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[ue signos entrava o Sol, assim cor.

Feito isso, Gargantua era vestido,’


rranjado e perfumado. Enquanto iss! V
ões do dia anterior. Já as dizia d e o ^ ^ R
ão com alguns casos práticosR
Inana, que eles ouviam, às M ^ H fe
toras, só deixando de fazê-lo, WÊ$F'
le todo vestido. Depois, liam-lW ^

Em seguida, saíam, citando s ^ ^ ^ ^ '


se divertiam na Bracque (299), 9 ^^^Jírjoganc
)éla ou bola trígona (300), exenWMogalantemente
:orpo, da mesma forma que antes tinham exercitadc
tima. D’vortiam-se livremr
: 1 - om à 2 M 6

DA TEORIA LITERARIA
À C U L T U R A DE MASSA

rtüimrm átü-M
Série

Temas
Volume 20
Literatura e Sociedade

TEXTO
EDITOR
Fernando Paixão
ASSISTÊNCIA EDITORIAL
Isa Mara Lando
TRADUÇÃO
Biblioteca Sstoí J c¡e Heloísa Jahn
Biblioteconomia e PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS
Janice Maria Flórido
Comunicação
REVISÃO
N° Eliana Antonioli
A RTE
Chamada
PROJETO GRÁFICO (MIOLO)
Milton Takeda
COORDENAÇÃO GRÁFICA
Jorge Okura
•OSIÇÃO E PAGINAÇÃO EM \
Maria Alice Silvestre
Registro : "Y - CAPA
Isabel Carballo
D.~í? : 3 J o /

ISBN 85 08 04196 9

1992
Todos os direitos reservados
Editora Atica S.A.
R. Barão de Iguape, 110 — CEP 01507
Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656
End. Telegráfico "Bomlivro" — Fax: 277-4146
São Paulo (SP)
16283

FBC
1996/ 11 5743 -3
1. 9 9 8 / 1 0 / 2 6
9201

Para Giba

Agradecimentos:

Ella Shohat
Boris Schnaiderman
Gilda Penteado
Hélio Goldsztein
Heloísa Jahn
Isa Mara Lando
Ismail Xavier
João Luiz Vieira
Lúcia Guimarães
Luiz Antonio Coelho
Paulo César Souza
Sumário

l'n'liii lo ____________________________________ 7
lnlmdiii,-,ii> _____________________________________ 9
À ili ti nl)(Tl;i do diálogo ______________________ ___ 1 5
Pi i ihlimno: uma crítica marxista ___________________ 20
11 ini-timl«i formal nos estudos literários ______________ 2 2
Miii Mniiio e filosofia da linguagem __________________ 2 9
l'inlilrmns da poética de Dostoiévski ________________ 3 6
\ ' iiltura popular na Idade Média e no Renascimento:
contexto de François Rabelais ___________________ 42
I ii Itakhtm à América Latina ______________________ 48
I ir Hakhtin ao cinema ____________________________ 58
I I i mema e os gêneros do discurso __________________ 6 8
I imlogismo cultural e textual _______________________ 7 2
llaklitin, erotismo e cinema ________________________ 7 9
A pornografia como carnaval ersatz _________________ 82
( i corpo grotesco e a cultura do riso _________________ 8 6
l ai navais eróticos e carnavalização paródica _________ 89
Humo a uma translingüística do erotismo ____________ 9 2
l onclusões e perspectivas futuras __________________ 96
Hililiografia _____________________________________ 1 0 3
Prefácio

O
V ¡ i|tir segue nâo é uma biografia nem um trabalho erudi-
im ilm- Mlkliail Bakhtin. Trata-se, antes, de um diálogo com
mil •ilii n uma leitura bastante pessoal e afetuosa estendida, em
•mim - iiiiplii .u;òes, a um país (o Brasil) e a um meio (o cinema)
•|ii> llnltlilm raramente menciona. Não é uma análise exaustiva
'ii i bakhliniana — muito pouco se trata aqui, por exemplo,
.1.i-* i ii-uiii>s reunidos subseqüentemente, em inglês, no livro A
....... ilialógica (Texas, 1981), onde ele desenvolve com
n. ii. |imlimdidade suas teorias sobre o romance. Portanto, meu
i i¡liiileiio interesse não é revelar o autêntico Bakhtin, ou situar
iui mIh i no contexto intelectual da União Soviética (para tanto,
Mita nu o necessário conhecimento na área de estudos eslavos
. >11 1 idioma russo), mas sim explorar o potencial analítico dos
..... .. e da metodologia de Bakhtin.

<i:lil utos das obras citadas aparecem sempre em português, numa tradução li-
11 i ¡iI ou com o nome com que foram publicadas no Brasil. (N.E.)
Introdução

i '
I i li livro se propõe oferecer ao leitor brasileiro uma in-
utedui iio i om isa ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Embora a
►in ma sobre a obra de Bakhtin, também tentaremos dar
iciuh mii,ao de sua vida. Não sou nem historiador nem biógrafo;
n Inlm inações tocantes à vida de Bakhtin vêm das indicações
iii*ui i mi i fornecidas por Michael Holquist e Katerina Clark
; ui lliikhtiii (Harvard Press, Cambridge, 1984) e por Todorov
: mi il iHincffiio dialógico (Minnesota Press, Minneapolis, 1982).
Niiu hi procedimento será o seguinte: depois de uma breve intro-
ilm.no, .ilirmando a relevância das idéias de Bakhtin para os estu-
i" •iiliie a cultura, percorreremos, mais ou menos cronologica-
mriiii , seus escritos mais importantes. O capítulo final examina­
i * ii aplicabilidade das suas categorias conceituais à minha área
I' especialização, o cinema.
A influência de Mikhail Bakhtin e do Círculo de Bakhtin
liv se sentir amplamente nos estudos literários e culturais nào
ifi da União Soviética como da Europa ocidental, Estados Uni­
dos, Japão e Brasil. Cada país e cada escola, porém, parecem ter
''ii próprio “Bakhtin”, e não raro se observa a existência de
llnkhtins diversos no mesmo país. Assim, encontramos Bakhtin,
0 formalista, e Bakhtin, o antiformalista, e lado a lado com Bakh-
1ni o fenomenologista, Bakhtin, o marxista, e Bakhtin, o pós-es-
Imluralista. Na França, quando se editaram as traduções de
seus livros sobre Dostoiévski e Rabelais, no final da década de
ii(), Bakhtin foi considerado uma espécie de proto-estruturalista,
oriundo da tradição formalista. Julia Kristeva, em dois ensaios
fundamentais, “Bakhtine, le mot, le dialogue et le román” (1967)
e “Une poétique ruinée” (1970), apresentou Bakhtin como urna
espécie de precursor dos teóricos literários franceses mais sofistica­
dos. Sua tradução do “dialogismo” de Bakhtin como “intertextua-
lidade” provocou uma proliferação de estudos sobre intertextuali-
dade, muitos dos quais mantinham apenas uma tênue conexão com
o pensamento de Bakhtin. (A publicação, em 1981, de Mikhail
Bakhtin: o principio dialógico, de Tzvetan Todorov, deu início a
uma importante reavaliação da obra de Bakhtin.) Enquanto isso,
no mundo de língua inglesa, Bakhtin foi considerado, em grande
medida, o teórico do carnaval e das inversões rituais da hierar­
quia. Só recentemente, com a tradução de numerosos livros de
e sobre Bakhtin, ele passou a ser visto como um teórico funda­
mental da língua e da literatura.
No Brasil, Bakhtin é conhecido como o teórico da carnava-
lização, no que tem de pertinente em relação à literatura brasilei­
ra em particular e à cultura latino-americana em geral, principal­
mente devido às observações sobre o carnaval e à sátira em Pro­
blemas da poética de Dostoiévski (Forense, Rio de Janeiro, 1981)
e à leitura, em inglês ou francês, e agora em português, de Ques­
tões de literatura e de estética: a teoria do romance (Hucitec/Unesp,
São Paulo, 1988) e A cultura popular na Idade Média e no Renas­
cimento: contexto de François Rabelais (Hucitec, São Paulo, 1987).
Assim, Affonso Romano de Sant’Anna deu cursos sobre carnava-
lização literária na PUC do Rio de Janeiro, enquanto o seu Paró­
dia, paráfrase & cia. (Atica, São Paulo, 1985) mostra a forte in­
fluência das conceituações de Bakhtin. Boris Schnaiderman, em
São Paulo, orienta teses universitárias ligadas a Bakhtin (por exem­
plo, a excelente dissertação de Irene Machado) e escreve com
muita lucidez sobre Bakhtin em livros como Turbilhão e semen­
te: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (Duas cidades, São Paulo,
1983). O número especial de Tempo Brasileiro (n? 65) dedicado
à paródia, com artigos de Emir Rodríguez Monegal, Maria Lúcia
P. de Aragón, Lúcia Helena, Boris Schnaiderman e Haroldo de
Campos, mostra uma clara influência de Bakhtin. E Suzana Ca­
margo, em Macunaíma: ruptura e tradição (Massao Ohno/João
Farkas, São Paulo, 1977), analisa o romance de Mário de Andra­
de à luz das catorze características principais da sátira menipéia
apresentadas por Bakhtin. (Embora a análise do carnaval brasi­
leiro por Roberto da Matta apresente analogias claras com o pen-
sarnento de Bakhtin, suas referências tendem a ser a Victor Tur-
ner, e não ao pensador russo, e poucos comentaristas tentaram
relacionar a obra antropológica sobre o fenômeno social do carna­
val à obra literária sobre a carnavalização.) Na área de estudos
sobre cinema, João Luiz Vieira, numa tese de doutorado intitula­
da Hegemonia e resistência: paródia e carnaval no cinema brasilei­
ro (Universidade de Nova York, 1984), aplica teorias da carnava­
lização à chanchada e ao cinema de vanguarda, com resultados
muito estimulantes.
Infelizmente, outros aspectos do pensamento de Bakhtin
não tiveram a ampla divulgação obtida pelo conceito de “carna­
valização” . Na realidade, apenas parte da obra de Bakhtin foi
traduzida para o português. Existe uma tradução de Marxismo e
filosofia da linguagem (Hucitec, São Paulo, 1979), livro atribuí­
do a Voloshinov na versão inglesa, mas no qual, indubitavelmen­
te, Bakhtin desempenhou papel fundamental. Esse livro, porém,
parece ter tido pouca repercussão na vida intelectual brasileira,
apesar de explorar um aspecto do pensamento de Bakhtin ainda
mais rico em aplicação potencial à produção cultural brasileira, e
mesmo a toda produção cultural: sua teoria da linguagem e do
“dialogismo” . O presente livro foi escrito a partir da convicção
de que as outras obras de Bakhtin também são extremamente
relevantes, e de que seu pensamento — por razões que, espera­
mos, ficarão claras em seguida — tem especial relevância para
o estudo da vida cultural brasileira.
É muito difícil classificar Mikhail Bakhtin. Como seus es­
critos englobam lingüística (Marxismo e filosofia da linguagem),
psicanálise (Freudismo) e crítica literária (O método formal. Pro­
blemas da poética de Dostoiévski, A cultura popular na Idade Mé­
dia e no Renascimento), é mais adequado considerá-lo simplesmen­
te um dos maiores pensadores do século XX. Somente agora te­
mos informações suficientes para chegar a essa conclusão, pois
a obra de Bakhtin, embora extensa, permaneceu na obscurida­
de durante quase toda a sua vida. Essa obscuridade tem razões
ao mesmo tempo pessoais e históricas. Curiosamente, Bakhtin
não tinha o menor interesse por fama e prestígio; muitas vezes
seus livros eram publicados sob o nome de outros (Voloshinov,
Medvedev). Nove dos livros de Bakhtin foram escritos durante
a longa noite do stalinismo, durante seu exilio no Casaquistão,
e somente um deles apareceu como sendo de sua autoria. Três
foram publicados sob nomes diferentes: Freudismo: uma crítica
12

marxista (1929) e Marxismo e filosofia da linguagem (1929) fomm


publicados sob o nome de V. N. Voloshinov, e O método formal
nos estudos literários (1928) sob o nome de P. N. Medvedev. Al
guns livros desapareceram quando os nazistas queimaram a edi
tora que planejava publicar um manuscrito de Bakhtin, e outros
sofreram atraso na publicação quando os jornais que haviam acei
to manuscritos de Bakhtin foram fechados; outros ainda, como
o livro sobre Rabelais, foram censurados por serem considera­
dos excessivamente explícitos e enfáticos na maneira como se
referiam ao sexo e ao corpo.
No âmago da empresa de Bakhtin está uma filosofia da lin­
guagem que é também uma ética e a base de um método literá­
rio de análise. Bakhtin escreveu muitos livros sobre muitos as­
suntos, numa variedade de linguagens ideológicas que vão do
idealismo neokantiano ao idealismo marxista, e mesmo a uma
dissimulada subversão do idioma oficial do stalinismo. Mas em
todos os livros encontramos variações do tema central da lingua­
gem e do dialogismo. Esse tema central assume diversos nomes:
poliglossia, heteroglossia, polifonia, dialogismo. Todos os termos
estão associados à comunicação através da diferença, tanto entre
pessoas como entre textos ou grupos sociais. Diferentemente
de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiaram a langue, is­
to é, o sistema abstrato da língua, com suas características for­
mais passíveis de serem repetidas, Bakhtin enfatizou a heteroge-
neidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme
das manifestações de linguagem em situações sociais concretas.
Bakhtin vê a linguagem não só como um sistema abstrato, mas
também como uma criação coletiva, parte de um diálogo cumula­
tivo entre o “eu” e o outro, entre muitos “eus” e muitos outros.
Para Bakhtin, os limites grosseiros que separam as línguas natu­
rais (“poliglossia”) representam apenas uma extremidade num
continuum. Cada comunidade lingüística aparentemente unifica­
da também se caracteriza pela “heteroglossia” , ou “multilingua-
gem” , em que as diferentes linguagens de diversas gerações, clas­
ses, raças, gêneros e locais competem pela ascendência. Cada lín­
gua é a arena onde competem “acentos” sociais diferentemente
orientados; cada palavra está sujeita a pronúncias, entonações e
alusões conflitantes. Cada língua é um conjunto de linguagens,
e cada sujeito falante abre-se para uma multiplicidade de lingua­
gens. Toda comunicação impõe um aprendizado da linguagem
do outro, uma espécie de tradução, ou de acordo, com o significa-
13

do situado nos limites do nosso conjunto pessoal de linguagens


e do de outra pessoa. Todos nós somos multilíngües; falamos
uma linguagem com os amigos e outra com os inimigos; falamos
linguagem infantil com as crianças e a linguagem do amor com
os amantes. Assim, a tradução interlingüística tem como contra­
partida a “tradução” intralingüística, exigida no diálogo entre
pessoas, classes e comunidades diversas.
A contribuição de Bakhtin à teoria e à análise cultural, por­
tanto, é uma visão unitária, transdisciplinar, das ciências humanas
e da produção cultural, baseada, nas palavras de Todorov, “na
identidade de seus materiais, de seus textos e de seu método: a
interpretação...” A definição abrangente de Bakhtin para “texto” ,
como aquilo que diz respeito a toda produção cultural fundada
na linguagem (e para Bakhtin não há produção cultural fora da
linguagem), tem o efeito de apagar as linhas divisórias entre
as disciplinas, e também com a linha divisória entre texte e hors-
texte. Na realidade, virtualmente todas as categorias-chave de
Bakhtin — “carnaval” , “heteroglossia” , “polifonia” e “dialogis-
mo” — englobam simultaneamente o textual, o intertextual e o
contextual. Tal como os formalistas, Bakhtin é sensível à especi­
ficidade dos mecanismos textuais, mas, à diferença deles, recu­
sa-se a dissociar esses mecanismos dos processos sociais. Em
Freudismo: uma crítica marxista, ele escreve: “Toda manifesta­
ção oral é produto da interação dos interlocutores e, amplamen­
te falando, de toda a situação complexa em que se deu” .
Ao mesmo tempo, a cuidadosa atenção de Bakhtin para com
o interlocutor do texto, bem como sua convicção de que todo dis­
curso existe em diálogo não apenas com discursos prévios, mas
também com o receptor do discurso, associam-no às preocupa­
ções da teoria contemporânea da recepção, de Jauss e Iser. Tal
como os teóricos da recepção, Bakhtin rejeita modelos referenciais
de discurso artístico. Mais do que refletir uma situação pró-tex-
tual, o discurso é uma situação. A elocução artística é uma interlo-
cução, um meio-termo entre o texto e um leitor cuja compreensão
receptiva é buscada e antecipada, e de quem o texto depende pa­
ra sua concretização. Tanto Bakhtin como a teoria da recepção
resistem ao isolamento formalista do texto; eles postulam leito­
res reais, ativos, com a diferença de que Bakhtin dá uma densi­
dade social mais específica aos leitores “virtuais” , “implícitos”
e “ideais” da teoria da recepção, munindo-os de um endereço
concreto, um nome, um gênero, uma classe, uma nação.
14

Outra vantagem das categorias conceituais de Bakhtin, so­


bretudo num contexto de Terceiro Mundo, é sua identificação
com a diferença e a alteridade, sua afinidade intrínseca com tu­
do o que é marginal e excluído. O carnaval, na acepção bakhtinia-
na, é o locus privilegiado da inversão, onde os marginalizados apro­
priam-se do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteri­
dade. É essa afinidade com o marginal e o periférico que torna
as categorias bakhtinianas especialmente adequadas para a análi­
se de práticas artísticas contestadoras, sejam elas terceiro-mundis-
tas, de vanguarda ou feministas. Como veremos em nossa análi­
se do cinema brasileiro, a metodologia bakhtiniana não precisa
ser “ampliada” para poder incluir práticas adversárias; adapta­
se perfeitamente a elas. Mais do que simplesmente “tolerar” a
diferença, a abordagem bakhtiniana respeita-a e até a aplaude.
A descoberta
do diálogo

-L/mbora a ênfase deste texto recaia sobre a obra de Bakh-


tin, é indispensável saber alguma coisa também sobre a sua vida.
Mikhail Mikháilovitch Bakhtin nasceu em Oriol, pequena cidade
ao sul de Moscou, no dia 16 de novembro de 1895. Com nove
anos de idade, mudou-se com a família para Vilna, capital da Li- ’
tuánia, que se caracterizava por urna animada mistura de classes,
línguas e grupos étnicos, fato que, certamente, proporcionou a
Bakhtin seu primeiro modelo real de poliglossia e heteroglossia.
Em Vilna havia poloneses e lituanos, lado a lado com urna nume­
rosa população de judeus que falava o iídiche. Desse modo, Vil­
na personificava o ideal cultural de Bakhtin, de um lugar sem voz
predominante no discurso, onde as linguagens culturais, de clas­
se e profissionais existissem em perpétua troca e confronto.
Com quinze anos, Bakhtin mudou-se com a familia para
Odessa, outra comunidade heteroglota de forte influencia judai­
ca. Lá, entrou em contato com o movimento de vanguarda deno­
minado futurismo, com a metodologia cultural denominada forma­
lismo, e com círculos teológicos radicais. Depois de um ano de
estudos na Universidade de Odessa, transferiu-se para a Univer­
sidade de São Petersburgo, inscrevendo-se no Departamento de
Línguas Clássicas da Faculdade Histórico-Filológica. Ali solidifi­
cou ainda mais sua formação literária, na tradição filológica que
16

incluiría mestres do porte de Erich Auerbach, Leo Spitzer e Ernsl


Curtius. Bakhtin também foi influenciado por seu professor Fad
dei F. Zelinsky, e especialmente pela noção de que diálogo, em
literatura, era a expressão da liberdade filosófica. Cada vez mais,
como veremos, Bakhtin passou a associar arte com espaço aber­
to, com liberdade, com alternativas utópicas para a cultura oficial.
Como a maioria dos jovens que faziam parte da intelligent-
sia russa, Bakhtin apoiou a Revolução de 1917. Era menos favo­
rável, porém, a movimentos de vanguarda tais como o futuris­
mo, e a metodologias da moda tais como o formalismo. Depois
da Revolução passou dois anos em Nevei, cidadezinha situada
480 quilômetros ao sul de Petrogrado, trabalhando como pro­
fessor. Ao mesmo tempo, passou a fazer parte de um círculo
filosófico que se reunia regularmente para discutir obras de filo­
sofia que incluíam desde os antigos gregos até Hegel e Ivanov.
Em 1920, Bakhtin mudou-se para Vitebsk, cidade cujo aspec­
to foi imortalizado nas pinturas de Marc Chagall. Naquela épo­
ca, Vitebsk era um animado centro cultural, com um ativo jor­
nal (Iskusstvo) e freqüentes leituras e debates. O Círculo Filosó­
fico de Bakhtin prosseguiu, perdendo alguns membros mas aco­
lhendo outros, inclusive Pavel Nikolaevitch Medvedev, com
quem Bakhtin iria colaborar no livro O método formal nos estu­
dos literários. Bakhtin ensinava e fazia conferências na Bibliote­
ca Pública, muitas vezes acompanhando suas observações com
emocionadas declamações de seus poemas prediletos. Foi em
Vitebsk, também, que ocorreram dois eventos de enorme im­
portância pessoal. Em 1921, Bakhtin casou-se com Elena Ale-
xândrovna Orkolovic, que seria sua companheira até morrer,
em 1971. Durante o mesmo período, contraiu uma enfermidade
óssea que o atormentaria toda a vida, e que causou a amputação
de uma de suas pernas em 1938.
Foi em Vitebsk que Bakhtin publicou seu primeiro ensaio,
intitulado “ Arte e responsabilidade” , no qual contrapõe duas con­
cepções de unidade artística, uma mecânica e puramente formal,
outra conceituai, na qual a unidade é criada pela atividade arqui­
tetônica da mente. Como muitos artistas e pensadores da época,
Bakhtin estava preocupado com a relação entre arte e vida so­
cial, e sua resposta a essa questão estava profundamente imbuí­
da das idéias da escola neokantiana de filosofia, para a qual o
poder estruturador da imaginação era supremo.
Entre 1918 e 1924, Bakhtin fez diversas tentativas de enfren­
tar essas questões, numa série de ensaios sobre “Arte” e “ Res-
17

ponsabilidade” . O tema central desses ensaios é a natureza da


relação entre o “eu” e o “outro” , uma questão muito em voga
na época, mas à qual Bakhtin dá uma ressonância bem pessoal.
Bakhtin argumenta que cada um de nós ocupa um lugar e um tem­
po específicos no mundo, e que cada um de nós é responsável,
ou “respondível” por nossas atividades. Essas atividades ocorrem
nas fronteiras entre o eu e o outro, e, portanto, a comunicação
entre as pessoas tem uma importância capital. O eu, para Bakh­
tin, não é autônomo nem monádico, o cogito autocriador de Des­
cartes; em vez disso, existe somente em diálogo com outros eus.
O eu necessita da colaboração de outros para poder definir-se e
ser “autor” de si mesmo. Bakhtin acha uma analogia para essa
necessidade vital do outro no domínio da biologia, onde a própria
vida é definida como a capacidade de reagir a estímulos ambien­
tais. O eu humano, por analogia, não tem existência independen­
te; depende do meio ambiente social, que estimula sua capacida­
de de mudança e resposta.
E nesse período que Bakhtin formula uma noção da relação
entre eu e outro, que se situa no âmago de seu projeto. Sua con­
cepção da relação entre o eu e o outro apresenta analogias com
outras concepções da ciência, particularmente com o conceito da
relatividade, de Einstein — a saber, o papel determinante do lo-
cus, a partir do qual se observam os fenômenos —, e com o “prin­
cípio da indeterminação”, de Heisenberg, ou seja, a idéia de que
o próprio ato da observação científica altera inevitavelmente o fe­
nômeno em observação. O que vemos é determinado pelo lugar
de onde vemos. Em se tratando de um diálogo humano, observa
Bakhtin, posso ver o que você não pode ver (você mesmo, sua ex­
pressão, os objetos que estão por detrás de você) e você vê o que
não posso ver. Essa necessária e produtiva complementaridade
de visões, compreensões e sensibilidades, forma o cerne da no­
ção bakhtiniana de diálogo. Esse processo de diálogo, de autocom-
preensão através da alteridade, através dos valores do outro, co­
meça cedo, quando as crianças vêem-se a si próprias através dos
olhos da mãe (aqui encontramos uma versão mais alegre da “re­
lação dual” com a mãe, de Lacan, que não passaria de um engo­
do impregnado de um reconhecimento equivocado, sucedido pe­
la perda irreparável) e prossegue durante toda a vida.
Na concepção generosa de Bakhtin, o eu se constrói em co­
laboração. Mas essa colaboração pode ser impedida por forças
sociais. Embora longe de ser um marxista ortodoxo, Bakhtin par­
tilha com um certo marxismo uma marcada sensibilidade à alie-

I . de de Biblioteconomia e Cr .
P I B , ' »~i T r C L
18

nação característica da sociedade capitalista, na qual todas as ic


lações pessoais submergem “nas águas gélidas do cálculo egots
ta” , e onde o ego autônomo, o homo economicus, exerce o seu do
minio. Mas Bakhtin afasta-se do marxismo clássico ao dar me­
nos ênfase à determinação econômica, em favor de uma visão
mais comunitária da dialética social, no interior da qual os eus
são “autores” uns dos outros. A opção de Bakhtin pela palavra
“autor” não é casual, pois para ele a atividade do diálogo e da
criação do personagem no interior da literatura é modelar para
o diálogo e a criação em todos os domínios da vida. O autor lite­
rário, como o eu concebido por Bakhtin, não é uma entidade es­
tática, mas, antes, uma energia disponível, que existe em intera­
ção com outros eus e personagens. Não surpreende, portanto,
que boa parte da obra subseqüente de Bakhtin lide precisamen­
te com essa questão: a relação entre o eu autoral (não no senti­
do biográfico, é óbvio, mas no sentido do autre moi de Proust) e
os outros eus projetados pela ficção. Trata-se, afinal, da relação
entre o texto e todos os seus “outros” : o autor, o leitor, o intertexto.
Toda a obra de Bakhtin gira em torno desse eixo do eu e
do outro, e da concepção de que a vida é vivida nas fronteiras en­
tre a particularidade de nossa experiência individual e a auto-ex-
periência de outros. Para Bakhtin, o eu não está “lacrado” : ele é
capaz de atravessar a fronteira e de imaginar o outro como sujei­
to e ver a si mesmo como objeto. (Embora essa visão do outro se­
ja comparável à “capacidade negativa” de Keats e à ênfase ro­
mântica na subjetividade transcendente, Bakhtin não tem a mega­
lomania da imaginação individual, que tanto caracteriza os român­
ticos.) O conceito da relação dialógica entre eu e outro supõe di­
versas dicotomías conceituais, posteriormente desenvolvidas por
Bakhtin: épica/romance, oficial/não-oficial, normalidade/carnaval
e monologismo/dialogismo. No interior de todas essas dicotomías,
o primeiro termo evoca uma relação opressora entre um eu (ou
vários) e outro eu (ou vários). Essa preocupação com o eu e o ou­
tro reflete a preocupação de muitos pensadores do século XX, co­
mo Heidegger, Sartre e Lacan, mas não devemos esquecer de
que Bakhtin se interessou por essas questões durante as duas pri­
meiras décadas do século, muito antes dos outros. A personalida­
de não agressiva de Bakhtin e as vicissitudes da censura stalinis-
ta foram responsáveis pela não difusão da sua obra.
Entre 1924 e 1929, Bakhtin escreveu quatro livros fundamen­
tais, que exigem, individualmente, comentários mais aprofundados.
19

Esses anos foram vividos no centro cultural que era Lenin-


grado, mas Bakhtin permaneceu praticamente desconhecido, es­
tranhamente marginalizado em relação aos grupos intelectuais
da cidade. Mas, embora ele não tivesse nenhum laço institucio­
nal, e com freqüéncia publicasse seus trabalhos sob outros no­
mes, tinha o consolo do Círculo de Rakhtin, naquele momento
enriquecido por diversos novos membros, inclusive Nikolai Kon-
rad, especialista nas culturas coreana, chinesa e japonesa, Mi-
khail Israilevitch Tubyansky, especialista em literatura mongol,
tibetana e bengali, e Sollertinsky, polímata conhecedor de 25 idio­
mas. Dois outros membros, Medvedev e Voloshinov, já faziam
parte do Círculo há mais tempo. Assim, embora Bakhtin pessoal­
mente não se tornasse famoso, estava rodeado por uma elite inte­
lectual bastante versátil e inconformista. E difícil não ver, no vi­
goroso intercâmbio de um grupo como esse, um modelo parcial
para a animada heteroglossia, uma espécie de carnaval intelec­
tual, que Bakhtin sempre apresentou como uma utopia implícita.
Dentro do Círculo, a diferença era celebrada num alegre espíri­
to de indagação dialógica.
Como muitos críticos já observaram, é irônico que Bakhtin,
que dedicou tanto de sua energia intelectual à teorização da ques­
tão da autoria, devesse ele próprio ser objeto de disputas em tor­
no de autoria. Na década de 20, como vimos, diversos livros que
tiveram Bakhtin por autor principal, como mais tarde se reconhe­
ceu, foram publicados exclusivamente sob nomes de amigos.
Apenas Medvedev recebeu o crédito por O método formal e so­
mente a Voloshinov atribuíram-se Freudismo: uma crítica marxis­
ta e Marxismo e filosofia da linguagem. Só podemos especular so­
bre as razões para a reticência de Bakhtin em assumir a autoria
de trabalhos onde sua participação fora muito importante, se não
fundamental. Uma extraordinária generosidade, eclipsando o pró­
prio nome e emprestando suas idéias a outros? Falta de tempo,
devido a atividades como professor e conferencista, e a conseqüen-
te impossibilidade de aprimorar seus textos até o ponto que dese­
jasse? Um parti pris filosófico pelo texto anônimo ou protegido
por um pseudônimo, e um desejo conceituai de submergir no in­
tertexto? Um pendor carnavalesco por máscaras, fantasias, dis­
farces e troca de identidades? Ou um medo da censura e da puni­
ção, por razões políticas? Talvez todos esses fatores combinados.
Seja como for, avançaremos partindo do pressuposto de que as
obras em questão representam uma mescla de vozes, a de Bakh­
tin e as de seus colaboradores, visão que nos parece estar de acor­
do com a concepção de autoria de Bakhtin.
Freudismo: uma crítica
marxista

ào precisamos nos deter longamente em Freudismo:


uma crítica marxista, visto que, em vários aspectos, trata-se de
uma crítica marxista vulgar das idéias de Freud. O livro combi­
na um entusiasmo sincero pela “ousadia” e “originalidade” do
pensamento freudiano com resumos um tanto simplistas da teo­
ria psicanalítica. Para os nossos objetivos, é mais interessante a
maneira como o livro esclarece o modo de pensar de Bakhtin.
Ele começa por isolar o que considera o motivo ideológico bási­
co do freudismo, o biologismo. De acordo com Bakhtin, o freu­
dismo, com a ênfase que atribui à sexualidade, exalta implicita­
mente o poder e a sabedoria supremos da Natureza. Abandonan­
do a atmosfera fria e desconfortável da história, o freudismo se
refugia na calidez orgânica do lado animal da vida. Mas os seres
humanos, para Bakhtin, são tão sociais quanto orgânicos; não
nascem como organismos biológicos abstratos, mas como pessoas
socialmente formadas: proprietário rural ou camponês, burguês
ou proletário, russo ou francês. Essa crítica, nem é preciso dizer,
está longe de fazer justiça à complexidade do pensamento de
Freud. Mais instigante é a ênfase que Bakhtin atribui (muito an­
tes de Lacan) à dimensão específicamente linguística do projeto
freudiano, e isso numa época em que Freud ainda era considera­
do por muitos um clínico, e não um teórico: “Toda a construção
21

psicológica de Freud baseia-se fundamentalmente na expressão


verbal humana; nada mais é do que um tipo especial de interpre­
tação das expressões” . Assim, Bakhtin, o filólogo e crítico literá­
rio, vê a psicanálise como uma hermenêutica, uma explication de
texte prolongada. Como as produções do inconsciente são acessí­
veis apenas “traduzidas” para a linguagem da consciencia, co­
mo também as “associações livres” são construções verbais, a
psicanálise é integralmente lingüística, tendo, como informações
básicas, a linguagem e o significado.
Portanto, Bakhtin faz uma dupla operação com a teoria freu­
diana. Em primeiro lugar, desloca o foco da atenção para a lin­
guagem propriamente dita, ao insistir na natureza verbal não
apenas do método psicanalítico, como da própria psique. Em se­
gundo lugar, critica o fato de Freud não reconhecer a dimensão
político-histórica dessa linguagem, pois “a palavra”, para Bakh­
tin, é sempre ideológica por natureza. Qualquer troca de pala­
vras, mesmo entre analista e paciente, caracteriza-se por uma
entonação social específica através da qual adquire especificida­
de e momentum históricos.
Bakhtin chega ao ponto de afirmar que .o conceito central
da psicanálise, o inconsciente, é uma ficção ideológica, já que o
assim chamado inconsciente é, na realidade, lingüístico por natu­
reza, e a linguaguem é sempre social e histórica, portanto um
aspecto do consciente. Ousadamente, Bakhtin reformula a distin­
ção inconsciente/consciente, como uma diferença não entre duas
ordens da realidade, mas entre duas modalidades de consciência
verbal. Os fenômenos que Freud apresenta como manifestações
do “inconsciente” nada mais seriam do que outra espécie de “cons­
ciente não oficial”, que se afasta das normas socialmente aceitas
e prefere um discurso do tipo “interno” . Enquanto isso, a cons­
ciência oficial, expressa no “discurso externo” , faz parte de um
mundo público cujas ideologias podem ser abraçadas com toda
respeitabilidade, sem temor de ofensa ou ridículo. Mas tanto o
discurso “interno” quanto o “externo” , tanto a consciência não
oficial quanto a oficial são igualmente sociais; não são proprie­
dade privada, mas patrimônio partilhado por um grupo social.
Isso antecipa a concepção de carnaval, de Bakhtin, como sub­
versão do discurso oficial e liberação da censura, um momento
especial em que o discurso interno não teme tornar-se discurso
externo. Dessa forma, Bakhtin politiza, socializa e historiciza a
idéia freudiana de inconsciente.
O método formal nos
estudos literários

O s formalistas russos, jovens críticos literários de Lenin-


grado (Viktor Chklovski, Boris Eikhenbaum e Yuri Tinianov) e
jovens lingüistas de Moscou (Román Jakobson), exerciam gran­
de influencia durante a década de 20. Embora o próprio Bakhtin
tenha sido classificado ocasionalmente como “formalista russo” ,
na realidade sua ligação com o movimento é uma mistura extre­
mamente complexa de apreciação, oposição e distância. Bakhtin
começou a escrever sobre os formalistas em 1924, mas seu inte­
resse por eles culminou em O método formal nos estudos literários,
livro que apareceu sob o nome de Medvedev em 1928, mas que
traz a marca inconfundível do pensamento e do estilo de Bakhtin.
O debate Bakhtin/Medvedev com o formalismo é um deba­
te generoso, dialógico, que tinha o objetivo de ensejar uma tro­
ca de idéias com o oponente, e não de aniquilá-lo. O livro come­
ça atribuindo uma grande dose de crédito aos formalistas pelo
fato de terem colocado “os problemas essenciais dos estudos lite­
rários” . As principais críticas de Bakhtin/Medvedev aos formalis­
tas são antecipadas no estudo de Bakhtin de 1924. Para Bakhtin,
os formalistas estão errados ao isolar o estudo da literatura das
outras artes, e da teoria estética e filosófica, pois a ciência literá­
ria não passa de um ramo do estudo das ideologias. A recusa for­
malista de investigar os fundamentos teóricos de sua própria prá-
23

tica resulta em considerável confusão. Por isso, Bakhtin empreen­


de a tarefa de formular a ideologia subjacente ao formalismo,
que define como urna “estética dos materiais” . Os materiais —
linguagem na literatura, som, imagem e linguagem no cinema
— determinam formas artísticas. Invertendo os valores conven­
cionais do realismo ingenuo, segundo os quais o conteúdo é um
fim em si mesmo e os meios técnicos e materiais são meramen­
te acessórios, os formalistas postulavam o oposto: o conteúdo
não tinha importância, e a utilização dos materiais, os artifícios,
era fundamental. Essa metodologia, para Bakhtin, leva inapela-
velmente à valorização de procedimentos vazios e à separação
de forma e conteúdo.
O método formal, ironicamente, não é apenas uma crítica
dos formalistas, mas também uma crítica dos críticos marxistas
dos formalistas. Interessante é a maneira como Bakhtin/Medve-
dev usa a linguagem e as categorias marxistas para subverter o
marxismo vulgar, economicista. Bakhtin/Medvedev não relega
a arte ao domínio da superestrutura. Em vez disso, insiste na ab­
soluta imbricação de infra e superestrutura (naquilo que Chris-
tian Metz denominaria mais tarde de justaestnitura). Para Bakh­
tin, não há significado literário externo à comunicação social ge­
ral. A literatura reflete, ou melhor, refrata o conjunto do horizon­
te ideológico do qual ela própria faz parte. Refrata os “discur­
sos” circundantes de outras esferas ideológicas, e por sua vez in­
cide sobre esses outros discursos. O fenômeno literário, como
qualquer outro fenômeno ideológico, determina-se simultanea­
mente de fora (extrínsecamente) e de dentro (intrínsecamente).
De dentro, é condicionado pela linguagem e pela própria literatu­
ra (e aqui os formalistas fizeram uma contribuição importante),
e de fora, pelas outras esferas da vida social. Mas, na prática,
Bakhtin/Medvedev iria rejeitar a metáfora espacial, enganosa,
do que está “dentro” ou “fora” da obra. Há um jogo constante
nas linhas divisórias entre os dois: o “interior” está sempre se
tornando “exterior” e vice-versa. Em O método formal a crítica
do marxismo' vulgar é implacável. E ingênuo, afirma Bakhtin/
Medvedev, pensar que textos artísticos arrancados à unidade
de seu mundo ideológico sejam, em seu isolamento, diretamen­
te determinados por fatores econômicos. As rimas e estrofes de
um poema, afirmam eles, não estão reunidas devido a uma causa­
lidade econômica. É exatamente devido ao fato de a literatura
não ser um mero reflexo que ela é capaz de antecipar desdobra­
mentos em outras áreas. O artista tem acesso ao processo gera-
24

dor da ideologia: por isso tem condições de antecipar desdobra


mentos futuros em outras áreas. Bakhtin/Medvedev é a favor
da autonomia relativa, da liberté sartriana dos discursos artísti
eos: a arte não é um simples servo, um simples transmissor de
outras ideologias; em vez disso, tem seus próprios processos in
dependentes e seu papel ideológico.
Na arte, a vida social é expressa no interior de um mate­
rial semiótico definido e na linguagem específica de um meio. É
precisamente nessa área da especificidade da arte — no caso, a
literatura — que Bakhtin/Medvedev atribui mais importância aos
formalistas. Em contraste gritante com o “ecletismo frouxo”
que o precedera, e com o “saber acadêmico sem princípios” , os
formalistas estudaram com agudeza e princípios o problema da
especificação literária. A tarefa do especialista, 'para o formalis­
ta, é revelar a unidade construtiva do texto. O crítico precisa es­
tar atento ao corpo representante do texto (aquilo que os semiólo-
gos chamariam de significante), e não passar imediatamente pa­
ra o que é representado. Como os formalistas, Bakhtin/Medve­
dev rejeita uma visão instrumental da técnica artística; o signifi­
cante artístico não é um mero acessório técnico para transmitir
“realidade” ou “grandes pensamentos” , mas uma parte da reali­
dade que é importante em si.
Bakhtin/Medvedev vê o formalismo russo como parte de
um mais amplo movimento intelectual do Ocidente, a saber, o
questionamento geral das tendências naturalistas da época prece­
dente. A tendência naturalista baseava-se na arte européia, clas-
sicamente orientada para o realismo, estética que se mostraria
provinciana e etnocêntrica quando a Europa entrou em contato
com as formas antimiméticas das artes africana e oriental. Sobre
o pano de fundo dessas formas “alienígenas” , o realismo euro­
peu passou a ser visto simplesmente como um entre muitos mo­
dos possíveis de se construir uma obra de arte.
Em geral, Bakhtin é mais benévolo com o formalismo euro­
peu em suas amplas tendências do que com o formalismo russo
per se. De acordo com Bakhtin/Medvedev, os formalistas russos
sofriam da ausência de um oponente respeitável e estimulante.
(É característico de Bakhtin ver o papel criador do adversário
como parte da natureza dialógica da polêmica.) Como não eram
obrigados a fazer frente a oponentes positivistas articulados, caíam
eles próprios em desvios positivistas. O formalismo russo viu-se
25

ainda mais debilitado graças a sua íntima ligação com o movi­


mento de vanguarda denominado futurismo. Os futuristas, co­
mo por exemplo Velimir Khlebnikov, ofereciam exemplos poéti­
cos de elaborações lúdicas de estruturas fonéticas, morfológicas
e sintáticas, e os formalistas passaram a ser seus teóricos e, até
certo ponto, seus divulgadores. A tentativa futurista de “libertar
a palavra” , infelizmente, provocou uma hostilidade mecânica
em relação ao velho (observe-se que a concepção bakhtiniana
de “intertextualidade” não conduz a uma hostilidade simplista
em relação ao passado): à negação do significado desgastado, e
não à infusão com um novo significado. As noções formalistas
de “tornar estranho” (ostranênie), de desautomatização e “defor­
mação” são extremamente passivas e mecânicas, envolvendo so­
mente questões de disposição externa e de transferência limita­
da da literatura antecedente. Desse modo, os formalistas, a des­
peito de seu ânimo contrário ao passado, tornaram-se prisionei­
ros do passado. A arte, para o formalista, transforma-se pura e
simplesmente num arsenal de “artifícios” em voga.
Para Bakhtin/Medvedev, os formalistas faziam um uso ex­
cessivo da simples inversão dos valores existentes, em lugar de
transformá-los ou de transvalorá-los. Enquanto os realistas ingê­
nuos consideravam o “conteúdo” um fim em si mesmo, e a téc­
nica um mero acessório, os formalistas defendiam o oposto: o
conteúdo não era importante; só os meios técnicos importavam.
Assim, os formalistas limitaram-se a virar pelo avesso a velha
dicotomía forma/conteúdo, de modo que o artístico se tornasse,
nas palavras de Chklovski, a “soma de seus artifícios artísticos” .
O objetivo desses artifícios é tautológico e auto-referente: seu
propósito é tornarem-se perceptíveis. Um sistema de procedimen­
tos vazios e ostensivos torna-se assim telos da arte, na concepção
formalista. Assim, impiedosamente, mas sem maldade, Bakhtin
expõe a lógica subjacente à poética formalista, parecendo com­
preender os formalistas mais do que eles próprios.
No cerne da poética formalista estava a distinção entre lin­
guagem prática e linguagem poética. A linguagem prática orien­
ta-se para resultados concretos no mundo real, enquanto o enun­
ciado poético é “violência praticada sobre a linguagem” , de mo­
do a percebermos novamente as palavras. A essência da literarie-
dade (literaturnost) é uma desautomatização que “ressuscita a
palavra” . Não chega a ser surpreendente que Bakhtin/Medvedev
rejeitasse essa visão da linguagem poética. Em primeiro lugar,
Bakhtin, com sua aversão à hierarquia, estava fadado a antipati-
26

zar com a hierarquização implicitamente elitista de linguagem


prática e linguagem poética. Em segundo lugar, a concepção t«n
malista da linguagem como uma luta entre dois tipos de disnn
so estava fadada a entrar em choque com a noção bakhtinian.i
de heteroglossia, a idéia de que cada língua nacional compreen
de, na realidade, um sem-número de sublinguagens. Em tercei
ro lugar, a linguagem poética e a linguagem prática não são tão
facilmente separáveis, já que vivem numa troca íntima constan
te. Para Bakhtin, a linguagem prática é intensamente criativa, e
muitos dos artifícios que os formalistas consideravam exclusiva
mente característicos da linguagem poética — ironias, evasões,
ambigüidades, auto-referência, também são potencialmente carac­
terísticos da linguagem prática. Em quarto lugar, a distinção for­
malista tende a definir linguagem poética de uma maneira pura­
mente negativa, ou seja, através de seu afastamento da lingua­
gem comum. Portanto, para os formalistas a linguagem poética
é parasitária; só é capaz de “tornar estranho” aquilo que já foi
constituído por outros sistemas de linguagem. Segundo o resu­
mo brutal de Bakhtin/Medvedev da posição formalista, “o rit­
mo artístico é o ritmo prosaico cindido. A única contribuição da
arte é a ruptura. O objetivo da poética é sistematizar a ruptura”.
A premissa central da linguagem poética enquanto avesso da lin­
guagem prática era fatal: “Tudo o que é fecundo só pode apare­
cer apesar dela” .
Enquanto os formalistas interpretam a relação entre litera­
tura e realidade extraliterária como absorção unilateral de uma
pela outra, Bakhtin propõe um processo dialético através do
qual o “extrínseco” e o “intrínseco” trocam constantemente de
lugar. Enquanto os formalistas enfatizam as leis imanentes do
desenvolvimento das formas no interior de uma série fechada
de natureza puramente literária, Bakhtin defende a inter-relação
de séries múltiplas — a série literária, a série de outros textos
ideológicos e a própria história. Para Bakhtin, cada enunciado
concreto, seja ele prático ou poético, é um ato social, no fundo
um evento histórico, mesmo que infinitesimal. O formalismo, ao
contrário, não deixa lugar para o histórico, apenas para uma mí­
tica “contemporaneidade permanente” . A história literária forma­
lista, segundo Bakhtin, inspira-se no futurismo, “no qual um mo­
dernismo extremado e a negação radical do passado associam-
se a uma completa ausência de conteúdo interno” . Os “ataques
vaudevillescos” do futurismo transformam-se no protótipo implí­
cito para toda a descendência literária.
27

A disputa de Bakhtin/Medvedev com os formalistas não de­


ve nos levar a negligenciar certas afinidades entre os dois gru­
pos. Bakhtin está de acordo com os formalistas quanto ao fato
de que toda arte, mesmo a “realista” , é construtiva. Também
apóia a concepção formalista da forma como tendo um significa­
do ideológico em si mesma, em lugar de ser um mero ornamen­
to ou instrumento. Já que tanto forma quanto conteúdo eram cons­
trutivos, e já que ambos eram ideológicos, os formalistas tendiam
a evitar a dicotomização de forma e conteúdo. Em sua somatória
final, Bakhtin/Medvedev afirma que, globalmente, o formalismo
teve um papel fecundo. Formulou questões cruciais, como a espe­
cificidade da linguagem literária e a relação entre literatura e
não-literatura, mas respondeu-as inadequadamente. Os críticos
dos formalistas, porém, inclusive os marxistas, deveriam reco­
nhecer seu valor como interlocutores provocantes. “Toda ciência
jovem”, conclui, “deveria dar muito mais valor a um bom adver­
sário do que a um aliado insignificante” .
O pensamento de Bakhtin durante a década de 20 era domi­
nado por uma preocupação preponderante: o desenvolvimento de
uma filosofia da linguagem baseada no dialogismo, o aspecto co­
municativo do discurso. Tanto Freudismo como O método formal
aplicam essa filosofia da linguagem a questões específicas, assim
como dois outros trabalhos publicados durante esse período: Dis­
curso no cotidiano e discurso em arte (1926) e Marxismo e filosofia
da linguagem (1929). O primeiro ocupa-se da diferença específica
entre comunicação verbal na arte e no âmbito da vida cotidiana.
(Identificamos aqui uma retomada bakhtiniana, concebida em es­
cala mais ampla, da questão formalista da linguagem poética ver­
sus linguagem prática.) No ensaio, que foi publicado sob o nome
de Voloshinov, Bakhtin afirma que a arte é um ato de comunica­
ção. Distingue-se do discurso cotidiano não através de “violência
contra a linguagem”, como apregoavam os formalistas, mas atra­
vés de sua relativa independência do contexto imediato. O discur­
so cotidiano depende daquilo que Bakhtin denomina “contexto ex­
traverbal” . Bakhtin dá o exemplo de um casal russo, em maio,
olhando pela janela e vendo que estava começando a nevar. Um
dos dois diz: “Bom...” e o outro não diz nada. O fato de saber­
mos o significado léxico da palavra “bom” não nos aproxima do
significado desse ato de falar. A palavra “bom” só adquire signifi­
cado quando relacionada ao campo de visão espacial comum aos
interlocutores (a neve fora da janela), ao conhecimento comum
28

da situação pelos interlocutores (ou seja, que a primavera já dovin


ter chegado há muito tempo) e à avaliação conjunta daquela situa
ção (uma reação de amargo desapontamento).
O discurso verbal, portanto, não é uma representação mi
mética de eventos, mas uma reação aos eventos. O discurso cons
titui uma situação dramática, cujas personae são o sujeito falan
te, o ouvinte e o tópico. Nossa identidade forja-se no intercâmbio
de linguagem com outros, à medida que começamos a nos ver
através dos olhos de outros. O discurso não é apenas o conteú
do ostensivo, aquilo que é dito, mas também o suposto, tudo o
que se deixa por dizer. É a entonação que comunica o suposto
ou o não dito, conferindo às simples palavras “momentum histó­
rico e singularidade” . Foi para as implicações ideológicas dessa
concepção da linguagem que Bakhtin se voltou em Marxismo e
filosofia da linguagem.
Marxismo e filosofía
da linguagem

( 3 pensamento contemporâneo ocupou se obsessivamen-


le da questão da linguagem. A idéia de que a linguagem estrutu­
ra tão completamente nossa compreensão do mundo que a “rea­
lidade” pode ser considerada, em parte, um efeito da convenção
lingüística, é central ao projeto de pensadores tão distintos co­
mo Russell, Wittgenstein, Heidegger, Merleau-Ponty e Jacques
Derrida. Marxismo e filosofia da linguagem, publicado sob o no­
me de Voloshinov em 1929, constitui a primeira intervenção de
Bakhtin nessa tradição contemporânea de reflexão sobre a lin­
guagem. O livro também deve ser visto no contexto da divulga­
ção, na União Soviética dos anos 20, das idéias do lingüista suí­
ço Ferdinand de Saussure, fundador espiritual da Escola de Lin­
güística de Genebra. Os intelectuais russos estavam familiariza­
dos com Saussure não só através do Curso de lingüística geral,
publicado postumamente, como também através da interpretação
das idéias de Saussure por Sergei Karcevskij, que voltou para a
Rússia em 1917, depois de ter estudado em Genebra. No Curso
de linguística geral, Saussure discutia a orientação histórica (dia-
crônica) da lingüística do século XIX, a favor de uma abordagem
“sincrónica”, ou seja, uma abordagem que estudasse a língua
como uma totalidade funcional num momento dado no tempo
(não o francês como se desenvolvera ao longo do tempo, por exem-
30

pío, mas tal como existe hoje). De acordo com a orientação sin
crônica, a lingüística deveria focalizar a langue — isto é, o sislc
ma da linguagem, com suas unidades básicas e suas regras de
combinação — e não a parole, as emissões concretas possibilita
das por esse sistema. Bakhtin, como veremos, inverte essa énfa
se, diminuindo a importância do sistema da língua como um mo
delo abstrato, e enfatizando, em seu lugar, a parole, a emissão,
o discurso vivido e partilhado por seres humanos em interação social.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin oferece um
relato abrangente daquilo que denomina “translingüística” , urna
teoria do papel dos signos na vida e no pensamento humanos, e
da natureza do enunciado na linguagem. A palavra “translingüís­
tica” poderia equivaler à “semiología” de Saussure (a ciência
dos signos e dos sistemas de signos), não fosse pelo fato de que
é precisamente a concepção de linguagem de Saussure que Bakh­
tin contesta. Embora concorde com Saussure em que deveria ser
criada urna disciplina que estudasse a “vida dos signos na socie­
dade” , Bakhtin diverge dele em sua concepção da natureza dos
signos e de seu papel na sociedade. Bakhtin considera a lingüís­
tica urna parte do estudo das ideologias, pois “o domínio da
ideologia coincide com o dominio dos signos” . Bakhtin contesta
o que considera o psicologismo de Saussure, situando a ideologia
no interior da consciência individual. Para Bakhtin, a consciência
só existe na medida em que se concretiza através de algum tipo
de material semiótico, seja sob a forma de “discurso interno” ,
seja no processo de interação verbal com os outros. Assim, Bakh­
tin descentraliza a consciência individual: “Os signos só podem
emergir em território interindividual” . Ele desmascara o aprecia­
do mito burguês da autonomia da consciência individual. A cons­
ciência individual é um fato sócio-ideológico: sem seu conteúdo
semiótico, ideológico, ela não existe. A consciência individual,
para Bakhtin, não pode ser usada para explicar seja lá o que
for; ela própria necessita ser explicada a partir de um ponto de
vista sociológico e translingüístico. O estudo das ideologias, por­
tanto, não deveria apoiar-se na psicologia.
Se Bakhtin, porém, oferece uma crítica marxista do psicolo­
gismo, mostra-se igualmente crítico em relação a um marxismo
vulgar, mecanicista, que relega o mundo dos signos e da ideolo­
gia a uma “superestrutura” determinada pela “base” econômi­
ca. Qualquer signo ideológico, segundo Bakhtin, “não só é um
reflexo, uma sombra, da realidade, como também é, ele próprio,
31

M|m i «mento material dessa realidade”. A consciência é lingüís-


►ii •»>( ial, portanto. Existe unicamente sob uma forma material,
••miiótica, e nesse sentido é um fato objetivo e uma força social:
"I l.i própria é parte da existência e uma de suas forças, e por
i t' ,i razão possui eficácia e desempenha um papel na arena da
rfciMrncia”. 0 que Bakhtin chama de ‘‘a palavra” , ou seja, a lin-
iium¡im no sentido mais amplo, é o ‘‘fenômeno ideológico por
i xi Hencia”, e o “meio mais puro e mais sensível de interação
P ¡al”. A palavra é onipresente na vida social, seja sob a for­
ma de discurso interno, seja como texto escrito, e tem a capaci­
d ad e de registrar todas as fases transitorias do processo social.
Assim, a concepção ampla que Bakhtin tem da linguagem torna­
se um veículo para evitar a armadilha do economismo mecanicis-
la "A categoria da causalidade mecânica nas explicações dos fe­
nômenos ideológicos pode ser sobrepujada mais facilmente a par-
lir da filosofia da linguagem” .
Para Bakhtin, a linguagem é um campo de batalha social, o
local onde os embates políticos são travados tanto pública quanto
intimamente. A linguagem e o poder vivem numa interseção per­
manente, não apenas sob a forma óbvia de conflitos relativos a
idiomas oficiais (africâner versus inglês na África do Sul; francês
versus inglês no Canadá), como em qualquer lugar onde a questão
da diferença linguística se veja envolvida com ordenações sociais
assimétricas. Em situações de bilingüismo colonial, por exemplo
na África do Norte durante o predomínio colonial francês, o idio­
ma do colonizador é identificado com o poder, enquanto a língua
dos colonizados não tem prestígio nem eficácia. Em toda parte a
linguagem entra nos arranjos hierárquicos de poder. Cada palavra
transforma-se na arena onde competem as entonações sociais.
A empregada se dirige à patroa como “senhora” , enquanto a pa­
troa chama a empregada de “você” . A mesma palavra, sendo
pronunciada por um camponês, um operário, um intelectual ou
um empresário, não é exatamente a mesma palavra.
O verdadeiro alvo dos ataques de Bakhtin não é apenas
uma aplicação marxista vulgar da noção de infra e superestrutu-
ra, mas também uma visão da linguagem que Bakhtin chama
de “objetivismo abstrato” . Para Bakhtin, os fundamentos dessa
visão da linguagem, da qual Saussure é o herdeiro, remontam
ao racionalismo europeu e à concepção de “gramática universal”,
de Leibniz. Enquanto expoente dessa tradição, Saussure enfati­
za os fatores — fonéticos, gramaticais e léxicos — que permane-
cem idênticos e, portanto, normativos para todos os enunciados.
Esse conjunto de normas forma o “código” de uma língua, um
código partilhado por todos aqueles que falam essa língua. Para
o objetivismo abstrato, a linguagem é um sistema estável de for
mas normativas que a consciência individual já encontra “pron
to” . Essas normas formam um sistema sincrónico fechado, no in­
terior do qual os motivos ideológicos têm pouca importância.
As variações individuais e sociais da fala também são relativa­
mente sem importância; são fortuitas e não afetam a unidade fun­
damental da linguagem enquanto sistema.
Para Bakhtin, por outro lado, a linguagem nunca se apre­
senta ordenada com tanta nitidez; é “confusa” , como a própria
história. Enquanto produto do incessante leva e traz, do discur­
so cotidiano, resiste a uma sistematização rígida. O desejo de
ver a linguagem como um sistema sincrónico estático, segundo
Bakhtin, é sintomático de uma espécie de nostalgia das línguas
mortas, cujos sistemas fixaram-se exatamente porque eram mor­
tas. As línguas faladas, ao contrário, estão vivas, transforman­
do-se constantemente sob a pressão do uso cotidiano. A noção
de um sistema de linguagem é uma abstração imposta; o que im­
porta não é simplesmente o signo auto-equivalente estável, mas
também o espaço para sua capacidade de se transformar. Uma
abordagem sistemática da linguagem, tal como a de Saussure,
corre o risco de um conservadorismo implícito, de considerar
uma língua viva como um objeto finalizado, já aperfeiçoado e
pronto. A linguagem, para Bakhtin, não é um sistema acabado,
mas um contínuo processo de vir a ser. Os indivíduos não rece­
bem uma língua pronta; em vez disso, ingressam numa corren­
te móvel de comunicação verbal. As pessoas não “aceitam” uma
língua; em vez disso, é através da linguagem que elas se tornam
conscientes e começam a agir sobre o mundo, com e contra os outros.
As categorias fundamentais da lingüística estrutural contem­
porânea, dentro da tradição de Saussure, são fonéticas (as unida­
des de som) e morfológicas (as unidades de sentido), observa
Bakhtin. Essas preocupações, que remontam às categorias da lin­
güística comparativa indo-européia, são precisamente as que
mais se adaptam a uma língua morta ou alheia. O resultado é
que a lingüística negligenciou a dinâmica do enunciado e das for­
mas sintáticas. “Todas as análises sintáticas do discurso exigem
que se analise o corpo vivo do enunciado, e, portanto, resistem
vigorosamente a serem relegadas ao sistema abstrato da língua.
33

y .i luí mas sintáticas são mais concretas do que as formas morfo-


IflKi is e fonéticas, e, con se qüente mente, mais próximas das con-
■K'V . reais do discurso.”
A própria consciência, para Bakhtin, é lingüística, e portan-
In uncial. Num exagero provocador, ele afirma que “a consciên-
Hii c uma ficção”. Porém faz essa afirmação não no sentido do
in.ii xismo economicista — para o qual o “real” é a base econô­
mica mas sim no sentido de que a consciência só existe sob
Inrma semiótica material, e neste sentido é um fato objetivo e
uma força social. A consciência conformada pela linguagem, pa­
i a Bakhtin, “é ela própria uma parte da existência e uma de
nas forças, e por essa razão possui eficácia e desempenha um
papel na arena da existência”. A forma semiótica da consciência
i' o “discurso interno”, e esse discurso interno, uma vez traduzi­
do para o discurso externo, atua sobre o mundo. Ao ingressar
nos sistemas de poder da ciência, da arte, da ética e da lei, ele
se torna uma força real, capaz até de exercer influência sobre
os extratos econômicos.
Para Bakhtin, a realidade da fala-linguagem não é o siste­
ma abstrato das formas lingüísticas, não é o enunciado monológi-
co isolado, mas o evento social da interação verbal. A palavra
orienta-se para um destinatário e esse destinatário existe numa
relação social clara com o sujeito falante. Nosso interlocutor per­
tence a uma geração, um gênero e uma classe específicos, é al­
guém com mais ou menos poder do que nós mesmos, alguém
próximo ou afastado de nós. Bakhtin dá o nome de “tato” ao
conjunto de códigos que governam a interação verbal. A palavra
é o produto da relação recíproca entre sujeito falante e receptor,
na especificidade de ambos. Não existe um destinatário abstra­
to, um homo loquens em si. (Até o substantivo masculino homo
exclui a possibilidade de um interlocutor feminino.) 0 sujeito fa­
lante utiliza o estoque disponível de signos sociais, mas o enun­
ciado individual é moldado pelas relações de força envolvidas
no “tato” . Mesmo a mais simples expressão de desejo — Bakh­
tin dá o exemplo da expressão de fome — pode ser formulada
como uma solicitação educada ou uma exigência irada. A pala­
vra pode ser dita com arrogância ou com humildade, apologética­
mente ou indignadamente. Nem a mais simples percepção de sen­
timento pode prescindir de algum tipo de forma ideológica.
Bakhtin, característicamente, estende o sentido de intera­
ção verbal, que é apenas outra denominação para “diálogo” , no
34

sentido primario de discurso entre duas pessoas a outros domí­


nios até mesmo metafóricos. Qualquer texto literário, enquanto
desempenho verbal impresso, constitui uma forma de ação ver­
bal, calculada para leitura ativa e respostas internas, e para rea­
ção impressa por parte de críticos, e pastiche ou paródia por ou­
tros escritores. Essa concepção ampla de dialogismo, considera­
da como o modo característico de um universo marcado pela he-
teroglossia, oferece inúmeras implicações para os estudos sobre
cultura. A concepção de “intertextualidade” (versão de “dialogis­
mo” , segundo Julia Kristeva) permite-nos ver todo texto artísti­
co como estando em diálogo não apenas com outros textos artís­
ticos, mas também com seu público. Esse conceito multidimen-
sional e interdisciplinar do dialogismo, se aplicado a um fenôme­
no cultural como um filme, por exemplo, referir-se-ia não ape­
nas ao diálogo dos personagens no interior do filme, mas também
ao diálogo do filme com filmes anteriores, assim como ao “diálo­
go” de gêneros ou de vozes de classe no interior do filme, ou
ao diálogo entre as várias trilhas (entre a música e a imagem,
por exemplo). Além disso, poderia referir-se também ao diálogo
que conforma o processo de produção específico (entre produtor
e diretor, diretor e ator), assim como às maneiras como o discur­
so fílmico é conformado pelo público, cujas reações potenciais
são levadas em conta. (No capítulo final daremos exemplos con­
cretos desse processo dialógico no âmbito da cultura brasileira.)
Os últimos parágrafos de Marxismo e filosofia da linguagem
são dedicados a uma questão precisa, técnica mesmo: o fenôme­
no do “discurso relatado” , ou seja, os modelos sintáticos (discur­
so direto, discurso indireto, discurso semidireto) utilizados na lin­
guagem para relatar enunciados alheios ou para incorporá-los
ao nosso próprio discurso. Como boa parte da argumentação de
Bakhtin pressupõe um conhecimento das nuanças da língua rus­
sa, tal como aparece na literatura russa, seria inútil fazer aqui
um apanhado das conclusões a que chegou. Será suficiente, por­
tanto, situar essa discussão no contexto do pensamento de Bakh­
tin como um todo. Característicamente, a discussão que Bakhtin
faz do discurso é ao mesmo tempo técnica e literária, ética e po­
lítica. A maneira como os autores tratam o discurso de seus per­
sonagens, ou a maneira como os personagens literários tratam
o discurso de outros personagens, é análoga aos processos dis­
cursivos da vida cotidiana, e revela o ethos de uma cultura e de
uma sociedade. A análise de Bakhtin reflete sobre a questão do
grau de liberdade concedido às palavras dos outros; as palavras
35

são distorcidas, censuradas, ignoradas, endossadas? Enquanto fi­


lósofo da liberdade, Bakhtin defende a livre circulação das pala­
vras, sem opressões hierárquicas. Embora a discussão da lingüís­
tica possa parecer muito distante do mundo do carnaval, em am­
bos os casos Bakhtin defende a liberdade e a energia, em detri­
mento do discurso oficial e do poder monológico. Infelizmente,
as próprias palavras de Bakhtin não foram respeitadas pelo po­
der, pois a relativa heteroglossia dos primeiros anos da Revolu­
ção Russa estava sendo substituída pelas inflexibilidades monoló-
gicas do stalinismo. No mesmo ano em que Marxismo e filosofia
da linguagem foi editado, Bakhtin foi preso.
Aparentemente, a prisão de Bakhtin não foi tanto pelo con­
teúdo de seus escritos como pelo fato de ele pertencer a grupos
filosófico-religiosos considerados suspeitos pelo regime. Bakhtin
foi preso em janeiro de 1929 sob diversas acusações, inclusive
de fazer parte de um grupo religioso ilegal (a Irmandade de São
Serafim) e fazer exposições que “corrompiam os jovens” . Co­
mo sua saúde estava se deteriorando, e como houve uma campa­
nha para sua libertação, Bakhtin recebeu uma sentença relativa­
mente “leve” : seis anos no exílio, na cidade de Kustanai, no Ca-
saquistão. Sem escolta e à própria custa, a família Bakhtin partiu
para Kustanai no início de 1930.
Problemas da poética
de Dostoiévski

D
.L/akhtin foi mandado para o exilio justamente no momen­
to em que era publicada a primeira obra importante assinada por
ele mesmo: Problemas da poética de Dostoiévski. O fato de ter ha­
vido uma resenha favorável do livro, por Anatoly Lunatcharsky,
Comissário da Instrução Pública, contribuiu para que os amigos
de Bakhtin argumentassem em favor da redução da pena — que
provavelmente significaria sua morte em um campo de trabalhos
forçados — para um exílio mais “humano” no Casaquistão, local
provinciano, caracterizado pela inexistência de vida cultural. Lá,
Bakhtin trabalhou como guarda-livros, respeitando também a
exigência oficial de visitar semanalmente a polícia.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin “dialoga”
com Dostoiévski, escritor com quem tinha enormes afinidades.
O livro trata da questão que sempre fora fundamental na crítica
de Dostoiévski, a relação entre Dostoiévski como autor e sua di­
versificada galeria de personagens vociferantes e cheios de bri­
lho. Onde se acha Dostoiévski, na cacofonía de vozes conflitan­
tes que constitui seus textos? Devemos identificá-lo com a posi­
ção filosófica de Raskolnikov em Crime e castigo, com Myshkin
de O idiota, com Ivan Karamazov de Os irmãos Karamazov? A
resposta de Bakhtin é, em essência, que Dostoiévski deve ser
visto como o orquestrador das vozes de personagens que estão
37

a seu lado em completa liberdade, e capazes de discordar de seu


criador e até de rebelar-se contra ele. Bakhtin assevera que a
criação do romance “polifónico” , uma pluralidade textual de vo­
zes e consciências diferenciadas foi a grande contribuição de
Dostoiévski à literatura moderna. Ele não deve ser identificado
com essa ou aquela voz de seus romances, mas com a instancia
que orquestra uma multiplicidade de vozes distintas ou mesmo
antitéticas. Assim, seus romances têm muitas vozes e abarcam
diversos campos complementares de visão, nos quais o todo é
formado pela interação de diversas consciências. A metáfora mu­
sical de “polifonia” (é interessante notar que Mário de Andrade,
na mesma época, desenvolvia um conceito análogo no Brasil) evo­
ca uma situação de harmonia complexa, em que o todo se veria
prejudicado pelo desaparecimento de uma voz que fosse. “Cada
romance apresenta uma oposição, jamais cancelada dialeticamen-
te, de muitas consciências, que não se fundem na unidade de
um espírito em processo de formação.” A arte de Dostoiévski,
portanto, é uma arte de justaposição, de contraponto, de simulta-
neidade. O tema por ele escolhido é o da interação das consciên­
cias no âmbito das idéias. O problema, para Bakhtin, era que
Dostoiévski tendia a ser “monologado” pelos críticos: “Parece
que todo aquele que penetra no labirinto do romance polifónico,
desorientado, fica incapaz de perceber o todo que está por de­
trás das vozes individuais” .
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin aplica à lite­
ratura algumas de suas idéias sobre interação verbal anteriormen­
te desenvolvidas em Marxismo e filosofia da linguagem. A estraté­
gia central de Dostoiévski, segundo Bakhtin, não está em defen­
der o poder dominador do argumento ou do discurso de um dos
personagens, mas em catalisar a interação criativa dos discursos
heteroglotas dos diferentes personagens. O que importa não é a
correção de uma idéia, ou saber se o Dostoiévski da vida real
realmente endossava uma determinada idéia, mas a troca dialógi­
ca entre personagens que são capazes de se comunicar sem per­
der sua individualidade. Bakhtin rejeita uma noção burguesa
proprietária, do pensamentodPara ele, a idéia não é uma formula1
ção individual, com direitos permanentes de residência no inte-i
rior da cabeça de uma pessoa. Idéias são, na realidade, eventos
intersubjetivos elaborados no ponto de encontro dialógico entre]
as consciências. A arte de Dostoiévski consistia em forçar visões
de mundo aparentemente incompatíveis a dirigirem-se umas às
outras no espaço de um mesmo livro, resultando numa nova mis­
tura de vozes, num novo diálogo.

faculdade de Biblioteconomia e Comunicação


BIBLIOTECA
38

Essa mesma concepção democrática do diálogo aplica-se à


visão de Dostoiévski da relação entre autor e herói. No modelo
polifónico, o herói é ao mesmo tempo consciente de si — não há
nada que possamos afirmar acerca do herói de Notas do subterrâ
neo que ele próprio já não saiba sobre si mesmo — e desfruta de
uma certa independência em relação ao autor. O herói se ilumina
através de sua autopercepção, enquanto emerge em diálogo explí
cito ou implícito com os outros. Olha para si mesmo no espelho
da consciência de outras pessoas, de suas palavras possíveis a seu
respeito. “Há quarenta anos ouço suas palavras por uma fresta
no chão. Eu mesmo as inventei”, conta-nos o Homem do Subterrâneo.
A concepção democrática bakhtiniana do personagem de fic­
ção reflete a abordagem igualitária, amavelmente anarquizante,
carnavalesca, típica de seu pensamento. Ele rejeita uma visão “im­
perialista” ou monárquica do autor que exerce seu domínio sobre
os súditos-personagens. O personagem, de acordo com a concep­
ção bakhtiniana, não tem necessidade do autor para ser conheci­
do, nem pode ser confinado aos limites fixos do discurso do au­
tor sobre ele. “Num ser humano há sempre alguma coisa que so­
mente ele pode revelar, num ato livre de autoconsciência e dis­
curso, algo que não se submete a uma definição externalizante,
de segunda mão.” A visão de Bakhtin, como a de Dostoiévski,
também é “democrática” , no sentido de que ambos prezam a re­
volta dos “pequenos” contra as definições finalizantes às quais
geralmente estão submetidos. O burocratazinho neurótico de No­
tas do subterrâneo parece exigir, através de Dostoiévski, o direito
de auto-representação; “Eu existo, e vocês só me entenderão se
dialogarem comigo.” É isso que ele dá a impressão de proclamar.
No capítulo “Particularidades do Gênero”, Bakhtin delineia
as estratégias polifónicas artísticas de Dostoiévski desde os gêne­
ros “cômico-sérios” do passado, como o diálogo de Sócrates e,
sobretudo, a sátira menipéia. Esta última foi batizada a partir
do nome do filósofo Menipo de Gádara (século III a.C.), que deu
ao gênero sua forma definitiva, mas já existia desde a época de
Sócrates. Os exemplos desse gênero citados por Bakhtin são o
Satiricon, de Petrônio, as Metamorfoses, de Apuleio e Consolação
da filosofia, de Boécio. A sátira menipéia, para Bakhtin, está pro­
fundamente enraizada na percepção carnavalesca do mundo, e
abre caminho para a polifonia artística e a “camavalização” literária.
Numa passagem curta mas muito estimulante, Bakhtin apre­
senta diversas “particularidades fundamentais” das menipéias,
que, embora sejam encontradas em Dostoiévski, podem ser fácil-
39

nu mi .iplicáveis a outros textos. Em Macumíma: ruptura e tradi-


|iln l limo Farkas/Massao Ohno, São Paulo, 1977), Suzana Camar-
|n i iluda o Macunaíma de Mário de Andrade à luz das catorze
linilu nlaridades de Bakhtin, encontrando traços de todas elas:
11 a presença constante do elemento cômico” (manifesto nas
Iii nu adeiras sexuais e nas enumerações cômicas de Macunaíma);
’J.) 'libertação das limitações históricas e total liberdade de inven-
i,rt<> lilosófica e temática” (os ‘‘diálogos dos mortos” entre Macu-
ualma e João Ramalho, Hércules Florence); 3) ‘‘as aventuras da
idéia e da verdade através do mundo” e ‘‘colocação à prova” (as
viagens inverossímeis de Macunaíma e os constantes desafios a
1'ielro Pietra); 4) fusão entre o diálogo filosófico, o simbolismo
elevado, o fantástico aventuroso e o naturalismo dos bas-fonds (em
Macunaíma a fantasia, a transformação do herói na constelação
da Ursa Maior, se funde com o naturalismo dos lupanares, da
praça pública, das orgias eróticas e das cerimônias secretas); 5)
"a síncrese” (as fontes sincréticas, euro-afro-indígenas do livro);
(i) “estrutura em três planos: terra, céu, inferno” (Macunaíma so­
be ao céu e se encontra com o mundo das sombras); 7) “o fantás­
tico experimental” (transformações do herói em negro/branco,
transformação de personagens em bicho-preguiça etc.); 8) “infra­
ção às regras do bom-tom” (Macunaíma coleciona palavrões, co­
mete extravagâncias em praça pública); 9) “contrastes violentos:
oxímoros” (Macunaíma enquanto personagem-oxímoro, ao mes­
mo tempo branco/negro/índio, corajoso/covarde etc.); 10) “repre­
sentação de estados psíquicos anormais” (personalidade múltipla
do protagonista); 11) “elementos de utopia social” (utopia no sen­
tido literal de “lugar nenhum” , na forma de uma espacialidade
impossível, por exemplo Macunaíma passando com grandes pu­
los para regiões diametralmente opostas, junto com a tentativa
do autor de criar um texto — e uma consciência — realmente his-
pano-brasileiro-americano); 12) “uso abundante de gêneros ‘inter­
calares’ ” (presença, em Macunaíma, de piadas, canções, provér­
bios, cartas etc.); 13) “pluristilismo e pluritonalidade” (uma con-
seqüência lógica da natureza plurigenérica do livro); 14) “opção
pelos problemas sociopolíticos contemporâneos” (crítica ao colo­
nialismo cultural, sátira aos novos-ricos na pessoa de Pietro Pietra).
Tomando um exemplo mais improvável de um contexto
não brasileiro, seria possível examinar com a mesma facilidade
um filme como Zelig, de Woody Alien, como uma renovação fíl-
mica do gênero menipeu. Zelig, como Macunaíma, apresenta
um “herói sem nenhum caráter” , na forma de um protagonista
40

camaleônico que tem a notável capacidade de assumir a cor, o


modo de falar e a profissão de todos aqueles com quem intera
ge, tornando-se negro na presença de negros, chinês na presen
ça de chineses, e assim por diante. Zelig apresenta várias carac­
terísticas da menipéia: “libertação das limitações históricas”
(quando promove um “diálogo” impossível entre o ator contem­
porâneo Woody Alien e personagens históricos falecidos, tal co­
mo Calvin Coolidge e F. Scott Fitzgerald); “metamorfoses fre-
qüentes” (na menipéia, os personagens humanos transformam-
se em burros e abóboras; em Zelig, o protagonista é transforma­
do em várias personalidades étnicas e nacionais); “oxímoros” (co­
mo Macunaíma, Zelig é um personagem-suma, uma polifonia
de possibilidades humanas); “as aventuras da idéia e da verda­
de através do mundo” (Zelig “testa” a noção de camaleonismo
enquanto metáfora da experiência humana); “o fantástico-experi-
mental” (Zelig voa de cabeça para baixo sobre o Atlântico); e
“emprego de gêneros intercalados” (no caso, documentário, fil­
me de compilação da televisão, melodrama hollywoodiano, cine­
ma vérité). De acordo com a perspectiva bakhtiniana, portanto,
Zelig não seria considerado uma “aberração” ou um “truque” ,
mas a renovação de um gênero perene que tem suas origens na
menipéia.
No capítulo “O discurso em Dostoiévski” , Bakhtin desen­
volve sua concepção de “discurso duplamente orientado” , ou se­
ja, um discurso dirigido tanto para o objeto referencial da fala,
como no discurso comum, quanto para o discurso do outro, para
a fala de uma outra pessoa. Bakhtin cita o exemplo de Gente po­
bre, onde a autopercepção de um homem pobre revela-se contra
o pano de fundo de uma percepção dele que lhe é socialmente
alheia. Nesses casos, o personagem está consciente do que pode
ser dito a seu respeito por um membro de outra classe ou outro
grupo, e procura destruir essas palavras imaginadas (mas reais)
polemicamente, por não se adequarem à complexidade de sua
personalidade. No conto O capote, de Gogol, por exemplo, Akáki
Akákievitch está muito consciente de que seus superiores sociais
o consideram um simples copista e suas palavras, dirigidas ao lei­
tor, ao mesmo tempo respondem à condescendência social de
seus “superiores”: “Por acaso há algo de mal no fato de eu co­
piar? Por acaso é pecado copiar?” O estilo e o tom das palavras
de Akákievitch, nesses casos, são determinados por aquilo que
Bakhtin denomina “mirada para o discurso social do outro” .
41

Já se disse muitas vezes que Bakhtin sistematicamente pre-


l*i i a multiplicidade à unicidade — preferência claramente indi-
i ni Ia verbalmente em suas oposições sistemáticas entre heteroglos-
n.i c mwwoglossia, poliíoma e monotonía, úfclogismo e monologis-
iiiii, discurso fovocal e discurso monovocal. Essa preferência pe-
Im múltiplo não é resultado de algum tipo de pluralismo inócuo,
mas, antes, de um impulso autenticamente libertário que evita
ii monologismo do centralismo e da hierarquia. Discernimos es-
.1 mesma preferência nas palavras de aprovação de Bakhtin com
icspeito à heteroglossia, ou caráter multilíngüe, do discurso de
Ilostoiévski. Para Bakhtin, Dostoiévski desenvolve uma espécie
di- polifonia discursiva, na qual as mais variadas linguagens (con-
lissào, anedota, paródia, panfleto, história de aventuras) se atro­
pelam, numa espécie de barulhento mercado artístico. Essa mul-
liplicidade de estilos em Dostoiévski, essa ausência de estilísti­
ca ou de “essência” genérica, não é uma falha de sua obra; an­
tes, ela mesma é “da essência”. Através de sua orquestração po­
lifónica, gêneros e estilos iluminam-se mutuamente, relativizan-
do-se uns aos outros. Em última instância, essa noção de polifo­
nia discursiva é mais sugestiva do que a noção de polifonia dos
personagens, pois implica, ao mesmo tempo, um confronto entre
discursos sociais mais amplos, e é através desse confronto que
o autor exprime as contradições da época.
Finalmente, vale a pena notar que o próprio Bakhtin prati­
ca a polifonia discursiva em suas críticas. Em Problemas da poéti­
ca de Dostoiévski, ele cita toda uma galeria de críticos — Leonid
Grossman, Otto Kaus, V. Komarovitch —, mas não o faz para
sobrepujar as vozes dos outros, e sim para utilizá-las no âmbito
de sua própria orquestração. Cita esses críticos longamente, per­
mitindo-nos ouvir suas vozes com ressonância plena. Não vê os
outros críticos como oponentes a serem aniquilados, mas como
colaboradores potenciais para um discurso polifónico. Neste sen­
tido, a prática crítica do próprio Bakhtin exemplifica o dialogis­
mo de que fala.
A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento:
contexto de François Rabelais

0 impacto causado por Problemas da poética de Dostoiévski


foi um tanto diminuido pelo fato de que seu autor, à época da pu­
blicação do livro, estava vivendo em exílio político. Durante a
maior parte de sua existência, Mikhail Bakhtin foi marginalizado
em relação aos centros de poder cultural e político. Durante a dé­
cada de 30, ele passou o exílio não apenas em Kustanai, mas tam­
bém em Saransk e Savelevo. O único efeito positivo desse exílio,
talvez, foi evitar que Bakhtin sofresse a mesma sorte de alguns
de seus amigos e associados mais próximos: o assassinato político,
como vítimas dos expurgos stalinistas. Durante esse período, Bakh­
tin exerceu diversas atividades. Trabalhou como guarda-livros e
deu cursos de contabilidade a trabalhadores do Estado e de fazen­
das coletivas. Ao mesmo tempo, ministrava cursos mais condizen­
tes com suas capacidades e escrevia verbetes de enciclopédia e en­
saios literários sobre teoria do romance. Fez inúmeras conferên­
cias especiais e ocasionalmente visitou Moscou e Leningrado. Em
1940, apresentou uma alentada dissertação sobre a cultura popu­
lar e a obra do escritor francês François Rabelais. Devido à guer­
ra, porém, Bakhtin viu-se impedido de defender sua tese. Quando
43

conseguiu fazê-lo, em 1946 e em 1949, essa dissertação dividiu in­


teiramente a comunidade acadêmica de Moscou.
Afinal, o órgão responsável resolveu a disputa negando a
Bakhtin seu doutorado. A tese, publicada mais tarde como Rabe­
lais e a cultura popular na Idade Média, conquistou renome mun­
dial. Como um trabalho erudito, estimulante, e que não impediu
que devesse esperar dezenove anos até ser publicado, 1965.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin delineou
rapidamente suas idéias a respeito da “carnavalização”, ou seja,
a transposição para a arte do espírito do carnaval, mas foi em
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento que essa no­
ção recebeu sua formulação mais completa e mais rica. O ponto
de partida do livro é o fato de Bakhtin lamentar que, entre todos
os escritores da Europa, Rabelais seja “o menos compreendido
e apreciado”. Rabelais não foi entendido, afirma Bakhtin, por­
que os especialistas deixavam de referir-se aos laços profundos
que o uniam à cultura popular, especialmente sob a forma de fes­
tividades populares tais como o carnaval, e não levavam em con­
sideração os gêneros literários associados ao carnaval, ou seja,
a paródia e o realismo grotesco. No final da Idade Média e du­
rante a Renascença, argumenta Bakhtin, o carnaval desempe­
nhou um papel simbólico fundamental na vida das pessoas. Du­
rante o carnaval as pessoas penetravam brevemente na esfera
da liberdade utópica. 0 carnaval representava muito mais, naque­
la época, do que a mera cessação do trabalho produtivo; repre­
sentava uma cosmovisão alternativa caracterizada pelo questiona­
mento lúdico de todas as normas. O princípio carnavalesco abo­
le as hierarquias, nivela as classes sociais e cria outra vida, livre
das regras e restrições convencionais. Durante o carnaval, tudo
o que é marginalizado e excluído, o insano, o escandaloso, o alea­
tório se apropria do centro, numa explosão libertadora. O princí­
pio corpóreo material — fome, sede, defecação, copulação — tor­
na-se uma força positivamente corrosiva, e o riso festivo celebra
uma vitória simbólica sobre a morte, sobre tudo o que é conside­
rado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe.
Bakhtin vê Rabelais como uma espécie de rebelde literário,
cuja vitalidade inexaurível se deve ao fato de ele nutrir a sua ar­
te, em grande parte, na raiz principal da cultura popular do seu
tempo. Rabelais transpõe para a literatura o espírito do carnaval,
que nada mais é que “a própria vida... transformada de acordo
com um determinado modelo de ludismo, de brincadeira”. As ima-
44

gens de Rabelais, para Bakhtin, têm uma natureza não oficial in


destrutível: “nenhum dogma, nenhum autoritarismo, nenhuma se
riedade tacanha pode coexistir com elas”. Bakhtin faz o inventário
das várias manifestações populares que se contrapunham à cultu
ra medieval oficial, eclesiástica e feudal: a festa stultorum (festa
dos tolos), na qual os equivalentes medievais do Rei Momo reina­
vam sobre a desordem cômica, a Coem Cypriani (Ceia de Cipria­
no), na qual as Escrituras eram totalmente travestidas, dentro de
um espírito carnavalesco, a parodia sacra, na qual liturgias católi­
cas específicas eram parodiadas, o risus paschalis (riso da Páscoa),
e a “festa do asno” (comemoração cômica da fuga de Maria para
o Egito, com o asno como figura central). Em todos esses rituais
festivos, a Igreja, uma das instituições mais poderosas da época,
era ridicularizada e simbolicamente questionada.
No carnaval, todas as distinções hierárquicas, todas as barrei­
ras, todas as normas e proibições são temporariamente suspensas,
estabelecendo-se um novo tipo de comunicação, baseado no “conta­
to livre e familiar”. O carnaval, para Bakhtin, gera um tipo espe­
cial de riso festivo. Mais do que uma reação individual a um even­
to cômico isolado, é uma espécie de alegria cósmica, de âmbito
universal, dirigida a tudo e a todos, inclusive aos participantes do
carnaval. Para Rabelais e para o espírito carnavalesco em geral, o
riso tem um profundo significado filosófico; é um ponto de vista
particular sobre a experiência, não menos profundo que a serieda­
de. É uma vitória sobre o medo que torna cómicamente grotesco
tudo o que aterroriza. O riso popular festivo triunfa sobre o pâni­
co sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte; provoca a queda
simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que sufoca e
restringe. Em Rabelais, o riso assumiu o papel de uma nova cons­
ciência, uma consciência crítica, através da qual o dogmatismo e
o fanatismo eram ridicularizados. A filosofia de Rabelais, para Bakh­
tin, não deve ser procurada nos trechos em que ele parece mais
sério, mas sim quando ele ri com mais vontade.
As imagens rabelaisianas também estão intimamente liga­
das à noção do banquete, da festa enquanto transferência tempo­
rária para um mundo utópico de prazer e abundância. As ima­
gens de banquete desempenham um papel fundamental no ro­
mance de Rabelais, onde praticamente cada página apresenta alu­
sões a comida e bebida. Os primeiros feitos heróicos de Panta-
gruel, realizados ainda no berço, estão associados à comida. Gar-
gãntua começa com um festim de abate de gado, enquanto o
45

Quarto Livro exibe uma guerra carnavalesca de salsichas. Um


dos capítulos é intitulado “Por que os monges gostam de cozi­
nhas”, e a palavra que conclui a invectiva escatológica de Panur-
ge é: “Bebamos” . Bakhtin percorre o caminho que une a alegria
da festa à alegria de homens primitivos quando a caça chega ao
fim, como uma vitória sobre a escassez e o medo. Mais tarde, nos
banquetes clássicos, a idéia do festejo passa a ligar-se intimamen­
te à idéia de diálogo festivo, de elogios e insultos de faz-de-con­
ta, pois “banquetear-se solta a língua” .
O carnaval também celebra o que Bakhtin denomina “cor­
po grotesco” como o “local de vir-a-ser”. Na visão carnavales­
ca de Rabelais, os elementos-chave do corpo são os pontos on­
de ele tem apêndices, transgredindo seus próprios limites: os in­
testinos e o falo, as convexidades e os orifícios que ressaltam pa­
ra o mundo ou que absorvem o mundo. Quando focaliza a vida
corpórea (cópula, nascimento, defecação) o carnaval oferece uma
suspensão temporária da proibição e do tabu, transferindo tudo
o que é espiritual, ideal e abstrato para o nível material, para a
esfera da terra e do corpo. Os excrementos tornam-se uma ex­
pressão literal daquilo que Bakhtin chama de “estrato físico ma­
terial mais baixo” . Em Rabelais, os produtos da parte inferior
do corpo baixo, a merda e a urina, aparecem em quantidades hi­
perbólicas e dimensões cósmicas. Quando Pantagruel urina, por
exemplo, afoga um acampamento de soldados e provoca uma inun­
dação no campo de “dez léguas a seu redor” .
Como atualmente a noção nietzschiana do “dionisíaco” es­
tá na moda, talvez valha a pena esclarecer as semelhanças e dife­
renças entre as concepções nietzschiana e bakhtiniana do carna­
val. O carnaval de Bakhtin e a festa dionisíaca de Nietzsche têm
em comum sua natureza enquanto ritos coletivos, nos quais os
foliões mascarados ficam “possuídos” e se transformam, seja atra­
vés da roupa, seja através da atitude, num “outro” , tudo isso
com uma espécie de efeito catártico. Nietzsche e Bakhtin vêem
a festa carnavalesca como um alívio da hipocrisia social e do me­
do do corpo, mas enquanto Nietzsche tende a culpar a religião
cristã por essa fobia do corpo, Bakhtin prefere culpar a ideologia
feudal e a hierarquia de classes.
O que Nietzsche valoriza na experiência dionisíaca é a trans­
cendência do ego individualizador para um Todo filosófico mais
amplo, através do qual o indivíduo sente uma perda eufórica de
identidade, enquanto Bakhtin está mais interessado na derruba-
46

da simbólica das hierarquias sociais no âmbito de uma espécie


de igualitarismo orgiástico. A predileção de Bakhtin por tudo
que é “baixo” — o estrato corporal mais baixo, as classes “bai­
xas” , os gêneros “baixos” — contrasta com o carinho que
Nietzsche tem pelo que é “superior”, pela “transcendência” ,
“os espíritos elevados” e as “sensibilidades mais finas” . (O equi­
valente em termos genéricos seria a associação que faz Nietzsche
entre “o dionisíaco” e “o mito altamente trágico” , enquanto Bakh­
tin associa carnaval com os gêneros cômicos, com trocadilhos,
parodias.) Bakhtin também não compartilha a aversão que
Nietzsche tem ao que ele chama “as massas” ou “o rebanho” e
que Bakhtin, de maneira quase populista, chama “o povo” . En­
quanto Nietzsche elogia o estado glorioso de solidão no qual a
alma filosófica renova contato com o espírito da Natureza, Bakh­
tin se interessa mais pelo sentimento da comunidade gerado pe­
las “misturas promíscuas” do carnaval. Em suma, Bakhtin não
compartilha o elitismo consumado de Nietzsche.
Para Bakhtin, o carnaval tem múltiplas facetas; é ao mes­
mo tempo textual, intertextual e contextual. O carnaval não é
somente uma prática social específica mas também uma espécie
de “reserva” geral e perene de formas populares e rituais festi­
vos. O carnaval de Bakhtin se assemelha a categorias de outros
pensadores; não somente com a “festa dionisíaca” de Nietzsche,
mas também com “la fête” de Henri Lefebvre, com o “orgias-
mo” de Michel Maffesoli e com a “comuniias” e os “rituais limi-
nais” de Víctor Turner. Nós poderiamos esquematizar o carna­
val como uma verdadeira constelação de idéias e imagens interli­
gadas: 1) a valorização da força vital, uma atualização dos mitos
perenes da Natureza; 2) uma versão um pouco mais mórbida da
idéia anterior, que enfatizaria a ligação da vida com a morte,
de Eros com Tânatos, através do sacrifício ritual e orgiástico
— algo elaborado por escritores como Bataille e cineastas como
Buñuel (e constantemente comercializado pelos mass-media)\ 3)
a noção da bissexualidade e a prática de travestismo como fol­
ga dos papéis sexuais rígidos e socialmente impostos; 4) a cele­
bração do “corpo grotesco” e “excessivo” e das “partes inferio­
res do corpo” como recusa de qualquer visão puritana e como
agressão provocadora à estética clássica e apolínea; 5) a idéia
das inversões sociais e a subversão simbólica do poder estabele­
cido via “o mundo às avessas” ; 6) a imagem do mundo social e
político como um perpétuo “coroamento” e “descoroamento” e
a mudança perpétua como fonte da esperança popular; 7) o topos
47

tio carnaval como o “reino da ambigüidade’’ e da “ relatividade


■ilegre”; 8) a idéia do carnaval como o locus de sentimentos de
união com a comunidade; como a restauração da “comunitas” ,
com o seu “contato livre e familiar”; 9) uma perspectiva em rela­
ção à linguagem que valoriza o obsceno, o vulgar, o non-sense
enquanto expressão linguística da criatividade popular; 10) a no­
ção do carnaval como uma libertação das regrinhas da etiqueta
social, da cortesia e das boas maneiras; 11) o conceito de uma
estética anticlassicista que privilegia não a unidade formal mas
a assimetria, o oxímoro, o heterogêneo, a mésalliance\ 12) a no­
ção do carnaval como espetáculo participante, a eliminação das
barreiras que separam o espetáculo e o espectador, onde todo
mundo vira performer (uma idéia recuperada pelas vanguardas
históricas dos anos 20 e pelo teatro alternativo dos anos 60, por
exemplo pelo Living Theatre ou, no Brasil, pelo Teatro Oficina).
De Bakhtin à
América Latina

L Ys teorias de Bakhtin sobre carnaval surgiram nâo so­


mente de seus estudos literarios mas também de urna cultura
russa vital, com fortes tradições orais, uma cultura em certos as­
pectos marginal em relação à cultura “metropolitana” européia.
Embora Bakhtin tenha feito pouquíssimas alusões à literatura la­
tino-americana, muitos críticos literários latino-americanos viram
a noção do “carnavalesco” quase como uma chave para a especi­
ficidade da produção cultural latino-americana. Já que a Améri­
ca Latina tem sido marginalizada em termos econômicos, políti­
cos e culturais, argumentam críticos como Emir Rodríguez Mo-
negal e Haroldo de Campos, os seus melhores artistas têm torna­
do essa marginalização, este sentido irônico de pertencer a duas
culturas, a sua e à da metrópole, absolutamente central em seus
textos. Usando as categorias críticas bakhtinianas, os críticos la­
tino-americanos têm encontrado reminiscências e estratégias car­
navalescas em Cem anos de solidão, de Márquez, na intertextuali-
dade paródica do Três tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infan­
te, e também nos textos menos “obviamente” carnavalescos de
Borges e Machado de Assis.
Borges, à primeira vista um escritor patrício, carnavaliza
os clássicos literários europeus, transformando a Divina comédia
de Dante, por exemplo, numa história de amor banal, em OAleph.
49

Os romances de Manuel Puig lembram-nos constantemente a


presença dos filmes de Hollywood como uma língua franca cultu­
ral onipresente em países como a Argentina. Toda a América
Latina, neste sentido, foi “traída por Rita Hayworth”, no senti­
do de que o colonialismo cultural deu-lhe uma sensação difusa
de que a vida real está “em outro lugar” , na Europa e na Améri­
ca do Norte, e não na periferia da Argentina ou do Brasil.
Nos anos 20, os modernistas brasileiros responderam a es­
ta situação fazendo apelo à “antropofagia” , uma devoração críti­
ca da técnica e da informação dos países metropolitanos, que uti­
lizaria a força do “inimigo” contra ele. A noção de “antropofa­
gia” simplesmente aceita a presença inevitável do intercâmbio
cultural entre a América Latina e a Metrópole. Não poderia ha­
ver nenhum retorno a urna pureza pré-colonial, nenhuma recupe­
ração não-problemática das origens nacionais. O artista, entretan­
to, não pode ignorar a presença da arte estrangeira; tem de engo­
li-la, carnavalizá-la e fazer uma reciclagem para objetivos nacio­
nais. “Antropofagia” , neste sentido, é um outro nome para o
que Kristeva, traduzindo Bakhtin, chamou de “intertextualida-
de” e que o próprio Bakhtin chama de “dialogismo” e “carnava-
lização” , mas desta vez num contexto de poder assimétrico gera­
do pela dominação neocolonial. A metáfora da “antropofagia” ,
tão libertadora nos anos 20, torna-se ambígua na época da indús­
tria cultural, como assinala Roberto Schwarz, facilmente se trans­
formando num “álibi desajeitado e rombudo para lidar acritica-
mente com as ambigüidades da cultura de massa” . (Que horas
são, Companhia das Letras, São Paulo, 1988.)
Alguns anatomistas do fenômeno carnavalesco, como Julia
Kristeva e Umberto Eco, tendem a reduzi-lo a uma entidade pura­
mente textual, esquecendo-se daquilo que qualquer brasileiro sa­
be, ou seja, que em determinados lugares do mundo o carnaval
mantém seu dinamismo e sua vitalidade. Enquanto os carnavais
europeus degeneraram numa repetição cristalizada de rituais pe­
renes, pálidas evocações dos frenesis rabelaisianos de outrora,
na América Latina, sobretudo nos países impregnados pela cultu­
ra africana trazida pelos escravos, o carnaval continua sendo
uma tradição viva e vibrante. Uma cultura profundamente mesti­
ça — ameríndia, européia e afro-americana — deu origem a um
fenômeno cultural imensamente criativo. Hoje, em Salvador e
Olinda, floresce um tipo de festival reminiscente, em certos sen­
tidos, dos festivais dionisíacos extáticos pelos quais Nietzsche
50

manifestou nostalgia, em que “multidões cada vez mais numero­


sas de pessoas cantando e dançando eram lançadas de um lugar
para outro, sob um impulso dionisíaco” .
A relevância da categoria do “carnaval” , no caso do Brasil,
vai além de uma questão de análise literária, porque no Brasil a
idéia de carnaval faz parte integral da teorização da identidade
nacional brasileira. Muitos escritores brasileiros, desde Sérgio
Buarque de Holanda, com o seu “homem cordial” , até Antônio
Cândido, com a sua “dialética da malandragem” , e José Guilher­
me Merquior, que fala do “substrato orgiástico” da vida brasilei­
ra, têm encontrado numa noção próxima à idéia do carnaval uma
espécie de chave para a personalidade brasileira.
No Brasil, o carnaval constitui uma expressão cultural pro-
téica, que cristaliza uma cultura profundamente polifónica. Ro­
berto da Matta, em Carnavais, malandros e heróis (Zahar, Rio,
1978), descreve o carnaval, em sua denotação literal, em termos
marcadamente reminiscentes da descrição, por Bakhtin, do car­
naval medieval, como uma época de riso festivo e relativismo ale­
gre, uma celebração coletiva que funciona como um modo de re­
sistência simbólica, de parte da maioria marginalizada dos brasi­
leiros, às hegemonias internas de classe, raça e gênero. Para
Da Matta, o carnaval é o locus privilegiado da inversão. Todos
os que foram socialmente marginalizados invadem o centro sim­
bólico da cidade. O bairro dos negócios, geralmente sinônimo
de trabalho produtivo sério, transforma-se no centro irradiador
da brincadeira. Favelados negros vestem-se de reis e rainhas, en­
quanto os homens se vestem de mulheres e as mulheres, com
menos freqüência, de homens. A festa, ao menos no motivo cen­
tral de seu sistema simbólico, traduz um impulso profundamen­
te democrático e igualitário. Ninguém está querendo dizer, é cla­
ro, que alguns dias de carnaval derrubem literalmente os papéis
de classe e de sexo reafirmados durante o ano. De fato, existe
uma dose considerável de idealização na descrição que Roberto
da Matta faz do carnaval, negligenciando a extensão em que ne­
gros e brancos, ricos e pobres, homens e mulheres, heterosse­
xuais e homossexuais vivem carnavais diferentes.
Mas, enquanto momento de integração e de catarse coleti­
va, enquanto forma dejouissance profundamente social e interati­
va, o carnaval oferece um sabor de liberdade transindividual, on­
de os foliões interpretam papéis imaginários que correspondem
a seus desejos mais utópicos.
51

Qualquer teoria do carnaval que se pretenda fiel à realida-


ilr loria de levar em conta também as ambigüidades políticas
do carnaval. A teoria do “carnavalesco” tem de ser relacionada
lambém com a noção bakhtiniana de "heteroglossia” , das diver­
sas linguagens sociais que fariam parte do carnaval. Qualquer
que seja o impulso utópico expresso pelo carnaval, o carnaval,
o carnaval real, social, enquanto “enunciado historicamente situa­
do", como ele é vivido, por exemplo, numa sociedade contempo-
inuca como a brasileira, é inevitavelmente influenciado pelas hie­
rarquias sociais, pelas assimetrias de poder. Branco e negro, ho­
mem e mulher, operário e patrão, heterossexual e homossexual,
neste sentido, vivem carnavais distintos. O favelado que não tem
dinheiro para comprar bebida para festejar, a empregada muía­
la que é maltratada o ano inteiro e depois exaltada como símbo­
lo sexual durante o carnaval, estes vêem o carnaval de uma pers­
pectiva mais marginalizada do que aqueles que exercem algum
poder o ano todo, e por conseguinte sentem menos necessidade
de invertê-lo de maneira simbólica. O carnaval brasileiro é mui­
to mais variado, argumenta Peter Fry, do que a análise de Ro­
berto da Matta deixa transparecer, não somente em termos de
variações regionais, mas também em termos de classe, grupo ét­
nico, geração, período histórico. Enquanto a retórica do carnaval,
como a da política populista, tende a inverter as hierarquias da
vida social cotidiana, a prática do carnaval às vezes também dra­
matiza essas hierarquias. Antônio Risério, em Carnaval ijexá, faz
uma análise do papel dos negros no carnaval baiano, fornecen­
do dados que apoiam o argumento de Peter Fry. Em vez de ma­
nifestar uma lógica de inversão e de fusão social, o carnaval baia­
no dramatiza a “lealdade étnica” . Enquanto “enunciado situa­
do” , o carnaval não pode completamente eludir a tensão social
e o poder estabelecido, mas pode criticar, amplificar poeticamen­
te ou indicar os caminhos para uma transformação social possível.
O nosso interesse aqui, em todo o caso, concentra-se me­
nos no carnaval na sua denotação literal do que nos seus prolon­
gamentos artísticos. Exatamente como a obra de Rabelais foi
profundamente imbuída da consciência das festividades popula­
res de sua época, do mesmo modo o artista brasileiro torna-se
inevitavelmente consciente do universo cultural do carnaval en­
quanto repertório onipresente de gestos, símbolos e metáforas,
um reservatório de imagens ao mesmo tempo popular e erudito,
uma constelação de estratégias artísticas que tem a capacidade
de cristalizar a irreverência popular.
52

Um bom ponto de partida para o nosso estudo da relevân­


cia das categorias bakhtinianas para a compreensão da produção
cultural brasileira é Macunaíma, o romance modernista de Mário
de Andrade, um livro que às vezes parece ter sido escrito expres­
samente com a intenção de provocar uma análise bakhtiniana.
Em Macunaíma encontramos quase todos os temas e estratégias
bakhtinianos: inversões carnavalescas, dialogismo paródico, hete-
roglossia social e artística, polifonia cultural e textual. Tal co­
mo Gargãntua e Pantagruel, Macunaíma está profundamente en­
raizado na cultura popular. Macunaíma explora o gênio linguísti­
co do povo brasileiro, fundindo suas brincadeiras, lendas, can­
ções, provérbios e superstições numa saga panfolclórica e pluri-
genérica. O romance captura o ceticismo aforístico do povo (“Ca­
da um por si e Deus contra!”) e seu talento para o non-sense (“o
herói... fechou os olhos pra ser comido sem ver”). Nessa “rapsó­
dia” , Mário de Andrade alinhou lendas populares — ameríndias,
africanas e portuguesas — para formar uma colcha de retalhos
discursiva, uma heteroglossia artística expressa num português
que o autor chamou de “verdadeiro esperanto” , um “lugar-ne-
nhum” lingüístico recolhido de todas as regiões do Brasil, que
inclui o arcaico e o neologístico, orquestrando as múltiplas vozes
sociais do Brasil numa barulhenta polifonia tropical.
Já as palavras de abertura do livro — “No fundo do mato-
virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retin­
to e filho do medo da noite” — apontam claramente para a entra­
da no mundo carnavalizado da épica cômica, onde o herói épico
não tem caráter e sua frase mais característica é “Ai! Que pre­
guiça!” . A versão para o cinema, de Joaquim Pedro de Andra­
de, materializa magníficamente o imaginário carnavalesco do ro­
mance, apresentando uma “mulher” branca absurdamente velha
(interpretada por Paulo José), que fica de pé e grunhe até depo­
sitar no chão um bebê negro chorão de cinqüenta anos de idade
(Grande Otelo). O próprio nascimento, ao mesmo tempo prodigio­
so e grotesco, personifica a concepção de Bakhtin do imaginário
típico do carnaval: o velho e grotesco, quase morto, parindo o novo.
A lógica do carnaval é a do mundo de pernas para o ar, on­
de se zomba dos poderosos e onde reis são entronizados e depos­
tos. Tanto o livro como o filme apresentam grande quantidade
de imagens e de procedimentos artísticos que Bakhtin teria cita­
do como tipicamente carnavalescos: inversões sexuais (Macunaí­
ma fantasiado de divorciada francesa tentando enganar Pietro
Pietra para roubar seu amuleto); deposições cômicas de reis ridí-
53

■iilos (Pietro Pietra, magnata industrial e comedor de gente, de­


posto pelo herói de seu povo); incongruências lingüísticas (maca-
1 1 is que falam latim e o analfabeto Macunaíma escrevendo num
português absurdamente casto, continental arcaico); e imagens
licqüentes de defecação e urinação (Macunaíma mijando “quen­
te na velha, espantando os mosquitos’’). Em Macunaíma, Mário
de Andrade utiliza a vulgaridade criativa da cultura popular, não
para atacar a cultura erudita, já que o livro é altamente erudito,
mas, antes, para atacar a cultura oficial, sufocante, elitista e colo­
nizada.
A concepção de Bakhtin do carnavalesco constitui um ins-
t rumento particularmente adequado para a investigação do cine­
ma brasileiro, que sempre foi profundamente impregnado pelos
valores culturais associados ao carnaval. As formas dessa presen­
ça carnavalesca vão desde a incorporação, no filme, de ativida­
des carnavalescas reais — incorporação essa que caracterizou
desde as primeiras “panorâmicas’’ do início do século até A ida­
de da terra, de Glauber Rocha (1980) — e de alusões mais difu­
sas, através da música ou do vestuário, até a adoção de estraté­
gias de paródia e de inversão sem nenhuma alusão direta ao car­
naval. A própria palavra “carnaval” aparece com destaque nos
títulos de um grande número de filmes brasileiros, desde antigos
documentários como O carnaval de 1908, até chanchadas da era
do som, como Alô, alô, carnaval (1936) e produções derradeiras
do Cinema Novo, como Quando o carnaval chegar (1971). As chan­
chadas não só eram lançadas na época do carnaval, como tinham
o objetivo de promover as músicas do carnaval, e eram chama­
das, como que antecipando uma análise bakhtiniana, filmes carna­
valescos. A década de 70 assistiu a uma “recarnavalização” do
cinema brasileiro, não só como figura-chave na concepção que
tinha o diretor da sua obra, mas também como estratégia para
renovar contato com o espectador comum. Carlos Diegues conce­
beu Xica da Silva como um samba-enredo, estruturalmente análo­
go às combinações narrativas de canções, danças e fantasias apre­
sentadas num desfile de escola de samba. Os heróis marginais
de Fernando Cony Campos, em Ladrões de cinema (1977), roubam
equipamentos para filmagem dos turistas americanos que foram
ver o carnaval do Rio, e idealizam o filme que planejam fazer a
respeito da Inconfidência Mineira, como uma espécie de narra­
ção de escola de samba.
O discurso duplamente orientado da paródia, para Bakhtin,
representa o modo de “ carnavalização” artística por excelência.
54

Apropriando-se de um discurso existente e, ao mesmo tempo, in­


troduzindo nesse discurso uma orientação oblíqua ou mesmo dia­
metralmente oposta à do original, a paródia adapta-se particular­
mente bem às necessidades dos oprimidos e impotentes, precisa­
mente porque assume a força do discurso dominante só para apli­
car essa força, através de uma espécie de jiu-jítsu artístico, con­
tra a dominação. E nesse contexto que João Luiz Vieira, em He­
gemonia e resistência: paródia e carnaval no cinema brasileiro, exa­
mina a respeitável tradição de paródias brasileiras de filmes ame­
ricanos, vistas como uma resposta criativa a uma situação de
marginalização dentro de estruturas hegemônicas de produção,
distribuição e exibição. As paródias brasileiras, para Vieira, es­
tão no ponto de convergência de inúmeras contradições. Às ve­
zes atendem a uma estética ambivalente, típica do discurso colo­
nizado, através da qual navegam com dificuldade entre a zomba­
ria irreverente e a imitação servil (esse é o caso de Matar ou cor­
rer, de Carlos Manga); outras vezes transformam-se em exercí­
cios de autodifamação, reforçando uma atitude de desprezo em
relação à indústria nacional (em Bacalhau, por exemplo); outras,
ainda, passam a ser uma arma de revolta contra a hegemonia.
As melhores paródias brasileiras “devoram” o intertexto
hollywoodiano antropofagicamente, digerindo-o e reciclando-o,
voltando o riso crítico e catártico contra os modelos metropolita­
nos ao enfatizar seu profundo deslocamento. Vieira salienta que
Carnaval Atlãntida (1952), de Carlos Manga, propõe um modelo
de cinema baseado no deboche sublime e na ironia carnavalesca.
O tema de Carnaval Atlãntida é o próprio cinema e, mais exata­
mente, a inadequação das superproduções de estilo hollywoodia­
no enquanto paradigma para a produção de filmes no Brasil. De
fato: no filme, o diretor Cecilio B. De Milho desiste de seus pla­
nos de fazer uma superprodução épica de Helena de Tróia devi­
do ao reconhecimento implícito de que as condições do cinema
nacional não são propícias para um filme sério em grande esca­
la. Os modelos ditados para o gênero por Hollywood, com cená­
rios aparatosos e o proverbial elenco de milhares de pessoas, sim­
plesmente não eram exeqüíveis num país de Terceiro Mundo
economicamente marginalizado. Carnaval Atlãntida exemplifica
literalmente a idéia de carnavalização de Baktin, não só através
de seu título, como também por meio de seus procedimentos e
alusões fundamentais. Ao lado do pretensioso De Milho, outros
personagens favorecem uma adaptação mais popular, menos pe­
dante, da história de Helena de Tróia, aconselhando-o a abando-
55

n.ii o épico que havia imaginado em favor de um filme de carna­


val. Uma seqüéncia, em especial, sumariza a carnavalização das
■uperproduções de Hollywood. Dois porteiros do estúdio (Colé
c Grande Otelo) dizem como, a seu ver, deveria ser a historia
do Helena de Tróia. Em vez da pompa kitsch da decoração sun-
Iuosa do palácio e da interpretação teatral propostas por Cecilio
11. De Milho, os personagens populares imaginam o cantor negro
Ulecaute vestido de grego cantando Dona cegonha (música do car­
naval de 1952), acompanhado por um samba festivo e por Gran­
de Otelo tropeçando na toga. Portanto, os temas sérios europeus
devem ser relativizados e ressituados dentro do contexto do car­
naval e da parodia. “Helena de Tróia não vai dar certo” , dizem
eles a De Milho. “O povo prefere dançar e se sacudir.”
No final da década de 60, o tropicalismo retomou contato
com o carnaval e a paródia. O tropicalismo inspirava-se em par­
te no modernismo brasileiro, especialmente na concepção de “an­
tropofagia” , de Oswald de Andrade, enquanto metaforicamente
aplicada a produtos culturais. (De fato, a teoria e a prática da
antropofagia artística podem ser vistas como a contribuição espe­
cificamente brasileira à discussão internacional de “intertextuali-
dade” .) Para os modernistas, o canibalismo artístico fazia parte
de uma estratégia de resistência nacional ao colonialismo cultu­
ral. Os artistas brasileiros deveríam digerir produtos culturais im­
portados para depois explorá-los como matéria-prima para uma
nova síntese, voltando assim a cultura metropolitana imposta,
transformada, contra o colonizador. A noção de “antropofagia”
simplesmente reconhece a inevitabilidade da intertextualidade,
para usar o termo de Kristeva, ou do “dialogismo” , para usar o
de Bakhtin. O artista de uma cultura dominada não pode ignorar
a presença estrangeira; é preciso que dialogue com ela, que a en­
gula e a recicle de acordo com objetivos nacionais.
As categorias conceituais de Bakhtin são especialmente rele­
vantes para as produções tropicalizadas, antropofágicas, da van­
guarda cinematográfica. O bandido da luz vermelha (1968), de Ro­
gério Sganzerla, por exemplo, dá mostras de uma abertura antro-
pofágica a todas as influências intertextuais, jogando Hollywood
contra Hollywood através de uma tática de fusão de gêneros e de
colagem discursiva num “filme-suma” que funde o faroeste com
a comédia musical, a chanchada com a ficção científica, o policial
com o documentário. A colagem improvável de gêneros incompatí­
veis toma o filme inapelavelmente antiilusionista, transformando-o
56

numa compilação de pastiches, numa espécie de escritura cinema­


tográfica entre aspas. A trilha sonora do filme caracteriza essa
estratégia, reunindo uma verdadeira antologia de música progra­
mática hollywoodiana, peças clássicas e sinfônicas e música cafo­
na brasileira e americana. A Quinta Sinfonia, de Beethoven, se
superpõe a Asa Branca, por exemplo, num provocador nivelamen­
to polifónico de arte clássica elevada com arte “baixa” popular,
reunindo promiscuamente numa heteroglossia caótica estilos e
modos que geralmente se consideram distintos e separados.
Filmes de vanguarda como O bandido da luz vermelha têm
como ponto de partida a ampla penetração do cinema dominante
no Brasil. Sua orquestração de alusões e citações dissonantes não
tem o sentido de prestar uma homenagem cheia de reverência: é,
antes, um impulso carnavalesco de desrespeito e irreverência cria­
tivos. Sua hibridização de materiais incompatíveis produz uma he-
terotopia textual, na qual tendências antagônicas de gênero criti­
cam-se e relativizam-se umas às outras. No interior dessa hetero­
glossia textual, o cinema dominante é levado a combater a si pró­
prio, enquanto o magister ludi brasileiro fica de lado a ironizar.
Hegel afirmou que a paródia surge quando os artistas ultrapassam
as convenções e se dispõem a dissociar-se do passado. Os parodis­
tas latino-americanos acrescentam a essa crítica historicizante tem­
poral uma dimensão espacial, até geográfica mesmo, ao enfatizar
a inadequação dos modelos metropolitanos, que nem por isso dei­
xam de ser onipresentes. (O tropo da marginalidade, afinal, é uma
denominação etnocêntrica inadequada, pois a vida é vivida central­
mente, onde quer que haja seres humanos.) Ao mesmo tempo, o
cinema brasileiro tem sido freqüentemente mais eficiente quando
é mais ofensivo, quando se vale do humor popular e das profun­
das tradições do “relativismo alegre” do carnaval.
A releitura que Bakhtin faz da história da literatura européia
moderna, tendo Rabelais como ponto de partida, transformou o
que fora considerado marginal e excêntrico —as brincadeiras gros­
seiras de Rabelais, os jogos paródicos de um Sterne, a loucura po­
lifónica de um Dostoiévski — no paradigma de uma nova literatu­
ra “dialógica” . Sua reconceitualização também sugere a possibili­
dade, se não de uma inversão, ao menos de um certo remodela-
mento da história do cinema, onde a paródia veria garantida sua
importância perenemente fecunda e paradigmática. As paródias
populares burlescas tipo chanchada, como demonstra João Luiz
Vieira em Hegemonia e resistência, têm sido objeto de uma série
57

de preconceitos estratificados: em relação à comédia, como for­


ma “inferior” (preconceito que encontramos pelo menos desde
Aristóteles), em relação à intertextualidade explícita (considera­
da derivativa e parasitária), em relação a trocadilhos e jogos de
palavras (proverbialmente considerados como “a forma mais bai­
xa de humor”), em relação a palhaçadas físicas e pancadarias (con­
sideradas grosseiras e vulgares) e finalmente em relação ao pú­
blico, popular de classe baixa. Esses preconceitos têm em comum
a noção de alto/baixo, superior/inferior; formam um conjunto com­
plexo de homologias, unindo hierarquizações paralelas que abran­
gem questões de corporalidade, classe e sexo. Neste sentido, a
própria crítica bakhtiniana carnavaliza a tradição oficial, derru­
bando hierarquias e resgatando formas marginais desvalorizadas
pela crítica, para colocá-la no centro da discussão.
De Bakhtin
ao cinema

V o m o dissemos, a tese sobre Rabelais teve de esperar de­


zenove anos, até 1965, para ser publicada. Bakhtin passou quase
todos os anos do pós-guerra em Saransk, onde tomou-se chefe
do Departamento de Literatura Geral. Embora poucos escritos
dessa época tenham chegado até nós, Bakhtin finalmente começou
a receber o reconhecimento que merecia. No final da década de
50, Viktor Chklovski fez comentários favoráveis acerca do livro
de Bakhtin sobre Dostoiévski, e em maio de 1956 o renomado crí­
tico-lingüista Román Jakobson elogiou Bakhtin durante a reunião
do Comitê Internacional de Eslavistas, realizada em Moscou. Os
centros culturais começaram a se dar conta da existência de Bakh­
tin, que começou a ser procurado por jovens discípulos. Tomou-
se uma figura admirada, no interior da União Soviética, por uma
ampla galeria de personagens e movimentos culturais, numa prefi-
guração do seu imenso prestígio internacional de hoje. Após um
longo período de má saúde e marginalização stalinista, sua vida
teve um final relativamente feliz. Postumamente, Mikhail Bakhtin
encontrou interlocutores no mundo inteiro.
Embora a influência de Bakhtin tenha-se feito sentir ampla­
mente em estudos culturais, em disciplinas que vão da crítica lite­
rária à antropologia e à lingüística, essa influência ainda precisa
revelar sua fecundidade potencial na área dos estudos de cinema.
59

Nesta parte final, portanto, eu gostaria de explorar a relevância


das categorias conceituais de Bakhtin para a teoria e a análise do
cinema, reimaginando o cinema através de Bakhtin. Estarei condu­
zindo, portanto, um diálogo imaginário com Bakhtin, a respeito
de um tópico sobre o qual ele nunca se pronunciou: o cinema.
Até o momento, na história da reflexão sobre o cinema,
Bakhtin tem sido considerado o teórico do carnaval e das inver­
sões rituais tais como refletidos nas diegeses dos filmes e, quan­
do filtrado através de Kristeva e Genette, como um dos pensado­
res seminais das discussões contemporâneas sobre “intertextua-
lidade” . A aplicabilidade “tecnocrática” da noção de “intertex-
tualidade” , porém, e a popularidade e atração do “carnavales­
co” às vezes fizeram com que se desdenhasse outras dimensões
do pensamento de Bakhtin. Além disso, o carnaval é a categoria
bakhtiniana de mais fácil cooptação, tornando-se às vezes pretex­
to para um ludismo vazio, que discerne elementos de redenção
até mesmo nos produtos culturais mais degradados. (Por exem­
plo, as folias regadas a cerveja dos membros das associações de
estudantes em Animal house não fazem parte de um verdadeiro
carnaval, já que os garotos dessas associações pertencem exata­
mente à estrutura de poder que um verdadeiro carnaval derruba­
ria simbolicamente.) Meu projeto, aqui, será não apenas falar
de “carnaval” e “carnavalização” , mas também chamar a aten­
ção para o uso-valor crítico de outros conceitos bakhtinianos, es­
pecialmente sua visão politizada da linguagem e da arte enquan­
to impregnadas de “dialogismo” (ou seja, a geração transindivi­
dual de significado), “heteroglossia” (multilinguagem) e “tato”
(o conjunto dos códigos que governam a interação discursiva).

Carnaval, carnavalização e paródia


No capítulo anterior, discutimos a relevância do conceito
de carnavalização de Bakhtin para os produtos culturais brasilei­
ros, mas aqui eu gostaria de falar mais genericamente. Em ter­
mos puramente temáticos, a categoria de carnaval aplica-se a
um amplo espectro de textos: filmes que tematizam explícitamen­
te o carnaval em sua denotação literal (não apenas inúmeras chan­
chadas, mas também filmes como A propos de Nice, de Vigo); fil­
mes que adaptam textos literários carnavalescos (Satiricon, de
Fellini, Decameron e Contos de Canterbury, de Pasolini); filmes
60

que anarquizam as hierarquias institucionais (Zero de comporta­


mento, de Vigo, Das tripas coração, de Ana Carolina); e riso corro­
sivo direto em relação à autoridade patriarcal (Bom in flames e
A question of silence, de Lizzie Borden); filmes que desenvolvem
uma visão carnavalesca do corpo (A idade de ouro, de Buñuel,
Sweet movie, de Makavejev), privilegiando os orifícios e protube­
rancias do “estrato corpóreo mais baixo” . Ocorre ouvirem-se
ecos cinematográficos do carnaval somente através de sua nega­
ção ou degradação. Em Saló, de Pasolini, por exemplo, o próprio
carnaval é carnavalizado numa atmosfera de morbidez escatoló-
gica. Muitos outros filmes, como Quem tem medo de Virginia
WoolfP, apresentam carnavais abortados, festins manques, onde
o banqueteamento embriagado em vez de “libertar a linguagem”
meramente estimula a franqueza desagradável e um clima de
agressão crescente. Até filmes “mais incisivos” , como Hallow-
een, podem ser considerados como apresentando versões inverti­
das, distópicas, do carnaval, onde fenômenos que antes haviam
sido objeto de riso catártico são submetidos a uma espécie de
mutação, transformando-se em estigmas de terrores absolutamen­
te pessoais.
Como o carnaval sempre esteve intimamente ligado à músi­
ca e à dança, remontando a festivais onde “multidões cada vez
maiores de pessoas cantando e dançando eram lançadas de um lu­
gar para outro sob um impulso dionisíaco” (Nietzsche), sua concei-
tuação também apresenta importância potencial para a comédia
musical. (A música, como ressalta Fredric Jameson em Marxismo
e forma, é marcadamente utópica tanto na forma como no conteú­
do; sua função mais autêntica é fornecer uma espécie de “epifa­
nía”, um pressentimento puro mas limitado de uma união utópica
entre interior e exterior.) Na análise feita em Entretenimento e uto­
pia, Richard Dyer interpreta o filme musical como realização de
uma “troca de sinais” artística, através da qual os negativos da
existência social transformam-se nos positivos da transmutação ar­
tística. Surpreendentemente, essa análise corresponde, em vários
aspectos, à descrição que Bakhtin fez do carnaval. Para Dyer, o
musical apresenta um mundo utópico caracterizado por energia,
abundância, intensidade, transparência e comunhão. A “energia”
de Dyer correspondería, em termos bakhtinianos, à liberdade ges-
tual e à efervescência da dança e do movimento, características
do carnaval. “Abundância” refere-se aos festejos onipresentes
e à “gordura” da terça-feira gorda, em suma, à oralidade insolen­
te do carnaval. “Intensidade” evoca a teatralidade realçada, com
sua insinuação de um tipo alternativo de jogo. “Transparência”
61

lembra o “contato livre e familiar” de Bakhtin, e “comunhão”


faz pensar em carnaval como uma perda extática de si mesmo,
uma jouissance, coletiva. A comédia musical, assim, pode ser con­
siderada um sucedâneo bidimensional do carnaval, onde as estru­
turas opressoras da vida cotidiana não são derrubadas, mas esti­
lizadas, coreografadas e miticamente transcendidas.
De acordo com Rabelais, o carnaval — pelo menos na Euro­
pa — foi forçado a tornar-se clandestino. Sua eliminação como
prática social real provocou o aparecimento dos carnavais de sa­
lão, boêmias compensatorias que proporcionavam o que Allon
White chama de “posições liminóides” às margens da socieda­
de educada. Assim, movimentos como o Expressionismo e o Sur­
realismo assumiram, de forma deslocada, boa parte do simbolis­
mo corpóreo grotesco e dos deslocamentos jocosos (fragmentos
exilados daquilo que White denomina a “diáspora carnavalesca”)
que outrora haviam sido parte do carnaval europeu. A obra de
Luis Buñuel, mais do que qualquer outra, forja um elo direto en­
tre as transgressões formais e temáticas da vanguarda e a tradi­
ção medieval da irreverência carnavalesca. Buñuel, que foi edu­
cado no que ele próprio denominou “uma atmosfera medieval”,
e que inúmeras vezes exprimiu seu amor pela Idade Média, res­
suscita em seus filmes as estratégias artísticas daquele “perío­
do doloroso e deliciosamente refinado” . Seus ataques a institui­
ções oficiais não são meras “provocações surrealistas” , mas an­
tes prolongamentos da tradição medieval de dessacralização e
da “lógica do avesso” . Neste sentido, A idade de ouro constitui
um rito escatológico, um jeu de la merde cinematográfico lança­
do no rosto da etiqueta em todas as suas formas — política, reli­
giosa e cinematográfica. O anjo exterminador funde topoi de van­
guarda (a premissa absurda, uma situação de armadilha, a desva­
lorização da linguagem) com o tema carnavalesco do “mundo
de pernas para o ar” , reduzindo seus protagonistas da classe al­
ta à condição miserável dos favelados de Os esquecidos. O ban­
quete orgiástico de Viridiana, no mesmo espírito, faz de uma
mansão aristocrática o cenário de uma degradação carnavalesca,
na tradição dos “banquetes grotescos”, parodiando várias vezes
a Última Ceia, onde poderes mais altos são ridicularizados e sim­
bolicamente “rebaixados” . As imitações religiosas, tão freqüen-
tes nos filmes de Buñuel (as paródias de liturgias em Simão do
deserto, o arremedo de Cristo e do papa em A idade de ouro), for­
mam, simplesmente, a contrapartida atual das Festas de Cipria­
no e da parodia sacra da Idade Média.
62

Linguagem e poder
Como vimos, Bakhtin tem também uma contribuição clara,
e muitas vezes não reconhecida, a fazer no campo da semiótica
do cinema. Sua crítica dos pressupostos de uma lingüística enrai­
zada no que ele chama de “objetivismo abstrato”, em Marxismo
e filosofia da linguagem, é nitidamente relevante para a fase inau­
gural, lingüística, da semiología. Bakhtin mantém o paradigma
lingüístico porém o abre para a diacronia, a história e a luta. Com
Ferdinand de Saussure, o pensador-chave da semiología, ele par­
tilha uma espécie de “pensar relacionai”, mas as relações em
questão já não fazem parte de um sistema estrutural fechado.
Para Bakhtin, como vimos, a linguagem é inerentemente anar­
quizante e milita contra a sistematização rígida. A realidade da
fala-linguagem é, portanto, não o sistema abstrato das formas
idênticas a si mesmas, mas a emissão em diálogo, a troca cons­
tante entre interlocutores que modelam conjuntamente o evento
social da interação verbal.
Como os semiólogos, Bakhtin vê linguagem em toda a par­
te (em Marxismo e filosofia da linguagem ele escreve: “Todas as
manifestações de criatividade ideológica estão imersas, suspensas,
no elemento do discurso, do qual não podem ser inteiramente se­
gregadas ou desligadas”), mas, à diferença deles, vê a linguagem
como constantemente imbricada com o poder. A crítica que Bakh­
tin faz da lingüística de Saussure, como veremos, abre a possibili­
dade de que se reintroduza tanto a política como a cultura no mo­
delo abstrato oferecido por Metz em suas valiosas análises das
analogias e desanalogias entre cinema e linguagem. Para Bakhtin,
o embate ideológico localiza-se no centro vivo do discurso, seja
na forma de um texto artístico, seja como intercâmbio cotidiano
de linguagem. Na vida social do enunciado (seja ela uma frase pro­
ferida verbalmente, um texto literário, um filme, uma propagan­
da ou um desfile de escola de samba), cada “palavra” é dirigida
a um interlocutor específico numa situação específica, palavra es­
ta sujeita a pronúncias, entonações e alusões distintas.
Bakhtin dá o nome de “tato” ao conjunto de códigos que re­
gem a interação discursiva. O “tato”, como vimos, tem a ver com
as relações entre interlocutores e é determinado pelo conjunto de
relações sociais dos sujeitos falantes, por seus horizontes ideológi­
cos e pelas situações concretas da conversa. Essa noção de “tato”
63

é extremamente rica para a análise do cinema, adequando-se lite­


ralmente às trocas verbais diegéticas (pense-se, por exemplo, na
evolução do “tato” entre patrão e criado em O criado, de Losey)
e, figuradamente, ao “tato” existente no “diálogo” metafórico en­
tre filme e espectador. No sentido literal de tato, o cinema pode
ser considerado, em parte, a mise-en-scène de situações discursivas
reais, como contextualização visual e auditiva do discurso^ Essa
dramaturgia tem seu tato específico, suas maneiras de sugerir, atra­
vés da colocação da camera, do enquadramento e da interpretação,
fenômenos como intimidade ou distancia, companheirismo e domi­
nação, em suma, a dinámica social e pessoal que se realiza entre
interlocutores. O sentido metafórico de tato, enquanto isso, evoca
o poder implícito e as relações sociais entre filme e público. O fil­
me assume uma atitude distante, ou uma espécie de intimidade?
Pressupõe um interlocutor de determinado sexo ou classe, e qual
é sua atitude em relação a esse interlocutor imaginado? Quais são
os pressupostos do filme em relação a nosso conhecimento, ou ideo­
logia? Em termos retóricos, ele seduz, admoesta, convence, encan­
ta, colabora, implora, intimida?
O que Bakhtin chama de “entonação” é simplesmente a
conseqüência do “tato” . Situada na fronteira entre o verbal e o
não-verbal, a entonação constitui um canal e um conformador su­
til de relações sociais. É por intermédio da entonação que o su­
jeito falante estabelece contato com seu ouvinte inteiramente so­
cial, serve de barômetro para alterações na atmosfera social.
As formulações de Bakhtin nos permitem ressaltar as nuanças
do intercâmbio verbal nas artes, inclusive no cinema, e, como é
característico de Bakhtin, na vida cotidiana. Qual a relação entre
os sujeitos falantes dos filmes, em termos de posição discursiva,
grau de intimidade, relação com outros personagens? Qual a sua
relação implícita com o autor do texto, ou com o espectador, nos
mesmos termos? E como se transmitem todas essas relações atra­
vés da “entonação”? Não é difícil analisar documentários em ter­
mos de “tato” e “entonação” , a maneira como representam valo­
res culturais e posições políticas. Em inúmeros documentários,
inclusive documentários “progressistas” , como observa Jean-Clau-
de Bernardet em Cineastas e imagens do povo (Brasiliense), a voz
do narrador, acompanhando a imagem, assume entonações de
dominação e onisciência. Essa voz fala de outros, mas nunca de­
la mesma. Protegida pelo estúdio, fala numa cadência regular e
homogênea, enquanto as pessoas falam hesitantemente, em som
64

direto. Falam delas próprias na primeira pessoa, buscando as pa­


lavras, enquanto a voz fala delas com segurança, na terceira pes­
soa. O narrador torna-se a voz do conhecimento generalizante,
enquanto os “narrados” são a voz da experiência que não discri­
mina. O narrador traduz as “palavras alheias” para a linguagem
impessoal da verdade objetiva. Os “narrados” fornecem provas
para as generalizações do narrador; na confusão de suas pala­
vras, este encontra a chave para o sentido profundo de seu dis­
curso. Num artigo intitulado “O Telejornal e seu Espectador”
(Revista Novos Estudos Cebrap, n? 13, outubro de 1985), afirmei
que os noticiários da televisão também apresentam seu próprio
“tato” específico. Uma elaborada hierarquia de artistas da fala
que inclui desde os locutores, no topo, até os correspondentes e
repórteres, como atores coadjuvantes, trata condescendentemen­
te os “figurantes” , as pessoas da rua. A facilidade verbal dos lo­
cutores é sustentada por textos redigidos, ensaios e edição, e
sua fluência infalível contrasta com a relativa desarticulação dos
que se encontram na base da hierarquia. O “tato” ideologicamen­
te informado do noticiário nacional, portanto, opõe “adultos” dis­
cursivos (locutores e seus entrevistados: experts, políticos, execu­
tivos) a uma população gaguejante, infantilizada. Os noticiários
locais, especialmente nos Estados Unidos, adotam uma atitude
mais integradora: as brincadeiras bem-humoradas significam que
todos fazem parte de uma comunidade amistosa, que se sente à
vontade para brincar e fazer piadas. Tanto no jornal nacional
quanto nos jornais locais, os locutores dirigem-se a um público
que não está presente em carne e osso, cultivando o pressupos­
to tácito de que o que é dito foi formulado unicamente para aque­
le público, como se cada espectador fosse um destinatário único
e privilegiado. Embora o tato aparente do noticiário seja o do dis­
curso, e a “entonação” aparente seja de familiaridade e “calor” ,
o discurso em si é ficcional, ele próprio histoire, e muitos cálcu­
los frios tomam parte na fabricação do “calor” . O monologismo
do noticiário da televisão traveste-se de dialogismo. Concebido
como um simulacro de comunicação frente a frente entre duas
pessoas, o noticiário evoca o tropo mestre, no âmago do pensa­
mento de Bakhtin — duas pessoas em diálogo —, mas na realida­
de a comunicação é unilateral, e não uma troca entre iguais: an­
tes de mais nada, é a comunicação de um transmissor poderoso
que desfruta de acesso direto a milhões de indivíduos.
Para Bakhtin, não há embate político que não passe também
pela linguagem. Assim, as linguagens estão engajadas no jogo do
65

poder, presas em hierarquias artificiais oriundas de hegemonias


políticas e de opressões culturais. A língua inglesa, por exemplo,
devido a seu status colonizador, tornou-se o veículo lingüístico pa­
ia a projeção do poder anglo-americano, e Hollywood passou en-
lao a encamar urna hybris lingüística gerada pela hegemonia. Su­
pondo falar para os outros em seu próprio idioma (de Hollywood),
propunha-se contar a história de outras nações não só para os
americanos, mas também para essas outras nações, sempre em in­
glês. Nos filmes épicos de Cecil B. De Mille, tanto os antigos egíp­
cios quanto os israelitas falavam inglês, assim como Deus, aliás.
Km Hollywood, os gregos da Odisséia, os romanos de Ben Hur,
I lelena de Tróia, Jesus de Nazaré, Cleópatra, madame Bovary, o
conde Vronsky, todos utilizavam como língua franca o inglês do
sul da Califórnia. Desse modo a poliglossia original do mundo,
em toda a sua ruidosa diversidade, viu-se reduzida, nos filmes de
Hollywood, ao murmúrio monótono da monoglossia.
Os seres humanos participam na linguagem enquanto indi­
víduos socialmente constituídos. Quando não existe uma autênti­
ca comunidade de interesses, as relações de poder determinam
as condições de encontro social e de intercâmbio lingüístico. Até
as sociedades unilíngües caracterizam-se pelo que Bakhtin cha­
ma de heteroglossia; englobam diversas linguagens ou dialetos,
cada qual existindo em relação distinta com a mesma língua he­
gemônica. Há uma enorme quantidade de filmes que apresentam
a palavra como barômetro sensível de pressão social. Por exem­
plo, em muitos filmes new wave britânicos da decáda de 60, o in­
glês da classe alta é usado como um brasão, um instrumento de
exclusão, enquanto o inglês da classe trabalhadora é usado co­
mo um estigma. O protagonista de Nothing but the best (1964),
de Clive Donner, abandona gradualmente a maneira de falar das
classes trabalhadoras em favor do inglês de “Oxbridge” , a fim
de escalar os cumes sociais. As questões raciais também são liga­
das a problemas de linguagem, poder e estratificação social. O
interesse de La noire de..., de Sembène Ousmane, está em fazer
a protagonista feminina ocupar um centro onde convergem múl­
tiplas opressões — como criada, como negra, como mulher, co­
mo africana —e em transmitir sua opressão específicamente atra­
vés da linguagem. O patrão de Diouana afirma que “ela enten­
de francês... por instinto... como um animal’’. Aqui, a atitude co­
lonialista transforma uma característica marcadamente humana,
a capacidade para a linguagem, num signo de seu oposto.
66

Uma preocupação presente em grande parte da obra de Bakh-


tin, desde sua filosofia dialógica da linguagem até sua análise da
“focalização” em Dostoiévski e o problema do discurso indireto,
relaciona-se ao tratamento dado à “palavra alheia” e ao “discur­
so do outro” . O discurso do outro é ignorado, respeitado, distor­
cido, caricaturado? Essas questões têm nítida relevância para
um cinema que vive numa situação de poliglossia. Quantas das
prováveis cinco mil línguas atualmente em uso são, efetivamen­
te, faladas no cinema? Há línguas importantes ausentes na repre­
sentação cinematográfica? Quantas são ouvidas brevemente num
filme etnográfico, para desaparecer com a mesma rapidez? Quan­
tos filmes jamais são distribuídos internacionalmente, devido à
falta de verbas para a legendagem? Excetuando-se essas ques­
tões “demográficas”, porém, poder-se-iam formular questões
mais “textuais” . Como o cinema dominante trata o discurso do
outro? Como o cinema, dominado pelo homem, trata o discurso
e a voz da mulher? A maneira como as pessoas tratam o discur­
so do outro, especialmente o daqueles que se encontram em posi­
ções de relativa impotência, revela atitudes em relação à circula­
ção de palavras alheias típicas de culturas inteiras. Que tratamen­
to dá ao discurso do Terceiro Mundo o cinema do Primeiro Mun­
do? Em inúmeros filmes, a discriminação lingüística anda de
mãos dadas com a caracterização condescendente e com uma ima­
gem social distorcida. Os indígenas americanos dos faroestes de
Hollywood, despidos de seu próprio idioma, falam um inglês pri­
mário, marca de sua incapacidade de dominar uma língua “civili­
zada” . Em muitos filmes situados no Terceiro Mundo, a língua
dos colonizados é reduzida a uma mixórdia de ruídos de fundo,
enquanto os personagens “nativos” são obrigados a fazer frente
ao colonizador no terreno lingüístico deste último. (O caso do ar-
queólogo/aventureiro Indiana Jones, que fala chinês, sánscrito e
hindi, é apenas uma exceção aparente, pois os talentos poliglotas
do herói são, antes de mais nada, um sinal de superioridade: não
têm o sentido de possibilitar uma interação dialógica com o ou­
tro.) Em outros casos, uma atitude desatenciosa em relação às
sensibilidades lingüísticas tem como resultado atribuições errô­
neas de línguas importantes. Por exemplo, em Latin lovers, de
Mervyn Leroy (1953), a língua nacional do Brasil é o espanhol.
Em filmes situados na África do Norte, o árabe existe como um
murmúrio indecifrável, enquanto a língua “verdadeira” é o fran­
cês de Jean Gabin (em Pepe le Moho) ou o inglês de Humphrey
Bogart e Ingrid Bergman (em Casablanca). Até mesmo em Lawren-
67

ir da Arábia (1962), de David Lean, pretensiosamente, mesmo


11 .lensivamente simpático aos árabes, quase não ouvimos árabe;
ouve-se um inglês falado numa profusão de sotaques que (com
exceção do de Omar Shariff) têm pouco a ver com o árabe.
Para Bakhtin, o significado de uma palavra não é invariá­
vel; este significado depende de um “contexto extraverbal” ili­
mitado. Como vimos, ele cita o exemplo do casal que olha pela
ianela no final de maio e descobre que está começando a nevar.
Seu resignado “Bom...” comunica urna grande fartura de signifi­
cados: que o casal está cansado do inverno, que a primavera já
devia ter chegado, que estão amargamente desapontados. Mas
mesmo não considerando o contexto nesse sentido, a comunica­
ção lingüística vai além do verbal; é um canal múltiplo. Cada lín­
gua carrega consigo uma constelação de características associa­
das a articulação oral, expressão facial, gestos codificados e mo­
vimento do corpo. Ernst Lubitsch focaliza essas variações em
Trouble in paradise, comparando o discurso seco, frio, eficiente,
sem gestos, de Edward Everett Horton com o discurso enfático
e colorido de seu intérprete italiano. Nesse sentido, a dublagem
interlingüística constitui um casamento de conveniência que une
a voz de uma linguagem e uma cultura à imagem de um sujeito
falante de outra. Esse casamento freqüentemente detona uma lu­
ta sutil entre códigos lingüísticos e culturais, pois o enxerto de
uma língua, com seu próprio sistema de união entre som e ges­
to, no comportamento visível associado a uma outra, engendra
uma espécie de violência cultural. Esse deslocamento, relativa­
mente insignificante quando as línguas e as culturas são muito
próximas, torna-se maior quando elas estão mais distantes, ten­
do como resultado um embate de repertórios culturais. A televi­
são brasileira, como muitas outras do Terceiro Mundo, progra­
ma constantemente filmes e seriados norte-americanos feitos pa­
ra a televisão, nos quais os atores falam um fluente português
dublado. Porém o resultado do combate entre as bocas em movi­
mento de Kojak, Columbo, Starsky e Hutch com os sons do por­
tuguês do Brasil é uma espécie de monstruoso sincretismo, um
produto híbrido dos códigos culturais orais associados ao portu­
guês do Brasil (forte afetividade, expressão hiperbólica, anima­
do acompanhamento gestual do discurso falado) e os que se asso­
ciam ao inglês policial-detetivesco (mínima afetividade, pouca ên­
fase, gesticulação controlada, atitude contida).
O cinema e os
géneros do discurso

f / m "A Questão dos Géneros do Discurso” , Bakhtin ela­


bora conceitos extremamente instigantes, que podemos extrapo­
lar para a análise do cinema como encenação de situações discur­
sivas. Bakhtin chama a atenção para um amplo leque de “géne­
ros do discurso” orais e escritos, simples e complexos. Para Bakh­
tin, os gêneros literários “nobres” têm íntima ligação com os gê­
neros do discurso cotidiano (conversa, saudações, discussões
etc.). O espectro abrange desde as “breves réplicas da conversa
corriqueira” , os relatos cotidianos, as ordens militares, até todos
os gêneros literários (do provérbio ao romance em vários volu­
mes), chegando também a “gêneros secundários (complexos) do
discurso” , como o comentário sociocultural e a pesquisa científi­
ca. Os gêneros secundários complexos se originam dos gêneros
primários da comunicação verbal não-mediatizada, e por sua vez
também os influenciam, num fluxo constante de idas e vindas.
Assim, uma abordagem translingüística dos gêneros do discur­
so no cinema deveria relacionar os gêneros primários do discur­
so — conversas em família, ou entre amigos, encontro casual,
diálogo entre patrão e empregado, discussões em sala de aula,
brincadeiras de festa, ordens militares — com sua mediação se­
cundária cinematográfica. Esta abordagem analisaria, por exem­
plo, os códigos utilizados pelo filme hollywoodiano clássico para
69

llil.n i Din situações discursivas típicas, tais como o diálogo entre


«liu prssoas (em geral o pingue-pongue convencional de plano/
1 1 o1 11 aplano), ou os confrontos dramáticos (duelos verbais do fa-
ItM'idc v dos filmes de gángster); examinaria também as subver-
*or\ vanguardistas desses mesmos códigos. A carreira inteira
ilr i lodard, por exemplo, podería ser considerada como um prolon-
Uui Ui ataque às regras convencionais de Hollywood para o trata-
im'iito das situações discursivas no cinema; vem daí a recusa do
i mrasta em adotar nos diálogos a alternância clássica de plano/
i nnlraplano, substituindo-a por outros recursos como o tracking
Inicial em pêndulo (O desprezo), longuíssimos planos-seqüência
(Masculino, feminino), ou uma colocação nada ortodoxa do cor­
po dos interlocutores (por exemplo, a cabeça de um bloqueando
nossa visão do outro, como em Viver a vida).
Nosso discurso cotidiano, sugere Bakhtin, se molda em for­
mas genéricas que já dominamos perfeitamente antes ainda de
começarmos a estudar gramática. Bakhtin menciona vários gêne­
ros cotidianos onde a vontade discursiva individual se manifesta
c ganha uma entonação expressiva. Neste sentido, há muitos fil­
mes que se podem considerar como reflexões conscientes sobre
a questão dos gêneros primários do discurso e sua mediação cine­
matográfica; por exemplo, Bangue-Bangue (1971), filme brasilei­
ro de vanguarda de Andréa Tonacci, faz uma análise metalingüís-
lica do gênero de discurso cotidiano chamado “saudações e tro­
ca de banalidades” . Um homem e uma mulher iniciam, cinco ve­
zes seguidas, a mesma conversa, concluindo, depois de muita
prolixidade, que a interjeição “Oi!” deveria substituir sistemati­
camente a seqüência habitual de “Bom dia”, “Como vai?” , “Vou
bem” etc. Este episódio, uma das muitas minisseqüências refle­
xivas do filme, compara implicitamente o próprio filme ao discur­
so, à conversa; mais precisamente, consiste em um metadiscur-
so, discurso sobre o discurso, assim como o próprio filme é meta-
cinema. O ponto principal aparente desse discurso —a conveniência
de se usar o mínimo possível de palavras — entra em contradi­
ção com o próprio discurso, que é prolixo e redundante. O que
importa, segundo esta seqüência, não é a mensagem, mas sim
sua articulação, ou melhor, a ligação inseparável entre as duas.
Esta idéia se esclarece ainda mais quando a mesma conversa se
repete com diferentes fundos sonoros — por exemplo, com um
som ambiental estridente, depois com uma suave música de har­
pa, produzindo assim efeitos totalmente distintos.
Muitas pessoas que dominam bem uma língua, observa Bakh-
tin em “A Questão dos Gêneros do Discurso” , sentem uma peno­
sa insegurança em determinadas esferas da comunicação, pois
lhes falta o domínio das formas específicas daquele gênero. Em
O funeral, o cineasta japonês Juzo Itami aborda um desses gêne­
ros primários especializados do discurso. O filme abrange três
dias traumáticos na vida de um próspero casal japonês, após a
morte do pai do marido, desde que recebem a notícia fúnebre
até que o corpo é cremado, as cinzas enterradas e todos voltam
para casa. O trauma não consiste na perda do pai, que todos con­
sideravam um grosseirão guloso e cruel, mas sim no desafio do
discurso: como lidar com a situação nova criada pela morte, o fu­
neral e o enterro. Sem muita familiaridade com a venerável tra­
dição xintoísta nem com a etiqueta contemporânea relativa a fu­
nerais, o casal tem de assimilar ambas para essa ocasião espe­
cial. A solução é um vídeo intitulado ABC do funeral, graças ao
qual aprendem as fórmulas esperadas: ‘‘nossos pêsames por es­
sa trágica perda” ... ‘‘ainda bem que ele não sofreu muito” ... “tem
uma expressão tão "tranqüila, parece que está dormindo” ... e
assim por diante; aprendem também a dominar as fórmulas das
respostas: “ele ficaria feliz sabendo que vocês estão aqui” ...
Assim, tornam-se competentes no gênero de discurso chamado
“perda trágica de um ente querido” .
Também O anjo exterminador (1962), de Buñuel, pode ser
considerado como uma cômica desmontagem de um gênero pri­
mário do discurso chamado “conversa bem-educada à mesa” . O
enredo — um grupo de personagens da alta sociedade que, inex­
plicavelmente, não consegue sair de um jantar elegante — é o
ponto de partida para uma dissecação crítica dos elaborados ri­
tuais discursivos da alta burguesia. Num determinado nível, o fil­
me zomba de uma experiência social comum: um torturante jan­
tar formal onde todos os convidados se sentem extremamente in­
felizes mas fingem estar adorando, onde todos gostariam de ir
embora mas ninguém tem coragem. O filme também mostra va­
riações satíricas de “subgéneros do discurso”, como por exem­
plo o diálogo bem-educado de duas pessoas que se detestam mas
são obrigadas a conversar com amabilidade, ou o encontro entre
a esposa e a amante, ambas bem conscientes do “triângulo” ,
mas que para salvar as aparências fingem não saber de nada.
Numa espécie de “gramática jocosa” da linguagem da etiqueta
social, Buñuel cria encontros discursivos absurdos: por exemplo,
71

ium ui .■ de noivos executa uma espécie de paródia burocrática


i)ii género “rapaz conhece moça numa reunião social” . Enquan-
1 1 1 dançam, ela pergunta: “Nome? Idade? Profissão? Estado ci­
vil " lluñuel também mistura cortesia e descortesia, nobreza e
vulgaridade: “A senhora fede como uma hiena, madame” , diz
uma sacialite a outra. Um médico confia a um amigo que uma
pai irnte sua em breve vai “ficar careca” , expressão espanhola
que equivale a “bater as botas”. Enquanto a etiqueta burguesa
>,u se desintegrando, Buñuel parece revelar provas lingüísticas
e discursivas de graves rupturas na trama de uma sociedade pa-
iiilógicamente cortês.
Dialogismo
cultural e textual

A
X I maioria dos comentadores concorda quanto à importân­
cia central da noção de “dialogismo” no pensamento e no méto­
do de Bakhtin. Essa preponderância concedida a apenas uma das
muitas idéias inter-relacionadas de Bakhtin se reflete não só na
ampla utilização do qualificativo “dialógico” dentro do discurso
crítico, como também em diversos títulos de livros acerca de Bakh­
tin, como O princípio dialógico (Todorov), ou Bakhtin: ensaios e diá­
logos sobre sua obra (Morson). O próprio Bakhtin parece autorizar
essa impressão de que o “dialogismo” ocupa posição central em
sua obra, dizendo: “Por toda parte ouço vozes e as relações dialó­
gicas entre elas”. Escreveu também em Problemas da poética de
Dostoiévski: “Ser significa comunicar-se dialogicamente. Quando
termina o diálogo, tudo termina” . A palavra “dialogismo”, porém,
é rica demais em ressonâncias filosóficas e literárias. Chega a ser
embaraçosa de tão polissêmica; por esse motivo foi apropriada
pelas correntes mais diversas e politicamente heterogêneas.
Gostaria, agora, de refletir sobre alguns aspectos do dialo­
gismo e sua relevância para o cinema e para os estudos culturais
em geral. Podemos começar definindo o dialogismo como a rela­
ção necessária entre um enunciado e outros enunciados, utilizan­
do a palavra “enunciado” no sentido amplo que lhe dá Bakhtin.
Em “A Questão dos Gêneros do Discurso” , Bakhtin oferece uma
73

Im mulação clara do dialogismo do enunciado: “Os enunciados


■Mu sao indiferentes uns aos outros, nem auto-suficientes; são
nuil llámente conscientes e refletem um ao outro... Cada enuncia-
iln é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados, com
na <|uais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação
vcibal (...) Cada enunciado refuta, confirma, complementa e de­
pende dos outros; pressupõe que já são conhecidos, e de algu­
ma forma os leva em conta’’.
Em toda sua obra, Bakhtin reitera constantemente esta idéia
da natureza relacionai, ou dialógica, do discurso. Escreve ele em
Marxismo e filosofía da linguagem-. “Qualquer desempenho verbal
inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na
mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores, ori­
ginando um diálogo social e funcionando como parte dele”. Nes­
te sentido, pode-se considerar o dialogismo bakhtiniano como urna
“reescritura” da visão saussuriana da linguagem como jogo diacrí­
tico das diferenças — agora, porém, colocada como jogo da dife­
rença entre o texto e “todos os seus outros: autor, intertexto, in­
terlocutores reais e imaginários e o contexto comunicativo”.
Vemos, assim, que na obra de Bakhtin a palavra “dialogis­
mo” vai incorporando sentidos e conotações, sem nunca perder a
idéia central de “relação entre o enunciado e outros enunciados”.
Embora Bakhtin muitas vezes se refira ao diálogo no sentido literal
a fim de dar exemplos de dialogismo, este não pode, de maneira
alguma, ser reduzido ao diálogo verbal. Qualquer enunciado, inclu­
sive o monólogo solitário, tem seus “outros”, e só existe em rela­
ção ao contexto de outros enunciados. Até um eremita, diz Bakhtin,
não é “dono” de suas palavras. Como afirma repetidas vezes, “a
palavra sempre vem da boca de um outro”, é um patrimônio comum:

A palavra (ou qualquer signo, de modo geral) é interin­


dividual. (...) O autor (locutor) tem seus direitos inaliená­
veis sobre ela, mas o ouvinte também tem seus direitos, e
aqueles cujas vozes ressoam na palavra antes que o autor
se aposse dela também têm seus direitos (...).

Meu propósito não é esgotar nem “concluir” a discussão


sobre o dialogismo, mas apenas realçar alguns pontos relevantes
para meus objetivos. O dialogismo se refere à relação entre o tex­
to e seus outros, não só em formas bastante cruas e óbvias co­
mo o debate, a polêmica e a paródia, mas também em formas
muito mais sutis e difusas, relacionadas com os overtones e as
74

ressonâncias: as pausas, a atitude implícita, o que se deixou de


dizer, o que deve ser deduzido. Embora na origem o dialogisniu
seja interpessoal, aplica-se também por extensão à relação enlro
as línguas, as literaturas, os gêneros, os estilos e até mesmo :ih
culturas. No sentido mais amplo, o dialogismo se refere às possi
bilidades abertas e infinitas geradas por todas as práticas discur
sivas de uma cultura, toda a matriz de enunciados comunicativos
onde se situa um dado enunciado. Neste sentido, o dialogismo é
de extrema relevância não só para os textos canônicos da tradi­
ção literária e filosófica do ocidente — por exemplo, os diálogos
socráticos, os debates e desafios medievais, o diálogo crucial en­
tre Dom Quixote e Sancho Pança, ou entre o “moi” e o “lui”
em O sobrinho de Rameau, de Diderot; é relevante também para
os textos não-modelares. Além disso, é de importância central
até para os enunciados que convencionalmente não se consideram
como “textos” . De certa maneira, a noção de dialogismo “inter­
textual” é um truismo, já conhecido até por Montaigne, que afir­
mou que “já se escreveram mais livros sobre outros livros do que
sobre qualquer outro assunto”. Também o ensaio de T. S. Elliot
sobre a relação entre “tradição” e “talento individual” pode ser
considerado uma prolepse conservadora da noção de intertextua-
lidade, pressupondo a integridade da “tradição”, assim como do
“talento individual” . O dialogismo bakhtiniano, porém, é muito
mais radical, pois se aplica tanto ao discurso cotidiano como à tra­
dição literária e artística; diz respeito a todas as “séries” que en­
tram num texto, seja ele verbal ou não-verbal, erudito ou popu­
lar. Aliás, o popular penetra o erudito, e vice-versa. Diz Bakhtin:

Os tesouros semânticos que Shakespeare incorporou


em suas obras foram criados e coletados através dos sécu­
los, ou mesmo milênios; estão ocultos na linguagem, e não
só na linguagem literária, mas também nas camadas de lin­
guagem que antes da época de Shakespeare ainda não ti­
nham entrado na literatura: nos diversos gêneros e formas
da comunicação verbal, nas formas de uma poderosa cultu­
ra nacional (basicamente formas carnavalizadas) que se
moldaram durante milhares de anos, nos gêneros do teatro-
espetáculo (mistérios, farsas etc.), em enredos cujas ori­
gens remontam à antiguidade pré-histórica, e, por fim, nas
próprias formas do pensamento.

Esta reformulação bakhtiniana do problema da intertextua-


lidade deve ser considerada uma “resposta” tanto aos paradig-
75

mkis puramente intrínsecos, formalistas e estruturalistas da teo-


ilo lingüística e da crítica literária, como aos paradigmas do mar-
p n n vulgar, que se interessa apenas por determinações extrín-
hn as, relativas à classe, biografia e ideologia do autor. Em diver-
ho>, escritos, Bakhtin ataca as limitações dos críticos e académi-
i us interessados apenas na “série literária” . O conceito de dialo-
Kismo vai muito além da tradição literária e histórica que investi­
da “ fontes” e “influências”. Em contraste com os estruturalistas
r marxistas, Bakhtin é muito mais “culturalista”; interessa-se
por todas as “séries” , literárias e não-literárias, que derivam do
que ele chama de “poderosas e profundas correntes da cultura” .
Segundo ele, “a literatura não pode ser compreendida fora do
contexto global da cultura de urna determinada época” .
Assim, o texto artístico deve ser compreendido dentro do
que Bakhtin chama de “unidade diferenciada de toda a cultura
de urna época” .
O dialogismo opera dentro de qualquer produção cultural,
seja letrada ou analfabeta, verbal ou não-verbal, elitista ou popu­
lar. Os filmes de um realizador como Godard ou Raul Ruiz só fa­
zem ampliar esta noção do artista como orquestrador das mensa­
gens lançadas por todas as séries — literárias, pictóricas, musi­
cais, cinematográficas, publicitárias etc. Porém os mesmos meca­
nismos dialógicos básicos operam também dentro da chamada
“cultura popular” . Veja-se, por exemplo, o fenómeno do hip-hop
nos Estados Unidos, que inter-relaciona os universos culturais
do rap, do grafite e da dança break. O rap, forma de música popu­
lar que utiliza efeitos pirotécnicos executados em toca-discos com­
binados com um discurso verbal agressivo e ritmado — a própria
palavra rap significa conversar, dialogar —, pode ser considera­
do urna esperta versão “de rúa” das teorias bakhtinianas sobre
o dialogismo. Criado por adolescentes negros e hispânicos da clas­
se operária ou lúmpen, o rap é intensamente, exuberantemente
dialógico. Assim como o gospel e outras formas de música negra,
o rap se baseia nos esquemas musicais africanos de chamada e
resposta, numa espécie de interanimação entre executante e ou­
vinte que lembra claramente a teoria bakhtiniana da linguagem,
centrada na performance e na interação. Em outro nível, pode-
se considerar o rap como uma extensão ritmada do que Bakhtin
chama de “géneros do discurso cotidiano” , já que o rap é urna
forma ampia, que se subdivide em gêneros locais como “raps
de insulto” , “mensagem social” , “raps de festa”, “conselhos de
76

amigo” , “notícias da comunidade” , e assim por diante. Além din


so, as vigorosas investidas do rap no intertexto ignoram todas
as leis burguesas de direitos autorais: há trechos que derivam
de outras canções de discursos políticos ou da publicidade, colo
cados numa relação irônica que os relativiza mutuamente. As ci
tações servem a um amplo leque de atitudes, desde a brincade:
ra ou a transgressão até a respeitosa homenagem (a James Brown,
por exemplo). Vários músicos do rap reciclaram a voz de márti­
res negros como Malcolm X e Martin Luther King; como notou
Dick Hebdige, no livro Cut’n'Mix (Nova York, Methuen, 1987),
com essas reciclagens e novas versões os rappers “estabeleceram
uma linha direta com os heróis de sua cultura, com o intertexto
afro-americano” . Num excelente ensaio intitulado “A música rap
e Bakhtin” , Elizabeth Wheeler aplica explícitamente as catego­
rias bakhtinianas ao mundo do hip-hop. Afirma ela que o músi­
co do hip-hop usa dialogicamente materiais já prontos como um
recurso de esperteza urbana, já que os discos são mais baratos
do que os instrumentos ou aulas de música. Wheeler observa
que o rap literalmente emerge de um processo dialógico: da con­
versa entre os membros de um grupo que interagem em grande
proximidade física: olham-se nos olhos, permutam versos, home­
nagens ou insultos, e, de modo geral, “se alimentam da intensi­
dade um do outro” . Em detalhadas análises textuais de algumas
canções rap como The message e La-Di-Da-Di, Wheeler encontra
numerosos exemplos do dialogismo bakhtiniano: “discurso polifó­
nico” , “polêmica interna oculta” , “autobiografia polêmica”, “con­
fissão” , “discurso que olha de lado” e “réplica sarcástica” .
Para Bakhtin, os gêneros, as linguagens e até mesmo as cul­
turas em sua totalidade são suscetíveis à “iluminação recíproca”.
No poema-canção Língua, Caetano Veloso cria um texto eminente­
mente dialógico, tanto no aspecto literário como musical, que ilus­
tra admiravelmente a iluminação recíproca das línguas, gêneros
musicais e mesmo das culturas como um todo. Seu ponto de parti­
da é um traço característico da música popular e da arte brasilei­
ra em geral: a tendência, num país de raízes culturais múltiplas,
de contrapor dois gêneros ou duas tradições — por exemplo, o fa­
do português e o samba-canção (como no Fado tropical de Chico
Buarque), o samba e o rock, o reggae e o bolero, a música sertane­
ja e o calipso, e assim por diante. Eis um trecho de Língua:

Gosto de sentir a minha língua roçar


a língua de Luís de Camões
77

Gosto de ser e de estar


e quero me dedicar
a criar confusões de prosodia
e profusões de parodias
que encurtem dores
e furtem cores como camaleões.
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
e sei que a poesia está para a prosa
assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
(...)
e deixa os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala, Mangueira!
Fala!

Este poema é vertiginosamente rico em ressonâncias dialó­


gicas. Para começar, a canção se autodenomina “samba-rap”, is­
to é, uma síntese do samba brasileiro com o rap norte-america­
no. O ritmo básico é o do rap, e os efeitos acústicos incluem re­
cursos característicos desse tipo de música, como discos “arra­
nhados” ritmicamente, sintetizadores e baterias eletrônicas. Cae­
tano, de costume um cantor extremamente suave, adota desta
vez a pretensa fanfarronice do rap — estilo apropriado para a
narração orgulhosa e irônica de proezas sexuais e coragem físi­
ca, mas utilizado aqui para homenagear a capacidade poética da
língua portuguesa. Os primeiros versos estão repletos de home­
nagens a poetas, tanto “nobres” como populares: Luís de Ca­
mões, Fernando Pessoa (“Gosto do Pessoa na pessoa”), e, ambi­
guamente, o joyciano Guimarães Rosa e o compositor popular
Noel Rosa (“Gosto da rosa no Rosa”). A frase “Minha pátria é
minha língua” é uma citação de Fernando Pessoa. O plural “Por­
tugais” vem das teorias do antropólogo francês Roger Bastide
sobre os diversos “Brasis” , enquanto “Fala, Mangueira!” se re­
fere ao grito de carnaval da famosa escola de samba no desfile
que também é visto como uma espécie de “fala” .
Língua termina com estes versos:

A língua é minha pátria


e eu não tenho pátria: tenho mátria
e quero frátria
78

Poesia concreta e prosa caótica


ótica futura
Tá “craude, brô” , você e tu lhe amo
Que que eu te faço, nego?
Bote ligeiro
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar?
Nós canto-falamos como quem inveja negros
que sofrem horrores no gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
e deixa que digam, que pensem, que falem.

Esta colagem de citações tira proveito de todas as “séries” ,


desde o linguajar dos surfistas cariocas (“tá craude”), até os
mais sofisticados poetas paulistas, junto com alusões a Clara Cro­
codilo e a Castro Alves, cuja frase “livros às mancheias” foi atua­
lizada, incorporando discos e vídeos.
“É só através dos olhos de uma outra cultura” , escreve
Bakhtin, “que uma cultura estrangeira se revela da maneira
mais completa e profunda” . Mas este encontro dialógico de duas
culturas não deveria implicar uma perda de identidade de nenhu­
ma delas; em vez disso, “cada uma conserva sua unidade e sua
totalidade aberta, porém ambas se enriquecem mutuamente” .
O poema-canção de Caetano demonstra maravilhosamente esse
“enriquecimento mútuo” , combinando duas tradições musicais:
o “samba falado” , de derivação africana (citado num exemplo
famoso no verso final), e o rap, que também tem raízes profun­
das em inúmeras tradições africanas e norte-americanas (chama­
da e resposta, blues, signifying etc.). Desta forma, o poeta-cantor
terceiro-mundista afirma uma ligação cultural entre o Brasil e
os Estados Unidos, baseada na cultura africanizada de resistên­
cia dos dois países. “Samba-rap” é como a canção se autodesig-
na, indicando sua natureza híbrida e transcultural. “Chic-left com
banana” é um trocadilho bilingüe que combina uma referência
à conhecida canção de Gilberto Gil Chiclete com banana (onde
os dois comestíveis são sinédoques da música americana e brasi­
leira, respectivamente), com “chic-left”, ou “esquerda chique” ,
uma alusão à famosa expressão “radical chique” , do escritor
Tom Wolfe. Nesta canção-poema os diversos dialogismos se su­
perpõem, num espírito lúdico e pluricultural.
Bakhtin,
erotismo e cinema

F-I—/u gostaria aqui de imaginar o erotismo cinematográfi­


co através de Bakhtin, no sentido de visualizar as maneiras pelas
quais seu pensamento pudesse contribuir para a reformulação
de um debate que muito freqüentemente cai na repetição formu­
lar de maniqueísmos: mau pornô versus bom erotismo; má censu­
ra versus boa liberdade; má repressão versus bom hedonismo. Co­
mo podem as categorias de Bakhtin ser inseridas numa crítica
não-moralista da pornografia, que não invoque noções retrógra­
das de “bom gosto” e “comportamento decente”? Qual a rele­
vância da visão de Bakhtin do corpo, para representações eróti­
cas? Quais as implicações de suas noções de carnaval e “carnava­
lesco”? Como poderia a “translingüística” de Bakhtin e Voloshi-
nov contribuir para uma semiótica da sexualidade e da represen­
tação sexual? Tocarei brevemente num certo número de textos
e de cineastas, mas a ênfase principal será em estratégias viáveis
de crítica e revaloração. Algumas dessas estratégias incluem: re-
flexividade metapornográfica; o corpo grotesco; a cultura do ri­
so; escrita transgressiva; carnavalização paródica; dialogismo ator /
espectador; e a análise translingüística da comunicação sexual.
Uma abordagem possível ao nosso assunto seria inserir Bakh­
tin retrospectivamente na defesa da pornografia comercial, como
é constituída no momento. A pornografia, tal posição talvez quises-
80

se provar, constitui-se em uma versão contemporânea do “carna­


val” de Bakhtin; ela derruba tabus puritanos, causando o que Bakh-
tin chama de “contato livre e familiar” e “entrelaçamento de cor­
pos” do carnaval. A atenção em close-up a genitais masculinos e
femininos, nessa perspectiva, resulta na predileção do carnaval pe­
la “parte inferior do corpo”. Aproximações em zoom de atrizes de
pernas escancaradas prestam uma homenagem às protuberáncias
e aos orifícios do corpo, e a importância da ejaculação masculina,
multiplicada à disseminação surreal via truques óticos em filmes
como Atrás da porta verde (James Mitchell, 1972), fornece um
equivalente moderno aos rituais sazonais de fecundidade.
O problema dessa análise, claro, é que ela não convence
nem por um segundo. Uma defesa bakhtiniana da pornografia
seria verdadeiramente grotesca, e não no sentido positivo com
que Bakhtin usa essa palavra. Enquanto o pornô nivela os perso­
nagens ao seu denominador comum sexual, esse nivelamento é
de modo nenhum equivalente a uma reviravolta carnavalesca.
A pornografia comercial mais parece baseada em tabus purita­
nos do que contrária a eles; ela tem um interesse velado nas proi­
bições que supõe combater. A “celebração do corpo” da porno­
grafia geralmente resulta em pouco mais que a triste mise-en-scène
do parcialismo masculino; ou seja, o ansioso primeiro plano de
fragmentadas partes do corpo manifestando a diferença sexual.
A veneração do pênis que ejacula, freqüentemente no centro do
quadro e agigantado por lentes grandes-angulares, em vez de
uma homenagem à fecundidade, é uma saudação ao falo, o falo
que “substitui” , por assim dizer, uma sinédoque do espectador
masculino ausente. Enquanto o carnaval de Bakhtin é inclusivo
— a festa para a qual todos são convidados —, o filme pornô é
exclusivo, pois suas delícias, como Alain Finkelraut e Pascal
Bruckner enfatizam em A nova desordem amorosa, são três vezes
limitadas — ao olho, aos órgãos genitais e aos homens. Mesmo
as cadências e os ritmos da pornografia são tipicamente masculi­
nos. Em termos narrativos e estéticos, o pornô rege o que Nabo-
kov chama de “copulação de clichês” , com o intuito de estimu­
lar um “tépido desejo” . A pornografia comercial, em suma, cons­
titui-se não do banquete de carnaval, mas dos restos da imagina­
ção brótica.
Ao mesmo tempo, não podemos considerar o pornô como
uniformemente retrógrado, e nem gostaríamos de rejeitar o erotis­
mo por causa do eventual machismo. Em termos bakhtinianos, o
81

pornô é monológico; ele subordina tudo aos ditames da imagina­


ção masculina. Geralmente, o pornô não tem sido aberto ao que
Bakhtin chamaria de "multilinguagem” da vida erótica. Mesmo
quando ele se propõe ser “ dialógico”, ao incorporar as práticas
sexuais do “outro” — por exemplo, ao oferecer cenas lésbicas
—, é geralmente apenas um caso de monologismo mascarado de
dialogismo, desde que as cenas lésbicas são, quase que invariavel­
mente, representadas em vista das imperiosas necessidades do sé­
rio espectador masculino, sob seu olho observador. (“Nenhuma
possibilidade de encenação sexual lhe escapa”, escreve Luce Ira-
garay. “Enquanto ele for o organizador, vale tudo.”)
Contudo, não deveríamos ser essencialistas em relação à ex­
periência pornográfica. De fato, não existe uma platéia única, mas
comunidades bem diferentes que abordam o pornô a partir do que
Bakhtin chamaria de “ângulos dialógicos diversos”. Tom Waugh
e outros falaram eloqüentemente sobre a positiva centralidade do
filme pornô na vida da subcultura gay masculina, que ameniza a
solidão ao afirmar: “Você não está só. Outros fazem o que você
fantasia” . Não há espectador unitário, então, mas uma multidão
de posições possíveis para o espectador. Qualquer representação
sexual ganha sua própria “entonação”, seu próprio “sotaque so­
cial”, para usar a terminologia de Bakhtin, apenas dentro de um
diálogo maior com o espectador, com outros textos e com o con­
texto social e político geral. Um filme pornográfico visto num cine­
ma cheio de homens de negócio a caminho dos bordéis locais não
é o mesmo que visto por um casal ou um grupo de amigos. Nem
gostaríamos de igualar o pornô ao “material sexualmente explíci­
to”, uma tentativa que não deixaria lugar para as sensibilidades
lésbica e gay dos filmes Holding, de Constance Beeson, ou Chant
d ’amour, de Jean Genet, ou para a “pornografia feminista” do fil­
me Numém deux, de Godard e Mieville.
A pornografia como
carnaval ersatz

JU/m seu livro sobre Rabelais, Bakhtin descreveu o carna­


val do final da Idade Média como um festival utópico no qual o
riso gozava de urna simbólica vitória sobre a morte, a opressão
e a paranoia, como urna “segunda vida” alternativa na qual as
pessoas ganhavam uma breve entrada em urna esfera de liberda­
de. Penso ser útil considerar a pornografia como um tipo de car­
naval ersatz. Os carnavais ersatz capitalizam muito o frustrado
desejo por carnaval, ao servirem versões parciais e distorcidas
de sua promessa utópica. A pornografia comercial, nesse senti­
do, pode ser vista como um farrapo do carnaval, o detrito de
uma tradição outrora robusta e irreverente. Ela oferece o simula­
cro de um mundo pan-erótico, onde o sexo está sempre disponí­
vel, onde as mulheres são infinitamente dóceis e desejosas, on­
de o sexo se oculta em todo escritorio, em toda rúa e casa, se­
xo sem o preludio amoroso e gloriosamente livre de qualquer
conseqüência e responsabilidade. Enquanto a vida real torna-se
mais reprimida e puritana, as imagens, paradoxalmente, tomam-
se mais devassadas, como que em compensação por um diverti­
mento sexual perdido. Na idade do que Karen Jachne chama de
“A grande detumescência”(!), a exposição cinematográfica da
fartura sexual tem um papel análogo àquele dos musicais luxuo­
sos da Grande Depressão. Nesse sentido, a pornografia é uma
83

«ratificação desviante, uma tentativa de recuperar para o domí­


nio da fantasia sexual o que foi perdido na festa real. Enquanto
o carnaval é coletivo, participatório e público, a pornografia é
passiva, geralmente consumida por um amontoado de solidões
culposas, seja por zumbis atomizados nos cinemas pornós, seja
no espaço privatizado da mónada que se auto-entretém. Enquan­
to o carnaval vem de graça, a pornografia é paga em dinheiro,
cheque ou vale postal. Embora o carnaval abrace e dê boas-vin­
das ao erotismo, o mero orgasmo não é o seu telos; seu objetivo
é o divertimento no sentido mais amplo, uma brincadeira coleti­
va, uma sentida unidade com a comunidade e o cosmo. Em lu­
gar do “contato livre e familiar” do carnaval, a pornografia co­
mercial oferece o comércio ansioso de corpos que representam
esforços ritualizados. Nos rostos das atrizes podemos ler a simu­
lação dos desejos, e nos dos homens o dever cruel, a perseveran­
ça aeróbica, a solidão do “grande gozador” .
O filme Café Flesh (Gozos atômicos, 1972), de Rinse Dream,
enquanto realmente trai algo do falocentrismo que parece ser o
vício congênito da pornografia, também fornece pistas para uma
possível revaloração da mesma. A ação acontece num cabaré
pós-guerra nuclear, centro de entretenimento de um mundo on­
de 99 por cento dos terráqueos tornaram-se incapazes de reali­
zar qualquer atividade sexual. Nesse universo mutante, os sobre­
viventes dividem-se entre os que fazem e os que não conseguem
fazer, e onde a maioria que não consegue observa a minoria que
faz. A maioria deseja amor, mas o simples toque de qualquer
um os faz cair violentamente doentes. Os positivos atuam, mas
os negativos só podem olhar. A premissa do filme pode ser vis­
ta como triplamente alegórica. Em um nível, sua divisão em se­
xo-positivos e sexo-negativos pode ser vista como uma alegoria
à divisão social darwinista de ricos e pobres, com a propriedade,
neste caso, sendo a própria capacidade sexual. Em outro nível,
o filme alegoriza a relação entre o filme pornô e sua platéia, en­
tre os sexo-positivos que atuam na tela e os sexo-negativos, a
passiva platéia que observa no cinema. Poderiamos ver o filme,
finalmente, como uma alegoria do mundo em pânico da Aids,
pois nele as pessoas querem fazer amor, mas não podem fazê-lo
sem ficar terrivelmente doentes, e o inimigo é invisível, invisível
como a radiação e invisível como a Aids, comparáveis em sua
silenciosa capacidade de devastação.
Nesse contexto, poderiamos perguntar: será que não esta­
mos sendo sentimentais e românticos quando falamos sobre o
84

carnaval, hoje em dia? 0 que o carnaval pode significar em uma


era de perda de comunidade e de declínio do afeto? O que pode
significar na era do que Arthur Kroker chama de “ sexo-pânico”?
Nossa era parece ter se tornado vítima de um certo número de
literalizações melancólicas. A venerável relação amor/morte, co­
mo muitos comentaristas já enfatizaram, tornou-se atrozmente
literal com o vírus da Aids. (Café Flesh antecipou esse sentimen­
to, no que constitui uma elegia das possibilidades perdidas da se­
xualidade.) A imagem de Bakhtin da velhice grotesca parindo
uma vibrante vida nova, de maneira semelhante, torna-se mórbi­
damente horrível no contexto de mães aidéticas parindo crianças
também com Aids. Mas mesmo o carnaval medieval, somos lem­
brados, aconteceu contra o pano de fundo de uma praga real e
um apocalipse imaginado. E esse pano de fundo que explica os
esqueletos, as procissões à luz de velas e as imagens às vezes
macabras das festas medievais. Um acessório indispensável do
carnaval era um cenário chamado de “Inferno” , que era jocosa
e solenemente queimado no auge das festividades. O carnaval é
a festa apreciada depois de encarar a morte; é, para Bakhtin,
uma vitória simbólica sobre o medo e a paranóia. O carnaval não
é a cura para a Aids nem pode substituir a ação política ou a pes­
quisa médica, mas o espírito do carnaval pode nutrir o princípio
da esperança, numa era que tende ao desespero apocalíptico.
De qualquer modo, nossa preocupação aqui não é com o
carnaval literal mas sim com o carnaval como uma perene cons­
telação de estratégias artísticas e práticas simbólicas. O filme ale­
mão Um vírus não conhece moral, de Rosa Von Praunheim, forne­
ce nesse sentido um exemplo brilhante de uma abordagem “car­
navalesca” à Aids. Esse filme extraordinariamente “letrado” ,
na verdade, encontra-se explícitamente enraizado na tradição
da sátira menipéia que remonta a Aristófanes, mais precisamen­
te à tradição da qual Bakhtin fala em seu Problemas da poética
de Dostoiévski. O filme gira em torno do irresponsável proprietá­
rio de uma sauna gay que ludibria seus clientes com filmes ame­
ricanos de safe sex, mas que acaba pegando Aids ele mesmo. A
ação é repetidamente interrompida pelos comentários cantados
de um paródico “coro” de travestis. Entre outras vinhetas satíri­
cas do filme: um sinistro pesquisador chamado Doctor Blood (Dou­
tor Sangue) tenta seguir a pista da epidemia até uma África cari­
catural, travestis representam uma versão contemporânea de A
máscara da morte vermelha, de Edgar Alian Poe, e um governo
85

liberal cria um campo de extermínio/parque de diversões chama­


do “Hellgayland” . Evitando as armadilhas da frivolidade e do
moralismo, o filme desenrola-se em um clima de humor cáusti­
co, não só para alertar a platéia dos perigos, mas também para
apontar possíveis soluções. (As sessões do filme em Nova York
foram coordenadas com esforços concretos de fornecer informa­
ção, organizar eventos beneméritos e fazer exigências políticas
através da imprensa.) O refrão brechtiano do filme, cantado pe­
lo coro de travestis, resume a postura ativista do filme. Ao som
de “He’s got the whole world in his hands” (Ele tem o mundo
todo em suas mãos), o coro de travestis canta diretamente para
a câmera-platéia: “Você tem seu próprio destino em suas mãos!” .
A religiosidade fatalista dá lugar à política ativista. Finalmente,
o que aparece mais no filme é o poder de sua raiva e a audácia
de seu humor. Von Praunheim combina a evocação da beleza
da sexualidade gay com urna total apreensão face aos perigos
da Aids, dirigindo a sátira carnavalesca contra as platitudes dos
políticos demagógicos e a panacéia puritana dos defensores (ti­
po “basta-dizer-não”) da “nova sobriedade” .
r
'

I
0 corpo grotesco e
a cultura do riso

f
V/omecei por dizer que Bakhtin raramente fala de sexo
per se, e essa recusa me parece significativa e produtiva. A pala­
vra “copular” , em Bakhtin, vem acompanhada, quase que inva­
riavelmente, de suas primas-irmãs: defecar, urinar e transpirar.
A visão que tem Bakhtin da sexualidade é paratática; em sua
prosa, todos os substantivos e verbos associados ao corpo grotes­
co e às partes inferiores fecundam-se ao longo do mesmo eixo
sintagmático. Nenhuma hierarquia conceituai coloca a cópula,
ou o “Grande O” , no topo. Bakhtin, nesse sentido, não partici­
pa da moderna hipóstase da sexualidade como imperiosa raison
d etre da existência humana. Trepar, para Bakhtin, é insepará­
vel de cagar, mijar e outros lembretes semicômicos da deliciosa
grotesquerie do corpo. Sua abrangente visão ilumina, mesmo que
só por contraste, o que é tão opressivo na maior parte dos filmes
pornográficos — sua implacável visão unilateral, sua obsessiva
teleología sexualista manifesta cinematográficamente pelos inexo­
ráveis zoom-ins à trepada, ao pau, à vagina, sua interminável re­
petição do que Luce Iragaray chama de “a lei do mesmo” . E es­
sa unilateralidade que gera a inevitável perda de aura e mistério
por parte do filme pornô. Embora o sexo seja autotélico e se jus­
tifique por si próprio, quando focalizado exclusivamente parece
perder sua qualidade e implodir. Para Bakhtin, a sexualidade sem-
87

pre existe em relação: em relação à existência geral do corpo,


em relação a outras pessoas, em relação à vida social comum.
Em vez de visualizar a sexualidade como uma série de close-up
isolante de partes do corpo, Bakhtin a vê como uma ampla tela
multicentralizada, como um espaço breugheliano, cheio de gen­
te e vivo com as atividades do povo. O sexo é relativizado e rela-
cionalizado, disperso através de todo o campo social.
A cultura do riso também é absolutamente central para a
concepção de carnaval de Bakhtin: o enorme riso renovador, irri­
sório, criativo, que compreende os fenômenos do processo de
mudança e transição, e acha em cada vitória uma derrota e em
cada derrota uma vitória potencial.
No filme pornô, tal como é constituído atualmente, há pou­
co espaço para o riso; os procedimentos são mortalmente sérios.
Uma transpornografia bakhtiniana, se é que se pode imaginar
tal coisa, seria contra o sexo como negócio sério, tanto por ser
sério como por ser negócio. O riso, para Bakhtin, é erótico por
si só; é profundo, comunitário, uma corrente que passa de um
para outro, numa atmosfera de contato amigável e livre. E a me­
mória adulta das gargalhadas das crianças, que não riem necessa­
riamente de “piadas” específicas, mas como parte de um contá­
gio coletivo. O riso carnavalesco pode ser rouco, subversivo, e
até zangado, um riso que apaga velhas diferenças e instala dife­
renças novas e instáveis. A teoria do riso de Bakhtin concorda
muito com o que Ruby Rich chama de filmes feministas “medu-
sianos” . Rich tira esse termo de “A risada da Medusa”, de Helè-
ne Cixous, onde a teórica francesa celebra o potencial dos textos
feministas para “explodir a lei, quebrar a ‘verdade’ com o riso” .
Os filmes Born in flames, de Lizzie Borden, A very curious girl,
de Nelly Kaplan, e Mar de rosas, de Ana Carolina, podem ser vis­
tos como filmes medusianos que dirigem um riso satírico contra
o que Iragaray chama de “o espírito do sério” do falocentrismo.
Há um toque de Medusa no riso que explode em A question of
silence, de Marleen Gooris. O filme gira em torno dos procedi­
mentos legais contra três mulheres, de classes diferentes e desco­
nhecidas umas das outras, que matam um proprietário de buti­
que que está para prender uma mulher por furto. O julgamento
é retratado de acordo com a descrição de Bakhtin dos rituais ofi­
ciais: estático, formal, hierárquico e predeterminado no resulta­
do. Quando a advogada de defesa, Janine, insiste em que a cor­
te considere o assassinato como o ato responsável de três mulhe-
88

res contra um homem, o advogado de acusação protesta que o


considerará exatamente do mesmo modo como se as mulheres
tivessem matado uma outra mulher, ou como se três homens ti­
vessem assassinado uma mulher. Nesse ponto, uma das mulhe­
res, Frau Jongman, responde a essa declaração com uma irresis­
tível risada. A câmera mostra as testemunhas que, uma a uma,
começam a rir, depois que as outras assassinas juntam-se a elas,
e finalmente a advogada de defesa. A negação da diferença pe­
la acusação provoca o riso jocoso das diferenciadas, como que
em resposta à pergunta retórica de Luce Iragaray: “Não é o ri­
so a primeira forma de liberação da opressão secular? Não é o
fálico equivalente à seriedade do significado?” .
O tribunal, ecoando com o irrisório riso da mulher, forne­
ce uma poderosa imagem de uma utopia do riso, mostrando sua
força unificante, sua recusa subversiva a definições pré-fabrica­
das, sua insinuação de nascentes coletividades revolucionárias.
Carnavais eróticos e
camavalização paródica

( 3 carnaval, na concepção de Bakhtin, é mais do que uma


festa ou um festival; é a cultura opositora do oprimido, o mun­
do afinal visto “de baixo” , não a mera derrocada da etiqueta
mas o malogro antecipatório, simbólico, de estruturas sociais
opressoras. O carnaval é profundamente igualitário. Ele inverte
a ordem, casa opostos sociais e redistribui papéis de acordo com
o “mundo de ponta-cabeça” . O carnaval coroa e destrona; ele
arranca de seus tronos monarcas e instala hilariantes reis da ba­
gunça em seus lugares. Um filme que dá uma vaga idéia das pos­
sibilidades contemporâneas desse tipo de coroação e destrona-
mento cômicos é Tricia’s wedding, do começo da década de 70.
Realizado e representado pelos “Cockettes” , um grupo de tra­
vestis de São Francisco, o filme mostra uma jocosa recepção de
casamento para Patricia Nixon nos gramados da Casa Branca.
Um anarquista gay coloca LSD no ponche, o que leva a um cômi­
co retorno do reprimido e a uma humilhação simbólica dos pode­
rosos. A cena mais importante, se não me falha a memória, mos­
tra Richard Nixon, retratado até esse ponto como um homofóbi-
co macho obcecado por sua virilidade, fazendo a corte a um só­
sia de Mick Jagger. Em tal filme, o decoro burguês e a hipocri­
sia do poder político são conjuntamente espinafrados num grotes­
co estilo hiperbólico. (É talvez um sinal dos tempos que nenhum
90

filme, no meu conhecimento, tenha imposto um tratamento seme­


lhante a Ronald Reagan, que tanto o merece.) A paródia, para
Bakhtin, é o modo privilegiado de camavalização artística. Ao apro­
ximar-se de um discurso já existente, mas introduzindo nele uma
orientação oblíqua, diametralmente oposta à do original, a paródia
é especialmente adequada às necessidades da cultura opositora,
precisamente porque ela reconhece a força do discurso dominan­
te, apenas para desdobrá-la, através de uma espécie de jiu-jítsu
artístico contra a dominação. Em 1980, Joaquim Pedro de Andra­
de satirizou o gênero em sua “metapornochanchada” intitulada
Vereda tropical. Neste filme, o objeto do desejo toma a forma de
uma melancia. Isso significa dizer que o protagonista literalmen­
te faz amor com melancias. Vereda tropical desmistifica a porno-
chanchada ao conceder à melancia a função normalmente concedi­
da às mulheres, em tais filmes. O protagonista seduz a melancia
como se ela fosse uma virgem assustada, deflora-a ritualisticamen-
te, e a sujeita a perversidades sadomasoquistas. Uma série de to­
madas alcança o que é inacessível à mais convencional pornogra­
fia não-vegetal — tomadas de dentro da rósea umidade da própria
melancia. Assim, o filme zomba do desejo do espectador masculi­
no de ver — e apenas ver — tudo. Ele expõe as falsas vitórias da
pornografia contra os tabus visuais. Depois de conquistar os con­
tornos do corpo feminino, as partes pudendas e a vulva, a fálica
câmera toma a última fortaleza numa viagem fantástica bem ao
centro. Mas a vitória é, em todos os sentidos, oca, revelando ape­
nas o totalitarismo do prazer falocêntrico.
Vereda tropical também levanta o problema da identificação
secundária da pornochanchada. A mulher — geralmente mostra­
da como o tímido objeto sexual — é aqui a representante do es­
pectador que pergunta ao protagonista precisamente aquelas ques­
tões que gostaríamos de perguntar. O protagonista, por sua vez,
dificilmente é uma figura ideal de projeção masculina. Enquan­
to os protagonistas da pornochanchada eram geralmente play­
boys que viviam em apartamentos luxuosos, o protagonista de
Vereda tropical não tem um físico atraente e, como profissional,
é um incompetente. Ao contrário do macho-atleta sexual da por­
nochanchada, ele sofre de ejaculação precoce mesmo com suas
melancias. Em suma, Vereda tropical responde à solicitação im­
plícita do voyeur masculino por um objeto sexual feminino, ao
oferecer um exemplar ironicamente vegetal de pura alteridade.
(O governo militar brasileiro, sentindo o insulto ao machismo
91

em um filme destituído de nudez e amor heterossexual ou ho­


mossexual, baniu-o, enquanto tolerava pornochanchadas muito
mais explícitas de que ele zombava tão ostensivamente.)
Salve-se quem puder... a vida (1980), de autoria de Jean-Luc
Godard e Anne-Marie Mieville, também usa de uma comédia
corrosiva para iluminar a natureza da pornografia e do desejo
masculino. O filme concretiza cenários de desejo em formas dis­
tanciadas, freqüentemente grotescas, projetadas menos para adu­
lar o espectador do que fazê-lo (ou fazê-la) ver-se como um obje­
to cômico. O exemplo mais eficaz dessa estratégia envolve uma
apática “orgia” de quatro pessoas, apresentando um homem de
negócios, uma secretária, uma prostituta e um assistente. Go­
dard e Mieville põem em cena as fantasias sexuais dos homens
de negócios. Mostram-nos a utopia de um tecnocrata — a taylori-
zação da produção sexual. Nessa fantasia utilitária — na qual Je-
remy Bentham conhece Wilhelm Reich —, o sexo é programa­
do e disciplinado sob o pan-óptico olhar da gerência. O chefe pla­
neja o trabalho e estabelece os procedimentos. Como um cineas­
ta, ele designa movimentos precisos e atitudes para seus “ato­
res” . Depois de cuidar da imagem, ele transfere sua atenção à
trilha sonora. Cada participante é designado com um ditongo
(“ai” , “ei”) —presumivelmente o significante do desejo incontro-
lável —, que deve repetir a intervalos regulares. Os participantes
da orgia, como trabalhadores numa linha de montagem, são redu­
zidos a sacudidelas, torceduras, gemidos e tremores bem defini­
dos. O sexo de Alphaville é mostrado como uma máquina bem
lubrificada. Os trabalhadores sexuais são insensíveis, sem emo­
ção. O chefe exercita suas prerrogativas patriarcais, mesmo que
basicamente não possa gozar de seu poder. A personagem Isa-
belle “lê” seu rosto e encontra “orgulho obscuro, desespero mor­
tal, arrogância e medo” . Tudo isso, nem é preciso dizer, é alta­
mente antierótico. Não há corpos ondulantes, mas apenas a va­
zia multiplicação de significantes sexuais em uma espécie de fór­
mula caricatural de uma orgia, uma orgia traduzida em signo.
Rumo a uma
translingüística do erotismo

O método formal nos estudos !tUnirlos, Bakhtin/Medve-


dev desenvolvem a noção que denominam, de modo algo surpreen­
dente, “tato”. (Digo surpreendente porque nós associamos “ta­
to” a questões de etiqueta e diplomacia, enquanto Bakhtin e Vo-
loshinov usam a palavra em seu sentido musical, como aquele
que estabelece a métrica básica.) “Tato” refere-se à totalidade
dos códigos que governam a “interação discursiva”, inclusive
aqueles códigos que têm a ver com poder político e económico.
O conceito de “tato” é extremamente rico para os estudos cultu­
rais e aponta para a possibilidade de uma análise politicamente
informada do discurso de uma análise de intercâmbios sociais
concretos, inclusive eróticos. Um intercambio erótico em filme,
por exemplo, poderia ser analisado como um produto das rela­
ções entre todos os interlocutores (na tela e fora dela), a situação
concreta da “conversação”, e o agregado de relacionamentos so­
ciais e horizontes ideológicos que informam o discurso. No cen­
tro de qualquer filme erótico, encontramos a inter-representação
(dialógica ou não-dialógica) de sujeitos sexualmente falantes (ou
ouvintes), ou de pessoas em diálogo literal ou metafórico. Enquan­
to isso, nos bastidores, há os participantes invisíveis e inaudíveis
— os cineastas e os produtores, esperando por um lucro. E no
93

cinema ou em casa, a platéia com a qual o filme também dialo­


ga, uma platéia atravessada de contradições envolvendo sexo,
classe, preferência sexual, raça, idade e política. O “tato” eróti­
co, no filme e na vida, seria determinado, dentro de uma visão
bakhtiniana, pelo agregado de relações sociais vigentes (por exem­
plo, a realidade ambiente de patriarcalismo e homofobia), pelos
horizontes ideológicos dos interlocutores eróticos (por exemplo,
os mitos interiorizados e as ideologias que os animam) e pela si­
tuação concreta que envolve os interlocutores (por exemplo, dois
amantes homossexuais numa situação de homofobia e discrimina­
ção, ou o chefe e a secretária numa situação de hostilidade se­
xual, e assim por diante).
Bakhtin ressalta o que poderia ser chamado de dimensão lin­
güística da luta social. Os seres humanos não nascem simplesmen­
te dentro da linguagem como um código maior; eles crescem den­
tro dela, são formados por ela, ajudam a formá-la, tanto o homem
como a mulher, o trabalhador ou o patrão, o camponês ou o lati­
fundiário. Cada comunidade lingüística aparentemente unificada
é caracterizada pelo que Bakhtin chama de “heteroglossia”, ou
seja, as práticas de discurso dialogicamente inter-relacionadas,
operantes em uma dada sociedade. A linguagem, assim, torna-se
o espaço de confrontação de “sotaques” sociais diferentemente
orientados; diferentes consciências sociais lutam no terreno da lin­
guagem. Não há luta política, para Bakhtin, que também não pas­
se pela palavra, não apenas em óbvios conflitos em relação à edu­
cação bilingüe ou a línguas oficiais, mas onde quer que a questão
da linguagem torne-se envolvida com arranjos assimétricos de po­
der. A opressão patriarcal, como as sociolingüistas feministas res­
saltaram, também passa pela linguagem, assim como a resistên­
cia da mulher a essa opressão. Salve-se quem puder... a vida, espe­
cialmente, enfatiza a não-reciprocidade da troca lingüística entre
homens e mulheres. A prostituta Isabelle chama seus clientes
de “senhor”; eles não a chamam de “senhora” . O chefe, exerci­
tando sua prerrogativa masculina como árbitro da beleza femini­
na, obriga sua secretária a dizer: “Meus peitos não são fantásti­
cos” . Ela não pode obrigá-lo a dizer: “Minha barriga não é atraen­
te ”. Os cafetões de Isabelle espancam-na — um gesto quintessen-
cial da infantilização paternalista — e forçam-na a admitir que
nenhuma mulher, seja ela duquesa, secretária ou campeã de tê­
nis, pode ser verdadeiramente independente. Um dos homens
de negócio que aluga o corpo de Isabelle é chamado, significante-
94

mente, de “Sr. Personne” . O freguês, o homem com dinheiro,


é uma pessoa, um sujeito; enquanto a prostituta é diferencialmen­
te definida como não-pessoa, como objeto. Ainda assim, no final,
a designação reverbera ironicamente, uma vez que personne, em
francês, também quer dizer “ninguém” . É ele que é ninguém,
ele que é rebaixado, reduzido à função circunstancial do freguês
pagante (o trapaceador trapaceado*): é ele que despersonaliza a
si próprio.
O que Bakhtin chama de “entonação” é simplesmente a con-
seqüência do “tato”. Estando na fronteira do verbal e do não-ver-
bal, ela constitui um conduto sutil de relações sociais. É através
da entonação que o indivíduo falante estabelece contato com o ou­
vinte. Completamente social, serve como barômetro de alterações
na esfera social. Creio que seria útil abordar Salve-se quem puder...
a vida em termos de “entonação” e “tato” social e sexual. O fil­
me apresenta, por exemplo, um tipo de experimento temporal
na forma de quinze skids — variações de ação parada ou movi­
mento em câmera lenta — que interrompem os mais convencio­
nais 24-quadros-por-segundo do resto do filme. Uma surpreen­
dente proporção desses segmentos em skid tem a ver com as re­
lações entre homens e mulheres. Godard e Mieville sondam a
natureza codificada dos abraços, beijos e tapas do filme conven­
cional. Geralmente, ações estereotipadas são reveladas para co­
brir a multiplicidade de instâncias, cada uma com suas nuanças.
Os cineastas mostram a exata posição da abrasividade epidér­
mica das relações sexuais contemporâneas. Às vezes, essa abra­
sividade é explícitamente violenta — Isabelle sendo surrada pe­
los seus cafetões — e, outras vezes, mais sutil e indireta. Ve­
mos Paul avançar na direção de Isabelle em movimentos que­
brados, simultaneamente bruscos e lentos, pouco a pouco toman­
do o espaço dela. Enquanto ela observa cautelosamente, parece
que estamos testemunhando uma incursão fálica, um miniestu­
pro. Mais adiante, Paul abraça, ou melhor, cai sobre Denise nu­
ma barulhenta colisão em câmera lenta, cristalizando uma situa­
ção na qual os amantes acham virtualmente impossível tocar sem
ferir. O filme, em tais momentos, disseca o que Foucault chama­
ria de “as formas capilares de poder, as maneiras como o poder
filtra-se no veio da vida cotidiana e penetra os menores gestos” .

No original, t r ic k s te r t r ic k e d ; jogo de palavras também com tric k (cliente da pros­


tituta). N.T.
95

()u, para usar a linguagem semiótica, o filme analisa a proxémi-


ca sexual, os códigos reguladores do toque interpessoal dentro
do contexto de um “tato” falocrático e uma “entonação” misógi­
na. Imagina-se a possibilidade de um outro tipo de filme erótico,
que explorasse as diferenças sutis em proxêmicas eróticas e a in-
terlocução entre mãe e filha, pai e filha, pai e filho, mãe e filho,
irmã e irmão, entre amantes homossexuais, amantes heterosse­
xuais. Imaginam-se as possibilidades de filmes que poderiam avan­
çar a análise semiótica do “tato” da vida erótica cotidiana. Ima­
gine-se, por exemplo, um filme inteiro devotado a um breve bei­
jo ou a um ato de amor, analisado em uma infinitude de peque­
níssimos enunciados, minifocos de resistência, colaboração, agres­
são, incompreensão, ou de generosidade, antecipação, solicitude
e espirituosidade.
Uma translingüística erótica, em suma, proporia um modelo
de interlocução sexual. Ela “iria ao fundo” da velha metáfora da
sexualidade como uma língua franca, da mesma maneira como
Metz tentou chegar ao fundo da velha metáfora de “linguagem
cinematográfica” . Um modelo bakhtiniano extrairia suas metáfo­
ras não dos domínios da conquista (“penetração”), ou do trabalho
(“trabalhar com sexo”), ou da higiene (“relações saudáveis”), mas
sim da metalinguagem de significado e comunicação autoconscien-
tes. Uma “translingüística” bakhtiniana do erotismo falaria da “he-
teroglossia” sexual, ou seja, a multilinguagem do prazer e da prá­
tica sexuais; o que Helène Cixous chama de “milhares de línguas”
do erotismo. Uma translingüística erótica encontraria “dialogis-
mo” em todos os níveis — interpessoal, intratextual, intertextual
—, combatendo uma hoste de monologismos — o monologismo
do patriarcalismo, do heterossexismo ou do puritanismo. Sua ênfa­
se seria não no desejo unilateral, mas sim no que Bakhtin chama­
ria de “entre-meio” da interlocução erótica.
Conclusões e
perspectivas futuras

-fA-té aqui, exploramos a contribuição potencial de Bakhtin


para a teoria e a análise do cinema, sobretudo em relação ao car­
naval e à interseção social de linguagem e poder. Ao fazê-lo, es­
tamos longe de esgotar as aplicações possíveis da metodologia
bakhtiniana e dos estudos de mídia e de cultura popular. Por es­
sa razão, eu gostaria de delinear brevemente outras áreas poten­
ciais de interesse.
O tropo da “polifonia”, que Bakhtin derivou da música, em
referência ao jogo de vozes ideológicas na obra de Dostoiévski,
tem imensa aplicabilidade potencial na análise do cinema. Co­
mo vimos, a “polifonia” se refere, embora de outro ângulo, ao
mesmo fenômeno designado por “dialogismo” e “heteroglossia” .
Enfatiza a coexistência, em qualquer situação textual ou protex­
tual, de uma pluralidade de vozes que não se fundem em uma
consciência única, mas que, em vez disso, existem em registros
diferentes, gerando um dinamismo dialógico entre elas próprias.
Nem “heteroglossia” nem “polifonia” apontam meramente pa­
ra a heterogeneidade enquanto tal, mas sim para o ângulo dialó­
gico no qual essas vozes se justapõem e se contrapõem, geran­
do algo além delas próprias. Para “testar” a relevância da “poli­
fonia” de Bakhtin para a análise do cinema, tomemos o exemplo
de Tout va bien (1972), o filme de Godard sobre um jornalista
97

americano e um cineasta francés que cobrem um caso de greve


numa industria de processamento de carne. Embora muitos críti­
cos, na época, vissem o filme numa perspectiva monológica, co­
mo se ele não fosse mais do que uma encenação de princípios
esquerdistas, na realidade o filme exige uma perspectiva bakhti-
niana, para ser visto como uma orquestração de numerosas “vo­
zes” ideológicas: o capital, o Partido Comunista, os maoístas, e
assim por diante. Tout va bien não faz uma imagem da militância
política como triunfo heróico de egos isolados: antes, apresenta
uma aglomeração heteroglota de vozes que exprimem o fluxo e
o fermento não resolvidos no período pós-68 na França. Como
aponta Richard Porton em seu ensaio “Tout va bien: O princípio
dialógico” , a decisão dos cineastas de prover seus atores com
um diálogo composto primariamente de citações de fontes políti­
cas díspares constitui uma aplicação radical da prática que Bakh-
tin identifica como “discurso em duas vozes” — que coloca a fa­
la individual em colisão com outros discursos, gerando assim
uma riqueza semântica que os textos monológicos não têm. Até
mesmo os fragmentos de noticiários e de anúncios que quebram
a trilha sonora constituem enunciados socialmente enraizados,
que apontam para o dialogismo interno (por exemplo, um comer­
cial “dirigindo-se” a seu freguês potencial), ou mesmo às formas
mais reificadas de comunicação.
Tout va bien também apresenta inúmeras instâncias de car-
navalização, sob a forma de uma propensão utópica a subverter
as certezas e a depor a hierarquia. A notável recusa dos trabalha­
dores em permitir que seu patrão seqüestrado alivie a bexiga
mais vezes do que eles mesmos têm direito durante um dia nor­
mal de trabalho é um exemplo de inversão carnavalesca, uma tro­
ca de papéis concretamente motivada. O “corpo inferior”, afir­
mava Bakhtin, “é o verdadeiro futuro da humanidade”, e a ocu­
pação da fábrica, que obriga o patrão a transformar seu escritó­
rio num pissoir improvisado, aponta para um futuro utópico, on­
de a coerção burocrática será objeto de troça.
A noção de “polifonia” também tem uma evidente relevân­
cia cultural, além da ideológica. E embora todas as culturas se­
jam, em certo sentido, polifónicas, algumas culturas são nitida­
mente mais do que outras. A cultura de origem multiétnica de
Bakhtin, situada na encruzilhada da Europa e da Ásia, forneceu-
lhe muitos exemplares vivos de “ polifonia” cultural. Países do
Novo Mundo, como os Estados Unidos e o Brasil, apresentam
98

similarmente uma miríade de vozes culturais — a dos povos indí­


genas (por mais abafada que essa voz possa estar), a afro-ameri­
cana (por mais distorcida ou suprimida que esteja), a judaica, a
italiana, a hispânica, a anglo-saxônica, e assim por diante — ca­
da urna das quais, por sua vez, condensa uma multidão de ento­
nações ligadas a sexo, classe e local. A polifonização cultural tam­
bém ocorre quando países como a França e a Inglaterra “hospe­
dam” cidadãos de nações anteriormente sujeitas à sua domina­
ção colonial. Boa parte da força e da audácia desses cinemas na­
cionais deriva de sua capacidade de encenar os conflitos e comple-
mentaridades de culturas heteroglotas. Muitos filmes brasileiros
demonstram e “encenam” a polifonia étnica, animando a dialéti­
ca cultural existente, por exemplo, entre a cultura erudita euro­
peizada e a cultura afro-brasileira. O pagador de promessas (1962),
de Anselmo Duarte, apresenta uma batalha cultural entre o berim­
bau e o sino da igreja, apreendendo assim, por meio de uma siné-
doque, o conflito mais amplo entre a religião afro-brasileira e a
hierarquia da igreja católica. Glauber Rocha, particularmente, uti­
liza com freqüência fragmentos simbólicos para evocar entidades
culturais vastas: um chapéu de cangaceiro para evocar o bandi­
tismo social do sertão, alguns acordes de música de candomblé
para evocar a religião afro-brasileira, um cocar indígena para
evocar os povos indígenas.
O cinema norte-americano também é potencialmente polifó­
nico. O personagem Zelig, por exemplo, sendo uma polifonia am­
bulante de personalidades étnicas, como que amplifica a polifo­
nia que o rodeia, ao personificar as vozes e ao imitar a aparência
das diversas figuras culturais com as quais entra em contato. A
canibalização aleatória das personalidades culturais de outros,
realizada por Zelig, transforma-o numa verdadeira colagem de
identidades étnicas. Uma análise verdadeiramente polifónica do
cinema norte-americano, porém, não seria sociológica, ou seja,
não se concentraria na “imagem” social de um grupo dado, e sim
na orquestração contrapontual de vozes étnicas no interior de
um texto. (Tampouco seria acinematográfica, já que essa orques­
tração “passa” pela montagem, pelo trabalho de câmera, pela in­
terpretação, pelas relações som-imagem.) Em muitos filmes nor­
te-americanos, um cenário nova-iorquino — ele próprio um mode­
lo fervilhante de heteroglossia — detona uma espécie de polifo­
nia textual. No filme de Paul Mazursky, Moscou em Nova York
(1984), o personagem de Robin Williams fala um inglês “russifi-
99

cado” , para depois entrar em interação dialógica com uma série


de figuras étnicas sinedóquicas, cada diálogo revelando as ento­
nações próprias de um interlocutor culturalmente definido: italia­
no, porto-riquenho, russo etc. Uma análise bakhtiniana também
estaria atenta para o perigo de um discurso “pseudopolifônico” .
O filme ou o comercial de televisão nos quais entre cada oito ros­
tos que aparecem um é negro, por exemplo, está mais relaciona­
do à demografía da pesquisa de mercado do que a uma autênti­
ca polifonia, já que a voz negra, nesses casos, em geral é despo­
jada de sua alma, privada de sua cor e entonação. A polifonia
não consiste na mera aparição de um representante de um gru­
po dado, mas na criação de uma conjuntura textual onde a voz
daquele grupo possa ser ouvida com força e ressonância totais.
Milhouse: a white comedy, de Emilio dè Antonio, oferece um exem­
plo impressionante. Uma montagem de som e imagem apresen­
ta o inexpressivo discurso de Nixon, “ I See a Day” , contrapos­
to à vigorosa oração de Martin Luther King “I Have a Dream” ,
mostrando nítida simpatia pela força retórica e o comprometi­
mento político deste último, ao mesmo tempo que ridiculariza a
mediocridade pequeno-burguesa do primeiro.

Conclusão
O presente ensaio não fez mais do que esboçar as possibili­
dades de uma análise bakhtiniana do cinema. Não exploramos,
por exemplo, as implicações das concepções de focalização e “pon­
to de vista’’ das relações autor-personagem. Para Bakhtin, pon­
to de vista é mais do que uma questão técnica; é também uma
questão social, política e ética, uma concretização das diversas
potencialidades das relações eu-outro. Bakhtin comparte com
Benveniste um interesse pelos “trocadores” pronominais, o jo­
go recíproco de “eu” e “você” no interior do discurso e da histó­
ria, assim como partilha com Brecht uma insistência na necessi­
dade simultânea de identificação e distância, empatia e “exoto-
pia”, a capacidade de ocupar a posição do outro através da ima­
ginação, para depois retomar um distanciamento crítico. Tampou­
co falamos da interessante concepção de “cronótopo” de Bakh­
tin, ou seja, a constelação de características distintivas tempo­
rais e espaciais dentro de um gênero definido como um “tipo
de enunciado relativamente estável” . (Vivían Sobshack inicia es-
100

sa empresa em seu ensaio “Lounge Time: Postwar Crises and


the Chronotope of Film Noir” , onde aplica uma análise cronotó-
pica às características espaço-temporais do film noir, que se ca­
racteriza pelo espaço alugado, impessoal e descontínuo do bar,
do nightclub, do hotel anônimo, do café de beira de estrada en­
quanto opostos ao espaço seguro, familiar e não-fragmentário
da domesticidade.) A tentativa de Bakhtin, reconhecidamente in­
completa, de oferecer uma teoria abrangente de espaço-tempo
no romance poderia também ser sintetizada de modo frutífero
com os esforços de Burch, Metz, Heath e outros, para definir
as categorias espaço-temporais do discurso fílmico. O modelo cro-
notópico de Bakhtin, com sua estimulante associação entre cená­
rio típico, articulação temporal e desdobramento característico
de espaço, poderia ser útil na elaboração de um modelo mais am­
plo para a análise do espaço-tempo no cinema.
A contribuição potencial das categorias bakhtinianas para o
enriquecimento do campo dos estudos cinematográficos é imensa.
A amplitude da visão de Bakhtin, que engloba culturas e milênios
de produção literária, tem potencial para desprovincianizar o dis­
curso crítico sobre cinema, um discurso que ainda está atado mui­
to rigidamente às convenções de verismo do século XIX. Pois não
só a corrente predominante do cinema mostrou ser herdeira do ro­
mance mimético do século XIX e da peça bem-acabada, como a
crítica dominante moldou-se igualmente nos limites de uma estéti­
ca apropriada a essas formas. Mesmo os rebeldes que criticam a
hegemonia do cinema hollywoodiano mostraram-se, muitas vezes,
indiretamente parasitários da tradição da corrente dominante, limi­
tando-se praticamente a reivindicar negações das convenções do­
minantes, um cinema de transgressões estéreis que abala a imagem,
fragmenta a narrativa, explode o personagem e, de uma maneira
geral, rejeita o decoro do filme bem-acabado. Mas se considerásse­
mos cineastas como Godard, Raul Ruiz, ou mesmo Woody Alien,
não como o simples “outro” negativo da tradição vigente, mas co­
mo perpetuadores de outra tradição, nossa perspectiva ficaria mui­
to diferente e, afinal, mais produtiva.
O pensamento de Bakhtin não é etnocêntrico, nem privile­
gia discursos dominantes ou gêneros canônicos. Em termos meto­
dológicos, permite que reconsideremos, depois de termos desco­
berto a especificidade cinematográfica através dos formalistas
russos e da semiología metziana, os elos existentes entre o cine­
ma e outros sistemas semióticos, e as afinidades entre estudos
101

sobre cinema e outras disciplinas, assim como a relação entre a


historia do cinema e o trajeto histórico mais ampio das formas
narrativas e discursivas. Em termos de teoria cinematográfica,
Bakhtin aponta a maneira de transcender algumas das insuficiên­
cias percebidas em outros enquadramentos teóricos. Seu concei­
to de dialogismo intertextual, de linguagem e discurso enquanto
“território compartilhado”, deixa-nos imunes às noções românti­
cas monovocais que reforçam a teoria do “autor” (embora não
nos impeçam de continuar percebendo as tonalidades e os acen­
tos específicos das vozes artísticas individuais). A ênfase que ele
atribui a um contexto sem fronteiras, sempre cambiante, que in­
terage com o texto, contribui para que evitemos a fetichização
formalista do texto autônomo. A ênfase na parole e na geração
interpessoal de significação propicia, ao mesmo tempo, uma crí­
tica dos aspectos estáticos e a-históricos da semiótica da primei­
ra fase, através de uma “translingüística” compatível com o mo­
delo lingüístico, mas sem a ilusão positivista de domínio e a hi-
postatização do sistema, típicas de um determinado estruturalismo.
Mas a contribuição mais importante de Bakhtin talvez se­
ja de caráter político. A sua noção de heteroglossia, pressupon­
do uma cultura fundamentalmente não-unitária, na qual diferen­
tes discursos existem em relações cambiantes e multivalentes
de oposição, critica implicitamente o modelo stalinista do “realis­
mo socialista” (na época de Bakhtin) e o derrotismo implícito
da escola de “ideologia dominante” do marxismo althusseriano
de nossa época. O pensamento de Bakhtin não representa um re­
cuo em relação ao radicalismo; em vez disso, chama a atenção
para todas as hierarquias opressivas de poder, não apenas as que
derivam de classe, mas também as oriundas de sexo, raça, local
e idade. Uma política textual bakhtiniana favorecería uma abertu­
ra à especificidade e diferença, recíproca e descentralizada; não
aconselharia aos embates feministas, negros ou gays que “espe­
rem sua vez” , até que a luta de classe atinja seus fins. É claro
que Bakhtin não se dirigiu específicamente a todas as opressões
— ele pouco diz, por exemplo, sobre a opressão das mulheres
—, mas reserva um espaço antecipadamente, por assim dizer,
para essas opressões.
Em diversos aspectos, o pensamento de Bakhtin se aproxi­
ma do que está expresso no último capítulo de O inconsciente po­
lítico, de Fredric Jameson. Consciente do jogo duplo da ideologia
e da utopia, discerne e propõe, como resposta, um movimento
102

duplo de fabulação celebratória e de crítica desmistificadora.


Consciente do peso morto do sistema, vê aberturas para sua car-
navalização. Neste sentido, Bakhtin sintetiza o que Bloch cha­
ma de corrente fria do marxismo — a análise desiludida da situa­
ção atual —com sua corrente quente — seus vislumbres inebrian­
tes do reino da liberdade. Existindo em diálogo com outras meto­
dologias (a Escola de Frankfurt, o feminismo, a teoria da recep­
ção, a semiótica metziana), o pensamento bakhtiniano aponta o
rumo para a superação das dicotomías estéreis e dos paradigmas
exauridos. Mais importante ainda, as conceituações de Bakhtin
sugerem a possibilidade de uma crítica cultural radical, aplicável
ao cinema e aos meios de comunicação de massa, que poderia
cristalizar o impulso latente do desejo coletivo sem deixar de es­
tar consciente da sua expressão degradada, uma crítica cultural
que não exclui o riso nem o princípio do prazer.
Bibliografia

EM PO RTUG UÊS

DO AUTOR

B , Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renas­


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SOBRE O AUTOR

S , Boris. Turbilhão e semente: ensaios sobre Dos­


c h n a id e r m a n

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B a k h t i n , M . & M e d v e d e v , P. M . The formal method in literary

scholarship. Cambridge, Harvard University Press, 1985.


rabalho pioneiro no Brasil, Bakhtin: da teoria literá­
T ria à cultura de massa traz uma iniciação sucinta,
mas rigorosa, nas idéias e propostas desse pensador.
Com muita clareza e agilidade, Robert Stam destrincha
as categorias bakhtinianas e as aplica a uma série de
produtos culturais contemporâneos - examinando com
espírito crítico e sem preconceito os modos de expres­
são na sociedade de massa, sugerindo interpretações,
propondo (jamais impondo) caminhos e sempre dialo­
gando com o leitor.
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são distorcidas, censuradas, ignoradas, endossadas? Enquanto fi­


lósofo da liberdade, Bakhtin defende a livre circulação das pala­
vras, sem opressões hierárquicas. Embora a discussão da lingüís­
tica possa parecer muito distante do mundo do carnaval, em am­
bos os casos Bakhtin defende a liberdade e a energia, em detri­
mento do discurso oficial e do poder monológico. Infelizmente,
as próprias palavras de Bakhtin não foram respeitadas pelo po­
der, pois a relativa heteroglossia dos primeiros anos da Revolu­
ção Russa estava sendo substituída pelas inflexibilidades monoló-
gicas do stalinismo. No mesmo ano em que Marxismo e filosofia
da linguagem foi editado, Bakhtin foi preso.
Aparentemente, a prisão de Bakhtin não foi tanto pelo con­
teúdo de seus escritos como pelo fato de ele pertencer a grupos
filosófico-religiosos considerados suspeitos pelo regime. Bakhtin
foi preso em janeiro de 1929 sob diversas acusações, inclusive
de fazer parte de um grupo religioso ilegal (a Irmandade de São
Serafim) e fazer exposições que “corrompiam os jovens” . Co­
mo sua saúde estava se deteriorando, e como houve uma campa­
nha para sua libertação, Bakhtin recebeu uma sentença relativa­
mente “leve” : seis anos no exílio, na cidade de Kustanai, no Ca-
saquistão. Sem escolta e à própria custa, a família Bakhtin partiu
para Kustanai no início de 1930.

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