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DA TEORIA LITERARIA
À C U L T U R A DE MASSA
rtüimrm átü-M
Série
Temas
Volume 20
Literatura e Sociedade
TEXTO
EDITOR
Fernando Paixão
ASSISTÊNCIA EDITORIAL
Isa Mara Lando
TRADUÇÃO
Biblioteca Sstoí J c¡e Heloísa Jahn
Biblioteconomia e PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS
Janice Maria Flórido
Comunicação
REVISÃO
N° Eliana Antonioli
A RTE
Chamada
PROJETO GRÁFICO (MIOLO)
Milton Takeda
COORDENAÇÃO GRÁFICA
Jorge Okura
•OSIÇÃO E PAGINAÇÃO EM \
Maria Alice Silvestre
Registro : "Y - CAPA
Isabel Carballo
D.~í? : 3 J o /
ISBN 85 08 04196 9
1992
Todos os direitos reservados
Editora Atica S.A.
R. Barão de Iguape, 110 — CEP 01507
Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656
End. Telegráfico "Bomlivro" — Fax: 277-4146
São Paulo (SP)
16283
FBC
1996/ 11 5743 -3
1. 9 9 8 / 1 0 / 2 6
9201
Para Giba
Agradecimentos:
Ella Shohat
Boris Schnaiderman
Gilda Penteado
Hélio Goldsztein
Heloísa Jahn
Isa Mara Lando
Ismail Xavier
João Luiz Vieira
Lúcia Guimarães
Luiz Antonio Coelho
Paulo César Souza
Sumário
l'n'liii lo ____________________________________ 7
lnlmdiii,-,ii> _____________________________________ 9
À ili ti nl)(Tl;i do diálogo ______________________ ___ 1 5
Pi i ihlimno: uma crítica marxista ___________________ 20
11 ini-timl«i formal nos estudos literários ______________ 2 2
Miii Mniiio e filosofia da linguagem __________________ 2 9
l'inlilrmns da poética de Dostoiévski ________________ 3 6
\ ' iiltura popular na Idade Média e no Renascimento:
contexto de François Rabelais ___________________ 42
I ii Itakhtm à América Latina ______________________ 48
I ir Hakhtin ao cinema ____________________________ 58
I I i mema e os gêneros do discurso __________________ 6 8
I imlogismo cultural e textual _______________________ 7 2
llaklitin, erotismo e cinema ________________________ 7 9
A pornografia como carnaval ersatz _________________ 82
( i corpo grotesco e a cultura do riso _________________ 8 6
l ai navais eróticos e carnavalização paródica _________ 89
Humo a uma translingüística do erotismo ____________ 9 2
l onclusões e perspectivas futuras __________________ 96
Hililiografia _____________________________________ 1 0 3
Prefácio
O
V ¡ i|tir segue nâo é uma biografia nem um trabalho erudi-
im ilm- Mlkliail Bakhtin. Trata-se, antes, de um diálogo com
mil •ilii n uma leitura bastante pessoal e afetuosa estendida, em
•mim - iiiiplii .u;òes, a um país (o Brasil) e a um meio (o cinema)
•|ii> llnltlilm raramente menciona. Não é uma análise exaustiva
'ii i bakhliniana — muito pouco se trata aqui, por exemplo,
.1.i-* i ii-uiii>s reunidos subseqüentemente, em inglês, no livro A
....... ilialógica (Texas, 1981), onde ele desenvolve com
n. ii. |imlimdidade suas teorias sobre o romance. Portanto, meu
i i¡liiileiio interesse não é revelar o autêntico Bakhtin, ou situar
iui mIh i no contexto intelectual da União Soviética (para tanto,
Mita nu o necessário conhecimento na área de estudos eslavos
. >11 1 idioma russo), mas sim explorar o potencial analítico dos
..... .. e da metodologia de Bakhtin.
<i:lil utos das obras citadas aparecem sempre em português, numa tradução li-
11 i ¡iI ou com o nome com que foram publicadas no Brasil. (N.E.)
Introdução
i '
I i li livro se propõe oferecer ao leitor brasileiro uma in-
utedui iio i om isa ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Embora a
►in ma sobre a obra de Bakhtin, também tentaremos dar
iciuh mii,ao de sua vida. Não sou nem historiador nem biógrafo;
n Inlm inações tocantes à vida de Bakhtin vêm das indicações
iii*ui i mi i fornecidas por Michael Holquist e Katerina Clark
; ui lliikhtiii (Harvard Press, Cambridge, 1984) e por Todorov
: mi il iHincffiio dialógico (Minnesota Press, Minneapolis, 1982).
Niiu hi procedimento será o seguinte: depois de uma breve intro-
ilm.no, .ilirmando a relevância das idéias de Bakhtin para os estu-
i" •iiliie a cultura, percorreremos, mais ou menos cronologica-
mriiii , seus escritos mais importantes. O capítulo final examina
i * ii aplicabilidade das suas categorias conceituais à minha área
I' especialização, o cinema.
A influência de Mikhail Bakhtin e do Círculo de Bakhtin
liv se sentir amplamente nos estudos literários e culturais nào
ifi da União Soviética como da Europa ocidental, Estados Uni
dos, Japão e Brasil. Cada país e cada escola, porém, parecem ter
''ii próprio “Bakhtin”, e não raro se observa a existência de
llnkhtins diversos no mesmo país. Assim, encontramos Bakhtin,
0 formalista, e Bakhtin, o antiformalista, e lado a lado com Bakh-
1ni o fenomenologista, Bakhtin, o marxista, e Bakhtin, o pós-es-
Imluralista. Na França, quando se editaram as traduções de
seus livros sobre Dostoiévski e Rabelais, no final da década de
ii(), Bakhtin foi considerado uma espécie de proto-estruturalista,
oriundo da tradição formalista. Julia Kristeva, em dois ensaios
fundamentais, “Bakhtine, le mot, le dialogue et le román” (1967)
e “Une poétique ruinée” (1970), apresentou Bakhtin como urna
espécie de precursor dos teóricos literários franceses mais sofistica
dos. Sua tradução do “dialogismo” de Bakhtin como “intertextua-
lidade” provocou uma proliferação de estudos sobre intertextuali-
dade, muitos dos quais mantinham apenas uma tênue conexão com
o pensamento de Bakhtin. (A publicação, em 1981, de Mikhail
Bakhtin: o principio dialógico, de Tzvetan Todorov, deu início a
uma importante reavaliação da obra de Bakhtin.) Enquanto isso,
no mundo de língua inglesa, Bakhtin foi considerado, em grande
medida, o teórico do carnaval e das inversões rituais da hierar
quia. Só recentemente, com a tradução de numerosos livros de
e sobre Bakhtin, ele passou a ser visto como um teórico funda
mental da língua e da literatura.
No Brasil, Bakhtin é conhecido como o teórico da carnava-
lização, no que tem de pertinente em relação à literatura brasilei
ra em particular e à cultura latino-americana em geral, principal
mente devido às observações sobre o carnaval e à sátira em Pro
blemas da poética de Dostoiévski (Forense, Rio de Janeiro, 1981)
e à leitura, em inglês ou francês, e agora em português, de Ques
tões de literatura e de estética: a teoria do romance (Hucitec/Unesp,
São Paulo, 1988) e A cultura popular na Idade Média e no Renas
cimento: contexto de François Rabelais (Hucitec, São Paulo, 1987).
Assim, Affonso Romano de Sant’Anna deu cursos sobre carnava-
lização literária na PUC do Rio de Janeiro, enquanto o seu Paró
dia, paráfrase & cia. (Atica, São Paulo, 1985) mostra a forte in
fluência das conceituações de Bakhtin. Boris Schnaiderman, em
São Paulo, orienta teses universitárias ligadas a Bakhtin (por exem
plo, a excelente dissertação de Irene Machado) e escreve com
muita lucidez sobre Bakhtin em livros como Turbilhão e semen
te: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (Duas cidades, São Paulo,
1983). O número especial de Tempo Brasileiro (n? 65) dedicado
à paródia, com artigos de Emir Rodríguez Monegal, Maria Lúcia
P. de Aragón, Lúcia Helena, Boris Schnaiderman e Haroldo de
Campos, mostra uma clara influência de Bakhtin. E Suzana Ca
margo, em Macunaíma: ruptura e tradição (Massao Ohno/João
Farkas, São Paulo, 1977), analisa o romance de Mário de Andra
de à luz das catorze características principais da sátira menipéia
apresentadas por Bakhtin. (Embora a análise do carnaval brasi
leiro por Roberto da Matta apresente analogias claras com o pen-
sarnento de Bakhtin, suas referências tendem a ser a Victor Tur-
ner, e não ao pensador russo, e poucos comentaristas tentaram
relacionar a obra antropológica sobre o fenômeno social do carna
val à obra literária sobre a carnavalização.) Na área de estudos
sobre cinema, João Luiz Vieira, numa tese de doutorado intitula
da Hegemonia e resistência: paródia e carnaval no cinema brasilei
ro (Universidade de Nova York, 1984), aplica teorias da carnava
lização à chanchada e ao cinema de vanguarda, com resultados
muito estimulantes.
Infelizmente, outros aspectos do pensamento de Bakhtin
não tiveram a ampla divulgação obtida pelo conceito de “carna
valização” . Na realidade, apenas parte da obra de Bakhtin foi
traduzida para o português. Existe uma tradução de Marxismo e
filosofia da linguagem (Hucitec, São Paulo, 1979), livro atribuí
do a Voloshinov na versão inglesa, mas no qual, indubitavelmen
te, Bakhtin desempenhou papel fundamental. Esse livro, porém,
parece ter tido pouca repercussão na vida intelectual brasileira,
apesar de explorar um aspecto do pensamento de Bakhtin ainda
mais rico em aplicação potencial à produção cultural brasileira, e
mesmo a toda produção cultural: sua teoria da linguagem e do
“dialogismo” . O presente livro foi escrito a partir da convicção
de que as outras obras de Bakhtin também são extremamente
relevantes, e de que seu pensamento — por razões que, espera
mos, ficarão claras em seguida — tem especial relevância para
o estudo da vida cultural brasileira.
É muito difícil classificar Mikhail Bakhtin. Como seus es
critos englobam lingüística (Marxismo e filosofia da linguagem),
psicanálise (Freudismo) e crítica literária (O método formal. Pro
blemas da poética de Dostoiévski, A cultura popular na Idade Mé
dia e no Renascimento), é mais adequado considerá-lo simplesmen
te um dos maiores pensadores do século XX. Somente agora te
mos informações suficientes para chegar a essa conclusão, pois
a obra de Bakhtin, embora extensa, permaneceu na obscurida
de durante quase toda a sua vida. Essa obscuridade tem razões
ao mesmo tempo pessoais e históricas. Curiosamente, Bakhtin
não tinha o menor interesse por fama e prestígio; muitas vezes
seus livros eram publicados sob o nome de outros (Voloshinov,
Medvedev). Nove dos livros de Bakhtin foram escritos durante
a longa noite do stalinismo, durante seu exilio no Casaquistão,
e somente um deles apareceu como sendo de sua autoria. Três
foram publicados sob nomes diferentes: Freudismo: uma crítica
12
I . de de Biblioteconomia e Cr .
P I B , ' »~i T r C L
18
pío, mas tal como existe hoje). De acordo com a orientação sin
crônica, a lingüística deveria focalizar a langue — isto é, o sislc
ma da linguagem, com suas unidades básicas e suas regras de
combinação — e não a parole, as emissões concretas possibilita
das por esse sistema. Bakhtin, como veremos, inverte essa énfa
se, diminuindo a importância do sistema da língua como um mo
delo abstrato, e enfatizando, em seu lugar, a parole, a emissão,
o discurso vivido e partilhado por seres humanos em interação social.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin oferece um
relato abrangente daquilo que denomina “translingüística” , urna
teoria do papel dos signos na vida e no pensamento humanos, e
da natureza do enunciado na linguagem. A palavra “translingüís
tica” poderia equivaler à “semiología” de Saussure (a ciência
dos signos e dos sistemas de signos), não fosse pelo fato de que
é precisamente a concepção de linguagem de Saussure que Bakh
tin contesta. Embora concorde com Saussure em que deveria ser
criada urna disciplina que estudasse a “vida dos signos na socie
dade” , Bakhtin diverge dele em sua concepção da natureza dos
signos e de seu papel na sociedade. Bakhtin considera a lingüís
tica urna parte do estudo das ideologias, pois “o domínio da
ideologia coincide com o dominio dos signos” . Bakhtin contesta
o que considera o psicologismo de Saussure, situando a ideologia
no interior da consciência individual. Para Bakhtin, a consciência
só existe na medida em que se concretiza através de algum tipo
de material semiótico, seja sob a forma de “discurso interno” ,
seja no processo de interação verbal com os outros. Assim, Bakh
tin descentraliza a consciência individual: “Os signos só podem
emergir em território interindividual” . Ele desmascara o aprecia
do mito burguês da autonomia da consciência individual. A cons
ciência individual é um fato sócio-ideológico: sem seu conteúdo
semiótico, ideológico, ela não existe. A consciência individual,
para Bakhtin, não pode ser usada para explicar seja lá o que
for; ela própria necessita ser explicada a partir de um ponto de
vista sociológico e translingüístico. O estudo das ideologias, por
tanto, não deveria apoiar-se na psicologia.
Se Bakhtin, porém, oferece uma crítica marxista do psicolo
gismo, mostra-se igualmente crítico em relação a um marxismo
vulgar, mecanicista, que relega o mundo dos signos e da ideolo
gia a uma “superestrutura” determinada pela “base” econômi
ca. Qualquer signo ideológico, segundo Bakhtin, “não só é um
reflexo, uma sombra, da realidade, como também é, ele próprio,
31
D
.L/akhtin foi mandado para o exilio justamente no momen
to em que era publicada a primeira obra importante assinada por
ele mesmo: Problemas da poética de Dostoiévski. O fato de ter ha
vido uma resenha favorável do livro, por Anatoly Lunatcharsky,
Comissário da Instrução Pública, contribuiu para que os amigos
de Bakhtin argumentassem em favor da redução da pena — que
provavelmente significaria sua morte em um campo de trabalhos
forçados — para um exílio mais “humano” no Casaquistão, local
provinciano, caracterizado pela inexistência de vida cultural. Lá,
Bakhtin trabalhou como guarda-livros, respeitando também a
exigência oficial de visitar semanalmente a polícia.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin “dialoga”
com Dostoiévski, escritor com quem tinha enormes afinidades.
O livro trata da questão que sempre fora fundamental na crítica
de Dostoiévski, a relação entre Dostoiévski como autor e sua di
versificada galeria de personagens vociferantes e cheios de bri
lho. Onde se acha Dostoiévski, na cacofonía de vozes conflitan
tes que constitui seus textos? Devemos identificá-lo com a posi
ção filosófica de Raskolnikov em Crime e castigo, com Myshkin
de O idiota, com Ivan Karamazov de Os irmãos Karamazov? A
resposta de Bakhtin é, em essência, que Dostoiévski deve ser
visto como o orquestrador das vozes de personagens que estão
37
Linguagem e poder
Como vimos, Bakhtin tem também uma contribuição clara,
e muitas vezes não reconhecida, a fazer no campo da semiótica
do cinema. Sua crítica dos pressupostos de uma lingüística enrai
zada no que ele chama de “objetivismo abstrato”, em Marxismo
e filosofia da linguagem, é nitidamente relevante para a fase inau
gural, lingüística, da semiología. Bakhtin mantém o paradigma
lingüístico porém o abre para a diacronia, a história e a luta. Com
Ferdinand de Saussure, o pensador-chave da semiología, ele par
tilha uma espécie de “pensar relacionai”, mas as relações em
questão já não fazem parte de um sistema estrutural fechado.
Para Bakhtin, como vimos, a linguagem é inerentemente anar
quizante e milita contra a sistematização rígida. A realidade da
fala-linguagem é, portanto, não o sistema abstrato das formas
idênticas a si mesmas, mas a emissão em diálogo, a troca cons
tante entre interlocutores que modelam conjuntamente o evento
social da interação verbal.
Como os semiólogos, Bakhtin vê linguagem em toda a par
te (em Marxismo e filosofia da linguagem ele escreve: “Todas as
manifestações de criatividade ideológica estão imersas, suspensas,
no elemento do discurso, do qual não podem ser inteiramente se
gregadas ou desligadas”), mas, à diferença deles, vê a linguagem
como constantemente imbricada com o poder. A crítica que Bakh
tin faz da lingüística de Saussure, como veremos, abre a possibili
dade de que se reintroduza tanto a política como a cultura no mo
delo abstrato oferecido por Metz em suas valiosas análises das
analogias e desanalogias entre cinema e linguagem. Para Bakhtin,
o embate ideológico localiza-se no centro vivo do discurso, seja
na forma de um texto artístico, seja como intercâmbio cotidiano
de linguagem. Na vida social do enunciado (seja ela uma frase pro
ferida verbalmente, um texto literário, um filme, uma propagan
da ou um desfile de escola de samba), cada “palavra” é dirigida
a um interlocutor específico numa situação específica, palavra es
ta sujeita a pronúncias, entonações e alusões distintas.
Bakhtin dá o nome de “tato” ao conjunto de códigos que re
gem a interação discursiva. O “tato”, como vimos, tem a ver com
as relações entre interlocutores e é determinado pelo conjunto de
relações sociais dos sujeitos falantes, por seus horizontes ideológi
cos e pelas situações concretas da conversa. Essa noção de “tato”
63
A
X I maioria dos comentadores concorda quanto à importân
cia central da noção de “dialogismo” no pensamento e no méto
do de Bakhtin. Essa preponderância concedida a apenas uma das
muitas idéias inter-relacionadas de Bakhtin se reflete não só na
ampla utilização do qualificativo “dialógico” dentro do discurso
crítico, como também em diversos títulos de livros acerca de Bakh
tin, como O princípio dialógico (Todorov), ou Bakhtin: ensaios e diá
logos sobre sua obra (Morson). O próprio Bakhtin parece autorizar
essa impressão de que o “dialogismo” ocupa posição central em
sua obra, dizendo: “Por toda parte ouço vozes e as relações dialó
gicas entre elas”. Escreveu também em Problemas da poética de
Dostoiévski: “Ser significa comunicar-se dialogicamente. Quando
termina o diálogo, tudo termina” . A palavra “dialogismo”, porém,
é rica demais em ressonâncias filosóficas e literárias. Chega a ser
embaraçosa de tão polissêmica; por esse motivo foi apropriada
pelas correntes mais diversas e politicamente heterogêneas.
Gostaria, agora, de refletir sobre alguns aspectos do dialo
gismo e sua relevância para o cinema e para os estudos culturais
em geral. Podemos começar definindo o dialogismo como a rela
ção necessária entre um enunciado e outros enunciados, utilizan
do a palavra “enunciado” no sentido amplo que lhe dá Bakhtin.
Em “A Questão dos Gêneros do Discurso” , Bakhtin oferece uma
73
I
0 corpo grotesco e
a cultura do riso
f
V/omecei por dizer que Bakhtin raramente fala de sexo
per se, e essa recusa me parece significativa e produtiva. A pala
vra “copular” , em Bakhtin, vem acompanhada, quase que inva
riavelmente, de suas primas-irmãs: defecar, urinar e transpirar.
A visão que tem Bakhtin da sexualidade é paratática; em sua
prosa, todos os substantivos e verbos associados ao corpo grotes
co e às partes inferiores fecundam-se ao longo do mesmo eixo
sintagmático. Nenhuma hierarquia conceituai coloca a cópula,
ou o “Grande O” , no topo. Bakhtin, nesse sentido, não partici
pa da moderna hipóstase da sexualidade como imperiosa raison
d etre da existência humana. Trepar, para Bakhtin, é insepará
vel de cagar, mijar e outros lembretes semicômicos da deliciosa
grotesquerie do corpo. Sua abrangente visão ilumina, mesmo que
só por contraste, o que é tão opressivo na maior parte dos filmes
pornográficos — sua implacável visão unilateral, sua obsessiva
teleología sexualista manifesta cinematográficamente pelos inexo
ráveis zoom-ins à trepada, ao pau, à vagina, sua interminável re
petição do que Luce Iragaray chama de “a lei do mesmo” . E es
sa unilateralidade que gera a inevitável perda de aura e mistério
por parte do filme pornô. Embora o sexo seja autotélico e se jus
tifique por si próprio, quando focalizado exclusivamente parece
perder sua qualidade e implodir. Para Bakhtin, a sexualidade sem-
87
Conclusão
O presente ensaio não fez mais do que esboçar as possibili
dades de uma análise bakhtiniana do cinema. Não exploramos,
por exemplo, as implicações das concepções de focalização e “pon
to de vista’’ das relações autor-personagem. Para Bakhtin, pon
to de vista é mais do que uma questão técnica; é também uma
questão social, política e ética, uma concretização das diversas
potencialidades das relações eu-outro. Bakhtin comparte com
Benveniste um interesse pelos “trocadores” pronominais, o jo
go recíproco de “eu” e “você” no interior do discurso e da histó
ria, assim como partilha com Brecht uma insistência na necessi
dade simultânea de identificação e distância, empatia e “exoto-
pia”, a capacidade de ocupar a posição do outro através da ima
ginação, para depois retomar um distanciamento crítico. Tampou
co falamos da interessante concepção de “cronótopo” de Bakh
tin, ou seja, a constelação de características distintivas tempo
rais e espaciais dentro de um gênero definido como um “tipo
de enunciado relativamente estável” . (Vivían Sobshack inicia es-
100
EM PO RTUG UÊS
DO AUTOR
SOBRE O AUTOR
ÊM IN G L Ê S
DO AUTOR