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Anais Do III Colóquio de Estudos Foucaultianos UECE-LAPEF - UECE PDF
Anais Do III Colóquio de Estudos Foucaultianos UECE-LAPEF - UECE PDF
Comissão de Organização
Cristiane Maria Marinho (UECE); Kácia Natalia de Barros
(UECE); Roberta Liana Damasceno (UFC); Raquel Rocha
(UECE); Osmar Melo (UECE); Nathanael Barbosa
(UECE); Emilson Lopes (UECE); Kácia Natalia de Barros
(UECE); Jamilly Fonseca (UFC); Tainan Garcia (UECE);
Rafaella Nunes (UECE); Anna Maria Pontes (SEDUC/CE);
Elias Alex Pereira de Sousa (UECE); Paulo Victor
Fernandes (UNIFOR); Raquel Vasconcelos (UFC);
Dorgival Fernandes (UFCG).
Comissão Científica
Cristiane Maria Marinho (UECE); Diany Mary Falcão
(UECE); Dorgival Fernandes (UFCG); Elias F. Veras
(UFSC); Raquel Vasconcelos (UFC); Roberta Liana
Damasceno (UFC); Ursino Neto (UFC); Ivan Melo
(UNILAB).
Caderno de Programação
Anna Maria Pontes (SEDUC/CE); Elias Alex Pereira de
Sousa (UECE); Paulo Victor Fernandes (UNIFOR).
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO p. 08
A COMPLEXIDADE DA CULTURA DE SI p. 22
Hedgar Lopes Castro
Universidade Estadual do Ceará
Estudante do 6º semestre do curso de graduação em Ciências Sociais da UFC.
1
Discussões feitas no primeiro semestre de 2014, durante as aulas de História da Filosofia IV
(Contemporânea I), com o professor Emanuel Germano, e de Subjetividade e Sociedade, com o professor
Leonardo Sá. Desnecessário dizer que cabe somente a mim a responsabilidade por falhas ou incoerências
na análise proposta.
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Agradeço particularmente ao colega Erberson Rodrigues pelos instigantes diálogos sobre a
colonialidade do saber e por ter me apresentado às “epistemologias do Sul” e a Boaventura de Sousa
Santos.
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Deste modo, uma das questões mais urgentes para superar a crise paradigmática
e sócio-política atual – partindo do pressuposto de que há tal crise – é saber se a crítica
ao colonialismo, que vigora na atualidade revestido de novos formatos, “pode ser feita a
partir de dentro ou se pressupõe a exterioridade das vítimas, daquelas que só foram
parte da modernidade pela violência, pela exclusão e discriminação que esta lhes
impôs.” (SANTOS, 2010, p. 28). Portanto, nada mais coerente que o centro hegemônico
de produção do conhecimento seja deslocado das nações nortistas para aquelas
marcadas pelo processo de subalternidade – ainda que seja necessário problematizar
também o próprio lugar do intelectual, mesmo aquele que se pretende crítico feroz da
colonialidade do saber.
No que se refere à gênese dos estudos pós-coloniais, Sérgio Costa (2006) mapeia
três escolas de pensamento que, segundo ele, constituem influências significativas para
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Em Cadernos do Cárcere, citado no livro de Said, Gramsci afirma que “o ponto de partida da elaboração
crítica é a consciência do que você é realmente, é o „conhece-te a ti mesmo‟, como um produto do
processo histórico até aquele momento, o qual depositou em você uma infinidade de traços, sem deixar
um inventário”. Compilar este inventário de si mesmo é o que Said, seguindo os conselhos de Gramsci, se
propõe a fazer.
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Para Foucault, nada está isento de poder dentro da sociedade: até uma relação
pessoal, entre dois amigos, é permeada de sinuosidades, desníveis, hierarquias – que
não são, de modo algum, absolutas, mas situacionais. A relação entre saber e poder é
estreita, quase que inseparável: mais especificamente, “não há saber neutro” e “todo
saber é político”. Ou seja, o poder, enquanto prática social e rede de interações, está
impregnado em toda a sociedade, produzindo, para a manutenção (ou dissolução) da
ordem vigente, saberes que legitimam todo um aparato estrutural.
É por isso que Sérgio Costa aponta a análise foucaultiana da episteme das
ciências humanas como sendo uma das inspirações animadoras de Said. Afinal, o
Orientalismo é, como o autor palestino afirma, “um sistema para citar obras e autores”.
De fato, em AArqueologia do Saber, Foucault (1997, p. 26) escreve que “as margens de
um livro jamais são nitidamente determinadas; além de sua configuração interna e da
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forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros,
outros tempos, outras frases: nó em uma rede.” Assim, a produção do conhecimento
dito orientalista se insere num circuito autorreferenciado, em que os saberes novos
reafirmam os antigos e vice-versa.
Já no texto The West and the Rest: discourse and power, Stuart Hall se esforça
por mostrar, na base de constituição das ciências sociais, a dicotomia entre Ocidente e o
resto do mundo. A influência foucaultiana em Hall está no uso que este faz dos
conceitos de discurso e formação discursiva. De fato, quando Foucault propõe o método
arqueológico, enfatizando os discursos como fatos e sugerindo a descrição dos
acontecimentos discursivos, ele não está pensando em simplesmente comentar os textos,
nem em fazer uma análise linguística que se prende à lógica interna dos enunciados. Sua
proposta é mais ousada e complexa na medida em que pretende descrever os
acontecimentos discursivos.
Assim, o ponto que se coloca não é a de procurar nos textos um sentido oculto –
um “já-dito” que é ao mesmo um “jamais-dito” – supostamente revelado pela análise
linguística; contudo, também não é uma questão de esmiuçar relações externas ao
discurso, determinações puramente sociopolíticas. É, isto sim, algo que se encontra nas
nebulosas fronteiras entre o interno e o externo discursivo; é buscar os aspectos que
“caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se
desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática” (FOUCAULT, 1997, p. 51-52).
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(...) “reduzir o discurso a declarações que simplesmente refletem os interesses de uma determinada
classe. O mesmo discurso pode ser usado por grupos com diferentes, mesmo contraditórios, interesses de
classe. Mas isso não quer dizer que o discurso é ideologicamente neutro ou „inocente‟” [tradução minha]
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subalterno o mergulha ainda mais na periferia do poder, uma vez que o supõe “mudo” e
que somente a partir da intervenção objetiva da figura do intelectual poderá o indivíduo
marginalizado falar.
Pode ser que não haja muita diferença entre um intelectual “dar voz” ao outro e
o ato de abrir espaço para que ele fale por si mesmo. Quem sabe não se esteja tratando
aqui de distinções de ordem puramente tautológica? Não se sabe. Mas a ideia principal
ao trazer à tona esta discussão é a de sublinhar a importância de conhecer os jogos de
força que acompanham simples expressões como a de “dar voz” a alguém.
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trabalhadores seriam a classe legítima, mas não esclarecida, da revolução. Uma certa
universalidade perpassa ambos os grupos, mas somente no intelectual encontrar-se-ia a
verdade sem véus. Os representantes universais da verdade, por excelência, eram os
escritores, que acabavam por se distanciar das lutas cotidianas, das articulações entre
teoria e práxis.
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mundana, carregando em sua superfície todo o pó, suor e sangue que se produz, exala e
derrama nas batalhas pela instauração das verdades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Sérgio. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 60, Fev. 2006. pp. 117-134.
Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092006000100007&l
ng=en&nrm=iso>. acesso em 19 Jul. 2014.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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HALL, Stuart. “The West and the rest: discourse and power”. In: HALL, Stuart et al.
(orgs) Modernity: introduction to the modern societies, Oxford, Blackwell, 1996. pp.
185-227.
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault.
2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
MUCHAIL, Salma Tannus. A trajetória de Michel Foucault. In: Foucault,
simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004. pp. 9-20.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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A COMPLEXIDADE DA CULTURA DE SI
RESUMO
O presente artigo trata da problematização histórica da subjetivação, feita por Michel
Foucault, que desemboca, entre outras questões, na questão da cultura de si, tema
abordado por ele em sua última fase de pesquisas, na qual se dirigiu para o período
clássico da Roma e Grécia e para os primórdios do cristianismo. A cultura de si é o
tema central da obra História da Sexualidade: O Cuidado de Si, que não só enfatiza
uma ética enquanto desenvolvimento do sujeito mas também a sua capacidade de
relacionar-se com o outro, relação através da qual funda o cuidado consigo próprio.
Como consequencia do cuidado de si, há o desenvolvimento do governo de si, mais
enfatizado na questão do matrimônio e da atividade política (mas não apenas nestes),
tratados por Foucault na mesma obra. O objetivo do presente artigo, portanto, é,
primeiro, rever o que foi estudado e utilizado por Foucault, tendo em vista o período da
Antiguidade, do helenismo, do cristianismo e da Roma imperial, para que ele
compusesse as suas problematizações éticas genealogicamente; segundo, verificar como
o imperativo ético e político do sujeito foi se formando, mediante o permanente cuidado
e governo de si, nas práticas conjugais e políticas.
INTRODUÇÃO
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A ética é definida de forma mais precisa não quando se analisa códigos, valores
e interdições morais específica e isoladamente, pois a ética implica uma relação do
sujeito sobre si mesmo, quando executa as práticas de si para se assegurar frente às
diversas formas de subjetivação que pode produzir. Dito de outro modo, o sujeito se
produz ao mesmo tempo em que produz a sua própria subjetividade. Define assim a
ética Foucault: “(…) maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como
sujeitos da conduta moral (…), para a reflexão sobre si, para o conhecimento, o exame,
a decifração de si por si mesmo, as transformações que se procura efetuar sobre si”
(FOUCAULT, 1984, p. 29). Essa concepção ética é diferente da concepção cristã de
moral, que se centra no código de conduta, em vista do que é proibido e permitido. Ao
contrário da encontrada na Antiguidade grega, que era orientada para as práticas de si,
ou seja, para a atitude que validava o respeito às condutas tomadas. Sobre isso, salienta
Foucault: “a ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos
apetites e pelos prazeres, e (…) atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo
pleno gozo de si ou pela soberania de si sobre si mesmo”. (FOUCAULT, 1984, p. 30).
2 – A cultura de si individualmente
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A partir daí, Foucault dedica-se mais propriamente à cultura de si, a começar por
expor como ela se define na Grécia antiga: “pelo fato de que a arte da existência (…) se
encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso „ter cuidados consigo‟; é
esse principio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu
desenvolvimento e organiza a sua prática (FOUCAULT, 1985, p. 49). Cuidar da própria
alma, como queria Sócrates, em algum sentido correponde ao cuidado de si que
Foucault concebeu; e, ademais, ao passar do tempo, além de ter adquirido diversas
significações filosóficas, o cuidado de si abrange atitudes, maneiras de comportar-se,
formas de viver, procedimentos, práticas sociais e interindividuais. Até as instituições
foram elaboradas a partir do saber e do imperativo do cuidado de si, uma arte de viver; o
que proporcionou um desenvolvimento cujo ápice deu-se nos primeiros séculos da
época imperial de Roma. Quanto a isso, um dos exemplos históricos da filosofia que é
dado por Foucault é o dos epicuristas, na Carta a Meneceu, a qual “(…) dava acesso ao
princípio de que a filosofia devia ser considerada como exercício permanente dos
cuidados consigo (FOUCAULT, 1985, p. 51). É, entretanto, em Epicteto que Foucault
aponta a maior filosofia antiga sobre o cuidado de si, o qual faz uma contraposição entre
os animais e a razão humana: nos animais, a vida já está “determinada” ou disposta e
não há, portanto, preocupação com o cuidado de si; enquanto que, ao ser humano, Zeus
deu o privilégio e o dever de estabelecer, em vida, o cuidado de si, possibilitado pela
sua razão; esta não só possibilitando a liberdade, como também servindo-se de outras
faculdades, ou tomando-se a si própria como objeto de estudo.
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Toda essa cultura de si, no entanto, não se voltava à preocupação com o vigor
físico através da ginástica, o treinamento esportivo e o militar que capacitavam ao
homem ser livre na Grécia antiga. Diferentemente, a preocupação central é com a
prática de intercâmbio entre os males físicos e anímicos. Deve-se, portanto, achar o que
de mal há na alma que pode ser curado pelo corpo e vice-versa. Não pode haver
prevalecença nem demínio de um sobre o outro. Em outras palavras, “a prática de si
implica que o sujeito se constitua face a si próprio, não como um simples indivíduo
imperfeito, ignorante (…), mas sim como um indivíduo que sofre de certos males e que
deve fazê-los cuidar (…)”. (FOUCAULT, 1985, p. 62, 63). Isso, lembra Foucault ao
falar de Plutarco, faz-se mais ainda importante uma vez que os males da alma são
imperceptíveis pelos sentidos do corpo, causando a cegueira do indivíduo ao viver, por
exemplo, de modo colérico na certeza de estar sendo corajoso. O conhecimento de si
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evitaria esse tipo de equívoco; mas ele também é útil para detectar aquilo que é
supérfluo na alma e no corpo e, a partir daí, obter uma profunda noção do que é
dominante e dominado no homem; elas são, portanto, uma provação, “(…) uma forma
de medir e de confirmar a independência de que se é capaz a respeito de tudo aquilo que
é indispensável e essencial”. (FOUCAULT, 1985, p. 64).
Foucault, afinal, faz uma observação que assim se sintetiza: o objetivo das
práticas de si pode ser apresentado pelo bem geral da conversão de si, sendo este uma
modificação de atividade sem a interrupção ou a centralização nelas, ressaltando que o
sujeito deve tanto realizar as atividades como encontrar os fins dela na relação de si para
consigo. Tal é a conversão de si. Ela, de um lado, redireciona o olhar do sujeito frente às
suas atividades cotidianas e, de outro, é uma trajetória que lhe faz voltar-se a si próprio
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Em suma, o prazer sexual é uma força, contra a qual o sujeito deve lutar, sendo
ele, no entanto, fraco e fugidio diante dela; a natureza e a razão definem como, ética e
esteticamente, o sujeito está em consonância com esse status. O sujeito, no entanto,
deve entrar nessa relação trabalhando-se a si mesmo, pondo-se à prova e examinando-
se, através de seu permanente conhecimento sobre si mesmo; deve lutar para governar a
si mesmo, de modo a estabelecer em si uma relação agonística: é um embate entre seus
desejos e ambições, que se dirigem em sentido inverso de sua insistente liberdade. De
tal modo que a constituição do sujeito ético ou do governo de si é, através de práticas
livres, moderar as suas ambições e os seus desejos. É nisso que entra a estética da
existência; é com isso que ela se estabelece efetivamente. E, arremata Foucault, “(…) o
ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do
indivíduo sobre si mesmo; mas essa soberania amplia-se numa experiência (…) de um
gozo sem desejo e sem perturbação” (FOUCAULT, 1985, p. 72).
3 – A cultura de si matrimonialmente
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(…) por casamento não se deve entender somente a instituição útil para a
família ou para a cidade, nem a atividade doméstica que se desenrola no
quadro e segundo as regras de uma boa casa, mas sim o „estado‟ de
casamento como forma de vida, existência compartilhada, vínculo pessoal e
posição respectiva dos parceiros nessa relação. (FOUCAULT, 1985, p. 84)
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4 – A cultura de si politicamente
Foucault relata que, a partir do século III a.C., há, aparentemente, uma evasão e
um retraimento dos indivíduos para uma mais decadente vida cívica, devido ao declínio
das cidades-Estado. Uma perda de autonomia, com isso, deu-se. Surgiram, então,
monarquias helenísticas e o Império romano, embora não fosse apenas por causa disso
que a autonomia na época helenística e romana tivesse sido perdida a partir desse
século, tanto que tudo que constitui a vida na cidade e as atividades políticas
permaneceram. É apropriado pensar, a partir daí, não numa redução ou anulação delas,
mas "(...) na organização de um espaço complexo: muito mais vasto, muito mais
descontínuo, muito menos fechado do que poderia sê-lo o espaço das pequenas cidades-
Estado (...)" (FOUCAULT, 1985, p. 89). Foucault, assim, expõe que o poder passa a ter
múltiplos focos, e por várias dimensões e transações eles se desenvolvem.
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A questão do poder aqui é determinante: foi ele, o seu exercício, que determinou
as influências, a partir da reflexão moral que passou a haver mais acentuadamente, no
papel que os imperadores ou governantes ocupam no jogo político, além da hierarquia
que regia a cidade e os indivíduos. Para se compreender qual o interesse dessas elites
pela ética pessoal, pela vida privada baseada nos prazeres, explica Foucault que "é
preciso (...) ver aí a procura de uma nova maneira de refletir a relação que convém ter
com o próprio status, com as próprias funções, as próprias atividades e obrigações".
(FOUCAULT, 1985, p. 91). Assim, por um lado, a constituição ética de si torna-se mais
problemática para o sujeito da sociedade romana e helenística, pois estar determinado
pela hierarquia do status era inevitável. Havendo que se relacionar sob a sua lógica, o
sujeito tinha uma vida política na qual procurava "(...) adequar-se tanto quanto possível
ao próprio status por meio de todo um conjunto de signos e marcas que dizem respeito à
atitude corporal, ao vestuário e ao habitat (...)" (FOUCAULT, 1985, p. 92). Por outro
lado, problematiza-se a própria identidade do sujeito: exercer suas próprias atividades
sem que marcas e signos externos se lhe impunham soberanamente; uma relação
adequada atentando-se para si mesmo cívica e politicamente: eis a complexidade da
cultura de si. Ela define formas e condições da possibilidade, aceitabilidade e
necessidade de uma ação política. Há fundamentais problematizações políticas,
portanto, que se seguem a isso.
A primeira é a problematização da relativização, no sentido, em primeiro lugar,
de fazer sempre da vontade e escolha livre e pessoal o que norteia o campo público e o
político, sendo estes tanto uma vida como uma prática; e, em segundo lugar, do uso do
julgamento e da razão necessários frente a quaisquer problemas aí encontrados. É
Plutarco quem traz esses dois fundamentos, segundo Foucault, que conclui: “(…) o que
constitui o indivíduo enquanto ator político, não é – ou não somente – o seu status; é, no
quadro geral definido por sua origem e sua posição, um ato pessoal”. (FOUCAULT,
1985, p. 94). O que torna essa preponderância da vontade e do ato pessoais ainda mais
complexa é o fato de que sempre vai haver um governante e um governado: é uma
rotação permanente, de acordo com a qual é impossível não ser um sem ser o outro
simultaneamente. Assim, não é aceitável ser subordinado a uma administração superior
como se não houvesse participação nela do indivíduo, tendo prazeres e lazer, por
exemplo, apenas quando o governo lhe permite: se o indivíduo exerce a política, nada
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disso ocorre e, ao contrário, entra-se nas relações de poder e modifica-se suas regras e
limites livremente.
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Nos estóicos, isso se define como princípio divino sempre presente na razão
humana, princípio que cancela a possibilidade de haver distinção entre um liberto e um
escravo. Tal é a forma como o sujeito moral deve participar das atividades sociais,
cívicas e políticas, a elaborar uma ética não apenas no âmbito delas mas no percurso e
na realização delas.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
O presente trabalho tem o objetivo de investigar a noção de modernidade em Michel
Foucault na obra As palavras e as coisas a partir do vínculo estabelecido com Kant. A
pesquisa concentra-se em mostrar a relação existente entre a definição de modernidade
em Foucault com a forma pela qual Kant encara o problema do homem, nesse sentido, a
finalidade da pesquisa busca explicar por onde a referência de modernidade em
Foucault tange à constituição do sujeito de conhecimento em Kant. Foucault justifica
que através do estatuto do homem kantiano se fundou as bases para o conhecimento
moderno, o autor compreende o pensamento de Kant como aquele que inaugura a
modernidade, na medida em que indaga sobre as condições a priori de conhecer,
interroga o modo de pensar o homem e aquilo que sabemos sobre ele. O ponto de
partida concentra-se em procurar expor as razões pelas quais Foucault pensa que a
filosofia de Kant constituiu uma virada filosófica no pensamento, entender de que
maneira existe um limiar epistêmico que permite uma transição possível, ou seja, saber
por que Foucault considera o homem de Kant como aquele que inicia e caracteriza a
modernidade na filosofia. Em suma, o conteúdo do trabalho trata de uma investigação
acerca da noção de modernidade em Michel Foucault, considerando essa questão
análoga ao sentido que Kant fez do problema humano, pois a partir disso, se entenderá
de que forma as ciências empíricas tematizaram o homem como objeto da vida, do
trabalho e da linguagem.
INTRODUÇÃO
Esse artigo pretende investigar a noção de modernidade em Michel Foucault a
partir do vínculo estabelecido com Kant.O trabalhoutilizou um conjunto de obras do
autor francês para estudar com profundidade esse vínculo, contudo, centralizamos a
obra As palavras e as coisas por ela sintetizar à problemática em questão. A pesquisa
busca mostrar a relação existente entre a definição de modernidade em Foucault com a
forma pela qual Kant encara o problema do homem, isso porque, quando Foucault
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
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Idem. Ibidem, 2007, p.471
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atualidade. Com isso, também queremos dizer que a pergunta formulada por Kant, “o
que é o homem?”, reporta diretamente a problemática vivida pelo objeto homem, aquela
preocupação em volta da sua essência, de discutir a liberdade em torno do cerne da
natureza humana9, fato que leva Foucault a pensar a antropologia como um momento
histórico desses saberes, sendo o pensamento antropológico de Kant ilustrado pela
pergunta sobre o homem.
Essas afirmações polêmicas ainda voltaram a ser centro de nossa discussão,
porém se faz necessário enfatizar outros pressupostos. Comumente, encontramos nos
livros de história da filosofia os períodos que definem os campos de investigação, por
vezes, tais períodos não correspondem exatamente suas respectivas épocas, estando
separados pela mudança de conteúdo e pelo processo que lhe enriquece. Certamente,
Foucault não ignorava tais tendências oriundas dos filósofos e historiadores das idéias,
porém, seu objetivo é apresentar o homem como um dado construído historicamente.
Boa parte de suas análises são centradas no objeto homem, elas formam uma grande
pesquisa sobre a história das ciências do homem na modernidade. Por isso, é importante
ressaltar que suas pesquisas andam nacontramão da história tradicional, criticando as
tendências filosóficas que definem o conhecimento pelo processo linear. Para Foucault a
modernidade começa com Kant na virada do século XIX até os dias de hoje, precedida
de idade clássica entre os séculos XVII e XVIII, estando marcada pelo pensamento
cartesiano, e anterior a idade clássica está o período renascentista que fica entre o século
XV até fim o XVI, nessa fase o conhecimento é dominado pelas similitudes, os jogos de
semelhança que unifica o mundo10.
A noção de modernidade na obra As palavras e as coisasnão implicam apenas
uma mudança no quadro histórico-filosófico,ela ainda faz uma previsão polêmica em
torno do sujeito. No livro, Foucault tem a pretensão de delatar a invenção e o
desaparecimento do sujeito moderno na filosofia, a rigor cito Foucault:
Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema
nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano (...) pode-se
estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente. O homem é uma
invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra
facilmente. E talvez seu fim esteja próximo. Se estas disposições viessem a
desaparecer tal como apareceram, então se pode apostar que o homem se
9
TERNES, José. Michel Foucault e o nascimento da modernidade, 1995, p. 45
10
MACHADO, Roberto. Foucault a ciência e o saber,2006, p. 112
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11
Idem. Ibidem, p. 345
43
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12
DREYFUS, Hubert e RABINOW. Michel Foucault, uma trajetória filosófica – Para além do
estruturalismo e da hermenêutica, 1995, p.57
13
Kant, Immanuel. A crítica da razão pura, 2001, p.65
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problema sobre até onde o homem pode alcançar fazendo uso da simples razão, ou
melhor, da razão pura.
Sobre esse aspecto,a mudança de olhar sobre a centralidade do sujeito pensante
no conhecimento, faz com que Foucault procure demonstrar mais uma vez o
aparecimento de tipos distintos de sujeito dentro da filosofia, pela justificativa que a
configuração de cada tempo leva ao início de novas concepções do saber. Basicamente,
na idade clássica o sujeito era aquele que conhecia pela capacidade de ordenar as
relações de ideias, de faz comparações por medidas matemáticas e observa primeiro o
todo para dividi-lo em partes, portanto conhecer seria analisar. Para Foucault, na idade
clássica o papel do sujeito era simplesmente interpretar uma ordem universal de signos,
mediante idéias claras e verdadeiras, para esclarecer a ordem já dada ao mundo criado
por Deus14. O homem, na idade clássica era um ser entre os seres, já na modernidade,
torna-se um sujeito entre os objetos15. Para Foucault, Kant denuncia uma metafísica
dogmática que não se preocupava com os domínios próprios da razão, que não buscava
solucionar as antinomias, essas contradições da razão consigo mesma em especular
sobre o mundo em si. Kant funda outra reflexão filosófica, que consiste na tarefa
fundamental de crítica da própria razão, de saber seus limites independente de qualquer
experiência possível, Kant indaga sobre o ato próprio de interrogar-se, nessa medida, a
reflexão deixa de ser mera condição empírica e eleva-se a uma relação crítica,
permitindo assim se extrair um conhecimento no horizonte finito do homem que
apreende, um salto epistêmico dado pela solução transcendental no sujeito.
Foucault elabora na obra As palavras e as coisas outro índice para justificar o
início da modernidade com Kant, ele demonstra através da comparação entre idade
clássica e moderna a distinção do sujeito kantiano com os demais. Inicialmente,
Foucault inscreve diferenças observando tópicos no interior dos receptivos discursos,
ele parte da estrutura da linguagem para observarquando um saber necessita em sua
trama de um conhecimento válido, por onde organiza a verdade. Por exemplo, na época
clássica, a filosofia e a ciência estudavam os seres vivos, as riquezas e as palavras, elas
fundavam um método universal de análise capaz de produzir certezas perfeitas, seus
códigos epistêmicos ordenavam as representações e seus respectivos signos. Foucault
14
Idem. Ibidem, p.331
15
Idem. Ibidem, p.343
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acreditava que o saber clássico mantinha uma relação com a máthesis universalis,
entendida como ciência universal da medida e da ordem, essa definiu o signo como
fundamento essencial no interior do conhecimento, perspectiva não encontrada na
modernidade. O signo agregou para si o valor de fazer os jogos de semelhança ligando
significante e significado, podendo representar o pensamento, a ideia, a imagem, o
sentido e a significação. Esse tipo de discurso ganhou força e domínio na idade clássica,
mediando uma relação estreita entre signo e a teoria da representação, uma organização
binária que criou procedimentos de controle e delimitação do discurso, como uma
unidade de origem e significação das palavras, separando o falso do verdadeiro numa
análise geral de todas as formas, mas o estatuto moderno não utilizava representações de
objetos para conhecer fenômenos e nem se empenhava para fundar filosoficamente a
reflexão indutiva.
Pensando nisso, Foucault explica o ciclo completo da representação através do
quadro Las Meninas de Velásquez a fim de estudar o saber clássico e fazer as devidas
comparações. Sua intenção é demonstrar que o homem moderno, tal qual esta aí, não
teria condição de emergir no sujeito cartesiano, e nem, na teoria da representação,
justamente pela diferença de nível que há entre sujeito e objeto nessas respectivas
épocas. Foucault observar cuidadosamente obra de arte e examina algumas
peculiaridades estranhas à época, um espaço vazio, a luz opaca nos personagens, o
próprio pintor representado na obra, entre outras. Foucault exemplifica a peculiaridade
dando ênfase à figura apagada dos reis16. Velásquez pinta o rei Felipe IV e a rainha
Mariana como figuras secundárias, elas são figuras refletidas de um espelho, estão
dimensionadas no centro da tela, mas ao fundo e sob a penumbra, representando uma
imagem difusa, opaca e a ser concluída. Analogicamente, seria o lugar do homem na
idade clássica, esse semblante desbotado compreendido na teoria da representação, um
reflexo do espelho como tantos, às vezes uma projeção em grau de realidade, ora o
sujeito representa, ora é representado, visto que, um espelho não mostra nada além do
que representa. Em linhas foucaultiano, a teoria da representação17 mantém um tipo de
pensamento que fixa leis de ordenação, classifica as coisas e suas semelhanças, abrange
todos os seres, dentre eles o ser humano, que se articula como símbolos, como feição,
16
Idem. As palavras e as coisas. p.5
17
Idem. Ibidem. p. 89
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18
Idem. Ibidem. p. 81
19
Idem. Ibidem. p. 99
20
MACHADO. Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 2005, p. 123.
47
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21
DESCARTES, René. Meditações, 1973, p. 138
22
Idem. Resumo dos cursos do Collège de France, 1997, p.107
23
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II,2000, p.80
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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____________. Sobre a arqueologia das ciências. In: Ditos e escritos II– Arqueologia
das ciências e história do sistema de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2ª Ed, 2008. p. 98.
____________. O que são as Luzes? In: Ditos e escritos II– Arqueologia das ciências e
história do sistema de pensamento. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
p. 345.
____________. A prosa do mundo. In: Ditos e escritos II– Arqueologia das ciências e
história do sistema de pensamento. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
p. 25.
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MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge zahar Ed., 3ª
edição, 2006. p. 111-156.
2005, p. 95.
REVEL, Judith. Foucault, conceitos essenciais. São Paulo: editora Claraluz, 2005, p.41.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BACHELARD, G.O novo espírito cientifico. Rio de Janeiro, Edições 70, 2008.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 3.ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1989.
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REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus Editora, 1994.
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RESUMO
Em 2009, foi realizada a Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua pelo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 23 capitais brasileiras,
independentemente do seu porte populacional, e em 48 municípios com mais de 300 mil
habitantes, atingindo um contingente de quase 50.000 pessoas em situação de rua com
idade acima de 18 anos. Dentre diversas questões, a pesquisa indicou que a 82% da
população em situação de rua é formada por homens. Embora seja um número reduzido,
constatamos que mulheres utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência,
vivenciando diversas formas de violações: como a fome, o frio, o calor, a discriminação,
a intolerância, a indiferença, a violência física, psicológica, sexual e moral. Ademais, o
cotidiano da população feminina em situação de rua é permeado por relações pautadas
nas desigualdades de gênero e de poderes, bem como a construção de diversas formas
de resistências na relação com o outro. Diante disso, o presente artigo tem o propósito
de discutir as desigualdades de gênero e as relações de poderes que são construídas no
cotidiano das ruas. A discussão será realizada à luz de estudos bibliográficos, pesquisas
e reflexões a partir da minha atuação profissional, na condição de coordenadora do
Centro Referência Especializado para População em Situação de Rua - CENTRO Pop
em Maracanaú.
Curso de Mestrado Acadêmico em Serviço Social. Disciplina: Estado, Questão Social e Política Social.
regiapradop@gmail.com Assistente Social/Coordenadora Centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua em Maracanaú.
1
A Pesquisa Nacional sobre População de Rua foi realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, entre agosto de 2007 e março de 2009, em 23 capitais brasileiras, independentemente
do seu porte populacional, e em 48 municípios com mais de 300 mil habitantes. Algumas capitais ficaram
de fora, como São Paulo, Belo Horizonte e Recife, que já haviam realizado em anos recentes, e Porto
Alegre, que, no entanto, já realizou, por iniciativa do próprio município.
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2
Ver sobre o assunto no Manual de Orientações Técnicas do Centro POP. Consultar em
http://www.mds.gov.br/
3
Oficinas e as atividades coletivas constituem fazem parte estruturante do Trabalho Social desenvolvido
junto à população em situação de rua, com o objetivo de debater a realidade e ampliar o universo
informacional, cultural dos/as usuários/as, bem com a construção de novos projetos de vida. Ver mais
detalhado sobre o assunto no Manual de Orientações Técnicas sobre o Centro POP em
http://www.mds.gov.br/
55
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4
Aqui, estes termos são tratados como sinônimos. Ver detalhadamente esses conceitos ver Karl Marx, em
O Capital (2013).
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A ideia de que se, de uma parte, o gênero não é tão somente uma categoria
analítica, mas também uma categoria histórica, de outra, sua dimensão
adjetiva exige, sim, uma inflexão do pensamento, que pode, perfeitamente, se
fazer presente também nos estudos sobre mulher. (Ibid. p. 111)
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Parafraseando Heleieth Saffioti, não podemos negar que o poder seja central na
discussão de gênero, mas precisamos deixar claro que o poder pode ser
democraticamente partilhado, gerando liberdade, como também ser exercido de forma
discricionária, criando desigualdades. A mesma ressalta ainda que as contribuições de
Scott são importante a medida que coloca o debate sobre o fenômeno do poder no
centro da organização social de gênero, sendo fundamental no estabelecimento e da
manutenção da igualdade e da desigualdade. Porém, ressalta que Scott não faz nenhuma
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restrição aos estudos de Focault. Heleieth Saffitt chama atenção para os méritos de
Focault, mas que o mesmo não propõe um projeto de transformação da sociedade. (ibid.
p. 113)
Dessa forma, acreditamos que estudiosos e/ou militantes da discussão de gênero
numa perspectiva feminista contesta a dominação-exploração masculina, mas luta para a
construção de uma sociedade igualitária e se contrapõe qualquer forma de pressão e
dominação.
O “tempo presente” cria uma ambiência cultural bastante propícia a deixar os
indivíduos a cargos de si mesmos, a resgatar as soluções individuais, conservadoras e
uma sociabilidade individualista do “salve-se quem puder”. Esse pensamento
fragmentado da realidade é visível na relação preconceituosa e estigmatizante da
sociedade e do poder público em relação à população em situação de rua, bem como a
naturalização e culpabilização pela própria situação.
A população em situação de rua vivencia diversas formas de violações de
direitos, como a fome, o frio, o calor, a discriminação, a intolerância, a indiferença, a
violência física e moral, a negação dos direitos sociais e sofrem com uma cultura de
expulsão, do extermínio e de genocídio. Em relação à população feminina, ainda sofrem
o preconceito, a ojeriza e a discriminação pela sua condição feminina, pois
historicamente o lugar da “mulher é em casa”.
IV - As especificidades da população feminina em situação de rua.
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A notícia foi veiculada, O povo online. http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza data 16/03/2013
noticiasjornalfortaleza,3023500.
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parte das mulheres que vivem nas ruas constituem barreira na concretização dos
direitos.
A Política Nacional para População em Situação de Rua, propõe a integração das
políticas públicas de saúde, educação, previdência social, assistência social, trabalho e
renda, habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional, no
atendimento integral a população em situação de rua.
O Centro Pop configura-se como um espaço de referência para população em
situação de rua na perspectiva de prestar serviços visando à construção de novas
trajetórias de vida, processos de saída das ruas e/ou resgate de vínculos familiares e
comunitários. Os Serviços ofertados pelo Centro Pop são destinados aos indivíduos
e/ou famílias que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência, com a
finalidade de assegurar acompanhamento especializado com atividades direcionadas
para o desenvolvimento de sociabilidades, resgate, fortalecimento ou construção de
novos vínculos interpessoais e/ou familiares, tendo em vista a construção de novos
projetos e trajetórias de vida, que viabilizem melhores condições de vida e a
concretização dos direitos humanos.
Convém colocar que na Delegacia das Mulheres, não há registros de violência de
gênero contra mulheres em situação de rua. Isso merece um estudo extremamente
aprofundado, pois, muitas vezes a discussão da violência contra mulheres em situação
de rua é registrada como um caso de violência urbana, mascarando a questão de gênero
e o “ser mulher” nas ruas. Embora, não possamos descartar a relação, mas é necessário
pautar o debate da violência contra mulheres em situação de rua como também uma
violência de gênero. Fique aqui, o registro que a violência de gênero é
predominantemente na relação homem-mulher, mas pode ser também cometida por um
homem contra outro, por uma mulher contra outra.
É imprescindível a articulação entre as instituições e as políticas públicas como a
saúde, educação, saúde mental, previdência social, assistência social, trabalho e renda,
habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional, ou seja,
propiciar o atendimento integral de modo a formar uma rede que assegure os direitos
sociais e humanos.
V - CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo.
Boitempo, 2002.
__________. A crise estrutural do capital. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2011. Coleção
Mundo do Trabalho.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo. Ed. Martin Claret. 2007.
(Coleção obra prima de cada autor).
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RESUMO
No presente texto, a temática que norteia nossa pesquisa, concentra-se na importância
da dimensão política da parrhesía, enquanto prática de liberdade política,
principalmente a partir da leitura da parrhesía cínica, que sustentamos como
representando uma transfiguração no sentido de política e que repercute até nossa
atualidade marcada pela governamentalidade. Esta temática abre espaço para a
proposição das seguintes questões: qual o sentido de se apontar uma transfiguração da
política a partir do éthosparrhesiástico Cínico? Como esta parrhesía Cínica se expressa,
nesta condição, como prática de liberdade ao governamento abusivo? Estas questões
fazem-nos perceber que a ação política passa pela recusa de como somos governados e a
ultrapassar o que nos é determinado a ser, instituindo novas formas de subjetividade.
Retomamos as teorizações foucaultianas envolvendo a articulação entre o sujeito, o
poder e a verdade, mostrando a problematização da racionalidade política atual a partir
da análise sobre a governamentalidade. Esta noção de governamentalidade determina
uma forte ênfase no eixo político de como governar os outros, assim como para o eixo
ético da arte de governar a si mesmo.
INTRODUÇÃO
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independente da verdade dos outros que possam implicar em sua total condução.
Adotase, assim, a parrhesía como uma atitude filosófica que possui a preocupação com
a questão da verdade. A atitude ligada à parrhesía trata da constituição do sujeito moral
no interior das relações do saber e do poder – discurso da irredutibilidade da verdade,
poder e ética. Exatamente nesta contextualização, o terreno da política e da ética ligando
os problemas do governo de si e dos outros se intensifica com a problematização muito
atual: “Como não ser governado?” Torna-se importante relembrar que somos
governados. Não se defende uma ideia de total desgoverno ou desobediência irrestrita,
porém, o que nos é imposto como modo de governamento1 de nossas condutas também
nos determina o direito de não aceitar sermos governados para tal fim ou de tal maneira.
O exercício deste direito de se recusar a ser governado de qualquer forma é exercido no
interior das relações agonísticas entre poder e liberdade. As relações de poder na
modernidade, ao envolverem e instaurarem os regimes de verdade, causam brechas para
as disputas que são travadas no terreno em que as verdades são constituídas.
1
O termo governo ( ou governamento) deve ser entendido no sentido de um exercício de ato-poder para a
condução das condutas dos indivíduos. Serve para diferenciar o ato-poder enquanto condução de condutas
da noção comum de governo, enquanto administração, social e política.
2
CASTRO, E. Vocabulário FOUCAULT, 2009, p. 191.
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indivíduo como sujeito para si mesmo e para os outros: é um pouco disto que
eu gostaria de lhes falar este ano.3
3
FOUCAULT, M. Gouvernement de soi et des autres, 2010, p. 42.
4
Ibid. História da Sexualidade 2 : o uso dos prazeres, 1994, p. 11.
5
GROS, F. Foucault: a coragem da verdade, 2004, pp. 60-61.
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Uma ética que tem seu ponto de apoio em práticas que permitam aos indivíduos a se
constituírem como sujeitos de conduta moral e efetua transformações sobre si –
objetivando uma existência mais bela, através da possibilidade de serem livres para se
conduzirem a si mesmos ou de outro modo, aprenderem a se governar. Estilos de arte
de existência ética e política, fora da visão pastoral cristã.
6
FOUCAULT, M. What is Enligthenment?Dits et Écrits II, 2001, p. 1397.
7
Ibid. Estética, ética y hermenéutica, 1999, p. 24.
8
OKSALA, J. Como ler FOUCAULT. Tradução de Maria Luiza X. De A. Borges ; Revisão técnica de
Alfredo Veiga-Neto. Rio de Janeiro : Zahar, p. 108, 2011.
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uma questão referente a “como não ser governado ou como não ser governado de tal
maneira, por tais pessoas ou para tal e tal fim?”9 Daí a afirmação segundo a qual “a
reflexão sobre a noção de governamentalidade não pode deixar de passar, teórica e
praticamente, pelo elemento de um sujeito que se definiria pela relação de si consigo
mesmo.”10 A arte da crítica, expressando-se também como arte de inservidão, ganha o
aspecto de arte de existência ou técnica de si, reconhecida mais propriamente como
técnica da vida (téchne toûbíou) implicando, segundo o sentido dado pelos gregos, “na
reflexão sobre os modos de vida, sobre a eleição da existência, sobre o modo de regular
a conduta, de fixar para si mesmo os fins e os meios.”11 Destaque-se a relação direta
entre Governamentalidade e a percepção de arte de existência, principalmente com
direcionamento ao exercício de um governo de si. A noção de artes de existência
remonta às práticas de subjetivação ética do período da moral grego e greco-romano,
exemplificadas no exercício da parrhesía – uma vez que designa uma coragem de dizer
verdadeiro, colocando, assim, o sujeito em uma relação de cuidado com a verdade,
conduzindo-se por si mesmo e se colocando contra as verdades assujeitadoras.
9
FOUCAULT, M. Qu`est-ce que la critique? (Critique et Aufklarung), 1990, p. 37.
10
Ibid. L` Hermenéutique du Sujet. Cours au Collège de France. 1981-1982. Paris : Gallimard/Seuil,
2001, pp.241-242.
11
Ibid. Subjectivité et vérité, Dits et écrits II, 2001, p. 1034.
12
FOUCAULT, M. Fearless Sppeech. Los Angeles, Semiotext, 2001, p.18.
70
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vivo que é falso consigo mesmo"13. Em toda a cultura grega e romana, se faz muito
importante “dizer a verdade sobre si mesmo”. Falar com parrhesía, é dizer a verdade,
sem nada ocultar e nem dissimular. Requer de fato um ato crítico e escolha de um estilo
de vida, marcada por certa forma de coragem, arriscando-se à reação violenta por parte
de quem é interpelado.
Parrhesía Socrática
13
Ibid. Ibidem, p. 17.
14
ABRAHAM, T. El último Foucault, 2003, pp.58-59.
15
FOUCAULT, M. Le Courage de la vérité, 2009, p. 146.
71
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desafiados a se questionarem se de fato estão dando conta de suas vidas – se são capazes
de “dar conta da razão do si” (didónai lógon). A figura de Sócrates também aparece
como ponto comum, nestes dois diálogos, quanto à coragem de exercer seu éthos
parrhesiástico, e como estando capacitado de ao cuidar de si, encontrar-se apto para
cuidar dos outros. Assim, o modo de vida se configura como correlativamente
fundamental da parrhesía socrática nestes diálogos. Reforce-se que a confiança que se
pode depositar na autenticidade das palavras de Sócrates deriva do fato deste
demonstrar, através de seus atos, que não se limita a crer que o que enuncia seja
verdadeiro, mas que à medida que está convicto em seu dizer verdadeiro, ele o coaduna
à sua própria existência – mesmo correndo o risco sempre comum a quem exerce o
éthos parrhesiástico de sofrer sanções, coerções e punições de morte e exílio. Porém,
mais especificamente no Laques levanta-se a questão da coragem da verdade, da relação
entre ética e coragem e a verdade. No Alcibíades, é necessário se ocupar da alma para
que ela contemple a si mesma e possa conhecer o elemento divino que lhe permita ter
acesso à verdade. No Laques, por sua vez, deve-se cuidar não da alma, mas sim da vida
(bios). Neste diálogo percebe-se uma noção de filosofia como experiência de vida, que
se coloca como matéria ética, objeto de uma arte de si mesmo. Uma maneira de ser e
fazer, da qual se trata de prestar contas ao longo da existência. No Alcibíades, uma
filosofia que se situa no conhecimento de uma ontologia de si, mais marcadamente
metafísico. Assim sendo, embora os diálogos não sejam incompatíveis entre si, deve-se
marcar esta importante diferença. No Laques, a parrhesía socrática expressa um dizer
verdadeiro que “não circunscreve mais o lugar de um discurso metafísico possível”16.
Identifica-se de fato o exercício de um éthos que deve buscar dar à existência, um tipo
de prestação de conta de si mesmo, necessário para definir a figura visível que os
humanos devem dar à sua vida. Pode-se identificar o éthos de dizer verdadeiro que
apresenta a função e finalidade de dar ao bíos (esta existência, esta vida) uma
determinada forma.”17 Enfatiza-se deste modo, mais do que uma metafísica da alma, as
práticas de constituição de uma estilística da existência, a partir da prática do éthos
parrhesiástico.
16
16 Ibid., Ibidem, p.148.
17
Idid., Ibidem., p.148.
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Parrhesía Cínica
Partindo deste quadro em torno de estilos de existência que como observa Gros,
“é na senda socrática que se desenha para Foucault, o interesse pelos cínicos gregos”18.
Qual seria o motivo deste interesse? Foucault justifica este interesse ao apontar na
prática Cínica:
18
GROS, F. A Parrhesia em Foucault. In. FOUCAULT. A coragem da verdade. 2004, p. 162.
19
FOUCAULT, M. Le courage de la vérité, 2009,p. 153.
20
Ibid. Ibidem, pp. 153-154.
21
GROS, F. A Parrhesia em Foucault. In. FOUCAULT. A coragem da verdade. 2004 , p. 162-163.
73
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22
Ibid. Ibidem, p. 162.
23
GROS, F. A Parrhesia em Foucault. In. FOUCAULT. A coragem da verdade. 2004, p. 163.
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sem dissimulação, reta, soberana, incorruptível e feliz. Foucault vê, nessa metáfora, por um
lado, uma espécie de passagem ao limite, a extrapolação da vida-verdadeira – “alterar o valor da
moeda” está ligado à qualificação de cão (que Diógenes dava a si mesmo), e que passou a
identificar o Cinismo, como vida sem pudor, sem respeito humano, que faz em público e aos
olhos dos outros, o que somente os cães e outros animais ousam fazer, e que mesmo os homens
mais ordinários procuram esconder. Por este motivo, o bíos do cão é a indiferença; mais
propriamente com respeito à parrhesía Cínica, seria a provocação e intervenção, de modo
crítico, para mudança de conduta dos outros.
Outro episódio que reflete o exemplo máximo do princípio da parrhesía viva e
ativa dos Cínicos está exemplificado no encontro entre Alexandre o Grande e Diógenes,
o Cínico. Alexandre fez questão de procurar o Cínico. Pela manhã poderoso soberano
encontra o filósofo recostado em seu abrigo. Dirigindo-se a ele Alexandre lhe pergunta:
"Pede-me o que quiseres". Diógenes responde: "Não me faças sombra. Devolve meu
sol". Para Foucault este é um claro exemplo de um dos tipos de parrhesía empregada
pelos Cínicos, o diálogo provocativo. Ainda segundo o relato sobre este encontro, em
vários momentos Alexandre exibia uma grande irritação e vontade de matar Diógenes,
que prossegue apontando três modos faltosos de um rei se comportar, que corresponde à
devoção à riqueza, devoção ao prazer físico e, por último, devoção à glória e ao poder
político. Desta forma, ao ser interpelado por Alexandre – alguém que representava
poder e autoridade, podendo tirar a sua vida, além de desprezar a ostentação da
autoridade de um rei, Diógenes não sente medo em se colocar como soberano de sua
vida, senhor de si mesmo, estabelecendo um estilo de vida, ligando bíos e logos até o
limite, colocando-se de modo mais soberano que o rei dos reis – porque a vida cínica é
totalmente desapegada e só depende de si mesma. Ao exercer esta postura de
escandalizar o poder, Diógenes expressa a ênfase na vida ética, trazendo a questão da
bios philosophos (vida filosófica), a partir de sua parrhesía provocativa e grosseira. A
sua técnica de « diálogo provocativo » apresenta uma característica marcante: abalar o
orgulho do interlocutor em se arrogar de saber como está se conduzindo, não se
assemelhando ao jogo ignorância-conhecimento, comum nos diálogos platônicos, que se
utilizam da maiêutica socrática.
Há um forte sentido de crítica às instituições políticas subjacente no exercício do
éthosparrhesiástico Cínico. Retomando o encontro entre Alexandre e Diógenes, este o
trata com indiferença e desprezo, afirmando que “alguém com a pretensão de ser rei é
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como uma criança que, após vencer um jogo, põe uma coroa na cabeça e declara que é
rei”.24 O confronto com Alexandre ilustra uma agonística entre o poder político e o
poder da verdade. A verdade como vida prática, como modo de existência, garante a
soberania a Diógenes que pode, assim, anedoticamente, se proclamar o verdadeiro rei
sobre a terra. Observa-se a característica deste embate agonístico da parrhesía como um
enfrentamento entre o ato-poder do dizer a verdade livre do parrhesiástes com a figura
do poder político que representa o exercício de governamento que se deseja absoluto.
Deste modo, a parrhesía Cínica se configura como uma forma de agonística
despudorada, tratando-se de uma prática de “vida política” que, ao exercitar a ligação
entre logos e bíos, coloca-se de forma crítica em relação aos que se identificam como
detentores do poder e da verdade. A coragem da verdade do éthos parrhesiástico surge
aqui como problema político, pois consiste em afrontar a cólera da Assembleia, do
Príncipe e de outros, o contrário do que estes pensam e fazem, como sendo correto e
verdadeiro.
Existe uma postura política, na atividade do éthos parrhesiástico, principalmente
na parrhesía Cínica, que sinaliza um modo de vida alternativo às normas e leis que
regulam a vida dos indivíduos, normas que assujeitam25 de algum modo. Nesta situação,
o Cínico coloca-se de modo resistente contra a autoridade, conduzindo-se segundo o seu
estilo de vida. Gros comentará que a ideia de uma vida trabalhada (na espessura da sua
materialidade) pela verdade é perseguida por Foucault no âmbito da famosa divisa
cínica, aqui já anteriormente comentada, parakharáxon to nómisma (Falsificação da
moeda).26 Qual o significado de cunho político, contido neste princípio?
Etimologicamente nómisma (moeda) e nómos (lei, norma) estão muito próximos. A
tarefa do éthosparrhesiástico Cínico se configura como uma contestação à ordem –
filosófica e política – visando uma transvaloração da verdade (e, por consequência, de
costumes e normas que norteavam a prática política social).
CONCLUSÃO
24
FOUCAULT,M. Fearless Sppeech, Los Angeles, Semiotext, 2001,p. 126
25
O termo derivado do francês “assujetissement”, usado por Foucault, apresenta o sentido de condição dos
indivíduos se encontrarem sujeitos a alguém ou a algo, denotando o neologismo em português
“assujeitamento”.
26
GROS, F. Le Courage de La Vérité. Situation du cours, 2009, p. 324.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
27
GROS, F. A parrhesia em Foucault ( 1982-1984). In : GROS, F. (Org.). Foucault : a coragem da
verdade,2004, p.157.
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RESUMO
O corpo e a alma constituem uma importante problemática acerca da constituição do
homem moderno. Benedictus de Spinoza (1632-1677), filósofo holandês, na Ética,
apresenta uma ontologia do paralelismo entre o corpo e a alma (a mente, que é a ideia
do corpo) onde são definidos como dois modos finitos dos atributos extensão e
pensamento de uma Substância (Deus). Por conseguinte, a concepção spinozana sobre o
corpo e a mente contraria a tradição metafísica e judaico-cristã. Por sua vez, Michel
Foucault (1926-1984), em Vigiar e Punir explicita a noção de corpo onde também
podemos inferir, o problema da díade corpo/alma como constituição do sujeito
moderno. Segundo Foucault, o corpo está articulado numa relação entre saber e poder
onde a „„alma‟‟ (a ideia de sujeito, por exemplo) se distingue completamente do
conceito dualista e metafísico. Este artigo tem o objetivo de, a partir do paralelo entre
Spinoza e Foucault, explicitar a questão corpo-alma, tendo como referências: Ética
(Parte II), de Spinoza e uma Dissertação intitulada Michel Foucault e a constituição do
corpo e da alma do Sujeito Moderno, de Fernando A. Silveira onde este analisa as obras
Vigiar e Punir e História da Sexualidade I de Foucault. Portanto, podemos concluir
que, tanto em Spinoza como em Foucault, há uma preocupação epistemológica, política
e social acerca do controle e poder sobre os corpos e às suas mentes (almas).
INTRODUÇÃO
O estudo acerca do corpo e, certa forma, também de sua essência ou sua
subjetividade, se tornou uma problemática indispensável para a filosofia que buscou
compreender os fundamentos da constituição humana. Discutir o corpo, eticamente,
para alguns pensadores, é discuti-lo a partir de sua potência e de seu saber. Tal estudo
perpassa boa parte da antiguidade grega, a saber, da metafísica platônica, acerca do
dualismo do corpo e da alma enquanto dois seres distintos e separáveis. E a este
dualismo que marcou uma relação de hierarquia entre o corpo e a alma fazendo com
que, posteriormente, a religião judaico-cristã, por exemplo, afirmasse dogmas e
preceitos que mais rivalizavam o corpo ante a alma. Na modernidade, tivemos René
Bolsista no Programa de Monitoria Acadêmica (PROMAC). Graduando-se em Filosofia Bacharelado
pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Email: carlos.wagner@aluno.uece.com.br.
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condições do discurso (Notum per se). Na parte II, intitulada A natureza e origem da
Mente temos a questão do corpo e a mente, como Spinoza define, que são dois modos
finitos do atributo Extensão e Pensamento da Substância. Neste sentido, o corpo e a
mente são um „„único e mesmo indivíduo [o homem]‟‟ (EII P21S1) cada um dos quais
expressando, diferentemente, os Atributos da Substância. Spinoza rompe com a
metafísica platônica acerca do corpo e da alma enquanto dois seres distintos e ao
dualismo substancial de Descartes. Considerado racionalista por excelência, Spinoza
defendeu a ideia central de que „„a mente é a ideia do corpo‟‟ e, dessa forma, a partir de
uma filosofia ontológica e imanentista, o filósofo explica como o corpo e a mente
humana representa uma relação de unidade ou um „„paralelismo‟‟, termo que Leibniz
(1646-1716) também empregou em sua filosofia. Segundo Chaquet (2011, p.26): „„A
doutrina do paralelismo não restitui a ideia de uma unidade presente na concepção
espinosana, pois introduz uma forma de dualismo e de pluralidades irredutíveis. ‟‟
Segundo a pesquisadora francesa, o termo paralelismo deve ser evitado e que ao invés
de pensarmos em paralelismo de corpo e de mente, o certo seria pensarmos em
Igualdade.
É importante ressaltar que a filosofia de Spinoza é imanentista, pois difere de
outros pensadores ao negar o Deus transcendente e afirma a Imanência deste
(Substância única), ou seja, como explica na parte I de sua Ética2que Deus é causa
imanente e não transitiva das coisas (EI P18). Spinoza define, na Parte I, De Deus, as
propriedades gerais sobre Deus enquanto uma substância absolutamente infinita, causa
de si e natureza naturante3 da realidade. Ou seja, Deus não é mais um criador ou um ser
pessoal com atributos antropomórficos e nem mesmo transcendente (como na religião
judaico-cristã), mas produtor e imanente ao todo, pois fora deste, não há nada. Ele é um
ente cuja existência é necessária, pois não depende de outra coisa para existir. Neste
sentido, Deus não tem finalismos, nem nos ama e nem nos odeia. Spinoza a partir da
definição de Deus demonstra sua ontologia; não uma hierarquia de Deus com as coisas
1
A tradução da Ética de Spinoza utilizada foi a edição bilíngue Latim-Português de Tomaz Tadeu,
Editora Autêntica, 2010. Utilizamos as seguintes abreviaturas: Ética e suas partes I, II e III(EI, EII e EIII),
Axiomas (Ax.), Definição (Def.), Proposição (P), Demonstração (D) e Escólio (S).
2
SPINOZA, Ética, 2010.
3
Natura Naturata (Natureza naturada) e Natura Naturans (Natureza Naturante) são expressões do século
XII de traduções latinas de textos aristotélicos que designam a coisa criada e a coisa criadora.
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singulares, pois adiante na Ética, temos as noções de Atributos e Modos que constituem
uma relação de partes na Substância.
Os Atributos são expressões substanciais infinitas e aquilo que o intelecto
percebe como essência da Substância (EI Def.4). Os homens, neste sentido, fazem parte
dos modos da Substância, ou seja, as afecções desta e aquilo que existe em outra coisa
(EI Def.5) e enquanto modos finitos dos infinitos atributos de Deus conhecem apenas
dois deles: atributos Pensamento e Extensão. Segundo o filósofo racionalista, o homem
tem como essência atuante um esforço. Como trata especificamente na Parte III da
Ética, sobre a origem e a natureza dos Afetos, Spinoza afirma que todos os seres
possuem um esforço no qual perserveram em suas existências. Este esforço, latinizado
por conatus, é uma potência (conatus) do homem para perseverar no seu ser ante
algumas paixões ou ações que Spinoza define como Afetos. Ora estas paixões podem
diminuir ou aumentar a potência do indivíduo a partir de certos Encontros (occursus)
No que se refere aos atributos da extensão e do pensamento, é importante ressaltar que
tanto o Corpo como a Mente têm um esforço (conatus). O corpo como atributo da
extensão tem o esforço para existir, portanto, possui uma potência de agir. A mente, por
sua vez, atributo do pensamento, tem o esforço ou a potência para pensar. Desta forma,
Spinoza define o corpo e a mente como atributos que tem suas respectivas potências de
ser.
Segundo Marilena Chauí a respeito de corpo e mente em Spinoza diz: „„[...] a
união corpo e alma [mente] e a comunicação entre eles decorrem direta e indiretamente
do fato de serem expressões finitas determinadas de uma mesma e única substância,
cujos atributos se exprimem diferenciadamente numa atividade comum a ambos‟‟.4
Neste sentido, temos o corpo e a mente como efeitos simultâneos da atividade de dois
atributos da Substância. Não há, entretanto uma relação de hierarquia entre o Corpo e a
Mente, pois estão sob as mesmas leis e mesmos princípios, embora expressos
diferentemente. Segundo Spinoza, na Parte I da Ética, nem o corpo determina o
pensamento, nem este determina aquele. Voltando para a afirmação de que „„a mente é a
ideia do corpo‟‟. Recusando a ideia de faculdades da alma em Descartes, Spinoza diz
que a Mente é uma força pensante ou o próprio atributo pensamento que constitui a
essência humana e a ideia do nosso corpo. Afinal, como Spinoza explica o Corpo e a
4
CHAUI, Espinosa: Uma filosofia da Liberdade, 1995
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Mente na Ética? Deus ou a Substância, como dito acima, é a Natureza cuja expressão é
imanente de uma atividade infinita:
5
SPINOZA, Ética, 2010, p. 83
6
CHAUI, Espinosa: Uma filosofia da Liberdade, 1995, p.54
84
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(Ibid, p.81). Podemos dizer que a Mente pertence a este atributo de Deus e ela faz parte
enquanto ideia, das afecções de seu corpo e das ideias das afecções deste e segundo
EIIP23: „„A mente não conhece a si mesma senão enquanto percebe as ideias das
afecções do corpo.‟‟(SPINOZA, 2010, p. 117). Logo, podemos dizer que o corpo é o
objeto atual, certa forma, para Mente que é ideia. Isto é confirmado por Spinoza
segundo o que menciona na EII P13: „„O objeto da ideia que constitui a mente é o
corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra
coisa.‟‟(SPINOZA, 2010, p. 97). Portanto, a mente está unida ao corpo por que ela é
atividade de pensá-lo (objeto pensado). Desta forma, percebemos a relação paralela
entre a mente e o corpo como uma ideia e seu objeto.
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importante notar em Foucault que „„[...] sua filosofia não se configura como metafísica.
Muito é pelo contrário, é „intrafísica‟. Seu estudo não é supra-estrutural, mas
intercorporal. ‟‟ (SILVEIRA, 2001, p.3). O filósofo rompe com a concepção de alma no
sentido metafísico ou divino e como entidade abstrata e parte da natureza a-histórica do
homem. Segundo Silveira, a alma é o elemento produzido no exercício de poder/saber
sobre o corpo. Neste sentido, a alma não está dissociada do corpo como um dualismo,
pois a alma é criada diretamente sobre o corpo, em função dos interesses políticos sobre
ele concentrados. Desmistificando o elemento transcendental, vemos que a „„alma
moderna‟‟ é um „„depositário‟‟ de complexas articulações discursivas que produz vários
saberes sejam políticos, religiosos, científicos, artísticos, culturais entre outros. Ou seja,
esta noção de alma expressa a ideia de subjetividade do corpo, por exemplo. Por
conseguinte, estas dimensões corpóreo-anímicas apresentam-se como processo sócio-
histórico do poder e do saber na modernidade:
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corpos passa a ser objeto central na ciência. Segundo Silveira, Foucault analisa o corpo
nas seguintes fases históricas:
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espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue.‟‟
(FOUCAULT, 1975, p.15). Por outro lado, surge uma nova forma punitiva sem
sofrimento direto sobre o corpo onde „„cria-se uma ampla rede privações, obrigações e
interdições que determinarão a apropriação do corpo face às articulações mais
complexas de poder, tendo como norteamento o valor humanista do homem. ‟‟
(SILVEIRA, 2001, p.59). Na terceira parte de Vigiar e Punir, temos a análise do corpo
pela Disciplina. Segundo Foucault, a partir das articulações entre poder-saber sobre os
corpos-almas dos seres humanos, houve no século XVIII, a descoberta mais
generalizada de que o corpo é „„objeto e alvo de poder‟‟onde há o processo que
„„manipula, modela, treina, obedece, responde, torna hábil, cujas forças se multiplicam.
‟‟ (FOUCAULT, 1975, p.125).
Surge, então, a noção de docilidade corpórea a partir de um processo de
submissão disciplinar sobre o corpo. Militares e técnicos da disciplina, por exemplo,
trabalhavam com o processo de coerção individual e coletiva dos corpos como controle
minucioso. A partir dos séculos XVII e XVIII ampliam-se as técnicas disciplinares
como „„fórmulas gerais de dominação‟‟ (FOUCAULT, 1975, p.126). Moldavam-se o
corpo das seguintes formas:
1) Utilidade: Adequação do Corpo segundo as exigências da sociedade que valoriza as
forças produtivas do trabalho.
2) Docilidade: Domesticar os instintos e as condutas dos indivíduos a partir de
mecanismos educativos que direcionem para a sociedade vigente.
3) Repartição: Ramificar o corpo em diversos interesses do campo científico
4) Submissão: Adequar o corpo às finalidade históricas construídas pelas forças do
poder
Segundo Foucault, a disciplina é o „„processo técnico unitário pelo qual a
força do corpo é, com o mínimo ônus, reduzida como força „política‟ e maximizada
como força útil. ‟‟(FOUCAULT, 1975, p.194). A disciplina teve como principais
objetivos adestrar os corpos, obter oficiais competentes, formar militares obedientes e
evitar o homossexualismo. Os exercícios, por exemplo, são tomados como objetos de
controle uma vez que a partir de repetições, os corpos são condicionados e limitados. Há
„„ a arte de dispor em fila, e a técnica para a transformação de arranjos. Ela [disciplina]
individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os
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refere às penalidades e punições, há agora uma „„mudança de objeto‟‟, pois „„não é mais
o corpo, é a alma‟‟. (FOUCAULT, 1975, p.20). Isto também levando em conta o
coração, o intelecto e a vontade do indivíduo. Segundo Silveira (2001, p.137): „„[...]
ocorreu um processo histórico intenso de apropriação e deslocamento do conceito de
alma do contexto teológico e metafísico para o contexto da vida, pois a alma seria a
„„sede de hábitos‟‟. Segundo Silveira (2001), Foucault caracteriza a „„alma moderna‟‟
da seguinte forma: 1) Não é uma ilusão ou ideologia, ela existe e tem uma realidade, 2)
Sua produção se efetua na superfície e no interior do corpo, 3) Diferente da teologia
cristã, ela não nasce pecadora e merecedora de castigos, mas surge antes de
procedimentos de punição, castigos e coações e por fim, 4) Ela é incorpórea, mas não é
uma substância; está ligada a subjetividade, a consciência e a realidade histórico-
discursiva. Portanto, segundo Foucault, o corpo é a „„superfície de inscrição dos
acontecimentos‟‟, elemento de sedimentação histórica. Segundo Silveira, a „„alma
histórica‟‟ é o „„depositório histórico de verdades‟‟ enquanto o corpo um „„depositório
de marcas e sinais‟‟.
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
O presente trabalho tem como proposta analisar a partir de alguns aspectos da Epistémê
clássica indicados por Foucault na obra As palavras e as coisas, a teoria da causalidade
formulada pelo filósofo empirista David Hume. Neste sentido será analisado como
Hume desenvolve seu pensamento segundo os elementos da arqueologia Foucaultiana.
Deste modo partiremos da premissa arqueológica Foucaultiana, tendo como princípios
norteadores a gênese, a taxinomia e a Máthêsis, três elementos constitutivos da era
clássica, que serão considerados para a análise da teoria da causalidade proposta por
Hume, possibilitando assim, uma nova interpretação do pensamento humeano.
INTRODUÇÃO
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As ciências humanas não são uma análise do que o homem é por natureza;
são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua
positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo saber
(ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e
suas leis, e de que modo ele pode falar. (FOUCAULT, 2007.p.488)
Desta forma, Foucault caracteriza o que ele denomina de Epistémê clássica situando-a
em torno dos séculos XVII e XVIII, distinguindo-a da Epistémê renascentista e
moderna. No presente trabalho, partiremos dessa categorização do pensamento clássico
para analisar a epistemologia de Hume, tomando como foco a noção de causalidade.
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floresce, rompendo com a escolástica, é neste sentido que surge Descartes como marco
da era moderna. Em contrapartida, Foucault compreende que a modernidade não surge
no século XVII com Descartes, para ele a era clássica situa-se entre os séculos XVII e
XVIII, enquanto a modernidade só surgiria no século XIX. Mas como Foucault
estabelece esses corte epistemológico? É preciso ressaltar que o projeto pensado por
Foucault se concentra em uma retomada historiográfica, isto é, os acontecimentos não
mais serão pensados sob uma perspectiva continuísta, ao contrário, o projeto de
Foucault concentra-se em uma arqueologia dos fatos epistemológicos de cada época,
vejamos, portanto, em que consiste tal projeto.
1. ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA
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A arqueologia em Foucault está além de propostas metodológicas, pois ele parte de uma
análise do discurso da Epistémê, isto é, a verdadeproduzida em cada época, não se trata
somente de periodização histórica, mas de entender os discursos e os mecanismos de
poder que regem determinada época. Trata-se do que poderíamos chamar de uma nova
interpretação para a Epistémê, pois se retomarmos o termo Epistémê na história da
filosofia, percebermos que ele está associado à ciência, isto é, a uma espécie de
conhecimento muito especial, ao qual acarretaria uma série de procedimentos e critérios
rigorosos para a produção do conhecimento. Desta forma, a Epistémê no sentido
clássico da filosofia estaria interligada a uma legitimidade do saber universal.
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2. GÊNESE
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Assim, enquanto a analítica da imaginação não possui uma impressão que lhe
corresponda, ela se encontra em desordem. É a analítica da natureza que a partir da
duplicação da representação que restitui a ordem, a identidade e as diferenças das
coisas. A imaginação seria assim uma percepção fraca e vaga, pois no plano empírico
não possui uma impressão que a represente. A era clássica representa o estudo da
natureza e da natureza do homem, como representação, já quea natureza permite se
representar como um ajuste na imaginação e na semelhança que faz surgir à ordem das
coisas. O que há agora, na era clássica, é a ciência da ordem, a gênese como aspecto
elementar desta época.
Ao propor essa análise Hume questiona o principio da gênese e ainda o reforça como
sendo uma máxima corriqueira, que por ser muito usual não foi questionado a respeito
de sua própria formulação. Podemos ainda perceber neste pequeno fragmento, que a
noção de origem assim como está na Epistémê clássica, surge na análise da causalidade
como forma de questionar a origem do conhecimento.
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Neste sentido a era clássica seria constituída por uma relação com a linearidade
e a causalidade, produzindo assim uma retomada da gênese, elemento presente tanto na
era clássica como na epistemologia humeana. Além da gênese, a era clássica possui
outros dois elementos que agregados à gênese fundamentam a era clássica, são eles: a
Máthêsis e a taxinomia. Vejamos a seguir como é caracterizado cada um desses
elementos.
3. MÁTHÊSIS E TAXINOMIA
Máthêsis e taxinomia estão interligadas, por este motivo trataremos desses aspectos
conjuntamente. A Máthêsis é entendida como a ciência da ordem e da medida, se na era
pré-clássica tínhamos a semelhança como fonte de conhecimento, na era clássica ela só
estará presente enquanto associada à ordem e a representação das coisas.
Nesse sentido, a análise vai adquirir bem depressa valor de método universal;
e o projeto leibniziano de estabelecer uma matemática das ordens qualitativas
se acha no coração mesmo do pensamento clássico; é em torno dele que
gravita todo esse pensamento. (FOUCAULT, 2007, p.78).
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uma causa para tudo que existe, esse principio é importante, pois é justamente essa
necessidade de uma busca causal que Hume trata em sua teoria epistemológica da
causalidade, ao analisar as associações da mente humana com relação à questão causa e
efeito. O segundo princípio é o de continuidade, que afirma haver uma continuidade na
natureza, ou seja, ela não é composta em saltos, há uma linearidade que a constitui
como contínua. E o terceiro princípio que seria o dos indiscerníveis, isto é, duas coisas
não podem ser idênticas, senão formariam um só ser. É possível observar como o último
princípio caracteriza a ruptura com a era pré-clássica, pois não há uma busca pelo
semelhante, ao contrário buscar a identidade dos objetos na semelhança caracteriza-se
como um conhecimento incerto. Desta forma, Leibniz propõe uma superação do Cogito
cartesiano e uma formulação fundamentada nas ordens qualitativas.
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todas as suas propriedades. Por essa razão não se apresenta preocupada com
o estudo de objetos determinados, pois que trata exclusivamente da “ordem e
da medida”, ainda que os tome em geral. (SARDEIRO. 2008,p.27)
Percebemos dessa forma, uma nova concepção de semelhança, que perde seu
espaço na centralidade do conhecimento como atribuído na era pré-clássica e passa ser
pensado no plano da ordem, como pensara Hume ao formular a noção de causalidade
unindo assim, ordem, imaginação e semelhança. Se pensarmos uma forma de atribuir
uma relação causal, será somente por intermédio da imaginação que conseguiremos tal
relação. É preciso imaginar para alcançar um estágio de fatos sucessivos a outros. De
alguma forma a similitude tem uma importância, mas não como papel central do
conhecimento, mas antes como intermédio para que a representação seja reconhecida.
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Vê-se que estas três noções – Máthêsis, taxinomia, gênese – designam menos
domínios separados que uma rede sólida de interdependências que define a
configuração geral do saber na época clássica. A taxinomia não se opõe à
Máthêsis: aloja-se nela e dela se distingue; pois ela também é uma ciência da
ordem – uma Máthêsisqualitativa. (Foucault, 2007, p.99).
Essas três noções agem separadas, cada uma segundo sua configuração para
realizar seu propósito enunciado, e ao mesmo tempo se articulam conjuntamente para
compor a ciência da ordem, caracterizando-se como os elementos constitutivos da
Epistémê clássica. A compreensão dessas três noções se articula a noção de causalidade
presente do pensamento de David Hume, uma vez que, este busca mostrar como o
homem está em busca da origem e da ordenação dos acontecimentos.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo como pressuposto o que foi dito, podemos perceber como a arqueologia
Foucaultiana age dentro dos liames da filosofia para propor uma nova interpretação do
termo Epistémê, diferente da tradição filosófica. Foucault deixa de compreende a
Epistémê como uma simples ciência, e passa a compreender como discursos,
mecanismos de produção da verdade de cada época. Neste sentido, a Epistémê da era
clássica estaria fundamentada em torno da gênese, da Máthêsis e da taxinomia, todos
esses aspectos destacam a ordem presente na ciência e no conhecimento. Esse triedro
está em consonância com a teoria da causalidade apresentada por Hume em sua obra
Tratado da Natureza Humana, onde ele compreende a causalidade distante de uma
conexão causal, mas admite ser a causalidade um busca incessante do conhecimento
humano.
5. REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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RESUMO
Para Foucault, o poder não existe, o que existe são as relações de poder. No entender de
Foucault, o poder é uma realidade dinâmica que ajuda o ser humano a manifestar sua
liberdade com responsabilidade. A idéia tradicional de um poder estático, que habita em
um lugar determinado, de um poder piramidal, exercido de cima para baixo, em
Foucault é transformada. Ele acredita no poder como um instrumento de dialogo entre
os indivíduos de uma sociedade. A noção de poder onisciente, onipotente e onipresente
não tem sentido na nova versão, pois tal visão somente servia para alimentar uma
concepção negativa do poder.
INTRODUÇÃO
A temática do poder se encontra por toda parte da obra de Foucault, mesmo assim
ele declarou que o tema não era seu sujeito fundamental. Ao ser considerado um teórico
do poder, recusou dizendo que somente fez “uma análise diferencial dos diferentes
níveis de poder dentro da sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 1680).
Por esta afirmação já podemos notar que a ideia de poder em Foucault é bem
diferente da tradicional, segundo a qual o poder se apresentava como uma realidade
única, estática e soberana.
De uma maneira geral, pode-se dizer que, até Foucault, a ideia de poder teve um
papel mais negativo que positivo. A imagem que o poder oprime as pessoas, que os
indivíduos o temem, que têm medo de tê-lo, que ele suprime a liberdade, manipula a
vida, etc. era presente nas mentalidades. Ora, segundo Foucault, tudo não passava de
uma estratégia com o objetivo de esconder a verdadeira realidade do poder. Assim, à
maioria da população não teria consciência do que é o poder e uma certa classe poderia,
Graduanda do curso de Filosofia, UECE
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Para Foucault, o conceito de poder hoje repousa sobre uma falsa idéia. O
discurso sobre o poder como uma coisa única, alojado em um núcleo central de onde ele
tudo controla, não conduz as pessoas a um verdadeiro conhecimento sobre este
instrumento de nossas relações. Acreditar em um ponto central de onde o poder
controlaria tudo é transformar uma característica interna dos indivíduos em um ser com
existência própria. Acreditar em uma morada do poder é acreditar que ele é algo que se
adquire por meio de investidura, isto é, o poder não seria uma capacidade natural dos
indivíduos, mas é algo que recebemos em um determinado momento.
Segundo Foucault, a idéia de um poder estático contradiz a própria expressão ou
experiência do poder. Segundo ele, a história conservou o poder dentro de uma redoma
de vidro, assim foi possível esconder a verdade sobre ele e, ao mesmo tempo, sustentar
e criar certo número de fantasias em torno dele, levando-nos a um desconhecimento da
verdade sobre o tema. Para compreender a objetividade da afirmação de Foucault, “o
poder não existe”, é necessário considerar a inversão de valor que, segundo ele, temos
dentro dessa noção, ou seja, o real poder não deve ser visto como algo negativo, como
fonte de dominação, opressão e destruição, e, sim, como algo positivo capaz de
construir e educar.
A afirmação de que o poder não é «onisciente» nem «onipotente» é seguida de
exemplos bem medidos, para justificar que a história do poder mostrou que toda a glória
atribuída a ele não é mais que quimeras, que escondem a verdade sobre ele. Felizmente,
elas não conseguem evitar o desenvolvimento das ações concretas que revelam a
contradição dentro do poder e, em conseqüência, sua verdadeira essência. Por exemplo,
a ação de « vigiar », para Foucault, é uma clara demonstração da impotência do poder,
pois, se ele tivesse a força que imagina ter, não seria preciso uma vigilância constante
para manter assegurada sua hegemonia.
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da História”, etc. – não foram capazes de « esgotar » o exercício do poder. Mesmo não
entrando na polêmica do valor ou da importância destas análises, concordamos que,
segundo Foucault, elas talvez, tocaram um só lado do grande aicebergue. De fato,
arriscamos dizer que, conforme Foucault, a real essência do poder nunca foi analisada,
pois os indivíduos trabalharam mais a aparência do poder que a sua profunda realidade.
Segundo Foucault, nesta época tudo que se sabe sobre a ação do poder é quem o
explora, manipula, oprime, etc. Aqui Foucault não falou claramente dos indivíduos
implicados nas relações de poder, mas das relações entre os indivíduos e as instituições.
Compreendemos melhor a posição de Foucault a partir das reflexões que ele fez das
instituições em “doença mental e psicologia”, “História da loucura na idade clássica”,
“vigiar e punir” e os outros comentários sobre os temas abordados nesses livros. Ora,
Foucault acreditava que as instituições eram as grandes responsáveis pela manutenção
da falsa idéia de poder, pois poderiam, valendo-se do seu campo de influência, manter o
status quo, sobrevivendo como um monstro invencível, representantes do sujeito
absoluto, que é a falsa idéia de poder.
Foucault mostrou que nosso conhecimento sobre o poder apresenta algumas
lacunas. Para ele, é necessário esclarecer a noção de poder desde seus fundamentos.
Foucault acreditava existir um novo caminho mais eficaz para se entender e exercer o
poder.
Ora, o bom exercício do poder somente é possível quando são considerados os
fundamentos da condição existencial das partes. Pensar o poder desta maneira é colocá-
lo noutra dimensão. O poder aqui não é somente instrumento das relações humanas, mas
também uma ação pedagógica, pois, como ninguém nasce com plena consciência do
poder que tem, nas relações humanas os que têm maior consciência da verdadeira
realidade do poder devem ajudar os outros a adquiri-la. Assim, as relações humanas não
se desenvolvem no âmbito da irracionalidade, mas dentro de um processo constante de
formação.
RELAÇÕES DE PODER
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nossa liberdade é porque damos o pleno consentimento. Para sustentar sua noção de
liberdade, Foucault deveria, obrigatoriamente, ter proposto outra noção de poder, pois a
mentalidade da época era que o poder eliminava a prática da liberdade, mas ele estava
convencido do contrário, ou seja, nenhum discurso é capaz de atingir sua liberdade, pois
cada indivíduo é senhor da liberdade e, conseqüentemente, pode administrá-la como
desejar.
Foucault deixa claro que o desenvolvimento da falsa idéia de poder só foi
possível porque as pessoas não tinham consciência do potencial da sua liberdade, assim
as relações se desviaram de um curso, segundo ele, natural. Para Foucault, a falsa idéia
de poder sempre expressava um distanciamento entre as pessoas. Nas relações humanas,
o mais inteligente era a obediência e não o questionamento sobre sua situação
existencial dentro do contexto, conseqüentemente, ter em conta a real condição da
liberdade, pois a liberdade de um dos indivíduos estava ligada ao conceito de autoridade
do outro.
A partir disso, podemos notar que as relações de poder, segundo o autor, não
devem se realizar da mesma forma, do contrário não há diferença entre as duas idéias.
Devem ser pautadas pelos critérios de uma consciência madura. Elas terão que se
manifestar num clima de responsabilidade social e na dimensão de respeito entre os
indivíduos.
A consciência do potencial de nossa liberdade não exclui o grau de
responsabilidade social que cada um deve ter, pelo contrário, aumenta, pois ele teria
uma responsabilidade consigo mesmo, com os que têm um grau de consciência inferior
ao seu, com os que estão ao seu nível e com os que se encontram em nível superior.
Assim, Foucault procura mostrar que precisamos compreender a importância das
relações de poder para a sociedade e buscar aprimorá-las.
Foucault responde ao fato de ser livre com aquilo que ele acredita ser o
verdadeiro exercício da liberdade, isto é, as relações entre os indivíduos são relações de
poder, o problema é que não se desenvolveu uma consciência deste fato nas relações
humanas. As relações entre as pessoas foram desenvolvidas num estilo piramidal, no
qual, normalmente, é cerceado o direito de tomar decisões. Seguindo por tal caminho,
podemos dizer que, segundo Foucault, o princípio fundamental da liberdade é a
consciente da possibilidade de tomar decisões. Certamente podemos notar neste
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Podemos afirmar que Foucault considerou como relação de poder toda relação
que compromete o ser humano. Vendo por este ângulo, toda ação do cotidiano, mesmo
a menor e a mais banal, constitui uma relação de poder. Por exemplo: quando se orienta
alguém na rua para encontrar um endereço ou a direção de uma loja, você induz a
pessoa a tomar uma atitude, muitas das vezes, contrária a sua intenção inicial, essa
atitude constitui para Foucault uma relação de poder.
Vemos que Foucault não desconsidera o impulso que o ser humano tem de
querer conduzir um ao outro, pois, no processo que nos encontramos, isso é uma
conseqüência natural, também foi desta maneira que fomos educados. Mas, dentro das
relações de poder, pressupõe-se que as partes têm noção de duas coisas: primeiro que a
liberdade de cada um é um elemento intocável pelo outro, segundo que o poder não
deve ser utilizado para a manipulação, mas para o crescimento das pessoas. Assim,
quando Foucault fala das relações de poder, ele se refere à experiência que os
indivíduos fazem do exercício de sua liberdade, chegando mesmo a dizer que quando
não existe tal consciência não existe relação de poder. Eis a razão pela qual para
Foucault, a palavra “dirigir” assume um significado particular, pois ela significa que,
mesmo os indivíduos vivendo uma situação natural, devem ser orientados pela
consciência que implica tais relações.
Na noção antiga de poder, a idéia que prevalecia era de manipulação de um
indivíduo sobre o outro. No entanto, na concepção das relações de poder em Foucault,
tal princípio opressor deve ser eliminado. Para isso acontecer, basta os indivíduos
tomarem consciência do potencial de sua liberdade.
A segunda idéia significativa é o fato de que “as relações de poder são relações
móveis”, isto significa que devemos ter uma clara consciência da autonomia de nossa
liberdade, pois é tal consciência que impedirá a realização da tentativa de dirigir nossas
condutas. Eis aí por que as relações de poder exigem uma consciência do compromisso
social, isto é, a necessidade de todo ser humano ter consciência do potencial de sua
liberdade, para ser capaz de fazer sua escolha dentro das relações de poder. Veremos
dentro dos textos seguintes algumas características destas relações.
A primeira característica se refere à consciência nas relações de poder. Acredito
ter muito a ver com a própria experiência de vida de Foucault, ou melhor, com aquilo
que ele escreveu e fez.
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A sociedade atual vive com medo, atormentada, temerosa das possíveis ações
que possam sobrevir. Cada indivíduo, de certa forma, vive se escondendo para tentar
evitar as possíveis investidas contra sua existência. A relação de dominação é uma
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característica do sistema social. Impor sua vontade não é direito de todos, mas de um
pequeno grupo de indivíduos. Em uma sociedade caracterizada pelo temor, penso que a
reflexão de Foucault faz muito sentido. O medo que toma conta dos indivíduos é
conseqüência da aceitação de um discurso manipulador. Cada indivíduo é convidado a
se reconhecer desprovido de poder. Ora, se é por meio do poder que conseguimos
conduzir as ações das outras pessoas, se reconhecer sem poder significa não ter
nenhuma influência, logo a única coisa que resta é sofrer as influências. O discurso
manipulador não tem a intenção de fazer as pessoas reconhecerem que o poder é algo
indispensável em nossa existência, isto é, ver o lado positivo do poder. O discurso
manipulador tem a intenção de manter o status quo, pois é a única maneira que uma
determinada parcelada da sociedade tem para continuar vivendo em cima de um barril
de pólvora (o barril de pólvora é a massa oprimida) sem que este exploda, isto é, sem
que a massa opressora se revolte de fato.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Cláudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
2005;
FOUCAULT, Michel. Coleção Ditos & Escritos. Volumes I, II, III e IV. Organizador:
Manoel Barros da Mota. Editora Forense Universitária
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RESUMO
Neste trabalho buscamos refletir de forma bem introdutória as inquietações levantadas
sobre o que Foucault denominou de disciplinalização dos corpos e como Deleuze/Felix
Guattarri analisou a ideia de controle. Inferindo que eles foram influenciados pela
filosofia pós-Sartriana, envolvidos nos embates em torno de maio de 1968 e utilizadores
de algumas proposições de Nietzsche. Esses filósofos da transgressão questionaram os
pressupostos até então colocados pela filosofia de vertente marxista, vinculados ao
conceito de luta de Classe e ao papel militante do intelectual (Sartre). Esses procuraram
refletir como se constituía esta sociedade disciplinar, como dadas convenções
mutilavam os corpos, revisando-os e ordenando-os através de determinados interesses
permeados em relações e tramas de micropoderes. Por isso, estas questões são
pertinentes: Como foi forjada a legitimação desse discurso de poder-saber? Como o
controle se fez presente entre o ser, o corpo e a exterioridade da sensibilidade da
vontade? Quais as aproximações e diferenças do pensamento desses filósofos? Quais as
suas contribuições para se pensar os corpos no século XXI?
I
Neste artigo propomos colocar em diálogo a filosofia de Foucault e Deleuze.
Para isso, procedemos à análise de alguns textos que nos possibilitassem fazer uma
primeira reflexão sobre as aproximações e diferenças desses filósofos. Primeiramente,
tentamos analisar o contexto histórico em que essas filosofias se constituíram, quais as
balizas teóricas que as dava substância tanto como fundamentação e enquanto objeto de
refutação, de debate e tensões.
Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Ceará e bolsista da Fundação Cearense de
Amparo à Pesquisa (FUNCAP).
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O mundo vivia após Segunda Guerra Mundial uma tensão entre as duas
potências, a saber: Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). As pessoas comuns, desses territórios, não estavam
apenas sofrendo os dilemas econômicos derivados desse confronto sangrento dentro da
própria nação, mas certas consequências socioculturais, que se alicerçavam nos
questionamentos sobre os fundamentos sustentadores de sua sociedade, ou seja, as
colunas de sustentação da cultura europeia estavam sendo derrubadas. Portanto, a
imagem soberana e civilizada da Europa fora colocada em cheque, os princípios
fundamentais do iluminismo criticados, pois depois das guerras se percebeu com mais
nitidez que os valores defendidos pelo Iluminismo de que a humanidade conseguiria
uma emancipação do homem (Kant) a través da razão, da ciência, levou-a, contudo, ao
oposto, ou seja, a barbaria, a destruição.
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o ser humano era sujeito de suas ações; 2- a liberdade é condicionada pelo momento
histórico.
Foucault e Deleuze pensaram, diferentemente de Sartre, o sujeito. Essa outra
maneira de se pensar em meio à enfática soberania da filosofia marxista foi
possibilidade pela retomada de Nietzsche por esses intelectuais. Nesse sentido, algumas
pressupostos nietzschianos que impactaram esses pensadores e sua nova forma de ver o
mundo e filosofar sobre ele, por exemplo, para Marton (2012), foram estes: 1- o sujeito
como uma transfiguração temporária de impulsos; 2- o constante processo de
permanência do ser humano; 3- “todo infrator e criador”.
A partir disso, partiremos para pensar esse pensamento transgressor e infrator
produzido por esses filósofos, especificamente em suas concepções de Sociedade. Em
suma, que algo comum neles fora à filosofia de Nietzsche e a militância dos dois junto a
Sartre em maio de 1968 na França.
II
1
Para Vasconcellos, “a obra de Gilles Deleuze compreende um esforço de crítica a um tipo de
pensamento designado de representação e entendido como constituição de uma filosofia da diferença.
Tanto a crítica à representação de uma filosofia da diferença são duas faces de um mesmo movimento de
pensamento, a crítica e a clínica são indissociáveis em Deleuze” (2005, p.1219).
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seja, o não impacto desses dispositivos institucionalizados como nos séculos antes da
secularização desse país. Contudo, ao olharmos a singularidade do Brasil e de suas
regiões, mesmo também estando vivendo esse processo de secularização, essas
instituições são expressivas e possuem uma força na sua formação sociocultural e
influenciam boa parte dessa população.
Talvez uma das questões representantes desses dispositivos que ainda regem os
brasileiros seja a fraca discussão em torno dos discursos de gêneros e a garantia dos
diretos LGBTs. A figura da família de cunho patriarcal no modelo branco, europeu,
hetero e cristã é colocada diariamente pelos meios de comunicação conservadores desse
país. Por exemplo, recentemente parlamentares brasileiros defenderam a cura gay,
sendo tais ideias pautadas por estudos psiquiátricos atrasados e de um fundamentalismo
religioso. Podemos a partir disso estão perceber a existência da tecnologia do sexo
enquanto exercício do controle dos corpos, de guardá-lo, protegê-lo contra o perigo a
fim de manter os padrões pré-estabelecidos por essa sociedade2.
No sua obraVigiar e Punir Foucault elegeu uma parte para discutir sobre os
“Corpos dóceis”. No início de seu primeiro parágrafo analisa a diferença existente entre
a figura do soldado no século XVII e XVIII. Neste o corpo dele, em sua área física e
subjetiva, é fabricado, assenhoreado por dispositivos sociais que buscaram dar-lhes
determinadas características e silenciar aquelas consideradas impróprias para a sua
visibilidade, aquele figurava a idealização desse soldado utilizando estas imagens de
afirmação: 1- o reconhecimento de uma tradição; 2- ser possuidor de sinais naturais que
caracterizariam: vigor e coragem; 3- marcas de orgulho. O corpo nessa concepção era
colocado como representante de um brasão, era a própria personificação dele e o
instrumento de propaganda da instituição que defendia, por isso deveria transmitir a
força e valentia, sinais positivos para essa vocação (XVII) em contraponto a visão dela
como profissão (XVIII). Para ele, a época clássica descobriu o “corpo como objeto e
alvo de poder” (2009, p.70).
Portanto, o corpo era elemento dos discursos anátomo-metafísicos e tecníco-
políticos, de submissão e utilização. Esses dois registros são distintos enquanto
2
Conforme Foucault, “técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância:
porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do
poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se
tendessem a cobrir o corpo social inteiro” (2009, p.72).
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A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma
descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes
mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se
repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo
seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a
fachada de um método geral (2009, p.71).
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uma de controle (SC). Inicia esse texto procurando corroborar a sua tese, para isso,
mencionou a crise dessas instituições tradicionais com a secularização dos países
europeus, das disciplinas que construíam os dispositivos de disciplinamento e afirmação
do Sistema de Aliança e Sexualidade, o arruinar desse modelo de família e sociedade
pós-1945. Para Deleuze, esse tombamento era motivado pelas “sociedades de controle
que estão substituindo as sociedades disciplinares” e o ““controle” é o nome que
Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso
futuro próximo” (1992, p.02).
Para ele, a sociedade disciplina (SD) molda, a de controle modula. O que seria
esse modular? Ele não seria também um moldar como diria Foucault? Para Deleuze, ele
seria mais do que uma simples fabricação e cunhagem de uma obra, pois na disciplina
haveria um modelo perfeito, padrão para a modelagem, essa seria sutil e podaria a obra
através de uma intimidade de assujeitamento de si para outro, o aparar essas flechas
construiriam, ao mesmo tempo na vida comum, justificativas ligadas as instituições que
teriam a posição de não serem questionadas. Dessa forma, a SD teria, para esse filósofo,
dois polos: 1- a assinatura enquanto indicação do individuo; 2- o número de matrícula
que nortearia a sua posição na massa do grupo ou sociedade que participa. Já na SC não
se teria esses dois polos, mas cifras, “a cifra é uma senha”. A SD, dessa forma, ordena-
se pela palavra de ordem, a sua multidão é viva de sujeitos, de individuação que deixam
sua marca subjetiva através da assinatura que demonstra sua singularidade na massa, do
seu número de matrícula que o liga ao grande bolo do mundo, em contraponto, a SC ela
constrói uma massa amorfa, sem subjetividade, sem particularidade, mas pertencente de
não fixidez a uma sociedade ao possuir uma senha numérica que não o representa
enquanto sujeito, mas como fragmento de fragmentos, “em um corpo sem órgão” e em
um multipleidade3 em constante devir, ou seja, “os indivíduos tornaram-se dividuais,
3
Consoante Deleuze e Gattari, esse princípio está sendo colocado “somente quando o múltiplo é
efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com uno
como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As
multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexistência, pois,
de unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que
fosse para abortar no objeto e para “voltar” no sujeito. Uma multiplicidade não têm nem sujeito nem
objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de
natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade)” (2000, p.12).
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ESQUEMA I
Capitalismo de
III
Neste artigo procuramos realizar uma exposição inicial sobre como Foucault e
Deleuze pensaram o corpo. Percebemos a princípios algumas influencias filosóficos que
permearam suas produções, como eles em seu próprio tempo participaram juntos de
lutas reivindicatórias e sociais, por exemplo, maio de 1968. Destacamos, em suma, que
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seus diálogos com uma filosofia da transgressão e a sua utilização enquanto meio de
infração dos modelos propagados e defendidos pela filosofia de então. Nietzsche, então
fora apropriado por esses pensadores de diversas formas, mas os dois utilizaram como
base semelhante a sua ideia de infração como criação.
Deleuze vai além de Foucault, este propõe que não há apenas o diferente e que
se deve ter o respeito por tal, pois tais estruturas são construções socioculturais,
inaturais, mas convenções de uma sociedade castradores dos prazeres, aquele que
podemos ser esse diferente, ser outro, ser vários ao mesmo tempo, enfatiza a existência
de várias vias que se misturam as fronteiras, que constrói outras, que as desconstrói, ou
seja, a possibilidade de ser o indivíduo no múltiplo/coletivo, sendo também o recíproco
verdadeiro.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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participação de cada vez mais pessoas envolvidas e conectadas num mundo no qual a
tecnologia alterou a forma de se relacionar.
Tal multiplicidade de relações espaciais proporcionada por um mundo
tecnológico implica numa abertura que foge às hierarquias ou à hegemonia e torna as
relações espaciais mais complexas do que eram até então, visto que elas são simultâneas
e têm diferentes camadas de significação.
Mas o que me interessa são, entre todos esses posicionamentos, alguns dentre
eles que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros
posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou
invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas,
refletidas ou pensadas. Esses espaços, que por assim dizer estão ligados a
todos os outros, contradizendo, no entanto, todos os outros posicionamentos,
são de dois grandes tipos. (Foucault, 2009, p.414)
Esses dois tipos de espaço são a utopia e a heterotopia. A primeira diz respeito
aos “posicionamentos sem lugar real”, aquilo que ainda está no âmbito do imaginário e
não se concretizou – seja um modelo de sociedade aprimorada ou o oposto da sociedade
– pode ser uma “analogia direta ou inversa com o espaço real”, mas, em sua essência,
são espaços irreais. Já a segunda trata de “lugares reais, efetivos, delineados na própria
instituição da sociedade”, é uma “espécie de contraposicionamento” ou uma “utopia
efetivamente realizada”. As heterotopias, portanto, são lugares fora dos lugares, apesar
de serem “localizáveis”.
O espelho, por exemplo, é ao mesmo tempo uma utopia e uma heterotopia, pois
consegue unir duas realidades distintas num mesmo espaço. É essa experiência mista,
intermediária. Há o espelho enquanto objeto ocupando um lugar no espaço e o espelho
enquanto refletor de algo que não está presente ali. O questionamento que fica é: o que
mais seria o espelho? O que mais representaria esse estágio intermediário entre a utopia
e a heterotopia? A televisão? O computador? A primeira, para além de sua fisicalidade
enquanto objeto, apresenta uma realidade outra que não está presente naquele lugar. O
computador, no entanto, além de preservar este mesmo aspecto de nos mostrar uma
realidade paralela, de nos transportar para outros universos virtuais, abstratos, conta
conosco como agentes, participando mais ativamente das escolhas a serem feitas. Tira-
se a passividade inerte da televisão e atribui-se mais envolvimento a quem está do outro
lado da tela. Várias plataformas dão acesso à exposição de cada indivíduo da forma que
este escolher, o que torna a realidade que o computador apresenta não mais algo
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utópico, sem lugar, mas algo do qual nós participamos e moldamos. O que isso interfere
no funcionamento da sociedade é que há agora uma instância de poder deslocada do
espaço tradicional das instituições e realocada ao alcance dos dedos de cada um.
A heterotopia enquanto este “lugar fora do lugar” se mostra também como um
espaço da alteridade. Um espaço que leva o indivíduo fora do que lhe é familiar,
confrontando-o com outra realidade. Exemplos de lugares heterotópicos encontrados na
sociedade atual são as prisões, os hospícios, os asilos, o que Foucault chama de
heterotopias de desvio, ao contrário das heterotopias de crise que havia anteriormente.
Estas últimas eram reservadas aos membros da sociedade que se encontravam em
situação de crise em relação aos demais, como os adolescentes, as mulheres em seu
período menstrual e os idosos. Já as heterotopias de desvio são os lugares que abrigam
os indivíduos que destoam da norma vigente na sociedade ou que apresentam qualquer
comportamento fora do padrão. A velhice, neste caso, é considerada tanto uma crise
quanto um desvio, numa sociedade que hiper-valoriza a juventude e a produtividade e
que condena ao ostracismo quem foge a essa regra.
Neste mesmo sentido é que Foucault também considera o cemitério como uma
heterotopia. Até o século XVIII, os cemitérios eram localizados no centro das cidades,
ao lado das igrejas. A partir do século XIX, no entanto, eles foram afastados do centro
ou colocados no limite das cidades, distanciando-se cada vez mais da realidade
cotidiana e criando um mundo dentro deles mesmos: uma cidade fora da cidade. A
individuação da morte, ou seja, cada um com seu próprio caixão, com seu próprio
espaço num cemitério, começou a transformar a morte em uma espécie de doença
contagiosa, que deve ser mantida afastada do convívio social padrão. “São os mortos,
supõe-se, que trazem as doenças aos vivos, e é a presença e a proximidade dos mortos
ao lado das casas, ao lado das igrejas, quase no meio da rua, é essa proximidade que
propaga a própria morte” (Foucault, 2009, p.).
A heterotopia também se relaciona, em seus princípios, com o estruturalismo, no
sentido do conjunto de relações que existe em uma realidade. O lugar heterotópico é
esse lugar cuja rede de relações acaba gerando uma justaposição de vários espaços, de
vários posicionamentos, que nem sempre concordam entre si. Na heterotopia pode haver
múltiplos espaços, inclusive se forem paradoxais; é, portanto, este lugar fora da norma,
fora do estabelecido, do status quo. Esse princípio tem uma das particulares que culmina
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fora. Isso se relaciona com o espaço das heterotopias, visto que estas são espaços fora
da sociedade, fora do regimento normal e interno de uma comunidade, elas fogem à
regra e criam, paralelamente, seu próprio universo situado em outro lugar. Os textos
poéticos e literários mais radicais também se projetam para o fora, não se interiorizam,
não se psicologizam, valendo-se da literatura pela literatura, sem buscar motivos
individuais ou internos para explicá-la.
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Esse termo, nas palavras de Louro (2004), com toda a sua carga de estranheza e
de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais para
caracterizar uma perspectiva de oposição e contestação. Tendo como alvo tanto a
heteronomatividade quanto o movimento homossexual ou LGBT hegemônico. Nesse
sentido, o queer representa a diferença que não que ser assimilada. Constitui-se como
um empreendimento intelectual pós-identitário uma vez que, em suas formulações o
foco sai da identidade para a cultura (LOURO 2004).
*
Cursa psicologia na UFC e é bolsista do PET. danmont@ymail.com
**
Doutor em educação pela UFC e professor do mestrado em psicologia da UFC.
pablo_severiano@yahoo.com
***
Cursa psicologia na UFC e é bolsista de iniciação científica pela FUNCAP. helooliveira@gmail.com
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Ora, o que Foucault quer dizer com isso é que, ao contrário do que supunha a
hipótese repressiva, a sexualidade não é proibida, mas sim produzida por meio de
discursos. O que chamamos de sexualidade, quando pensamos com Foucault, pode ser
entendido como um dispositivo1 histórico, capaz de produzir verdades sobre os sujeitos.
1
Foucault entende o dispositivo como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (Foucault, 2014,
p. 244).
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Não se deve concebê-la como uma espécie dado da natureza que o poder
tenta pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco
a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo
histórico (FOUCAULT, 2005, p. 100).
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Os gêneros inteligíveis, diz Butler, “são aqueles que, em certo sentido, instituem e matêm relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (2014, p. 38).
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Sobre o caráter produtivo do gênero Butler diz que “O poder, ao invés da lei, abrange tanto as funções
ou relações diferenciais jurídicas (proibitivas e reguladoras) como as produtivas (initencionalmente
generativas) (2014, p. 54).
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Butler sugere que, embora postule a ideia da identidade como ficção regulatória
Foucault acaba por abraçar a compreensão de um corpo como elemento fundacional.
Como alternativa à compreensão foucaultiana, diz Sapargo, ela “procura uma maneira
de ler o corpo como uma “prática significante” (2006, p. 51).
4
Sobre o gênero performativo o que Butler mais se aproxima de propor como definição é isto: “Nesse
sentido, o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuante, pois vimos
que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da
coerência do gênero. Consequentemente, o gênero mostra ser performativo no interior do discurso
herdado da metafísica da substância – isto é, constituinte da identidade que supostamente é. Nesse
sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra
(BUTLER, 2014, p. 48).
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Dessa maneira, Judith Butler – tanto quanto os demais queer – faz uma
apropriação singular e seletiva do pensamento de Michel Foucault. Tal forma de
apreender as ideias do filósofo estão presentes, notadamente, na teorização de Beatriz
Preciado (atualmente uma das mais influentes pensadoras queer) que trabalha com foco
na noção foucaultiana de biopoder e biopolítica.
Para Foucault a partir do século XVIII, nós no ocidente, conhecemos profundas
transformações nos mecanismos de poder. Do poder soberano, aquele que mata ou deixa
viver, passamos a experimentar “um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função
de seus reclamos” (FOUCAULT, 2012, p. 128). É a vida humana que entra nos cálculos
do poder e na ordem do saber:
O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num
mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,
saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em
que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem
dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse
sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da
morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de
intervenção do poder (FOUCAULT, 2012, p. 134).
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dos „anormais‟” que Preciado nos apresenta de forma sintética sua agenda teórico-
política. Ela inicia o texto com a proposição de sua sexopolítica:
5
Sobre a noção de multidão queer Preciado nos diz que “A sexopolítica torna-se não somente um lugar
de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos
feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas e pós-coloniais... As minorias
sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer” (2011, p. 14).
6
Ver PRECIADO, 2011.
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Michel Foucault, sem dúvida, foi um dos pensadores contemporâneos que mais
atingiu, mediante suas polêmicas reflexões, a nossa atualidade de maneira profunda.
Suas ideias permanecem atuais e poderosas, capazes, por um lado, de problematizar
assuntos ainda urgentes na sociedade e, de outro, desconcertar aqueles que se aventuram
pelos caminhos abertos por ele e que buscam debater suas principais contribuições em
diversos campos do conhecimento. Podemos perceber hoje, de maneira mais clara – não
apenas pela leitura de suas obras, mas também por meio de uma análise mais detida de
suas entrevistas e artigos –, que a pretensão de Foucault era deixar em aberto, não
apenas para suas pesquisas e investigações futuras, mas para quem pretendesse seguir
seus passos, espaços de problematização e de liberdade onde fosse possível tornar
viáveis novos modos de refletir e novas possibilidades de agir e resistir.
O pensador francês deixava claros sinais – sobretudo a partir dos anos 1970,
época em que suas reflexões acerca do tema do poder ganham mais força – de que
desejava que seus escritos fossem apropriados como uma espécie de convite aos mais
diversos grupos, para que eles pudessem estabelecer novas experiências históricas e
que, por meio de tais experiências, conseguissem ir além das relações de poder/saber e
da subjetivação hegemônica das sociedades capitalistas contemporâneas. É justamente
nesse ponto que podemos enxergar certa coerência entre a trajetória intelectual
(trabalhos e pesquisas) e o papel de intervenção na cena política e social de Michel
Foucault, assumido especialmente a partir da década de 19701.
Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
1
Neste sentido os textos dispersos de Michel Foucault, reunidos na coletânea Dits et écrits,têm
contribuído de maneira significativa para compreendermos o contexto de suas intervenções políticas e a
articulação destas intervenções com suas ideias. Até o presente momento foram publicados dez volumes
da edição brasileira, organizada por Manoel Barros da Motta. É importante ressaltarmos que não é nosso
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O GIP foi não um tipo de organização, mas uma mobilização, inédita à época,
que girava em torno dos embates travados contra o enrijecimento das políticas de
segurança colocadas em prática pelo governo francês no início dos anos 1970. Na
tentativa de responder às “agitações” de maio de 1968, o governo francês buscava
reestabelecer a autoridade do Estado através de várias medidas de repressão como, por
exemplo, a dissolução do grupo Gauche Prolétarienne (grupo maoísta da esquerda
proletária) e, também, a criação de um projeto de lei que visava responsabilizar
objetivo, ao analisarmos os textos de Michel Foucault (especialmente os escritos dispersos) e alguns dos
aspectos das lutas sociais e políticas que se desenvolviam na época em que o autor produzia seus escritos,
definir essa relação entre teoria e prática em tal autor como algo perfeito e que, por isso, deva ser a chave
para interpretação de sua vasta e heterogênea obra simplesmente na possível unidade de sua trajetória
biográfica. O importante, pensamos, é acompanhar em alguns momentos precisos como Foucault alternou
experiências de pensamento com experiências de militância.
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O GIP foi fundado no início de 1971 por Michel Foucault, Jean Marie
Domenach e Pierre Vidal-Naquet. Apesar de se tratar de um grupo que se organizava
em torno do contexto de forte mobilização citado acima (mobilização política em torno
dos militantes de esquerda presos), os objetivos almejados por tal grupo iam além dos
modos tradicionais de embate político dos grupos de esquerda inspirados pelo
marxismo. O que os intelectuais do GIP pretendiam com suas intervenções era, na
verdade, operar um duplo rompimento: primeiro, com relação ao ponto de vista
marxista, que enxergava os presos comuns somente como subproletariados errantes e
retrógrados. Em segundo lugar, rompimento também em relação à estratégia que
estendia os embates políticos tradicionais até os presos comuns. Feito este duplo
rompimento, os membros do GIP pretendiam demonstrar que as instituições prisionais
eram, em si mesmas, um excelente local para o exercício do poder e, consequentemente,
local também de embates políticos. Com isso, buscava-se tornar público o
conhecimento das prisões, logo, a luta por informações representava um dos principais
objetivos do GIP. O grupo passou, portanto, a reunir inúmeros testemunhos sobre as
instituições prisionais. Testemunhos que, geralmente, eram escritos pelos próprios
presos.
2
É neste cenário, de crescente exceção política, que alguns militantes de esquerda foram presos,
chamando, dessa forma, a atenção de muitos intelectuais que viam não somente as condições precárias do
aprisionamento dos presos políticos, mas também a situação em que se encontravam os presos comuns e,
principalmente, o quadro geral em que se encontrava o sistema prisional na França. Temas como esses
eram, até então, pouco conhecidos ou de pouco ou quase nenhum interesse da chamada opinião pública.
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revoltas que se seguiram nas prisões da França. Porém, o GIP deixava bastante claro
que essas revoltas deveriam ser esperadas. Mesmo desfrutando, à época, de bastante
prestígio intelectual, Michel Foucault limitava-se a escutar as reivindicações que
surgiam com as sublevações. Era essa a intervenção feita pelo filósofo no contexto das
lutas em torno das prisões. Chamar a atenção para as intoleráveis condições de
aprisionamento que vigoravam na época era o que pretendia Michel Foucault. Para ele,
as revoltas dos presos não objetivavam destruir as prisões ou organizar fugas em massa.
Tratava-se de reivindicações muito precisas e específicas, de exigências modestas que
recaíam, sobretudo, sobre a rotina de aprisionamento.
Essas revoltas que ocorriam nas prisões, essas sublevações não deviam,
segundo Foucault, ser definidas como movimentos revolucionários3, tal como eram
definidos, à época, pela esquerda tradicional. Esses movimentos deviam ser
compreendidos como sublevações em que os presos se constituíam como força coletiva
diante da administração penal. Em outras palavras, esse conjunto de acontecimentos não
podia mais ser definido com base na noção de revolução, mas, ao contrário, como um
novo modo de subjetividade coletiva. Neste tipo de movimento, caberia ao intelectual
identificar e diagnosticar, porém, jamais liderar. Tal ponto de vista evidencia que, a
partir daquele momento, as instituições prisionais deixavam de ser problemas locais e
marginais – demandando pouco ou quase nenhum interesse para reflexão e para
mobilização política –, passando a ganhar maior notoriedade nos embates políticos da
época. Nem o mais otimista dos militantes do GIP poderia imaginar tamanha
repercussão. O próprio Foucault, em um diálogo com Gilles Deleuze, confessa o quanto
ficou surpreendido com o interesse das pessoas pelo tema das prisões, pelos discursos
dos detentos e com a possibilidade de visibilidade dos mecanismos de poder que as
investigações feitas pelo GIP acerca das prisões podiam viabilizar:
Fiquei surpreso de ver que se podia interessar pelo problema das prisões
tantas pessoas que não estavam na prisão, de ver como tantas pessoas que não
3
A respeito da contraposição feita por Michel Foucault entre as lutas como prática de liberdade e as lutas
contra o poder na forma de revolução e liberação Cf. FOUCAULT, Michel. “Sexualité et politique”. In:
“Dits et Écrits II: 1976-1988”. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris:
Quarto Gallimard, 2001, p. 530.
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Não será que, de modo, geral, o sistema penal é a forma em que o poder
como poder se mostra de maneira mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo
na prisão, privá-lo de alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de
fazer amor, etc., é a manifestação de poder mais delirante que se possa
imaginar. Outro dia eu falava com uma mulher que esteve na prisão e ela
dizia: “quando se pensa que eu, que tenho 40 anos, fui punida um dia na
prisão, ficando a pão e água!” O que impressiona nesta história é não apenas
a puerilidade dos exercícios do poder, mas o cinismo com que ele se exerce
como poder, da maneira mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Reduzir
alguém a pão e água... isso são coisas que nos ensinam quando somos
crianças. A prisão é o único lugar onde o poder pode se manifestar em estado
puro em suas dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral.
“Tenho razão em punir pois vocês sabem que é desonesto roubar, matar...” 5.
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Diante deste cenário social e político surgem novos modos de ação coletiva e,
consequentemente, coloca-se a questão acerca da necessidade de redefinição do papel
do intelectual. Apesar da posterior autodissolução do GIP, Michel Foucault buscou,
com sua experiência no grupo, colocar em prática a sua nova maneira de conceber o
engajamento intelectual. Tratava-se de um engajamento que se empreendia e se balizava
na crítica das práticas cotidianas do poder, que deviam ser denunciadas como
intolerantes. Engajamento, portanto, não mais empreendido em nome dos valores
universais. No já citado diálogo entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, em 1972, este
último parecia demonstrar um enorme entusiasmo pelas possibilidades abertas pelo
novo empreendimento foucaultiano. Tal empreendimento coloca a relação entre teoria e
pratica em um novo patamar. A própria trajetória de Michel Foucault exemplifica bem
esse novo patamar. A esse respeito, afirma Deleuze:
6
Idem, pp. 1.175-1.176.
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a opressão. Era preciso admitir que as relações entre prática e teoria deveriam ser menos
imparciais e mais fragmentárias. Contudo, conflitos e novas tensões continuaram
presentes nessa nova configuração dos embates sociais proposta por intelectuais como
Michel Foucault. Levando ao limite a ideia de que os intelectuais não deveriam jamais
liderar os movimentos, grupos de detentos logo começaram a reivindicar independência
em relação aos seus “padrinhos” e, mesmo com o notável êxito do Groupe
d’information sur les prisons, Foucault e seus colegas logo experimentaram um
sentimento de fracasso após a autodissolução do grupo. Não obstante essa
experimentação, esse sentimento, o GIP acabou tornando-se uma dos exemplos mais
emblemáticos do engajamento político de Michel Foucault e de suas reflexões sobre a
necessidade de redefinir o papel do intelectual frente aos novos movimentos de luta
social que surgiram após 1968.
7
Isto significa que, enquanto procedimento técnico, o suplício produz determinada quantidade de
sofrimento para que possa ser comparada, hierarquizada e modulada de acordo com o crime que foi
cometido, ou seja, ele faz “correlacionar o tipo de sofrimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo
dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas”.
FOUCAULT, Michel. “Vigiar e punir: história da violência nas prisões”. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p.
36. Enquanto ritual, o suplício visava marcar o corpo do criminoso, torná-lo infame. Trata-se de uma
violência que marca de maneira ostensiva e se caracteriza pela demonstração excessiva do poder de quem
está punindo.
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8
FOUCAULT, Michel. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: FOUCAULT Michel. “Dits etÉcrits I: 1954-
1975”. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Gallimard,
2001, pp. 1.174-1.183.
9
A esse respeito Cf. FOUCAULT, Michel. “Vigiar e punir: história da violência nas prisões”. Rio de
Janeiro: Vozes, 2009, pp. 32-33. As revoltas que se seguiram à época eram, segundo Foucault, revoltas de
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Dessa maneira, após suas experiências com o GIP, Michel Foucault apresenta
seu estudo histórico sobre o advento da prisão moderna e, com isso, realiza a tão
almejada alternância10 entre teoria e prática. De um lado, o GIP objetivava, antes de
tudo, abrir espaço para que os detentos contassem suas experiências dentro das prisões,
buscando apresentar novas falas acerca da prisão, que não eram pautadas pelos saberes
criminológicos e psiquiátricos ou pelas promessas dos reformadores; de outro, as
análises feitas em Vigiar e punir (1975) objetivavam tornar visível o olhar disciplinar
que opera no interior das prisões, e que acabam por se prolongar por todo o tecido
social. O interessante – e aqui se encontra mais claramente essa relação entre teoria e
prática – é que por se tratar de um olhar assimétrico, cabe à análise crítica torná-lo
visível, revertendo o princípio da visibilidade a favor das lutas e resistências sociais.
Ora, se o papel da filosofia para Michel Foucault “não era, bem o sabemos,
descobrir verdades ocultas, mas tornar visível exatamente o que já está visível”11; é
justamente por isso que no caso das instituições prisionais tratava-se de evidenciar que o
poder operado em seu interior não dizia respeito apenas aos detentos, mas ao homem
moderno aprisionado em inúmeras redes normalizadoras da sociedade. A esse respeito,
Philippe Artières dirá:
corpos contra as mazelas cotidianas da detenção, mas eram também contra as prisões modelo. O que
estava em jogo era a materialidade do poder que era exercido sobre os corpos dos condenados. Tal
materialidade nenhum discurso pretensamente humanista, segundo o filósofo, poderia mascarar. É
justamente essa tecnologia de poder que ele pretendia problematizar e tornar visível em seu livro. Era essa
punição, portanto, que ele queria denunciar com intolerável.
10
Em “Les intellectuels et pouvoir”, Deleuze utiliza o termo “revezamento”. Cf. FOUCAULT, Michel.
“Les intellectuels et le pouvoir”. In: FOUCAULT Michel. “Dits etÉcrits I: 1954-1975”. Édition établie
sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Gallimard, 2001, p. 1.176.
11
ARTIÈRES, Philippe. “Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em Michel Foucault”. In: GROS,
Frédéric. (Org.). “Foucault: a coragem da verdade”. São Paulo: Parábola, 2004, p. 15.
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Afirmar que em Vigiar e punir (1975) não há espaço para as ações dos detentos
e para suas vozes, bem como afirmar que as variadas formas de resistência contra a
disciplina não aparecem, ou, ainda, dizer que Michel Foucault não dá importância ao
sofrimento dos que suportam a punição, são alguns exemplos de objeções que podem
ser feitas a respeito da obra. Contudo, podemos argumentar que as lutas e embates
políticos e as resistências são, na verdade, as condições que possibilitaram as análises
feitas por Foucault em seu livro, e que tais resistências emergiram no cenário político da
época nas lutas em torno do Groupe d’information sur les prisons. Sendo assim,
viabilizar a voz dos presos significava resgatar do silencio e do anonimato aqueles que
eram, cotidianamente, detidos, vigiados e castigados.
12
Idem, pp. 15-16.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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ARTIÈRES, Philippe. “Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em Michel Foucault”. In: GROS,
Frédéric. (Org.). “Foucault: a coragem da verdade”. São Paulo: Parábola, 2004, p. 15. Ao propor um
diagnóstico da atualidade, Foucault articula, de maneira efetiva, engajamento e reflexão histórico-
filosófica. Ao dar ênfase a essa relação não é nossa proposta conciliar a obra e seu autor de maneira
simplista, pois o próprio Foucault, em atuações com a do GIP, se esforçava para “estilhaçar” seu estatuto
de autor, pois “o valor do diagnóstico não repousa num rosto, numa identidade de autor, mas no próprio
diagnóstico. A qualidade do olhar deve absorver todo o rosto, fazê-lo desaparecer”. Idem, p. 35.
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RESUMO
Este artigo, que faz parte de um campo específico da historiografia que estuda
identidades, espaços e fronteiras existenciais, procura dialogar com o
filósofo/historiador Michel Foucault, que pesquisou/escreveu sobre corpo, subjetividade
e saberes. Partindo da pesquisa sobre a construção identitária dos espaços limoeirenses
procuro destacar a importância da “Arqueologia do Saber” e dos outros estudos
foucaultianos na problematização das identidades, na análise arqueológica das práticas
discursivas e não discursivas que constroem verdades, que produzem uma rede de
significados. A intenção é perceber como Foucault questiona a natureza dos dizeres e
dos saberes que foram socialmente instituídos, como ele dessacraliza e historiciza essas
formações discursivas. Não é a natureza do Vale (do Jaguaribe) que determina o curso
da História, são os discursos que dizem o que é o Vale, são as formações discursivas e
não discursivas que legitimam o que vale e o que não vale na organização dos saberes.
O objetivo, tomando como referência Limoeiro do Norte, é estudar essa rede de dizeres
que produziu cenários, instituições e personagens idealizados. Os risos de Michel
Foucault, que conseguiram desestabilizar os rios das certezas modernas, também podem
problematizar o Vale do Jaguaribe (mais precisamente Limoeiro do Norte) e as suas
certezas identitárias.
Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará
(UFC) e bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
FUNCAP. Professor efetivo do Estado do Ceará (afastado para cursar o mestrado). E-mail:
wellingtonpet@gmail.com
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Esse artigo, que tem como ponto de partida uma poesia, não fala apenas de
ciências, se refere mais à poética, à estética, à erótica, à arte, do que às disciplinas. A
epígrafe, do meu amigo, poeta, historiador e cientista social Kelson Gérison, denuncia
isso, o texto não é sobre a unidade do rio, de Foucault, da história, da memória, da
geografia ou da arte; é sobre os rios, os Foucaults, as histórias, as memórias, as
geografias, as artes, sempre no plural e sem nenhuma pretensão de
unidade/homogeneidade dos sujeitos, dos espaços ou das instituições. A ideia de
“terceira margem”, que também aparece no conto de Guimarães Rosa e em um dos
livros de Albuquerque Jr. (2007), faz parte do nosso imaginário. A história das margens,
contada por Kelson Gérison, é uma poieses sobre quatro amigos e suas sapi(viv)ências
na cidade de Limoeiro do Norte, sobre diferentes maneiras de lidar com as pessoas e
com os espaços.
Os dois personagens (Jane Eyre e Caladônio), o autor (Kelson Gérison) e a
“sujeita oculta” (Conceição) não são necessariamente assimétricos ou antitéticos, são
complementares, o olhar desses quatro amigos se aproximam de algumas das faces
(máscaras) de Michael Foucault. Enunciam, através das suas vivências, algumas das
possibilidades para fazer e/ou viver poesia nas margens do Jaguaribe; para desver,
dessentir, desdizer, desinventar, desnaturalizar, desessencializar a história, a geografia e
as identidades limoeirenses. As aventuras desses quatro amigos, apresentada na primeira
parte deste artigo, é uma maneira de aproximar alguns temas que as vezes parecem
distantes: História, poética, política, amizade e estudos foucaultianos.
O primeiro desses quatro amigos é o próprio autor/poeta, o artesão das palavras
que consegue transformar as poéticas cotidianas em poesias escritas. Quem mais do que
um poeta para falar sobre essa (des)relação entre “as palavras e as coisas”? (Foucault?)
1
GÉRISON, Kelson Oliveira. Terceira Margem. In.: ________. Para Comover Borboletas. Rio de Janeiro.
7 Letras. 2010.
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2
As expressões “ser das histórias” e “ser do babado” são gírias usadas por parte dxs lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais para explicar que alguém é do grupo
LGBTTTI.
3
Quatro amigos que se formaram em História na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos
(FAFIDAM/UECE) e foram bolsistas do Programa de Educação Tutorial, PET de História.
4
Essas duas expressões se referem, respectivamente, as políticas da colonização e do agronegócio que
foram implantadas na região. As palavras sangue e veneno são usadas ao lado de riacho e de
(des)caminho para lembrar do geconídeo indígena e da morte de Zé Maria do Tomé e de outros
agricultores. Zé Maria era um líder sindical da região do Vale do Jaguaribe que foi morto em 2010, com
dezenas de tiros, por denunciar a pulverização aéria na Chapada do Apodi.
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O poema “Terceira Margem” (de Kelson Gérison) se passa na Barragem das Pedrinhas,
na margem do Rio Jaguaribe, no município de Limoeiro do Norte – CE. Essa história-
poesia, que fala sobre a importância da amizade, das margens e dos cortes, é uma
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metáfora perfeita para falar sobre Michael Foucault. Primeiro, porque ele é um
historiador das margens:
Foucault sempre olhou para a História não em busca do que é central, mas do
que foi jogado para as margens, das práticas e discursos em ruptura com a
norma, com o hegemônico, com o majoritário. Foucault foi o cartógrafo das
margens, dos limites e das fronteiras que complexificam, que dividem, que
tornam problemática essa pretensa unidade civilizacional e cultural.
(ALBUQUERQUE JR., 2008).
Ao fazer uma arqueologia dos saberes, uma genealogia dos poderes e uma
análise sobre a produção de subjetividades, ele colocou em evidência os loucos, os
doentes, os presos, os homossexuais, os intersexuais, os ditos “anormais”, os homens e
as mulheres infames. Ele não se comprometeu com a história da razão ou com as razões
da história, ele fez uma tese sobre a “história da loucura” e falou (na “Arqueologia do
Saber”) sobre as desrazões daHistoriografia (Foucault, 2013). Os personagens que
aparecem nas histórias são “marginais”, estão nas margens da história, são tratados
como bandidos, criminosos, doentes ou loucos pelas instituições disciplinares. O seu
livro “Vigiar e Punir: história da vigilância nas prisões” (Foucault, 2011) levou parte
dos historiadores brasileiros a se aproximarem de sua genealogia e a refletirem sobre o
poder disciplinar (Rago, 1995). Foucault não fez apenas uma história sobre as prisões na
Europa Moderna, fez uma análise genealógica das estratégias de disciplina que atingiu
as prisões e outras instituições disciplinares, como hospitais, manicômios, escolas, etc.
Ao contrário do que disseram os críticos, ele não se limitou a ideia de poder e de
disciplina, o que já seria por si só um grande avanço para os estudos da época. A
metáfora do panóptico não eliminou as possibilidades de resistência, a ampli(fic)ação da
ideia de poder complexificou a ideia de luta, se o poder está em todos os lugares a
resistência também está (MACHADO, 1979). Michel Foucault não matou os sujeitos da
História, pelo contrário, ele explicou “como foi possível historicamente a emergência de
figuras de sujeitos como: o doente mental, o prisioneiro, o sujeito de uma sexualidade”
(Albuquerque Jr., 2011). Ele dedicou parte dos seus estudos para escrever “História da
Sexualidade I: vontade de saber”, “História da Sexualidade II – o uso dos prazeres” e
“História da sexualidade III – cuidado de si”. O “dispositivo da sexualidade” é um tema
que faz parte dos seus estudos e da sua vida cotidiana, não apenas como pesquisador da
sexualidade, mas como sujeito homossexual.
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Ele foi tratado, por setores da academia e da sociedade, como “uma pedra no
meio do caminho” dos historiadores, não uma “pedrinha”, uma pedra gigante, uma
“barragem” que atrapalharia os desígnios da tradição historiográfica, que minava o
curso da História e os cursos de História, o curso do tempo e os cursos de seu tempo, os
per(cursos) da tradição herdada. Mas, essas “pedrinhas-foucaultianas”, que foram vistas
como grandes barragens, se transformaram em pontes que nos ligam a uma nova
maneira de (des)pensar o pensamento, de (des)conhecer o conhecimento.
O prefixo des, que aparece entre parêntese, não pode ser entendido como
indicação de não pensamento ou de não conhecimento, mas como proposta para pensar
e conhecer de outras maneiras, para pensar o pensamento e conhecer o conhecimento de
outras formas, para entendermos porque pensamos e conhecemos as pessoas, as
instituições, os espaços geográficos e as disciplinas (inclusive a História), de uma
maneira e não de outra. Uma parte dos estudos de Foucault é exatamente sobre isso:
“propunha-se pensar como haviam sidoinstituídas culturalmente as referências
paradigmáticas da modernidade em relação ao próprio social, à posição dos sujeitos, ao
poder e às formas de produção do conhecimento” (Rago, 1995).
Pesquisadores como Paul Veyne, Roberto Machado, Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, Margareth Rago, Alipio de Sousa Filho, Igor Guedes Ramos,
Washington Luiz Souza, dentre tantos outros, destacam uma série de questões que
justificam porque Michel Foucault, apesar das controvérsias, revolucionou a
Historiografia, porque é considerado um pensador incômodo, porque é visto como um
furacão ou como “uma pedra no meio do caminho”. Os estudos que ele realizou sobre
panóptico, vigilância, punição, poder, saber, linguagem, sexualidade, resistência,
disciplina, aprisionamento, loucura, subjetividade, corpo, ficção, ética, literatura,
cuidado de si, estética/estilistica da existência, práticas discursivas e não discursivas,
heterotopias, descontinuidades, diferenças, margens e cortes, são de fundamental
importância para pensar a História e as outras áreas do conhecimento.
Os novos temas, as novas abordagens, as novas metodologias fazem parte da
Nova História, o horizonte de possibilidades da Historiografia foi amplificado e os
sujeitos da história se multiplicaram. Essa Revolução Historiográfica não se resume,
obviamente, a Michel Foucault. Mas, a sua contribuição, que não foi pequena, não pode
ser ignorada, seja por causa dos “homens (e mulheres) infames” que ele colocou em
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suas páginas (e em sua vida), seja por causa da metodologia que ele utilizou para fazer
as pesquisas. Michel Foucault era um crítico da ideia de método, mas ele construiu uma
maneira própria para (des)pensar a História. A principal característica dessa maneira de
pensar o pensamento é a descontinuidade. Segundo Michel Foucault (2013):
5
“Ressonâncias Contemporâneas de Michel Foucault é o subtítulo do III Colóquio de Estudos
Foucaultianos que aconteceu de 16 a 19 de setembro de 2014, na Universidade Estadual do Ceará, onde
apresentei o presente texto em uma comunicação oral.
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A “Arqueologia do saber” e uma pergunta que não quer calar: É o vale que diz o
curso ou são os discursos que dizem o (que) vale?
Na verdade trata-se de descrever discursos, não livros (na relação com seus
autores), não teorias (com suas estruturas e coerências), mais os conjuntos, ao
mesmo tempo familiares e enigmáticos, que, através do tempo se tornam
conhecidos como a medicina, ou a economia política, ou a biologia (…)
Gostaria (portanto) de revelar, em sua especificidade, o nível das 'coisasditas',
sua condição de aparecimento, as formas de seu acúmulo e encadeamento, as
regras de sua transformação (FOUCAULT, 2013).
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Foucault vai na contramão de tudo isso. Ele denuncia que o que existe uma
espécie de mitologia que remete aos ditos e não ditos de outrora, uma falsa sensação de
unidade. Segundo Michel Foucault (2013, p. 30),
Há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que dela jamais
poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma, seriamos fatalmente
reconduzidos, através da ingenuidade das cronologias, a um ponto
indefinidamente recuado, jamais presente em qualquer história” (…) A esse
tema se liga um outro, segundo o qual todo discurso manifesto repousaria
secretamente sobre um já-dito, e que esse já dito não seria simplesmente uma
frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um “jamais-dito”, um discurso
sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é
senão o vazio do seu próprio rastro.
Quando alguém sugere, de forma semelhante ao que foi citado acima, que o Vale
por sí só, ou por um desígnio de Deus, ou pela bravura dos “heróis”, define o curso da
história, está se aproximando da perspectiva que Foucault chamou de “tradição”, de
“rastro”, de “influência”, de um “fundamento que se perpetua”, de um “já-dito” ou de
um “jamais-dito”.Essa maneira especifica de ver a história “se dispõe a memorizar os
monumentos do passado”, a legitimar a suposta verdade dos discursos, a trabalhar com
os grandes períodos”, com “os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos”, com
“as continuidades seculares”, com “as saturações lentas”, com “as grandes bases
imóveis e mudas” da História (Foucault, 2013, p. 25-26).
Uma parte dos historiadores, segundo Foucault, “identificam, descrevem e
analisam estruturas”, sem jamais se perguntarem: “Estamos deixando escapar a vida,
frágil e (a) fremente história”? (Foucault, 2013, p. 14) Estamos matando as histórias e
os espaços em nome das “verdades” da história e do espaço? É por isso que ele decidiu
estudar as “formações discursivas”, para perceber como a dispersão dos discursos foi
ordenada por uma rede de saberes e poderes, como o estudo desse ordenamento, através
da escavação e escovação dos dizeres (Arqueologia) pode denunciar a mitologia da
identidade, a dependência com relação aos “já-ditos” (discursos memoriais, que
possuem uma historicidade) e aos “jamais-ditos” (discursos imemoriais, a-históricos).
A outra preocupação de Michel Foucault é com os documentos, a maneira como
lidamos com as fontes pode construir continuidades ou descontinuidades. A
historiografia lida com os documentos de, pelo menos, três maneiras: 1) encaram o
documento/monumento como a verdade absoluta, e repete todas as suas palavras; 2)
fazem uma problematização buscando a verdade por trás do documento, como se ele
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fosse uma espécie de portal do tempo que ajuda a resgatar o passado; e 3) “elabora o
documento, organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries,
distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades,
descreve relações” (Foucault, 2013, p. 7-9).
A arqueologia do saber trabalha com essa terceira opção. Não significa dizer,
obviamente, que a história não precisa de um referencial, que o historiador não necessita
de parâmetros ou que não existem mais padrões éticos para pensar a história e os
espaços. O que Foucault questiona é a ilusão de que o referencial será totalmente
traduzido pela linguagem, que as palavras serão um reflexo das coisas, que a história
escrita será uma cópia fiel do vivido, que a “memória milenar” poderá “reencontrar o
frescor de suas lembranças”. O documento, segundo ele, não é mais “essa matéria inerte
através da qual” tentamos “reconstruir o que os homens fizeram ou disseram”, o desafio
agora é tentar “definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries,
relações” (Foucault, 2013, p. 7-9).
A grande contribuição de Foucault para nós (historiadores), principalmente nesta
série de livros que desemboca em “Arqueologia do Saber”, é a problematização do
conhecimento, não o dos outros, mas o nosso. A arqueologia que Foucault faz não é
(apenas) sobre o surgimento da medicina ou da psiquiatria, é sobre as ciências humanas,
sobre a organização dos conhecimentos históricos e a produção histórica dos
conhecimentos. Segundo Giacomoni (2010), essa esca(o)vação foucaultiana tem como
objetivo: “especificar um método de investigação que visa entender a ordem interna que
constitui um determinado saber”.
A arqueologia do saber, assim como Michel Foucault, não é disciplinar, é
indisciplinar, interdisciplinar, transdisciplinar por excelência, não é patrimônio de uma
disciplina, de uma área do conhecimento, é apropriada por pesquisadores de todas as
ciências. Os saberes que são esca(o)vados ultrapassam os limites da academia, são
saberes científicos e não científicos. A arqueologia, portanto, ajuda a desvendar como
os homens e as mulheres constroem as suas próprias existências. Não existe os sujeitos,
os objetos, os espaços (a priori), eles “são construídos discursivamente” a partir do que
“se fala sobre eles” (GIACOMONI, 2010).
O discurso não é uma cópia do real, não é mimeses, é transfiguração e invenção,
é criação. Mas, não existe independência entre o que chamamos de real e o que
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coronéis, políticos e bispos. A principal obra desse “atelier” (a obra de arte) é uma “ilha
fecunda”, que chamaram de Limoeiro da Igreja, Limoeiro de Dom Aureliano, Limoeiro
dos Coronéis, “Princesa do Vale”, “país do Jaguaribe”, Limoeiro da família tradicional
e dos bons costumes, “pátria dos limões”, cidade das bicicletas, pátria dos cataventos,
terra dos carnaubais, dádiva do Jaguaribe, Terra de Parapuã6, Ilha-Pátria7 ou
Mesopotâmia Tupiniquim8.
Essas linguagens, na interpretação conceitual de Simon Schama, são camadas de
lembranças, paisagens da memória (SCHAMA, 1996), arquiteturas discursivas que,
também, fazem parte do espaço (que criam o espaço). É por isso que não podemos
ignorar as construções narrativas, as instâncias textuais (ALBUQUERQUE JR., 2007),
as produções de significados. Não é por acaso que falamos de mitos, de imaginário, de
simbolismo, de imagens e de discursos (FOUCAULT, 2013). Essa rede simbólica é
alimentada por pessoas e por instituições que são concretas, que existem de fato. Mas,
os discursos também são reais, eles podem se tornar tão concretos quanto as pessoas ou
as instituições que os produziram.
É por isso que Michel Foucault estuda os discursos, para pensar como eles
ajudam, ou não, a construir verdades. Mas, os discursos não existem no limbo, eles
precisam de um “suporte institucional”. Tomando como referência esse lugar de
produção podemos perguntar:
1) quem fala?; quem, entre todos os sujeitos falantes possui legitimidade para
enunciar; 2) de quais lugares institucionais ele obtém o seu discurso?; de qual
lugar advém tanto os objetos e enunciados quanto sua legitimidade (no caso
da medicina em nossa sociedade, estes lugares são o hospital, o laboratório, a
biblioteca, dentre outros.); 3) que posições o sujeito ocupa em relação aos
domínios ou grupos de objetos?; como estes percebem, observam,
descrevem, ensinam, etc? (GIACOMONI, 2010);
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“construtores de dizeres” que fazem parte, direta ou indiretamente, delas? Como esses
“imortais” (da ALL) se relaciona(va)m entre si? Qual o lugar social desses “vendedores
de passado”? O que é que (e porque) escrevem, pintam, esculpem, cantam, desenham
ou filmam? Qual o significado social da nomeação de vários espaços públicos (ou
particulares) com o nome de Dom Aureliano Matos? Qual a importância sócio-histórica
da Música de Eugênio Leandro, das pinturas ou das esculturas de Márcia Mendonça, do
vídeo de animação (A Princesa do Vale), do Livro de Maria das Dores Vidal (Limoeiro
em Fotos e Fatos) ou da poesia de Luciano Maia? Como essas obras contribuíram, ou
não, para construir uma identidade insular? Quando, como e por que surgiram
representações simbólicas e imagens decorrentes da insularidade? Quando, como e por
que surgiram mitos fundadores que explicam, ou tentam explicar, de maneira
naturalizada, a essência do espaço, das instituições e dos “heróis” da história local?
A cidade de Limoeiro do Norte, que os poetas e os memorialistas preferem
chamar de “Princesa do Vale”, “Ilha de Parapuã” ou “pátria dos cata-ventos” é uma
cidade idealizada. Ela não pode possuir um avesso por que foram os memorialistas, os
poetas e outros artistas que “inventaram”, “reinventaram” e “desinventaram” o passado;
que recriaram as ruas, os becos, as escolas, as igrejas e as pessoas de outros tempos;
foram eles que construíram e reconstruíram essa geografia fantástica embebida de
imaginação e saudade. Mas, essa unidade/regularidade/continuidade, como denuncia
Foucault, é uma construção, é o resultado de uma formação, não algo é natural, não é
uma dádiva de Deus, não é o reflexo de umaorigem ou de um “já(não)dito”, é o
resultado de uma série de práticas discursivas e não discursivas que surgiram em épocas
e espaços diferentes, com objetivos variados. Mas, apesar da dispersão, é possível
descrever, uma “regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações)”, em outras palavras: uma formação discursiva” (Foucault, 2013, p.
47).
As identidades, como lembra Albuquerque Jr. (2001, 2007, 2008, 2013),
precisam das artes (que também são saberes) para poder enquadrar/cristalizar sua
imagem (unidade/regularidade discursiva). Mas, o devir (DELEUZE, 1995) é mais
ousado e criativo, é a própria arte (de viver) em movimento, são as linhas de fuga que se
constroem através dos questionamentos de todas as formas de (micro/neo) fascismos,
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. Amores que não têm tempo: Michel Foucault e
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RESUMO
Esta comunicação está dividida em quatro partes: 1) Num primeiro momento, esboço o
projeto crítico de Michel Foucault, no qual o autor enfatiza a importância de uma crítica
do conhecimento, de modo a envolver questões de poder e problematizar os lugares da
verdade e do sujeito. Segundo ele, tal crítica pode ser realizada através de uma
investigação de caráter histórico-filosófico, na qual os termos saber e poder tornam-se
grades de análise; 2) Na segunda parte, apresento algumas características desse projeto
histórico-filosófico de base pós-estrutural, que exige ferramentas distintas daquelas
utilizadas no estruturalismo. Busco destacar diferenças entre a história tradicional da
perspectiva do “sentido histórico” desenvolvido por Foucault, que, inspirado em
Nietzsche, defende uma construção da história em termos de descontinuidade,
contingência e abertura. A noção de genealogia também é mapeada; 3) Para Foucault, o
conhecimento e o discurso são produzidos em contextos particulares e articulados com
questões de poder. Sua proposta quer dar conta, assim, da formação discursiva à qual
um texto pertence. Busco mostrar que Foucault problematiza a anulação histórica da
realidade do discurso e destaca a importância de devolver a ele seu estatuto de
acontecimento, de discutir a nossa vontade de verdade e de suspender a soberania do
significante; 4) Por fim, tento mostrar a pertinência da mobilização desse aporte teórico
para pesquisas em torno das culturas minoritárias no Brasil.
CRÍTICA DO CONHECIMENTO
O projeto crítico de Foucault enfatiza a importância de uma crítica do
conhecimento, de modo a envolver questões de poder e problematizar os lugares da
verdade e do sujeito.Para ele, tal crítica pode ser realizada através de uma investigação
de caráter histórico-filosófica, na qual os termos saber e poder tornam-se grades de
análise e as noções de arqueologia e genealogia ganham destaque.
Assim, a análise sugerida por Foucault considera como ponto de partida o poder
a partir do que ele chama de uma experiência de acontecimentalização, que requer o
abandono da pretensão de avançar como uma investigação legítima: tal procedimento
consiste em selecionar conjuntos de elementos, promovendo uma aproximação,
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HISTÓRIA GENEALÓGICA
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O sentido histórico não teme ser um saber perspectivo, que seleciona ângulos com
o propósito de apreciar: ele dá ao saber a possibilidade de fazer, no movimento de seu
conhecimento, sua genealogia.Foucault busca a proveniênciae reforça que a genealogia
não está preocupada com finalidade, continuidade, totalidade ou linearidade. A
genealogia é cinza, meticulosa, documentária e exige um grande número de materiais
acumulados; a genealogia quer marcar a singularidade dos acontecimentos, buscá-los
onde não se supõe haver história. A noção de genealogia propõe a substituição de um
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único relato da história por diferentes relatos, que podem variar a partir da abertura
proporcionada pela descontinuidade e pelas relações que são estabelecidas ao contar.
Foucault explica que dessa relação de dominação entre homens, classes e forças é
que nascem as diferenças de valores: as emergências que aparecem são efeitos de
substituição e deslocamento. Considerando a interpretação como um exercício de
apoderar-se de um sistema de regras para inseri-lo em outro jogo e a novas regras,
torna-se possível afirmar que o devir da humanidade é uma série de interpretações e a
genealogia deve ser sua história como emergência de diferentes interpretações.
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DISCURSO
Sua proposta quer dar conta, assim, da formação discursiva à qual um texto ou
uma prática pertence. Formação discursiva, para Foucault, é um modo de agrupar
enunciados que descrevem uma mesma dispersão (para objetos, estilos, conceitos e
temas). Partindo da ideia de que há formas dominantes, sua proposta busca tornar
visível as muitas coalizões que enfraquecem essas formas, com o máximo de precisão
possível.
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Para analisar esse temor em relação ao discurso em seu jogo e em seus efeitos, é
preciso um movimento que permita devolver ao discurso seu caráter de acontecimento e
suspender a soberania do significante: temas comuns a outros pensadores do pós-
estruturalismo, a exemplo de Derrida.
Assim, o deslocamento que Foucault propõe é sutil: ele não quer tratar das
representações que podem existir por trás dos discursos, e sim dos discursos como
séries regulares e distintas de acontecimentos, o que permitiria introduzir, na raiz do
pensamento, o acaso, o descontínuo e a materialidade, elementos importantes ao pós-
estruturalismo.
CRÍTICA DA CULTURA
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Vale dizer ainda que essa perspectiva desempenha um papel importante para os
movimentos de resistência, pensada aqui como açãoe não apenas como defesa ao ataque
do outro. Daí a compromisso ético de tomar a estrutura do discurso instituído sob nossa
responsabilidade e fazê-la mover.
REFERÊNCIAS
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
_________. “O que é crítica?”. In: Por uma vida não fascista. Coletivo Sabotagem,
2004.
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RESUMO
Este texto relata nossas aprendizagens na vigência da pesquisa intitulada "Trabalho
discente, formação docente e o cuidado de si no espaço-tempo cotidiano de
aprendizagens", e refere-se a nossa constituição enquanto sujeitos pesquisadores na
produção de saberes de si e dos outros nas atividades que substanciaram o trabalho entre
professor pesquisador e alunos pesquisadores. Os objetivos da pesquisa consistiram em
compreender o cuidado consigo mesmo nos trabalhos de aprendizagem cotidiana das/os
estudantes do Curso de Pedagogia do CFP/UFCG em seu processo de formação docente
e como o estudante do Curso de Pedagogia tem se constituído enquanto
estudante/pessoa/futuro professor. Para isto foram realizadas 20 entrevistas
semiestruturadas. Assim, a base analítica deste texto se constitui orientada pelas
aprendizagens construídas na leitura e discussão de textos de Foucault sobre o cuidado
de si (sobretudo o livro A hermenêutica do sujeito), a produção de roteiro de entrevistas,
a leitura e transcrição das entrevistas e a discussão prévia sobre os caminhos analíticos
para os dados coletados. Enquanto sujeitos que buscam a formação para a docência,
temos apreendido prática e teoricamente que a constituição de si mesmo é uma
produção decorrente dos modos como somos afetados e subjetivados, tendo em vista o
tipo de investimento que operamos sobre nós e o que buscamos em termos estéticos
para a nossa existência e a nossa construção enquanto sujeito discente e docente.
INTRODUÇÃO
A aprendizagem é um processo contínuo, que se propõe gerar uma modificação
no comportamento do indivíduo em função do estudo, da experiência e do ensino. É
uma consecução de habilidades, valores e atitudes propiciada ao sujeito.
Ao adentrarmos no meio acadêmico científico obtivemos a possibilidade de
exercitarmos nossa primeira prática de iniciação científica através da pesquisa"Trabalho
discente, formação docente e o cuidado de si no espaço-tempo cotidiano de
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METODOLOGIA
Na pesquisa que nos serve de foco para pensarmos nossas aprendizagens
discentes/docentes, propomo-nos a investigar a partir dos enunciados dos discursos dos
sujeitos estudantes do Curso de Pedagogia CFP/UFCG, considerando o discurso
enquanto práticas que engendram e instituem a constituição dos sujeitos, haja vista
serem os discursos “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam”, como afirma Foucault (2008, p. 56).
Para a consecução dessa pesquisa foram realizadas 20 entrevistas
semiestruturadas com estudantes que estavam entre o terceiro e penúltimo semestre do
Curso de Pedagogia/CFP/UFCG, abrangendo os turnos diurnos e noturnos. A efetivação
das entrevistas contou com um roteiro de questões abertas, essas na sua fase piloto
sofreram reformulações e acréscimos buscando-se aprimorar as questões visando a sua
otimização em função do objeto estudado. As entrevistas foram gravadas em áudio,
transcritas e lidas conjuntamente pelo coordenador e estudantes pesquisadores
procurando-se, no corpus discursivo, organizar e entender os enunciados suscitados
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A epiméleia heautoû é uma atitude para consigo, para com os outros, para
com o mundo... Uma certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo
implica que se converta o olhar... o olhar, do exterior, dos outros, do mundo,
etc, para si mesmo. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento
ao que se pensa e ao que se passa no pensamento.
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Minha cabeça mudou muito, e meu processo de formação, eu acho que é uma
coisa que aos poucos eu tô construindo uma nova pessoa de mim mesmo e
uma nova perspectiva de como encarar a educação. Porque a gente tem
aquela perspectiva da educação pelo senso comum, pelo senso tradicionalista
demais. E quando você entra na faculdade você começa a ver que não é só
aquilo, você tem possibilidades de fazer coisas melhores pra educação, pra
construir, pra poder é... Melhorar a vida de uma outra pessoa, de um novo
indivíduo.
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(Michel Foucault)
Sobre esse tema, nos diz Foucault (1984, p. 12): “...insisto mais nas práticas de
liberdade do que no processo de libertação que, é preciso dizer mais uma vez, possuem
seu espaço, mas que não podem por eles mesmos, em minha opinião, definir todas as
formas práticas de liberdade”. Sendo assim, quando operamos com a nossa
subjetividade para interagir com o outro, o ensino quebra barreiras de preconceito e
problematiza as certezas suscitadas pelo senso comum. Nessa perspectiva,é possível
perceber que ao cuidar de si mesmo, potencializamos também o cuidar do outro, um
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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Professor Associado I do Departamento de Filosofia da UFRuralRJ e Pesquisador do CNPq. E-mail:
luiz.celso@pq.cnpq.br.
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1
Foucault, M. L’herméneutique du sujet, p. 132.
2
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 342.
3
Foucault, Michel. La Parrêsia, p. 158.
4
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p.
5
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 156.
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6
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 144.
7
Foucault, M. Fearless Speech, p. 18.
8
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 339.
9
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 312.
10
Foucault, M. Fearless Speech, p. 27.
11
Consideramos importante distinguir o “quinismo” greco-romano do “cinismo” moderno e
contemporâneo para ressaltar duas posturas incompatíveis entre Discurso e Verdade.
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vrai)”12 quanto envolve uma missão que não pode ser jamais abandonada, que vai ser
exercida permanentemente até o fim [da vida]”.13
No entanto, aparresia socrática não constitui propriamente um ponto de chegada
do percurso sabidamente inacabado de Foucault. Através dela, sem dúvida, é possível
estabelecer um sólido contraste entre outras modalidades de “dizer-verdadeiro”. Sem
contar que Sócrates representa, inegavelmente, até então, a figura “[d]aquele que
articula a exigência da parresia aos temas do cuidado de si e da técnica de existência”.14
É na Filosofia Quínica que as análises histórico-filosóficas de Foucault atingem
o seu ápice. Partindo do pressuposto de que estamos percorrendo um caminho em
desenvolvimento, cujos resultados não podem ainda ser delineados de forma clara e
distinta, isso se aplica de modo ainda mais pertinente às análises elaboradas a respeito
de exemplos retirados do modo de vida dos quínicos, exatamente a partir da metade do
curso de 1984, no final da aula de 29 de fevereiro. Foucault não apenas atribui ao
quinismo um surpreendente estatuto transhistórico15 como também o associa a um
procedimento existencialmente “mais denso”, “mais específico”.16 A radicalidade da
parresiaQuínica reside no modo como a harmonia entre teoria e prática inscreve sua
marca diretamente na superfície do corpo, daí o notório estilo de vida despojado,
irreverente e provocativamente alheio às convenções sociais.
Para Foucault, independente de o termo parresia encontrar-se ausente do que foi
efetivamente pronunciado, isso não impede que se possa constatar uma situação na qual
se manifesta o “jogo parresiástico”. Além do testemunho das palavras, é necessário
levar em conta a postura adotada em determinadas circunstâncias de nítido embate
discursivo.
O estudo da formação do conceito de parresia permite compreender traços
constitutivos do modo de ser da filosofia greco-romana ou, como defende Foucault, de
todo o Pensamento Ocidental. Notadamente a relação do Sujeito com o trinômio
Verdade-Política-Ética. Além disso, é possível ainda estabelecer uma sutil distinção
entre o exercício da parresia no campo da Filosofia stricto sensu, que nesse caso
12
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 67.
13
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 78.
14
Gros, F. La parrhêsia chez Foucault, p. 161.
15
Cf. Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 161.
16
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 159.
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“conduz a uma erótica”,17 e em termos de uma atitude Ética, cujo objeto reside
primordialmente na exaltação da Vida.18
Acompanhar a sequência composta por A hermenêutica do sujeito, “A
parresia”,O governo de si e dos outros, A fala destemida e A coragem da
verdadepermitirá delinear o núcleo ético do “uso corajoso da palavra”.
***
Foucault considera que a História da Verdade pode ser acompanhada a partir de
dois caminhos que, apesar de não serem mutuamente incompatíveis, promovem ênfases
distintas: uma calcada em aspectos Epistemológicos, Lógicos e Ontológicos e outra
voltada para um contexto Político ou Ético. Tem-se, assim, o interesse centrado no Ser
(ou a Alma) e a preocupação com a Vida (ou o Si). Ou, em outros termos, uma vertente
que aponta para o “plano da intelecção ou do conhecimento (...) o âmbito das teorias
(...) a ordem da representação (...) [E outra referente] ao plano das atitudes, ao âmbito
do olhar, à ordem das práticas, que constituem todo um modo de existência”.19
De um lado, a tarefa de determinar a veracidade de uma proposição; de outro,
uma preocupação ao mesmo tempo “estética” e “desontologizada”. Foucault pretende
ressaltar com isso que “um professor de gramática pode dizer a verdade às crianças que
ensina e, de fato, pode não ter dúvida alguma de que o que ensina é verdadeiro”. 20 Mas,
nesse caso, não basta proferir enunciados verdadeiros para adentrar na região da
parresia. Senão todo aquele que ensina ou que transmite algum tipo de saber ou técnica
figuraria como um parresiasta.
Além disso, nem todo discurso ao qual é conferido o estatuto de verdadeiro pode
ser tido parresiástico no sentido foucaultiano, pois estamos diante de uma “verdade
[que] não é puramente teórica”, que envolve tanto “um conjunto de princípios racionais
que estão fundados em afirmações gerais sobre o mundo, a vida humana, a necessidade,
17
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 344.
18
Em A coragem da verdade ocorre “a emergência da vida, do modo de vida, como sendo o objeto da
parresia” (Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 135).
* Professor Adjunto IV do Departamento de Filosofia da UFRRJ. Pesquisador do CNPq. Projeto: “Michel
Foucault e o conceito de parresia”. E-mail: luiz.celso@pq.cnpq.br.
19
Muchail, S. T. Coragem de si e coragem da verdade, p. 9.
20
Foucault, M. Fearless Speech, p. 16.
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21
Foucault, M. Fearless Speech, p. 165-166.
22
Foucault, M. Fearless Speech, p. 18.
23
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 341.
24
Foucault, M. Fearless Speech, p. 169.
25
Foucault, M. Du gouvernement des vivants, Dits et écrits, IV, p. 126.
26
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 12.
27
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 68.
28
Foucault, M. Fearless Speech, p. 21 e Le gouvernement de soi et des autres, p. 53.
29
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 290.
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“tem somente um único uso”, que consiste em “prevalecer sobre [os outros] e persuadi-
los”.30
Mas isso não esgota a questão da fala franca. Podemos, ainda, salientar a
importância de evitar a “fala desmedida”, sinal tanto de ausência de sabedoria quanto de
arrogância. É preciso saber o momento de tomar a palavra e o momento de calar.
Foucault ressalta que aquele comprometido com o dizer-a-verdade deve “ser capaz de
utilizar a parresia sem cair na tagarelice do athuroglossos”.31 O problema é que nem
todos conseguem se dar conta dessa diferenciação, ou seja, poucos são capazes de
“distinguir as ocasiões em que se deveria falar daquelas que se deveria permanecer em
silêncio, ou aquilo que deve ser dito daquilo que deve permanecer sem ser dito, o as
circunstâncias e situações que requer que se fale daquelas que se deve permanecer
calado”.32
O indivíduo de “linguagem desenfreada” é tido como daninho por ser tagarela,
arrogante, pseudocidadão, escandaloso, e mesmo desprovido de conhecimento ou
sabedoria. A fala franca não se confunde com o que os gregos denominavam de “boca
desenfreada” ou “boca sem portas”,33 que é movida por um impulso tolo. A loquacidade
não é uma virtude. É nesse sentido que Platão considera a parresia nociva: ela impede
que a sociedade possa se organizar segundo os princípios de unidade e homogeneidade,
tendo em vista que faculta a cada indivíduo “dizer qualquer coisa que deseje”, “fazer
qualquer coisa que queira”, agir “sem limitação alguma”.34 Daí a importância, como
veremos, do terceiro aspecto da estrutura parresiasta: o perigo.
No entanto, devemos salientar que a franqueza foucaultiana não se reduz a uma
manifestação de forma sincera ou transparente (o que envolveria uma vizinhança
inconveniente com a confissão).
O dizer-a-verdade requer audácia, tendo em vista que remete à adoção de uma postura
inconveniente, cuja tendência maior reside em causar algum tipo de incômodo ou
mesmo de, numa situação extrema, ofender seus interlocutores ou ouvintes. Aspecto
que pelo qual enveredaremos adiante, e que culmina – no limite – num jogo de vida ou
morte.
30
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 340.
31
Foucault, M. Fearless Speech, p. 64. Athuroglossos é justamente aquele que não sabe se conter.
32
Foucault, M. Fearless Speech, p. 64.
33
Foucault, M. Fearless Speech, p. 63.
34
Foucault, M. Fearless Speech, p. 85.
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42
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 342.
43
Foucault, M. L’herméneutique du sujet, p. 49. Cabe assinalar que, de acordo com Gros, Foucault
confunde duas cenas distintas de O banquete: a da resistência ao frio e da permanecia fixa e isolada em
seu próprio eixo (cf. Foucault, M. L’herméneutique du sujet, p. 62, nota 16). No entanto, o que nos
interessa ressaltar é a obstinação socrática em se manter firme no caminho em direção à verdade.
44
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 78.
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45
Foucault, M. Fearless Speech, p. 73.
46
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 209.
47
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 243-244, grifos meus.
48
Foucault, M. Fearless Speech, p. 85.
49
Flynn, Th. Foucault as Parrhesiast, p. 217
50
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 149.
51
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 226, grifos meus.
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RESUMO
Esse artigo é um estudo crítico-reflexivo, a partir de obras do filósofo Foucault, sobre
uma prática cultural brasileira. A motivação para o tema é oriunda da imersão pessoal
de mais de vinte anos nesse universo. A Capoeira nasceu como uma manifestação de
filhos de negros africanos contra a opressão do branco-europeu-colonizador no Brasil
escravocrata, era uma negação aos atos do Estado. Ao longo dos anos, transformou-se
em ginástica, prática esportiva de tendências disciplinadoras. Hoje, oferece produtos e
serviços dentro da lógica capitalista, sob uma roupagem de criatividade. Busca-se, aqui,
pensar o papel do corpo e as relações de poder oriundas dos saberes e fazeres
transmitidos na Roda de Capoeira através dos Mestres, ambos reconhecidos como
Patrimônio Cultural. Sabe-se, dentro de uma perspectiva foucaultiana, que em toda
relação há a presença do poder, mas qual o papel do corpo nesse jogo que está para além
da roda? Melhor, o que representa o corpo nas relações de poder no universo da
Capoeira? Tentou-se, nesse texto, esboçar um posicionamento filosófico para essa
indagação. Esse corpo negro-escravizado que se opôs ao poder de uma elite, agora,
apropria-se dele para dirigir relações, estimula prazeres para controlar outros,
disciplinando o sujeito que se recusa a acomodar-se numa atitude passiva.
INTRODUÇÃO
Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE, Especialista em Educação. Mestre
de Capoeira, Membro da Rede de Desenvolvimento Econômico e Sustentável da Capoeira no Ceará.
Acadêmico de Direito, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. E-mail:
jolimpioneto@hotmail.com
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com o corpo e o poder é um passo inicial para um filosofar brasileiro. Como diz Gomes
(2008, p. 08) “Todo filósofo cria um novo modo de enquadrar a experiência vivida, cria
uma nova forma de encarar o pensamento, a verdade – cria, enfim, uma nova verdade”.
Esse é um grito de liberdade para o brasileiro colonizado se libertar de sua fascinação
por um sistema que corrompe as relações humanas. Muitos mestres que deveriam
trabalhar a libertação, proporcionando a descoberta ou o desenvolvimento da
autonomia, preferem ser opressores e reprodutores do ideal do capitalismo, do
individualismo, da vaidade, revestindo-se de uma falsa roupagem de alturísmo.
Para melhor concatenação das ideias, optou-se por uma estrutura semelhante
a um ensaio, porém sem fugir ao rigor acadêmico, esse escrito divide-se apenas em
introdução, o denvolvimento intitulado Sobre o corpo, a disciplina e o poder no
universo da Capoeira e considerações finais.
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O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que
só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas
mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou um bem. O poder
funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam
mas estão sempre em posição de exercer este poder, são sempre centros de
transmissão. […] o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles
(FOUCAULT, 1979, p.183).
Dentro desse cenário, cresce cada vez mais a tentativa de padronização dos
corpos em sua expressão. Escolhe-se, aleatoriamente, um modelo de padronização que
se adeque às necessidades da sociedade de consumo. Vende-se bem estar, não-violência,
fraternidade como produtos auferidos de valores absolutos e pautado pelo pensamento
maniqueísta. A física corporal presente no jogo da capoeira tem tomado dimenções de
padronização nacional, quiça internacional. Confunde-se organização com
padronização, diálogo com imposição de verdades dos mais fortes.
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Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos da
soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um
instrumento fundamental para constituição do capitalismo industrial e do tipo
de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano, alheio à
forma da soberania, é o poder disciplinar (FOUCAULT, 1979, p.188).
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[...] por saber dominado se deve entender outra coisa e, em certo sentido, uma
coisa inteiramente diferente: uma série de saberes que tinham sido
desqualificados com não competentes ou insuficientemente elaborados:
saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível
requerido de conhecimento ou de cientificidade (FOUCAULT, 1979, p. 170).
[...] saber das pessoas e que não é de forma alguma um saber comum, um
bom senso mas, ao contrário, um saber particular, regional, local, um saber
diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o
opõe a todos aqueles que o circundam – que realizou a crítica (FOUCAULT,
1979, p. 189).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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RESUMO
No que diz respeito ao corpo em Benedictus de Spinoza, pensador holandês do século
XVII (1632-1677), podemos afirmar que ganha uma dimensão real à medida que se
configura como sendo uma afecção que tem origem no atributo extensão. Do contrário,
em Michel Foucault, pensador francês do século XX (1926-1984), o corpo é
propriamente matéria que tem sua expressão vital a partir do exercício das
manifestações de poder sobre ele, de maneira histórica, social e política. Com o intuito
de investigar o que é o corpo, utilizaremos como base metodológica as obras Ética
demonstrada segundo a ordem geométrica (Ethica Ordine Geometrico Demonstrata) de
Spinoza e Vigiar e Punir: Nascimento da prisão (Surveiller et Punir: Naissance de la
prison) de Foucault. Assim, como primeiro resultado temos que em Spinoza o corpo é
composto por outros corpos dos quais existem as ideias de cada uma das afecções
dessas partes na mente. Em Foucault, a priori se tem o corpo e o processo subjetivo se
produz a partir das relações micro e macro de poder. Portanto, podemos concluir que,
em Spinoza, há uma identidade corpo mente, e que quanto mais se age mais se
compreende. Em Foucault, o disciplinamento dos corpos se dá por parte das instituições
através de seus mecanismos de poder, onde corpo e Estado encontra sua manutenção um
no outro.
INTRODUÇÃO
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Digo, porém, que, em geral, quanto mais um corpo é capaz, comparação com
outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, tanto mais
sua mente é capaz de, em comparação com outras, de perceber,
simultaneamente, um número maior de coisas. E quanto mais as ações de um
corpo dependem apenas dele próprio, e quanto menos outros corpos
cooperam com ele no agir, tanto mais sua mente é capaz de compreender
distintamente.
A recíproca também é verdadeira, pois não há nada que aconteça no objeto da mente
que não seja percebido por ela. Como se verifica na EIIp12 relacionada abaixo:
Tudo aquilo que acontece no objeto da ideia que constitui a mente humana
deve ser percebido pela mente humana, ou seja, a ideia daquilo que acontece
nesse objeto existirá necessariamente na mente; isto é, se o objeto da ideia
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que constitui a mente humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo
que não seja percebido pela mente.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 1987, p. 14
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CONCLUSÃO
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existente em ato não mais que um efeito da atividade dos atributos, e por assim ser
possui um corpo além de uma mente. Portanto, o homem é um indivíduo composto por
outros corpos menores, que por meio de sua relação uniforme de movimento e repouso
mantém sua natureza.
Concluímos que o corpo ao longo de sua história marginal se estabeleceu como
problema éticoe político pelas investidas relações de poder e dominação que lhe
envolve. Condicionado a sujeição, o corpo só é útil se for submisso e ao mesmo tempo
ativo. O corpo está mergulhado num sistema político que torna suas necessidades legais,
onde a garantia de direitos biológicos está envolvida com a mecanização da vida. O
corpo vivo do condenado, agora, é mais importante que o corpo morto. Assim, mesmo
com a mudança das técnicas punitivas, sobre o corpo continuará sendo exercido
relações de poder, partindo do suposto de que não há como separar corpo e mente. O
que será percebido pela mente, foi imprimido no corpo e vice-versa.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CHAUÍ, Marilena. Espinosa: Uma Filosofia da Liberdade. Coleção Logos. 1ª Ed. São
Paulo: Moderna,1995
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RESUMO
Trabalho resultante do recorte de experiências na pesquisa, extensão e formação na
graduação e pós-graduação em enfermagem e multidisciplinar, na UECE, a partir do uso
de uma web rádio, para produção dediálogos permeados nas práticas educativas, que
gerem a promoção do cuidado com a saúde dos/das jovens escolares. Objetivou - se
problematizar os saberes sobre sexualidades dos/das jovens escolares, a partir da
interpretação de imagens, cujas expressem suas práticas de si nos cotidianos de vida.
Pesquisa - intervenção, segundo a abordagem foucaultiana do “Cuidado de si”
(Foucault, 1985). Realizaram-se oficinas educativas para construção de painéis,
conforme o que é significativo para as constituição das sexualidades desses sujeitos.
Obedeceu os aspectos éticos da pesquisa, emanados da Resolução 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde (BRASIL, 1996), tendo em vista a aquiescência do parecer liberada
em 2011, com registro no Comitê de Ética da Universidade Estadual do Ceará -
UECE/FR 4248380/2011. Os diálogos virtuais são desdobrados para o cuidado singular
e coletivo.
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INTRODUÇÃO
Percorrer a filosofia é, desse ponto de vista, uma perspectiva que vise a tencionar
os diálogos que vazem e escapem de um pensamento rígido e determinista, garimpando
caminhos que se cruzem e se descruzem, provocando um caminhar para o fora. O fora é
linha fronteiriça do pensamento dominante e não faz jogo de oposição a esse
pensamento, mas sim, escapa dele, questiona os territórios, questiona a unidade, a
inflexibilidade, andarilhando nas multiplicidades. Esse lugar, as multiplicidades, é onde
se pode ver que é possível se fazer e desfazer, construir-se e desconstruir, significar e
resignificar.
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MÉTODO
Esses dados são recorte de um projeto guarda - chuva que abrange a formação
em enfermagem e as práticas educativas de cuidado em saúde mediada pelas
Tecnologias da Informação e da Comunicação. O direcionamento para temática,
sexualidades é um eixo do projeto, que utiliza o ambiente virtual, cujo movimenta a
pesquisa de graduação e mestrado acadêmico, com a qual os jovens das escolas do
estado do Ceará, no Brasil, participam das relações de cuidado com o enfermeiro, em
dois momentos.
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O primeiro momento de contato com os/as jovens nas Escolas se deu pela
participação e interação no ambiente virtual Web Rádio AJIR, permeado nos diálogos
sobre sexualidades, no contexto da saúde reprodutiva. No segundo momento, foram
realizadas oficinas educativas com esse público nos territórios das escolas, na ocasião
da 5ª edição do evento cultural AJIRTAÇÃO, que acontece, anualmente, resultante da
parceria em rede composta pela Web Rádio AJIR/UECE, o Laboratório de Práticas
Coletivas em Saúde/LAPRACS/CCS/UECE, a Associação dos Jovens de Irajá/AJIR e a
Pró-Reitoria de Extensão/PROEX/UECE, que inclui dança, espaorte, música, oficinas
educativas, cuidado ambulatorial com a interação das juventudes da universidade com o
Irajá.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
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Essa assertiva tem como marcadores as falas dos sujeitos cuja, para representar a
interpretação sobrescrita, destaca - se “A gente gosta muito quando vocês vêm aqui. É
divertido. Eu me lembro de você no programa da web rádio. Tirei muitas dúvidas de
sexualidades” (Jovem do Grupo 3). Há jovens presentes na sala de aula, os quais
apresentaram resistência para participação da oficina temática, que pode ser demarcado
na fala “Não gosto de falar sobre isso. Acho errado” (Jovem do Grupo 2).
Reconhecer que existe nos sujeitos que existem as resistências para o diálogo
sobre o tema, convoca os profissionais a explorar, sentir e refletir a respeito de como a
família, a escola, os sujeitos das relações na vida desses jovens acolhem a temática,
pensam sobre o sexo, orientação sexual, escolha sexual, busca e expressão dos prazeres
e como isso repercute na convivência, na personificação, na comunicação emocional, no
tratamento ético entre os pares.
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desejos e prazeres que habita cada um (a), como mencionado o aspecto família, viagem,
esporte, lazer, beleza, estudos, música, dentre outros delineados nos painéis. Isso torna a
análise desses dados mais intrigante, visto que ainda existem confrontos da conjuntura
das conversações sobre as sexualidades e as relações de gêneros nas políticas públicas
em saúde e na educação vigentes.
Assim, as lentes de análise dos diálogos com essas culturas juvenis para
proposição do cuidado no tocante à promoção da saúde e da prevenção no campo de
saber da enfermagem só é possível por não haver limites para discussão e conhecimento
dos saberes e práticas pela ótica das pluralidades desses sujeitos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIA
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ANEXOS
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RESUMO
Ao analisar a existência humana Kant percebe que a mesma se desdobra em uma
dimensão pragmática, a saber: em uma disposição para a civilidade que se expressa por
meio da cultura. O percurso rumo à civilidade se dá, entretanto, em meio à manifestação
das disposições naturais do homem gerando, deste modo um conflito na constituição da
existência enquanto percepção de si e dos outros. Foucault observa que nesse processo
“não se trata de um duplo Eu, mas de uma dupla consciência desse Eu”. Para Kant esse
Eu manifesta uma finalidade última: a humanidade. Esta se manifesta na dinâmica das
ações vividas, o que permite a continuidade da história. É o que se verifica em relação
ao tempo e à memória das representações. Este trabalho busca uma reflexão sobre as
referências do tempo na vida humana. Para tanto nos deteremos em algumas questões
daAntropologia de um ponto de vista pragmática de Kant e da Gênese e estrutura da
antropologia de Kant de Foucault.
INTRODUÇÃO
Ao analisar a existência humana Kant percebe que a mesma se desdobra em uma
dimensão pragmática, a saber: em uma disposição para à civilidade que se expressa por
meio da cultura. Neste sentido, o ser humano tende a se inserir naturalmente nas
relações sociais deixando de lado a individualidade. Essa saída de si implica que sejam
aprimoradas, cada vez mais, as faculdades humanas associadas aos relacionamentos
sociais. No que concerne às disposições morais, os resultados da experiência vivida,
nem sempre apresentam o resultado desejado, isto é: o exercício das boas maneiras e
práticas pelo exercício das virtudes. Por conseguinte, vem à tona o questionamento
Aluna do Programa de Doutorado Institucional em Filosofia da UFRN/UFPB/UFPE e Professora
Adjunta da Universidade do estado do Rio Grande do Norte – UERN.
Professor orientador Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve e Professor
da Universidade Federal da Paraíba - UFPB.
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acerca das disposições naturais, se estas, não são também as mesmas que levam o ser
humano a se inclinar para o mal e não considerar a esfera do outro, da alteridade e do
altruísmo.
Como consequência da relação com o outro, no âmbito da civilidade, bem como,
da manifestação das suas disposições naturais dá-se o conflito entre civilidade e
natureza e o homem, se manifesta como um ser duplo.
Foucault observa em Gênese e estrutura da antropologia de Kant que “não se
trata de um duplo Eu, mas de uma dupla consciência desse Eu” (2011, p. 32). Mas, para
Kant, esse Eu, manifesta uma finalidade última que o perscruta no horizonte da
civilidade: a humanidade. AAntropologia do ponto de vista pragmático aponta em
relação à finalidade última do ser humano o processo de aprimoramento:
O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com
seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e
das ciências, e por maior que // possa ser sua propensão animal a se
abandonar passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele
denomina felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno de
humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca
nele. (KANT, 2006, p. 219)
1
Pelo menos da Crítica da razão pura, considerando que na antropologia, nos jogos de representação da
consciência, estão presentes os dados da sensibilidade e, neste sentido, não há espaço para uma “razão
pura” sem a estreita relação com a “razão prática”. Embora a razão persista, ela não é um controle, mas a
possibilidade de julgar e ordenar acontecimentos relativos à vida do ser humano. O próprio Foucault
afirma em Gênese e estrutura da antropologia de Kant que “É preciso deter-se um pouco. E fingir, por
cuidados de método, situar a antropologia, sem referência à crítica, como ela mesma nos convida fazer,
pois em momento algum o texto de 1798 explicitamente a supõe. Situar-se-ia ele apenas no sistema de
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O tempo aparece com referência à ação. Por isso que, ao analisá-lo de forma
positiva e jurídica, têm-se o que se denomina de maioridade e menoridade civil. Neste
sentido, o tempo entendido como uma categoria de denominação de um estado de
liberdade de ação e do direito da ação está relacionado com a maturidade e a devida
emancipação do sujeito.
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Parece, então, que o tempo não é somente uma regra para o direito positivo. Pois
que a liberdade de ação mostra que o tempo também se interliga com a evolução dos
acontecimentos na história, visto que a emancipação da mulher é um elemento da
contemporaneidade, mas Kant já observara que ela (a mulher) é pertencente ao mesmo
gênero humano e, portanto, possui o poder de defender a si mesma.
Todavia, a mulher pode fazer a opção de não defender-se por seus próprios
meios, mesmo que isso possa parecer degradante. Kant observa que tal atitude é mais
cômoda, o mesmo podendo acontecer com o povo. Assim, um grupo social pode vir a
considerar como mais cômodo se deixar governar por chefes de estado ou mesmo por
líderes religiosos, a fim de usufruir desse “suposto” benefício. Neste sentido, o tempo é
a instância em que tais representações se manifestam.
Sobre os chefes de estados, afirma Kant que estes “[...] se autodenominam pais
do povo, porque sabem, melhor do que seus súditos, como se deve fazer para que eles
sejam felizes; para o seu próprio bem, no entanto, o povo está condenado a uma
constante menoridade [...]” (2006, p. 107). E sobre o clero, estes, “[...] mantêm,
rigorosa e constantemente, o leigo em estado de menoridade. O povo não tem voz nem
juízo sobre o caminho que há de tomar para alcançar o reino dos céus. Não é preciso
os próprios olhos humanos para chegar até lá: o povo será guiado [...]” (2006, p. 107).
Em geral fazer com que os seres humanos sigam mecanicamente a direção de
outros é o meio mais seguro para o cumprimento de uma ordem legal. Mas, será que
esta ordem legal, positivada, passou pela faculdade do juízo e foi considerada sobre a
perspectiva da ideia de humanidade ou trata-se de um só da espécie que usurpa do poder
para comandar todos os demais?
Foucault considera, sobre o humano e o tempo, o que se pode esperar da
humanidade, que esta não poderia ser vislumbrada de forma integral neste ou naquele
homem, muito menos, nesta ou naquela instituição.
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Dessa forma, é possível admitir que mesmo a recordação para vir à tona possui
relação com as representações do sentido. Mas, Kant observa que o próprio ser humano
cria mecanismos - também utilizando os sentidos - para distrair o pensamento e impedir
o movimento das representações mentais dos acontecimentos na atuação do tempo, isto
é, à recordação. Conforme Kant, as leituras de romances são exemplos de acomodações.
Ora, a memória é a vida e, caso o ser humano não utilize de subterfúgios de fuga
e se decida ao enfrentamento da realidade, é possível, por intermédio do tempo, o uso da
faculdade de previsão.
A espera é também uma categoria do tempo, por isso que enquanto o
conhecimento fisiológico do ser humano trata de investigar o que a natureza faz da
espécie humana, o pragmático, por sua vez, investiga o que ele (ser humano) faz, pode e
deve fazer de si mesmo enquanto ser que age livremente.
a) Os sinais prognósticos
É por intermédio da faculdade de previsão que o ser humano emprega todas às
suas forças. Daí a importância do tempo e dos seus sinais prognósticos.
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e, ser sábio no uso prático é fazer uso dos sinais prognósticos. É não se acomodar. Têm-
se, pois que:
Exigir sabedoria, como ideia do uso prático, legal e perfeito da razão, é por
certo exigir muito do ser humano; mas nem mesmo num grau mínimo um
outro pode infundir sabedoria nele, já que tem de retirá-la de si mesmo. A
prescrição de alcançar esse fim contêm três máximas que conduzem a ele: l.
pensar por si mesmo, 2. colocar-se no lugar do outro (na comunicação com
seres humanos), 3. Pensar sempre em concordância consigo mesmo. (KANT,
2006, p. 98-99)
Não há como fugir, isto é, o melhor é resistir, ser forte, pois o tempo tanto é
aquele que coloca o ser humano no jogo das representações mentais como é o que o
coloca na comunicação com os outros.
b) A capacidade de julgar
O tempo é, até mesmo, aquele que acusa o ser humano sobre o que ele faz de si
mesmo e sobre a concordância dos seus atos, tanto consigo mesmo como na adequação
deste com a realidade.
//A idade em que o homem chega ao pleno uso de sua razão poderá ser
fixada, em vista de sua habilidade <Geschicklichkeit> (a faculdade de atuar
com arte em qualquer propósito), por volta dos vinte anos; em vista de
prudência <Klugheit> (de utilizar outros homens para os seus fins), dos
quarenta; finalmente, em vista da sabedoria <Weisheit> por volta dos
sessenta; nesta última época, porém, ela é mais negativa, para compreender
todas as tolices das duas primeiras, quando se pode dizer: "É pena ter que
morrer quando enfim se aprendeu como se poderia viver bem", e mesmo
então esse juízo ainda é raro, pois que a inclinação pela vida se torna tanto
mais forte, quanto menos valor ela tem, tanto na ação quanto no prazer.
(KANT, 2006, pp. 98-99).
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O outro é neste sentido aquele que pode ajudar a impedir os possíveis erros da
mente por meio da experiência interna. Para Kant o conhecimento do ser humano por
meio da experiência interna é de grande importância, mas à medida que este também
julga os outros, surgeuma dificuldade. Quais as garantias de que o julgamento do outro
sobre mim é adequado ou mesmo se o meu julgamento sobre o outro está correto? Kant
sugere que:
[...] o investigador de seu íntimo, em vez de simplesmente observar,
facilmente introduz muita coisa na autoconsciência, por tudo isso é
aconselhável e até necessário começar pelos fenômenos observados em si
mesmo, e somente então passar a afirmação de certas proposições que
concernem à natureza do ser humano, isto é, à experiência interna. (2006, p.
42)
Por outro lado, Foucault, embora admita que algo é pensado em tudo o que é
dito, convida o ser humano a considerar não somente a experiência interna, mas o que
ele próprio vai denominar de pensamento exterior, pois que o fim do pensamento é a
prática. A prática é a execução do pensamento. Nessa perspectiva também Kant afirma
e sugere que:
O surgimento da modéstia pela necessidade de unificar num mesmo
pensamento, engenho e profundidade, penetra por si mesma na mente
daquele que se vê convocado por algo dessa natureza, isto é, vivificar as
ideias da razão necessárias para o conhecimento em assuntos importantes, de
modo que, surge a desconfiança de seus talentos e, com ela, a desconfiança
de que não podia decidir sozinho, mas de que deve levar em conta também os
juízos dos outros. (KANT, 2006, pp.120-121).
CONCLUSÃO
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Embora não seja competência da pragmática nos dar a conhecer como o objeto é
em si, ela nos permite perceber as estruturas por oposição aos sistemas fechados,
fazendo emergir uma abertura viva à história, aos fatos e aos acontecimentos.
É preciso, neste sentido, contestar nas próprias análises históricas o uso da
descontinuidade, a definição dos níveis e dos limites, a descrição das séries específicas,
a revelação de todo o jogo das diferenças, posto que, essas dimensões só são
perceptíveis no confronto com o outro. Isto indica que o Eu, como ser pensante, como
ser sensível, mas também como objeto da intuição empírica interna, isto é, enquanto
afetado internamente por sensações do tempo, simultâneas ou sucessivas, se reconhece
como ser no mundo que efetiva um fim maior, a saber: a humanidade.
É neste sentido que considerando as observações de Kant e de Foucault,
tendemos a aceitar que o vínculo do “Eu” com o “outro” é um exercício e não
necessariamente um sistema fechado. Assim, só é aceitável a antropologia como
“sistemática” como manifestação de um princípio organizador, na medida em que
empresta sua coerência ao todo do pensamento crítico retomando as relações entre
intuição e entendimento, entre natureza e civilidade, por meio da ideia de humanidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RESUMO
Neste trabalho, buscamos fazer uma reflexão sobre a disciplinarização dos corpos,
especialmente analisando a sua construção físico-simbólica que impactaram os olhos da
moral patriarcal, monogâmica, heterossexual, branca e Cristã. Pensando, assim, como o
controle dos corpos é olhado pela cidade em sua construção panóptica, dos gestos de
repúdio de seus observadores até seus discursos de disciplinamento. Para isso,
buscamos partir nossa reflexão através de resquícios do passado contidos no Jornal A
Ação, criado na cidade do Crato e pertencente à Diocese do Crato. Procuramos verificar
como o toque dos corpos possuidores de um mesmo órgão sexual escandalizou e deixou
perplexa essa sociedade que é defensora dos valores cristãos, da sacralização do corpo e
da família monogâmica. O corpo, em uma demonstração de subjetividade, está imposto
pelo assombramento da norma, pelo predomínio da sexualidade heterossexual e das
normatividades cristãs, apesar de que o desejo pelo falo, pela penetração e o desejo por
tocar o outro seja presente, na exterioridade é visto como imoral, como pecado e
doença. A sexualidade é, para Foucault, uma construção social e histórica e os
dispositivos construídos para a legitimação de um modelo específico dela colocou as
outras formas de perceber e sentir o outro como anormais e patológicos. Como, então,
se construiu dispositivos discursivos de defesa da não realização nessa cidade, nos anos
de 1970, do Congresso de Homossexuais, levando em consideração que ela é sede da
Diocese da Igreja Católica na região do Cariri cearense?
Mestrando em História Social pela UFC e bolsista da Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa
(FUNCAP).
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O sexo, para Foucault (1988), não passou somente por essa repressão e pensá-
la dessa forma seria simplificar essa questão, ou seja, colocá-la dentro da percepção
visual da disciplina física do corpo. Mas também e de forma mais intensa a sua
disciplina se dera pela sutileza do discurso, que o tornou presente como proibido e
estimulando, em uma reação inversa ao pensado. Suas imagens exteriores enquanto
ausentes de enunciação tornam-se presentes, em sua busca de proibir o desejo através do
saber que possibilitaria instrumentos de biopoder para controlar e construir o idealizado
por um grupo social.
Dessa forma, esse filósofo relutou em falar do sexo como repressão, pois ele é
expresso continuamente enquanto lembrete, como também é traduzido em discurso
como forma de não incentivo, de colocar o seu lado pernicioso, imoral, doentio, etc.
Essa sutileza do disciplinamento e sua utilização da imagem do colocado como errado
fora eficaz. Essas formas de pregação sobre o sexo foram disseminadas e tornaram-se
complexas, passando da ideia de pecado da carne Cristã à saúde físico-corporal, da
recomendação espiritual ao veredito científico. ParaRicoeur (2013), a construção
cultural da sociedade ocidental, em sua relação de confessar-se ao Deus cristão, estava
marcada pela consciência de culpa, pela constituição destas “camadas de experiências”:
a culpabilidade, relação do homem com Deus; a mancha, como nódoa que tem origem
fora do homem; o pecado, a falta. Para ele,
1
O Jornal A Açãofoi criado em 1939 pela diocese do Crato. Além do projeto de civilidade cristã, esse
periódico, almejava lutar contra as ideias comunistas e divulgar as defendidas pela Encíclica Rerum
Novarum. Essa, por sua vez, reforçava o direito a propriedade e o modelo de família monogâmica e
patriarcal. Nele, além das manchetes relativas à religião Católica e as divulgações pertinentes a Diocese
do Crato, temos colunas de matérias feitas sobre a vida ordinária do Cariri, os acontecimentos que
marcaram as cidades dessa região e da Diocese.
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instrumentos diferentes, o corpo social inteiro foi dotado de um “copo sexual””. (1988,
p.120).
Nesse processo ele fora sacralizado pelas influências Cristãs, arraigadas pelos
costumes judaicos e greco-romanos. Nesse panorama histórico de datas não fechadas
mais de um processo descontínuos e cheios de fluxos, firmaram no XIX a ideia de
família burguesa. Essa, por sua vez, fora disciplinada pelos discursos da ciência,
bastante carregada pelas ideias iluministas de progresso, que procuraram definir a
infância e os procedimentos de como construir o homem do futuro, empreenderam
cuidar do corpo da mulher e do homem, de suas relações a dois, em sua vida social e
íntima, e, além disso, daqueles que fugiam a essa regra.
Para Foucault (1988), o corpo no XVII era visto como máquina, no XVIII
como espécie e reforçado enquanto biopoder no XIX. A própria sociedade, nessa época,
era vista como um corpo, um organismo. Por exemplo, até as chamadas ciências sociais
criam dispositivos de disciplina de harmonia dessa ideia da sociedade como organismo,
destacamos o sociólogo Durkheim (2007). Para ele, a fim de ter o equilíbrio em suas
partes, para o seu bom funcionamento era necessário normatizá-la. Ou seja, o corpo
social enquanto totalidade era constituído de microcorpos que possuíam suas
individualidades e desejos, mas ligados pela coletividade, dimensão enfatizada nessa
época. Portanto, segundo Durkheim (2007), se um dos galhos da grande árvore da
sociedade fosse contra as normas e as regras normalizadoras de seu complexo orgânico,
era considerada uma anormalidade deveria ser excluído e cortado antes de contaminar
todo o organismo.
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Essa estória é importante, nessa reflexão, para pensar que quando Gregor se
metamorfoseou, foi colocado na reclusão social, preso em seu quarto. Sua imagem, para
os demais, causava repúdio, medo e provocava um desequilíbrio dos “fundamentos da
existência em si” (BACKES, 2008, p.09) nos que os observava, em seus padrões de
beleza, de vida, de sonhos etc. Ele, então, é enunciado pelo discurso dos pais e ao
mesmo tempo preso em uma trama de solidão e esquecimento que o levou a morte e a
questionar os valores que acreditava.
Essa metamorfose do corpo está para além das transformações biológicas, está
fincada nos fluxo de desejos e delimitada aos valores da comunidade em que esse corpo
fez parte. Pensar os corpos é ver essa somaticidade de várias maneiras, é usá-la a partir
dos desejos e escolhas, é perceber que sua mutação não se dá apenas no
2
Para Backes, “o realismo de Kafka é mágico, mas sóbrio ao mesmo tempo; seu humor às vezes é
grotesco, outras vezes irônico, mas no fundo sempre carregado de seriedade. Sua prosa é dura, seca e
despojada”. (2008, p.09).
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O corpo dos homossexuais não questiona por si só, eles são expressões de
impacto quando em sua performance de demonstrar outras formas de amar, enquanto
demonstração da diferença dos padrões vigentes, do tocar-se em um ato de carinho
ferindo a relação binária pautada pelo órgão genital e pelas convenções sociais. A
normatização dessas metamorfoses e performances foram e são controladas no século
XX e XXI. Para esse corpo são eleitos os guetos das boates, as festas em que o falo e a
imagem do afeminado são utilizados enquanto instrumento de capitalização, de
consumo e fetiche, mas depois desse uso voltam a serem relegados aos lugares
escondidos dos olhos dessa sociedade patriarcal-heterossexual para seus transes e
orgasmos.
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desejos em torno do falo, do toque entre homens, das caricias entre pessoas do sexo
masculino é liberado. Isso acontece com homens ditos viris e “pai de família”. Nesse dia
a metamorfose, é expressa pelas roupas, pela pintura do corpo, pelos trajetos de
purpurina em sua teatralização nas ruas, nas performances, que fortalecem estereótipos,
e simboliza também uma fuga do padrão fixado do modelo de homem imposto pela
sociedade patriarcal masculinizada. O toque das virgens, ao mesmo tempo é uma festa,
onde o brincar e o divertisse, demonstra uma carga de preconceito, sutileza da
disciplina, por exemplo, de que “macho”, no sentido de natureza-biológica, não é
afeminado e as características exposta pelas encenações nas ruas dessa cidade, naquele
dia, são enunciações discursivo-simbólicas de uma identidade marginal, não aceita,
objeto de chacota, de carnaval.
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Para um estudo do Problema, o Crato não seria a cidade indicada, pois aqui,
como em outras cidades do interior do Nordeste, não dispomos de recursos
técnicos e científicos para um estudo aprofundado do homossexualismo,
visando sua valorização como pessoa humana. O pederasta ou homossexual
merecem os nossos repeito. Eles são vitimas de uma educação falha ou de
defeitos sexuais. As chamadas bonecas devem procurar os grandes centros,
onde há bons psiquiatras [...] O próprio promotor do encontro já foi preso.
Alguns cratenses estão lutando por uma oportunidade que outras pessoas
estão chutando. O Crato precisa, sim, é de mais uma Faculdade, de ampliação
de nosso comércio e de homens que desejem realmente batalhar pelo seu
desenvolvimento (JORNAL A AÇÃO, ano XXXII, n. 1370, 29 de abril de
1972, p.03).
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Ela (re) organizara, então, a polícia do disciplinamento para tornar essas vozes
marginais que ressoava nos guetos para permanecerem lá, para não excitar contra o
disciplinamento dos seus filhos, para não mostrar o diferente, através do corpo em
fluxo, dos abraços não proibidos, dos orgasmos múltiplos. Será que o ver movimentaria,
nessa sociedade sufocadora, os seus filhos para essa experiência sexual? Será que ela
motivaria a transgressão, a desterritorialização dessa identidade castradora do desejo?
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (v.1). Rio de Janeiro: Ed 34,
1995.
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SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na contemporaneidade, os ideais da felicidade são a cada dia mais buscados, ao
mesmo tempo em que são também cada vez mais requisitados e convocados. Ao se falar
em felicidade nos tempos correntes, não podemos deixar de lado a sua propagação por
meio do fenômeno denominado por Adorno e Horkheimer como Indústria Cultural. O
termo, utilizado pela primeira vez no capítulo O iluminismo como mitificação das
massas no ensaio Dialética do esclarecimento, publicada em 1947, refere-se, em suma,
a transformação da cultura em mercadoria nas sociedades industriais capitalistas.
A indústria cultural e a cultura de massa1 são fenômenos interligados que juntos
correspondem não mais somente ao desenvolvimento desenfreado dos bens materiais,
mas a um segundo tipo de industrialização, agora a dos espíritos. São fenômenos
culturais que buscam a colonização da subjetividade dos sujeitos, objetivando penetrar
em seus anseios, resolver os seus medos, lidar com as suas insatisfações.
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Membro do Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e
Práticas Sociais, atuando na linha Mídia, Discursos e Tecnologias. Email:
geilson_fernandes@hotmail.com.
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) e do Departamento de
Comunicação Social (DECOM) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Líder do
Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais. Email: marciliamendes@uol.com.br.
1
Ponderações devem ser feitas, vale ressaltar, com relação a denominação “cultura de massas”, pois, a
priori, este termo torna-se limitado e limitador ao conjugar as formas culturais das camadas populares,
possuidoras de diversas nuances e características distintas em um mesmo espaço – o da massa.
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2
O poder da vontade (1865), O Caráter (1875) e O dever (1880).
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O livro Agapinho: ágape para crianças, do Padre Marcelo Rossi (Editora Globo, 2012) é um exemplo
de títulos de autoajuda voltados para o público infantil.
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da felicidade, em que existe um verdadeiro império dos manuais de autoajuda, nos quais
a manifestação da certeza é um dos traços semânticos.
A literatura do gênero é formada por manuais e textos práticos, os quais indicam
métodos e formas de bem viver, obter sucesso material – a riqueza, trabalho, etc. –, e
sucesso pessoal – a felicidade, o emagrecimento, o encontro de parceiros amorosos,
superação da timidez, etc. Também podem ser encontrados neste gênero relatos
pessoais, com histórias de vida de sucesso – material e pessoal – apresentando as
maneiras utilizadas para superar as adversidades e torna-se uma “nova pessoa”
(RÜDIGER, 1996). Nas obras, o pressuposto básico é a noção de que o bem estar
subjetivo será alcançado através de um “condicionamento positivo” e disciplinamento
pessoal.
São livros que atendem as demandas latentes e obtém, por consequência, grande
sucesso de público, tendo-se em vista o seu “pedagogismo”, isto é, mensagens que
visam adequar o sujeito leitor aos discursos dominantes, tranquilizá-los por meio dos
sentidos produzidos. Os títulos da literatura de massa, e aqui enquadramos a autoajuda,
são manifestações de um discurso que é resultante das tendências e exigências geradas
pela sociedade moderna. Uma prova disto, defende Sodré (1988) é que a indústria
editorial responsável pelas publicações desse tipo investem continuamente neste nicho
já há algum tempo, sem ainda demonstrar ter sofrido prejuízos.
Basta olharmos a quantidade de títulos lançados para repararmos esta questão.
No Brasil, o autor mais lido do país nos últimos dez anos, segundo o Jornal Folha de
São Paulo, por exemplo, foi Augusto Cury, escritor conhecido por suas inúmeras obras
de aprimoramento pessoal. Seus livros já foram publicados em mais de 60 países, sendo
traduzido para diversos idiomas e vendendo mais de 16 milhões de exemplares somente
no Brasil.
Das muitas obras do autor, Treinando a emoção para ser feliz (2007) obtive
grande sucesso e repercussão no seu período de lançamento, ficando por algum tempo
entre as obras mais vendidas do país, sendo ainda nos dias de hoje largamente
comercializadas e consumidas, em seus mais diversos formatos.
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Como outrora Foucault analisou em Vigiar e Punir (2003)
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como se deram a formação dos costumes para a constituição do que hoje se denomina
como civilização. Elias (1994) também promove reflexões sobre os modos de controle
dos sentimentos e emoções ao longo da história, defendendo que as formas hoje
existentes são resultantes de um processo civilizatório, e não algo natural do homem. A
partir da ótica de Elias (1994), podemos dizer que estas formas civilizatórias das
emoções não cessaram, tendo em vista a partir das descontinuidades o surgimento de
novos modos de controle, entre os quais notamos agora os discursos da autoajuda.
A partir da perspectiva de civilização das emoções emerge mais uma vez o
sentido da diferença entre os que “civilizam” as suas emoções e os que não a civilizam,
ficando estes últimos em um lugar tido como fora da ordem. Ainda em relação a ideia
de processo civilizatório de Elias (1994), Giddens compara em A transformação da
intimidade (1993, p. 75) os manuais de autoajuda aos manuais medievais de conduta
analisados por Elias, propondo indiretamente a possibilidade do fenômeno da autoajuda
poder ser parte de um novo processo civilizador.
No que concerne de modo particular à governamentalidade, é uma preocupação
expressa por Foucault que para poder governar os outros e as suas vidas, faz-se
necessário primeiro saber governar a si mesmo. Este aspecto se envolve com a ética dos
sujeitos, as suas relações de si para consigo que serão melhor trabalhadas em tópico
posterior. Com a difusão dos programas e tecnologias da felicidade, Binkley (2010)
percebe que nos governos neoliberais, a felicidade é de responsabilidade total dos
indivíduos, cabendo a este o governo de si mesmo a fim de aumentar as suas chances de
felicidade. O sujeito é tornado um empreendimento, passível de muitos
aperfeiçoamentos realizados por ele mesmo em prol do seu desenvolvimento e melhor
desempenho. Um autogoverno imerso em outras governamentalidades.
Tanto no poder pastoral quanto nas artes de governar desenvolvidas pelo estado,
são perceptíveis como a vida em todas as suas instâncias passa a ser o principal meio e
objeto das relações de poder. As relações de poder ganham dimensões outras,
demarcadas pelas suas instâncias histórico-sociais de produção. Atrelada à perspectiva
de governamentalidade, saem dos territórios de entrincheiramento os biopoderes, em um
cenário em que o local e o global confundem-se e ganham a cada dia novas dimensões.
A vida e a morte tornam-se questões inerentes à concepção de biopoder, tipo de
poder que visa o gerenciamento da vida e do corpo social como um todo. Sobre o
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os. O disciplinamento se faz não mais somente de forma individual, mas pelo
gerenciamento de grupos, sociedades inteiras, direcionando-as segundo as condutas
colocadas pela governamentalidade.
Tais condutas produzem aquilo que Prado (2013) denomina como convocações
biopolíticas. Conforme o autor, baseando-se nos preceitos foucaultianos da biopolítica,
as convocações se caracterizam pela correspondência à uma demanda latente, induzindo
a sua expressão por meio de um querer cultural. Desta forma, sendo a felicidade um
desejo inerente ao indivíduo, por meio de estratégias do mercado, esta passa a ser cada
vez mais convocada sob o signo de produtos – dos quais destacamos a autoajuda,
despertando um sentido de necessidade, como se o mundo e a própria vida já não
parecesse ser o que era, incitando novas formas de viver, ou seja, somos convocados
biopoliticamente a sermos felizes e a sociedade e os próprios sujeitos passam a se
constituir perpassados por este aspecto, e a literatura de autoajuda é somente uma das
inúmeras ferramentas disponíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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RESUMO
Benedictus de Spinoza (1632/1677) em sua obra, a Ética (Ethica) irá demonstrar a
servidão compreendida no campo ético efetivo dos indivíduos, onde a incapacidade de
regular e refrear os afetos influenciará na variação da potência de agir dos indivíduos,
na relação psicofísica corpo/mente, mas não havendo uma relação hierárquica. Michel
Foucault (1926/1984), por sua vez, em sua obra Vigiar e Punir: Nascimento da
prisão (Surveiller et Punir: Naissance de la prison) analisará as diferentes formas de
punições sobre o corpo, pois o corpo, como bem ressalta o autor, está "mergulhado num
campo político". Com o intuito de investigar de que maneira os dois pensadores
entendem como se dar a sujeição dos indivíduos por intermédio do corpo, o presente
artigo tem como objetivo expor a concepção de servidão e poder nos respectivos
autores. Para isso, tomaremos como referencias principais as obras: Ética e Vigiar
e Punir. Sendo assim podemos concluir que: ambos os pensadores ao pensar a sujeição
dos indivíduos buscaram compreender de que modo o corpo está configurado. Spinoza
ao pôr a mente e corpo de uma forma não hierárquica entende que quanto mais um
corpo é capaz de agir sobre um número determinado de coisas mais sua mente é capaz
de pensar, e assim o homem é mais ativo em suas ações. Foucault irá perceber que
sujeição dos indivíduos será compreendida por meio dos disciplinamentos dos corpos,
isto é, nas formas de punição e corretivos.
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há nada fora dele tudo é Deus, isto é, entendido como uma infinidade de expressões
dele. Ora esse plano da substância é o da imanência, que nada escapa. De modo que tal
plano tem sua influência nos diversos campos na filosofia de Spinoza. E assim veremos
que esse plano da imanência tem seus resultados na sua concepção de
mente/corpo, sobretudo, em sua importância na compreensão da servidão humana.
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Com efeito, os corpos não se diferenciam pela substância, mas sim pela relação
de movimento e repouso, no entanto, como se dá essa relação entre os corpos? O
movimento e o repouso ocorrem nos encontros dos corpos que se determinam entre si
ou ao movimento ou ao repouso, e o resultado desses encontros são as afecções que
envolvem tanto a natureza do corpo afetado quanto a natureza do corpo que afeta.
[...] Por exemplo, A está em repouso, e não leva em conta outro corpo que
esteja em movimento, nada pode disser do corpo, a não ser que estava em
repouso. Se ocorrer, posteriormente, que o corpo A se ponha em movimento,
isso certamente não pode ter si dado porque ele estava em repouso: dessa
última situação, com efeito, nada poderia se seguir se não a permanência em
repouso do corpo A. Se, ao contrário, supões que o corpo A se move, sempre
que levo em conta apena A, nada poderemos afirmar sobre ele, a não ser que
se move...2
Esses afetos têm seu papel no spinozismo naquilo que podemos chamar de ética
dos afetos que constitui na variação da potência da ação humana em virtude nos afetos
de alegria e de tristeza, sobretudo na parte III da Ethica. Para tanto, iniciaremos pelas
primeiras definições a de causa adequada e inadequada: Def1: Chamo causa adequada
aquela que cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma. Chamo
1
SPINOZA, Benedictus de. Ethica. 2007, p. 99.
2
Ibid. , p. 99.
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de causa inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cuja o efeito não pode ser
compreendida por ela só. E partindo dessas definições temos outra que completa a
nossa explicação que diz:
Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo que somos a
causa adequada, isto é, quando em nossa natureza se segue, em nós ou fora
de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só.
Digo do contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo ou quando de
nossa natureza se segue algo de que não somo causa senão parcial. 3
Agir e padecer diz respeito aos tipos de afecções que se sucede em nós, ora,
como é posto pela EIII Def2vemos que os afetos e as afecções do corpo humano é
aquilo que nos possibilita aumentar ou diminuir, estimular ou refrear, a nossa potência
de agir, e perceber, e imaginar. E ainda na explicação da mesma, temos que quando
somos causa adequada dos nossos afetos, compreende-se assim que agimos do contrário
quando não somos ativos em nossas afecções estamos no reino das paixões.
Aqui temos uma diferenciação desse tema de Spinoza, pois não trata de evitar os
afetos ou domesticar o homem por uma educação contra os afetos, pois os afetos são
necessários a natureza humana. Porque assim como as intemperes são necessários a
natureza, do mesmo modo os afetos são necessários ao homem. De modo que não há
como evita-los, sendo assim o que podemos fazer é regula-los ou refreá-los.
3
Ibid. , p.163.
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como fruto da imaginação no qual o homem, segundo Spinoza, passa a julgar as coisas
de forma confusa, julgando assim que há um Deus transcendente que crias as coisas do
nada, e que a mente está separada do corpo. E que caba ao corpo está ao serviço da
mente.
Sendo assim como já ressaltamos aqui: quanto mais um corpo é capaz de agir
sobre um número de coisas, mais a sua mente é capaz de pensar um número maior de
coisas, ora a mente está unida ao corpo e não o determina, pois ambos os modos são
expressão da mesma realidade imanente que é Deus, de modo que não há uma
superioridade de um sobre o outro. Podemos então concluir que o corpo, em Spinoza,
tem um papel importantíssimo na submissão dos indivíduos, pois na medida que o
sujeito passa a conceber o seu corpo do modo confuso, isto é, sem conhecer as causas
que o determinada a agir. Ele passara a conceber a realidade e suas ações de modo
confuso não sendo, assim causa adequada.
Foucault no capítulo I “Os corpos dóceis” da terceira parte de sua obra Vigiar e
Punir irá delinear sobre o corpo de como essa parte do homem vai se configurar no
início do século XVII com toda as suas nuanças, de modo que todas as características
do corpo irão formar, como o próprio autor ressalta “uma retorica corporal”. Exemplo
disso são as diversas posturas e formas que as instituições e as tendências modernas
estéticas postulam a maneira mais adequada ou certa do corpo humana. Assim era então
a figura do ideal de soldado, usado como exemplo de Foucault, alguém que antes de
tudo era reconhecido de longe, pois o seu corpo era o brasão de sua força, a imagem
irrefutável de sua virilidade, prova de um bom recruta.
4
Foucault, Michel. Vigiar e Punir. 1987, p. 117.
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constata Foucault é que no final do século XVIII o camponês que até então lhe era
reservado as atividades do campo foram expulsos e agora lhe foram atribuídas a
fisionomia de um soldado.
É claro, como foi aqui já ressaltado, isso não foi resultado de um processo
individual, mas sim dos diferentes tipos de instituições reguladoras da sociedade,
fabricando assim os soldados, atribuindo a aquele corpo características que atendam a
interesses estranhos, como uma espécie de massa de modela que se molda na medida
que lhe impõe. Assim, tal ação tacitamente percorre toda a extensão do corpo de
maneira calculada e silenciosa se tornando senhor dos indivíduos, mudando seus os
hábitos e costumes.
Ora, essa empreitado sobre o corpo tem suas razões precisas. Segundo Foucault,
a época moderna, que o autor chama de período clássico, foi o momento que se viu o
corpo como “objeto e alvo de poder” “Encontramos facilmente sinais dessa grande
atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que
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Segundo Foucault, essa concepção do corpo foi constituída de duas formas: uma
forma como anátomametafísica, onde temos Descartes como um dos pensadores
responsáveis que ajudou na construção dessa concepção, e que mais tarde tal concepção
foi reproduzida por outros pensadores e médicos. E a outra concepção, é o técnico-
Político. Essa construção da figura do corpo não tinha só razões de ilustrar o
organismo, no caso o corpo, mas também de tornar os corpos, compreendido agora
como autômatos, com bonecos políticos.
A peculiaridade que o séc. XVIII traz sobre a forma de submeter o corpo é a sua
forma detalhada, como por exemplo, a forma de controle. Vejamos nas palavras de
Foucault:
[...] controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como
se fosse uma unidade indissociável mas de trabalha-lo detalhadamente; de
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível de mecânica
[...] O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos
significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia,
a eficácia dos movimentos, a coesão se faz mais sobre as forças que sobre os
sinais.5
Esse novo método que agora incide sobre o corpo uma manipulação minuciosa,
uma sujeição de suas forças, que enquadra o corpo na relação docilidade-utilidade,
Foucault chama de “disciplinas”. Vários desses tipos de disciplinas já existiam em
muitos locais, como bem relata Foucault: “nos conventos, nos exércitos, nas oficinas”,
mas será no séc. XVIII que tal prática será inserida como formulas gerias de dominação.
5
Ibid. , p. 118.
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Essa nova forma de dominação dos corpos se diferencia das diversas formas já
vista: a da escravização, porque não se fundamenta na apropriação do corpo, da
domesticação, onde se predominava a vontade singular do patrão, a da vassalagem e
outros.
O carácter singular que Foucault percebe dessa nova prática nomeado por
disciplina é dado quando tivemos uma compreensão do corpo não só visto em sua
potencialização e nem em sua total sujeição. Mas sim engrenado num relação que no
mesmo mecanismo esteja que tanto mais obediente será tanto mais útil, e assim vise e
versa.
Outra descoberta bastante utilizada no séc. XVIII como prática na disciplina dos
corpos ressaltada por Foucault é a estrutura de poder no qual o corpo está inserido:
CONCLUSÃO
Partindo dos pressupostos aqui levantados podemos deduzir que, ao debruçamos
sobre a questão do corpo vemos o quão tal questão nos leva a infinitos problemas quer
no campo ético quer no campo político, pois se tratando do corpo percebemos que não
6
Ibid. , p. 119.
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só nos tempos de hoje inventamos e reinventamos o modo de como o vemos. E que tal
questão, por sua vez descortina tantas outras questões que antes se manifestava de modo
velado, confuso e oculta. De maneira que Spinoza, um pensador que sentiu o peso do
filosofar, pois sua vida e o seu pensamento caminharam estreitamente tão próximo um
do outro. Pensador do século XVII numa comunidade judaica de Amsterdã, marcada
por severas punições ao corpo. Exemplo disso os próprios judeus da comunidade que ao
infligirem as leis fundadas nas sagradas Escrituras eram punidos com castigos severes.
Como no caso do Judeu Uriel da Costa, que ao preferir ideias contrarias as autoridades
religiosa foi castigado com 32 chibatadas, posto num uma escadaria de sinagoga coberto
por cinzas e pisoteado por membros de sua comunidade. Tal repreensão resultaria então
no suicídio de Uriel. Sendo assim, todo aquele aparato ideológico fundamentado pela
teologia daquela sociedade vivida por Spinoza será refutado. A superioridade da mente
sobre o corpo era uma das teses que legitimavam essa espécie de punição. Ora o Deus
sive natura, é um Deus sustentado pelo esforço do crivo da razão onde temos a
finalidade a felicidade dos homens livres. De modo que Deus é realidade imante
produzido a si mesma sem uma ordem hierárquica das coisas de maneira que o corpo e
mente enquanto expressões dessa mesma realidade não estão numa relação de
subordinação. Pois, segundo o nosso pensador, o corpo é tão capaz de muitas coisas
assim como a mente também é potencializada a pensar várias coisas de várias maneiras.
Evitando assim a confusão da servidão. Foucault, por sua vez, analisando o corpo irá
perceber que essa estrutura tão complexa do homem compõe aquilo que o autor chama
de “retorica do corpo”, revelando assim as várias forças que incidem sobre o corpo.
Como por exemplo, ao decorrer do tempo o corpo do camponês foi ganhando formas
robustas de um soldado se adequando assim as necessidades exteriores. Segundo
Foucault, essas transformações do corpo não são dadas pelos indivíduos mas sim pelas
instituições da sociedade que no percorrer da história foram modificando o corpo. Essa
manipulação tem com finalidade o “automatismo dos hábitos” tornado assim os
indivíduos subservientes, de modo que o corpo passa a ser uma espécie de centralidade
do poder na sociedade de suma importância.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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