esse o momento da História da Infantilidade para nos despe-
dir de alguns espectros que constituíram nossa modernidade,
e o advento de uma luminosidade e de um modo de
enunciação que, finalmente, acabem por reconhecer na di-
A ÉTICA DA INFANTILIDADE 3 5 9

versidade a singularidade de nossos infantis? Talvez, pela


porção infantil de indivíduos modernos que ainda somos,
possamos prosseguir a forma de luta contra aquilo que nos
liga a nós mesmas/os e nos submete, deste modo, aos ou-
tros: lutas contra a sujeição, as formas de subjetivação e de
submissão de nossa subjetividade. Desse modo, talvez pos-
samos promover novos exercícios éticos de práticas de liber-
dade ao redor das formas pelas quais fomos subjetivadas/os
como indivíduos infantis, e que nos foram impostas há tan-
tos séculos. Nessas relações revividas - em que a consciên-
cia se torna modesta e o corpo é fruto do acaso e não de um
continuum - , o infantil contemporâneo parece lutar com ar-
mas da infância.
Nova história. Aqui, onde termina o infantil, no mes-
mo lugar, no mesmo limite, aqui onde termina um certo
conceito específico da infância, aqui, onde acaba uma de-
terminada condição histórica - ontológica, deontológica,
ascética, teleológica e escato-teológica - do infantil, preci-
samente aqui, uma nova história da infantilidade começa. O
infantil tem agora a oportunidade de anunciar-se, de prome-
ter-se, de recomeçar-se: como a humanidade outra do infan-
til, do outro infantil e do infantil como outro. Se a onto-teo-
arqui-teleologia aferrolhou, neutralizou e finalmente anulou
sua historicidade, trata-se de pensar uma outra forma de
história, talvez em outro registro do político.
De um político-trágico (cf. Nietzsche, 1974a,b): não
residente na angústia ou na tristeza, nem na nostalgia da
unidade perdida; tampouco resultado de uma sublimação,
de uma purgação, de uma compensação, resignação, de-
preciação, vingança, acusação, queixa, falta, condenação,
de um descontentamento, do ressentimento, da má cons-
ciência, do ideal ascético, do niilismo, das forças reativas, da
vontade de nada; nem solução moral da dor, do medo, da
3 6 D HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

piedade, da doença, do erro, da culpa, do crime, da respon-


sabilidade, do pecado; mas definindo-se na multiplicidade,
na diversidade da afirmação, na alegria do múltiplo, na ale-
gria plural, no riso alegre do ser do devir. Dança-jogo-sonho
anti-dialético e anti-religioso - leve, móvel, aéreo, ubíquo,
irresponsável, inocente, gracioso, pueril, irreverente - de
Dionísio-Criança com seus brinquedos, de Dionísio-Conste-
lação com Ariadne no céu como estrela dançante, de Dionísio-
Senhor-do-Eterno-Retorno, que reproduz o diverso no cora-
ção da síntese kantiana, repete a diferença pela vontade de
poder reunida às forças postas em relação pelo acaso, con-
traria a adiaforia, nega o estado terminal e o de equilíbrio,
opõe-se ao princípio da identidade.
Esquecimento do Ser. Afinal, Zaratustra já havia se
retirado da gruta, ardente e cheio de vigor, para viver sua
alvorada, o Grande Meio-Dia que subia, olhar para o ardente
sol matinal e escutar seu Leão rugir furiosamente. Naquele
ar e naquela luz existia a promessa ameaçadora da própria
desaparição da individualização infantil moderna, e da futu-
ra aparição de El Nino e de La Nina, que conservava o
reflexo de uma antiga e alegre e criadora e infantil beleza,
que se esquecera ativamente do Ser.
Entre a vigília e a véspera. Dever-se-á entender a
questão da verdade do Ser Infantil como o último sobressalto
do humano moderno? Dever-se-á entender nossa vigília como
guarda montada junto à morada do Ser, ou como despertar
para o dia que vem, na véspera do qual nos encontramos?
Há uma economia da vigília-véspera? Nós estamos talvez
entre essa vigília e essa véspera que são também os fins do
homem, da mulher, e de seus infantis. Mas quem, Nós?
A ETIDA DA INFANTILIDADE 36 1

RESUMO

Ontology Deontologie Ascética Téléologie Escato-


Teologia
(cthical (modc (sclf-forming (rcalisation du
substancc) d'assujcttis- activity) sujet moral)
sement)

Ethics figure Sofio Émilc Graciliano EI Nino/ La Noi, Nós,


(rapport Nina Nosotras/os,
à soi) Nous, Wc

La Donna Le Bon El Pequeno The-Girl-the-


Sauvage Escolar Little Boy-
and-The-
Monster

Estrategic Scxualization Pcdagogiza- Subordination Adultization


group tion dMdcntité

Figura dei Enfantin- Childish- Infantil- Infantilc-


conjunto scxuc cducatcd dcpcndcnte adulto
estratégico

Predominant Attachemcnt à Fondncss for Soumission à Submission to


subdveing sa idcntité your 1'Autrc thc Othcr
form idcntity

Ruptura da Plus-value Surplus- The-life-the- La-vita-la-


História da value death morte
Infantilidade
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WILSON, Adrian. The infancy of the history of childhood: an
appraisal of Philippe Aries. History and Theory, New
York, v. 19, n. 2, 1980. p. 133-53.
Editora Ü N ! } Ü !
_ _ livros editados _

FRQNIEIRAS-fDUCACAO
I - Por Uma Teoria da Pedagogia: Pesquisas Contemporâneas sobre o Saber
Docente
Clermont Gauthier, Stéphane Martineau, Jean-François Desbiens, Annie
Maio, Denis Simard

2 - 0 Tortuoso e Doce Caminho da Sensibilidade: um Estudo Sobre Arte e


Educação
Angela Maria Bessa Linhares

3 - Co-Educação Física e Esportes: Quando a Diferença É Mito


Maria do Carmo Saraiva

4 - A Escola no Computador: Linguagens Rearticuladas, Educação Outra


Mario Osório Marques

5 - Inter-Relação: A Pedagogia da Ciência - uma Leitura do Discurso


Epistemológico de Gaston Bachelard
Ilton Benoni da Silva

6 - História da Educação Brasileira: Formação do Campo


Carlos Monarcha (Org.)

7 - A Eticidade da Educação: o Discurso de uma Práxis Solidária/Universal


Alvori Ahlert

8 - Não Brinco Mais: a (des)Construção do Brincar no Cotidiano Educa-


cional
Maria Sílvia Pinto de Moura Librandi da Rocha

9 - Do Manifesto de 1932 à Construção de um Saber Pedagógico: En-


saiando um Diálogo entre Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira
Pedro Ângelo Pagni

10 - Economia Popular e Cultura do Trabalho- PuJügogia(s) da Produção


Associada
Lia Tiriba

I I - História da Infância Sem Fim


Sandra Mara Corazza
12 - Ética e Educação Para a Sensibilidade em Max Horkheimer
Divino José da Silva

13 - Educação nas Ciências: Interlocução e Complementaridade


Mario Osório Marques
14 - Pedagogia das Imagens Culturais: da Formação Cultural à Formação da
Opinião Pública
Amarildo Luiz Trevisan

15 - Relacionamento Alunos-Professores na Construção do Conhecimento


Arnildo Laurêncio Rockenbach

16 - Filosofia da Educação: um Estudo sobre a História da Disciplina no


Brasil
Elisete M. Tomazetti

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