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Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

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Creative Commons

QUEM SÃO OS “ELOHYIM” DO SALMO 82?

Francisco Erdos
Mestre em Teologia
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
francisco@erdos.com.br
CAPES
ST 17 – Leituras Libertadoras da Bíblia

Resumo: A temática específica a ser tratada aqui é um recorte da tese de doutorado em Teologia na PUC-
PR que está em preparo. Trata-se da análise do Salmo 82, que descreve uma assembleia de deuses
presidida pelo deus El, onde se posiciona Yahweh contra outros deuses, a favor dos indefesos que são
nominados como: fraco; órfão; aflito; desamparado e necessitado. Nesta assembleia divina há um
julgamento: Yahweh levanta-se e julga as ações dos demais presentes. Os deuses são sentenciados à morte
por tomarem partido pela causa dos ímpios que praticam a injustiça e não serem favoráveis aos indefesos.
O objetivo deste texto é esclarecer quem são os elohyim que apoiam os ímpios que exploram os indefesos:
são juízes humanos que julgam em nome de Deus, mas de forma injusta, a troco de subornos, como pode
ser identificado em 2Cr 19,4-7; Lv 19,15; Dt 1,16-17; Dt 16,19? Ou são deuses, conforme identificado em
Dt 32,8-9 no texto preservado da Septuaginta e traduzido na Bíblia de Jerusalém? A metodologia adotada
é a pesquisa bibliográfica e será exposto que a narrativa bíblica está repleta de relatos de injustiças contra
os fracos, pobres, necessitados, aflitos, desamparados, estrangeiros, órfãos e viúvas. Os poderosos da terra
têm o poder em suas mãos para proceder retamente e praticar a justiça. Mas manipulam as situações a que
têm controle e provocam a ruína dos desamparados e desestabilizam o equilíbrio social. O Salmo 82
descreve o julgamento aplicado contra os elohyim que apoiam os ímpios que exploram os indefesos e
mostra que a morte é o fim de todo aquele que se volta contra Yahweh e seus atos de justiça. Os textos
citados acima permitem encontrar evidencias sobre a relação de Yahweh com a defesa da causa do pobre.
E uma visão do contexto social, político e religioso que direcionaram Israel a se tornar um povo
monoteísta ante um deus cuja bandeira é a justiça. Em um contexto politeísta e de injustiças sociais,
levanta-se a voz profética do salmista para denunciar as injustiças afligidas sobre os pobres e
desamparados. A acusação contra os deuses que tem o poder de julgar com justiça e proceder retamente
mostra que não adianta desviar-se de Yahweh e ir atrás dos falsos deuses com suas vãs promessas. A
descrição sobre Yahweh contida no Salmo 82 pode trazer um conhecimento mais profundo sobre a
divindade e sua justa relação com a humanidade.

Palavras-chave: Salmo 82; elohyin; Yahweh; indefesos; justiça social.

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1 INTRODUÇÃO
O Salmo 82, da coleção asafita, retrata um Concílio de Deuses presidido pelo deus El,
onde um elohyim se levanta para acusar os demais elohyim de estarem sendo injustos ao
apoiarem os ímpios na exploração dos oprimidos. Um amplo debate se mantém sobre quem eram
esses elohyim, seriam deuses ou homens? A correta definição sobre esses personagens permite, a
partir deste conhecimento, entender o que se passa no relato e fazer uma aplicação adequada na
contextualização deste salmo.

Não há informações suficientes para precisar com segurança qual é a data em que foi
escrito o Salmo 82 1. Permite-se fazer suposições baseadas em análises de algumas
particularidades do texto. Mas mesmo que tenha sido escrito, ou editado, em uma data mais
recente, pode estar retratando fatos do passado, do antigo Israel. Temos evidencias de que este
Salmo pode ter sido escrito à época dos primeiros profetas escritores. Hermann Gunkel afirma
que as origens da poesia sálmica remonta a época anterior à monarquia ou aos primeiros anos da
história de Israel (GUNKEL, 1983, p. 449). Por sua vez Siqueira (2004, pp. 7-8) esclarece que
devido a teologia do reino do norte estar bem clara nos Salmos de Asaf, pode-se afirmar que o
Salmo 82 foi composto logo após a queda de Samaria (721 a.C.).

Ao examinar o texto do Salmo 82 reconhece-se uma tendência profética - ou denúncia


profética conforme Bortolini (2011, p.341) - em seu conteúdo. Os versículos 2-4 esclarecem esse
profetismo devido às palavras que se encontram no Livro de Amós e Oséias. Ecoam neste salmo
de contexto judicial a mesma essência das palavras que denunciam as injustiças contra o justo e o
necessitado (Am 5,10-12; Os 4,1-2). Hermann Gunkel confirma tal fato. Para ele a questão
profética não é somente de acusação de injustiças, ou profetismo de denúncia, mas que há
também um conteúdo de profetismo escatológico, ou sentido escatológico que se cumprirá no
futuro: “Yahweh entrará no conselho dos deuses. Todos os deuses dos gentios, os senhores

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Hermann Gunkel (1983, p. 449) tem absoluta certeza de que o Salmo 82 é pós-exílico, ainda que seja impossível
data-lo com precisão.

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celestes dos impérios da terra estarão reunidos.” (GUNKEL, 1983, pp. 41, 345, 357), conforme
Isaías 41,21; 44,7; 45,202.

Há certas particularidades no Salmo 82 que indica ser este texto de data mais recuada: o
tratamento respeitoso que se dá a outras divindades é diferente em relação aos textos de Isaías, p.
ex., que desqualifica os outros deuses, dando-lhes credenciais de simples objetos da imaginação
de homens ignorantes que os conceberam segundo suas baixas capacidades de conhecimento. São
frutos de mentes incapazes de tecer uma teologia mais elaborada para trazer a salvação, Is. 45,20.
No texto do Salmo 82 não há a negação da divindade dos outros deuses. O versículo 6 que diz:
“Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo.” indica que na época em que foi escrito,
Israel estava em passagem do politeísmo para o monoteísmo (SIQUEIRA, 1987, p. 13) e está
retratando a crença ainda viva de que existiam outros deuses que eram adorado pelos antigos
Israelitas.

2 O SALMO 82

O conceito de “teologia global” predominava nos tempos do Israel monárquico e


segundo Smith (2006, p. 90), a noção dos deuses nacionais pertencentes a uma família divina,
encabeçada por El Elyon, explicava a existência dos deuses patronos que protegia e inspirava o
rei humano em seu governo. A teologia global era atrativa para os reis que a usavam para se
projetar politicamente para o mundo e sua estrutura básica com seus elementos já existiam em
Ugarit. O texto de Dt 32,8-9, explica Smith (2006, p. 160), reflete o conceito de deuses nacionais,
se examinado o texto preservado na Septuaginta que traz “filhos de Deus” em vez de “filhos de
Israel” no Texto Massorético. Dessa forma a Bíblia de Jerusalém traduzindo a partir do texto
grego conserva fielmente a memória religiosa de Israel mostrando a forma de crença que havia na
época.

A estrutura da teologia global nos mostra que El era a divindade mais elevada no
panteão do antigo Israel, explica Smith (2006, p. 157), prova disto é que o nome El faz parte do

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Conteúdo do Deutero-Isaías com perspectiva de leitura para o pós-exílico, conforme J. Severino Croatto (1998, p.
12).

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nome Israel. No segundo escalão deste panteão estão Yahweh e Baal. Baal era também uma
deidade das montanhas no antigo Israel e deus da família de Gideão (Jz 6). O Salmo 82 ilustra
bem a estrutura de dois níveis no panteão de deuses no antigo Israel onde está bem clara a
participação de Yahweh em um concílio que não está sob seu comando, mas sim de El, conforme
explica Smith em vista ao versículo 1:

elohyim assiste na assembleia de El;


no meio dos elohyim3, estabelece o seu julgamento. (tradução livre)4

A compreensão que se tinha na tradição judaica e talvez, na época da composição do


texto, era que o primeiro elohyim era Yahweh (vs. 1) e que Yahweh e El eram o mesmo Deus.
Mas o texto mostra que o deus que preside a assembleia é diferente do deus que está com a
palavra para discursar e o salmo é claro na distinção entre os dois deuses, entre o deus que
preside e o deus que está discursando (SMITH, 2006, p. 159). Schökel e Carniti (1998, p. 1049)
explicam por sua vez que gramaticalmente o primeiro elohiym pode não ser El, porém o contexto
literário mais amplo impõe a interpretação de que Yahweh e El são o mesmo Deus.

No versículo 2 é lançado a acusação de julgamento injusto a favor dos injustos:

Até quando julgareis injustamente e tomareis partido pela causa dos ímpios?

Os elohyim estão investidos de poder e o estão aplicando errado. O texto permite


interpretar que os elohyim acusados são juízes humanos que julgam em nome de Deus. A
interpretação de que os elohyim são juízes e governantes vem da época da redação do Targum
(SCHÖKEL & CARNITI, 1998, p. 1054), ou antes, se levarmos em conta alguma tradição oral.
Dessa forma, o julgamento injusto seria a troco de subornos, como explanam os seguintes textos
bíblicos: 2Cr 19,4-7; Lv 19,15; Dt 1,16-17; Dt 16,19.

Mas por outro lado, o texto inserido em um contexto mais amplo permite interpretar que
os elohyim são outros deuses: em uma visão politeísta segundo Smith (2006, p. 160), ou na visão

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Segundo Strong (2005, H430) a palavra hebraica ‫’( אלהים‬elohiym), plural de ‫’( אלוה‬elowahh) é traduzido por:
(plural): 1a) governantes, juízes; 1b) seres divinos; 1c) anjos e 1d) deuses. (plural intensivo - sentido singular): 2a)
deus, deusa; 2b) divino; 2c) obras ou possessões especiais de Deus; 2d) o (verdadeiro) Deus; 2e) Deus
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Salvo referências específicas, todas as citações bíblicas são da Almeida Revista e Atualizada (ARA) ou tradução
livre

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henoteísta segundo Schökel e Carniti (1998, p. 1053), conforme pode ser resgatado no seguinte
texto de Deuteronômio 32,8 citado acima, que se apresenta alterado no Texto Massorético.

Os versículos 3, 4 e 5 do Salmo 82 descrevem os indefesos que sofrem os abusos dos


perversos. Nestes dois versículos há cinco tipos de pessoas que podem ser descritos da seguinte
maneira: pobres, fracos, sem pai e mãe, aflitos, necessitados, miseráveis, humildes, famintos,
oprimidos e desorientados. A esses a voz de acusação diz o que deveria ser feito pelos elohyim.

Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o


desamparado.
Socorrei o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios (Sl 82,3-4).
Eles nada sabem, nem entendem; vagueiam em trevas; vacilam todos os
fundamentos da terra.
Devido aos elohyim não terem cumprido com suas obrigações que justificam o poder
com o qual foram revestidos, “os fundamentos da ordem social e até a ordem cósmica
cambaleiam. A injustiça estabelecida gera a obscuridade e a obscuridade manipulada fomenta a
injustiça.” (SCHÖKEL; CARNITI, 1998, p.1053).

Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo.


Todavia, como homens, morrereis e, como qualquer dos príncipes, haveis de
sucumbir.

A Tradição Judaica em uma de suas interpretações dos vs. 6 e 7 diz que os elohyim são
os juízes de Israel, como evidencia o Midrash (Midr. Ps. 82) esclarece Neyrey (1989). Santo
Agostinho (2008, p. 7805) escreveu: “Longe de nós pensarmos serem estes deuses os dos gentios,
os ídolos ou qualquer criatura celeste ou terrestre, fora dos homens”. João Calvino (2002, p. 296)
disse: “[...] o nome deuses deve ser entendido como sendo os juízes, [...]”. Por sua vez Bortolini
(2011, p. 434) explica que Deus planejara aplicar a justiça servindo-se de juízes humanos, mas
estes devido a corrupção saíram fora do plano de Deus e por isso Deus os condenou à morte.
Soares (1998, p. 30) baseando-se no vs. 7 esclarece que “[...] não passam de homem de barro. O
texto original contém a palavra adam. Ora, adam é o termo masculino correspondente a adamah
(terra, barro) [...]. Morrer é voltar (misturar-se) ao pó da terra.

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Salmo 81 na numeração da Septuaginta e da Vulgata.

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Nos versículos 6 e 7 está toda a fundamentação para que alguns autores afirmem que os
elohyim são juízes e governantes. Mas sobre este texto, Weiser (1994, p. 425) afirma que a
comparação no vs. 7 refuta tal interpretação e o que está sendo descrito aqui é a vitória da justiça
divina sobre os deuses que apoiam a injustiça e por isso eles deixarão de existir. O Salmo 82,
explica Smith (2006, p. 159), inspira-se em textos ugaríticos na representação da assembleia de
deuses e esses são todos os deuses do mundo e todos eles são sentenciados a morrer.

Surge uma voz solicitando que Yahweh, assuma o poder de julgar toda a terra: (vs. 8):

Levanta-te, ó Deus, julga a terra,


pois a ti compete a herança de todas as nações.
Pois todas as nações já estão sob seu domínio.

CONCLUSÃO

O epiteto Altíssimo no remete à tradição contida em Gn 14,18-20 onde é mencionado


por três vezes o nome de Deus Altíssimo [El Elyon]. Ligando a Dt 32,8-9 pode-se propor que no
antigo Israel havia a crença de que os deuses de todas as nações são filhos de El Elyon e Yahweh
é um desses filhos. O chamado a Yahweh para governar as possessões que tradicionalmente
estava no poder dos outros deuses é uma divergência contra a antiga visão politeísta sendo
trabalhada pelo autor do Salmo 82 para mudar a visão para o monoteísmo. No mesmo sentido
segue Dt 32 que preserva o conceito dos deuses nacionais nos versículos 8 e 9 mas trabalha no
sentido de colocar em descrédito os outros deuses (vs. 17) e afirmar que Yahweh é o único Deus
(vs. 39) (SMITH, 2006, pp. 160-161).

Diante das evidências nos textos apresentados e considerando que o antigo Israel era
comprovadamente politeísta, conclui-se que os elohyim do Salmo 82 são deuses e não juízes e
governantes humanos. O compositor ou compositores deste salmo e seus contemporâneos, criam
na existência de outros deuses e esta era a crença do antigo Israel. Devido da passagem do
politeísmo ao monoteísmo supõe-se que houve um grande esforço para apagar o rastro histórico
dos outros deuses do passado e assim reescrever a história da religiosidade de Israel.

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REFERÊNCIAS:

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GUNKEL, Herman. Introduccion a los salmos. Valencia: Edicep, 1983.

KIDNER, Derek. Salmos 73-150: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão; Edições
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