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Corpo e Doença no trânsito

de saberes*

Cynthia Sarti

Enunciação do problema distintos campos do conhecimento, cujos olhares


transformam o corpo e a doença em objetos radi-
O corpo e a doença constituem objetos cujo calmente diferentes, porque construídos a partir
conhecimento não encontra um modo de aces- de referências epistemológicas distintas, como as
so único. Fenômenos sociais e culturais – como que distinguem o campo da biologia – fundado
qualquer fenômeno humano –, o corpo e a doen- na suposição da objetividade do conhecimento
ça, assim como a dor e o sofrimento, constituem empírico – e o campo simbólico da antropologia.
objetos de pesquisa que atravessam fronteiras dis- O problema evidencia-se, sobretudo, diante do
ciplinares por envolverem dimensões da existência fato de que esses estudos, mesmo na perspectiva
humana reivindicadas, cada uma delas, como pró- das ciências sociais, se desenvolvem frequente-
prias de áreas específicas do saber, corresponden- mente em espaços institucionais vinculados à área
do à fragmentação disciplinar que marca o campo da saúde, cuja organização segue a lógica dos sa-
científico, neste caso, entre as ciências humanas e beres biológicos.
as biológicas. Em seu estudo, aparece inevitavel- Num momento de fragilidade da instituciona-
mente o problema de como se relacionam esses lização das ciências sociais na área da saúde, Carra-
ra ressaltou que a discussão que propunha, à época,
* Agradeço a leitura atenta e os comentários de Patricia sobre a entrada da antropologia social nos domí-
Birman e Olgaria Matos à primeira versão do texto.
nios da biomedicina, transformando-a em “‘obje-
Artigo recebido em janeiro/2010 to’ de nossa própria ‘ciência’” (1994, p. 37), talvez
Aprovado em agosto/2010 interessasse apenas àqueles, como o autor, localiza-
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dos em espaços institucionais vinculados à saúde, no qual os saberes biológicos se constituem social-
portanto “híbridos” do ponto de vista da divisão mente como referência. Campo difícil, marcado
tradicional das disciplinas científicas. Hoje, diante por relações de poder instituídas pelo lugar social
da visível expansão institucional desse campo de que tem o saber biomédico em nossa sociedade.
estudos,1 juntamente com a abertura das ciências Este saber constitui a representação oficial do corpo
sociais para outras áreas (direito, direitos huma- humano no mundo ocidental contemporâneo, não
nos, segurança pública, relações internacionais, co- apenas no âmbito do “campo científico” – campo
municação, meio ambiente etc.), parece-me que a de lutas, de disputas, tanto em sua mecânica inter-
discussão sobre os termos da comunicação possível na, como em sua relação com a sociedade, como
entre distintos campos do conhecimento se apre- nos mostrou Bourdieu (1976) –, mas como refe-
senta como um problema não apenas de interes- rência cultural para toda a sociedade.
se geral das ciências sociais, mas necessário ao seu Recorrendo à clássica formulação de Althus-
empreendimento. ser (1985), segundo a qual a ideologia tem como
Este ensaio propõe-se a discutir o campo de marca interpelar o sujeito, em sua subjetividade, a
estudos antropológicos sobre o corpo e a doença, medicina, como aparelho ideológico, interpela-nos
recortando-o a partir da exigência, intrínseca a esse permanentemente, onde quer que estejamos. É ela
campo, de situar-se em relação aos saberes biológi- que, onipresente, vem nos dizer não apenas como
cos. Destaca o modo próprio como a antropologia curar nossas doenças ou aliviar nosso sofrimento,
trata as questões do corpo e da doença, clássicas mas, propriamente, como viver. Embora não seja
em seus estudos, mapeando-o a partir da forma única e isso se dê num campo de tensões e ambi-
pela qual o saber antropológico se relaciona com guidades, é a biomedicina que tem o domínio da
os saberes biomédicos nesse campo suposto inter- concepção de vida e de morte na sociedade ociden-
disciplinar. tal contemporânea.
A noção de “interdisciplinaridade” implica um Cumpre esclarecer que a “biomedicina” é enten-
diálogo entre disciplinas, cuja condição de possibi- dida, aqui, como o campo de saberes biológicos no
lidade está em manter definidas as diferenças disci- qual se baseia a medicina, envolvendo as instituições
plinares, delimitando claramente o lugar de onde e as práticas de saúde a ela associadas.2 O uso do ter-
se fala e as fronteiras que separam e aproximam mo coincide com as formulações de Canguilhem,
os saberes, na tensão que lhe é inerente, uma vez para quem a medicina é uma técnica e uma arte, “si-
que a tentativa de diálogo não consegue prescindir tuada na confluência de várias ciências, mais do que
de alguma, quando não muita, tensão na busca da uma ciência propriamente dita” (2006, p. 6). Este
equidade dos postulados de um campo diante do autor busca a relação entre as ciências (biológicas) e a
outro. Não se trata, portanto, de pensar a inter- técnica, desvendando os mecanismos pelos quais os
disciplinaridade a partir da possibilidade de uma postulados científicos (da fisiologia, em particular) se
identificação, mas, ao contrário, o encontro pos- constituem em discursos normativos, que impõem
sível supõe a separação prévia, implícita no reco- um padrão de normalidade, referência única para
nhecimento da alteridade. A identificação anula o pensar a doença (e, consequentemente tratá-la), que
outro, em lugar de reconhecê-lo. O primeiro mo- é vista como uma variação quantitativa – portanto,
vimento em direção ao diálogo é o da separação, a ser mensurada – do estado “normal” da saúde. Sua
para que o passo seguinte leve ao encontro possí- argumentação em favor de uma diferença qualita-
vel, se o for, entre um e outro (Sarti, 2003). tiva entre saúde e doença – já que o estado patoló-
Embora haja um amplo reconhecimento, na gico corresponde a um “valor negativo” em relação
área da saúde, da irredutibilidade dos fenômenos à “vida” – evidencia a historicidade das concepções
humanos à dimensão biológica, quando um antro- científicas do que se constitui (e institui) como nor-
pólogo toma como objeto de reflexão o corpo, a mal e patológico e, assim, permite relativizar esses
dor, o sofrimento, a saúde e a doença, ele terá um conceitos, abrindo caminho para que a experiên-
enfrentamento com um campo de conhecimentos cia clínica e o discurso do doente – e não apenas a

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“ciência” – possam dizer da doença. Assim, do pon- Assim, se entre as questões em torno das quais
to de vista de uma ciência que informe a clínica, se debate a antropologia contemporânea está o
segundo Canguilhem: questionamento sobre o lugar a partir do qual o
antropólogo vê, escuta, fala e escreve, problemati-
É muito importante não confundir a doença com zando o antropólogo como autor – questão na qual
o pecado nem com o demônio. Mas só porque o Geertz (1989) é um nome emblemático – ou, ain-
mal não é um ser não se deve concluir que seja um da, o que Clifford (1983) denomina a “autoridade
conceito desprovido de sentido, ou que não existam
etnográfica”, esta questão recoloca-se quando a an-
valores negativos, mesmo entre os valores vitais; não
se pode concluir que, no fundo, o estado patológico tropologia tem o corpo, a saúde e a doença como
não seja nada mais do que o estado normal (2006, objetos, configurando-se de outra maneira.
p. 68). A noção de autoridade etnográfica supõe que
quem detém a autoridade do conhecimento é o an-
[...] o conhecimento científico, embora invalidan- tropólogo, diante de um objeto cujo saber é social-
do qualidades que fez aparecer como ilusórias, nem mente desautorizado e deslegitimado; autoridade
por isso as anula. A quantidade é a qualidade nega- essa que se constituiu como tal, em face do mundo
da, mas não a qualidade suprimida (Idem, p. 73). não-ocidental, a partir da emergência da antropo-
logia como parte das Ciências Humanas no final
Para o antropólogo, definir-se dentro deste cam- do século XIX e início do século XX, tendo como
po do conhecimento, confrontando saberes, não é contexto histórico o colonialismo europeu. O ques-
algo que lhe é estranho, por responder ao procedi- tionamento dessa autoridade, hoje, no contexto do
mento, intrínseco à disciplina, de questionar os ter- pós-colonialismo, no interior da própria disciplina,
mos em que se dá a relação entre o pesquisador e o deve-se à associação do discurso antropológico com
pesquisado, o que nos faz sempre perguntar sobre o poder, herança do contexto do mundo europeu
o estatuto de nosso conhecimento em face do nosso que marcou a fundação da disciplina, que define a
objeto de pesquisa. supremacia do saber ocidental sobre outras formas
Como a antropologia constituiu-se como dis- de conhecimento. Muita controvérsia e imprecisão
ciplina científica que estuda sociedades diferentes surgiram, entretanto, disso que é reconhecido como
daquela à qual pertencia o antropólogo, o mundo um postulado evidentemente válido para explicar
não-ocidental, a discussão das condições e dos ter- o surgimento da disciplina, mas não para acompa-
mos em que se dá a relação entre o antropólogo e nhar seu próprio desenvolvimento crítico.
a cultura que ele estuda se torna um problema não A questão ética e epistemológica que está pos-
só ético e metodológico, como epistemológico. O ta para o antropólogo, no que se refere ao estatu-
saber antropológico constrói-se precisamente den- to do saber antropológico, é a de buscar o lugar
tro dessa problemática. Para validar a si mesma, a possível de reconhecimento e legitimidade para o
antropologia considera não apenas o diálogo entre discurso de seu “objeto” transformado em sujeito,
o estudioso e seus pares, mas os enunciados válidos atribuindo-lhe um estatuto de saber, pensando o
na antropologia se fundam, ainda, nas condições de discurso como estrutura que inscreve não apenas
possibilidade do diálogo do pesquisador com seu o sentido da palavra enunciada, mas também o
objeto de estudo, tal como foi ressaltado por Roua- das práticas e das relações nas quais se enuncia.
net (1990), em um texto em que precisamente dis- Essa questão é particularmente relevante no campo
cute ética e antropologia. da saúde, pelo não reconhecimento do discurso do
Quando se trata de estudar o corpo, a saúde e doente pelo discurso biomédico. Reconhecer a con-
a doença, o objeto de investigação torna-se, direta dição de sujeito do outro e a legitimidade de seu
ou indiretamente, o próprio campo científico que discurso, entretanto, não se confunde com a (ingê-
produz a verdade sobre o que é o corpo, a saúde e a nua) reivindicação de uma suposta simetria entre
doença no mundo ocidental, ou seja, a biomedici- os saberes, questão que transcende o lugar do en-
na e seus agentes. contro do antropólogo com o nativo, na pesquisa,

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e é problemática precisamente pelos termos em que ressalta o que chamou de universalismo da socio-
se deu e se dá historicamente este encontro. A esse logia francesa, pela estreita colaboração entre esta
respeito, remeto à argumentação de Duarte: e todas as correntes do pensamento que tivessem
o homem ou o estudo do homem como objeto.
Hoje veicula-se com frequência a denúncia da Assim, esta sociologia, diz ele, “nunca se conside-
disposição interpretativa como o indício de um ra uma disciplina isolada, trabalhando dentro de
autoritário privilégio do observador sobre a ex- seu próprio domínio, mas, sobretudo, um método
periência nativa. A posição do projeto antropo- ou uma atitude frente aos fenômenos humanos”
lógico não tem como não ser assimétrica, uma (1947, p. 515).
vez que as disposições culturais que o suscitam Pode-se reter esta ideia, voltando a um texto
são diferentes daquelas que inspiram ou inspira- anterior à polêmica atual sobre o estatuto do saber
ram a vida de todas as demais ordenações sim- nativo ante o antropológico; para falar em outros
bólicas emergentes no mundo. Reconhecer essa termos, do método antropológico como uma ma-
assimetria “situacional” não significa, porém, neira de olhar o mundo, configurando não apenas
assumir necessariamente alguma preeminência uma perspectiva, mas também uma atitude perante
ontológica ou epistemológica sobre os “nativos” os . fenômenos humanos. Pretende-se, aqui, argu-
(inclusive os internos a nossas próprias socieda- mentar que o estudo antropológico, dentro do cam-
des, populares ou eruditos, subordinados ou do- po dos estudos sobre o corpo, da saúde e da doença,
minantes, marginais ou hegemônicos). A ideia exige que seu olhar – a definição de sua perspecti-
de que seja possível, por outro lado, conceder va teórica e metodológica – venha acompanhado,
às concepções do outro um lugar de mais verda- ao mesmo tempo, de uma atitude do antropólogo
de – com maior coerência cosmológica ou au- frente aos saberes biológicos, que permita estabe-
tenticidade vivencial, por exemplo – acaba por lecer os termos da comunicação possível entre an-
expressar uma sofisticada e rematada arrogância, tropologia e biomedicina, atitude necessária diante
como se de nós, ainda seus observadores e des- do lugar “de mais verdade” ocupado pelos saberes
critores, dependessem a revelação e chancela de biológicos neste campo. Isso significa dizer que há,
tal dignidade ontológica (2008, p. 22). implícita, uma dimensão política específica a se en-
frentar no desenvolvimento dos estudos antropoló-
O antropólogo da saúde, no que se refere à gicos, e das ciências sociais de modo geral, dentro
relação com o grupo pesquisado, enfrenta uma do campo da saúde. Dimensão que se converte em
situação singular. Ao contrário do que geralmen- problema epistemológico, na medida em que de
te ocorre com seus pares, ele tem que se enfrentar seu enfrentamento depende a própria construção
com o fato de que o lugar de autoridade, no campo do saber antropológico, em seus próprios termos,
interdisciplinar da saúde, não é o do saber antro- de forma a fazer valer a análise antropológica como
pológico, mas o das ciências biomédicas. Assim, forma de conhecimento, em si, do corpo, da do-
é a partir de um lugar desautorizado perante seu ença e da saúde – e não como um conhecimento
objeto de estudo que o antropólogo se situa neste subsidiário, de menor valor heurístico.
campo. A busca de reconhecimento entre os sabe- A partir do problema assim estabelecido, pode-
res inverte-se. Converte-se em estratégias para fazer se definir um eixo de diferenciação para se entender,
valer os pressupostos epistemológicos relativistas em linhas gerais, o campo da antropologia do cor-
da antropologia num campo referido pelo saber po e da doença, recortando-o pela posição em que
empírico, fundado no pressuposto da objetividade se colocam diante das ciências biológicas. Sob este
do conhecimento, das ciências biológicas, tomado prisma, pode-se falar em duas perspectivas, que cor-
como referência única na validação do conheci- respondem a duas vertentes dentro da antropologia
mento científico.3 que estuda o corpo, a saúde e a doença: a “antropo-
Vale recorrer a uma ideia presente em um texto logia médica”, subsumida na lógica do saber biomé-
de Lévi-Strauss, “A sociologia francesa”, no qual ele dico; e a “antropologia da saúde” (ou da doen­ça),

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que opera a partir de uma noção de cultura que se imagens reificadas do outro, como nas narrativas
configura como outra referência epistemológica em coloniais.
relação à biomedicina. A própria nomenclatura, na qual o termo “mé-
dica” aparece como adjetivo, ao lado de “antropolo-
gia”, substantivo, é sintomática de uma relação em
A “antropologia médica” que um dos campos está subsumido ao outro. Essa
perspectiva, no Brasil, é mais difundida nos espaços
A denominada “antropologia médica” (ou “et- institucionais da saúde e nas publicações desta área,
nomedicina”) tem sua matriz principal na antro- pelas óbvias implicações práticas e políticas que tem
pologia norte-americana, mas também na anglosa- o enfrentamento dessa assimetria.5
xônica, embora esteja presente de forma geral nos É comum que, nas instituições de saúde, o an-
estudos sobre saúde e doença em vários países. Para tropólogo se ocupe das “outras” formas culturais
situar essa vertente, pode-se dizer que estão, entre de pensar o corpo, a saúde e a doença, como se
suas principais referências de origem, os trabalhos isto, por si só, garantisse uma contribuição antro-
de Good (1994), Kleinman (1980, 1995), Scheper- pológica à área da saúde. Como se a antropologia
Hughes e Lock (1987), autores que denominam, se definisse pelo seu objeto e não pelo problema
eles próprios, seu campo de trabalho como sendo a que a constitui como campo disciplinar e como
“antropologia médica”.4 método de investigação, que é a análise dos fenô-
Correndo o risco de simplificação, inevitável menos humanos – quaisquer fenômenos humanos
quando se classificam trabalhos diversos dentro de – como construção cultural, o que implica que o lugar
uma categoria comum, pode-se dizer que se tra- da alteridade não pode se fixar, porque é sempre
ta, genericamente, de uma antropologia, de base uma questão de perspectiva. Desse risco Lévi-
empírica, que analisa a diversidade em torno das Strauss (1962) nos alertou, já no começo dos anos
concepções de corpo e de doença, elaborando o de 1960, no famoso texto sobre a suposta crise da
que pode ser considerado um rico inventário des- antropologia em face do desaparecimento das so-
sa variação cultural, situando-se por referência ao ciedades ditas “primitivas”.
sistema biomédico oficial e, frequentemente, a seu Perpassa pelo desencontro entre antropologia e
serviço. Destaca-se seu caráter instrumental em biomedicina uma dificuldade – base do etnocentris-
face das necessidades do sistema médico oficial. A mo – que diz respeito ao fato de que a biomedicina,
antropologia ocupa, nessa perspectiva, o lugar do ocidental e contemporânea, é a referência interna-
tradutor das diferentes linguagens culturais em ter- lizada (inconsciente, portanto) para os cuidados de
mos inteligíveis para o campo biomédico, e vice- nossas próprias dores e sofrimentos. Nessa linha,
versa.As noções de corpo e doença alheias às defi- Clavreul (1978) chama a atenção, em sua análise da
nições da biomedicina têm, aqui, o estatuto de um “ordem médica”, para a dificuldade de crítica a esta
“outro”. Permanecem no registro do exótico em ordem, uma vez que, como sujeitos culturais, se-
relação às referências biomédicas. Estas continu- gundo o autor, “cada um de nós é solidário demais
am constituindo-se como lugar absoluto, por sua com o discurso médico a ponto de não abraçar de
naturalização, numa perspectiva que, mantendo-se antemão suas razões”.6
num plano empírico, reduz e encapsula a cultura O não enfrentamento desse etnocentrismo,
como fenômeno particular. Assim, essa antropolo- que é, como cultura, da ordem do inconsciente,
gia, ainda que busque situar-se em relação, cami- traduz-se em uma busca ingênua de complementa-
nha paralela ao conhecimento biomédico, andando ridade, sem levar em conta que o que diferencia a
atrás, pode-se dizer, uma vez que a noção de cul- antropologia e a biomedicina não é o objeto, mas o
tura, essencializada, não marca efetivamente uma olhar sobre o objeto. Assim, a antropologia médica
alternativa teórica às análises empiricistas sobre cor- incorpora-se à biomedicina e torna-se o que Le Bre-
po, saúde e doença que abra a possibilidade de um ton (2001) chamou de “antropologia residual”, por
encontro de perspectivas diversas. Há, implícitas, meio da tentativa conciliatória de dividir objetos

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entre uma e outra, eludindo a tensão que alimenta das formulações da antropologia médica norte-
a busca de reconhecimento dos distintos saberes. americana, sobre as doenças chamadas “nervosas”:
Quando não se privilegiam as “outras” culturas,
numa redutora divisão de atribuições disciplinares, Perpassam esses trabalhos não só a concepção
divide-se o que diz respeito à cultura ocidental, pela difusa e mais grosseira de que os sujeitos civi-
qual se referencia a biomedicina, dentro da mesma lizados são os que operam com noções claras,
perspectiva simplificadora. Desta vez, o “social” é distintas, racionais, do que é o corpo e do que
considerado atribuição da antropologia (e da so- é espírito ou mente (por oposição aos sabe-
ciologia), enquanto o “individual” cabe aos saberes res dos nervos, que confundiriam esses planos
biológicos ou psicológicos. classificatórios), mas também a ideia de que
O fundamento dessa divisão é a identificação, as categorias psicologizantes contemporâneas
que percorre esse campo, entre o social e os fenô- expressam a realidade do que se passa com os
menos “coletivos” como o objeto próprio das ciên- seres humanos, enquanto sistemas como o do
cias sociais, enquanto a biomedicina e a psicologia, nervoso são – apenas eles – “culturais” ou “sim-
ou a psiquiatria, teriam como objeto o “indivíduo”, bólicos” (Duarte, 1993, p. 51).
como se o este não fosse, tanto quanto a coletivida-
de, uma categoria social. Reifica-se o social como
coletivo, transformando-o em “coisa”, atomizada A antropologia da saúde
num corpo coletivo, como um organismo, seguin-
do fielmente o positivismo do Durkheim de As re- A segunda vertente, que pode ser denominada
gras do método sociológico. Ambas as dimensões – antropologia da saúde (ou antropologia da doen-
social e individual – são reificadas e naturalizadas, ça), está vinculada, sobretudo, a uma tradição que
desconsiderando, de um lado, a dimensão de cons- remonta a Marcel Mauss e tem na França o palco
trução histórica e cultural da categoria indivíduo principal de sua origem e desenvolvimento (Augé,
(Dumont, 1993) e, de outro, a complexidade do 1986; Augé e Herzlich, 1984; Laplantine, 1991; Le
social como categoria simbólica. Breton, 2001). Augé (1986) argumenta, em favor
Assim concebido seu objeto, a antropologia desta vertente, que há apenas uma antropologia,
encontraria seu lugar no âmbito da saúde pública, que se atribui distintos objetos empíricos (saúde,
da medicina social ou da saúde coletiva, uma vez doença, religião, parentesco), sem se dividir em
que é ali o espaço reservado para se tratar do “so- “subdisciplinas” e pergunta se esses diferentes obje-
cial” na área da saúde, fazendo do antropólogo um tos de observação do olhar antropológico, ao térmi-
profissional estranho aos outros âmbitos da saúde. no de seu esforço de construção, não constituíram
Essa antropologia “médica” confere, assim, à antro- um único objeto de análise.
pologia o lugar do saber sobre o outro – exótico –, A questão é pertinente. Trata-se, como pro-
deixando a biomedicina fora do alcance da análise põe Augé, de pensar não apenas na contribuição
cultural. da antropologia para o campo da saúde, mas em
Augé (1986), há tempos, chamou a atenção como a antropologia da saúde e da doença pode
para a relativa fraqueza teórica da antropologia mé- ajudar a (re)pensar o objeto da antropologia. Está
dica, que a impede de levar adiante a contribuição em jogo não apenas o inventário etnográfico das
da disciplina para o campo da saúde, uma vez que distintas concepções de saúde e doença e suas
gira em torno de questões já superadas em sua dis- consequências práticas para o tratamento, que
cussão interna, deixando de pensar nos pontos em alimenta a “antropologia médica”, mas também
que o estudo antropológico da doença pode reno- a questão teórica que permeia esses estudos num
var a problemática antropológica. campo em que a noção de cultura se enfrenta, de
Para sintetizar a crítica a essa perspectiva, reme- forma radical – envolvendo uma atitude, ou pos-
to ao trabalho de Duarte (2004) e, em particular, à tura política –, com um saber que lhe nega a razão
sua resenha, publicada na revista Physis a respeito de ser, postulando a primazia da dimensão bio-

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lógica dos fenômenos em pauta, quando não sua de órgãos, cujas dificuldades, que transcendem as
exclusividade. questões de ordem técnica, revelam os conflitos e
Comparada à perspectiva anterior, a antropolo- as injunções morais de que se reveste esta prática
gia da saúde, fiel à tradição relativista da disciplina, cultural.
considera todos os sistemas médicos, bem como to- Essa foi, assim, uma mutação ontológica deci-
dos os discursos sobre o corpo, a saúde e a doen- siva no mundo ocidental, em sua concepção da pes-
ça, como categorias culturais, qualquer que seja sua soa, que possibilita e abre o caminho para o desen-
procedência, pelo simples fato de que eles existem volvimento da anatomia e da fisiologia, nas quais se
e dedica-lhes o mesmo interesse (Laplantine, 1999). baseia a biomedicina. Segundo Le Breton (2001), é
Em muitos sentidos, retornam a Marcel Mauss, para esta dualidade entre corpo e pessoa que caracteriza,
quem não existe assunto nobre e assunto indigno então, a concepção de corpo na modernidade e que
para a ciência. A “ciência” torna-se o objeto de estu- se prolonga até a contemporaneidade.
do etnográfico. Trata-se de não excluir do campo da Se a concepção de corpo mais comumente
análise antropológica, de antemão, qualquer objeto e reconhecida em nossa cultura (ocidental) é a que
tratá-lo como categoria cultural, o que implica esca- deriva do conhecimento anátomo-fisiológico, foi
par à lógica das hierarquias do mundo social. necessária, como condição de possibilidade deste
Se a antropologia aceita voltar-se apenas para conhecimento, a construção de uma noção da pes-
o que está fora da biomedicina, naturalizando-a, soa cindida, separada de seu corpo, que passou a ser
ou privilegia aquilo que constitui o “erro”, enfim, concebido apenas em sua dimensão biológica. O
a derrota, nesse campo tomado como categoria ab- corpo, separado da pessoa, é pensado como um atri-
soluta, termina por reproduzir as divisões constitu- buto que, hoje, dados os recursos da biotecnologia,
tivas do universo simbólico ocidental. Entre essas pode inclusive ser modificado. Aqui, “o corpo é as-
divisões está a que marca este mundo desde, pelo sociado a ter um corpo e não a ser um corpo”, como
menos, o Renascimento e sustenta as ciências bio- mostra Le Breton (2001) em sua análise do corpo
lógicas, portanto a biomedicina, como saber e prá- criado pela anatomia, a partir do Renascimento.8
ticas: a cisão entre a pessoa e o corpo humano, cisão É disso que trata, então, a antropologia da saú-
que, na mesma medida que se realiza e concretiza, de: da noção de pessoa, a concepção do humano,
evidencia as ambiguidades e as tensões morais que o anthropos, construção necessariamente social e
sempre a envolveram. histórica, que está pressuposta nas diversas con-
Segundo Le Breton (2001), essa cisão é an- cepções e práticas que envolvem o corpo, a saúde
terior ao dualismo cartesiano, que separa corpo e e a doença, em qualquer âmbito da vida social, em
espírito. Este a concretiza e consolida, no século qualquer tempo ou espaço. O objeto da antropo-
XVII, dentro da concepção mecanicista do corpo logia da saúde, portanto, não se constitui pelo que
como um organismo, mas a raiz histórica, a fun- é o corpo, a saúde e a doença, mas pelo que sujei-
dação, desta separação está no desenvolvimento da tos, em cultura, pensam e vivem o que é o corpo, a
anatomia, com base na prática oficial de dissecação saúde e a doença. Como antropólogo, o estudioso
de cadáveres a partir do começo do século XV. Para coloca-se em perspectiva diante de seu objeto. Lon-
este autor, com os anatomistas, em particular com ge de constituir-se em realidade objetiva, o que é o
Vesalius, cuja obra, De humani corporis fabrica, é corpo depende, sempre, da perspectiva – de dentro
de 1543, nasce uma distinção implícita na episte- e de fora, de cima, de baixo – de quem o carrega
me ocidental entre o homem e seu corpo. Ali está consigo, de quem o olha, do que se vê...
a fonte do dualismo contemporâneo, que visa ao É compreensível, assim, a influência decisiva
corpo isoladamente, numa espécie de indiferença de Marcel Mauss neste campo de estudos, sobre-
em relação à pessoa que o habita, que marca tão tudo por suas formulações sobre o caráter social
claramente a biomedicina até os dias de hoje.7 da noção de pessoa, dos sentimentos ou dos usos
Entre as expressões mais evidentes dessa cliva- do corpo, as “técnicas corporais”. Não só Mauss,
gem, no mundo contemporâneo, está o transplante mas a Escola Sociológica Francesa de modo geral

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(Émile Durkheim, Robert Hertz, entre outros) humana, sim, é corporal. Nascemos, crescemos,
que, ao afirmar como objeto das ciências sociais adoecemos e morremos num corpo. Como diz Le
“fatos humanos” estudados até então pela medicina Breton (2001), existir significa mover-se corporal-
e pela psicologia, como corpo, sentimentos, morte mente em um determinado espaço e tempo. No
e doença, foi pioneira em dar ferramentas teóricas entanto, a forma como cada pessoa vive sua reali-
que permitissem tornar inteligíveis esses fenômenos dade corporal e concebe o corpo que habita é tribu-
como fatos sociais e culturais. tária da noção de pessoa, própria à coletividade da
Pode-se pensar no conhecido estudo de Hertz, qual faz parte.
A preeminência da mão direita, originalmente publi- Quando se fala, no discurso biomédico, em dor
cado em 1909, como emblemático de uma perspec- corporal, a tendência é associá-la a um fenômeno
tiva de relação entre os saberes biológicos e sociais. neurofisiológico. Admite-se que existam “compo-
O autor considera as formulações de Broca sobre a nentes” sociais ou psicológicos na vivência da dor.
anatomia humana, segundo as quais há uma cone- Pensa-se, entretanto, em uma existência corporal
xão entre a preeminência da mão direita e o maior prévia e autônoma – que configura a noção de cor-
desenvolvimento do homem no hemisfério cerebral po biológico –, à qual se agregam fatores psíquicos
esquerdo, que enerva os músculos do lado opos- e culturais. Ao contrário desta proposição, o corpo,
to. Ele cita Broca,9 que afirma : “somos destros na na perspectiva antropológica, não existe fora do re-
mão, porque canhotos no cérebro”.10 Hertz inverte gistro simbólico, nem lhe antecede. O mundo social
a questão e pergunta: por que não dizer que somos e cultural não atua ou intervém sobre um corpo pre-
canhotos no cérebro, por que destros na mão? existente, tomado, neste registro, como “natureza”.
Hertz pretende mostrar que, embora exista O corpo constitui-se como realidade humana pelo
uma base anatômica para esta assimetria, a desteri- significado a ele atribuído pela coletividade, signifi-
dade não é uma necessidade natural, mas um ideal. cado que é tributário, como já foi dito, da noção de
Para ele, a diferença em valor e função entre os dois pessoa (Sarti, 2001, 2003).
extremos do nosso corpo não pode ser explicada Não há uma existência corporal prévia, ou seja,
pela anatomia, porque tem características de uma uma ordem natural que anteceda à intervenção cul-
instituição social, portanto sua explicação pertence tural. O corpo faz-se humano porque está constitu-
à sociologia. Conclui, então, que, se não houvesse tivamente inscrito em um sistema simbólico.
a assimetria orgânica, “ela teria que ser inventada”, A realidade objetiva atribuída ao corpo pelas
porque corresponde a um valor social. ciências biológicas, que o predispõe à observação
A atualidade desta afirmação de Hertz apare- experimental, é, em si, uma construção simbóli-
ce claramente quando se pensa nas características ca, necessária ao desenvolvimento dessas ciências,
e nas definições de corpo, ou de partes deste, que como foi demonstrado por Canguilhem (2006) em
nossa sociedade “inventa” como justificativas mo- sua crítica às noções biomédicas de normal e pa-
rais diante, por exemplo, das novas possibilidades tológico, antes mencionada. Tal como as ciências
propiciadas pela biotecnologia, em particular, em biológicas concebem o corpo humano como rea­
face do envelhecimento, ou outros processos cor- lidade física, objetiva, separada do sujeito que o
porais, como a reprodução (assistida), o transplante habita, a literatura antropológica, simetricamente,
de órgãos etc. brinda-nos com inúmeros exemplos etnográficos
que mostram distintas formas de pensar a estrutura
e o funcionamento do corpo e, sobretudo, de de-
O corpo limitar as fronteiras do corpo em relação ao mun-
do que o cerca, o que recoloca a questão do corpo
A experiência propriamente fisiológica do cor- como limite entre mim e o outro, tal como posta
po, portanto, para ser compreendida, requer a refe- no mundo ocidental.
rência às categorias sociais que lhe dão sentido. O Os estudos ameríndios são referência funda-
corpo é constitutivamente simbólico. A existência mental para a antropologia do corpo e da saúde, por

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Corpo e Doença no trânsito de saberes  85

demonstrarem a descontinuidade entre os mundos “eu”, afirma: “É o corpo que desempenha esse pa-
humano, animal e vegetal como uma construção pel” (Durkheim, 1989, p. 331).
cultural, o que tem implicações decisivas para sua A noção de um “eu”, socialmente identificado
concepção e formas de lidar com a existência cor- pela categoria “indivíduo”, delimitado por sua exis-
poral (Descola, 1996, 2005; Lima, 2002). Esses tência corporal, é uma aparição recente, mesmo na
dados etnográficos são particularmente relevantes história do mundo ocidental. Categoria social, his-
para uma antropologia do corpo, por permitirem toricamente constituída entre os anseios modernos
desconstruir um dos pilares fundamentais que sus- de liberdade e autonomia, o indivíduo contrapõe-
tentam a noção de corpo no mundo ocidental, que se às amarras do mundo tradicional, onde está sub-
é a dualidade natureza e cultura, associada à supo- merso na coletividade. Assim, segundo Dumont
sição, que dela decorre, de que o corpo biológico (1993), o indivíduo constitui-se em um valor.
faz parte da ordem da natureza. São dados que per- Como sabemos, a partir do trabalho de Du-
mitem relativizar o conhecimento biomédico, em mont, o triunfo da ideologia individualista, que
comparação com outros sistemas simbólicos, de sustenta esta representação da pessoa, foi historica-
modo a desfigurar o estatuto de verdade adquirido mente expresso, no século XVIII, pela Revolução
pela biomedicina no que se refere ao conhecimento Francesa na Declaração dos Direitos do Homem e
sobre corpo, saúde e doença. do Cidadão. Esse processo consolidou a noção mo-
No âmbito da crítica à ideia do corpo natura- derna de corpo e de pessoa, ancorando sua repre-
lizado da biomedicina, destacam-se, ainda, os es- sentação de si e seu lugar no mundo social.
tudos de gênero, que problematizam a construção A análise da noção de indivíduo, como catego-
social do corpo do homem e da mulher. Dentro da ria social, configurando um valor da modernidade,
questão em pauta – os termos da comunicação pos- está particularmente presente nos estudos antropo-
sível entre antropologia e biomedicina – remeto ao lógicos que tomam como objeto a saúde mental,
trabalho de Laqueur (2001), cuja pesquisa eviden- portanto a psiquiatria e os saberes psicológicos em
cia que a diferenciação entre os sexos, na história geral. Destaco a definição, elaborada por Russo, dos
da medicina, é datada: define-se no século XVIII, “três sujeitos da psiquiatria”, que marcam a tensão
quando, segundo o autor, se inventaram “os dois em torno do indivíduo moderno do qual trata esse
sexos para fundar o gênero”, base para a criação da ramo da medicina: o sujeito biológico, “determina-
ginecologia como especialidade médica dirigida à do por sua natureza biológica”; o sujeito cidadão,
mulher. Como demonstra, ainda, uma extensa lite- “tolhido pelas injunções vindas da sociedade (pela
ratura, tratava-se de consolidar um modelo e uma opressão sociopolítica)”; e o sujeito da singularida-
moral de família por meio do controle disciplinar de, “singularizado por seus conflitos intrapsiquicos”
do corpo e da sexualidade da mulher (Rodhen, (1997, p. 1).
2001). Assim, é nas tensões envolvidas na própria ideia
Ainda no âmbito da necessidade de estranha- moderna de sujeito/pessoa/indivíduo que se pode
mento em relação às categorias sobre as quais se igualmente localizar a doença, diante de uma cisão
assenta nosso sistema cultural, além da noção de entre corpo e pessoa que, embora corresponda à re-
“natureza”, a noção de “indivíduo” é outro dos ei- presentação dominante da existência corpórea no
xos – críticos – em torno dos quais gira a discussão mundo ocidental, jamais pode eludir as ambiguida-
de uma antropologia do corpo. des, os conflitos e as incertezas que a constituem.
Corpo e indivíduo são noções que caminham
juntas na cultura ocidental moderna e contempo-
rânea. A noção atomizada do “indivíduo” como A doença
representação do “eu”, na sociedade ocidental mo-
derna, valeu-se do corpo. Como lembra Le Breton Se a noção de corpo supõe a noção de pessoa,
(2001), Durkheim, ao mencionar a necessidade em qualquer sociedade, a concepção de doença é
de um “fator de individuação” na constituição do tributária de ambas essas noções. Tal como a con-

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cepção de corpo, os sistemas classificatórios das do- Canguilhem fez a crítica da objetividade da
enças articulam-se ao universo social que o constrói biologia a partir da experiência concreta do “ser
e o exprime. São construções simbólicas. vivo”, abrindo, segundo Macherey, uma perspecti-
Entre a enorme variedade de representações da va “fenomenológica” do jogo da vida, apreendido
doença, etnograficamente conhecidas, envolvendo em sua dimensão biológica e no qual se origina a
diversos modelos etiológicos e terapêuticos, é possí- normatividade essencial da vida. Canguilhem atri-
vel distinguir, segundo Laplantine (1991), duas ten- buía ao ser humano um estado paradoxal (Roudi-
dências, não necessariamente excludentes: o modelo nesco, 2007), o de ser permanentemente atingido
ontológico, que corresponde às medicinas centra- pela doença, que se inscrevia na normatividade da
das na doença, baseadas em modelo fisicalista (está vida, polarizada entre valores positivos e negativos.
aqui pressuposta a ideia de um “ser” da doença); e Foucault, por outro lado, fala de um nascimento
o modelo relacional ou dinâmico, que corresponde histórico, situado no desenvolvimento do processo
às medicinas centradas no doente, baseadas em um social e político, fazendo, então, uma “arqueologia”
modelo que considera a dinâmica interna do orga- das normas médicas, vista do lado do médico e, por
nismo como um todo, em sua relação com o meio. trás dele, das instituições médicas, e não do doen-
Considerando-se essa classificação, dentro da te. Canguilhem voltou sua atenção para o doente
concepção de corpo predominante na sociedade que, para Macherey, é o “grande ausente” na obra
ocidental contemporânea – que separa corpo e de Foucault. Para este, a doença está submetida ao
pessoa –, o modelo que lhe corresponde é o onto- “olhar médico”, um olhar normatizado e normatiza-
lógico. Em um corpo alheio ao sujeito, a doença dor. Aqui, Foucault reproduz a análise do olhar vigi-
lhe é estranha, constituindo-se em entidade autô- lante, controlador, absoluto, que persegue sua obra,
noma, que fala por si mesma. Assim, outra episte- tendo sua expressão mais clara em Vigiar e punir.12
me, distinta daquela na qual se funda e se sustenta Assim, ainda segundo Macherey (1993), o con-
a medicina ocidental contemporânea (biomedici- ceito de experiência aparece em ambos, mas com
na), implica igualmente uma outra concepção de significados diferentes. Não se trata, para Foucault,
pessoa, diversa em relação àquela que cindiu o ser de uma experiência do ser vivo, mas uma experiên-
humano entre corpo e pessoa, autonomizando o cia histórica, anônima e coletiva, de onde surge a
corpo em corpo biológico, matéria a ser desvenda- figura inteiramente desindividualizada da clínica. A
da, pela experimentação. experiência clínica é construída como norma, que
Canguilhem (2006) e Foucault (1977) estão se dá numa estrutura triangular: de um lado, está o
entre os filósofos que mais radicalmente fizeram a doente – objeto olhado, objeto do olhar –, de ou-
crítica da pretensão de objetividade do positivismo tro, o médico – membro de um “corpo”, o “corpo
das ciências biológicas. Para além da evidente afini- médico”, reconhecido como aquele que tem a com-
dade entre ambos,11 Macherey (1993) chama a aten- petência para fazer-se sujeito desse olhar: o “olhar
ção para as diferenças – ou, mesmo, oposições – no médico”. A terceira posição é a da instituição, que
ponto de vista desses dois autores, relevantes para legitima socialmente a relação entre o objeto do
se pensar os caminhos possíveis de seu diálogo com olhar e o sujeito que olha.
a antropologia a partir dos problemas que estão em Para realizar essa forma histórica, a priori, que
jogo na leitura paralela das duas obras: O normal se antecipa à vivência concreta da doença, negligen-
e o patológico, cuja versão original é de 1943, e O cia-se não apenas o doente, mas também o próprio
nascimento da clínica, de 1963. Ambas abordam a médico. É essa a estruturação histórica que estabe-
questão da relação intrínseca da vida com a morte, lece a relação entre o ser vivo e o ser mortal. O ca-
ou a vinculação do ser vivo ao ser mortal, tal como dáver aberto e exteriorizado pela dissecação revela a
ele a vivencia a partir da experiência clínica da do- verdade interior da doença, evidencia a relação do
ença, mas o fazem de formas diferentes. A diferen- médico com o doente: não há sujeitos que sofrem,
ça fundamental entre os dois reside naquilo para o há estruturas que levam ao sofrimento. Nas condi-
que cada olha. ções em que se realiza a experiência clínica, a mor-

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te, e também a vida, deixam de ser um “absoluto não pode prescindir da experiência do doente, que
ontológico e existencial” e, ao mesmo tempo, ad- Lériche chegou à relevância do lugar do doente no
quirem uma dimensão epistemológica: “por para- saber sobre a doença. Dessa forma, é a Lériche que
doxal que isso possa parecer, ela [a morte]‘ilumina’ Canguilhem presta tributo em seu estudo sobre o
a vida” (Macherey, 1993, p. 291). normal e o patológico, em particular quando afir-
Para Canguilhem (2006), a experiência fun- ma: “Sempre se admitiu, e atualmente é uma rea-
damental no conhecimento sobre a doença é a do lidade incontestável, que a medicina existe porque
doente. O conceito central para sua análise é a de há homens que se sentem doentes e não porque
“ser vivo”, sujeito de uma experiência que o expõe, existem médicos que os informam de suas doenças”
de maneira intermitente e permanente, à possibili- (2006, p. 59).
dade do sofrimento (Macherey, 1993). A doença, A tarefa do antropólogo torna-se, assim, a de
parte da vida, é um modo de estar na vida. Ela ex- construir um conhecimento sobre saúde e doença
prime um outro modo de viver. Institui, portanto, que não seja mero subsidiário da biomedicina, mas
uma diferença: “Não existe fato que seja normal ou ao mesmo tempo possa com ela relacionar-se, posto
patológico em si. A anomalia e a mutação não são, que, como cientistas sociais, não há como ignorar o
em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras discurso no qual se assenta a concepção da sociedade
formas de vida possíveis” (Idem, p. 113). ocidental sobre aquilo que tomamos como objeto de
E, assim, a ideia de cura remete a algo inexis- reflexão – base do cuidado de nossas próprias dores,
tente anteriormente à experiência da doença, um doenças e sofrimentos –, sob o risco de uma exces-
novo estado fisiológico: “nenhuma cura é uma volta siva autorreferência, postura defensiva que com-
à inocência biológica. Curar é criar para si novas promete não apenas o alcance social do empreen-­
formas de vida, às vezes superiores às antigas. Há dimento, mas seu próprio valor heurístico.
uma irreversibilidade da normatividade biológica”
(Idem, p. 176).
Pode-se ver uma afinidade entre o pensamento Considerações finais
de Canguilhem e pensamento antropológico pelo
lugar central assumido pelo problema da diferen- Para finalizar, gostaria de ressaltar o lugar da
ça em ambos. Em Canguilhem, a problemática da antropologia no estudo do corpo, da saúde e da do-
diferença surge de seu olhar sobre a experiência ença a partir do que a constitui como disciplina, no
concreta do “ser vivo” – que adoece – para pensar interior do campo das ciências humanas. Pode-se
sobre a doença, que leva a dar ao doente um lugar recorrer a Foucault, quando o autor atribui à antro-
fundamental no conhecimento da doença, indis- pologia (etnologia) – ao lado da psicanálise – um
sociando-os, perspectiva que inverte os termos do lugar singular nesse campo, uma vez essa disciplina
conhecimento e abre o caminho para a crítica do se constitui em um e por um confronto: “a etnolo-
etnocentrismo da biomedicina: não é a ciência que gia só assume suas dimensões próprias na soberania
informa a clínica, mas o inverso. histórica [...] do pensamento europeu e da relação
Zempléni (1994), ao dizer “que o objeto da et- que o pode confrontar com todas as outras culturas
nomedicina ou da antropologia médica, continua e com ele próprio” (1992, p. 394).
sendo a doença e não o doente”, remete às possi- Ao argumentar que a antropologia, como a
bilidades analíticas abertas pela língua inglesa que psicanálise, interroga “não o próprio homem, tal
distingue entre disease e illness, ressaltada pela an- como pode aparecer nas ciências humanas, mas a
tropologia anglosaxônica, e lembra que essa distin- região que torna possível, em geral, um saber sobre
ção recupera a que René Lériche, médico francês, o homem”, Foucault atribui aquilo que a distingue
estabeleceu, em 1936, de forma pioneira no campo por “alojar-se no interior da relação singular que a
biomédico, entre a “doença do médico” e a “do- razão ocidental estabelece com as outras culturas”,
ença do doente” (Lériche, 1936). Não sem razão, não ocidentais, e, a partir daí, traçar “o contorno
é por meio do estudo da dor, cujo conhecimento das representações que os homens, numa civiliza-

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ção, podem dar de si mesmos” (Idem, p. 395). É, manas, de todos é exigida a publicação nas revistas
assim, na tensão constitutiva desse estar dentro e científicas avaliadas segundo critérios biomédicos,
simultaneamente enfrentar-se com o estar fora da sem qualquer abertura para o reconhecimento da
racionalidade ocidental – na qual a biomedicina se diferença, o que coloca os pesquisadores da área de
ciências humanas numa posição estrutural de desvan-
fundamenta e se sustenta –, numa relação de alteri-
tagem relativa, com os problemas que daí decorrem
dade, que a antropologia se move no campo cientí- no que diz respeito, sobretudo, ao acesso a recursos
fico que estuda o corpo, a saúde e a doença. Tensão para pesquisa.
que é tributária do fato de que, se a antropologia 4 No entanto, apesar de esses autores se (auto)situarem
nasceu sob a égide do pensamento universalista oci- no campo da antropologia médica, muito do que ca-
dental, é ela a crítica do etnocentrismo e do racio- racterizou essa vertente, tal como aqui descrito, não
nalismo implícitos neste pensamento. necessariamente se aplica in totum ao trabalho isolado
No enfrentamento do caráter fundante e ine- desses autores, em particular as importantes contri-
lutável dessa tensão – um movimento permanente buições de Arthur Kleinman e Margareth Lock. Uma
entre o dentro e o fora –, está a possibilidade de a análise mais detalhada dessa tendência implicaria con-
antropologia dar sua contribuição efetiva aos estu- siderar os contextos sociais e institucionais específicos
dos do corpo e da doença, constituindo-se em re- de constituição do campo, além do perfil de seus pes-
quisadores, o que não é o escopo deste ensaio, mais
ferência alternativa à racionalidade biomédica, mas
panorâmico.
desde que se mantenha em constante vigilância.
5 No que se refere às publicações, as revistas que veicu-
A força avassaladora do discurso biomédico sobre
lam artigos da área de antropologia na perspectiva da
as concepções e as práticas que envolvem o corpo,
“antropologia médica” se encontram prioritariamente
a saúde e a doença em nossa sociedade não pode entre aquelas da área da saúde, em particular da saúde
eludir a responsabilidade do antropólogo da saú- pública.
de diante do fato de que ele faz, acima de tudo, 6 No original: “Chacun de nous est trop solidaire du
antropologia e se pauta por suas referências epis- discours médical pour ne pas en épouser d’avance les
temológicas e pelos debates que a animam, o que raisons” (p. 27).
o situa, dentro do campo da saúde, por definição, 7 Se a dissecação de cadáveres cinde o humano no sécu-
num lugar de resistência. lo XVII, no século XIX vem redefinir a relação com
a morte. É interessante mencionar, aqui, “as mais be-
las páginas”, segundo Roudinesco (2007), do livro de
Notas Foucault (1977), Abram alguns cadáveres, no qual ele
fala de Bichat – cirurgião que, no começo do século
1 No caso da antropologia, essa expansão reflete-se em XIX, inventou, com seus estudos de anatomia patoló-
sua significativa presença nos debates em congressos gica – nos quais abria cadáveres –, uma nova relação
da área (Reunião Anual da Anpocs, Reunião Brasileira entre vida, doença e morte. A morte deixa de ser um
de Antropologia e Reunião de Antropologia do Mer- absoluto, é retirada do domínio da religião pela ciên­
cosul, entre outros). cia. A passagem da vida para a morte passa a ser vista a
2 Para a discussão da biomedicina (ou racionalidade partir de processos fisiológicos e patológicos inscritos
biomédica), como a referência cultural que informa as nos próprios organismos vivos. “Em lugar de perma-
concepções e as práticas de saúde e a noção de doença necer o que tinha sido durante tanto tempo, noite
no mundo ocidental contemporâneo, ver Camargo Jr. em que a vida se apaga e em que a própria doença se
(1997, 2003). confunde, ela [a morte] é dotada, de agora em diante,
do grande poder de iluminação que domina e desvela
3 O que pode ser observado, por exemplo, na defini- tanto o espaço do organismo quanto o tempo da do-
ção de critérios de avaliação da produção científica ença” (Foucault, 1977. p. 165).
dos pesquisadores, na pesquisa e na pós-graduação da
área da saúde, que obedecem estritamente à lógica 8 No original: “Le corps est associé à l’avoir et non plus
das ciências biológicas, desconsiderando a natureza à l’être” (p. 47).
distinta da produção do conhecimento nas ciências 9 Paul Broca, cirurgião e antropólogo francês (1824-1880),
humanas. Sejam cientistas das áreas biológicas ou hu- estudioso do cérebro e das funções da linguagem.

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Corpo e Doença no trânsito de saberes  89

10 No original: “nous sommes droitiers de la main, parce mal e o patológico. Trad. Maria Thereza Redig
que nous sommes gauchers du cerveau” (p. 81). de Carvalho Barrocas. 6 ed. revista. Rio de Ja-
11 Afinidade à qual se refere Roudinesco (2007, p. 44), neiro, Forense Universitária.
em seu trabalho sobre os filósofos franceses da segunda CARRARA, Sergio. (1994), “Entre cientistas e bru-
metade do século XX. Canguilhem foi o orientador da xos: ensaio sobre os dilemas e perspectivas da
tese de doutorado em filosofia de Foucault (Loucura e análise antropológica da doença”, in P. C. Al-
desrazão: história da loucura na idade clássica).
ves e M. C. S. Minayo (orgs.), Saúde e doença:
12 É interessante observar o comentário de Richard Sen- um olhar antropológico. Rio de Janeiro, Editora
nett em Carne e pedra: o corpo e a cidade na civi-
Fiocruz, pp. 33-45.
lização ocidental (1997), numa parte da introdução
CLAVREUL, J. (1978), L’ordre médical. Paris, Édi-
ao livro que denominou “Uma nota pessoal”, na qual
fala da influência de seu amigo Foucault nessa obra, tion du Seuil.
que foi iniciada junto com ele, mas mudou de dire- CLIFFORD, James. (1983), “On ethnographic au-
ção, depois de sua morte. Afirma o autor: “Numa de thority”. Representations, (2): 132-143.
suas obras mais conhecidas – Vigiar e punir – Fou- DESCOLA, Philippe. (1996), “Constructing na-
cault imaginou o corpo humano asfixiado pelo nó do tures: symbolic ecology and social practices”,
poder. À medida que seu próprio corpo enfraquecia, in P. Descola e G. Pálsson (orgs.), Nature and
ele procurou desfazer esse nó; no terceiro volume da society: anthropological perspectives. Londres,
sua História da sexualidade, e ainda mais em notas Routledge, pp. 82-102.
elaboradas para os tomos que não viveu para com-
. (2005), Par-delà nature et culture. Pa-
pletar, Michel Foucault explorou os prazeres corporais
ris, Gallimard.
que não se deixam aprisionar pela sociedade. Sua pa-
ranoia sobre controles, tão marcante em toda sua vida, DUARTE, Luiz Fernando Dias. (1993), “Os nervos
abandonou-o quando começou a morrer” (p. 25). e a antropologia médica norte-americana: uma
revisão crítica”. Physis: Revista de Saúde Coleti-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  191

Corpo e doença no Body and illness in the Corps et maladie au transit


trânsito de saberes transit of knowledges des savoirs

Cynthia Sarti Cynthia Sarti Cynthia Sarti

Palavras-chave: Corpo; Saúde e doença; Keywords: Body; Health and illness; An- Mots-clés: Corps; Santé et maladie; An-
Antropologia da saúde; Biomedicina. thropology of health; Biomedicine. thropologie de la santé; Biomédecine.

Este ensaio discute os estudos antropo- This essay discusses the anthropological Cet essai discute les études anthropolo-
lógicos sobre corpo e doença, a partir da studies on body and illness from the way giques sur le corps et la maladie à partir
forma como se relacionam com os saberes they relate to biological knowledges in the de la façon dont elles se lient aux savoirs
biológicos no campo científico da Saúde. scientific field of Health. Anthropological biologiques dans le domaine scientifique
A pesquisa antropológica implica uma ati- research implies an attitude towards these de la Santé. La recherche anthropolo-
tude ante esses saberes de tal ordem que a knowledges of such an order that the way gique implique une attitude telle face à
forma como ela se situa em relação a eles it places itself before them turns to be an ces savoirs que la façon dont elle se si-
se converte em problema epistemológico, epistemological problem, defining the tue par rapport à eux se convertit en un
definindo o estatuto do saber antropológi- status of the anthropological knowledge problème épistémologique, qui définit
co nesse campo marcado pela hegemonia in this field marked by the hegemony of le statut du savoir anthropologique dans
das ciências biomédicas. Sob esse prisma, the biological sciences. From this point of ce domaine marqué par l’hégémonie des
diferenciam-se duas vertentes: a antropo­ view, two trends are distinguished: Medi- sciences biomédicales. Sous ce point de
logia médica, subsumida na lógica do sa- cal Anthropology, imbedded in the logic vue, deux courants s’opposent : l’an­
ber biomédico, e a antropologia da saúde, of biomedical knowledge, and Anthro- thropologie médicale, qui s’insère dans la
cuja forma de operar a noção de cultura pology of Health, whose way of using the logique du savoir biomédical, et l’anthro­
configura outra referência epistemológica, notion of culture aims at another epis- pologie de la santé, dont la façon d’opérer
apontando para a efetiva contribuição da temological reference, pointing out the la notion de culture configure une autre
antropologia para esse campo, que supõe, effective anthropological contribution to référence épistémologique, qui indique
em si, o distanciamento das referências de this field, which supposes, in itself, being vers la contribution effective de l’anthro-
sentido que sustentam a biomedicina. apart from the significant references that pologie à ce domaine qui suppose, en soi,
support the bio-medicine. l’éloignement des références de sens qui
soutiennent la biomédecine.

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