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Reitor

José Jackson Coelho Sampaio

Diretora do Centro de Humanidades


Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos

Vice-Diretor do Centro de Humanidades


Eduardo Jorge Oliveira Triandópolis

Coordenador do Curso de Filosofia


Eduardo Nobre Braga

Vice-Coordenador do Curso de Filosofia


Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior
III COLÓQUIO DE ESTUDOS FOUCAULTIANOS:
Ressonâncias contemporâneas de Michel Foucault

Comissão de Organização
Cristiane Maria Marinho (UECE); Kácia Natalia de Barros
(UECE); Roberta Liana Damasceno (UFC); Raquel Rocha
(UECE); Osmar Melo (UECE); Nathanael Barbosa
(UECE); Emilson Lopes (UECE); Kácia Natalia de Barros
(UECE); Jamilly Fonseca (UFC); Tainan Garcia (UECE);
Rafaella Nunes (UECE); Anna Maria Pontes (SEDUC/CE);
Elias Alex Pereira de Sousa (UECE); Paulo Victor
Fernandes (UNIFOR); Raquel Vasconcelos (UFC);
Dorgival Fernandes (UFCG).

Comissão Científica
Cristiane Maria Marinho (UECE); Diany Mary Falcão
(UECE); Dorgival Fernandes (UFCG); Elias F. Veras
(UFSC); Raquel Vasconcelos (UFC); Roberta Liana
Damasceno (UFC); Ursino Neto (UFC); Ivan Melo
(UNILAB).

Caderno de Programação
Anna Maria Pontes (SEDUC/CE); Elias Alex Pereira de
Sousa (UECE); Paulo Victor Fernandes (UNIFOR).
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO p. 08

ALGUMAS RESSONÂNCIAS DAS REFLEXÕES DE FOUCAULT NOS ES-


TUDOS PÓS-COLONIAIS p. 09
Alessandra Estevam da Silva
Universidade Federal do Ceará

A COMPLEXIDADE DA CULTURA DE SI p. 22
Hedgar Lopes Castro
Universidade Estadual do Ceará

A NOÇÃO DE MODERNIDADE NA OBRA AS PALAVRAS E AS COISAS DE


MICHEL FOUCAULT p. 38
Hipácia Rocha Lima
Universidade Estadual do Ceará

A FACE FEMININA DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: ESPAÇOS E


VIVÊNCIAS p. 54
Régia Maria Prado Pinto
Universidade Estadual do Ceará

A DIMENSÃO POLÍTICA DO ÉTHOS PARRHESIÁSTICO p. 66


Rogério Luis da Rocha Seixas
Universidade de Barra Mansa

A RELAÇÃO CORPO-ALMA COMO FORMAÇÃO HUMANA: UM PARA-


LELO ENTRE SPINOZA E FOUCAULT p. 80
Carlos Wagner Benevides Gome
Universidade Estadual do Ceará

A TEORIA HUMEANA A LUZ DA EPISTÉMÊ CLÁSSICA DE MICHEL FOU-


CAULT p. 92
Eliene Cristina P. Fernandes
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
Marcos de Camargo Von Zuben
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

AS RELAÇÕES DE PODER NO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT


p. 103
Janine Honorato de Aquino
Universidade Estadual do Ceará

O CONTROLE E A DISCIPLINA DOS CORPOS: UM DIÁLOGO ENTRE


FOUCAULT E DELEUZE p. 113
Assis Daniel Gomes
Universidade Federal do Ceará
SUMÁRIO

“DE OUTROS ESPAÇOS”: O LUGAR DA HETEROTOPIA p. 126


Raquel Bernardes Campos
Universidade de Brasília

CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT PARA OS


ESTUDOS QUEEER p. 131
Francisco Valberdan Pinheiro Montenegro
Universidade Federal do Ceará

Pablo Severiano Benevides


Universidade Federal do Ceará

Heloísa Oliveira do Nascimento


Universidade Federal do Ceará

MICHEL FOUCAULT: UM PENSAMENTO QUE AGE p. 145


Emanuel Santos Sasso
Universidade Estadual do Ceará

É O VALE QUE DIZ O CURSO OU SÃO OS DISCURSOS QUE DIZEM O


(QUE) VALE? A IDENTIDADE DA ILHA-PÁTRIA (LIMOEIRO DO NORTE) E
OS RI(S)OS DE FOUCAULT p. 156
José Wellington de Oliveira Machado
Universidade Federal do Ceará

GENEALOGIA, HISTÓRIA, DISCURSO: CONTRIBUIÇÕES DE FOUCAULT


PARA UM PROJETO CRÍTICO DA CULTURA p. 174
Karliane Macedo Nunes

FORMAÇÃO DISCENTE-DOCENTE E O CUIDADO DE SI: APRENDIZA-


GENS EM PESQUISA p. 182
Késsia Fayne Barbosa Cavalcante

Marconildo Soares e Silva

Dorgival Gonçalves Fernandes


Universidade de Campina Grande

FOUCAULT, A PARRESIA E O USO CORAJOSO DA PALAVRA p. 189


Luiz Celso Pinho
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

O CORPO E SUA RELAÇÃO DE PODER NO UNIVERSO DA CAPOEIRA


p. 201
José Olímpio Ferreira Neto
Universidade de Fortaleza
SUMÁRIO

O PROBLEMA DO CORPO EM BENEDICTUS DE SPINOZA E MICHEL


FOUCAULT NAS OBRAS ÉTICA E VIGIAR E PUNIR p. 213
Adriele da Costa Silva
Universidade Estadual do Ceará

Henrique Lima da Silva


Universidade Estadual do Ceará

PRÁTICAS EDUCATIVAS COM AS JUVENTUDES ESCOLARES SOBRE


SEXUALIDADES: PROBLEMATIZANDO O CUIDADO DO ENFERMEIRO
NOS ESPAÇOS VIRTUAIS p. 222
Raimundo Augusto Martins Torres
Universidade Estadual do Ceará
Gislene Holanda de Freitas
Universidade Estadual do Ceará
Samuel Ramalho Torres Maia
Universidade Estadual do Ceará
Sayonara Oliveira Teixeira
Universidade Estadual do Ceará

REFERÊNCIAS AO TEMPO NA VIDA HUMANA EM KANT E FOUCAULT


p. 235
Maria Veralúcia Pessôa Porto
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
Iraquitan de Oliveira Caminha
Universidade Federal da Paraíba

A SERPENTE BESLICOU O FALO DE ADÃO: SILÊNCIO, DISCIPLINA E OS


ORGASMOS DOS CORPOS p. 246
Assis Daniel Gomes
Universidade Federal do Ceará

UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A LITERATURA DE AUTOAJUDA:


RELAÇÕES DE PODER E AGENCIAMENTO DE SUBJETIVIDADES
p. 260
Geilson Fernandes de Oliveira
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

SERVIDÃO E PODER: O PROBLEMA DO CORPO EM BENEDICTUS DE


SPINOZA E MICHEL FOUCAULT NAS OBRAS ÉTICA E VIGIAR E PUNIR
p. 274
Henrique Lima da Silva
Universidade Estadual do Ceará
Adriele da Costa Silva
Universidade Estadual do Ceará
ANAIS – III COLÓQUIO DE ESTUDOS FOUCAULTIANOS - GEF/LAPEF/UECE – SET 2014
ISSN - 2358-0720

ALGUMAS RESSONÂNCIAS DAS REFLEXÕES DE FOUCAULT


NOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

Alessandra Estevam da Silva


Universidade Federal do Ceará

O presente trabalho é fruto de leituras e reflexões desenvolvidas ao longo dos


encontros do Grupo de Estudos em Teoria Pós-Colonial, conduzido pelo professor Luiz
Fábio Silva Paiva, e promovido pelo Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi neste grupo de estudos que a autora do artigo
em questão tomou contato com as obras de Edward Said e Gayatri Spivak, por exemplo,
que, somadas às discussões em sala de aula1 sobre Michel Foucault, e às conversas
extraclasse2 sobre Boaventura de Sousa Santos, contribuíram para pensar a rede de
influências e ligações entre os estudos pós-coloniais e as meditações foucaultianas.
O artigo basilar para a presente proposta é o de Sérgio Costa (2006), intitulado
Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. O citado texto é uma
referência incontornável quando o assunto é teoria pós-colonial, pois, além de
condensar as principais características dessa linha de pensamento, apresenta um quadro
teórico conciso e esclarecedor de vários autores e obras pós-coloniais. A partir da leitura
de Costa, que evidenciou algumas das influências foucaultianas sobre a perspectiva
póscolonial, especificamente nas análises de Said, Spivak e Hall, estabeleceu-se a tarefa
de aprofundar tais ligações entre o filósofo francês e os teóricos citados, buscando
também localizar outras relações que porventura surgissem durante a leitura dos
mesmos.


Estudante do 6º semestre do curso de graduação em Ciências Sociais da UFC.

1
Discussões feitas no primeiro semestre de 2014, durante as aulas de História da Filosofia IV
(Contemporânea I), com o professor Emanuel Germano, e de Subjetividade e Sociedade, com o professor
Leonardo Sá. Desnecessário dizer que cabe somente a mim a responsabilidade por falhas ou incoerências
na análise proposta.

2
Agradeço particularmente ao colega Erberson Rodrigues pelos instigantes diálogos sobre a
colonialidade do saber e por ter me apresentado às “epistemologias do Sul” e a Boaventura de Sousa
Santos.

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O resultado foi, por um lado, a constatação de uma rica apropriação


teóricometodológica e analítica, por parte dos estudiosos pós-coloniais, do pensamento
foucaultiano. Por outro lado, notou-se também que alguns pontos da obra de Foucault
são questionados, confrontados e criticados. De um modo ou de outro, a ideia central é
que a figura de Michel Foucault possui uma importância referencial para os estudos
“desprovincializadores da sociologia”, seja como ferramenta conceitual e metodológica,
seja como abordagem que necessita de revisões. Nesse sentido, prevalece o objetivo de
ressaltar as ressonâncias foucaultianas sobre esse importante conjunto de teorias
denominadas pós-coloniais, que, assim como o autor de Vigiar e Punir, se destacam por
enxergarem no pensamento uma forma de resistência.
Sérgio Costa (2006) escreve que os estudos pós-coloniais não constituem uma
matriz única de pensamento, porém, pode-se afirmar que eles convergem no “esforço de
esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência
epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade”. (p. 117) Para Santos
(2010, p. 28), o pós-colonialismo é “um conjunto de correntes teóricas e analíticas (...)
que tem em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte
e o Sul na explicação ou compreensão do mundo contemporâneo”. Cabe destacar que as
denominações Norte e Sul, para Santos, são simbólicas, na medida em que servem para
representar, respectivamente, os grupos de países ditos “desenvolvidos”, que
protagonizaram o imperialismo pelo lado da dominação, e países “não-desenvolvidos”,
subordinados, na maior parte das vezes, à “missão civilizadora”.

Assim, apesar da diversidade de estudos e da própria proposição de explorar as


fronteiras das disciplinas científicas, pode-se afirmar que os estudos pós-coloniais
caracterizam-se principalmente pela crítica ao processo de produção do conhecimento
científico, inserido no âmbito do discurso colonialista que, se por um lado, encontra-se
(ao menos oficialmente) findo enquanto relação política, por outro, permanece vivo
enquanto relação social, assim como prossegue real em suas consequências práticas
cotidianas, repletas de autoritarismos e discriminações dos mais variados matizes.

As pesquisas e reflexões dessa linha de pensamento são elaboradas por


intelectuais provenientes, em sua maioria, de países ditos “periféricos” – no Sul
simbólico – e que vivem na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Said, por exemplo,

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ao discorrer sobre as questões metodológicas do seu livro Orientalismo, usa a noção


gramsciana de “inventário de si mesmo3”. Tal noção refere-se a algo como fazer
autoavaliação para destacar dados biográficos de relevância para o estudo em questão,
tal como o fato de ser palestino, ter passado a infância em colônias britânicas – sendo
assim educado de “modo ocidental” –, e depois ir viver nos Estados Unidos sob o rótulo
de oriental. Spivak, por sua vez, é indiana, da cidade de Calcutá, e se mudou também
para os Estados Unidos, onde fez mestrado e doutorado em literatura comparada. No
texto Pode o subalterno falar?, a autora parte justamente do caso de imolação de viúvas,
na Índia, para tecer suas análises acerca da subalternidade – termo que, veremos mais
adiante, ela prefere usar com cautela.

De toda forma, os estudos pós-coloniais trazem para o debate contemporâneo


sobre (pós) modernidade não só questionamentos radicais sobre a problemática e
conflituosa relação Norte – Sul, mas também colocam em cena novos atores, indivíduos
originários de locais estigmatizados política, social e intelectualmente.

Deste modo, uma das questões mais urgentes para superar a crise paradigmática
e sócio-política atual – partindo do pressuposto de que há tal crise – é saber se a crítica
ao colonialismo, que vigora na atualidade revestido de novos formatos, “pode ser feita a
partir de dentro ou se pressupõe a exterioridade das vítimas, daquelas que só foram
parte da modernidade pela violência, pela exclusão e discriminação que esta lhes
impôs.” (SANTOS, 2010, p. 28). Portanto, nada mais coerente que o centro hegemônico
de produção do conhecimento seja deslocado das nações nortistas para aquelas
marcadas pelo processo de subalternidade – ainda que seja necessário problematizar
também o próprio lugar do intelectual, mesmo aquele que se pretende crítico feroz da
colonialidade do saber.

No que se refere à gênese dos estudos pós-coloniais, Sérgio Costa (2006) mapeia
três escolas de pensamento que, segundo ele, constituem influências significativas para

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Em Cadernos do Cárcere, citado no livro de Said, Gramsci afirma que “o ponto de partida da elaboração
crítica é a consciência do que você é realmente, é o „conhece-te a ti mesmo‟, como um produto do
processo histórico até aquele momento, o qual depositou em você uma infinidade de traços, sem deixar
um inventário”. Compilar este inventário de si mesmo é o que Said, seguindo os conselhos de Gramsci, se
propõe a fazer.

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essa matriz teórica: o pós-estruturalismo, o pós-modernismo e os estudos culturais. É


interessante notar que a obra de Foucault é por vezes polemicamente classificada ou
como pós-modernista ou pós-estruturalista (destacando-se o fato de que ele rejeitava o
rótulo de pós-moderno e de estruturalista). Independente da etiqueta conceitual colada
nas reflexões foucaultianas, o importante é considerar a sintonia de ideias e temas de
estudos na qual se encontravam e se encontram o filósofo francês e os autores
póscoloniais.

Após essa breve – e provavelmente insuficiente – apresentação do fio condutor


que une as teorias do pós-colonialismo, pode-se introduzir alguns pontos referentes a
Foucault. Salma Tannus (2004), ao escrever sobre a trajetória dele, afirma que se
costuma dividi-la em três períodos, de acordo com os métodos e temas centrais de
estudos foucaultianos: 1) arqueologia; 2) genealogia; 3) constituição do sujeito ético.
Admitindo que recortes e classificações de trajetórias intelectuais cumprem o papel
menos de apontar descontinuidades e rupturas do que de servir a fins didáticos, e sem
deixar de observar a “unidade dinâmica” – a mesma que Márcio Goldman (2008) teve o
cuidado de explicitar ao discorrer sobre a obra lévi-straussiana – dos escritos
foucaultianos, é interessante constatar que tanto Said quanto Hall apropriaram-se,
principalmente, das reflexões arqueológicas de Foucault, praticamente deixando de lado
os estudos de sua última fase mais subjetiva. A fase genealógica, profundamente
entrelaçada com a da arqueologia, devido à ligação intensa de seus temas – saber e
poder – também aparece fortemente em Said e Hall, embora de modo talvez não tão
direto e explícito quanto a primeira fase da trajetória do professor do Collège de France.

É do período em que formula o método arqueológico – durante o qual o


pensador francês debruça-se sobre os temas concernentes à constituição dos saberes –
que nossos autores pós-coloniais retiram argumentos para embasar suas teorias acerca
do orientalismo e da dicotomia West and Rest. Said (2007), assim como Hall (1996),
fala abertamente da influência de Foucault em sua obra, dizendo utilizar a noção
foucaultiana de discurso, elaborada em Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir. Nesse
sentido, Said encaixa no conceito de discurso o orientalismo – a princípio, definido
como um inofensivo e imparcial campo de estudos sobre um lugar geográfico e político
chamado de Oriente, mas que, em seguida, se revela uma intrincada produção de

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saberes e uma complexa (e paradoxalmente caricatural, por vezes demasiado simplista)


“linha de pensamento” colada a visões etnocêntricas e colonialistas.

O orientalismo, segundo Said, possui, basicamente, três sentidos: primeiro, é um


sentido acadêmico, de pesquisa sobre o Oriente; segundo, um modo de pensar “baseado
numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o Oriente (...) e o Ocidente”;
terceiro – e esse é o enfoque principal de Said – o de uma instituição legitimada a lidar
com o Oriente, dominando-o e subjugando-o das mais variadas formas possíveis. De
todo modo, esses três sentidos se encontram imbricados na noção foucaultiana de
discurso, considerado não só como conjunto de enunciados linguísticos, mas também
como prática e como acontecimento – único, provavelmente, mas que está aberto à
repetição, transformação e reativação, assim como se relaciona a enunciados que o
precedem e o seguem. Foucault preocupa-se menos com a inteligibilidade dos discursos
do que com suas regras de formação, as estruturas que permitiram seu surgimento,
autorização, transformação, funcionamento e dissolução. Afinal, o discurso confunde-se
com o próprio conjunto de normas que o regula. Daí a relevância do método
arqueológico, que procura esmiuçar o modo pelo qual o jogo de regras – chamado de
epistéme – regulador do discurso funciona, que instituições se atrelam ao sujeito do
discurso, o que é permitido dizer numa dada época, quem e como pode dizê-lo
(MUCHAIL, 2004, p. 12).

O que a análise de Said acerca do Orientalismo problematiza não é exatamente


se o discurso orientalista corresponde a um Oriente “real”. Não estão sendo postas em
xeque “falsas” representações acerca do Leste, mas o próprio discurso orientalista, a
despeito de qualquer correspondência real ou não dos enunciados sobre o Oriente. O
orientalismo não é uma “visionária fantasia europeia sobre o Oriente, mas um corpo
elaborado de teoria e prática” (SAID, 2007, p. 33) que configurou uma relação de poder,
e permitiu uma hegemonia complexa da Europa, e posteriormente dos Estados Unidos,
sobre o “resto do mundo”. Desse modo, o Oriente é definido em relação ao Ocidente – a
tudo o que lhe falta em comparação com o Ocidente, seja a democracia, a ciência, a
economia liberal, ou uma religião predominantemente católica ou evangélica.

É preciso ressaltar que faz parte da constituição identitária o confronto com a


alteridade – nós só somos nós em relação a um eles que sejam diferentes. Contudo, mais

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do que comparar-se com o outro “oriental”, as potências imperialistas e os eruditos que


se pretendiam neutros em suas pesquisas constroem sobre a relação oriente-ocidente –
além da própria polarização redutora – uma hierarquia na qual a Europa e os Estados
Unidos da América são colocados como superiores, como os pontos de referência de
avanço cultural e político e exemplo a ser seguido.

Percebe-se outro entrelaço foucaultiano em Orientalismo quando Said afirma:

toda a minha ideia consiste em dizer que podemos compreender melhor a


persistência e a durabilidade de sistemas hegemônicos saturadores como a
cultura quando percebemos que suas coerções internas sobre os escritores e
os pensadores foram produtivas, e não unilateralmente inibidoras. [grifos do
autor] (2007, p. 43)

Aqui, podemos pensar no que Foucault (1979) afirma, em sua entrevista


“verdade e poder”, sobre o caráter positivo do poder, ou seja, não apenas de reprimir,
repreender, e dizer não (aspecto negativo), mas também de produzir verdades e de
“fazer circular seus efeitos”. Daí a importância de se investigar não só discursos
institucionais e científicos, mas também as próprias práticas e aparatos sociais que
surgem ligados aos saberes e poderes. Afinal, como afirma Roberto Machado (1988),
não há em Foucault uma “teoria geral do poder”, no sentido de uma natureza universal,
uma reificação deste conceito – uma coisa que pode ser concedida ou tomada de algo ou
alguém.

Para Foucault, nada está isento de poder dentro da sociedade: até uma relação
pessoal, entre dois amigos, é permeada de sinuosidades, desníveis, hierarquias – que
não são, de modo algum, absolutas, mas situacionais. A relação entre saber e poder é
estreita, quase que inseparável: mais especificamente, “não há saber neutro” e “todo
saber é político”. Ou seja, o poder, enquanto prática social e rede de interações, está
impregnado em toda a sociedade, produzindo, para a manutenção (ou dissolução) da
ordem vigente, saberes que legitimam todo um aparato estrutural.

É por isso que Sérgio Costa aponta a análise foucaultiana da episteme das
ciências humanas como sendo uma das inspirações animadoras de Said. Afinal, o
Orientalismo é, como o autor palestino afirma, “um sistema para citar obras e autores”.
De fato, em AArqueologia do Saber, Foucault (1997, p. 26) escreve que “as margens de
um livro jamais são nitidamente determinadas; além de sua configuração interna e da

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forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros,
outros tempos, outras frases: nó em uma rede.” Assim, a produção do conhecimento
dito orientalista se insere num circuito autorreferenciado, em que os saberes novos
reafirmam os antigos e vice-versa.

Entretanto, diferentemente de Foucault – que acaba por dar pouca importância


ao texto individual ou ao autor, afirmando que as formações discursivas (disciplinas
científicas, por exemplo) são “anônimas e sem sujeito, ainda que integrem tantas obras
individuais” –, Said, como parte de sua estratégia metodológica, atenta para a análise
minuciosa de textos individuais, “cuja finalidade é revelar a dialética entre o texto
individual ou o escritor e a complexa formação coletiva para a qual sua obra contribui”
(2007, p. 54). Em contraposição, observa-se que Foucault cerca de questionamentos a
noção de obra, destacando que a unidade do conjunto de escritos de um indivíduo é
relativa e variável.

Já no texto The West and the Rest: discourse and power, Stuart Hall se esforça
por mostrar, na base de constituição das ciências sociais, a dicotomia entre Ocidente e o
resto do mundo. A influência foucaultiana em Hall está no uso que este faz dos
conceitos de discurso e formação discursiva. De fato, quando Foucault propõe o método
arqueológico, enfatizando os discursos como fatos e sugerindo a descrição dos
acontecimentos discursivos, ele não está pensando em simplesmente comentar os textos,
nem em fazer uma análise linguística que se prende à lógica interna dos enunciados. Sua
proposta é mais ousada e complexa na medida em que pretende descrever os
acontecimentos discursivos.

Assim, o ponto que se coloca não é a de procurar nos textos um sentido oculto –
um “já-dito” que é ao mesmo um “jamais-dito” – supostamente revelado pela análise
linguística; contudo, também não é uma questão de esmiuçar relações externas ao
discurso, determinações puramente sociopolíticas. É, isto sim, algo que se encontra nas
nebulosas fronteiras entre o interno e o externo discursivo; é buscar os aspectos que
“caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se
desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática” (FOUCAULT, 1997, p. 51-52).

Ao discorrer sobre as unidades do discurso, Foucault elenca quatro pontos em


torno dos quais as formações discursivas se articulam: os objetos, os tipos de

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enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas. Quando esses pontos se entrelaçam de


modo a constituir regularidades, correlações, posicionamentos e transformações, tem-se
uma formação discursiva. A pergunta-chave acerca desta noção e de seus quatro
aspectos característicos é: que tipo de estruturas permitiu (ou não) o surgimento de
determinado de discurso? Por que apareceram estes e não aqueles enunciados?

A partir desses questionamentos é que entra em cena a noção foucaultiana de


“regime de verdade”, com seus respectivos “efeitos de poder”. Em outras palavras, a
verdade é produzida dentro de um contexto específico e permeado de interesses, e tal
produção é regulada por determinadas regras que autorizam ou excluem certos discursos
e representações.

Hall apropria-se também da diferenciação que Foucault realiza entre discurso e


ideologia. Basicamente, a ideia na qual se baseia a distinção entre essas duas categorias
é a de que o termo ideologia carrega toda uma conotação de falseamento da realidade,
enquanto a noção de discurso explicitaria que os próprios fatos constituintes do
“real”também são meio que criados na prática discursiva. Palestinos e israelenses que
brigam por terra – para usar o exemplo dado por Hall – podem ser considerados ou
“combatentes pela liberdade” ou “terroristas”. O aspecto factual da história – a briga
entre esses povos – é “complementado”, por assim dizer, pelos discursos e rótulos,
constituídos em relações de poder, que os rondam.

Hall se questiona ainda se um discurso pode ser inocente. Convocando Foucault


em seu auxílio, ele responde que é muito imprudente

to reduce discourse to statements that simply mirror the interests of a


particular class. The same discourse can be used by groups with different,
even contradictory, class interests. But this does not mean that discourse is
ideologically neutral or "innocent."4(1996, p. 203)

Assim, se discurso e ideologia diferem quanto aos posicionamentos em relação


ao que seja considerado real (de um ponto vista ontológico), estão bem próximas
quando o assunto é neutralidade – ou melhor, a falta de imparcialidade.

4
(...) “reduzir o discurso a declarações que simplesmente refletem os interesses de uma determinada
classe. O mesmo discurso pode ser usado por grupos com diferentes, mesmo contraditórios, interesses de
classe. Mas isso não quer dizer que o discurso é ideologicamente neutro ou „inocente‟” [tradução minha]

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A análise de Said não perde a sintonia com a de Hall. Em Orientalismo, o crítico


literário palestino investiga não só a relação entre ocidentais e orientais, mas o
surgimento dos próprios conceitos de oriental e ocidental como sendo forjados dentro
de uma conjuntura específica, servindo a certos interesses. Said mostra de que modo o
discurso colonialista constrói um oriente místico, exótico (na melhor das hipóteses), ou
terrorista, fundamentalista, degenerado. E que por conta desse exotismo e/ou
degeneração, os chamados orientais – que perdem suas identidades heterogêneas ao
serem colocados sob um mesmo rótulo imposto de fora – precisam ser tutelados por um
ocidente bonzinho, que levará a “democracia”, a “civilização” e o “progresso” a esses
povos. Uma das grandes questões que perpassa Orientalismo gira em torno da frase
marxiana “eles não podem representar a si mesmos, devem ser representados”.

De fato, é a questão da representação da alteridade que está em jogo. O


colonialismo, mais do que oprimir pela força, pela subjugação de territórios, culturas,
línguas ou riquezas materiais, oprime pela representação. Oprime porque não deixa que
os “orientais” falem de si mesmos, sejam eles mesmos (com todas as diferenças entre
eles próprios), sem precisar de mediadores ou representantes. O colonialismo envolve
um processo de dessubjetivação do sujeito. Construindo uma espécie de maniqueísmo
essencialista, onde reinam a figura do bem ocidental e do mal oriental (ou vice-versa),
esquece-se de que o ocidente só existe em relação a um oriente, e esses dois polos, por
sua vez, só existem dentro de um regime de verdade, que submete as representações a
julgamentos normatizantes. É necessário, portanto, que se questione não as atribuições
de valores sobre ocidente e oriente, mas a própria representação da alteridade, os
próprios conceitos que se constituem em meio a lutas políticas e se engessam, fazendo
parecer que existiram desde sempre.

Esse questionamento é feito de modo muito radical por Gayatri Spivak. Se


Edward Said e Stuart Hall se utilizam amplamente das reflexões foucaultianas para
endossar suas respectivas análises acerca da polaridade Ocidente-Oriente, Spivak leva
até o limite o tema da agência dos sujeitos, numa crítica aberta a Deleuze e Foucault,
particularmente. Para a autora, apesar da efervescência e do forte potencial contestador
dos estudos pós-coloniais, que possibilitaram fissuras no pensamento eurocêntrico e

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colonialista, um ponto central não foi problematizado: o das práticas discursivas do


intelectual pós-colonial.

A figura do intelectual é particularmente problemática quando ele ou ela se


propõe a “dar voz” a um suposto subalterno. Nessa proposição aparentemente libertária
encontram-se dois imbróglios que afetam diretamente os estudos sobre a colonialidade:
o primeiro diz respeito à própria noção de sujeito subalterno; o segundo, às dificuldades
que cercam a fala do indivíduo em posição de subalternidade.

Sérgio Costa, ao discorrer sobre a contribuição de Spivak aos estudos


póscoloniais, esclarece que, para a autora em questão,

é ilusória a referência a um sujeito subalterno que pudesse falar. O que ela


constata, valendo-se do exemplo da Índia, é uma heterogeneidade de
subalternos, os quais não são possuidores de uma consciência autêntica pré
ou pós-colonial, trata-se de "subjetividades precárias" construídas no marco
da "violência epistêmica" colonial. (2006, p. 120)

Por si só, o debate acerca da noção de sujeito renderia centenas de páginas, e


discutir sobre os emblemas da subjetividade não é o objetivo do presente artigo. Por
isto, enfatizo a partir de agora a problemática do ato de “dar voz” ao subalterno: que
dificuldades estão coladas a tal mentalidade?

Considerando que o mundo social tem um aspecto fortemente narrativo – e,


deste modo, pressupõe o controle da fala –, controlar o emissor e o conteúdo
comunicativo é o principal mecanismo de produção de ordem. Assim, é particularmente
preocupante ouvir de um filósofo ou um cientista social, por exemplo, que estes vão
“dar voz” a grupos marginalizados. Afinal, com a boa vontade, a militância e o
engajamento de intelectuais que não tem medo de posicionar-se diante dos dilemas
políticos de seu tempo – pois sabem que tentar manter uma neutralidade já é marcar
posição – vem junto uma espécie de tutela, de mediação que anuvia a subjetividade
denominada subalterna.

Isto porque, nesta perspectiva, a fala emerge como um objeto descolado do


sujeito enunciador, e, sendo tratado como coisa, parece que pode ser simplesmente
concedida ou tomada dos indivíduos. Spivak parte de um outro ponto de vista: o de que,
longe de minimizar os efeitos opressivos da colonialidade, a ideia de “dar voz” ao

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subalterno o mergulha ainda mais na periferia do poder, uma vez que o supõe “mudo” e
que somente a partir da intervenção objetiva da figura do intelectual poderá o indivíduo
marginalizado falar.

Neste âmbito, convém por em relevo uma questão metodológica e


epistemológica acerca do ofício de cientista social. Antes, na tentativa de legitimar a
sociologia e a antropologia comparando-a com a física, a química e a biologia, o
vocabulário usado pelos cientistas sociais chamava de objetos de estudo às pessoas que
constituíam os grupos pesquisados. Atualmente – sejam índios, jovens roqueiros ou
moradores de uma comunidade pobre –, sociólogos, antropólogos e cientistas políticos
conversam com sujeitos da pesquisa, não mais com objetos. Para além da dicotomia
sujeito-objeto, deixar de “dar voz” ao subalterno e, consequentemente, destruir as
fronteiras políticas e epistemológicas que oprimem o dominado, é tratá-lo, em nossas
pesquisas, como interlocutores.

Porque interlocutor é cada um dos indivíduos que fazem parte de um diálogo. E


é isto que cientistas sociais fazem quando se embrenham nas ilhas de um arquipélago na
Melanésia, em um show de rock ou em uma favela: eles dialogam com pessoas,
mantendo uma relação de inevitável reciprocidade. Por isto, é importante não apenas
refletir sobre este elo que se estabelece entre o pesquisador e seu interlocutor, como
também abrir espaço para que estes últimos falem. Ou talvez simplesmente silenciar
alguns instantes nossas tão eloquentes teorizações para tão somente ouvir nossos
interlocutores, dentro de nossos auditórios e salas de aula.

Pode ser que não haja muita diferença entre um intelectual “dar voz” ao outro e
o ato de abrir espaço para que ele fale por si mesmo. Quem sabe não se esteja tratando
aqui de distinções de ordem puramente tautológica? Não se sabe. Mas a ideia principal
ao trazer à tona esta discussão é a de sublinhar a importância de conhecer os jogos de
força que acompanham simples expressões como a de “dar voz” a alguém.

Neste sentido, é interessante fazer uma reflexão acerca do papel do intelectual,


tal como pensou Foucault, em uma entrevista contida no livro Microfísica do Poder.
Costumava-se (e ainda hoje, em certos setores, se costuma) enxergar o intelectual de
esquerda como a figura representativa dos apelos do proletariado, na medida em que o
intelectual é tido como o personagem legítimo e esclarecido, assim como os

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trabalhadores seriam a classe legítima, mas não esclarecida, da revolução. Uma certa
universalidade perpassa ambos os grupos, mas somente no intelectual encontrar-se-ia a
verdade sem véus. Os representantes universais da verdade, por excelência, eram os
escritores, que acabavam por se distanciar das lutas cotidianas, das articulações entre
teoria e práxis.

Todavia, segundo Foucault, surge depois a figura do intelectual específico, na


área da física (com toda a questão atômica e nuclear da Segunda Grande Guerra, que
trouxe ao mundo uma era de riscos e incertezas generalizados). O intelectual específico
cumpre um papel importante na defasagem teoria-prática, na medida em que, dentro de
suas investigações particulares e locais, consegue também pensar em termos globais.
Assim, acontece uma aproximação da universidade – o lugar por excelência do
intelectual – com as ruas, os movimentos sociais, as demandas de natureza concreta. E
mais, ocorre também uma articulação entre os próprios pontos de saberes específicos,
que, antes separados, passam a refletir as questões sociais e construir conjuntamente
soluções para elas.

Desta forma, o professor e a universidade aparecem como elementos importantes


– mas não exclusivamente centrais – no belicoso processo político que constituem as
relações sociais. Se o intelectual específico corre o risco de se ver limitado dentro de sua
esfera de atuação, ou de colocar-se ao serviço do Estado “contra os interesses das
massas”, ao mesmo tempo, ele ocupa um lugar altamente estratégico em meio às lutas
cotidianas e ideológicas em torno da verdade – e justamente pela sua proximidade
ambígua e tênue com o aparato estatal; e, consequentemente, com todo um dispositivo
de produção do verdadeiro.

Fazer toda essa reflexão ancorada na perspectiva foucaultiana é rica, na medida


em que a ciência, nas sociedades ocidentais, principalmente, gozam de um status
prestigioso e uma legitimidade muito alta. Pensar-nos, enquanto cientistas (ou
filósofos/as, detentores de um certo saber acadêmico, no geral), como estando dentro
dessa teia de relações políticas que produzem saberes é fundamental. É se ver como
apenas mais uma engrenagem da máquina social – uma engrenagem certamente
estratégica, de fato, mas ainda assim uma simples engrenagem, extremamente terrena,

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mundana, carregando em sua superfície todo o pó, suor e sangue que se produz, exala e
derrama nas batalhas pela instauração das verdades.

Afinal, a questão não é a existência de uma verdade, neutra e bonitinha, situada


num plano transcendente ao poder – “a verdade é deste mundo”, diz Foucault – mas a
política geral, de uma dada sociedade, de produção da verdade. Assim, não poderia
deixar de finalizar o presente artigo com uma citação do próprio Foucault acerca da
verité, que, para nosso filósofo, é nada mais que

um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição,


a circulação e o funcionamento dos enunciados. [...]

O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos


ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática
científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível
constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a
'consciência' das pessoas, ou que elas tem na cabeça, mas o regime político,
econômico, institucional, de produção da verdade.

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder - o que seria


quimérico na medida em que a própria verdade é poder - mas de desvincular
o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais)
no interior das quais ela funciona no momento.

Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou


a ideologia; é a própria verdade. (Id. Ibid. p. 14. Grifos meus)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Sérgio. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 60, Fev. 2006. pp. 117-134.
Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092006000100007&l
ng=en&nrm=iso>. acesso em 19 Jul. 2014.
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São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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HALL, Stuart. “The West and the rest: discourse and power”. In: HALL, Stuart et al.
(orgs) Modernity: introduction to the modern societies, Oxford, Blackwell, 1996. pp.
185-227.
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault.
2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
MUCHAIL, Salma Tannus. A trajetória de Michel Foucault. In: Foucault,
simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004. pp. 9-20.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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A COMPLEXIDADE DA CULTURA DE SI

Hedgar Lopes Castro


Universidade Estadual do Ceará
hedgarhd@hotmail.com

RESUMO
O presente artigo trata da problematização histórica da subjetivação, feita por Michel
Foucault, que desemboca, entre outras questões, na questão da cultura de si, tema
abordado por ele em sua última fase de pesquisas, na qual se dirigiu para o período
clássico da Roma e Grécia e para os primórdios do cristianismo. A cultura de si é o
tema central da obra História da Sexualidade: O Cuidado de Si, que não só enfatiza
uma ética enquanto desenvolvimento do sujeito mas também a sua capacidade de
relacionar-se com o outro, relação através da qual funda o cuidado consigo próprio.
Como consequencia do cuidado de si, há o desenvolvimento do governo de si, mais
enfatizado na questão do matrimônio e da atividade política (mas não apenas nestes),
tratados por Foucault na mesma obra. O objetivo do presente artigo, portanto, é,
primeiro, rever o que foi estudado e utilizado por Foucault, tendo em vista o período da
Antiguidade, do helenismo, do cristianismo e da Roma imperial, para que ele
compusesse as suas problematizações éticas genealogicamente; segundo, verificar como
o imperativo ético e político do sujeito foi se formando, mediante o permanente cuidado
e governo de si, nas práticas conjugais e políticas.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura de si. Ética. Cuidado de si. Poder. Governo de si.

INTRODUÇÃO

O estudo que se segue tratará do pensamento tardio do filósofo francês Michel


Foucault. As obras centrais abordadas serão História da Sexalidade II: O Uso dos
Prazeres e História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. Do volume II, apenas a
introdução usei, resumidamente, para lançar as temáticas e abordagens que serão
tratadas nos próximos tópicos. Do volume III, foi enfatizada a arte de o sujeito estilizar-
se a si mesmo e sua vida (o cuidado de si, portanto); a economica instituída e
estabelecida no governo doméstico; e a atividade política, sendo apreendida de forma a
ser complexada e sempre produzida pelos regimes de si. É importante atentar para o fato
de que a sexualidade é fundamental porque é o primeiro campo no qual o indivíduo
grego antigo relaciona-se consigo. Os temas centrais, então, que permitem a Foucault
conceber os traços da ideia da cultura do cuidado de si, são: a genealogia da questão da

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sexualidade, em torno da cultura greco-romana antiga e do cristianismo - moralmente


observada -, e a ética do indivíduo sendo constituída historicamente - focalizada no
poder que ele desenvolve uma vez que vive livremente.

Foucault quis fazer um paralelo entre as culturas antigas e a moderna,


objetivando observar o quanto havia de esforço e cuidado do homem enquanto ser
moral e ético. Compor uma história da subjetividade e da produção do sujeito são as
suas maiores preocupações nos dois volumes das obras que servirão de base para o
presente trabalho; tais produções são mormente sinalizadas pelas práticas de si em
constante e permanente movimento. Obviamente, a sua forma de filosofiar não está em
meramente veicular fatos e perspectivas históricas, mas em fazer disso problematização:
como a relação consigo mesmo do sujeito adquiriu o caráter de liberdade e de estética
propriamente ditos em vida, investindo em seu próprio poder e não sendo subalternado
nem orientado por leis e codificações heterônomas? É uma problematização que vale
tanto para o sujeito individualmente como para o sujeito na relação com o outro. Trata-
se, portanto, de saber como ser sujeito dos próprios prazeres, das relações pessoais e
sociais que estabelece, na medida em que se instaura a cultura do sujeito que cuida de si
permanentemente.

1 – Preâmbulo da ética: o Uso dos Prazeres

Foucault, em seu livro História da Sexualidade 2: O Uso dos Prazeres,


discorreu sobre a história da sexualidade de forma singular, sem desconsiderar a relação
entre sujeito e desejo sexuais, salientando “a formação dos saberes que a ela se referem,
os sistemas de poder que regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos
podem e devem se reconhecer como sujeito dessa sexualidade” (FOUCAULT, 1984, p.
10). Pesquisou o modo pelo qual o homem foi constituindo-se como sujeito do seu
desejo e, portanto, de desejo sexual. Para isso, precisou fazer uma história
genealogicamente, utilizando-se do artifício dos jogos da verdade, “através dos quais o
ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser
pensado” (FOUCAULT, 1984, p. 12). Mas também a sua pesquisa era destinada a
problematizar como se produziu diversas formas de subjetividade humana e as relações
de poder que nelas vigiam; como, então, era praticado o cuidado de si em cada uma

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delas? Todas eram inseridas em um contexto social repleto de complexidades e


desdobramentos, tanto sociais mesmo políticas: o cuidado de si também implicava e era
direcionado ao cuidado com os outros.

Foucault estabelece qual a sua intenção ao fazer uma história do pensamento,


não dos comportamentos ou das representações; trata-se, então, de “(…) definir as
condições nas quais o ser humano „problematiza‟ o que ele é, e o mundo no qual vive”
(FOUCAULT, 1984, p.14). Os indivíduos devem problematizar-se a ponto de
exercerem as “artes da existência” ou as “técnicas de si”: a transformação estética que
atina para a singularidade que há em cada um e que vai além da mera assimilação de
regras de conduta; são elas as “práticas de si”, práticas a partir das quais se formam as
problematizações do sujeito, tais como o seu desprendimento de si: constante
desprendimento daquilo que se é, sem apego a pensar unicamente do mesmo modo no
decorrer do tempo, seja no passado, seja no presente, seja no futuro. Isso remete à
“estética da existência” do sujeito, primeiramente desenvolvidaa na Antiguidade grega.

Foucault aborda, em seguida, a moral cristã frente à prática da sexualidade,


contrapondo esta moral às concepções morais da Antiguidade grega: na primeira,
impunha-se proibições, o medo e abstenções, que geravam males ou conduziam à morte
os indivíduos; na segunda, havia diversas temáticas a pensar, que se resumiam em “(…)
austeridade sexual em torno e a propósito da vida do corpo, da instituição do casamento,
das relações entre homens e da existência da sabedoria” (FOUCAULT, 1984, p. 23, 24).
Essas foram as temáticas de problematizações que se mantiveram através dos tempos,
feitas de diferentes formas, sobre a moral (a sua ótica) frente à questão da sexualidade.
Mas Foucault ressalta que, na Antiguidade grega, a moral foi criada e endereçada aos
homens para dar forma às condutas masculinas, para que eles constituíssem o direito, o
poder, a autoridade e a liberdade que lhe cabiam na prática. É essa a “elaboração e
estilização de uma atividade no exercício de seu poder e de sua liberdade”.
(FOUCAULT, 1984, p. 25). Com base nisso, Foucault conclui que era preciso buscar,
na questão da sexualidade, o que a levou a ser moralizada de modo a interditar condutas
humanas: a problematização intensa da prática sexual, em seus mais variados aspectos,
seria fundamntal para isso.

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A ética é definida de forma mais precisa não quando se analisa códigos, valores
e interdições morais específica e isoladamente, pois a ética implica uma relação do
sujeito sobre si mesmo, quando executa as práticas de si para se assegurar frente às
diversas formas de subjetivação que pode produzir. Dito de outro modo, o sujeito se
produz ao mesmo tempo em que produz a sua própria subjetividade. Define assim a
ética Foucault: “(…) maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como
sujeitos da conduta moral (…), para a reflexão sobre si, para o conhecimento, o exame,
a decifração de si por si mesmo, as transformações que se procura efetuar sobre si”
(FOUCAULT, 1984, p. 29). Essa concepção ética é diferente da concepção cristã de
moral, que se centra no código de conduta, em vista do que é proibido e permitido. Ao
contrário da encontrada na Antiguidade grega, que era orientada para as práticas de si,
ou seja, para a atitude que validava o respeito às condutas tomadas. Sobre isso, salienta
Foucault: “a ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos
apetites e pelos prazeres, e (…) atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo
pleno gozo de si ou pela soberania de si sobre si mesmo”. (FOUCAULT, 1984, p. 30).

2 – A cultura de si individualmente

No início do capítulo dedicado à cultura de si, na História da Sexualidade III: O


Cuidado de Si, Foucault se remete à austeridade sexual novamente, em vista de como
ela era concebida nos primeiros séculos da filosofia grega e da era cristã. Contrastando
interdições morais com base nos códigos e a reflexão sobre si, ele diz que naquele
tempo o sentido das práticas humanas promovia “(…) uma intensificação da relação
consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos”. (FOUCAULT,
1985, p. 47). Isso é a constituição de um individualismo, no mundo helenístico e na
Roma antiga; um individualismo que foi possível pelo enfraquecimento político e social
àquela época. A filosofia, então, baseou a vida dos indivíduos, as suas condutas. De
acordo com esse individualismo, a Foucault foi conveniente destacar três de seus
aspectos: a atitude individualista, determinada pelo valor e pela independência que tem
o sujeito em relação a si e aos outros; a valorização da vida privada, englobando a
moradia, a família e o matrimônio; e as relações complexas de poder de si para consigo,
na prática política.

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A partir daí, Foucault dedica-se mais propriamente à cultura de si, a começar por
expor como ela se define na Grécia antiga: “pelo fato de que a arte da existência (…) se
encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso „ter cuidados consigo‟; é
esse principio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu
desenvolvimento e organiza a sua prática (FOUCAULT, 1985, p. 49). Cuidar da própria
alma, como queria Sócrates, em algum sentido correponde ao cuidado de si que
Foucault concebeu; e, ademais, ao passar do tempo, além de ter adquirido diversas
significações filosóficas, o cuidado de si abrange atitudes, maneiras de comportar-se,
formas de viver, procedimentos, práticas sociais e interindividuais. Até as instituições
foram elaboradas a partir do saber e do imperativo do cuidado de si, uma arte de viver; o
que proporcionou um desenvolvimento cujo ápice deu-se nos primeiros séculos da
época imperial de Roma. Quanto a isso, um dos exemplos históricos da filosofia que é
dado por Foucault é o dos epicuristas, na Carta a Meneceu, a qual “(…) dava acesso ao
princípio de que a filosofia devia ser considerada como exercício permanente dos
cuidados consigo (FOUCAULT, 1985, p. 51). É, entretanto, em Epicteto que Foucault
aponta a maior filosofia antiga sobre o cuidado de si, o qual faz uma contraposição entre
os animais e a razão humana: nos animais, a vida já está “determinada” ou disposta e
não há, portanto, preocupação com o cuidado de si; enquanto que, ao ser humano, Zeus
deu o privilégio e o dever de estabelecer, em vida, o cuidado de si, possibilitado pela
sua razão; esta não só possibilitando a liberdade, como também servindo-se de outras
faculdades, ou tomando-se a si própria como objeto de estudo.

É preciso lembrar que o cuidado de si não pressupõe rigidez absoluta: “também


podem ser interrompidas as atividades ordinárias de vez em vez para se retirar e pensar,
recolher o próprio passado, analisar a vida transcorrida e se familiarizar com os
preceitos que conduzam para uma vida racional” (BATTISTI, 2010, p. 401). Porque o
cuidado de si não é apenas uma preocupação específica e geral, mas um conjunto de
preocupações: um labor em qualquer atividade relacionada tanto consigo como com os
outros; inclusive, é assim que se define, para os gregos, a epimeleia heautou. Foucault
atenta para o modo como dedicavam o tempo os gregos e romanos, como os
pitagóricos, Sêneca e Marco Aurélio, alegando que ele: “é povoado por exercícios, por
tarefas, atividades diversas. (…) Existem cuidados com o corpo, os regimes da saúde, os
exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida como possível, das

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necessidades.” (FOUCAULT, 1985, p. 56). Foucault também lembra que essa


dedicação não é solitária: ela é uma atividade que cosntitui, verdadeiramente, uma
prática social e um desemprendimento de si mesmo sem a suposição de que o sujeito
torne-se solipsista, pois essa concepção direciona-se principalmente ao sujeito como
comunitariamente empregado, a exemplo do modo escolar como Epicteto ensinava. E
mais: havia toda uma aplicação de si em diversos âmbitos da vida em comunidade,
como relações de parentesco, de amizade e de obrigação. O cuidado de si, então, passa a
ser um intensificador das relações sociais, “um „serviço de alma‟ que comporta a
possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações
recíprocas” (FOUCAULT, 1985, p. 59).

A filosofia grega e romana antigas detinham-se às perturbações do corpo e da


alma de modo a combatê-las e, para isso, era fundamental adquirir um equilíbrio pleno
no homem. Sêneca, nos estóicos, foi um dos maiores a filosofar a respeito: afecções e
doenças de diversos tipos eram males a serem curados se não dispusessem o homem à
liberdade da alma e à saúde do corpo; assim se formava uma medicina do corpo e uma
terapêutica da alma. Foucault explica, a esse propósito: “a melhoria, o aperfeiçoamento
da alma que se busca na filosofia, a paideia que esta deve assegurar, é atingida cada vez
mais com as cores médicas. Formar-se e cuidar-se são atividades solidárias”.
(FOUCAULT, 1985, p. 60)..

Toda essa cultura de si, no entanto, não se voltava à preocupação com o vigor
físico através da ginástica, o treinamento esportivo e o militar que capacitavam ao
homem ser livre na Grécia antiga. Diferentemente, a preocupação central é com a
prática de intercâmbio entre os males físicos e anímicos. Deve-se, portanto, achar o que
de mal há na alma que pode ser curado pelo corpo e vice-versa. Não pode haver
prevalecença nem demínio de um sobre o outro. Em outras palavras, “a prática de si
implica que o sujeito se constitua face a si próprio, não como um simples indivíduo
imperfeito, ignorante (…), mas sim como um indivíduo que sofre de certos males e que
deve fazê-los cuidar (…)”. (FOUCAULT, 1985, p. 62, 63). Isso, lembra Foucault ao
falar de Plutarco, faz-se mais ainda importante uma vez que os males da alma são
imperceptíveis pelos sentidos do corpo, causando a cegueira do indivíduo ao viver, por
exemplo, de modo colérico na certeza de estar sendo corajoso. O conhecimento de si

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evitaria esse tipo de equívoco; mas ele também é útil para detectar aquilo que é
supérfluo na alma e no corpo e, a partir daí, obter uma profunda noção do que é
dominante e dominado no homem; elas são, portanto, uma provação, “(…) uma forma
de medir e de confirmar a independência de que se é capaz a respeito de tudo aquilo que
é indispensável e essencial”. (FOUCAULT, 1985, p. 64).

Foucault prossegue sua análise do cuidado de si fazendo uma distinção de


exercícios de abstinência nos estóicos e epicuristas. Para os estóicos, o homem
descobriria a facilidade de não ser apegado às provações individuais (como hábitos) e
sociais (como reputação); ressaltavam, então, que o indispensável não passa por nada
disso. Para os epicuristas, o homem descobriria o prazer mais pleno do que o prazer
sentido com coisas supérfluas, com isso permitindo vislumbrar o quanto a privação
destas podiam fazê-lo sofrer. O exame da consciência, em consequência disso, é
fundamental; ele é feito mormente por Sêneca, que “(…) evoca tanto o papel de um juiz
como a atividade de um inspetor ou a de um dono de casa verificando suas contas”
(FOUCAULT, 1985, p. 66). Trata-se de o indivíduo rever e analisar o que foi praticado
por ele durante o dia, apreciando suas missões realizadas e verificando quais regras de
conduta foram escolhidas e convenientes. Porque uma atitude constante em relação a si
próprio é necessária, tanto quanto o trabalho do pensamento sobre si próprio; é Epicteto
quem se sobressai na filosofia acerca desse aspecto, basicamente buscando que o
homem não meramente estabeleça a representação, por exemplo, de acontecimentos em
sua vida tomando-os sem quaisquer filtragens, mas “(…) no consentimento que convém
ou não lhe dar” (FOUCAULT, 1985, p. 68). Assim, o controle da mente deve ser focado
no que não depende do homem, pois “o controle é uma prova de poder e uma garantia
de liberdade: uma forma de assegurar-se permanentemente de que não nos ligaremos ao
que não depende do nosso domínio” (FOUCAULT, 1985, p. 68, 69). .

Foucault, afinal, faz uma observação que assim se sintetiza: o objetivo das
práticas de si pode ser apresentado pelo bem geral da conversão de si, sendo este uma
modificação de atividade sem a interrupção ou a centralização nelas, ressaltando que o
sujeito deve tanto realizar as atividades como encontrar os fins dela na relação de si para
consigo. Tal é a conversão de si. Ela, de um lado, redireciona o olhar do sujeito frente às
suas atividades cotidianas e, de outro, é uma trajetória que lhe faz voltar-se a si próprio

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e o impede de ser assujeitado e dependente de coisas e fenômenos exteriores. Assim se


constitui uma ética do domínio, do governo. E acrescenta Foucault: “mas através dessa
forma, antes de mais nada política e jurídica, a relação consigo é também definida como
uma relação concreta que permite gozar de si (…)” (FOUCAULT, 1985, p. 70). A
existencia do gozo permite concluir que as perturbações do corpo e da alma estão
ausentes mediante as práticas de si; não que elas não existam ou não vão existir durante
a vida, porém que a atenção a elas não são predominantes nem devem sê-lo. A cultura
de si, então, não implica a maneira como o sujeito deve constituir a sua moral, mas
como ele deve constituir-se enquanto sujeito moral.

Em suma, o prazer sexual é uma força, contra a qual o sujeito deve lutar, sendo
ele, no entanto, fraco e fugidio diante dela; a natureza e a razão definem como, ética e
esteticamente, o sujeito está em consonância com esse status. O sujeito, no entanto,
deve entrar nessa relação trabalhando-se a si mesmo, pondo-se à prova e examinando-
se, através de seu permanente conhecimento sobre si mesmo; deve lutar para governar a
si mesmo, de modo a estabelecer em si uma relação agonística: é um embate entre seus
desejos e ambições, que se dirigem em sentido inverso de sua insistente liberdade. De
tal modo que a constituição do sujeito ético ou do governo de si é, através de práticas
livres, moderar as suas ambições e os seus desejos. É nisso que entra a estética da
existência; é com isso que ela se estabelece efetivamente. E, arremata Foucault, “(…) o
ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do
indivíduo sobre si mesmo; mas essa soberania amplia-se numa experiência (…) de um
gozo sem desejo e sem perturbação” (FOUCAULT, 1985, p. 72).

3 – A cultura de si matrimonialmente

O matrimônio é classicamente entendido como uma prática afogada por regras e


condutas morais a serem seguidas. Quanto a isto, a moral cristã e a dos gregos antigos
diferenciavam-se, mas Foucault queria vislumbrar, nessas morais, o esforço feito para
manter e aperfeiçoar as práticas de si privilegiadamente; porque, posto que a conduta
moral frente à sexualidade mudou ao longo dos tempos, trata-se de saber como isso se
transformou. O que é enfocado no matrimônio, um exemplo histórico de que houve um
deslocamento da sua ordenação por instâncias públicas para dar lugar à recíproca
observância do casal a constituir, por exemplo, respeito e fidelidade pelo outro como

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exercícios das práticas de si, transformando, portanto, de um lado, o casamento em


instância de gestão doméstica (economia) sem quaisquer intervenções externas; de
outro, a relação matrimonial, que então passava a ser um intenso modo de vida.

Foucault aponta que a instituição do matrimônio, na Grécia e Roma antigas, não


exigia a intervenção dos poderes públicos, mas estabelecia chefes de família: o pai da
mulher que se casaria e o seu futuro marido. “Progressivamente o casamento, no mundo
helenístico, toma lugar no interior da esfera pública” (FOUCAULT, 1985, p. 80). Na
Grécia dos séculos I e II, toda a sociedade sancionava o casamento, e o mesmo pode ser
constatado na Roma da mesma época. De um lado, com o passar do tempo, mais e mais
medidas legislativas e um certo domínio público se apoderaram da instituição
matrimonial. De outro, expondo algumas razões pelas quais era interessante o
casamento, Foucault enumera algumas de suas vantagens: “transmissão de nome,
constituição de herdeiros, organização de um sistema de alianças, junção de fortunas”
(FOUCAULT, 1985, p. 81). Eram estes os objetivos privados que determinavam o
indivíduo a casar-se.

Todavia, o casamento tornou-se, em vários aspectos, uma escolha mais livre, na


medida em que bastava a aproximação com o príncipe para auferir o status, a fortuna, o
sucesso na carreira civil e política, etc. No caso das classes mais pobres, o casamento
era associado à ajuda e ao compartilhamento mútuo entre as pessoas, o que trazia um
apoio moral. Todavia a desigualdade ainda permanece, mesmo que o casamento
promovesse certa união. É preciso acentuar, com isso, que “(…) o status da mulher
ganhou em independência com relação ao que era na era clássica – e sobretudo com
relação ao que era na época clássica”. (FOUCAULT, 1985, p. 82). Pois o homem não
tinha mais tanta importância política e reforçava seu papel econômico e independência
jurídica. Assim, o que havia antes (o fato de que o pai da mulher que se casaria e o seu
futuro marido eram os chefes de família que se instituíam) tende a desaparecer, assim
como o dote e a parte da herança da mulher passam a ser-lhe dados devidamente.

Nos séculos IV ou III a.C., os casamentos implicavam direitos e deveres a serem


seguidos, que não eram tão rigidamente seguidos séculos mais tarde no que concerne ao
marido, sobretudo o seu dever de prover a mulher e de estar interditado a ter outra
mulher. Assim eram os contratos a partir de então, nos quais passaria a haver um

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compartilhamento de direitos e deveres que visava à estabilidade e à regulação interna


do matrimônio; desta forma os indivíduos casados eram inscritos nessa realidade
matrimonial. Explica Foucault, quanto à prática matrimonial, que “ela busca suas
cauções do lado da autoridade pública; e torna-se algo cada vez mais importante na vida
privada” (FOUCAULT, 1985, p. 84), não havendo mais, por isso, os objetivos
econômicos e sociais que antes havia, pois se fundava como um corpo apartado de
outras relações sociais..

Para esclarecer o que é o casamento, o que ele abarca e introduz no campo da


subjetividade e do cuidado de si, Foucault diz:

(…) por casamento não se deve entender somente a instituição útil para a
família ou para a cidade, nem a atividade doméstica que se desenrola no
quadro e segundo as regras de uma boa casa, mas sim o „estado‟ de
casamento como forma de vida, existência compartilhada, vínculo pessoal e
posição respectiva dos parceiros nessa relação. (FOUCAULT, 1985, p. 84)

No casamento, a autoridade do homem sobre a mulher, que era o seu status,


permitia um respeito e uma afeição desenvolvidos na relação com ela; permitiam, ainda,
segundo à literatura da época imperial, uma ética segundo a qual o homem instigava-se
a conhecer a natureza do vínculo com sua mulher. Neste campo, construía-se uma
afeição e um desejo físico inestimáveis, que podiam evoluir para uma dependência. Em
paralelo a isso, Foucault considera de suma importância ressaltar, analisando uma carta
do romano Plínio, o Jovem, que, “(…) entre a vida matrimonial e atividade pública,
Plínio não coloca um princípio comum que unifica o governo da casa e a autoridade
sobre os outros, mas um jogo complexo de substituição e de compensação (…)”.
(FOUCAULT, 1985, p. 86). Essa ressalva vem a corroborar com a conclusão de que
textos como esse mostram o casamento como não sendo nem exclusiva nem
essencialmente voltado ao cuidado e ao comando do oikos, da casa, mas a como se
relacionam duas pessoas que se dispuseram ao matrimònio. O papel de cada um deve
ser o mais observado, sobretudo o do esposo como sendo regulador de sua conduta em
relação à sua esposa. Estabelece-se, como já foi dito, uma reciprocidade de afetos que
pode levar à dependência mútua; uma dependência que se funda e se continua com o
cuidado de si.

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É importante notar o seguinte a respeito do que traz Foucault: “quando o


pensador francês começa a aprofundar e a descrever essa „estética da existência‟,
percebe ele que não existe intervenção do poder público que, coercitivamente, me
impulsione a prestar atenção à minha conduta” (BATTISTI, 2010, p. 401). Isto é, a
esposa não é mais vista pelo esposo como um indivíduo que o poder público orienta a
zelar e não desrespeitar, mas como indivíduo fundamental com quem se relacionar para
fundar e manter a constituição e gestão da casa onde vivem (economia). Questiona-se,
com isso, o papel de cada um na conjugalidade; sem tal observância, do ponto de vista
filosófico, pode-se encetar a problematização que Foucault quer fazer, qual seja, a
existência de um deslocamento de deveres e de condutas para a reciprocidade do casal,
instigando à fidelidade, à afetação e à valorização do outro acima de quaisquer regras e
coerções externas. O casal, nesse sentido, é fruto da constituição humana dentro da
sociedade, assim constituindo uma vida unida e em comum, estabelecendo a estética da
existência. Assim, o papel do homem é inflexionado, sobretudo no que tange à sua
condição de sujeito moral. Não se pode, contudo, entender a função do homem como
uma função meramente de um senhor; “é que a sexualidade, tal como é vivida pelos
gregos, encarna na fêmea o elemento receptivo da força, e no macho o elemento ativo
ou espontâneo (…), [isto] para poder governar a esposa e para que ela própria atinja
uma boa receptividade”. (DELEUZE, 2005, p. 109, 110)

4 – A cultura de si politicamente

Foucault relata que, a partir do século III a.C., há, aparentemente, uma evasão e
um retraimento dos indivíduos para uma mais decadente vida cívica, devido ao declínio
das cidades-Estado. Uma perda de autonomia, com isso, deu-se. Surgiram, então,
monarquias helenísticas e o Império romano, embora não fosse apenas por causa disso
que a autonomia na época helenística e romana tivesse sido perdida a partir desse
século, tanto que tudo que constitui a vida na cidade e as atividades políticas
permaneceram. É apropriado pensar, a partir daí, não numa redução ou anulação delas,
mas "(...) na organização de um espaço complexo: muito mais vasto, muito mais
descontínuo, muito menos fechado do que poderia sê-lo o espaço das pequenas cidades-
Estado (...)" (FOUCAULT, 1985, p. 89). Foucault, assim, expõe que o poder passa a ter
múltiplos focos, e por várias dimensões e transações eles se desenvolvem.

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A questão do poder aqui é determinante: foi ele, o seu exercício, que determinou
as influências, a partir da reflexão moral que passou a haver mais acentuadamente, no
papel que os imperadores ou governantes ocupam no jogo político, além da hierarquia
que regia a cidade e os indivíduos. Para se compreender qual o interesse dessas elites
pela ética pessoal, pela vida privada baseada nos prazeres, explica Foucault que "é
preciso (...) ver aí a procura de uma nova maneira de refletir a relação que convém ter
com o próprio status, com as próprias funções, as próprias atividades e obrigações".
(FOUCAULT, 1985, p. 91). Assim, por um lado, a constituição ética de si torna-se mais
problemática para o sujeito da sociedade romana e helenística, pois estar determinado
pela hierarquia do status era inevitável. Havendo que se relacionar sob a sua lógica, o
sujeito tinha uma vida política na qual procurava "(...) adequar-se tanto quanto possível
ao próprio status por meio de todo um conjunto de signos e marcas que dizem respeito à
atitude corporal, ao vestuário e ao habitat (...)" (FOUCAULT, 1985, p. 92). Por outro
lado, problematiza-se a própria identidade do sujeito: exercer suas próprias atividades
sem que marcas e signos externos se lhe impunham soberanamente; uma relação
adequada atentando-se para si mesmo cívica e politicamente: eis a complexidade da
cultura de si. Ela define formas e condições da possibilidade, aceitabilidade e
necessidade de uma ação política. Há fundamentais problematizações políticas,
portanto, que se seguem a isso.
A primeira é a problematização da relativização, no sentido, em primeiro lugar,
de fazer sempre da vontade e escolha livre e pessoal o que norteia o campo público e o
político, sendo estes tanto uma vida como uma prática; e, em segundo lugar, do uso do
julgamento e da razão necessários frente a quaisquer problemas aí encontrados. É
Plutarco quem traz esses dois fundamentos, segundo Foucault, que conclui: “(…) o que
constitui o indivíduo enquanto ator político, não é – ou não somente – o seu status; é, no
quadro geral definido por sua origem e sua posição, um ato pessoal”. (FOUCAULT,
1985, p. 94). O que torna essa preponderância da vontade e do ato pessoais ainda mais
complexa é o fato de que sempre vai haver um governante e um governado: é uma
rotação permanente, de acordo com a qual é impossível não ser um sem ser o outro
simultaneamente. Assim, não é aceitável ser subordinado a uma administração superior
como se não houvesse participação nela do indivíduo, tendo prazeres e lazer, por
exemplo, apenas quando o governo lhe permite: se o indivíduo exerce a política, nada

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disso ocorre e, ao contrário, entra-se nas relações de poder e modifica-se suas regras e
limites livremente.

A segunda é a problematização da atividade política e do ator moral. Na Grécia


antiga, a cidade só era bem governada se seus chefes fossem virtuosos. Isto se mantém
na época imperial, mas por razões diferentes: “na difícil arte de governar, no meio de
tantas ciladas, o governante terá que se guiar por sua razão pessoal: é sabendo se
conduzir bem que ele saberá conduzir, como convém, aos outros”. (FOUCAULT, 1985,
p. 95). Pois a mesma razão que governa a si próprio é a que governa os outros. Sendo
este governo uma arte, Foucault exprime que a política, que se faz na cidade e constitui
as leis desta, manifesta-se nos governantes que sabiamente equilibram suas paixões
tanto como na maneira pela qual a sua autoridade é exercida e as suas decisões são
tomadas. É com base nesse princípio, o do governo de si, que se desenvolve o ethos do
indivíduo: A temperança, por exemplo, que propiciava o equilíbrio da alma e as
relações de amizades sem as inconstâncias da paixão, era uma prova de que o indivíduo
estabelecia a arte de bastar-se a si mesmo sem que suas paixões o conduzissem: “toda
uma elaboração de si por si é necessária para essas tarefas que serão realizadas tanto
melhor na medida em que não esteja identificado de modo ostentatório com as marcas
do poder”. (FOUCAULT, 1985, p. 97). Em suma, as atividades a que Foucault alude
são relacionadas ao labor político e dirigidas tanto a governantes como a governados,
mas cujo princípio é a responsabilidade; uma responsabilidade que não depende de
status e que faz o indivíduo desenvolver e exercer um trabalho ético de si sobre si.

A terceira problematização é a do destino pessoal como atividade política. Mais


precisamente, trata-se da fortuna, mediante a qual era inevitável que a rede complexa de
poder oferecesesse tanto favores e benefícios quanto intrigas e dissabores a quem
articula e detém o poder. Como, portanto, é instável o exercício do poder, convém,
segundo Foucault, ter claro que

o que se é, e com o que é preciso ocupar-se enquanto finalidade última, é um


princípio que é singular em sua manifestação em cada um, mas universal pela
forma em que ele aparece em todos, e também coletivo pelo vínculo de
comunidade que ele estabelece entre os indivíduos. (FOUCAULT, 1985, p.
99, 100).

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Nos estóicos, isso se define como princípio divino sempre presente na razão
humana, princípio que cancela a possibilidade de haver distinção entre um liberto e um
escravo. Tal é a forma como o sujeito moral deve participar das atividades sociais,
cívicas e políticas, a elaborar uma ética não apenas no âmbito delas mas no percurso e
na realização delas.

CONCLUSÃO

A simples exposição do que acontecia e de como se constituía a sexualidade na


Grécia e na Roma, sob o aspecto da moralidade, não era, certamente, o intuito de
Foucault. Ele queria, na verdade, ter um parâmetro de como o ser humano vivia e hoje
vive; o seu parâmetro era, sobretudo, a história de transformações no modo como o
homem se compôs em cada século na Antiguidade. Suas problematizações sobre o
cuidado de si e a estética da existência eram a sua forma de fazê-lo, buscando expor
nuances sobre os contextos sociais e matrimoniais para saber com mais propriedade o
que limitava o homem moralmente a ser meramente assujeitado por um poder
heterônomo e como ele empreendeu alguma inflexão de rumo para instituir o poder e,
portanto, a liberdade em sua vida e forma de viver, seja consigo mesmo, seja na
intensidade de uma relação conjugal, seja na complexidade de uma atividade política.

Assim, um questionamento sempre presente, embora de modo subjacente,


poderia servir de problematização ao longo do que foi aqui abordado, qual seja, o de
saber por que razãoo sujeito permanece constituindo-se sob regras de condutas
moralmente estabelecidas e válidas socialmente se a ética como cuidado de si dirige-se
para aperfeiçoar permanentemente o governo de si e sobre si, sendo este "si" tanto o
próprio sujeito como a sua capacidade de produzir a economia doméstica e a de
ativamente participar da atividade política, ao mesmo tempo produzindo-a.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, L. A. Michel Foucault, educação e formação do sujeito. 2009. 84 f.


Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica de Goiás, Goiânia. 2009.

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BATTISTI, César Augusto. Às voltas com a questão do sujeito - posições e


perspectivas. Ijuí, RS/Cascavel, PR: UNIJUÍ/EDUNIOESTE, 2010.

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro:


Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade3: O Cuidado de Si. 8 ed. Rio de Janeiro:


Graal, 1985.

GRABOIS, P. F. Sobre a articulação entre o cuidado de si e cuidado dos outros no


último Foucault: um recuo histórico à antiguidade. Ensaiosfilosóficos. v. 3., p. 105-
120, abril de 2011.

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A NOÇÃO DE MODERNIDADE NA OBRA AS PALAVRAS E AS


COISAS DE MICHEL FOUCAULT

Hipácia Rocha Lima


Universidade Estadual do Ceará
hipacialima@gmail.com

RESUMO
O presente trabalho tem o objetivo de investigar a noção de modernidade em Michel
Foucault na obra As palavras e as coisas a partir do vínculo estabelecido com Kant. A
pesquisa concentra-se em mostrar a relação existente entre a definição de modernidade
em Foucault com a forma pela qual Kant encara o problema do homem, nesse sentido, a
finalidade da pesquisa busca explicar por onde a referência de modernidade em
Foucault tange à constituição do sujeito de conhecimento em Kant. Foucault justifica
que através do estatuto do homem kantiano se fundou as bases para o conhecimento
moderno, o autor compreende o pensamento de Kant como aquele que inaugura a
modernidade, na medida em que indaga sobre as condições a priori de conhecer,
interroga o modo de pensar o homem e aquilo que sabemos sobre ele. O ponto de
partida concentra-se em procurar expor as razões pelas quais Foucault pensa que a
filosofia de Kant constituiu uma virada filosófica no pensamento, entender de que
maneira existe um limiar epistêmico que permite uma transição possível, ou seja, saber
por que Foucault considera o homem de Kant como aquele que inicia e caracteriza a
modernidade na filosofia. Em suma, o conteúdo do trabalho trata de uma investigação
acerca da noção de modernidade em Michel Foucault, considerando essa questão
análoga ao sentido que Kant fez do problema humano, pois a partir disso, se entenderá
de que forma as ciências empíricas tematizaram o homem como objeto da vida, do
trabalho e da linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Homem. Conhecimento. Modernidade.

INTRODUÇÃO
Esse artigo pretende investigar a noção de modernidade em Michel Foucault a
partir do vínculo estabelecido com Kant.O trabalhoutilizou um conjunto de obras do
autor francês para estudar com profundidade esse vínculo, contudo, centralizamos a
obra As palavras e as coisas por ela sintetizar à problemática em questão. A pesquisa
busca mostrar a relação existente entre a definição de modernidade em Foucault com a
forma pela qual Kant encara o problema do homem, isso porque, quando Foucault


Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.

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questiona aspectos do pensamento moderno, especificamente o papel do sujeito, ele


considera o entendimento acerca do homem em Kant essencial a constituição da
modernidade, visto que, essa concepção encaminha novas possibilidades no discurso
científico e filosófico. Nesse sentido, a finalidade da pesquisa busca explicar as
condições, sobre as quais, o homem foi delimitado e disposto no pensamento
antropológico de Kant, que tão logo, serviu como produto para Foucault fixar sua noção
crítica de modernidade, evidenciando assim, a referência própria de modernidade em
Foucault que percorre a constituição do sujeito de conhecimento em Kant. Foucault
justifica que através do estatuto do homem kantiano se fundou as bases para o
conhecimento moderno, o autor compreende o pensamento de Kant como aquele que
inaugura a modernidade por repensar o cogito cartesiano. O ponto de partida dessa
afirmação originou-se após a tradução para o francês do livro Antropologia do ponto de
vista pragmático, realizada por Foucault em 1961. A originalidade da interpretação de
Foucault forneceu argumentos para criticar as filosofias do sujeitoe a compreender a
então antropologia moderna em consonância com as ferramentas de Kant. Sob essa
conjuntura, os argumentos da pesquisa se estruturam em duas etapas: a primeira busca
explicar a perspectiva que a figura de Kant toma no desenrolar do olhar foucaultiano, a
saber, qual a direção confiada pela leitura das obras que denunciaram esse novo papel
na filosofia. A segunda investigação, procura expor o limiar epistêmico que fez
Foucault pensar acerca de uma virada filosófica em Kant, ou melhor, como conceber
uma transição possível através da filosofia kantiana, por que Foucault considera o
homem de Kant como aquele que inicia e caracteriza a modernidade na filosofia.
Contudo, sabemos que ao se tratar de uma investigação sobre a noção de
modernidade na obra, seria necessário reexaminar o papel do homem na constituição da
tradição moderna, sua significação e desdobramento no pensamento, todavia, o espaço
desse trabalho não possibilita tal aprofundamento. Pensando nisso, nossos argumentos
estarão centrados em compreender a exposição de Foucault sobre a filosofia kantiana
ser considerada uma representante da modernidade, de apresentar a disposição que
orientara o fundamento dessa idéia e, ao mesmo tempo, tentar justifica a visão polêmica
de Foucault em pensar que o quadro da modernidade não seria o mesmo sem Kant.

1. O olhar foucaultiano sobre Kant

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Pretendemos de início, esclarecer a problemática da modernidade por meio da


valorização atribuída por Foucault à pergunta de Kant: “o que é homem”?1. Enquanto
reflexão crítica,essa perspectiva pretende evidenciar um ineditismo no modo de pensar o
homem, a partir do novo tipo de questão inserida no campo da reflexão filosófica, a
análise transcendental. Tal mudança no quadro filosófico inspirou a postura radical de
Foucault em torno de Kant, levando-o a problematizar a modernidade. Para Foucault, o
filósofo alemão é considerado o limiar2 de nossa modernidade ao propor outra maneira
de interrogar o homem. Isso se deve a pergunta levantada na obra a Lógica: “o que é
homem?”. Pois, no interior dessa investigação filosófica, Kant procura reformular o
campo antropológico em crise através da faculdade humana3 conhecer, o objetivo é
reinterpretar o papel do homem pelas possibilidades de apreender os objetos. Os limites
da sensibilidade e as fronteiras do entendimento serão pensados de modo a redescobrir
os fundamentos da esfera do conceituar, dado que, agora o sujeito quem legitimará a
constituição do conhecimento, essa abordagem estréia uma nova configuração do
sujeito. A pergunta formulada, “o que é o homem?”, designa um quadro inaugural na
medida em que Kant interrogou o modo de pensar o homem4 e aquilo que sabemos
sobre ele, questionou as condições de possibilidade do cogito e inscreveu uma
reviravolta5 epistêmica em torno da representação do homem. Kant inscreve novas
perguntas fundamentais: “que posso saber?”, “que devo fazer?”, “o que me é permitido
esperar?”,6todas elas se reduzirem no objeto da antropologia “o que é o homem?”, como
via de explicação máxima e nova orientação para a compreensão do homem.
Diferentemente dos seus contemporâneos, Kant fundou uma nova reflexão filosófica
porque assumiu a atitude crítica7 de examinar as contradições da metafísica tradicional,
o que lhe permitiu investigar as condições a priori de conhecer e saber até onde nosso
conhecimento pode alcançar. A atitude crítica de Kant lhe inscreveu num papel inédito
dentro da filosofia, aquele que conduziu uma revolução reflexiva no pensamento.
A questão do homem em Kant,apresentada acima,originou um forte interesse
em Foucault sobre o contexto filosófico da modernidade,fato esse que veio a
1
Kant, Immanuel. Lógica, 2003, p.42
2
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, 2007, p. 430
3
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II,2000, p. 82
4
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura,2005, p. 95
5
Idem. As palavras e as coisas, 2007, p. 418
6
Kant, Immanuel. Lógica, 2003, p.43
7
Idem. Ibidem, p. 421

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reforçaruma ácida leitura em tornodo sujeito e da modernidade posta pela tradição. A


“influência” de Kant sobre o autor francês aparece nessa atitude de reexaminar a figura
do homem dentro do pensamento. O fruto desse vínculo na obra As palavras e as
coisassurge quando Foucault fragmenta o conhecimento sobre o homem, tentando
mostrar que a filosofia se configurou com transições de sujeito, com diferentes tipos de
sujeitos. Ele evidencia as substituições do seu entendimento através da frágil inter-
relação apresentada no espaço epistemológico, pela justificativa que, as verdades
prévias de um objeto prescrevem as verdades dos discursos filosóficos,por sua vez,
esses mesmos discursos descrevem a formação obscura e oscilante dos arranjos
firmados na epistémê. Para Foucault, a definição em torno do sujeito foi construída por
relações de saber e poder, cada época e cultura há certos códigos que fixam as
possibilidades de pensamento e conhecimento, por trás de um saber há tendências e
inclinações de verdade, métodos de análises, conceitos e paradigmas que são regidos
por certezas maiores. Por isso, Kant aparece como aquele que radicaliza as antigas
estruturas, sendo responsável por uma virada filosófica ao mudar os questionamentos
sobre o homem. Percebemos na obra, que as rupturas no conhecimento são consideradas
descontinuas e os obstáculos epistemológicos se aproximam de viradas filosóficas,
fazendo então Foucault apresenta uma história às avessas.
Por esse viés, Foucault censura a pretensão das antropologias filosóficas em
buscar as leis que organizam o homem, que evocam as suas experiências originárias.
Nesse caso, não se considerou a hipótese do homem ser um dado estruturado
historicamente8, dos discursos denominarem seu conceito e as categorias lhe
promoverem como verdade. Não obstante, a emergência histórica mostra que o
conhecimento do homem foi fragmentado pelas áreas das ciências, uma vez que, as
experiências do homem moderno emergiram no saber positivo com a historicidade do
mesmo, mostrando que não haveria no sujeito uma unidade substancialista, nem mesmo
uma gênese reguladora, sua história, lhe tornou histórico. Desse modo, em vez de
esmiuçar as condições empíricas e transcendentais que permitem a um sujeito tomar
conhecimento de um objeto, Foucault procura saber quais os modos de objetivação e
subjetivação que contribuíram para que definissem o homem tal qual no presente, ou
melhor, saber mediante que práticas históricas lhe estruturaram até chegar assim na

8
Idem. Ibidem, 2007, p.471

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atualidade. Com isso, também queremos dizer que a pergunta formulada por Kant, “o
que é o homem?”, reporta diretamente a problemática vivida pelo objeto homem, aquela
preocupação em volta da sua essência, de discutir a liberdade em torno do cerne da
natureza humana9, fato que leva Foucault a pensar a antropologia como um momento
histórico desses saberes, sendo o pensamento antropológico de Kant ilustrado pela
pergunta sobre o homem.
Essas afirmações polêmicas ainda voltaram a ser centro de nossa discussão,
porém se faz necessário enfatizar outros pressupostos. Comumente, encontramos nos
livros de história da filosofia os períodos que definem os campos de investigação, por
vezes, tais períodos não correspondem exatamente suas respectivas épocas, estando
separados pela mudança de conteúdo e pelo processo que lhe enriquece. Certamente,
Foucault não ignorava tais tendências oriundas dos filósofos e historiadores das idéias,
porém, seu objetivo é apresentar o homem como um dado construído historicamente.
Boa parte de suas análises são centradas no objeto homem, elas formam uma grande
pesquisa sobre a história das ciências do homem na modernidade. Por isso, é importante
ressaltar que suas pesquisas andam nacontramão da história tradicional, criticando as
tendências filosóficas que definem o conhecimento pelo processo linear. Para Foucault a
modernidade começa com Kant na virada do século XIX até os dias de hoje, precedida
de idade clássica entre os séculos XVII e XVIII, estando marcada pelo pensamento
cartesiano, e anterior a idade clássica está o período renascentista que fica entre o século
XV até fim o XVI, nessa fase o conhecimento é dominado pelas similitudes, os jogos de
semelhança que unifica o mundo10.
A noção de modernidade na obra As palavras e as coisasnão implicam apenas
uma mudança no quadro histórico-filosófico,ela ainda faz uma previsão polêmica em
torno do sujeito. No livro, Foucault tem a pretensão de delatar a invenção e o
desaparecimento do sujeito moderno na filosofia, a rigor cito Foucault:

Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema
nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano (...) pode-se
estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente. O homem é uma
invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra
facilmente. E talvez seu fim esteja próximo. Se estas disposições viessem a
desaparecer tal como apareceram, então se pode apostar que o homem se

9
TERNES, José. Michel Foucault e o nascimento da modernidade, 1995, p. 45
10
MACHADO, Roberto. Foucault a ciência e o saber,2006, p. 112

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desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia. (FOUCAULT, 2007,


p.536)

Tendo em vista que Kant inaugura a modernidade, o entendimento do sujeito


kantiano é visto como uma nova fase por quebrar paradigmas. Da mesma forma como
uma conceituação vem à tona ela também pode desaparecer, como um objeto que fecha
seu ciclo. Sendo assim, não haveria a necessidade de fazer um esforço filosófico para
encontrar uma concepção universal e absoluta nesse sujeito, ou até mesmo, uma raiz
ontológica de sua existência. Com isso o autor fala da ingênua crença em pensar que o
homem se constituiu sobre si mesmo, com regras próprias, sendo considerado um
objeto11 preexistente na filosofia,onde devemos buscar as leis que organizam esse objeto
tão antigo.Sem entrar profundamente no debate, o importante em citar tal pensamento
radical de Foucaultestá novamente em afirmação que o pensamento moderno fez uma
configuração única do homem, pelo fato de Kant romper com a antiga visão clássica e
inaugurar uma nova reflexão sobre o homem enquanto possibilidade finita de saber,
desenvolvendo uma abordagem com uma dupla função, sendo o homem analisado
simultaneamente como objeto do saber e sujeito de conhecimento, conteúdo empírico e
forma transcendental.
Desse modo, podemos afirmar que a noção de modernidade na obra As palavras
e as coisasestá ilustrada por Foucault quando Kant lança a pergunta sobre o homem e
por meio dela abre outra quadro de resposta. O ponto importante dessa reflexão
filosófica está no fato de Kant viabilizar alternativas, descrevendo outros caminhos, ele
confere um salto antropológico com valor transcendental quando reconsidera as próprias
limitações do homem no conhecimento.

1. Limiar epistêmico em Kant

De fato, não poderíamos deixar de mencionar o vínculo entre a crítica de


Foucault à concepção de homem moderno com àquestão do homem em Kant, apenas
por meio dessa relação podemos identificar a noção de modernidade na obra As
palavras e as coisas.

11
Idem. Ibidem, p. 345

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Pretendemos assim, expor a explicação de Foucault acerca do sujeito kantiano


como aquele que inicia e representa a modernidade. Para o filósofo francês a Crítica da
razão pura foi o fundamento teórico das obras, Lógica e Antropologiado ponto de vista
pragmático, pela formação cuidadosa com que inscreve o sujeito moderno, elas
instauraram uma ruptura entre idade clássica e a modernidade. Uma das argumentações
de Foucault passa pela tentativa de explicar o sujeito transcendental de Kant, como
aquela síntese12que melhor representaas noções que constroem a
modernidade.Foucaultnota a riqueza do sujeito transcendental, uma vez que a relação do
sujeito com o conhecimento não dependeria apenas da intuição intelectual, mas
também, do modo pelo qual o conhecimento é constituído pela matéria fornecida por
sua experiência sensível, 13 a rigor cito Kant:

No momento em que abstraímos de nossa constituição subjetiva, o objeto


representado e as propriedades que lhe atribuía a intuição sensível já não se
encontram, nem podem encontrar-se em parte alguma, visto ser justamente
essa constituição subjetiva que determina a forma de tal objeto como
fenômeno. (KANT, 2001, p.38)

Para Foucault, essa perspectiva de Kant é em decorrência da reflexão que o


mesmo faz da idade clássica e da teoria da representação, uma crítica iniciada pela
indagação acerca da unidade entre ser e pensar, como uma relação insuficientemente
demonstrada pela metafísica tradicional.
Desde o tempo dos gregos a investigação entre a physis e o logos já se colocava
como um problema do conhecimento, pelo seu valor que designava a saída da
ignorância, a capacidade de atingir a areté, de alcançar a substância das coisas,entre
outras, sendo investigada pela questão do homem que conhece. Contudo, a direção
confiada pelo exame clássico tornou-se insatisfatória aos olhos de Kant, pois ela não
contemplava mais uma prova ontológica do nosso conhecimento possível, não levava
em conta as condições finitas de conhecer, já que, não analisava a unidade absoluta do
sujeito pensante. Assim fica claro, que aquele compromisso de estender o conhecimento
humano para além de toda a experiência possível vira um impasse em Kant, pois não
leva em consideração a estrutura própria do sujeito, um aspecto que pode esclarecer o

12
DREYFUS, Hubert e RABINOW. Michel Foucault, uma trajetória filosófica – Para além do
estruturalismo e da hermenêutica, 1995, p.57
13
Kant, Immanuel. A crítica da razão pura, 2001, p.65

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problema sobre até onde o homem pode alcançar fazendo uso da simples razão, ou
melhor, da razão pura.
Sobre esse aspecto,a mudança de olhar sobre a centralidade do sujeito pensante
no conhecimento, faz com que Foucault procure demonstrar mais uma vez o
aparecimento de tipos distintos de sujeito dentro da filosofia, pela justificativa que a
configuração de cada tempo leva ao início de novas concepções do saber. Basicamente,
na idade clássica o sujeito era aquele que conhecia pela capacidade de ordenar as
relações de ideias, de faz comparações por medidas matemáticas e observa primeiro o
todo para dividi-lo em partes, portanto conhecer seria analisar. Para Foucault, na idade
clássica o papel do sujeito era simplesmente interpretar uma ordem universal de signos,
mediante idéias claras e verdadeiras, para esclarecer a ordem já dada ao mundo criado
por Deus14. O homem, na idade clássica era um ser entre os seres, já na modernidade,
torna-se um sujeito entre os objetos15. Para Foucault, Kant denuncia uma metafísica
dogmática que não se preocupava com os domínios próprios da razão, que não buscava
solucionar as antinomias, essas contradições da razão consigo mesma em especular
sobre o mundo em si. Kant funda outra reflexão filosófica, que consiste na tarefa
fundamental de crítica da própria razão, de saber seus limites independente de qualquer
experiência possível, Kant indaga sobre o ato próprio de interrogar-se, nessa medida, a
reflexão deixa de ser mera condição empírica e eleva-se a uma relação crítica,
permitindo assim se extrair um conhecimento no horizonte finito do homem que
apreende, um salto epistêmico dado pela solução transcendental no sujeito.
Foucault elabora na obra As palavras e as coisas outro índice para justificar o
início da modernidade com Kant, ele demonstra através da comparação entre idade
clássica e moderna a distinção do sujeito kantiano com os demais. Inicialmente,
Foucault inscreve diferenças observando tópicos no interior dos receptivos discursos,
ele parte da estrutura da linguagem para observarquando um saber necessita em sua
trama de um conhecimento válido, por onde organiza a verdade. Por exemplo, na época
clássica, a filosofia e a ciência estudavam os seres vivos, as riquezas e as palavras, elas
fundavam um método universal de análise capaz de produzir certezas perfeitas, seus
códigos epistêmicos ordenavam as representações e seus respectivos signos. Foucault

14
Idem. Ibidem, p.331
15
Idem. Ibidem, p.343

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acreditava que o saber clássico mantinha uma relação com a máthesis universalis,
entendida como ciência universal da medida e da ordem, essa definiu o signo como
fundamento essencial no interior do conhecimento, perspectiva não encontrada na
modernidade. O signo agregou para si o valor de fazer os jogos de semelhança ligando
significante e significado, podendo representar o pensamento, a ideia, a imagem, o
sentido e a significação. Esse tipo de discurso ganhou força e domínio na idade clássica,
mediando uma relação estreita entre signo e a teoria da representação, uma organização
binária que criou procedimentos de controle e delimitação do discurso, como uma
unidade de origem e significação das palavras, separando o falso do verdadeiro numa
análise geral de todas as formas, mas o estatuto moderno não utilizava representações de
objetos para conhecer fenômenos e nem se empenhava para fundar filosoficamente a
reflexão indutiva.
Pensando nisso, Foucault explica o ciclo completo da representação através do
quadro Las Meninas de Velásquez a fim de estudar o saber clássico e fazer as devidas
comparações. Sua intenção é demonstrar que o homem moderno, tal qual esta aí, não
teria condição de emergir no sujeito cartesiano, e nem, na teoria da representação,
justamente pela diferença de nível que há entre sujeito e objeto nessas respectivas
épocas. Foucault observar cuidadosamente obra de arte e examina algumas
peculiaridades estranhas à época, um espaço vazio, a luz opaca nos personagens, o
próprio pintor representado na obra, entre outras. Foucault exemplifica a peculiaridade
dando ênfase à figura apagada dos reis16. Velásquez pinta o rei Felipe IV e a rainha
Mariana como figuras secundárias, elas são figuras refletidas de um espelho, estão
dimensionadas no centro da tela, mas ao fundo e sob a penumbra, representando uma
imagem difusa, opaca e a ser concluída. Analogicamente, seria o lugar do homem na
idade clássica, esse semblante desbotado compreendido na teoria da representação, um
reflexo do espelho como tantos, às vezes uma projeção em grau de realidade, ora o
sujeito representa, ora é representado, visto que, um espelho não mostra nada além do
que representa. Em linhas foucaultiano, a teoria da representação17 mantém um tipo de
pensamento que fixa leis de ordenação, classifica as coisas e suas semelhanças, abrange
todos os seres, dentre eles o ser humano, que se articula como símbolos, como feição,

16
Idem. As palavras e as coisas. p.5
17
Idem. Ibidem. p. 89

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um espectro dele mesmo, signos com funções representativas. O significado epistêmico


da representação é mostrar uma ideia de novo, repetir, reapresentar a mesma coisa,
como uma dobra do pensamento sobre si mesmo, num encadeamento infinito dessas,
onde a própria representação pode se representar incessantemente, seja, no interior de
uma ideia ou de algo já representável, uma solução perfeita para a finitude do sujeito,
multiplicar-se para ter um alcance infinito no saber. Segundo Foucault, o sujeito é
encarado como uma representação, mas essa representação ainda não o torna objeto de
saber, mas apenas uma imagem ou semblante em meio às coisas, que nela se reconhece,
e por isso tem-se manifestado nas ciências. O quadro do saber clássico observa a
natureza humana segundo formas visíveis, numa tentativa de representar sua aparência.
O homem da modernidade não é uma forma e nem imagem, muito menos, uma
representação com significado e identidade, existe umagrande diferença de nível entre
sujeito e objeto entre as épocas, pois o homem na modernidade se desenvolve como
objeto de saber e sujeito de conhecimento. Antes o papel do sujeito18 era simplesmente,
construir uma ordem universal de signos, mediante ideias claras e verdadeiras, para
esclarecer a ordem já dada ao mundo criado por Deus. A máthêsis (método universal de
análise capaz de produzir certezas) e a taxinomia19(sistema de signos) eram as ciências
que sustentavam a teoria da representação como única via importante de conhecer a
chave de um saber. Foucault tenta demonstra que a representação não é derivada do
homem que representa, mas de outra representação reduplicada, dos signos que se
interpela infinitamente. O homem como sujeito e objeto de saber jamais nasceriam no
berço da representação, tão pouco, no espaço do sujeito cartesiano. Com isso, Foucault
concluiu que essas leis epistêmicas20 não dariam um espaçomutuo aos dois, lado a lado,
muito menos comosujeito e objeto de conhecimento no saber.Para ele, diferentes
epistémês marcam diferentes possibilidades de pensamento e conhecimento ao longo da
história, sem que haja uma linearidade progressiva na passagem de uma epistémê a
outra, a rigor cito Foucault:

Em face da Ideologia, a crítica kantiana marca, em contrapartida, o limiar de


nossa modernidade; interroga a representação, não segundo o movimento
indefinido que vai do elemento simples a todas as suas combinações
possíveis, mas a partir de seus limites de direito. Sanciona assim, pela

18
Idem. Ibidem. p. 81
19
Idem. Ibidem. p. 99
20
MACHADO. Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 2005, p. 123.

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primeira vez, este acontecimento da cultura européia que é contemporâneo do


fim XVIII: a retirada do saber e do pensamento para fora do espaço da
representação. (FOUCAULT, 2007, p.334)

Na idade clássica, o cogito cartesiano tinha um alcance indefinido, não haveria


limites entre ser, pensar e representar, todas as coisas podiam ser representadas pelo ser
pensante, inclusive aquelas situadas alémda experiência sensível do cogito21, ele era
uma zona de alcance para qualquer pensamento, por onde se entenderia os fenômenos e
as leis da probabilidade dele, no cogitoo ser finito poderia criar inúmeras soluções no
mundo que estava aí representado. O cogito nasceu sem quer determinar as condições
sobre as quais ele dependeria, sem interrogar sobre as variações e inflexões. Com Kant,
pela primeira vez na filosofia, surge um sujeito fora do espaço da representação
clássica, longe das palavras entrecruzadas, disposto a indagar seus limites e sua origem.
Kant submete o cogito cartesiano há interrogações transcendentais, em torno das
condições de possibilidade sobre a teoria da representação e sobre o ser que se acha
representado22. Depois de inserir o cogito no espaço transcendental, o sujeito não tem
somente à disposição a intuição intelectual para formular seus conceitos, mas agora,
também conta com a experiência sensível para conhecer. Essa postura abre caminho
para novas ciências sobre a vida, o trabalho e a linguagem, partindo agorados limites do
conhecimento empíricodo homem, ou melhor, postulando um discurso que dispõem o
homem23como fonte de conhecimento e, ao mesmo tempo, como uma fronteira própria
de conhecer, os limites do conhecimento empírico e sua forma concreta de existência
são agora solicitados para legitimar o processo.
Foucault concluiu que a reviravolta filosófica em Kant configurou o cerne
antropológico para os discursos sobre o homem, o horizonte teórico necessário para
formar o conhecimento positivo da vida, do trabalho e da linguagem. Foucault tenta
demonstrar que sua hipótese não é uma mera atribuição interpretativa, mas uma ideia
concreta facilmente exprimida em seu método arqueológico de análise. É preciso antes
de tudo, lembrar que, discorrer sobre a noção de modernidade em Foucault não é dar
continuidade e explicações aos assuntos que entrecruzam seu tema, mas observar o
ponto relevante da problemática, que se encontra no marco inicial de sua abordagem. A

21
DESCARTES, René. Meditações, 1973, p. 138
22
Idem. Resumo dos cursos do Collège de France, 1997, p.107
23
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II,2000, p.80

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pergunta de Kant, “o que é o homem?”, dá ensejo a Foucault fazer recortes na filosofia,


ela simboliza não só uma mudança no pensar e no panorama do homem, mas também
aquilo que ele significa, compreender a configuração que chegou até a atualidade.
De certo, que a noção de modernidade em Foucault é indissociável a sua leitura
de Kant e, por isso talvez sofressem muita desconfiança, mas não invalida a discussão
crítica sobre o homem como fonte doadora de sentido e gêneses, a partir do qual
qualquer conhecimento é fundado e validado.Mas ao contrário, no interior do artigo
mostramos uma possibilidade de se pensar à modernidade como um momento histórico
articulado pelas os códigos epistemológicos que determinam o saber de uma época. A
investigação sobre a modernidade e sua relação com Kant foi à pergunta que
antecederam todas as outras na obra, ela transita livremente em muitos escritos de
Foucault e isso lhe coloca no patamar de fundamental.A importância da pesquisa opera
justamente na observação de uma ruptura significativa na conceituação de modernidade,
de modo, a verificar se o homem definido por Kant inaugura realmente a
modernidade.O estudo em questão é a matriz central para explicar também, a
controvérsiasobre o homem moderno ser uma invenção recente cujo fim está próximo.
Em suma, o que propomos aqui, antes de atestar qualquer formula bombástica, seria
indicar uma abertura para se refletir sobre a noção de modernidade em Foucault
mediante a sua referência crítica com Kant.

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A FACE FEMININA DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA:


ESPAÇOS E VIVÊNCIAS

Régia Maria Prado Pinto


Universidade Estadual do Ceará
regiapradop@gmail.com

RESUMO
Em 2009, foi realizada a Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua pelo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 23 capitais brasileiras,
independentemente do seu porte populacional, e em 48 municípios com mais de 300 mil
habitantes, atingindo um contingente de quase 50.000 pessoas em situação de rua com
idade acima de 18 anos. Dentre diversas questões, a pesquisa indicou que a 82% da
população em situação de rua é formada por homens. Embora seja um número reduzido,
constatamos que mulheres utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência,
vivenciando diversas formas de violações: como a fome, o frio, o calor, a discriminação,
a intolerância, a indiferença, a violência física, psicológica, sexual e moral. Ademais, o
cotidiano da população feminina em situação de rua é permeado por relações pautadas
nas desigualdades de gênero e de poderes, bem como a construção de diversas formas
de resistências na relação com o outro. Diante disso, o presente artigo tem o propósito
de discutir as desigualdades de gênero e as relações de poderes que são construídas no
cotidiano das ruas. A discussão será realizada à luz de estudos bibliográficos, pesquisas
e reflexões a partir da minha atuação profissional, na condição de coordenadora do
Centro Referência Especializado para População em Situação de Rua - CENTRO Pop
em Maracanaú.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres em Situação de Rua. Gênero. Poder.

I - INTRODUÇÃO – tecendo questões para o debate

“Todos esses nomes ignorados escondem tramas pungentes, cenas de horror e


vidas perdidas” (RIO, 2007, p. 173).

Em 2009, foi realizada uma Pesquisa Nacional sobre População em Situação de


Rua1, com um contingente de quase 50.000 pessoas em situação de rua com idade acima


Curso de Mestrado Acadêmico em Serviço Social. Disciplina: Estado, Questão Social e Política Social.
regiapradop@gmail.com Assistente Social/Coordenadora Centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua em Maracanaú.
1
A Pesquisa Nacional sobre População de Rua foi realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, entre agosto de 2007 e março de 2009, em 23 capitais brasileiras, independentemente
do seu porte populacional, e em 48 municípios com mais de 300 mil habitantes. Algumas capitais ficaram
de fora, como São Paulo, Belo Horizonte e Recife, que já haviam realizado em anos recentes, e Porto
Alegre, que, no entanto, já realizou, por iniciativa do próprio município.

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de 18 anos, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Embora, os


dados não representem a totalidade da população em situação de rua no Brasil,
possibilitou a compreensão da heterogeneidade do modo de vida dessa população, as
características socioeconômicas, escolaridade, tempo de permanência nas ruas, faixa
etária, fontes de renda, relações e vínculos estabelecidos no cenário das ruas.
A referida pesquisaindicou que a população em situação de rua é formada por
homens (82%), visivelmente predominante em relação ao número de mulheres. O artigo
em curso não tem o propósito de debater os motivos acerca da predominância numérica
entre homens-mulheres nas ruas.
Não obstante ao fato do número de mulheres em situação de rua ser pouco
significativa em relação à masculina, é imprescindível discutir as particularidades do
gênero feminino e o “ser mulher nas ruas” frente à pobreza e as diversas violações dos
direitos humanos.
Constatamos cotidianamente no Centro POP2 mediante as falas das usuárias que
participam das Oficinas e Atividades coletivas3 que as mesmas vivenciam diversas
formas de violações de direito, a exemplo da desigualdade de gênero, principalmente,
pelo fato de ser mais presente nas ruas, o homem. Diante disso, o presente trabalho
tem o objetivo de apontar elementos sobre as especificidades do “ser mulher” em
situação de rua, num espaço marcado pelo sexo masculino. Para tanto, o artigo está
dividido em três seções interligadas entre si. Na primeira, apresentaremos uma análise
sobre o fenômeno da população em situação de rua na cena contemporânea brasileira.
Na segunda seção, o artigo traz uma breve incursão sobre gênero e poder. Já na terceira,
um debate sobre especificidades e o cotidiano de “ser mulher” nas ruas da cidade. Na
última, sem a pretensão de apontar dados conclusivos, apresentaremos algumas
considerações finais do estudo que ora se apresenta.

2
Ver sobre o assunto no Manual de Orientações Técnicas do Centro POP. Consultar em
http://www.mds.gov.br/

3
Oficinas e as atividades coletivas constituem fazem parte estruturante do Trabalho Social desenvolvido
junto à população em situação de rua, com o objetivo de debater a realidade e ampliar o universo
informacional, cultural dos/as usuários/as, bem com a construção de novos projetos de vida. Ver mais
detalhado sobre o assunto no Manual de Orientações Técnicas sobre o Centro POP em
http://www.mds.gov.br/

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Durante o percurso do artigo pretendemos elucidar a temática à luz de estudos


bibliográficos, dados qualitativos e quantitativos da Pesquisa Nacional sobre a
População em Situação de Rua, bem como agregar percepções a partir da minha atuação
profissional na condição de coordenadora do Centro Referência Especializada para
População em Situação de Rua-CENTRO Pop, em Maracanaú.

II - O fenômeno da população em situação de rua na cena contemporânea


brasileira.

“(...) a rua é a própria existência” (RIO, 2007, p. 39).

Partimos da premissa de que o fenômeno da população em situação de rua no


Brasil é uma síntese das multideterminações advindas das desigualdades sociais
inerentes à sociedade capitalista. Embora, no “tempo presente,” o fenômeno da
população em situação de rua tenha tomado uma maior visibilidade, o fenômeno é
antigo. Sobretudo como um construto sócio-histórico a partir do desenvolvimento
capitalista.
Explicitando melhor, os camponeses que foram expulsos do campo para a cidade
e não absorvidos pelas indústrias que emergiam em toda Europa, passaram a ficar
perambulando pelas ruas das cidades. Essa parcela foi denominada por Karl Marx de
superpopulação relativa, lumpem proletário ou o exército industrial de reserva4 que
mantém a oferta e a procura de mão de obra de trabalho de acordo com as necessidades
da expansão do capital.
Portanto, compartilhando do pensamento de Maria Lúcia Lopes,

O fenômeno população em situação de rua é uma expressão inconteste das


desigualdades sociais resultantes das relações sociais capitalistas, que se
processam a partir do eixo capital/trabalho. E como tal, é expressão
inconteste da questão social. Essas desigualdades sociais foram aprofundadas
na cena contemporânea, em face das mudanças no mundo do trabalho,
oriundas principalmente da reestruturação produtiva, da reorientação do
papel do estado e da supervalorização do capital financeiro sobre o capital
produtivo (SILVA, 2009, p.115).

Seguindo essa direção, a Política Nacional para População em Situação de Rua, a


população em situação de rua é um

4
Aqui, estes termos são tratados como sinônimos. Ver detalhadamente esses conceitos ver Karl Marx, em
O Capital (2013).

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Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema,


os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de
moradia convencional regular, e que utiliza logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário
ou como moradia provisória (Decreto nº 7.053/2009, art.1º, Parágrafo Único).

A pesquisa que mencionamos anteriormente identificou quase 50.000 pessoas


adultas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência, vivenciando
as mais diversas violações de direitos, como fome, frio, violência, preconceito,
desemprego e dentre outras. A sociedade trata com ojeriza e preconceito. Por outro
lado, o Estado adota uma política de criminalização da pobreza com forte repressão, na
higienização e omissão diante de extermínios de indivíduos e/ou famílias em situação
de rua. De fato, a rua é um ambiente muito inóspito e aviltante com essas pessoas. É
importante mencionar que o viver nas ruas é permeado por relações de poderes, disputas
e formas de resistências.
Na próxima seção, apresentaremos um debate sobre a desigualdade de gênero e
as relações de poderes que se gestam no cotidiano das mulheres que tem as ruas como
espaço de moradia e/ou sobrevivência.

III – Gênero e Poder: breves reflexões

[...]. Quando a noite a lua mansa. E a gente dança venerando a noite.


Madrugada o céu de estrelas e a gente dorme sonhando com o dia.[..]
(VELOSO, 1975)

No artigo em curso, tomaremos como referência os estudos de Heleieth Saffioti,


na sua obra Gênero, Patriarcado e Violência, o debate da relação gênero-poder. Para
autora, “o conceito gênero é a construção social do masculino e feminino” (2004, p. 45).
A categoria “gênero diz respeito às representações do masculino e feminino, a imagem
construídas pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas
interrelacionadas (ibidem, p.116)”.
A autora defende

A ideia de que se, de uma parte, o gênero não é tão somente uma categoria
analítica, mas também uma categoria histórica, de outra, sua dimensão
adjetiva exige, sim, uma inflexão do pensamento, que pode, perfeitamente, se
fazer presente também nos estudos sobre mulher. (Ibid. p. 111)

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Então, partimos da compreensão de que a categoria gênero é uma construção


sócio-histórica fruto das relações entre homens e mulheres, reconhecendo a legitimidade
da dominação masculina em relação às mulheres. Socorro Osterne chama atenção que
essa relação de dominação não pressupõe o esmagamento do feminino (2001, p. 132).
Posto isto, discutiremos a relação gênero e poder como uma das questões que
permeiam o cotidiano das mulheres em situação de rua, principalmente pelo sexo
predominante no contexto das ruas, o masculino.
Segundo Michel Foucault (1985, p. 10), os poderes se exercem em níveis
variados e em pontos diferentes da rede social. É que nada está isento de poder e que
qualquer luta será sempre sinônima de resistência no interior da própria rede de poder.
Vale ressaltar que não existe nas obras de Michel Foucault uma teoria geral do
poder. Não obstante a isso, suas análises consideram o poder como uma realidade que
possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir suas características
universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas
díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é objeto natural. Uma
coisa; é uma prática social, e como tal, constituída historicamente.
Segundo Michel Foucault,

(...). O interessante da análise é justamente que os poderes não estão


localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam
como uma rede de dispositivos ou mecanismo a que nada ou ninguém escapa,
a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a importância e
polemica ideia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa,
como uma propriedade, que possui ou não poder. Não existe de uma lado os
que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados.
Rigorosamente falando, o poder não existe ; existem sim práticas ou relações
de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce , que se
efetua , que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma
máquina social que não está situada em lugar privilegiado ou exclusivo, mas
se dissemina por toda a estrutura social. (ibidem, p. 1985, p. 14)

Parafraseando Heleieth Saffioti, não podemos negar que o poder seja central na
discussão de gênero, mas precisamos deixar claro que o poder pode ser
democraticamente partilhado, gerando liberdade, como também ser exercido de forma
discricionária, criando desigualdades. A mesma ressalta ainda que as contribuições de
Scott são importante a medida que coloca o debate sobre o fenômeno do poder no
centro da organização social de gênero, sendo fundamental no estabelecimento e da
manutenção da igualdade e da desigualdade. Porém, ressalta que Scott não faz nenhuma

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restrição aos estudos de Focault. Heleieth Saffitt chama atenção para os méritos de
Focault, mas que o mesmo não propõe um projeto de transformação da sociedade. (ibid.
p. 113)
Dessa forma, acreditamos que estudiosos e/ou militantes da discussão de gênero
numa perspectiva feminista contesta a dominação-exploração masculina, mas luta para a
construção de uma sociedade igualitária e se contrapõe qualquer forma de pressão e
dominação.
O “tempo presente” cria uma ambiência cultural bastante propícia a deixar os
indivíduos a cargos de si mesmos, a resgatar as soluções individuais, conservadoras e
uma sociabilidade individualista do “salve-se quem puder”. Esse pensamento
fragmentado da realidade é visível na relação preconceituosa e estigmatizante da
sociedade e do poder público em relação à população em situação de rua, bem como a
naturalização e culpabilização pela própria situação.
A população em situação de rua vivencia diversas formas de violações de
direitos, como a fome, o frio, o calor, a discriminação, a intolerância, a indiferença, a
violência física e moral, a negação dos direitos sociais e sofrem com uma cultura de
expulsão, do extermínio e de genocídio. Em relação à população feminina, ainda sofrem
o preconceito, a ojeriza e a discriminação pela sua condição feminina, pois
historicamente o lugar da “mulher é em casa”.
IV - As especificidades da população feminina em situação de rua.

Quem é essa mulher. Que canta sempre


esse estribilho?[..] Quem é essa
mulher.Que canta sempre esse
lamento?[..].Quem é essa mulher. Que
canta sempre o mesmo arranjo? Só queria
agasalhar meu anjo. E deixar seu corpo
descansar. [..] (BUARQUE,1981).

Primeiramente reforçamos o pensamento de que o fenômeno da população em


situação de rua é resultado das multideterminações sociais inerentes a sociedade
capitalista, como podemos destacar o desemprego, ausência de renda, analfabetismo,

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baixa escolaridade, péssimas condições de moradia, o uso de álcool e outras drogas,


transtornos mentais e conflitos familiares.
De acordo com Socorro Osterne,

Em sua expressão mais básica, a pobreza será sempre o resultado das


relações de exploração de uma sociedade estratificada e desigual. Comporta
dupla dimensão, uma identifica com as necessidades de natureza material que
alguns autores classificam como o de ordem socioeconômico, quantitativa e
não material. De ordem política qualitativa, ambas mutuamente
condicionadas embora não determinadas entre si. Aliás, a pobreza não é só
fome, mas alienação, subserviência e humilhação. (2001, p. 101)

Como dito anteriormente, o número da população feminina em situação de rua é


pouco significativa em relação à masculina, porém é imprescindível discutir as
particularidades do gênero feminino e o “ser mulher nas ruas” frente à pobreza e as
diversas violações dos direitos.
As mulheres em situação de rua vivenciam ainda no cotidiano diversas formas
de violações motivadas pela condição de ser do sexo feminino. De acordo com os
relatos, as mulheres em situação de rua sentem-se desvalorizadas como ser humano à
medida que sofrem também como a superioridade masculina. Além de serem vítimas da
discriminação por morarem nas ruas, sofrem também com o machismo imposto por
espaço dominado pelos homens.
Pensar o “ser mulher” nas ruas é imprescindível situar o debate articulado à
discussão de gênero, pois, o papel feminino nas ruas não se diferencia totalmente da
realidade de mulheres pobres nas periferias das cidades, que vivenciam as diversas
formas de machismo. As relações entre homens e mulheres nas ruas também são
permeadas pela desigualdade de gênero, como construto histórico e social.
Para Izalene Tiene, as mulheres em situação de rua nunca estão sozinhas,
convivem em grupos como forma de garantir a proteção, elas possuem companheiros/as
para se sentirem seguras, sendo muitas vezes submetidas sexualmente para garantir a
sua segurança. Para as mulheres que vivem nas ruas é imprescindível construir relações
de sobrevivência, e cada uma delas cria suas próprias estratégias para manter uma boa
relação com o gênero mais presente nas ruas, os homens. As mulheres mantêm a
submissão sexual em troca de proteção e pagam muito caro por isso. Seus corpos
revelam traços de submissão e hostilidade. (TIENE, 2004, p. 156).

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Embora as mulheres em situação de rua sejam vítimas da violência, a exemplo


de uma mulher que foi baleada no Bairro Parque Araxá, em Fortaleza, na presença do
marido e dos cinco filhos, entre eles, um bebê de seis meses. A moradora de rua
identificada apenas como Adriana morreu na hora. Esse caso foi noticiado no Jornal O
POVO5.
No tocante ao trabalho e o acesso à renda, as mulheres em situação de rua
exercem principalmente atividade como catadoras de materiais recicláveis e a
mendicância, esta última, principalmente, quando estão acompanhadas por filhos. Há
mulheres que assumem os afazeres domésticos, bem como a organização do espaço
ocupado pelo grupo.
Constamos uma baixa auto-estima nas mulheres em situação de rua, embora
algumas demonstrem cuidado com a vaidade e higiene pessoal. Convém colocar que,
mesmo diante de todas as dificuldades, algumas mulheres em situação de rua
demonstram a vaidade através da combinação de roupas, uso de maquiagens e perfumes
que são viabilizadas pelas instituições que disponibilizam o espaço para cuidados
pessoais, lavagem de roupa e refeições.
Existe uma grande preocupação entre as mulheres que vivem nas ruas com a
exposição da sua imagem na mídia, o que pode acarretar a repreensão pela polícia nos
espaços em que elas ocupam. O viver nas ruas é permeado por relações de poder,
disputas e formas de resistências na relação entre a sociedade, o poder público e este
segmento.
A população feminina em situação de rua na cidade convive cotidianamente com
a negação ou violações dos seus direitos pela sociedade, família e poder público, aliás, o
ser mulher nas ruas é “o ser sem direitos”.
O “ser mulher” nas ruas é conviver muitas vezes com ausência das políticas
públicas que possam garantir a dignidade da pessoa humana. O acesso aos serviços
públicos é marcado por vivências discriminatórias, negação dos seus direitos,
representações estigmatizantes e preconceituosas por usuários/a que acessam as
políticas públicas, bem como pelos profissionais. Ademais, as “exigências
formais”solicitadas pelas instituições e ausência de documentação de identificação por

5
A notícia foi veiculada, O povo online. http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza data 16/03/2013
noticiasjornalfortaleza,3023500.

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parte das mulheres que vivem nas ruas constituem barreira na concretização dos
direitos.
A Política Nacional para População em Situação de Rua, propõe a integração das
políticas públicas de saúde, educação, previdência social, assistência social, trabalho e
renda, habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional, no
atendimento integral a população em situação de rua.
O Centro Pop configura-se como um espaço de referência para população em
situação de rua na perspectiva de prestar serviços visando à construção de novas
trajetórias de vida, processos de saída das ruas e/ou resgate de vínculos familiares e
comunitários. Os Serviços ofertados pelo Centro Pop são destinados aos indivíduos
e/ou famílias que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência, com a
finalidade de assegurar acompanhamento especializado com atividades direcionadas
para o desenvolvimento de sociabilidades, resgate, fortalecimento ou construção de
novos vínculos interpessoais e/ou familiares, tendo em vista a construção de novos
projetos e trajetórias de vida, que viabilizem melhores condições de vida e a
concretização dos direitos humanos.
Convém colocar que na Delegacia das Mulheres, não há registros de violência de
gênero contra mulheres em situação de rua. Isso merece um estudo extremamente
aprofundado, pois, muitas vezes a discussão da violência contra mulheres em situação
de rua é registrada como um caso de violência urbana, mascarando a questão de gênero
e o “ser mulher” nas ruas. Embora, não possamos descartar a relação, mas é necessário
pautar o debate da violência contra mulheres em situação de rua como também uma
violência de gênero. Fique aqui, o registro que a violência de gênero é
predominantemente na relação homem-mulher, mas pode ser também cometida por um
homem contra outro, por uma mulher contra outra.
É imprescindível a articulação entre as instituições e as políticas públicas como a
saúde, educação, saúde mental, previdência social, assistência social, trabalho e renda,
habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional, ou seja,
propiciar o atendimento integral de modo a formar uma rede que assegure os direitos
sociais e humanos.

V - CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Os elementos expostos no decorrer do artigo remetem para algumas


considerações sem a intenção de serem conclusivas que trilham para um caminho
urgente de debates e reflexões sobre o fenômeno da população em situação de rua,
principalmente no tocante à complexidade e especificidades do “ser mulher nas ruas”
face à situação de pobreza na cidade.
A população em situação de rua compõe as paisagens das cidades, construindo
suas territorialidades em áreas mais urbanizadas e dinâmicas da cidade, mesmo assim,
são (in) visíveis para o poder público e a sociedade.
Nesse cenário é imprescindível um olhar mais específico para o “ser mulher” nas
ruas e romper com a (in) visibilidade. Vale ressaltar que discutir a temática da
população feminina em situação de rua é extremamente desafiante, pois existem poucas
produções teóricas. Assim, torna-se urgente conhecer o modo de sobreviver das
mulheres nas ruas de uma cidade marcada pelas contradições sociais, uma cidade
voltada em atender as demandas dos interesses do capital e não da vida humana.
Embora a realidade das mulheres nas ruas não se diferencie totalmente da
realidade de muitas mulheres pobres que vivem nas periferias da cidade, é preciso
conhecer suas especificidades no sentido de construir ações mais efetivas e que
propiciem um novo olhar da sociedade e do poder público para essas mulheres.
Podemos destacar um avanço na aprovação da Política Nacional para População
em Situação de Rua, pois se constitui em possibilidade de articulação das políticas
públicas de saúde, educação, previdência social, assistência social, trabalho e renda,
habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional, no
atendimento integral a população em situação de rua. Constituiu no primeiro passo na
garantia dessa população em acessar as políticas públicas. Vale colocar que aprovação
da política é fruto organização política da população em situação de rua, dos
movimentos sociais e das entidades governamentais e não-governamentais
comprometidas com a temática em questão.
O “tempo presente” nos aponta para a luta de afirmação e ampliação das
políticas públicas, rompendo com as diversas barreiras que impossibilitem a
concretização dos direitos sociais. Vale lembrar a importância de processo de
capacitação permanente para os profissionais das diversas políticas públicas na
perspectiva de romper com as práticas preconceituosas e discriminatórias que só

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contribuem para a manutenção da realidade deste segmento. É um processo


extremamente desafiante diante dos limites estruturais das políticas públicas e da
complexidade das multideterminações dos fatores interligados ao fenômeno da
população sem situação de rua.
É fundamental a sociedade e o poder público romperem com a (in) visibilidade
da população feminina em situação de rua no cenário de pobreza e com as diversas
formas de violações dos direitos como pessoa humana. Conhecer a realidade do “ser
mulher” nas ruas é imprescindível na elaboração de políticas públicas efetivas que
viabilizem a construção de novos projetos de vida e um novo ethos para a população
feminina em situação de rua.
A visibilidade face às mulheres que vivem nas ruas é o caminho necessário para
a superação de práticas higienizadoras, ações violentas de extermínios e perseguições,
moralizantes e recolhimento das ruas que reforçam a perspectiva preconceituosa e
imediatista acerca do fenômeno.
Não podemos deixar de elencar as dificuldades de acesso as políticas públicas
devido às diversas barreiras, como a exigência de apresentação de documentos,
declaração de renda, comprovante de endereço e dentre outras.
Para finalizar os estudos, as pesquisas e ações sobre a população feminina em
situação de rua devem ser pensadas numa perspectiva emancipatória, pautada na
liberdade de escolhas e da cidadania, rechaçando o tutelamento e o compadrio.

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A DIMENSÃO POLÍTICA DO ÉTHOS PARRHESIÁSTICO

Rogério Luis da Rocha Seixas


Universidade de Barra Mansa

RESUMO
No presente texto, a temática que norteia nossa pesquisa, concentra-se na importância
da dimensão política da parrhesía, enquanto prática de liberdade política,
principalmente a partir da leitura da parrhesía cínica, que sustentamos como
representando uma transfiguração no sentido de política e que repercute até nossa
atualidade marcada pela governamentalidade. Esta temática abre espaço para a
proposição das seguintes questões: qual o sentido de se apontar uma transfiguração da
política a partir do éthosparrhesiástico Cínico? Como esta parrhesía Cínica se expressa,
nesta condição, como prática de liberdade ao governamento abusivo? Estas questões
fazem-nos perceber que a ação política passa pela recusa de como somos governados e a
ultrapassar o que nos é determinado a ser, instituindo novas formas de subjetividade.
Retomamos as teorizações foucaultianas envolvendo a articulação entre o sujeito, o
poder e a verdade, mostrando a problematização da racionalidade política atual a partir
da análise sobre a governamentalidade. Esta noção de governamentalidade determina
uma forte ênfase no eixo político de como governar os outros, assim como para o eixo
ético da arte de governar a si mesmo.

PALAVRAS-CHAVE: Éthos Cínico. Governamentalidade. Parrhesía. Política.

INTRODUÇÃO

Qual o objetivo de Michel Foucault ao abordar o tema da parrhesía?


Problematizar os modos pelos quais a verdade, no contexto da cultura antiga, se exerce
enquanto não apenas uma atividade, mas como um estilo de vida específico – delineado
pelo dever do sujeito em dizê-la a partir de um conjunto de práticas de si que ganham
diferentes contornos nos campos da política, da ética e da estética da existência.
Observamos que há um entrelaçamento entre o exercício do éthos parrhesiástico e o
cuidado de si. Neste entrelaçamento, ilustram-se as relações entre subjetividade e
verdade, governo de si e coragem da verdade. Por sinal, a parrhesía configura-se como
essencial para a problematização da governamentalidade, pois é no exercício do dizer
verdadeiro que se pode cuidar do outro – o governado – para que este possa cuidar mais
de si e encontrar sua forma de ser mais livre; constituindo uma estilística de vida mais

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independente da verdade dos outros que possam implicar em sua total condução.
Adotase, assim, a parrhesía como uma atitude filosófica que possui a preocupação com
a questão da verdade. A atitude ligada à parrhesía trata da constituição do sujeito moral
no interior das relações do saber e do poder – discurso da irredutibilidade da verdade,
poder e ética. Exatamente nesta contextualização, o terreno da política e da ética ligando
os problemas do governo de si e dos outros se intensifica com a problematização muito
atual: “Como não ser governado?” Torna-se importante relembrar que somos
governados. Não se defende uma ideia de total desgoverno ou desobediência irrestrita,
porém, o que nos é imposto como modo de governamento1 de nossas condutas também
nos determina o direito de não aceitar sermos governados para tal fim ou de tal maneira.
O exercício deste direito de se recusar a ser governado de qualquer forma é exercido no
interior das relações agonísticas entre poder e liberdade. As relações de poder na
modernidade, ao envolverem e instaurarem os regimes de verdade, causam brechas para
as disputas que são travadas no terreno em que as verdades são constituídas.

Entre janeiro e março de 1983, o filósofo Michel Foucault ministrou, no Collège


de France, o curso Le gouvernement de soi et des autres. Neste curso, o pensador
inaugura e problematiza a noção de parrhesía e como esta se encontra interligada às
questões referentes à coragem da verdade, o cuidado de si e principalmente quanto à
problematização da governamentalidade. Por sinal, há de se ressaltar a ênfase sobre a
ligação entre o dizer verdadeiro e os procedimentos de governo, ou em outras palavras,
a importância da relação entre a verdade e o governo de si e dos outros. O conceito de
governamentalidade permite a Foucault, segundo Edgard Castro, problematizar a
articulação das estratégias de resistência2 com a constituição de subjetividades éticas e
políticas. Citando Foucault:

E (...] ao colocar a questão do governo de si e dos outros, gostaria de procurar


ver como dizer a verdade, a obrigação e a possibilidade de dizer a verdade
nos procedimentos de governo podem mostrar de que forma o indivíduo se
constitui como sujeito na relação consigo e na relação com os outros. O
dizer-a-verdade, nos procedimentos de governo e na constituição de um

1
O termo governo ( ou governamento) deve ser entendido no sentido de um exercício de ato-poder para a
condução das condutas dos indivíduos. Serve para diferenciar o ato-poder enquanto condução de condutas
da noção comum de governo, enquanto administração, social e política.
2
CASTRO, E. Vocabulário FOUCAULT, 2009, p. 191.

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indivíduo como sujeito para si mesmo e para os outros: é um pouco disto que
eu gostaria de lhes falar este ano.3

Associa-se um dizer verdadeiro, com as práticas de governamento na relação do


indivíduo consigo mesmo e com os outros. Ainda segundo Foucault, o dizer verdadeiro
é constitutivo de práticas por meio das quais “os indivíduos foram levados a prestar
atenção em si mesmos, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de
desejo, estabelecendo uma forma de relação consigo mesmo que lhe permite descobrir,
no desejo, a verdade de seu ser.”4 Destaque-se ainda que este dizer verdadeiro
encontra-se marcado, por uma singularidade que sempre implica em modificações em
quem a diz e em quem a escuta. A temática concernente à relação entre o sujeito e a
verdade, faz aparecer uma conexão entre parrhesía e cuidar de si. Segundo Gros,
Foucault tenta demonstrar esta conexão no que será denominada como parrhesía
socrática: articulação entre verdade, cuidado de si e técnicas de existência.5 Ao mesmo
tempo, sendo esta uma característica primordial da parrhesía, identifica-se o éthos
parrhesiástico como um falar francamente que significa dizer não apenas a verdade, mas
enunciá-la como uma prática de liberdade crítica e um estilo de vida que não se
encontra submetido às relações de dominação e, neste sentido, ser livre, isto é, não
depender do outro quando um fala. Ressalte-se que a parrhesía aparece como oposta à
arte de falar da parrhesía cristã, ligada ao governamento pastoral, pois no Cristianismo
é fundamental que o conduzido diga um tipo de verdade: a verdade de si mesmo. Este se
configura como um procedimento indispensável para se alcançar a salvação, pontuando
uma relação particular entre sujeito e verdade, demarcando um momento fundamental
na relação entre subjetivação e Governamentalidade no Ocidente, marcada pela
obediência do conduzido ao condutor. Tal relação não ocorreu na Antiguidade, já que
aquele que é conduzido à verdade pelo mestre parrhesiástes não tem qualquer obrigação
de dizer a verdade sobre si. E é o discurso do mestre que deve obedecer a parrhesía, que
se refere a dois pontos importantes: a atitude moral – o éthos e o procedimento técnico à
tékhne. Deste modo, Foucault problematiza a governamentalidade a partir da relação do
indivíduo consigo mesmo como lugar de elaboração de si, como sujeito ético ativo.

3
FOUCAULT, M. Gouvernement de soi et des autres, 2010, p. 42.
4
Ibid. História da Sexualidade 2 : o uso dos prazeres, 1994, p. 11.
5
GROS, F. Foucault: a coragem da verdade, 2004, pp. 60-61.

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Uma ética que tem seu ponto de apoio em práticas que permitam aos indivíduos a se
constituírem como sujeitos de conduta moral e efetua transformações sobre si –
objetivando uma existência mais bela, através da possibilidade de serem livres para se
conduzirem a si mesmos ou de outro modo, aprenderem a se governar. Estilos de arte
de existência ética e política, fora da visão pastoral cristã.

Ontologia Crítica e Coragem da Parrhesía

Contudo, deve-se ressaltar que a problematização da parrhesía, deriva de um tema


muito mais amplo: uma ontologia crítica de nós mesmos (colocando-se a questão de
como não ser governado e, consequentemente, como buscar construir um modo de
existência mais livre e autônomo). Foucault partindo de sua leitura do opúsculo “Was ist
Aufklärung?”de Kant, destaca que se inaugura uma “ontologia crítica do presente,
buscando as condições e as indefinidas possibilidades de nos transformamos a nós
próprios, exigindo sempre “um trabalho sobre nossos limites, isto é, um labor paciente
que dá forma à impaciência da liberdade.”6 Ou, ainda, ter a coragem do sujeito se
constituir a “si mesmo como sujeito autônomo na crítica do que nós somos.”7 O
exercício do que denominamos como éthos crítico (filosófico), enquanto uma arte de
inservidão voluntária pode ser identificada também “uma arte de existência” –
considerando-se que há uma prática do sujeito em cuidar mais da sua conduta,
exercendo uma atitude crítica, enquanto ato poder em se recusar a ser governado de
qualquer modo, exigindo um ato de coragem em buscar a sua verdade, sem a
necessidade de condução de outros. Devemos observar que a definição de governo aqui
destacada se reflete na ação de como nos conduzimos ou como nos deixamos conduzir;
pode-se dizer que denota a ideia de como nos deixamos governar. Como observa
Oksala: “Governar não é determinar fisicamente a conduta de objetos passivos. Envolve
oferecer razões pelas quais os governados deveriam obedecer, significando que podem
questionar as razões do porque são governados.”8 Nesta condição, podemos observar
que, através da noção de ato poder enquanto governamento (isto é, a partir da
necessidade de se problematizar o como governar e a quem governar) surge em seu bojo

6
FOUCAULT, M. What is Enligthenment?Dits et Écrits II, 2001, p. 1397.
7
Ibid. Estética, ética y hermenéutica, 1999, p. 24.
8
OKSALA, J. Como ler FOUCAULT. Tradução de Maria Luiza X. De A. Borges ; Revisão técnica de
Alfredo Veiga-Neto. Rio de Janeiro : Zahar, p. 108, 2011.

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uma questão referente a “como não ser governado ou como não ser governado de tal
maneira, por tais pessoas ou para tal e tal fim?”9 Daí a afirmação segundo a qual “a
reflexão sobre a noção de governamentalidade não pode deixar de passar, teórica e
praticamente, pelo elemento de um sujeito que se definiria pela relação de si consigo
mesmo.”10 A arte da crítica, expressando-se também como arte de inservidão, ganha o
aspecto de arte de existência ou técnica de si, reconhecida mais propriamente como
técnica da vida (téchne toûbíou) implicando, segundo o sentido dado pelos gregos, “na
reflexão sobre os modos de vida, sobre a eleição da existência, sobre o modo de regular
a conduta, de fixar para si mesmo os fins e os meios.”11 Destaque-se a relação direta
entre Governamentalidade e a percepção de arte de existência, principalmente com
direcionamento ao exercício de um governo de si. A noção de artes de existência
remonta às práticas de subjetivação ética do período da moral grego e greco-romano,
exemplificadas no exercício da parrhesía – uma vez que designa uma coragem de dizer
verdadeiro, colocando, assim, o sujeito em uma relação de cuidado com a verdade,
conduzindo-se por si mesmo e se colocando contra as verdades assujeitadoras.

Assevere-se exatamente a coragem como a característica mais significativa da


parrhesía, que enquanto é uma atividade da fala cuja principal condição de
possibilidade se refere a uma atitude presente no instante em que o parrhesiástes, ao
expor suas opiniões, coloca em risco toda sua integridade social, política e moral, além
de, obviamente, física – mas este possui consciência deste risco que passa a correr no
instante em que fala a verdade. A parrhesía está associada à determinada situação social
que aponta para uma diferença de status entre o falante e seu interlocutor, envolvendo,
inclusive o risco de perder a vida. Porém, o parrhesiástes é sempre menos poderoso do
que seu interlocutor. "A parrhesía vem de 'baixo', por assim dizer, e é dirigida para o
'alto'”12. O fato de correr risco ou estar em situação de perigo pelo seu discurso é o que
caracteriza um parrhesiástes, pois este "escolhe primariamente um relacionamento
específico consigo mesmo: ele prefere ser um contador-da-verdade ao invés de um ser

9
FOUCAULT, M. Qu`est-ce que la critique? (Critique et Aufklarung), 1990, p. 37.
10
Ibid. L` Hermenéutique du Sujet. Cours au Collège de France. 1981-1982. Paris : Gallimard/Seuil,
2001, pp.241-242.
11
Ibid. Subjectivité et vérité, Dits et écrits II, 2001, p. 1034.
12
FOUCAULT, M. Fearless Sppeech. Los Angeles, Semiotext, 2001, p.18.

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vivo que é falso consigo mesmo"13. Em toda a cultura grega e romana, se faz muito
importante “dizer a verdade sobre si mesmo”. Falar com parrhesía, é dizer a verdade,
sem nada ocultar e nem dissimular. Requer de fato um ato crítico e escolha de um estilo
de vida, marcada por certa forma de coragem, arriscando-se à reação violenta por parte
de quem é interpelado.

Parrhesía Socrática

A parrhesía identificada com a coragem de dizer a verdade possui um sentido


positivo, pois se exerce a parrhesía sem reserva ou mera retórica bajuladora; dizer tudo,
sim, mas em consonância entre o estilo de vida e a verdade, sem mascará-la. Sócrates é
considerado ou assim apresentado por Foucault, como o parrhesiástes por excelência –
não pelo motivo de buscar a verdade eterna das Ideias ou querer dizê-la, mas por que ele
estabelece entre suas palavras e suas ações, entre seu logos e seu éthos ou bios, uma
harmonia perfeita, governando-se a si mesmo. Segundo Abraham, “Foucault habla de
verdad y vida confluyendo em este hombre, Sócrates, como aquele que hace possible su
condición debásanos.”14
Foucault, ao analisar o diálogo Laques, observa que a parrhesía socrática
destaca aos interlocutores (no caso, dois políticos importantes) a necessidade de
autoexaminarem suas vidas, incitando-os a um cuidado de si mesmos. Neste diálogo,
coloca-se a questão da constituição de um éthos parrhesiástico aliado a um cuidado de si
– fazendo da vida (bíos) objeto e concepção de uma existência estética. Sócrates
interroga eminentes homens de Estado e propõe um tipo de veridicção – de dizer a
verdade – diferente da parrhesía negativa que expressa a “má polis democrática”. Claro
que, em outro diálogo destacado por Foucault (o Alcibíades I), também se capta a
relação entre a parrhesía e o cuidado de si. Como destaca o autor, fazendo referência às
semelhanças entre estes dois diálogos, na aula de 29 de fevereiro de 1984: “Essa
parrhesía (a socrática) que serve para pedir aos interlocutores para dar conta de si
mesmos, deve conduzi-los e efetivamente conduz à descoberta de que são obrigados a
reconhecer que necessitam cuidar de si mesmos.”15 Evidencia-se a ligação entre
parrhesia e cuidado de si, comum aos dois diálogos, quando os interlocutores são

13
Ibid. Ibidem, p. 17.
14
ABRAHAM, T. El último Foucault, 2003, pp.58-59.
15
FOUCAULT, M. Le Courage de la vérité, 2009, p. 146.

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desafiados a se questionarem se de fato estão dando conta de suas vidas – se são capazes
de “dar conta da razão do si” (didónai lógon). A figura de Sócrates também aparece
como ponto comum, nestes dois diálogos, quanto à coragem de exercer seu éthos
parrhesiástico, e como estando capacitado de ao cuidar de si, encontrar-se apto para
cuidar dos outros. Assim, o modo de vida se configura como correlativamente
fundamental da parrhesía socrática nestes diálogos. Reforce-se que a confiança que se
pode depositar na autenticidade das palavras de Sócrates deriva do fato deste
demonstrar, através de seus atos, que não se limita a crer que o que enuncia seja
verdadeiro, mas que à medida que está convicto em seu dizer verdadeiro, ele o coaduna
à sua própria existência – mesmo correndo o risco sempre comum a quem exerce o
éthos parrhesiástico de sofrer sanções, coerções e punições de morte e exílio. Porém,
mais especificamente no Laques levanta-se a questão da coragem da verdade, da relação
entre ética e coragem e a verdade. No Alcibíades, é necessário se ocupar da alma para
que ela contemple a si mesma e possa conhecer o elemento divino que lhe permita ter
acesso à verdade. No Laques, por sua vez, deve-se cuidar não da alma, mas sim da vida
(bios). Neste diálogo percebe-se uma noção de filosofia como experiência de vida, que
se coloca como matéria ética, objeto de uma arte de si mesmo. Uma maneira de ser e
fazer, da qual se trata de prestar contas ao longo da existência. No Alcibíades, uma
filosofia que se situa no conhecimento de uma ontologia de si, mais marcadamente
metafísico. Assim sendo, embora os diálogos não sejam incompatíveis entre si, deve-se
marcar esta importante diferença. No Laques, a parrhesía socrática expressa um dizer
verdadeiro que “não circunscreve mais o lugar de um discurso metafísico possível”16.
Identifica-se de fato o exercício de um éthos que deve buscar dar à existência, um tipo
de prestação de conta de si mesmo, necessário para definir a figura visível que os
humanos devem dar à sua vida. Pode-se identificar o éthos de dizer verdadeiro que
apresenta a função e finalidade de dar ao bíos (esta existência, esta vida) uma
determinada forma.”17 Enfatiza-se deste modo, mais do que uma metafísica da alma, as
práticas de constituição de uma estilística da existência, a partir da prática do éthos
parrhesiástico.

16
16 Ibid., Ibidem, p.148.
17
Idid., Ibidem., p.148.

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Parrhesía Cínica

Partindo deste quadro em torno de estilos de existência que como observa Gros,
“é na senda socrática que se desenha para Foucault, o interesse pelos cínicos gregos”18.
Qual seria o motivo deste interesse? Foucault justifica este interesse ao apontar na
prática Cínica:

A exigência de uma forma de vida extremamente marcante – com regras,


condições ou modos muito caracterizados, muito bem definidos – é
fortemente articulada no princípio do dizer-a-verdade ilimitado e corajoso; do
dizer-a-verdade que leva sua coragem e ousadia até se transformar em
intolerável insolência.19

Essa articulação, essencial no Cinismo, representa um forte vínculo “Entre viver


de certa maneira e se dedicar a dizer a verdade, são mais notáveis por se fazerem de
certo modo imediatamente, sem mediação doutrinal, ou, em todo o caso, dentro de um
marco teórico assaz rudimentar.”20 Gros ressalta que a filosofia cínica comporta dois
núcleos, reconhecidos como duros, que representam a sua prática: “uma franqueza rude,
áspera e provocadora e um modo de vida de errância rústica e pobre, um manto imundo,
um alforje e barba hirsuta.”21 Sem dúvida, Foucault apreende, na parrhesía Cínica, uma
radicalização na relação do dizer verdadeiro e o modo como o cínico estabelece para si
seu estilo de vida marcado pela afirmação arrojada e uma pobreza errante. O Cinismo
se apresenta como uma forma de parrhesía, mas encontra o seu lugar, seu ponto de
emergência na própria vida daquele que deve dizer a verdade, sob a forma de uma
manifestação de estilo de existência. O Cínico apresenta assim, um estilo de vida não
dissimulado, expondo, este modo de ser, de maneira absolutamente visível e pública em
todas as suas formas, sem nada ocultar – ao contrário, como não dissimula tudo em sua
atitude de vida, pode e deve ser mostrado inteiramente. Expõe seu estilo de existência
nas ruas, não se importando com convenções e costumes sociais, e, muito ao contrário,
os critica e acusam de estarem fundamentados em hipocrisia e pouco compromisso com
uma vida mais livre. Sendo assim, o seu estilo de vida escandaliza, pois é exposto ao
público, recusando o convencional e o não natural, transformando-o em alguém à

18
GROS, F. A Parrhesia em Foucault. In. FOUCAULT. A coragem da verdade. 2004, p. 162.
19
FOUCAULT, M. Le courage de la vérité, 2009,p. 153.
20
Ibid. Ibidem, pp. 153-154.
21
GROS, F. A Parrhesia em Foucault. In. FOUCAULT. A coragem da verdade. 2004 , p. 162-163.

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margem da sociedade. Estabelece para si a condição de encontrar-se livre das


convenções e das aprovações ou reprovações morais dos costumes, pois, para o cínico, a
vida sempre se expõe em suas condições mais naturais e fundamentais, isenta de convenções
artificiais. É a vida, e não o pensamento, que é “passada ao fio da navalha da verdade.”22 Esta
radicalização demonstra que o Cínico escolhe e assume a coragem de seu estilo de vida
enquanto uma manifestação da verdade, como uma real ou radical liberdade (eleutheria),
eliminando as necessidades supérfluas, onde falavam tudo sem disfarce, com ironia e
escandalizando, estabelecendo a partir de sua parrhesía o total exercício da liberdade de ação
(anáideia). Há a exigência de um estilo de vida intensamente articulado sobre o principio de
dizer verdadeiro sem medo, ilimitado e corajoso, até o ponto de uma insolência intolerável.
Um ponto a ser ressaltado como essencial na parrhesía cínica se expressa exatamente
na simetria radical entre o logos e o bíos, enfatizando-se uma vida ética que se condiciona a se
livrar das convenções da vida social, encaradas como engodos e obstruções para o exercício da
vida verdadeira. Tem-se a demonstração de uma estética de existência que coloca o modo de ser
verdadeiro sem se adequar a nada, a não ser a naturalidade da vida. Não há proposta de fixidez
de atitudes, aceitando, como própria da vida nua e exposta, a sua contingência. É um estilo de
existência filosófica que faz explodir a verdade da vida como escândalo. Não se trata
simplesmente de regular a própria vida segundo um discurso e de ter, um comportamento justo
defendendo a própria ideia de justiça, mas de tornar diretamente legível no corpo, a presença
explosiva e selvagem de uma verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do
escândalo da verdade23. Postura que difere da parrhesía Socrático. Deste modo, inexiste na
parrhesía Cínica, a doutrina de que uma virtude pode ser ensinada para os que foram criados
como os melhores para ouvir o dizer verdadeiro e exercitarem o cuidado de si, tornando-se
governantes justos. Também não há o objetivo de estabelecer uma harmonia regrada entre as
palavras (logos) e atos (érgon), entre verdade (alétheia) e a vida (bíos). Nos cínicos, a relação
entre dizer verdadeiro e a vida é mais exigente e polêmica.
O tema da vida-verdadeira – alethés bíos – pode ser retratado por um episódio da vida
de Diógenes, o cínico, narrado por Diógenes Laércio: aquele teria recebido a missão divina para
“falsificar o valor da moeda” (frase em grego, parakharattein to nomisma). Se, por um lado,
existe uma aproximação entre moeda e costume, por outro, significa que é possível trocar a
efígie da moeda por outra, permitindo que ela circule com seu verdadeiro valor – a moeda-
verdadeira. O princípio cínico “mudar o valor da moeda” é a prática da alethés bíos – trocar o
metal da moeda significa modificar a imagem, para que a verdadeira-vida apareça, sem mistura,

22
Ibid. Ibidem, p. 162.
23
GROS, F. A Parrhesia em Foucault. In. FOUCAULT. A coragem da verdade. 2004, p. 163.

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sem dissimulação, reta, soberana, incorruptível e feliz. Foucault vê, nessa metáfora, por um
lado, uma espécie de passagem ao limite, a extrapolação da vida-verdadeira – “alterar o valor da
moeda” está ligado à qualificação de cão (que Diógenes dava a si mesmo), e que passou a
identificar o Cinismo, como vida sem pudor, sem respeito humano, que faz em público e aos
olhos dos outros, o que somente os cães e outros animais ousam fazer, e que mesmo os homens
mais ordinários procuram esconder. Por este motivo, o bíos do cão é a indiferença; mais
propriamente com respeito à parrhesía Cínica, seria a provocação e intervenção, de modo
crítico, para mudança de conduta dos outros.
Outro episódio que reflete o exemplo máximo do princípio da parrhesía viva e
ativa dos Cínicos está exemplificado no encontro entre Alexandre o Grande e Diógenes,
o Cínico. Alexandre fez questão de procurar o Cínico. Pela manhã poderoso soberano
encontra o filósofo recostado em seu abrigo. Dirigindo-se a ele Alexandre lhe pergunta:
"Pede-me o que quiseres". Diógenes responde: "Não me faças sombra. Devolve meu
sol". Para Foucault este é um claro exemplo de um dos tipos de parrhesía empregada
pelos Cínicos, o diálogo provocativo. Ainda segundo o relato sobre este encontro, em
vários momentos Alexandre exibia uma grande irritação e vontade de matar Diógenes,
que prossegue apontando três modos faltosos de um rei se comportar, que corresponde à
devoção à riqueza, devoção ao prazer físico e, por último, devoção à glória e ao poder
político. Desta forma, ao ser interpelado por Alexandre – alguém que representava
poder e autoridade, podendo tirar a sua vida, além de desprezar a ostentação da
autoridade de um rei, Diógenes não sente medo em se colocar como soberano de sua
vida, senhor de si mesmo, estabelecendo um estilo de vida, ligando bíos e logos até o
limite, colocando-se de modo mais soberano que o rei dos reis – porque a vida cínica é
totalmente desapegada e só depende de si mesma. Ao exercer esta postura de
escandalizar o poder, Diógenes expressa a ênfase na vida ética, trazendo a questão da
bios philosophos (vida filosófica), a partir de sua parrhesía provocativa e grosseira. A
sua técnica de « diálogo provocativo » apresenta uma característica marcante: abalar o
orgulho do interlocutor em se arrogar de saber como está se conduzindo, não se
assemelhando ao jogo ignorância-conhecimento, comum nos diálogos platônicos, que se
utilizam da maiêutica socrática.
Há um forte sentido de crítica às instituições políticas subjacente no exercício do
éthosparrhesiástico Cínico. Retomando o encontro entre Alexandre e Diógenes, este o
trata com indiferença e desprezo, afirmando que “alguém com a pretensão de ser rei é

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como uma criança que, após vencer um jogo, põe uma coroa na cabeça e declara que é
rei”.24 O confronto com Alexandre ilustra uma agonística entre o poder político e o
poder da verdade. A verdade como vida prática, como modo de existência, garante a
soberania a Diógenes que pode, assim, anedoticamente, se proclamar o verdadeiro rei
sobre a terra. Observa-se a característica deste embate agonístico da parrhesía como um
enfrentamento entre o ato-poder do dizer a verdade livre do parrhesiástes com a figura
do poder político que representa o exercício de governamento que se deseja absoluto.
Deste modo, a parrhesía Cínica se configura como uma forma de agonística
despudorada, tratando-se de uma prática de “vida política” que, ao exercitar a ligação
entre logos e bíos, coloca-se de forma crítica em relação aos que se identificam como
detentores do poder e da verdade. A coragem da verdade do éthos parrhesiástico surge
aqui como problema político, pois consiste em afrontar a cólera da Assembleia, do
Príncipe e de outros, o contrário do que estes pensam e fazem, como sendo correto e
verdadeiro.
Existe uma postura política, na atividade do éthos parrhesiástico, principalmente
na parrhesía Cínica, que sinaliza um modo de vida alternativo às normas e leis que
regulam a vida dos indivíduos, normas que assujeitam25 de algum modo. Nesta situação,
o Cínico coloca-se de modo resistente contra a autoridade, conduzindo-se segundo o seu
estilo de vida. Gros comentará que a ideia de uma vida trabalhada (na espessura da sua
materialidade) pela verdade é perseguida por Foucault no âmbito da famosa divisa
cínica, aqui já anteriormente comentada, parakharáxon to nómisma (Falsificação da
moeda).26 Qual o significado de cunho político, contido neste princípio?
Etimologicamente nómisma (moeda) e nómos (lei, norma) estão muito próximos. A
tarefa do éthosparrhesiástico Cínico se configura como uma contestação à ordem –
filosófica e política – visando uma transvaloração da verdade (e, por consequência, de
costumes e normas que norteavam a prática política social).

CONCLUSÃO

24
FOUCAULT,M. Fearless Sppeech, Los Angeles, Semiotext, 2001,p. 126
25
O termo derivado do francês “assujetissement”, usado por Foucault, apresenta o sentido de condição dos
indivíduos se encontrarem sujeitos a alguém ou a algo, denotando o neologismo em português
“assujeitamento”.
26
GROS, F. Le Courage de La Vérité. Situation du cours, 2009, p. 324.

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Nossa discussão tem início a partir da observação referente a um ativismo


filosófico, ético e político, descrito como atitude ou, mais ainda, como um éthos na
reflexão foucaultiana, que engloba todo o seu trabalho, mas que se torna mais pungente
em sua, assim denominada, última fase ou fase ética. Nesse momento, o autor se volta
para as práticas de liberdade enquanto forma de recusa ao exercício de governamento
excessivo na conduta dos indivíduos. É necessário explicitar que, analisando e
problematizando, de forma articulada, verdade, poder e subjetividade no âmbito do que
vai designar como “governamento pela verdade”, Foucault realiza o deslocamento de
sua reflexão para o eixo do éthos. Ele descreve uma atitude crítica, ou, em outro sentido,
um éthos crítico, como condição dos indivíduos ao se recusarem a serem governados de
tal maneira, identificando-se assim como uma contraconduta que pode ser qualificada
como uma prática de liberdade ética, contrapondo-se a um governo alheio e excessivo, a
partir de uma inquietude que leva à questão de como não ser governado de modo
absoluto. Há uma atitude radical, que se expressa como uma escolha ética e estética de
como conduzir o estilo de vida, que a partir de uma atitude própria, reflete-se na noção
de éthos enquanto modo de ser que expressa uma relação consigo mesmo e a verdade.
Vislumbramos assim uma subjetivação política que em Foucault não se dissocia da
ethopoieses( a formação do éthos, a relação consigo mesmo). Como se dá esta relação?
Através da palavra franca e arriscada que interpela a si mesmo e aos outros; que
interpela os discursos de poder que se colocam como verdadeiros, para nos governar e
assujeitar. A atitude ligada à parrhesía trata da constituição do sujeito moral, no seio
das relações de poder e saber – discurso da irredutibilidade da verdade, poder é ética.
Exatamente nessa contextualização, o campo da Política e da Ética ligado à
problematização da Governamentalidade, que se intensificou na reflexão foucaultiana.

Têm-se o exercício do dizer verdadeiro que foi descrito e trabalhado por


Foucault, em seus últimos cursos, como parrhesía e que denominaremos como éthos
parrhesiástico. O tema da parrhesía se impõe devido à leitura referente à ética grega e
greco-latina. No contexto que destacamos, ela apresenta um efeito ético, pois o sujeito
se constitui por si mesmo ao lidar com sua verdade, podendo influenciar outros de seu
convívio a também examinarem as verdades que lhe foram instituídas, construindo suas
subjetividades; há uma atitude ética que remete ao princípio do cuidado de si. Ao
mesmo tempo, o exercício do éthos parrhesiástico, apresenta um efeito político pelo

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motivo de quando interpela os outros, torna-se essencial para que ao exercitarem o


questionamento do modo como os indivíduos se conduzem e se deixam conduzir, os
Cínicos visam exatamente o governar a si como um modo soberano de vida.

Este éthos parrhesiástico Cínico apresenta como o tema da vida-verdadeira –


alethés bíos – uma ação política que não se localiza no interior das instituições e o
princípio cínico “mudar o valor da moeda” como prática da alethés bíos – ocorrer no
cotidiano da vida social. Interessam diretamente os efeitos sociais deste éthos
parrhesiástico que reverte a noção de verdadeira vida como imperturbável e imutável,
segundo a tradição filosófica grega, para uma vida outra, como vida de agonística
pública, autêntica e escandalosa da verdade. Esta reversão nos permite ressaltar como
ponto central de nossa problematização, a operação de uma transfiguração radical no
sentido de política e que esta passa a ter um importante papel para se problematizar a
questão da governamento.

Constata-se então que a parrhesía é uma atividade da fala cuja principal


condição de possibilidade se refere a uma atitude presente no instante em que o
parrhesiástes, ao expor suas opiniões, coloca em risco toda sua integridade social,
política e moral, além de, obviamente, física – mas este possui consciência deste risco
que passa a correr no instante em que fala a verdade. Deste modo, este éthos
parrhesiástico implica em uma atitude ética que o coloca em acordo com si mesmo, mas
não o tornando um indivíduo fechado em si, e sim alguém ligado a outros que podem
constituir com ele uma esfera pública. Para Frédéric Gros, seria a suposição parrhesiasta
de uma fala engajada27 – mas, igualmente, como destacamos antes, uma fala e postura
perigosas; uma verdade que não se diz senão sentindo o fio da espada roçar na garganta.
Temos uma atitude e risco de fundo político.

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A RELAÇÃO CORPO-ALMA COMO FORMAÇÃO HUMANA: UM


PARALELO ENTRE SPINOZA E FOUCAULT

Carlos Wagner Benevides Gomes


Universidade Estadual do Ceará - UECE

RESUMO
O corpo e a alma constituem uma importante problemática acerca da constituição do
homem moderno. Benedictus de Spinoza (1632-1677), filósofo holandês, na Ética,
apresenta uma ontologia do paralelismo entre o corpo e a alma (a mente, que é a ideia
do corpo) onde são definidos como dois modos finitos dos atributos extensão e
pensamento de uma Substância (Deus). Por conseguinte, a concepção spinozana sobre o
corpo e a mente contraria a tradição metafísica e judaico-cristã. Por sua vez, Michel
Foucault (1926-1984), em Vigiar e Punir explicita a noção de corpo onde também
podemos inferir, o problema da díade corpo/alma como constituição do sujeito
moderno. Segundo Foucault, o corpo está articulado numa relação entre saber e poder
onde a „„alma‟‟ (a ideia de sujeito, por exemplo) se distingue completamente do
conceito dualista e metafísico. Este artigo tem o objetivo de, a partir do paralelo entre
Spinoza e Foucault, explicitar a questão corpo-alma, tendo como referências: Ética
(Parte II), de Spinoza e uma Dissertação intitulada Michel Foucault e a constituição do
corpo e da alma do Sujeito Moderno, de Fernando A. Silveira onde este analisa as obras
Vigiar e Punir e História da Sexualidade I de Foucault. Portanto, podemos concluir
que, tanto em Spinoza como em Foucault, há uma preocupação epistemológica, política
e social acerca do controle e poder sobre os corpos e às suas mentes (almas).

PALAVRAS-CHAVE: Spinoza. Foucault. Corpo e Alma. Homem.

INTRODUÇÃO
O estudo acerca do corpo e, certa forma, também de sua essência ou sua
subjetividade, se tornou uma problemática indispensável para a filosofia que buscou
compreender os fundamentos da constituição humana. Discutir o corpo, eticamente,
para alguns pensadores, é discuti-lo a partir de sua potência e de seu saber. Tal estudo
perpassa boa parte da antiguidade grega, a saber, da metafísica platônica, acerca do
dualismo do corpo e da alma enquanto dois seres distintos e separáveis. E a este
dualismo que marcou uma relação de hierarquia entre o corpo e a alma fazendo com
que, posteriormente, a religião judaico-cristã, por exemplo, afirmasse dogmas e
preceitos que mais rivalizavam o corpo ante a alma. Na modernidade, tivemos René


Bolsista no Programa de Monitoria Acadêmica (PROMAC). Graduando-se em Filosofia Bacharelado
pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Email: carlos.wagner@aluno.uece.com.br.

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Descartes (1596-1650) com a concepção de Sujeito e do dualismo substancial do corpo


e da mente na qual seriam duas substâncias distintas (uma coisa extensa e uma coisa
pensante) criadas por uma Substância infinita e perfeita (um Deus transcendente).
Benedictus de Spinoza (1632-1677), considerado o racionalista por excelência, foi que
pela primeira vez na filosofia moderna reformulou o conceito tradicional de corpo e de
mente definindo-os como modos finitos de dois atributos de uma única Substância (um
Deus imanente). Na Ética,obra publicada postumamente em 1677, Spinoza não atribui a
alma (mente) um status metafísico, superior e infinito em relação ao corpo humano, pois
a mente é a ideia do corpo e este é objeto daquela. Fazendo parte de atributos distintos,
Spinoza explicita o chamado paralelismo do corpo e da alma, excluindo qualquer
hierarquia ou mistificação da mente sobre o corpo.
Mas, afinal, como expor a discussão acerca do corpo e da alma na filosofia do século
XX? Como explicar o corpo e a alma enquanto constituintes do indivíduo moderno?
Para delimitarmos essas indagações tomaremos como apoio referencial, além de
Spinoza, o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) para um paralelo filosófico
entre dois pensadores que se preocuparam com o corpo e sua essência (seja
representado por uma alma, mente ou subjetividade). O estudo de Foucault, sem dúvida,
é importante enquanto uma filosofia genealógica e „„arqueológica‟‟ do corpo, pois a
partir de abordagens envolvendo contextos de várias épocas. Em Vigiar e Punir (1975),
o filósofo explicita as relações de forças (o poder) sobre o corpo na sociedade, além de
tratar a ideia de sujeito que associada a uma „„alma‟‟ está presente nas relações de saber,
poder, processo e discurso (subjetivação) onde há a construção de uma identidade-
sócio-histórica dos indivíduos. Por conseguinte, o corpo do sujeito, segundo Foucault,
está interligado às praticas do poder e do saber na qual o corpo e a analogia psicológica
(que inferimos neste trabalho) de „„alma‟‟, são objetos de manipulação, aperfeiçoamento
e adestramento.

1. O Corpo e a Mente na Ética de Spinoza


Na obra Ética, publicada postumamente em 1677, Spinoza faz a partir de cinco
partes, tratados em ordem geométrica dos quais temos diversas temáticas, entre elas,
Deus, o corpo e a mente, a servidão e a liberdade humana. O filósofo, a partir de
Axiomas e Definições gerais como Deus e Liberdade, por exemplo, anuncia as

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condições do discurso (Notum per se). Na parte II, intitulada A natureza e origem da
Mente temos a questão do corpo e a mente, como Spinoza define, que são dois modos
finitos do atributo Extensão e Pensamento da Substância. Neste sentido, o corpo e a
mente são um „„único e mesmo indivíduo [o homem]‟‟ (EII P21S1) cada um dos quais
expressando, diferentemente, os Atributos da Substância. Spinoza rompe com a
metafísica platônica acerca do corpo e da alma enquanto dois seres distintos e ao
dualismo substancial de Descartes. Considerado racionalista por excelência, Spinoza
defendeu a ideia central de que „„a mente é a ideia do corpo‟‟ e, dessa forma, a partir de
uma filosofia ontológica e imanentista, o filósofo explica como o corpo e a mente
humana representa uma relação de unidade ou um „„paralelismo‟‟, termo que Leibniz
(1646-1716) também empregou em sua filosofia. Segundo Chaquet (2011, p.26): „„A
doutrina do paralelismo não restitui a ideia de uma unidade presente na concepção
espinosana, pois introduz uma forma de dualismo e de pluralidades irredutíveis. ‟‟
Segundo a pesquisadora francesa, o termo paralelismo deve ser evitado e que ao invés
de pensarmos em paralelismo de corpo e de mente, o certo seria pensarmos em
Igualdade.
É importante ressaltar que a filosofia de Spinoza é imanentista, pois difere de
outros pensadores ao negar o Deus transcendente e afirma a Imanência deste
(Substância única), ou seja, como explica na parte I de sua Ética2que Deus é causa
imanente e não transitiva das coisas (EI P18). Spinoza define, na Parte I, De Deus, as
propriedades gerais sobre Deus enquanto uma substância absolutamente infinita, causa
de si e natureza naturante3 da realidade. Ou seja, Deus não é mais um criador ou um ser
pessoal com atributos antropomórficos e nem mesmo transcendente (como na religião
judaico-cristã), mas produtor e imanente ao todo, pois fora deste, não há nada. Ele é um
ente cuja existência é necessária, pois não depende de outra coisa para existir. Neste
sentido, Deus não tem finalismos, nem nos ama e nem nos odeia. Spinoza a partir da
definição de Deus demonstra sua ontologia; não uma hierarquia de Deus com as coisas

1
A tradução da Ética de Spinoza utilizada foi a edição bilíngue Latim-Português de Tomaz Tadeu,
Editora Autêntica, 2010. Utilizamos as seguintes abreviaturas: Ética e suas partes I, II e III(EI, EII e EIII),
Axiomas (Ax.), Definição (Def.), Proposição (P), Demonstração (D) e Escólio (S).
2
SPINOZA, Ética, 2010.
3
Natura Naturata (Natureza naturada) e Natura Naturans (Natureza Naturante) são expressões do século
XII de traduções latinas de textos aristotélicos que designam a coisa criada e a coisa criadora.

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singulares, pois adiante na Ética, temos as noções de Atributos e Modos que constituem
uma relação de partes na Substância.
Os Atributos são expressões substanciais infinitas e aquilo que o intelecto
percebe como essência da Substância (EI Def.4). Os homens, neste sentido, fazem parte
dos modos da Substância, ou seja, as afecções desta e aquilo que existe em outra coisa
(EI Def.5) e enquanto modos finitos dos infinitos atributos de Deus conhecem apenas
dois deles: atributos Pensamento e Extensão. Segundo o filósofo racionalista, o homem
tem como essência atuante um esforço. Como trata especificamente na Parte III da
Ética, sobre a origem e a natureza dos Afetos, Spinoza afirma que todos os seres
possuem um esforço no qual perserveram em suas existências. Este esforço, latinizado
por conatus, é uma potência (conatus) do homem para perseverar no seu ser ante
algumas paixões ou ações que Spinoza define como Afetos. Ora estas paixões podem
diminuir ou aumentar a potência do indivíduo a partir de certos Encontros (occursus)
No que se refere aos atributos da extensão e do pensamento, é importante ressaltar que
tanto o Corpo como a Mente têm um esforço (conatus). O corpo como atributo da
extensão tem o esforço para existir, portanto, possui uma potência de agir. A mente, por
sua vez, atributo do pensamento, tem o esforço ou a potência para pensar. Desta forma,
Spinoza define o corpo e a mente como atributos que tem suas respectivas potências de
ser.
Segundo Marilena Chauí a respeito de corpo e mente em Spinoza diz: „„[...] a
união corpo e alma [mente] e a comunicação entre eles decorrem direta e indiretamente
do fato de serem expressões finitas determinadas de uma mesma e única substância,
cujos atributos se exprimem diferenciadamente numa atividade comum a ambos‟‟.4
Neste sentido, temos o corpo e a mente como efeitos simultâneos da atividade de dois
atributos da Substância. Não há, entretanto uma relação de hierarquia entre o Corpo e a
Mente, pois estão sob as mesmas leis e mesmos princípios, embora expressos
diferentemente. Segundo Spinoza, na Parte I da Ética, nem o corpo determina o
pensamento, nem este determina aquele. Voltando para a afirmação de que „„a mente é a
ideia do corpo‟‟. Recusando a ideia de faculdades da alma em Descartes, Spinoza diz
que a Mente é uma força pensante ou o próprio atributo pensamento que constitui a
essência humana e a ideia do nosso corpo. Afinal, como Spinoza explica o Corpo e a

4
CHAUI, Espinosa: Uma filosofia da Liberdade, 1995

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Mente na Ética? Deus ou a Substância, como dito acima, é a Natureza cuja expressão é
imanente de uma atividade infinita:

A substância una e única, é uma unidade infinitamente complexa constituída


por infinitos atributos, isto é, por infinitas qualidades infinitas diferenciadas
pela potência infinita de autoprodução e de produção de todas as coisas‟‟.
(CHAUI, 1995, p.53)

Dos infinitos atributos da Substância, só podemos conhecer dois deles: o


atributo pensamento e o atributo extensão. O atributo pensamento é o que dá origem a
mente e o atributo da extensão, dá origem aos corpos. Deus, assim como o corpo, é uma
coisa extensa, pois segundo EII P2: A extensão é um atributo de Deus, ou seja, Deus é
uma coisa extensa.5 Neste sentido, o que é o corpo humano em relação à extensão de
Deus? Um modo finito do atributo extensão, ou seja, um indivíduo dinâmico com seus
sistemas de ações e reações, assim como todos os corpos simples. Sobre o corpo
humano diz Spinoza na EII Ps1: „„O corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de
natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto.‟‟(Ibid, p.105).O
corpo é constituído por uma pluralidade de corpúsculos (duros, moles e fluídos)
relacionados entre si pela harmonia de suas proporções de movimento e repouso.
O homem é, enquanto corpo e mente, um modo finito conforme a EI P25S e está na
realidade como um ser capaz de afetar outros corpos e de ser afetado por eles a partir de
Encontros (occursus). „„O homem não é segundo a tradição, uma substância composta
de duas outras, mas um modo singular finito da substância enquanto [...] efeito imanente
da atividade dos atributos substanciais‟‟.6 O corpo é, segundo Chauí, com uma definição
revolucionária: „„individualidade dinâmica e incorpórea‟‟. E o que seria a Mente para
Spinoza? A mente, diferente do conceito tradicional, não é algo necessariamente
infinito, imortal e transcendente ao mundo e ao corpo. Em Spinoza, a alma no sentido
metafísico-teológico, corresponde racionalmente à mente ou a uma ideia. Por outro
lado, uma ideia é em geral para Spinoza, um conceito da mente como demonstra na EII
Def3: „„Por ideia compreendo um conceito da mente que a mente forma por que é uma
coisa pensante.‟‟(SPINOZA, 2010, p.79).
Visto que, para Spinoza, o Pensamento é um atributo de Deus, como explica
na EII P1: O pensamento é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa pensante.

5
SPINOZA, Ética, 2010, p. 83
6
CHAUI, Espinosa: Uma filosofia da Liberdade, 1995, p.54

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(Ibid, p.81). Podemos dizer que a Mente pertence a este atributo de Deus e ela faz parte
enquanto ideia, das afecções de seu corpo e das ideias das afecções deste e segundo
EIIP23: „„A mente não conhece a si mesma senão enquanto percebe as ideias das
afecções do corpo.‟‟(SPINOZA, 2010, p. 117). Logo, podemos dizer que o corpo é o
objeto atual, certa forma, para Mente que é ideia. Isto é confirmado por Spinoza
segundo o que menciona na EII P13: „„O objeto da ideia que constitui a mente é o
corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra
coisa.‟‟(SPINOZA, 2010, p. 97). Portanto, a mente está unida ao corpo por que ela é
atividade de pensá-lo (objeto pensado). Desta forma, percebemos a relação paralela
entre a mente e o corpo como uma ideia e seu objeto.

2. O Corpo e a ‘‘Alma’’como Sujeito em Vigiar e Punir de Foucault

A obra Vigiar e Punir, de 1975, faz uma análise genealógica e arqueológica


do corpo e de suas relações com um mundo cheio de moralidades negativas. Nesta obra,
Foucault aborda quatro partes: “o suplício”, “punição”, “disciplina” e “prisão”. Na
primeira parte, temos segundo Eduardo Cavalcanti de Medeiros (2010, p.1), a questão
do „„corpo dos condenados e a ostentação dos suplícios. [...] prática comum até o século
XVIII, a saber, o suplício; mas que em algumas dezenas de anos, entre os séculos XVIII
e XIX, desapareceu. ‟‟ (ibid). Na segunda parte, Foucault explicita a denúncia dos
reformadores do século XVIII sobre um excesso no exercício do poder onde a justiça
criminal passa a punir em vez de se vingar. A disciplina é apresentada, na terceira parte
da obra, como uma nova tecnologia de poder. Segundo Medeiros (2010, p.2): „„A
emergência da disciplina remonta à época clássica e à descoberta do corpo como objeto
e alvo do poder. ‟‟O corpo, neste contexto, apresenta-se como manipulado, modelado e
treinado. Na quarta e última parte da obra, Foucault, define a prisão como um aparato
responsável por tornar os indivíduos dóceis e úteis. O modelo da prisão consistia na
privação de liberdade e consistiu num aparelho disciplinar de transformação técnica do
indivíduo.
Em Vigiar e Punir, Foucault investiga estas práticas nas instituições jurídicas
com o exercício de saber que se descobre no exercício de poder. Segundo Fernando de
Almeida Silveira (2001, p.7), tais investigações comprovam que o „„corpo é o objeto
privilegiado de apoio e expressão da formação da „alma moderna‟. ‟‟ Entretanto, é

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importante notar em Foucault que „„[...] sua filosofia não se configura como metafísica.
Muito é pelo contrário, é „intrafísica‟. Seu estudo não é supra-estrutural, mas
intercorporal. ‟‟ (SILVEIRA, 2001, p.3). O filósofo rompe com a concepção de alma no
sentido metafísico ou divino e como entidade abstrata e parte da natureza a-histórica do
homem. Segundo Silveira, a alma é o elemento produzido no exercício de poder/saber
sobre o corpo. Neste sentido, a alma não está dissociada do corpo como um dualismo,
pois a alma é criada diretamente sobre o corpo, em função dos interesses políticos sobre
ele concentrados. Desmistificando o elemento transcendental, vemos que a „„alma
moderna‟‟ é um „„depositário‟‟ de complexas articulações discursivas que produz vários
saberes sejam políticos, religiosos, científicos, artísticos, culturais entre outros. Ou seja,
esta noção de alma expressa a ideia de subjetividade do corpo, por exemplo. Por
conseguinte, estas dimensões corpóreo-anímicas apresentam-se como processo sócio-
histórico do poder e do saber na modernidade:

[...] para se desvelarem as complexas relações entre corpo/alma/saber/poder


na sociedade ocidental moderna, é fundamental reconhecer: a produção
histórica do homem enquanto sujeito e objeto do conhecimento e a
articulação dos saberes de cunho humanista que permitem tal produção.
(SILVEIRA, 2001, pp.10-11)

Silveira (2001) ao demonstrar, na Parte I de sua Dissertação, os aspectos


gerais do corpo e da „„alma‟‟ na obra de Foucault, explicita o período renascentista e
clássico. A díade corpo/alma, neste período, ainda não se manifestava como estudo
central humanista e antropológico. „„[...] o corpo na renascença era valorizado feito uma
pontualidade mínima, de caráter transitivo, sobre o qual se discorriam incessantes teias
lingüísticas de semelhanças entre o micro e macrocosmo. ‟‟ (ibid, p.23). No Final do
século XVIII, com o evento sócio-histórico-cultural temos a entrada do homem na
história e „„[...] a partir de tal reconfiguração discursiva, o „homem‟ passa ser delineado
como uma figura passível de pesquisas empíricas, alicerçada sobre sua própria finitude,
tendo o corpo como um „novo‟ universo a ser vasculhado, analisado e exaustivamente
estudado, enquanto objeto de investigação distinto e discriminado. ‟‟ (SILVEIRA, 2001,
p.28). O corpo fez parte do universo dos discursos à medida que se tornou o suporte das
indagações científicas e nos demais campos de estudo. Na modernidade, a corporeidade
obteve „„status‟‟ de profundidade a ser discutida, definida e explorada onde a física dos

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corpos passa a ser objeto central na ciência. Segundo Silveira, Foucault analisa o corpo
nas seguintes fases históricas:

1) Na Renascença: o corpo é apenas uma pontualidade residual, invisível nas


articulações entre o micro e macrocosmo.
2) No Classicismo: temos o „„corpo-superfície‟‟ que é visível (a partir de ranhuras,
linhas, fissuras nas superfícies dos corpos, etc) discursivamente nos estudos dos seres
vivos em geral.
3) Na Modernidade: o corpo passa a ter uma realidade tridimensional, pois contém
dimensões espaciais discriminadas e dimensões funcionais como a respiração, a
circulação, digestão entre outras que ocupam o lugar privilegiado na ciência.
Na Parte II de sua Dissertação (2001), Silveira trata dos aspectos específicos
do Corpo e da Alma em Foucault. No Capítulo 5, temos a questão do corpo/alma do Rei
e do Condenado. A correlação do trinômio corpo/vida/alma conforme a figura mítica da
corporeidade do rei apresenta um sustentáculo de poder onde os súditos são os
chamados „„condenados‟‟ que tem seus corpos e almas (vida e morte) controlados pelo
Rei. „„O corpo do rei‟‟(ligado a figura do Deus na Terra) é um „„corpo duplo‟‟ com uma
instância terrena e transitória. O „„corpo do condenado‟‟, de menor poder, que segundo
Foucault é „„o mínimo corpo do condenado‟‟está diante do „„Corpo do Rei‟‟, de maior
poder. Neste sentido, „„o máximo/duplo corpo/alma do rei‟‟ se distingue do
„„mínimo/pontual corpo/alma do condenado‟‟. Em Vigiar e Punir, temos como
primeira parte, o Suplício, ou seja, o corpo que é punido pelas prisões e pelas
penalidades. Existem alguns momentos do corpo-suplício que são: 1) No cerimonial
judiciário (secreto ao público e ao acusado), 2) „„o corpo que fala‟‟ como o âmbito da
confissão pelas Igrejas, 3) o ‟‟corpo interrogado‟‟ a partir de técnicas de tortura e por
fim, 4)‟‟ o corpo em execução da pena. ‟‟
Por conseguinte, temos na segunda parte, a Punição. Na punição, ocorreu
um processo de suavização das penas sobre o corpo-suplício devido os protestos, as
revoltas e a compaixão da sociedade sobre os castigos. Há segundo Foucault, uma
„„crise da economia dos castigos‟‟onde reformulam um conceito de „„humanidade‟‟ ao
acusado. São as chamadas „„punições sem sofrimento‟‟ onde substituíram os carrascos
por Médicos, Educadores, Psiquiatras, etc. Segundo Foucault, desaparece o corpo como
principal alvo de repressão penal. O „„desaparecimento dos suplícios, é, pois, o

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espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue.‟‟
(FOUCAULT, 1975, p.15). Por outro lado, surge uma nova forma punitiva sem
sofrimento direto sobre o corpo onde „„cria-se uma ampla rede privações, obrigações e
interdições que determinarão a apropriação do corpo face às articulações mais
complexas de poder, tendo como norteamento o valor humanista do homem. ‟‟
(SILVEIRA, 2001, p.59). Na terceira parte de Vigiar e Punir, temos a análise do corpo
pela Disciplina. Segundo Foucault, a partir das articulações entre poder-saber sobre os
corpos-almas dos seres humanos, houve no século XVIII, a descoberta mais
generalizada de que o corpo é „„objeto e alvo de poder‟‟onde há o processo que
„„manipula, modela, treina, obedece, responde, torna hábil, cujas forças se multiplicam.
‟‟ (FOUCAULT, 1975, p.125).
Surge, então, a noção de docilidade corpórea a partir de um processo de
submissão disciplinar sobre o corpo. Militares e técnicos da disciplina, por exemplo,
trabalhavam com o processo de coerção individual e coletiva dos corpos como controle
minucioso. A partir dos séculos XVII e XVIII ampliam-se as técnicas disciplinares
como „„fórmulas gerais de dominação‟‟ (FOUCAULT, 1975, p.126). Moldavam-se o
corpo das seguintes formas:
1) Utilidade: Adequação do Corpo segundo as exigências da sociedade que valoriza as
forças produtivas do trabalho.
2) Docilidade: Domesticar os instintos e as condutas dos indivíduos a partir de
mecanismos educativos que direcionem para a sociedade vigente.
3) Repartição: Ramificar o corpo em diversos interesses do campo científico
4) Submissão: Adequar o corpo às finalidade históricas construídas pelas forças do
poder
Segundo Foucault, a disciplina é o „„processo técnico unitário pelo qual a
força do corpo é, com o mínimo ônus, reduzida como força „política‟ e maximizada
como força útil. ‟‟(FOUCAULT, 1975, p.194). A disciplina teve como principais
objetivos adestrar os corpos, obter oficiais competentes, formar militares obedientes e
evitar o homossexualismo. Os exercícios, por exemplo, são tomados como objetos de
controle uma vez que a partir de repetições, os corpos são condicionados e limitados. Há
„„ a arte de dispor em fila, e a técnica para a transformação de arranjos. Ela [disciplina]
individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os

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faz circular numa rede de relações. ‟‟ (FOUCAULT, 1975, p.133). O corpo-disciplinado


é aquele que tem movimentos comandados e é alvo de mecanismos de poder. No que se
refere à „„alma moderna‟‟ (Silveira, 2001) nos efeitos da disciplina, há a implicação de
uma „„redução materialista da alma a uma teoria geral do adestramento. (FOUCAULT,
1975, p.159).
Neste sentido, „„alma moderna‟‟ passou a ser um novo objeto de
manipulação e de enquadramento segundo os princípios de docilidade, submissão,
utilidade e repartição da Disciplina. A alma se torna finita, individualizada e intimidada.
Por fim, temos a quarta e última parte de Vigiar e Punir, sobre a Prisão. A prisão
representa o poderio de submissão e de docilidade dos corpos. No contexto carcerário,
há uma extrema modelagem do corpo que funciona como „„um quartel um pouco estrito,
uma escola sem indulgência, uma oficina sombria. ‟‟ (FOUCAULT, 1975, p.208). A
prisão surge no fim do século XVIII e começo do século XIX como „„uma nova
legislação que define o poder de punir como uma função geral da sociedade.‟‟
(FOUCAULT, 1975, p.206). Há o princípio do isolamento dos corpos como efetivação
disciplinar carcerária tanto ao mundo exterior como entre presos. A penitenciária deve
totalizar a existência do delinquente tanto ao nível corpóreo como ao nível da „„alma‟‟,
pois „„[...] a prisão fabrica delinqüentes, ou representa o processo histórico de criação da
alma do delinqüente. ‟‟ (SILVEIRA, 2001, p.91). A delinqüência apresenta-se como
constituinte da „„alma‟‟ do indivíduo. Segundo Foucault, „„o homem conhecível (alma,
individualidade, consciência, comportamento, aqui pouco importa) é o efeito-objeto
desse investimento analítico, dessa dominação-observação. ‟‟ (FOUCAULT, 1975,
p.267). A normalização e submissão do binômio corpo-alma permite o surgimento da
chamada „„alma normalizada‟‟. No Capítulo 10 da dissertação de Silveira (2001), temos
uma abordagem sobre o Corpo-Panóptico. O panoptismo, criado por Bentham, suscitou
em Foucault sobre as dominações e manipulações das forças corpóreo-anímicas na
vigilância dos corpos. Segundo Silveira, panoptismo é a vigilância das condutas de
determinadas categorias de indivíduos, utilizado em hospitais, nas escolas, nos
hospícios, nas fábricas, nas prisões, etc. Segundo Foucault (1975, p.211), é o
„„laboratório de poder‟‟.
Retomando a questão do corpo e da alma como constituição do homem
moderno pela perspectiva de Silveira (2001), vimos que,segundo Foucault, no que se

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refere às penalidades e punições, há agora uma „„mudança de objeto‟‟, pois „„não é mais
o corpo, é a alma‟‟. (FOUCAULT, 1975, p.20). Isto também levando em conta o
coração, o intelecto e a vontade do indivíduo. Segundo Silveira (2001, p.137): „„[...]
ocorreu um processo histórico intenso de apropriação e deslocamento do conceito de
alma do contexto teológico e metafísico para o contexto da vida, pois a alma seria a
„„sede de hábitos‟‟. Segundo Silveira (2001), Foucault caracteriza a „„alma moderna‟‟
da seguinte forma: 1) Não é uma ilusão ou ideologia, ela existe e tem uma realidade, 2)
Sua produção se efetua na superfície e no interior do corpo, 3) Diferente da teologia
cristã, ela não nasce pecadora e merecedora de castigos, mas surge antes de
procedimentos de punição, castigos e coações e por fim, 4) Ela é incorpórea, mas não é
uma substância; está ligada a subjetividade, a consciência e a realidade histórico-
discursiva. Portanto, segundo Foucault, o corpo é a „„superfície de inscrição dos
acontecimentos‟‟, elemento de sedimentação histórica. Segundo Silveira, a „„alma
histórica‟‟ é o „„depositório histórico de verdades‟‟ enquanto o corpo um „„depositório
de marcas e sinais‟‟.

CONCLUSÃO

Podemos concluir que, Spinoza ao tratar sobre a natureza da mente, na Parte


II da Ética, faz uma inovadora problemática que rompe tanto com as concepções
tradicionais de corpo e de alma postuladas desde a metafísica grega e também,
principalmente, com a filosofia cartesiana acerca do corpo e da alma, da noção de Deus
transcendente, do dualismo substancial (res extensa e res cogitans), etc. Spinoza,
diferentemente de Descartes, admitia que o corpo e a alma (mente) fossem apenas
Modos finitos dos Atributos de uma única Substância e excluía qualquer hierarquia ou
dualismo entre ambos. O corpo e a mente humana têm potências de agir e de pensar
numa realidade onde são afetados e afetam outros corpos e mentes. Por conseguinte,
temos em Spinoza uma problemática ontológica e epistemológica para explicar o
Paralelismo do Corpo e da Alma. Por sua vez, no século XX, Foucault levanta, em
Vigiar e Punir, discussões políticas e sociais acerca do corpo e a ideia do sujeito (a
„„alma‟‟) como constituição do homem moderno. Assim como Spinoza, Foucault não
elaborou um dualismo ao corpo humano no qual o individuo é dotado de entidades
diferentes (como um corpo e uma alma separados), como postulava a tradição

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metafísico-platônica e judaico-cristã. Ao relacionar a díade corpo/alma com as relações


de poder/saber, compreende que a „„alma‟‟ não é mística e nem prisão para o corpo. A
„„alma‟‟ enquanto „„identidade-sócio-histórica‟‟ é uma expressão de subjetividade dos
Corpos representada pelas relações de forças, ou seja, pelo poder e pelo domínio sobre
outros corpos. Neste sentido, o corpo é como uma „„superfície‟‟ marcada,
historicamente, pelas relações de poder. Logo, o corpo e a „„alma‟‟ (ideia ou
consciência do corpo), enquanto coexistentes ao homem, são igualmente manipulados,
regrados, modelados e transformados pela sociedade. Portanto, podemos notar que em
Spinoza e em Foucault, há um discurso ético e político do corpo-alma associado ao
poder, ao saber e a servidão humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAUI, Marilena. Espinosa: Uma Filosofia da Liberdade. Coleção Logos. Ed.


Moderna, SP, 1995.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel


Ramalhete. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: Afetos, ações e paixões em


Espinosa.Tradução: Marcos Ferreira de Paula e Luiz César Guimarães de Oliveira. Belo
Horizonte: Autêntica, Coleção Filo/Espinosa, 2011.

MEDEIROS, Eduardo Cavalcanti de. O Corpo na obra de Michel Foucault. Disponível


em: <http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2010/relatorios/>. Acesso em: 26 de
Julho de 2014 às 22h39min. Relatório - Departamento de Psicologia, PUC - Rio -
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2010.

SILVEIRA, F. A. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito


moderno. 2001. f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Ribeirão Preto Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2001.

SPINOZA, Benedictus de. Ethica - Ética. Tradução bilíngue Latim-Português de Tomaz


Tadeu. São Paulo: 3ª Edição, Autêntica, 2010.

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A TEORIA HUMANA À LUZ DA EPISTÉMÊ CLÁSSICA DE


MICHEL FOUCAULT

Eliene Cristina P. Fernandes


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
elienepfernandes@gmail.com

Marcos de Camargo Von Zuben


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
Zuben@uol.com.br

RESUMO
O presente trabalho tem como proposta analisar a partir de alguns aspectos da Epistémê
clássica indicados por Foucault na obra As palavras e as coisas, a teoria da causalidade
formulada pelo filósofo empirista David Hume. Neste sentido será analisado como
Hume desenvolve seu pensamento segundo os elementos da arqueologia Foucaultiana.
Deste modo partiremos da premissa arqueológica Foucaultiana, tendo como princípios
norteadores a gênese, a taxinomia e a Máthêsis, três elementos constitutivos da era
clássica, que serão considerados para a análise da teoria da causalidade proposta por
Hume, possibilitando assim, uma nova interpretação do pensamento humeano.

PALAVRAS-CHAVES: Epistémê. Causalidade. Arqueologia.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como proposta analisar a partir de alguns aspectos da


Epistémê clássica indicados por Foucault na obra As palavras e as coisas, a teoria da
causalidade formulada pelo filósofo empirista David Hume. Neste sentido será
analisado como Hume desenvolve seu pensamento segundo os elementos da
arqueologia Foucaultiana. Deste modo partiremos da premissa arqueológica
Foucaultiana, tendo como princípios norteadores a gênese, a taxinomia e a Máthêsis,
três elementos constitutivos da era clássica, que serão considerados para a análise da
teoria da causalidade proposta por Hume, possibilitando assim, uma nova interpretação
do pensamento humeano.

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Na obra As palavras e as coisasFoucault realiza um estudo no âmbito das


ciências humanas que se traduz no que ele denomina triedro de saberes, trata-se de uma
inserção do homem como ser do conhecimento, como um agente que trabalha, fala e
vive, por isso mesmo Foucault realiza a categorização dessas ciências analisando a
economia, a linguagem e a biologia, para constatar como esses três saberes formam uma
Epistémê própria a cada época.

As ciências humanas não são uma análise do que o homem é por natureza;
são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua
positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo saber
(ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e
suas leis, e de que modo ele pode falar. (FOUCAULT, 2007.p.488)

Desta forma, Foucault caracteriza o que ele denomina de Epistémê clássica situando-a
em torno dos séculos XVII e XVIII, distinguindo-a da Epistémê renascentista e
moderna. No presente trabalho, partiremos dessa categorização do pensamento clássico
para analisar a epistemologia de Hume, tomando como foco a noção de causalidade.

Se retomarmos a historia da filosofia, veremos como os períodos, bem como os


acontecimentos históricos estão definidos em uma situação causal, uma forma de
compreensão dos fatos e da história como um processo linear, trata-se de uma herança
da era clássica, que definiu seus objetos e sua Epistémêcomo uma relação de similitude
e causalidade. Neste sentido torna-se importante estudar as peculiaridades históricas,
sobretudo da era clássica, para tentar compreender como Michel Foucault estabelece
suas relações e a partir desta, tentar compreender uma intepretação da epistemologia
presente no pensamento de David Hume.

Um estudo desse âmbito torna-se imprescindível para tentar compreender


como Foucault rompe com a linearidade histórica, estabelecendo uma nova forma de
entender os acontecimentos e os discursos. Um dos pontos mais culminantes do
pensamento de Foucault com relação à ruptura da linearidade histórica pode ser
encontrado na definição da passagem da era clássica para a moderna. A tradição
filosófica compreende que a modernidade seja datada a partir das formulações
cartesianas, ou seja, naquele momento em que o sujeito aparece como pensante e
firmando assim o Cogito cartesiano. Seguindo esse raciocínio a modernidade surgiria
no limiar do século XVII, pois nesta época segundo a tradição filosófica, a subjetividade

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floresce, rompendo com a escolástica, é neste sentido que surge Descartes como marco
da era moderna. Em contrapartida, Foucault compreende que a modernidade não surge
no século XVII com Descartes, para ele a era clássica situa-se entre os séculos XVII e
XVIII, enquanto a modernidade só surgiria no século XIX. Mas como Foucault
estabelece esses corte epistemológico? É preciso ressaltar que o projeto pensado por
Foucault se concentra em uma retomada historiográfica, isto é, os acontecimentos não
mais serão pensados sob uma perspectiva continuísta, ao contrário, o projeto de
Foucault concentra-se em uma arqueologia dos fatos epistemológicos de cada época,
vejamos, portanto, em que consiste tal projeto.

1. ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA

Alguns intérpretes compreendem o termo arqueológico de Foucault como um


tipo de metodologia, uma forma de direcionar uma pesquisa, dizer isso parece cair numa
simplicidade, afinal de contas o propósito arqueológico vai além de indicações
metodológicas. Há ainda aqueles que compreendem a arqueologia como um indicativo
para classificar Foucault dentre os estruturalistas. Essa noção parece um pouco
equivocada, afinal, apesar de a arqueologia possuir uma estrutura de discurso, ela não é
sempre a mesma, ela transita entre os mais diversos assuntos, de maneira que
proporciona a análise do discurso conforme o acontecimento e a época em questão.

Mas, o que seria então a arqueologia?Se pensarmos na palavra arqueologia em


um sentido, digamos usual, remetemos aos historiadores, aqueles que transitam na
história em busca de elementos passados para tentar compreender o presente. No
entanto, encontramos uma definição do termo nas próprias palavras de Foucault:

A arqueologia define as regras de formação de um conjunto de enunciados.


Manifesta, assim, como uma sucessão de acontecimentos pode, na própria
ordem em que se apresenta, tornar-se objeto de discurso, ser registrada,
descrita, explicada, receber elaboração em conceitos e dar a oportunidade de
uma escolha teórica. A arqueologia analisa o grau e a forma de
permeabilidade de um discurso: apresenta o principio de sua articulação com
uma cadeia de acontecimentos sucessivos; define os operadores pelos quais
os acontecimentos se transcrevem nos enunciados. [...] A arqueologia não
nega a possibilidade de enunciados novos em correlação com acontecimentos
"exteriores". Sua tarefa é mostrar em que condições pode haver tal correlação
entre eles, e era que ela consiste precisamente (quais são seus limites, forma,
código, lei de possibilidade). (FOUCAULT, 2012, p.204)

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A arqueologia em Foucault está além de propostas metodológicas, pois ele parte de uma
análise do discurso da Epistémê, isto é, a verdadeproduzida em cada época, não se trata
somente de periodização histórica, mas de entender os discursos e os mecanismos de
poder que regem determinada época. Trata-se do que poderíamos chamar de uma nova
interpretação para a Epistémê, pois se retomarmos o termo Epistémê na história da
filosofia, percebermos que ele está associado à ciência, isto é, a uma espécie de
conhecimento muito especial, ao qual acarretaria uma série de procedimentos e critérios
rigorosos para a produção do conhecimento. Desta forma, a Epistémê no sentido
clássico da filosofia estaria interligada a uma legitimidade do saber universal.

Em contrapartida, Foucault formula um novo significado para o termo


Epistémê, compreendendo de maneira diversa da história da filosofia. Ele dispensa uma
compreensão universal do saber, e passa a compreender os elementos que compõem a
era pré-clássica, clássica e moderna com respeito a diversas questões, como o poder, os
saberes, a sexualidade, entre outros. Para formular tais rupturas e criar uma história no
plano descontínuo, Foucault parte de definições epistemológicas presente no
pensamento de autores como Canguilhem, que propõe uma ruptura no progresso
científico, estabelecendo uma ciência desvinculada de processos lineares.

A análise de ciência segundo o pensamento de Canguilhem estaria vinculada a


uma epistemologia da investigação dos procedimentos produtores do conhecimento
científico, sobretudo ao que se refere às ciências da vida: biologia, anatomia, patologia,
fisiologia. “A filosofia de Canguilhem é uma epistemologia: uma investigação sobre os
procedimentos de produção do conhecimento científico; uma elucidação das operações
da ciência; uma avaliação da racionalidade científica.” (MACHADO, 2007). Trata-se de
propor uma ciência desvinculada da racionalidade linear, ao fazer isso Canguilhem
realiza uma história dos conceitos, compreendendo cada ciência segundo suas
características, seus discursos, e seus critérios. “É determinando o estatuto
epistemológico dos conceitos de "supervalorização", de "ideologia científica" e de
"normalidade" que Canguilhem funda a conjunção” dos temas da continuidade e da
descontinuidade em história da biologia. (PORTOCARRERO, 1994). É a partir da
conceituação que Canguilhem desenvolve sua epistemologia, sem esquecer-se, no
entanto, da influência de Gastor Bachelar sobre sua proposta epistemológica, pois,

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Canguilhem aplica as categorias da epistemologia bachelardiana a sua história das


ciências da vida. O projeto de Bachelard consiste em propor uma história livre de
processos contínuos, para isso ele parte da definição de rupturas epistemológicas, para
explicar que a produção da ciência é construída a partir de rupturas, sob um plano
descontínuo. É a partir desta dimensão de rupturas que Canguilhem fará uso na
formulação de sua teoria, no entanto ao invés de aplica a noções matemáticas como a
física e a química como fizera Bachelard, Canguilhem aplicara o estudo bachelardiano
as ciências da vida.

Neste sentido podemos compreender a proposta de uma história descontínua


em Foucault enraizada em conceitos formulados por Bachelard e adaptados por
Canguilhem em seu estudo das ciências da vida. A partir desses elementos e distinções,
Foucault elabora seu projeto e rompe com a linearidade, com a causalidade e com a
constância dos fatos, um novo modo de ver a história é exposto, tendo, assim um plano
arqueológico, contrapondo toda uma tradição filosófica que estava habituada a pensar
na causalidade e na linearidade dos fatos da história, com isso ele nos apresenta uma
história pensada a partir de racionalidades distintas, com práticas discursivas que
estruturam modos de produção de conhecimentos com suas diferentes características,
sem remeter a uma conexão causal linear. Tal distinção de épocas será imprescindível
para nossa pesquisa, uma vez que, a Epistémê clássica presente na obra As Palavras e as
coisas será o nosso guia de fundamentação teórica para a realização deste trabalho.

Desta forma, nosso objetivo se traduz em tentar compreender a epistemologia


do conhecimento de David Hume a partir da arqueologia da Epistémê clássica descrita
pelo filósofo Michel Foucault. Essa descrição aparece em evidência na obra As palavras
e as coisas, onde Foucault realiza uma distinção da Epistémê clássica e moderna
referente aos saberes da economia, da biologia e da linguística. Nosso propósito será
analisar três elementos constitutivos da era clássica: a Gênese, a Máthêsis e a
Taxinomia, tentando a partir dessa descrição propor uma nova interpretação para o
pensamento humeano.

2. GÊNESE

Em termos de definição a gênese pode ser considerada uma analítica da


imaginação e da natureza, a imaginação que é caracterizada na era clássica como um

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fator importante na construção do conhecimento. Com Hume a imaginação ganha um


papel importante, sendo tratada como uma ideia que não remete a uma impressão real,
mas a uma impressão imaginaria a partir de uma impressão verdadeira. A respeito dessa
questão podemos observar o que ocorre quando temos a ideia de infinito, não temos de
maneira empírica um contato com o infinito, não temos uma impressão de infinito para
formular a ideia de infinito, mas temos a impressão do fim, sabemos como e quando
algo é finito, e a partir dessa impressão imaginamos o termo infinito. A gênese com
referência a natureza, remete claramente a noção causal, pois sempre estivemos em
busca da gênese das coisas ou dos seres.

Assim, enquanto a analítica da imaginação não possui uma impressão que lhe
corresponda, ela se encontra em desordem. É a analítica da natureza que a partir da
duplicação da representação que restitui a ordem, a identidade e as diferenças das
coisas. A imaginação seria assim uma percepção fraca e vaga, pois no plano empírico
não possui uma impressão que a represente. A era clássica representa o estudo da
natureza e da natureza do homem, como representação, já quea natureza permite se
representar como um ajuste na imaginação e na semelhança que faz surgir à ordem das
coisas. O que há agora, na era clássica, é a ciência da ordem, a gênese como aspecto
elementar desta época.

Esse aspecto da era clássica está presente na teoria da causalidade de Hume,


quando o filósofo se propõe indaga a respeito da busca de uma causa para tudo que
existe. Afirma Hume na obra Tratado da Natureza Humana:

Comecemos pela primeira questão, a respeito da necessidade de uma causa.


Trata-se de uma máxima geral da filosofia que tudo que começa a existir
deve ter uma causa para sua existência. Costuma-se pressupor essa máxima
em todos os raciocínios, sem se fornecer ou exigir prova alguma. (HUME,
2000, p. 107)

Ao propor essa análise Hume questiona o principio da gênese e ainda o reforça como
sendo uma máxima corriqueira, que por ser muito usual não foi questionado a respeito
de sua própria formulação. Podemos ainda perceber neste pequeno fragmento, que a
noção de origem assim como está na Epistémê clássica, surge na análise da causalidade
como forma de questionar a origem do conhecimento.

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Neste sentido a era clássica seria constituída por uma relação com a linearidade
e a causalidade, produzindo assim uma retomada da gênese, elemento presente tanto na
era clássica como na epistemologia humeana. Além da gênese, a era clássica possui
outros dois elementos que agregados à gênese fundamentam a era clássica, são eles: a
Máthêsis e a taxinomia. Vejamos a seguir como é caracterizado cada um desses
elementos.

3. MÁTHÊSIS E TAXINOMIA

Máthêsis e taxinomia estão interligadas, por este motivo trataremos desses aspectos
conjuntamente. A Máthêsis é entendida como a ciência da ordem e da medida, se na era
pré-clássica tínhamos a semelhança como fonte de conhecimento, na era clássica ela só
estará presente enquanto associada à ordem e a representação das coisas.

O que torna possível o conjunto da Epistémê clássica é, primeiramente, a


relação a um conhecimento da ordem. Quando se trata de ordenar as
naturezas simples, recorre-se a uma Máthêsis cujo método universal é a
álgebra. Quando se trata de pôr em ordem naturezas complexas (as
representações em geral, tais como são dadas na experiência), é necessário
constituir uma taxinomia e, para tanto, instaurar um sistema de signos. Os
signos estão para a ordem das naturezas compostas como a álgebra está para
a ordem das naturezas simples. (Foucault, 2007, p.99)

Essa relação apresenta dois elementos essências: o primeiro refere-se às


relações entre os seres que agora serão pensados sob a forma da ordem e da medida,
com uma redução dos problemas de medida ao de ordem. Assim toda relação com a
Máthêsis tem por propósito estabelecer uma relação de ordem, eis porque a ordenação
se caracteriza como a fonte de conhecimento da era clássica.

Nesse sentido, a análise vai adquirir bem depressa valor de método universal;
e o projeto leibniziano de estabelecer uma matemática das ordens qualitativas
se acha no coração mesmo do pensamento clássico; é em torno dele que
gravita todo esse pensamento. (FOUCAULT, 2007, p.78).

O projeto de uma busca por ordenação dos elementos, compõe e caracteriza a


era clássica, seja por intermédio da Máthêsis ou mesmo através de uma matemática das
ordens como formulou Leibniz, que representa muito bem a época em questão quando
apresenta a ordem e a medida sob um projeto qualitativo. Assim para Leibniz tudo deve
ter uma causa e com isso fórmulas, leis do real que teriam a capacidade de explicar a
composição do conhecimento, são eles: o principio da razão suficiente, que afirma ter

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uma causa para tudo que existe, esse principio é importante, pois é justamente essa
necessidade de uma busca causal que Hume trata em sua teoria epistemológica da
causalidade, ao analisar as associações da mente humana com relação à questão causa e
efeito. O segundo princípio é o de continuidade, que afirma haver uma continuidade na
natureza, ou seja, ela não é composta em saltos, há uma linearidade que a constitui
como contínua. E o terceiro princípio que seria o dos indiscerníveis, isto é, duas coisas
não podem ser idênticas, senão formariam um só ser. É possível observar como o último
princípio caracteriza a ruptura com a era pré-clássica, pois não há uma busca pelo
semelhante, ao contrário buscar a identidade dos objetos na semelhança caracteriza-se
como um conhecimento incerto. Desta forma, Leibniz propõe uma superação do Cogito
cartesiano e uma formulação fundamentada nas ordens qualitativas.

Apesar da relação do projeto Leibniziano com a Máthêsis da era clássica, tal


ligação não significa uma matematização como fundamento do conhecimento da época,
em contrapartida ela faz surgir domínios empíricos, a experiência aparece pela primeira
vez no conhecimento clássico, sendo assim, os empiristas terão como base esse projeto
empírico para fundamentar suas formulações, sobretudo as relações de conexão causal.

É neste plano empírico que a semelhança ganha um novo aspecto. Se na era


pré-clássica a similitude era o centro do conhecimento, na era clássica ela surgirá
interligada a experiência. Afinal, existem dois meios de realizara similitude, através da
comparação de medida e a de ordem. A de medida refere-se a grandezas,
multiplicidades, ade ordem, esta merece uma atenção importante em nossa análise, uma
vez que, é a linearidade dos fatos que marca um dos aspectos da era clássica.

Essa ordem é acrescida de um conhecimento linear, pois não é possível


conhecer a ordem das coisas de maneira isolada, mas descobrindo aquilo que lhe é mais
simples até chegar a mais complexa. Essa ordenação em muito se assemelha ao Cogito
Cartesiano, que elabora seus conhecimentos segundo uma ordem gradativa do mais
simples ao mais complexo, é possível perceber assim, como Descartes participa desse
aspecto da era clássica.

Como Descartes a apresenta, a Máthêsis universalis constitui “uma ciência


geral”, responsável por explicar “tudo o que se pode buscar acerca da ordem
e da medida”. Assim sendo, o seu objeto próprio é posto pelo binômio
ordem/medida. Ela pretende estudar tudo o que se possa obter desse binômio,

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todas as suas propriedades. Por essa razão não se apresenta preocupada com
o estudo de objetos determinados, pois que trata exclusivamente da “ordem e
da medida”, ainda que os tome em geral. (SARDEIRO. 2008,p.27)

Essa ordem é a busca de justificar um fenômeno decorrente de outro, esse tipo


de comparação instiga e gera um movimento de causalidade, ou seja, tudo que existe na
natureza estaria engendrado por um movimento causal, que permitiria passar de um
elemento a outro.

A proposta de Foucault seria, portanto mostrar que tanto Descartes quanto


Leibnizse situa dentro do projeto de constituição de uma Máthêsis universal, não
obstante suas diferentes abordagens. Para Descartes a Máthêsis seria organizada a partir
da ordem e da medida quantitativa e em Leibniz seria a ordem e a medida qualitativa.

A Máthêsis seria por assim dizer a ciência da ordem e da medida,


características essa da era clássica e também presente na teoria da causalidade proposta
por Hume, quando este passa a analisar os elementos da associação entre causa e efeito.
“Uma vez que não é o do conhecimento ou de um raciocínio cientifico que derivamos a
opinião de que uma causa é necessária para toda nova produção, tal opinião deve vir
necessariamente da observação e da experiência” (HUME. 2000,p.110) Essa passagem
é importante porque destaca a constatação de Hume com relação a origem do
conhecimento, que não sendo atribuído a um conhecimento a priori, seria por assim
dizer relacionado a experiência, que surgirá na Epistémê clássica relacionada a
similitude, isto é, observasse a semelhanças nos fatos, acontecimentos, elementos e a
partir disso estabelece-se um conexão de causa e efeito.

Percebemos dessa forma, uma nova concepção de semelhança, que perde seu
espaço na centralidade do conhecimento como atribuído na era pré-clássica e passa ser
pensado no plano da ordem, como pensara Hume ao formular a noção de causalidade
unindo assim, ordem, imaginação e semelhança. Se pensarmos uma forma de atribuir
uma relação causal, será somente por intermédio da imaginação que conseguiremos tal
relação. É preciso imaginar para alcançar um estágio de fatos sucessivos a outros. De
alguma forma a similitude tem uma importância, mas não como papel central do
conhecimento, mas antes como intermédio para que a representação seja reconhecida.

Vê-se o duplo requisito. É preciso que haja, nas coisas representadas, o


murmúrio insistente da semelhança; é preciso que haja, na representação, o

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recôndito sempre possível da imaginação. E nem um nem outro desses


requisitos pode dispensar aquele que o completa e lhe faz face. (Foucault,
2007, p.95-96)

Podemos perceber que a semelhança na Epistémê da era clássica só existe


enquanto representação e ordenação, e neste último encontramos a ciência dessa época,
para compreender os aspectos da Epistémê clássica.

Vemos surgir juntamente com a Máthêsis outro elemento constitutivo da era


clássica, a taxinomia, elas estão entrelaçadas, Máthêsis e taxinomia, uma se reporta a
outra conforme a natureza das representações empíricas. A taxinomia é a imaginação
em potência e permite ainda trazer a continuidade, isto é, permite a ordem das coisas,
trata-se de uma análise para compreender sua continuidade, isso mesmo fez gerar na era
clássica um busca por uma origem das coisas e dos seres com a Gênese, uma ordenação
com a Máthêsis e uma organização desses elementos com a taxinomia.

A taxinomia torna-se assim uma das principais fontes de saber, pois o


conhecimento desta época se apoia sobre a representação e a ordem. Desta forma,
vemos taxinomia, Máthêsis e gênese se entrelaçarem para compor os elementos da era
clássica. A era clássica se caracteriza assim com uma busca da verdade dos objetos
segundo sua representação, e tal representação só se realiza enquanto interligada aos
signos, buscando as identidades e as diferenças, elementos atuantes da taxinomia que
busca a diferença dos seres, enquanto a gênese busca sua continuidade e a Máthêsis a
ciência da ordem e das igualdades.

Vê-se que estas três noções – Máthêsis, taxinomia, gênese – designam menos
domínios separados que uma rede sólida de interdependências que define a
configuração geral do saber na época clássica. A taxinomia não se opõe à
Máthêsis: aloja-se nela e dela se distingue; pois ela também é uma ciência da
ordem – uma Máthêsisqualitativa. (Foucault, 2007, p.99).

Essas três noções agem separadas, cada uma segundo sua configuração para
realizar seu propósito enunciado, e ao mesmo tempo se articulam conjuntamente para
compor a ciência da ordem, caracterizando-se como os elementos constitutivos da
Epistémê clássica. A compreensão dessas três noções se articula a noção de causalidade
presente do pensamento de David Hume, uma vez que, este busca mostrar como o
homem está em busca da origem e da ordenação dos acontecimentos.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como pressuposto o que foi dito, podemos perceber como a arqueologia
Foucaultiana age dentro dos liames da filosofia para propor uma nova interpretação do
termo Epistémê, diferente da tradição filosófica. Foucault deixa de compreende a
Epistémê como uma simples ciência, e passa a compreender como discursos,
mecanismos de produção da verdade de cada época. Neste sentido, a Epistémê da era
clássica estaria fundamentada em torno da gênese, da Máthêsis e da taxinomia, todos
esses aspectos destacam a ordem presente na ciência e no conhecimento. Esse triedro
está em consonância com a teoria da causalidade apresentada por Hume em sua obra
Tratado da Natureza Humana, onde ele compreende a causalidade distante de uma
conexão causal, mas admite ser a causalidade um busca incessante do conhecimento
humano.

Diante do que foi exposto podemos concluir uma possibilidade de tentativa


para uma interpretação do pensamento de Hume a luz da EpistémêFoucaultiana, uma
vez que a gênese, a Máthêsis e taxinomia possibilitam uma interpretação distinta das já
atribuídas à epistemologia humeana, pois esses três aspectos possuem características
como linearidade, causalidade, ordenação, entre outros que estão presentes na teoria
epistemológica de David Hume. Desta forma a arqueologia presente no pensamento de
Foucault permite situar melhor as condições de possibilidade da concepção de
causalidade em Hume a luz da Epistémê clássica.

5. REFERÊNCIAS

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DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins fontes, 1996.

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HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2009.

SARDEIRO, Leandro de Araújo. A significação da Máthêsis universalis em Descartes.


114 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas. 2008.

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AS RELAÇÕES DE PODER NO PENSAMENTO DE MICHEL


FOUCAULT

Janine Honorato de Aquino


janine-aquino@hotmail.com

RESUMO
Para Foucault, o poder não existe, o que existe são as relações de poder. No entender de
Foucault, o poder é uma realidade dinâmica que ajuda o ser humano a manifestar sua
liberdade com responsabilidade. A idéia tradicional de um poder estático, que habita em
um lugar determinado, de um poder piramidal, exercido de cima para baixo, em
Foucault é transformada. Ele acredita no poder como um instrumento de dialogo entre
os indivíduos de uma sociedade. A noção de poder onisciente, onipotente e onipresente
não tem sentido na nova versão, pois tal visão somente servia para alimentar uma
concepção negativa do poder.

PALAVRAS-CHAVE: Poder. Relações de poder. Sociedade.

INTRODUÇÃO

A temática do poder se encontra por toda parte da obra de Foucault, mesmo assim
ele declarou que o tema não era seu sujeito fundamental. Ao ser considerado um teórico
do poder, recusou dizendo que somente fez “uma análise diferencial dos diferentes
níveis de poder dentro da sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 1680).
Por esta afirmação já podemos notar que a ideia de poder em Foucault é bem
diferente da tradicional, segundo a qual o poder se apresentava como uma realidade
única, estática e soberana.
De uma maneira geral, pode-se dizer que, até Foucault, a ideia de poder teve um
papel mais negativo que positivo. A imagem que o poder oprime as pessoas, que os
indivíduos o temem, que têm medo de tê-lo, que ele suprime a liberdade, manipula a
vida, etc. era presente nas mentalidades. Ora, segundo Foucault, tudo não passava de
uma estratégia com o objetivo de esconder a verdadeira realidade do poder. Assim, à
maioria da população não teria consciência do que é o poder e uma certa classe poderia,


Graduanda do curso de Filosofia, UECE

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tranquilamente, passar a impressão de estar manipulando-o ou de ser a sua detentora.


Para analisar esta posição de Foucault, vamos desenvolver duas ideias: na primeira
refletiremos sobre a falsa noção de poder; na segunda, sobre a concepção de relações de
poder no pensamento de Foucault.

A FALSA NOÇÃO DE PODER

Para Foucault, o conceito de poder hoje repousa sobre uma falsa idéia. O
discurso sobre o poder como uma coisa única, alojado em um núcleo central de onde ele
tudo controla, não conduz as pessoas a um verdadeiro conhecimento sobre este
instrumento de nossas relações. Acreditar em um ponto central de onde o poder
controlaria tudo é transformar uma característica interna dos indivíduos em um ser com
existência própria. Acreditar em uma morada do poder é acreditar que ele é algo que se
adquire por meio de investidura, isto é, o poder não seria uma capacidade natural dos
indivíduos, mas é algo que recebemos em um determinado momento.
Segundo Foucault, a idéia de um poder estático contradiz a própria expressão ou
experiência do poder. Segundo ele, a história conservou o poder dentro de uma redoma
de vidro, assim foi possível esconder a verdade sobre ele e, ao mesmo tempo, sustentar
e criar certo número de fantasias em torno dele, levando-nos a um desconhecimento da
verdade sobre o tema. Para compreender a objetividade da afirmação de Foucault, “o
poder não existe”, é necessário considerar a inversão de valor que, segundo ele, temos
dentro dessa noção, ou seja, o real poder não deve ser visto como algo negativo, como
fonte de dominação, opressão e destruição, e, sim, como algo positivo capaz de
construir e educar.
A afirmação de que o poder não é «onisciente» nem «onipotente» é seguida de
exemplos bem medidos, para justificar que a história do poder mostrou que toda a glória
atribuída a ele não é mais que quimeras, que escondem a verdade sobre ele. Felizmente,
elas não conseguem evitar o desenvolvimento das ações concretas que revelam a
contradição dentro do poder e, em conseqüência, sua verdadeira essência. Por exemplo,
a ação de « vigiar », para Foucault, é uma clara demonstração da impotência do poder,
pois, se ele tivesse a força que imagina ter, não seria preciso uma vigilância constante
para manter assegurada sua hegemonia.

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O poder foi associado às idéias de «onisciência» e «onipotência». Tais


características, segundo Foucault, servem como imagem da grande pirâmide que
representa o poder, pois a idéia tradicional é que o poder sempre é exercido de cima
para baixo. Classificando-o como «cego» e numa situação de «impasse», Foucault nos
leva a ver o poder numa realidade instável e não na estabilidade que a história tentou
atribuir-lhe.
Estas duas características do poder que Foucault criticou, associando à idéia de
onipresença, são as mais representativas do ideário tradicional do poder. Dizemos
mesmo que a idéia do poder sempre se apoiou sobre um tri-pé: onipresente, onipotente e
onisciente. Ora, vemos que, segundo Foucault, este tri-pé não existe, a bem da verdade
nunca existiu, de fato os defensores desta idéia não conseguiram justificar nem mesmo
demonstrar, concretamente, esta realidade do poder, isto significa que o poder sempre
foi tratado pela sua aparente objetividade, mas não por aquilo que é de fato. Mas a
história não conseguiu evitar que os ventos da investigação crítica derrubassem o
castelo de areia erguido como falsa expressão do poder e em seu lugar não ficou senão
grãos de areia, isto é, aquilo que Foucault denominou «relações de poder».
A última crítica refere-se à idéia de um titular do poder. Esta formulação esteve
sempre associada ao conceito do poder como uma realidade única, mas, como visto
anteriormente, para Foucault, esse poder único não existe.
Foucault defendeu a idéia de que a história do pensamento nunca definiu
corretamente o poder nem forneceu os elementos necessários para colocá-lo em seu
verdadeiro lugar. Essa constatação histórica explica, segundo ele, porque a luta contra o
poder é sempre difícil, porque temos sempre a sensação de que saímos vencidos desta
luta e, mais, porque temos presente a idéia que nunca conseguimos atingir o poder. Essa
situação dá a impressão que é a força do poder que nos torna a luta difícil, mas, na
realidade, nosso problema é que o combatemos com as armas que a falsa idéia de poder
nos fornece, ou seja, armas que consideram o poder onipotente, onisciente, único,
possuidor de um titular, etc. A conclusão que se tira disto é que nossas armas não são
adequadas, pois elas somente servem para fortalecer a falsa idéia do poder.
Foucault disse claramente que as análises sobre o aparelho de Estado – as quais
podemos entender melhor citando Hobbes, com o “Leviatã”, Rousseau, com o
“Contrato Social”, Kant, com o “Opúsculo sobre a história”, Hegel, com “Razão dentro

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da História”, etc. – não foram capazes de « esgotar » o exercício do poder. Mesmo não
entrando na polêmica do valor ou da importância destas análises, concordamos que,
segundo Foucault, elas talvez, tocaram um só lado do grande aicebergue. De fato,
arriscamos dizer que, conforme Foucault, a real essência do poder nunca foi analisada,
pois os indivíduos trabalharam mais a aparência do poder que a sua profunda realidade.
Segundo Foucault, nesta época tudo que se sabe sobre a ação do poder é quem o
explora, manipula, oprime, etc. Aqui Foucault não falou claramente dos indivíduos
implicados nas relações de poder, mas das relações entre os indivíduos e as instituições.
Compreendemos melhor a posição de Foucault a partir das reflexões que ele fez das
instituições em “doença mental e psicologia”, “História da loucura na idade clássica”,
“vigiar e punir” e os outros comentários sobre os temas abordados nesses livros. Ora,
Foucault acreditava que as instituições eram as grandes responsáveis pela manutenção
da falsa idéia de poder, pois poderiam, valendo-se do seu campo de influência, manter o
status quo, sobrevivendo como um monstro invencível, representantes do sujeito
absoluto, que é a falsa idéia de poder.
Foucault mostrou que nosso conhecimento sobre o poder apresenta algumas
lacunas. Para ele, é necessário esclarecer a noção de poder desde seus fundamentos.
Foucault acreditava existir um novo caminho mais eficaz para se entender e exercer o
poder.
Ora, o bom exercício do poder somente é possível quando são considerados os
fundamentos da condição existencial das partes. Pensar o poder desta maneira é colocá-
lo noutra dimensão. O poder aqui não é somente instrumento das relações humanas, mas
também uma ação pedagógica, pois, como ninguém nasce com plena consciência do
poder que tem, nas relações humanas os que têm maior consciência da verdadeira
realidade do poder devem ajudar os outros a adquiri-la. Assim, as relações humanas não
se desenvolvem no âmbito da irracionalidade, mas dentro de um processo constante de
formação.
RELAÇÕES DE PODER

Para entender as relações de poder em Foucault, é preciso partir do conceito que


ele tem de liberdade. A liberdade para ele é como uma arma de proteção. Arma porque
constitui um instrumento natural de luta do ser humano e proteção porque, segundo ele,
ninguém consegue manipular a liberdade de ninguém. Quando algo ou alguém atinge

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nossa liberdade é porque damos o pleno consentimento. Para sustentar sua noção de
liberdade, Foucault deveria, obrigatoriamente, ter proposto outra noção de poder, pois a
mentalidade da época era que o poder eliminava a prática da liberdade, mas ele estava
convencido do contrário, ou seja, nenhum discurso é capaz de atingir sua liberdade, pois
cada indivíduo é senhor da liberdade e, conseqüentemente, pode administrá-la como
desejar.
Foucault deixa claro que o desenvolvimento da falsa idéia de poder só foi
possível porque as pessoas não tinham consciência do potencial da sua liberdade, assim
as relações se desviaram de um curso, segundo ele, natural. Para Foucault, a falsa idéia
de poder sempre expressava um distanciamento entre as pessoas. Nas relações humanas,
o mais inteligente era a obediência e não o questionamento sobre sua situação
existencial dentro do contexto, conseqüentemente, ter em conta a real condição da
liberdade, pois a liberdade de um dos indivíduos estava ligada ao conceito de autoridade
do outro.
A partir disso, podemos notar que as relações de poder, segundo o autor, não
devem se realizar da mesma forma, do contrário não há diferença entre as duas idéias.
Devem ser pautadas pelos critérios de uma consciência madura. Elas terão que se
manifestar num clima de responsabilidade social e na dimensão de respeito entre os
indivíduos.
A consciência do potencial de nossa liberdade não exclui o grau de
responsabilidade social que cada um deve ter, pelo contrário, aumenta, pois ele teria
uma responsabilidade consigo mesmo, com os que têm um grau de consciência inferior
ao seu, com os que estão ao seu nível e com os que se encontram em nível superior.
Assim, Foucault procura mostrar que precisamos compreender a importância das
relações de poder para a sociedade e buscar aprimorá-las.
Foucault responde ao fato de ser livre com aquilo que ele acredita ser o
verdadeiro exercício da liberdade, isto é, as relações entre os indivíduos são relações de
poder, o problema é que não se desenvolveu uma consciência deste fato nas relações
humanas. As relações entre as pessoas foram desenvolvidas num estilo piramidal, no
qual, normalmente, é cerceado o direito de tomar decisões. Seguindo por tal caminho,
podemos dizer que, segundo Foucault, o princípio fundamental da liberdade é a
consciente da possibilidade de tomar decisões. Certamente podemos notar neste

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momento de nossa reflexão uma aproximação entre o pensamento de Foucault e o de


Sartre, já que, segundo o existencialista, a liberdade é uma condição para que o ente
construa sua essência.
Considerando correta tal interpretação, pode-se afirmar que, para Foucault, os
princípios gerais e ideais que deveriam orientar as relações de poder seriam: dependo do
nível de consciência do indivíduo, as relações de poder o incitaria a crescer até ao ponto
de saber exercer sua liberdade e, considerando o indivíduo em sua maturidade, as
relações se realizariam dentro de uma dimensão em que o indivíduo teria o espaço
necessário para exercer sua liberdade e tomar sua própria decisão, em função de seu
modelo de vida. Tudo isto sugere que o objetivo das relações de poder não seria jamais
de manipular, mas uma troca de exercício de liberdade. Esta proposição implica
certamente uma profunda consciência da situação dos dois lados ou de um só, mas a
parte consciente deveria saber respeitar o degrau de não consciência da outra e ajudá-la
a crescer.
Para compreender isto, deve-se considerar de início toda reflexão de Foucault
sobre as condições necessárias para desenvolver uma prática ética e moral, a partir de
certo modelo de vida, capaz de dinamizar nossa existência.
A ignorância nas relações de poder seria, talvez, o mais grave problema, vê-se
que o autor busca mostrar que essas relações não se desenvolvem segundo seus
verdadeiros objetivos por falta de uma profunda consciência do compromisso social.
Foucault acreditava que as relações humanas não se realizavam dentro do
espírito de experiência de liberdade, pois, na verdade, as relações entre os indivíduos
eram determinadas na sua totalidade pelas instituições. Assim, nossas ações são
julgadas boas ou más pela resposta que elas dão às instituições, não pelas respostas que
damos ao indivíduo que se relaciona conosco.
Foucault acreditava profundamente que existe um exagero nas normas ditadas
pelas instituições para controlar as relações entre os indivíduos, não excluindo a
necessidade de participação das instituições nesse processo, dizendo que um mínimo de
normas são necessárias para o funcionamento de uma sociedade, porém ele acredita ser
necessário transferir, realmente, uma boa parte da responsabilidade para os indivíduos
implicados nas relações cotidianas.

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Podemos afirmar que Foucault considerou como relação de poder toda relação
que compromete o ser humano. Vendo por este ângulo, toda ação do cotidiano, mesmo
a menor e a mais banal, constitui uma relação de poder. Por exemplo: quando se orienta
alguém na rua para encontrar um endereço ou a direção de uma loja, você induz a
pessoa a tomar uma atitude, muitas das vezes, contrária a sua intenção inicial, essa
atitude constitui para Foucault uma relação de poder.
Vemos que Foucault não desconsidera o impulso que o ser humano tem de
querer conduzir um ao outro, pois, no processo que nos encontramos, isso é uma
conseqüência natural, também foi desta maneira que fomos educados. Mas, dentro das
relações de poder, pressupõe-se que as partes têm noção de duas coisas: primeiro que a
liberdade de cada um é um elemento intocável pelo outro, segundo que o poder não
deve ser utilizado para a manipulação, mas para o crescimento das pessoas. Assim,
quando Foucault fala das relações de poder, ele se refere à experiência que os
indivíduos fazem do exercício de sua liberdade, chegando mesmo a dizer que quando
não existe tal consciência não existe relação de poder. Eis a razão pela qual para
Foucault, a palavra “dirigir” assume um significado particular, pois ela significa que,
mesmo os indivíduos vivendo uma situação natural, devem ser orientados pela
consciência que implica tais relações.
Na noção antiga de poder, a idéia que prevalecia era de manipulação de um
indivíduo sobre o outro. No entanto, na concepção das relações de poder em Foucault,
tal princípio opressor deve ser eliminado. Para isso acontecer, basta os indivíduos
tomarem consciência do potencial de sua liberdade.
A segunda idéia significativa é o fato de que “as relações de poder são relações
móveis”, isto significa que devemos ter uma clara consciência da autonomia de nossa
liberdade, pois é tal consciência que impedirá a realização da tentativa de dirigir nossas
condutas. Eis aí por que as relações de poder exigem uma consciência do compromisso
social, isto é, a necessidade de todo ser humano ter consciência do potencial de sua
liberdade, para ser capaz de fazer sua escolha dentro das relações de poder. Veremos
dentro dos textos seguintes algumas características destas relações.
A primeira característica se refere à consciência nas relações de poder. Acredito
ter muito a ver com a própria experiência de vida de Foucault, ou melhor, com aquilo
que ele escreveu e fez.

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Assim nós podemos pensar que, dentro de seu modelo de existência,


encontramos o nível de consciência que ele considerava como madura. Tal nível de
consciência deve ter presente que “toda relação humana” comporta uma ação de poder.
Depois, essas relações são produzidas por estratégias, que podem ser mais ou menos
estruturadas, mas, na verdade, isto importa pouco, pois seu objetivo é sempre o mesmo.
É preciso ter uma consciência muito clara de que o perigo esta aí, mas sem viver uma
sorte de paranóia, pois as relações de poder se encontram em todos os níveis das
relações humanas.
Ele não considera as relações de poder no mesmo nível, não aceita o princípio de
dominação e acredita que as relações humanas devem servir para a educação dos
indivíduos. Isso implica, também, a formação de uma consciência do potencial da
liberdade humana.
Foucault disse que as relações de poder são “sutis”. Com esta afirmação, penso
que queria chamar nossa atenção para a maneira como acatamos, sem perceber, as
ideologias que nos são transmitidas, dentre elas, a idéia de um poder absoluto.
A reflexão de Foucault mostrou que o poder era tido como uma sorte de força
particular de certos indivíduos, grupos ou instituições. Na verdade, afirmamos que as
ações de poder eram ações especiais e sempre dentro do estilo piramidal, isto é, aquele
que manda está em um pedestal, enquanto que os outros se encontram na parte mais
baixa do mundo.
Dentro da noção de poder em Foucault, nós vimos também a idéia de um poder
como uma força que não possui um lugar fixo e não é propriedade de ninguém, não é
uma coisa espacial, é somente um elemento dentro das relações entre os indivíduos. Ter
consciência disso é indispensável para saber praticar sua liberdade e respeitar a
liberdade dos outros. Essa consciência deve modificar nossa estrutura de relações e
nossa luta contra as injustiças que se cometem em nome do poder. “O poder é em
realidade de relações, um feixe mais ou menos organizado, mais ou menos piramidado,
mais ou menos coordenado, de relações” (FOUCAULT, 2001, p. 302).
CONCLUSÃO

A sociedade atual vive com medo, atormentada, temerosa das possíveis ações
que possam sobrevir. Cada indivíduo, de certa forma, vive se escondendo para tentar
evitar as possíveis investidas contra sua existência. A relação de dominação é uma

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característica do sistema social. Impor sua vontade não é direito de todos, mas de um
pequeno grupo de indivíduos. Em uma sociedade caracterizada pelo temor, penso que a
reflexão de Foucault faz muito sentido. O medo que toma conta dos indivíduos é
conseqüência da aceitação de um discurso manipulador. Cada indivíduo é convidado a
se reconhecer desprovido de poder. Ora, se é por meio do poder que conseguimos
conduzir as ações das outras pessoas, se reconhecer sem poder significa não ter
nenhuma influência, logo a única coisa que resta é sofrer as influências. O discurso
manipulador não tem a intenção de fazer as pessoas reconhecerem que o poder é algo
indispensável em nossa existência, isto é, ver o lado positivo do poder. O discurso
manipulador tem a intenção de manter o status quo, pois é a única maneira que uma
determinada parcelada da sociedade tem para continuar vivendo em cima de um barril
de pólvora (o barril de pólvora é a massa oprimida) sem que este exploda, isto é, sem
que a massa opressora se revolte de fato.

A reflexão de Foucault poder ser constatada com as evidências sociais. A


realidade do cotidiano é que as pessoas não reconhecem ter poder e admitem, também,
ser muito difícil lutar contra a máquina montada. Contudo, as evidências não significam
que a verdade do poder seja esta, mas que a sua história mentirosa conseguiu fincar
profundas raízes, isto significa que a massa opressora, diante de um discurso tradicional,
não consegue visualizar a verdadeira realidade das relações de poder. Apesar dessas
verdades cristalizadas, as lutas travadas em cada época mostram como pouco a pouco a
história do poder vem se transformando.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Cláudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
2005;

FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. Curso no Collége de France (1975-


1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005;

FOUCAULT, Michel. Coleção Ditos & Escritos. Volumes I, II, III e IV. Organizador:
Manoel Barros da Mota. Editora Forense Universitária

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 1984.

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O CONTROLE E A DISCIPLINA DOS CORPOS: UM DIÁLOGO


ENTRE FOUCAULT E DELEUZE

Assis Daniel Gomes


Universidade Federal do Ceará

RESUMO
Neste trabalho buscamos refletir de forma bem introdutória as inquietações levantadas
sobre o que Foucault denominou de disciplinalização dos corpos e como Deleuze/Felix
Guattarri analisou a ideia de controle. Inferindo que eles foram influenciados pela
filosofia pós-Sartriana, envolvidos nos embates em torno de maio de 1968 e utilizadores
de algumas proposições de Nietzsche. Esses filósofos da transgressão questionaram os
pressupostos até então colocados pela filosofia de vertente marxista, vinculados ao
conceito de luta de Classe e ao papel militante do intelectual (Sartre). Esses procuraram
refletir como se constituía esta sociedade disciplinar, como dadas convenções
mutilavam os corpos, revisando-os e ordenando-os através de determinados interesses
permeados em relações e tramas de micropoderes. Por isso, estas questões são
pertinentes: Como foi forjada a legitimação desse discurso de poder-saber? Como o
controle se fez presente entre o ser, o corpo e a exterioridade da sensibilidade da
vontade? Quais as aproximações e diferenças do pensamento desses filósofos? Quais as
suas contribuições para se pensar os corpos no século XXI?

PALAVRAS-CHAVE: Corpos. Foucault. Deleuze.

I
Neste artigo propomos colocar em diálogo a filosofia de Foucault e Deleuze.
Para isso, procedemos à análise de alguns textos que nos possibilitassem fazer uma
primeira reflexão sobre as aproximações e diferenças desses filósofos. Primeiramente,
tentamos analisar o contexto histórico em que essas filosofias se constituíram, quais as
balizas teóricas que as dava substância tanto como fundamentação e enquanto objeto de
refutação, de debate e tensões.


Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Ceará e bolsista da Fundação Cearense de
Amparo à Pesquisa (FUNCAP).

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O mundo vivia após Segunda Guerra Mundial uma tensão entre as duas
potências, a saber: Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). As pessoas comuns, desses territórios, não estavam
apenas sofrendo os dilemas econômicos derivados desse confronto sangrento dentro da
própria nação, mas certas consequências socioculturais, que se alicerçavam nos
questionamentos sobre os fundamentos sustentadores de sua sociedade, ou seja, as
colunas de sustentação da cultura europeia estavam sendo derrubadas. Portanto, a
imagem soberana e civilizada da Europa fora colocada em cheque, os princípios
fundamentais do iluminismo criticados, pois depois das guerras se percebeu com mais
nitidez que os valores defendidos pelo Iluminismo de que a humanidade conseguiria
uma emancipação do homem (Kant) a través da razão, da ciência, levou-a, contudo, ao
oposto, ou seja, a barbaria, a destruição.

A partir disso, procuramos verificar como os princípios iluministas a partir de


Kant e positivista (Comte) foram criticados. A sociedade, então, entrou em uma crise de
percepções, quebras de expectativas e frustrações provenientes da experiência das duas
guerras vivenciadas nas primeiras décadas do século XX. Em artigo feito por Kant em
1784, “Resposta a pergunta: O que é o iluminismo?”, procurou definir a palavra
Iluminismo, que estava sendo colocada pelos seus contemporâneos, mas sem precisão
de balizas racionais que a fundamentava. Esse estado, esse ato deveria ser perseguido,
pensava Kant, por todos os homens, ou seja, o homem ainda não o era, mas estava
caminhando para ser, para luz, para a libertação da sua inocência pela razão. Fazer,
então, parte desse processo o permitiria sair de um estágio de menoridade para a
maioridade, da dependência à emancipação. Essa ênfase na racionalidade enquanto
meio de emancipação da humanidade, enquanto instrumento da humanização do homem
fora o desejo de construir sua soberania, levando-a a um crescimento social e
econômico pautado pelos princípios da autonomia emancipadora da razão. Para esse
filósofo então,

Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é


culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a causa não
residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em
se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de
te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do
Iluminismo. (A481, 3 dez de 1783, p.516).

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Partindo desse princípio emancipador da razão, não utilizando, contudo, como


elemento a filosofia enquanto o conhecimento que a permitiria, mas a buscando criar
uma dada ciência no século XIX, Comte procurou defender a Ciência Positiva como
construtora de meios para a edificação de uma humanidade de progresso e bonança.
Esse pensador de forma sistemática tentou verificar algumas fases em que a sociedade
passara. Para ele, eram elas: a teológica, filosófica e positiva.
A primeira estava movida pelo conhecimento cosmológico ou teológico de ver
o mundo e intervir nele, a segunda a razão se sobressai como forma de saber em relação
às crenças e fé. Contudo, ao se dar valor a metafísica não se empreendia efetivamente
mudanças matérias na vida social, ficando essa transformação no mundo das ideias, nas
categorias axiológicas e em pressuposições hipotéticas carregadas de sentido em si
mesmas. Já a última, teria a junção desse a priori com o a posteriori, da ideia com a
experiência, que removeria uma modificação positiva, efetiva e real na vida da
sociedade. A ciência, então, seria um saber galgado por esse mover racional-
experimental. Contudo, ainda a razão se tornava soberana, mas agora ela era utilizada
como meio de construir algo concreto que mudasse efetivamente a vida das pessoas
comuns. Para corroborar tal afirmativa, esse pensador comparou a física orgânica com
a construção de uma física social, enfatizando a busca de leis que regeriam esse sistema-
organismo. Para Comte,
Circunscreve seus esforços ao domínio, que agora progride rapidamente da
verdadeira observação, única base possível de conhecimentos
verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados a nossas necessidades
reais [...] (1978, p.48, grifos nossos).
[...] Nas leis dos fenômenos consiste realmente a ciência, à qual os fatos
propriamente ditos em que pese a sua exatidão e a seu número, não fornecem
mais do que os materiais indispensáveis. (1978, p.50, grifos nossos).

Pós-1945 essas ideias postuladas acima começaram a ser mais firmemente


combatidas e o marxismo enquanto ideologia e embasamento científico foram
utilizados, especialmente, pelas Humanidades. Nesse cenário, a filosofia de Jean-Paul
Sartre, defensor desse paradigma, apontava como nome de maior influência na cena
intelectual e acadêmica europeia. Segundo Marton (2012), esse filósofo tinha duas
concepções que balizavam e faziam presentes em suas obras e militância, eram estas: 1-

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o ser humano era sujeito de suas ações; 2- a liberdade é condicionada pelo momento
histórico.
Foucault e Deleuze pensaram, diferentemente de Sartre, o sujeito. Essa outra
maneira de se pensar em meio à enfática soberania da filosofia marxista foi
possibilidade pela retomada de Nietzsche por esses intelectuais. Nesse sentido, algumas
pressupostos nietzschianos que impactaram esses pensadores e sua nova forma de ver o
mundo e filosofar sobre ele, por exemplo, para Marton (2012), foram estes: 1- o sujeito
como uma transfiguração temporária de impulsos; 2- o constante processo de
permanência do ser humano; 3- “todo infrator e criador”.
A partir disso, partiremos para pensar esse pensamento transgressor e infrator
produzido por esses filósofos, especificamente em suas concepções de Sociedade. Em
suma, que algo comum neles fora à filosofia de Nietzsche e a militância dos dois junto a
Sartre em maio de 1968 na França.

II

“Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os


seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados”
(DELEUZE; GATTARRI, 1995, p.05).

Deleuze1 ao pensar a concepção de Foucault de Sociedade disciplinar (SD)


propõe de forma mais objetiva que a sociedade do século XX não estaria mais
vivenciando essa etapa analisada por Foucault, mas uma Sociedade de Controle (SC).
Quais as singularidades da SC e SD? Como Foucault definiu a SD? Qual a diferença
entre elas, colocada por Deleuze?
Iniciemos por Michel Foucault.
Nas linhas das teias das aranhas e na fragmentação diferencial das nuvens que
surgem e destroem-se no céu, da mesma maneira a sociedade é uma fabricação, uma
criação. Ela fora normatizada por discurso que construíram disciplinamentos para
assegurar grupos, modelos e posturas. Ao tratar de forma mais específica da

1
Para Vasconcellos, “a obra de Gilles Deleuze compreende um esforço de crítica a um tipo de
pensamento designado de representação e entendido como constituição de uma filosofia da diferença.
Tanto a crítica à representação de uma filosofia da diferença são duas faces de um mesmo movimento de
pensamento, a crítica e a clínica são indissociáveis em Deleuze” (2005, p.1219).

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sexualidade, enquanto, construção sócio-histórica, Foucault buscou verificar nesse


processo a docilidade do discurso disciplinador que atingia os sujeitos em sua vida
hodierna, em seus gestos mais corriqueiros. Tais discursos procurava afirmar valores,
naturalizá-los e edificar modelos de sexualidade através de uma pedagogia de que o
diferente do padrão é patológico. Para isso, conforme Foucault, vários discursos foram
movimentados para corroborar com essa fabricação, para dar-lhe visibilidade. Para ele,
é importante observar que ao analisar as histórias se poderiam verificar os
micropoderes, os micros discursos e as suas sutilezas de engendramento a partir do
XVII.
Seu caráter minúsculos: que o cotidiano da sexualidade aldeão, os ínfimos
deleites campestres tenha podido tornar-se, a partir de um certo momento, o
objeto não somente de uma intolerância coletiva, mas de uma ação judiciária,
de uma intervenção médica, de um atento exame clínico e de toda uma
elaboração teórica. O importante está em que dessa personagem comum, até
então parte integrante da vida camponesa, se tenha tentado medir a caixa
craniana, estudar a ossatura facial e inspecionar a anatomia, na busca de
possíveis sinais de degenerescência; que o fizessem falar; que o
interrogassem sobre seus pensamentos, gostos, hábitos, sensações, juízos.
(1999, p.33).

É, portanto, nessas minúcias dos discursos que os dispositivos de afirmação de


valores, normas e modelos sociais ganham solidez. O Ocidente, diferente do Oriente,
criou uma Ciência do Sexo, e ao criá-la, consoante Foucault, acabou realizando um
forjamento de instrumentos que na vida diária das pessoas controlassem seus corpos. A
racionalidade científica fora almejada através das estratégias justificadas pelo “cuidado
do corpo”, em dominar sua animalidade e torná-lo mais dóceis. No século XIX o
imperativo do discurso da higiene vai destacar-se dentro dessas ciências reguladoras,
que tinha estes princípios, segundo esse filósofo: a busca pelo vigor físico e a pureza
moral do corpo social. Nessa mesma época o controle populacional fora balizado
também pela produção de um saber-poder sobre o sexo/corpo buscando na biologia, o
conhecimento da reprodução dos seres humanos, e na medicina do sexo.
Conforme ele, no século XVIII se construiu a partir de quatro principais
conjuntos certos dispositivos de assujeitamento do corpo e da sexualidade através da
produção de um saber-poder, foram os seguintes: “histerização do corpo da mulher”;
“pedagogização do sexo da criança”; “socialização das condutas de procriação”;
“psiquiatrização do prazer perverso”. A preocupação com o sexo fez produzir sutilezas

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disciplinares para dominar o que para alguns chamavam a “animalidade” do corpo, ou


seja,
Na preocupação com o sexo, que aumenta ao longo de todo o século XIX,
quatro figuras se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e
pontos de fixação dos empreendimentos do saber: a mulher histérica, a
criança masturbadora, o casal malthusiano, o adulto perverso, cada uma
correlativa de uma dessas estratégias que de formas diversas, percorrem e
utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos homens (1999, p.100).

Para Foucault, a relação entre o dispositivo da aliança, “sistema de matrimônio,


de fixação e desenvolvimento dos parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens”, e
da sexualidade, dava-se de forma correlacional, mas levando em conta as suas devidas
peculiaridades, ou seja, se antes fora o primeiro que criou o segundo, dando-lhes
sustentabilidade, consoante esse filósofo, essa relação se inverteu, pois a naturalização
da sexualidade acabou legitimando o dispositivo da aliança: “para o primeiro, o que é
pertinente é o vinculo entre parceiros com status definido; para o segundo, são as
sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões, por tênues ou
imperceptíveis que sejam” (1999, p.101).
Foucault, a partir disso, pensou o corpo e sexualidade em suas relações
econômica, ou seja, o corpo enquanto produtor e consumidor. É essa especificidade do
dispositivo de sexualidade com o corpo que construiu e ordenou-se pela “homeostase do
corpo social, a qual é sua função manter, daí seu vínculo privilegiado com o direito”
(1999, p.101). Ele, então, deriva da história e da cultura da sociedade que o fabricou,
por se transmutar e modificar-se nela própria “o dispositivo de sexualidade tem, como
razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos
corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo mais
global” (1999, p.101).
Ao demonstrar que a sexualidade e o corpo são assujeitados por essa
sociedade, que este é fabricado enquanto construção ideal-racional e perfeito e aquele é
criado sócio-culturalmente, Foucault, nos dá instrumentos para desnaturalizar essas
convenções, de ousarmos ser diferentes e vermos que sê-lo não é doença ou
anormalidade, mas outra forma de viver, compreender o mundo e amar. Possibilita-nos
também desconstruir esses dispositivos sutis de disciplinamente da sexualidade e do
corpo ainda presente em algumas instituições com Igreja, escola, prisão entre outras. Se,
para a análise de Foucault, essas não teria na França mais tanta força no século XX, ou

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seja, o não impacto desses dispositivos institucionalizados como nos séculos antes da
secularização desse país. Contudo, ao olharmos a singularidade do Brasil e de suas
regiões, mesmo também estando vivendo esse processo de secularização, essas
instituições são expressivas e possuem uma força na sua formação sociocultural e
influenciam boa parte dessa população.
Talvez uma das questões representantes desses dispositivos que ainda regem os
brasileiros seja a fraca discussão em torno dos discursos de gêneros e a garantia dos
diretos LGBTs. A figura da família de cunho patriarcal no modelo branco, europeu,
hetero e cristã é colocada diariamente pelos meios de comunicação conservadores desse
país. Por exemplo, recentemente parlamentares brasileiros defenderam a cura gay,
sendo tais ideias pautadas por estudos psiquiátricos atrasados e de um fundamentalismo
religioso. Podemos a partir disso estão perceber a existência da tecnologia do sexo
enquanto exercício do controle dos corpos, de guardá-lo, protegê-lo contra o perigo a
fim de manter os padrões pré-estabelecidos por essa sociedade2.
No sua obraVigiar e Punir Foucault elegeu uma parte para discutir sobre os
“Corpos dóceis”. No início de seu primeiro parágrafo analisa a diferença existente entre
a figura do soldado no século XVII e XVIII. Neste o corpo dele, em sua área física e
subjetiva, é fabricado, assenhoreado por dispositivos sociais que buscaram dar-lhes
determinadas características e silenciar aquelas consideradas impróprias para a sua
visibilidade, aquele figurava a idealização desse soldado utilizando estas imagens de
afirmação: 1- o reconhecimento de uma tradição; 2- ser possuidor de sinais naturais que
caracterizariam: vigor e coragem; 3- marcas de orgulho. O corpo nessa concepção era
colocado como representante de um brasão, era a própria personificação dele e o
instrumento de propaganda da instituição que defendia, por isso deveria transmitir a
força e valentia, sinais positivos para essa vocação (XVII) em contraponto a visão dela
como profissão (XVIII). Para ele, a época clássica descobriu o “corpo como objeto e
alvo de poder” (2009, p.70).
Portanto, o corpo era elemento dos discursos anátomo-metafísicos e tecníco-
políticos, de submissão e utilização. Esses dois registros são distintos enquanto

2
Conforme Foucault, “técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância:
porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do
poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se
tendessem a cobrir o corpo social inteiro” (2009, p.72).

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“funcionamento e explicação” de um corpo útil e inteligível (2009, p.71). Essa relação


de fabricação do corpo estava ligada com a noção de docilidade em duas posições não
binárias, mas em sua correlação: analisável e manipulável. Conforme esse filósofo, “em
qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações” (2009, p.71).
O corpo nessa fabricação é feito pela sutileza do detalhe que disciplina e
modela, os símbolos de forças são mais fortes do que a expressividade física delas, a sua
atuação e controle se torna muito mais exaustiva e eficaz, “a disciplina é uma anatomia
política do detalhe” (2009, p.72). O medo da repressão simboliza o poder do repressor
muito mais do que a manutenção desesperada de seu poder por meio da violência, isso,
contudo representaria a fragilidade e a crise de suas forças legitimadoras de certas
dominações. É, por isso, nessa micropolítica e micropoder, vivido e mantido pelo
microcotidiano, que os detalhes de manutenção e transformações se efetivaram, ou seja,
isso se daria em uma atividade diária do lavar a roupa no lugar comum ou no espaço
doméstico-privado, ou seja, “esses métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem
uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”” (2009,
p.71).
O corpo seria, para ele, uma dada maquinaria do poder, pois ele estaria
submisso e dominado sob a docilidade do discurso disciplinador. Ela provocaria uma
economia de bonança do Capital, mas uma perda nas posições políticas, nas posições de
autonomia e liberdade do homem e seu assenhorear de si. O corpo, contudo, é colocado,
assim nas mãos do sujeito que tem o poder de mandar em outros, de intervir na
modelação a fim de um objetivo específico.

A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma
descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes
mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se
repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo
seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a
fachada de um método geral (2009, p.71).

A partir dessa elaboração de Sociedade disciplinar e, consequentemente, de


corpos dóceis, Deleuze em “Post-Scritum sobre as sociedades de controle” procurou
fundamentar a sua ideia de que o século XX não viveria mais essa sociedade, mas sim

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uma de controle (SC). Inicia esse texto procurando corroborar a sua tese, para isso,
mencionou a crise dessas instituições tradicionais com a secularização dos países
europeus, das disciplinas que construíam os dispositivos de disciplinamento e afirmação
do Sistema de Aliança e Sexualidade, o arruinar desse modelo de família e sociedade
pós-1945. Para Deleuze, esse tombamento era motivado pelas “sociedades de controle
que estão substituindo as sociedades disciplinares” e o ““controle” é o nome que
Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso
futuro próximo” (1992, p.02).
Para ele, a sociedade disciplina (SD) molda, a de controle modula. O que seria
esse modular? Ele não seria também um moldar como diria Foucault? Para Deleuze, ele
seria mais do que uma simples fabricação e cunhagem de uma obra, pois na disciplina
haveria um modelo perfeito, padrão para a modelagem, essa seria sutil e podaria a obra
através de uma intimidade de assujeitamento de si para outro, o aparar essas flechas
construiriam, ao mesmo tempo na vida comum, justificativas ligadas as instituições que
teriam a posição de não serem questionadas. Dessa forma, a SD teria, para esse filósofo,
dois polos: 1- a assinatura enquanto indicação do individuo; 2- o número de matrícula
que nortearia a sua posição na massa do grupo ou sociedade que participa. Já na SC não
se teria esses dois polos, mas cifras, “a cifra é uma senha”. A SD, dessa forma, ordena-
se pela palavra de ordem, a sua multidão é viva de sujeitos, de individuação que deixam
sua marca subjetiva através da assinatura que demonstra sua singularidade na massa, do
seu número de matrícula que o liga ao grande bolo do mundo, em contraponto, a SC ela
constrói uma massa amorfa, sem subjetividade, sem particularidade, mas pertencente de
não fixidez a uma sociedade ao possuir uma senha numérica que não o representa
enquanto sujeito, mas como fragmento de fragmentos, “em um corpo sem órgão” e em
um multipleidade3 em constante devir, ou seja, “os indivíduos tornaram-se dividuais,

3
Consoante Deleuze e Gattari, esse princípio está sendo colocado “somente quando o múltiplo é
efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com uno
como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As
multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexistência, pois,
de unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que
fosse para abortar no objeto e para “voltar” no sujeito. Uma multiplicidade não têm nem sujeito nem
objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de
natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade)” (2000, p.12).

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divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”” (1992,


p.03).
Para ele, o homem também não é mais o mesmo, se antes sua fabricação e
produção estava pautada pela descontinuidade, agora ele estaria fundamentada na
ondularidade. A técnica-tecnologia (veja esquema 1) está de acordo com cada
sociedade, seus usos e suas necessidades, ou seja, se antes as máquinas deveriam ser
movidas manualmente para realizar as conexões necessárias, a rapidez da sociedade do
Controle se faz através da informática, da cibernética e dos piratas das redes. Para ele,

O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e


ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e
descontinua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem
endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema
miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida,
numeroso demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a
dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.
(1992, p.05).

ESQUEMA I

Evolução tecnológica- mutação do capitalismo

Capitalismo de

Capitalismo deXIX XX sobre-


produção produção

Fonte: esquema construído pelo autor

III
Neste artigo procuramos realizar uma exposição inicial sobre como Foucault e
Deleuze pensaram o corpo. Percebemos a princípios algumas influencias filosóficos que
permearam suas produções, como eles em seu próprio tempo participaram juntos de
lutas reivindicatórias e sociais, por exemplo, maio de 1968. Destacamos, em suma, que

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seus diálogos com uma filosofia da transgressão e a sua utilização enquanto meio de
infração dos modelos propagados e defendidos pela filosofia de então. Nietzsche, então
fora apropriado por esses pensadores de diversas formas, mas os dois utilizaram como
base semelhante a sua ideia de infração como criação.

Dessa forma, Deleuze e Foucault tomaram para si a filosofia do diferente,


procuraram filosofar sobre a fluidez do devir, sobre o homem em seu processo de
mudança e alteridade. Enfatizando, como forma de desconstruir, o forjamento de
valores feitos pela maioria das instituições de nossa sociedade, buscaram historicizar
esse discurso patológico, disciplinador e dócil, e defender o levante do diferente, do
outro que era abafado em meio a esse assenhoramento do corpo. E que esse
subordinamento e controle nas minúcias do cotidiano não eram introjetado também na
formação e criação de uma família e infância.

Deleuze vai além de Foucault, este propõe que não há apenas o diferente e que
se deve ter o respeito por tal, pois tais estruturas são construções socioculturais,
inaturais, mas convenções de uma sociedade castradores dos prazeres, aquele que
podemos ser esse diferente, ser outro, ser vários ao mesmo tempo, enfatiza a existência
de várias vias que se misturam as fronteiras, que constrói outras, que as desconstrói, ou
seja, a possibilidade de ser o indivíduo no múltiplo/coletivo, sendo também o recíproco
verdadeiro.

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“DE OUTROS ESPAÇOS”: O LUGAR DA HETEROTOPIA

Raquel Bernardes Campos


Universidade de Brasília

O texto de que trata o trabalho – De outros espaços – foi uma conferência


proferida por Michel Foucault, em 1967, no Círculo de Estudos Arquitetônicos (Cercle
d’Études Archicturales). O autor, no entanto, só autorizou a sua publicação em 1984. O
texto analisa as “heterotopias” – termo que ele usa em contraposição às utopias – e sua
relação com o espaço no século XX.
A heterotopia (hetero + topia = outro espaço) é basicamente um conceito da
geografia humana, que é, por sua vez, uma ciência dedicada ao estudo das relações e da
interação entre a sociedade e o espaço. Ela busca auxiliar o homem na compreensão do
espaço geográfico em que vive. “Estamos em um momento em que o mundo se
experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos
tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama”(Foucault,
2009, p.411).
A palavra rede, destacada, é essencial para o entendimento do espaço
atualmente. Ela designa o tipo de relação criada pela tecnologia, pelo deslocamento do
espaço aos meios virtuais, onde ele não mais é tão bem definido e hierarquizado, como
foi o caso da Idade Média, como coloca Foucault, em que se havia um grande
afastamento entre “lugares sagrados” e “lugares profanos”, “lugares urbanos” e “lugares
rurais”. Essa justaposição entre os espaços é característica do mundo contemporâneo e
num mesmo lugar podem caber conceitos conflitantes e até mesmo paradoxais. Tal rede,
portanto, retrata que os espaços estão todos interligados e cada um tem necessariamente
conexões com os demais.
O espaço e sua construção histórica, consequentemente, não são mais uma linha
reta, mas sim esta rede que se interliga e se conecta com diversos dispositivos
simultaneamente. É impossível detectar a extensão desse espaço e quais são as suas
reverberações no mundo, pois a rede é infinitamente ampla e aberta, contando com a

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participação de cada vez mais pessoas envolvidas e conectadas num mundo no qual a
tecnologia alterou a forma de se relacionar.
Tal multiplicidade de relações espaciais proporcionada por um mundo
tecnológico implica numa abertura que foge às hierarquias ou à hegemonia e torna as
relações espaciais mais complexas do que eram até então, visto que elas são simultâneas
e têm diferentes camadas de significação.

Mas o que me interessa são, entre todos esses posicionamentos, alguns dentre
eles que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros
posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou
invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas,
refletidas ou pensadas. Esses espaços, que por assim dizer estão ligados a
todos os outros, contradizendo, no entanto, todos os outros posicionamentos,
são de dois grandes tipos. (Foucault, 2009, p.414)

Esses dois tipos de espaço são a utopia e a heterotopia. A primeira diz respeito
aos “posicionamentos sem lugar real”, aquilo que ainda está no âmbito do imaginário e
não se concretizou – seja um modelo de sociedade aprimorada ou o oposto da sociedade
– pode ser uma “analogia direta ou inversa com o espaço real”, mas, em sua essência,
são espaços irreais. Já a segunda trata de “lugares reais, efetivos, delineados na própria
instituição da sociedade”, é uma “espécie de contraposicionamento” ou uma “utopia
efetivamente realizada”. As heterotopias, portanto, são lugares fora dos lugares, apesar
de serem “localizáveis”.
O espelho, por exemplo, é ao mesmo tempo uma utopia e uma heterotopia, pois
consegue unir duas realidades distintas num mesmo espaço. É essa experiência mista,
intermediária. Há o espelho enquanto objeto ocupando um lugar no espaço e o espelho
enquanto refletor de algo que não está presente ali. O questionamento que fica é: o que
mais seria o espelho? O que mais representaria esse estágio intermediário entre a utopia
e a heterotopia? A televisão? O computador? A primeira, para além de sua fisicalidade
enquanto objeto, apresenta uma realidade outra que não está presente naquele lugar. O
computador, no entanto, além de preservar este mesmo aspecto de nos mostrar uma
realidade paralela, de nos transportar para outros universos virtuais, abstratos, conta
conosco como agentes, participando mais ativamente das escolhas a serem feitas. Tira-
se a passividade inerte da televisão e atribui-se mais envolvimento a quem está do outro
lado da tela. Várias plataformas dão acesso à exposição de cada indivíduo da forma que
este escolher, o que torna a realidade que o computador apresenta não mais algo

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utópico, sem lugar, mas algo do qual nós participamos e moldamos. O que isso interfere
no funcionamento da sociedade é que há agora uma instância de poder deslocada do
espaço tradicional das instituições e realocada ao alcance dos dedos de cada um.
A heterotopia enquanto este “lugar fora do lugar” se mostra também como um
espaço da alteridade. Um espaço que leva o indivíduo fora do que lhe é familiar,
confrontando-o com outra realidade. Exemplos de lugares heterotópicos encontrados na
sociedade atual são as prisões, os hospícios, os asilos, o que Foucault chama de
heterotopias de desvio, ao contrário das heterotopias de crise que havia anteriormente.
Estas últimas eram reservadas aos membros da sociedade que se encontravam em
situação de crise em relação aos demais, como os adolescentes, as mulheres em seu
período menstrual e os idosos. Já as heterotopias de desvio são os lugares que abrigam
os indivíduos que destoam da norma vigente na sociedade ou que apresentam qualquer
comportamento fora do padrão. A velhice, neste caso, é considerada tanto uma crise
quanto um desvio, numa sociedade que hiper-valoriza a juventude e a produtividade e
que condena ao ostracismo quem foge a essa regra.
Neste mesmo sentido é que Foucault também considera o cemitério como uma
heterotopia. Até o século XVIII, os cemitérios eram localizados no centro das cidades,
ao lado das igrejas. A partir do século XIX, no entanto, eles foram afastados do centro
ou colocados no limite das cidades, distanciando-se cada vez mais da realidade
cotidiana e criando um mundo dentro deles mesmos: uma cidade fora da cidade. A
individuação da morte, ou seja, cada um com seu próprio caixão, com seu próprio
espaço num cemitério, começou a transformar a morte em uma espécie de doença
contagiosa, que deve ser mantida afastada do convívio social padrão. “São os mortos,
supõe-se, que trazem as doenças aos vivos, e é a presença e a proximidade dos mortos
ao lado das casas, ao lado das igrejas, quase no meio da rua, é essa proximidade que
propaga a própria morte” (Foucault, 2009, p.).
A heterotopia também se relaciona, em seus princípios, com o estruturalismo, no
sentido do conjunto de relações que existe em uma realidade. O lugar heterotópico é
esse lugar cuja rede de relações acaba gerando uma justaposição de vários espaços, de
vários posicionamentos, que nem sempre concordam entre si. Na heterotopia pode haver
múltiplos espaços, inclusive se forem paradoxais; é, portanto, este lugar fora da norma,
fora do estabelecido, do status quo. Esse princípio tem uma das particulares que culmina

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numa aporia: a impossibilidade ao passo que a presença e a ocupação de vários espaços


num mesmo lugar.
A transposição deste aspecto para um viés literário se faz, por exemplo, por meio
do hipertexto, que desconstrói a noção linear usual que temos do texto. Sobre isso,
podemos tomar o pioneirismo do artigo do cientista norte-americano Vannerbar Bush,
de 1945, intitulado “As we may think”, no qual ele discorre sobre o modo de raciocínio
humano e a ideia do hipertexto. Bush afirma que a mente humana não funciona
linearmente, mas sim por um processo de associação. Este tipo de associação ou
analogia, no entanto, nem sempre são levados em conta quando avaliamos um texto
literário e nos fixamos apenas na cronologia narrativa. Entre os autores que romperam
com tal linearidade narrativa, podemos citar James Joyce, William Faulkner, Antonio
Lobo Antunes e, na poesia, Stéphane Mallarmé. O seu “Lance de Dados” desconstruiu
toda a ideia anterior da linearidade do texto poético, jogando palavras e frases em vários
cantos de uma página, dando um novo lugar ao espaço “em branco” num texto.
O semiótico Charles Sanders Peirce criticava muito os psicólogos de sua época
por priorizarem a associação por contiguidade em detrimento da associação por
similaridade. Quem primeiro fez essa definição foi David Hume. A associação por
contiguidade é tipicamente ocidental e representa o pensamento científico, herdado de
uma concepção lógica aristotélica e linear, criada desde o idioma grego. Essa “ilusão da
contiguidade”, na expressão de Décio Pignatari, nasceu dos sistemas linguísticos
ocidentais, que consideram este tipo de pensamento mais lógico e científico do que o
pensamento por analogia, tido como mais simples, primitivo. Peirce, no entanto, critica
essa visão, defendendo a associação por similaridade como mais complexa, visto que
possui uma ampla e não-linear rede de analogias, que se constroem simultaneidade na
leitura de um texto, por exemplo.
Assim, vemos que a fuga à lógica de norma padrão não significa uma percepção
incorreta da realidade, mas mostra, no entanto, um retorno à realidade do tempo,
marcado pela simultaneidade e pela não-linearidade dos acontecimentos e pela própria
percepção do leitor, capaz de reorganizar as incongruências da desproporção ou da
simultaneidade para atribuir a ela diversas conotações semânticas.
Com a importância da forma e do processo analógico de raciocínio para a
literatura, houve também um processo de desinteriorização do texto, colocando-o para

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fora. Isso se relaciona com o espaço das heterotopias, visto que estas são espaços fora
da sociedade, fora do regimento normal e interno de uma comunidade, elas fogem à
regra e criam, paralelamente, seu próprio universo situado em outro lugar. Os textos
poéticos e literários mais radicais também se projetam para o fora, não se interiorizam,
não se psicologizam, valendo-se da literatura pela literatura, sem buscar motivos
individuais ou internos para explicá-la.

Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da


expressão: ela se basta a si mesma, e, por consequência, não está obrigada à
forma da interioridade; ela se identifica com sua própria exterioridade
desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de signos comandado menos
por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante; e
também que essa regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido
de seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e de inverter a
regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola
como um jogo que vai infalivelmente além de suas regras, e passa assim para
fora. (Foucault, 2009, p.268)

A escrita, liberta da necessidade e da obrigatoriedade de expressão pode vir a,


sem cair numa interiorização psicologizante, focar em seu próprio conteúdo, ao passo
que se projeta abertamente a uma exterioridade que também lhe diz respeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

BUSH, Vannebar. As we may think. 1945.

FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2009.

LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT


PARA OS ESTUDOS QUEEER

Francisco Valberdan Pinheiro Montenegro*


Universidade Federal do Ceará
danmont@ymail.com

Pablo Severiano Benevides**


Universidade Federal do Ceará
pablo_severiano@yahoo.com

Heloísa Oliveira do Nascimento***


Universidade Federal do Ceará
helooliveira@gmail.com

No pensamento contemporâneo referente às questões de gênero uma dada


vertente tem ganhado cada vez mais espaço, aqui a chamaremos de Estudos Queer. A
palavra queer (de origem norte americana), conforme Louro (2004), constitui-se na
expressão pejorativa com que são denominados os sujeitos de sexualidades periféricas,
além de servir para indicar o que é incomum ou bizarro. Sendo assim, o queer possui
um histórico de abjeção.

Esse termo, nas palavras de Louro (2004), com toda a sua carga de estranheza e
de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais para
caracterizar uma perspectiva de oposição e contestação. Tendo como alvo tanto a
heteronomatividade quanto o movimento homossexual ou LGBT hegemônico. Nesse
sentido, o queer representa a diferença que não que ser assimilada. Constitui-se como
um empreendimento intelectual pós-identitário uma vez que, em suas formulações o
foco sai da identidade para a cultura (LOURO 2004).

*
Cursa psicologia na UFC e é bolsista do PET. danmont@ymail.com
**
Doutor em educação pela UFC e professor do mestrado em psicologia da UFC.
pablo_severiano@yahoo.com
***
Cursa psicologia na UFC e é bolsista de iniciação científica pela FUNCAP. helooliveira@gmail.com

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No âmbito da teoria o queer pode ser entendido como “uma coleção de


compromissos intelectuais com as relações entre sexo, gênero e desejo sexual”
(SPARGO, 2006, p. 8). Relação que tem sido problematizada por autor@s como Butler
(2014); Preciado (2011); Sedgwick (2007); Miskolci (2007); Louro (2001) e
Halberstam (2012). Sobre a apropriação da palavra queer por este pensamento
Miskolci, textualmente, nos diz que:

A escolha do termo queer para se autodenominar, ou seja, um xingamento


que denotava anormalidade, perversão e desvio, servia para destacar o
compromisso em desenvolver uma analítica da normalização que, naquele
momento, era focada n sexualidade. Foi em uma conferência na Califórnia,
em fevereiro de 1990, que Teresa de Laurentis empregou a denominação
Queer Theory para contrastar o empreendimento queer com os estudos gays e
lésbicos (2009, p. 151-152).

Apesar de se encontrar acompanhado do termo teoria em grande parte dos


estudos alinhados com o “modo queer de pensar” (SILVA, 2005, p. 107) e na maioria
das referências aqui citadas o queer – ao contrário do que sugere a palavra teoria – não
se configura como um mapa conceitual homogêneo e unitário, por essa razão optamos
por denominar este campo de “Estudos Queer”. Sobre a polissemia e influências das
produções queer diz Seidman (1995, p. 125 apud LOURO, 2004, p. 39):

Os/as teóricos/as queer constituem um agrupamento diverso que mostra


importantes desacordos e divergências. Não obstante, eles/elas compartilham
alguns compromissos amplos – em particular, apóiam-se fortemente na teoria
pós-esturuturalista francesa e na desconstrução como um método de crítica
literária e social; põem em ação, de forma decisiva, categorias e perspectivas
psicanalíticas; são favoráveis a uma estratégia descentradora ou
desconstrutiva que escapa das proposições sociais e políticas programáticas
positivas; imaginam o social como um texto a ser interpretado e criticado
com o propósito de contestar os conhecimentos e as hierarquias sociais
dominantes.

Nesse sentido, o que atualmente chamamos de queer, em termos tanto políticos


quanto teóricos, surgiu como um impulso de crítica à ordem sexual contemporânea
(MISKOLCI, 2012). Isto é, um movimento de crítica, contestação e denúncia das
estratégicas pelas quais as “normas regulatórias da sociedade” (BUTLER, 2010) atuam
ou como são produzidas nas relações de poder. Os queer, tal como nos diz Louro
(2009), são homens e mulheres que recusam a normalização e a integração
condescendente:

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Dessa forma, os estudos queer se diferenciariam dos estudos de gênero,vistos


como indelevelmente marcados pelo pressuposto heterossexistada
continuidade entre sexo, gênero, desejo e práticas, tanto quanto dos estudos
gays e lésbicos, comprometidos com o foco nas minorias sexuaise os
interesses a eles associados. Cada uma dessas linhas de estudo tomaria,como
ponto de partida, binarismos (masculino/feminino,
heterossexual/homossexual) que, na perspectiva queer, deveriam ser
submetidos a umadesconstrução crítica. Queer desafiaria, assim, o próprio
regime dasexualidade, ou seja, os conhecimentos que constroem os sujeitos
comosexuados e marcados pelo gênero, e que assumem a
heterossexualidadeou a homossexualidade como categorias que definiriam a
verdade sobre eles (MISKOLCI; SIMÕES, 2007, p.10-11).

Para empreender sua “analítica” (SOUZA e CARRIERI, 2010) e ensaiar


resistências às práticas hegemônicas de poder os queer pensam com uma pluralidade de
autores, destacadamente, entre eles estão Foucault e Derrida. De acordo com Louro
(2009) as ideias de Foucault constituem uma das condições de possibilidade para a
construção de um modo queer de ser, partindo dessa proposição nos dispomos aqui a
falar das ligações e/ou contribuições de Michel Foucault para os Estudos Queer.

Tendo em vista a – já referida - pluralidade de autores que fundamentam os


Estudos Queer, faremos esta reflexão cientes de que trata-se de um uso do pensamento
de Foucault que não pretende nem considerá-lo a origem, o fundamento ou a base dos
Estudos Queer e nem, por outro lado, considerar que os Estudos Queer representam o
destino, a finalidade ou a versão mais acabada do pensamento de Foucault (SPARGO,
2006).

Em síntese, o que queremos aqui é compreender de que modo o pensamento


queer, nas palavras de Miskolci (2009), se apropria da analítica foucaultiana do poder e
empreende uma analítica da normalização. Sem, no entanto, pretender abarcar a
totalidade da questão que é múltipla e frutífera comportando assim diversos aspectos
que seremos incapazes de contemplar. Para tratar da influência de Foucault no quadro
teórico do queer Louro (2009) afirma que ele, o queer, se liga a vertentes
contemporâneas do pensamento que problematizam noções clássicas de sujeito, de
identidade e de agência dentre as quais situa-se a analítica foucaultiana. Sendo assim
podemos dizer que:

De Foucault, os queer incorporaram a analítica do poder, daí em suas obras o


poder não ser algo que se possui ou se delimita, mas que se exerce ou ao qual
se é submetido em uma situação permanentemente dinâmica em termos
históricos e culturais (MISKOLCI, 2011, p. 53).

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Essa apropriação se dá, no entanto, de forma seletiva e diferenciada


(MISKOLCI, 2009) evidenciando afinidades e tensões entre a obra do filósofo e os
Estudos Queer. No entender de Miskolci, predomina uma afinidade entre sua obra e o
empreendimento de trazer ao presente a analítica da normalização:

Em comum, tanto Foucault quanto os queer enfatizam a maneira como o


poder opera por meio da adesão dos próprios sujeitos às normas sociais. Ao
invés de reprimidos, constrangidos ou vitimizados, mostram como os sujeitos
costumam participar da ordem que os subjulga em uma forma de análise mais
sofisticada e menos compassiva para com aqueles que se “apaixonam” pelo
poder (2009, p. 325).

É a negação da hipótese repressiva, elemento a partir do qual Foucault


desenvolve no primeiro volume de História da Sexualidade, A vontade de saber, suas
ideias sobre o que chamará de dispositivo da sexualidade e ainda seus apontamentos
sobre a construção discursiva da sexualidade. As análises de Foucault presentes neste
primeiro volume de História da Sexualidade serão referências de grande repercussão e
impacto no pensamento queer. Segundo Spargo (2006), o modelo geral da construção
discursiva da sexualidade – este que rejeita a hipótese repressiva e argumenta pela
proliferação de discursos sobre a sexualidade que, na verdade, a produzem - serviu
como principal catalisador inicial para os Estudos Queer.
Foucault rejeita a hipótese repressiva, segundo a qual a sexualidade seria um
aspecto natural da vida humana que vinha sendo reprimido pela cultura desde o século
XVII. Ele afirma:

Trata-se, em suma, de interrogar o caso de uma sociedade que desde há mais


de um século se fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente
de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os
poderes que exerce e promete liberar-se das leis que a fazem funcionar
(FOUCAULT, 2012, p. 15; grifos nossos)

Ora, o que Foucault quer dizer com isso é que, ao contrário do que supunha a
hipótese repressiva, a sexualidade não é proibida, mas sim produzida por meio de
discursos. O que chamamos de sexualidade, quando pensamos com Foucault, pode ser
entendido como um dispositivo1 histórico, capaz de produzir verdades sobre os sujeitos.

1
Foucault entende o dispositivo como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (Foucault, 2014,
p. 244).

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Nas palavras de Spargo (2006), a sexualidade em Foucault não é uma


característica ou fato natural da vida humana, mas uma categoria construída na
experiência que não possui origens biológicas e sim históricas, sociais e culturais. Isto é,
a sexualidade é um dispositivo histórico:

Não se deve concebê-la como uma espécie dado da natureza que o poder
tenta pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco
a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo
histórico (FOUCAULT, 2005, p. 100).

É partindo dessa ideia de sexualidade que autor@s como Butler (2014) e


Preciado (2011) desenvolvem, fazendo uma apropriação singular do pensamento de
Foucault, conceitos como “matriz heterossexual” e “sexopolítica”, respectivamente.
Spargo (2006) argumenta que, uma das afirmações mais provocativas de
Foucualt, a de que o homossexualidade moderna é de origem comparativamente
recente, funcionou como catalisadora para o desenvolvimento dos Estudos Queer.
Quando afirma isso Foucault não está dizendo que as relações entre pessoas do mesmo
sexo não existiam.
O que ele nos mostra com isso é que - tendo a homossexualidade, nascido em
um contexto particular no século XIX – a categoria sexualidade, de um modo geral,
“deveria ser vista como uma categoria de saber construída em vez de uma identidade
descoberta” (SAPARGO, 2006, p. 16). Ou ainda, “Ao expor e analisar a invenção do
homossexual, ele mostrou que identidades sociais são efeitos da forma como o
conhecimento é organizado e que tal produção de identidades é „naturalizada‟ nos
saberes dominantes” (MISKOLCI, 2007, p. 153).
É no livro “Problemas de Gênero” que Butler (2014) se apoiará nas noções
foucaultianas de sexualidade e poder – em diálogo com vários outros autores - para
construir sua argumentação em torno de ideias como, gênero performativo, matriz
heterossexual e heterossexualidade compulsória. Este livro, no qual Butler faz uma
apropriação singular do pensamento de Foucault, é uma das mais importantes obras já
escritas no campo dos Estudos Queer.
Butler deixa claro, no primeiro capítulo de “Problemas de Gênero” intitulado
“Sujeitos do sexo/gênero/desejo”, a concepção de poder – neste caso, especialmente na
sua forma jurídica - de que se apropria para empreender uma discussão sobre o sujeito
do feminismo:

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Foucault observa que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que


subsequentemente passam a representar [...] O poder jurídico “produz”
inevitavelmente o que alega meramente representar; consequentemente, a
política deve se preocupar com essa função dual do poder: jurídica e
produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de “sujeito
perante a lei”, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa
básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia
reguladora da lei (2014, p. 18-19).

Partindo dessa compreensão de poder, Butler empreende uma discussão sobre os


feminismos e a política identitária na qual endereça uma série de críticas aos
feminismos que adotam um modelo essencialista de sujeito. Aqueles que advogam pela
“mulher” enquanto sujeito do feminismo, uma vez que, o feminismo “Deve
compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e
reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a
emancipação” (BUTLER, 2014, p. 19; grifos nossos). Para Butler, tanto quanto para
Foucault, não há um sujeito estável, natural e dotado de essência; se ele existe é
enquanto fábula que ampara estruturas de poder específicas.
Olhando por esta perspectiva Butler reflete sobre a produção de sujeitos de
sexo/gênero/desejo dentro da matriz heteroressexual. Para tanto ela trabalha com a
noção de práticas reguladoras as quais regulariam não apenas as relações de gênero, mas
todas as relações de uma sociedade heteronormativa.
As práticas reguladoras, diz Butler, “geram identidades coerentes por via de uma
matriz de normas de gênero coerentes” (2014, p. 38). Sobre a produção e regulação das
identidades de gênero pelas normas reguladoras do gênero dentro de um sistema de
sexo/gênero/desejo Butler tece a seguinte reflexão:

Enquanto a indagação filosófica quase sempre centra do que constitui a


“identidade pessoal” nas características internas da pessoa, naquilo que
estabeleceria sua continuidade ou auto-identidade no decorrer do tempo, a
questão aqui seria: em que medida práticas reguladorasde formação e
divisão do gênero constituem a identidade, a coerência interna do sujeito, e, a
rigor, o status auto-idêntico da pessoa? E como as práticas reguladoras
quegovernam o gênero também governam as noções culturalmente
inteligíveis2 de identidade? Em outras palavras, a “coerência” e a
“continuidade” da “pessoa” não são características lógicas ou analíticas
da condição de pessoa, mas ao contrário, normas de inteligibilidade
socialmente instituídas e mantidas (2014, p. 38; grifos nossos).

2
Os gêneros inteligíveis, diz Butler, “são aqueles que, em certo sentido, instituem e matêm relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (2014, p. 38).

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Esta matriz de inteligibilidade é a matriz heterossexual a qual demanda


linearidade e coerência entre sexo-gênero-desejo e práticas sexuais (MISKOLCI, 2011).
Para Butler, assim como para Foucault, o poder3 possui um caráter produtivo e não de
mera opressão. Sendo assim, ele atua na construção das subjetividades. Isto é, o sujeito
sexuado e dotado de gênero é produzido a partir de uma matriz heterossexual
instauradora de uma heterossexualidade compulsória. No entanto, no dizer de Arán e
Peixoto Júnior:

Diferentemente de Foucault, Butler considera que as regulações de gênero


não são apenas mais um exemplo das formas de regulamentação de um poder
mais extenso, mas constituem uma modalidade de regulação específica que
tem efeitos constitutivos sobre a subjetividade. As regras que governam a
identidade inteligível são parcialmente estruturadas a partir de uma matriz
que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre masculino e feminino e
uma heterossexualidade compulsória. Nestes termos o gênero não é nem a
expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma
construção social. O sujeito gendrado seria, antes, o resultado de repetições
constitutivas que impõem efeitos substancializantes. Com base nestas
definições, a autora chega a afirmar que o gênero é ele próprio uma norma
(2007, p. 133).

Butler adota claramente a noção foucaultiana de poder, segundo a qual as


relações de poder são formativas e produtivas. De modo que, o gênero enquanto norma
ou matriz normativa é tecido nas malhas do poder, os sujeitos de sexo-gênero são
formados nas complexas espirais do poder.
Em suma, podemos dizer que Butler no seu esforço intelectual (especificamente
em “Problemas de Gênero) incorpora o argumento da sexualidade construída
discursivamente, de Foucault, e o amplia para incluir o gênero (SPARGO, 2006).
Para explicar como nos tornamos sujeitos gendrados Butler recorre a ideia de
performatividade do gênero:

Ela considera o gênero um efeito performativo experimentado pelo indivíduo


como uma identidade natural, argumentando contra a suposição de que a
categoria de identidade “mulher” possa ser a base das políticas feministas,
pois tentativas de desenvolver qualquer identidade como um fundamento irão
irremediavelmente, ainda que inadvertidamente, sustentar as estruturas
normativas binárias das atuais relações de sexo, de gênero e de libido
(SPARGO, 2006, p. 49-50).

3
Sobre o caráter produtivo do gênero Butler diz que “O poder, ao invés da lei, abrange tanto as funções
ou relações diferenciais jurídicas (proibitivas e reguladoras) como as produtivas (initencionalmente
generativas) (2014, p. 54).

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Ao questionar o intento feminista de instaurar a categoria identitária como


sujeito da política feminista Butler realiza um esforço intelectual que se aproxima
daquele operado por Foucault quando afirma ser a homossexualidade uma invenção da
modernidade.
Em “Problemas de Gênero” ela argumenta pelo gênero performativo4, no
entanto, não se preocupa em ser didática e pouca explica sobre o deslocamento que
opera para explicar o funcionamento das normas de gênero. É Louro que nos ajuda a
compreender que apropriação a autora faz do conceito:

Judith Butler toma emprestado da lingüística o conceito de performatividade,


para afirmar que a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz
apenas uma constatação ou uma descrição desses corpos, mas, no instante
mesmo da nomeação constrói, “faz” aquilo que nomeia, isto é, produz os
corpos e os sujeitos. Esse é um processo constrangido e limitado desde seu
início, uma vez que o sujeito não decide sobre o sexo que irá ou não assumir;
na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem possibilidades
que ele assume, apropria e materializa (2004, p. 44).

Desse modo, o gênero não é o correspondente cultural do sexo e muito menos


um dado, uma essência; é uma continua prática discursiva. Estruturada no binarismo
masculino/feminino, homem/mulher.
Na leitura que faz do primeiro volume de História da Sexualidade e da Biografia
de Herculine Barbin prefaciada por Foucault, Butler apresenta uma ressalva em relação
à concepção de corpo que Foucault aparenta esboçar:

Butler retorna a Foucault e descobre que em seu argumento geral há uma


constante metáfora ou figura do corpo como uma superfície na qual a história
escreve ou imprime valores culturais. Isso parece implicar, para Butler, o fato
de que o corpo tem uma materialidade que precede a significação, o que ela
considera problemático (SPARGO, 2006, p. 51).

Butler sugere que, embora postule a ideia da identidade como ficção regulatória
Foucault acaba por abraçar a compreensão de um corpo como elemento fundacional.
Como alternativa à compreensão foucaultiana, diz Sapargo, ela “procura uma maneira
de ler o corpo como uma “prática significante” (2006, p. 51).

4
Sobre o gênero performativo o que Butler mais se aproxima de propor como definição é isto: “Nesse
sentido, o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuante, pois vimos
que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da
coerência do gênero. Consequentemente, o gênero mostra ser performativo no interior do discurso
herdado da metafísica da substância – isto é, constituinte da identidade que supostamente é. Nesse
sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra
(BUTLER, 2014, p. 48).

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Butler encontra a possibilidade de desenvolver a análise de Foucault para


além de suas próprias fronteiras e limites, bem como de explorar o corpo
como uma fronteira mediadora que divide o interno e o externo para produzir
a experiência de ser um sujeito estável, coerente. Em vez de estar além da
análise, o corpo, assim como a sexualidade, pode ter uma genealogia
(SPARGO, 2006, p. 51-52).

Dessa maneira, Judith Butler – tanto quanto os demais queer – faz uma
apropriação singular e seletiva do pensamento de Michel Foucault. Tal forma de
apreender as ideias do filósofo estão presentes, notadamente, na teorização de Beatriz
Preciado (atualmente uma das mais influentes pensadoras queer) que trabalha com foco
na noção foucaultiana de biopoder e biopolítica.
Para Foucault a partir do século XVIII, nós no ocidente, conhecemos profundas
transformações nos mecanismos de poder. Do poder soberano, aquele que mata ou deixa
viver, passamos a experimentar “um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função
de seus reclamos” (FOUCAULT, 2012, p. 128). É a vida humana que entra nos cálculos
do poder e na ordem do saber:

O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num
mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,
saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em
que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem
dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse
sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da
morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de
intervenção do poder (FOUCAULT, 2012, p. 134).

Ora, Foucault está falando do biopoder, o poder da biopolítica. Um poder que


incide diretamente sobre a vida dos sujeitos, um poder que ocupa-se muito mais da vida
do que decidir sobre a morte e, por isso, é capaz de apropriar-se dos processos
“biológicos”. De modo que, para Foucault:

Se pudéssemos chamar de „bio-história‟ as pressões por meio das quais os


movimentos da vida e os processos da história interferem entre si,
deveríamos falar de „biopolítica‟ para designar o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-
saber um agente de transformação da vida humana(2012, p. 134).

É este mapa conceitual que influência a agenda teórica de Preciado que


comporta um vocabulário provocativo no qual encontram-se termos como sexopolítica,
subversão e contra-sexualidade. É no texto “Multidões queer: notas para uma política

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dos „anormais‟” que Preciado nos apresenta de forma sintética sua agenda teórico-
política. Ela inicia o texto com a proposição de sua sexopolítica:

A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no


capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”,
as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e feminilidade, as
identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fazendo
dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades
sexuais um agente de controle da vida (PRECIADO, 2011, p. 11).

Contudo a apropriação que faz, Preciado, da noção foucaultiana de política não


se dá em termos de incorporação absoluta, uma vez que a “noção de toma Foucault
como ponto de partida, contestando, porém, sua concepção de política, segundo a qual o
biopoder não faz mais do que produzir as disciplinas de normalização e determinar as
formas de subjetivação” (PRECIADO, 2011, p. 12).
Essa contestação é feita com base na distinção que Preciado adota entre biopoder
e potência de vida “podemos compreender as identidades dos anormais como potências
políticas, e não simplesmente como efeitos das disputas sobre o sexo” (2011, p. 12), diz
ela. Na sequência Preciado endereça outra crítica ao pensamento e postura do filósofo
em relação a política de identidade, referindo-se a Foucault ela diz: “Sua rejeição à
identidade e ao ativismo gay levá-lo-à a forjar uma retroficção à Sombra da Grécia
Antiga” (PRECIADO, 2011, p. 13).
Para ela, as identidades são um lugar estratégico da ação política, Preciado chega
a alertar o movimento feminista-queer sobre as “armadilhas conceituais e políticas de
Foucault”, uma delas (Preciado elenca duas) é a possibilidade de pensar a “multidão
queer”5 como um reservatório da transgressão em oposição às estratégias identitárias (é
uma proposição complexa que não poderemos desenvolver aqui).
Preciado dá às questões políticas da identidade um lugar de destaque. Ao
advogar pelo caráter estratégico da identidade vislumbra condições de possibilidades
para o uso dos recursos políticos da produção performativa das identidades, embora ao
contrário de Butler, considere que o gênero está além do performativo6.

5
Sobre a noção de multidão queer Preciado nos diz que “A sexopolítica torna-se não somente um lugar
de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos
feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas e pós-coloniais... As minorias
sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer” (2011, p. 14).
6
Ver PRECIADO, 2011.

140
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É partindo deste lugar de preocupação com questões relativas à política


identitária que Preciado publica em 2000 o seu “Manifeste Contra-sexuel” (em tradução
literal “Manifesto Contra-sexual", ainda não publicado em português). Segundo Pereira
(2008) a escolha do termo “contra-sexualidade” se inspira em Foucault, para quem a
forma mais eficaz de resistência à produção disciplinar da sexualidade seria a
contraprodutividade. Em síntese, com o conceito de contra-sexualidade elaborado no
seu “Manifesto Contra-sexual” Preciado objetiva:

A intenção é promover uma análise crítica da diferença gênero-sexo produto


do contrato social heterocentrado, cujas performatividades normativas vêm
sendo inscritas nos corpos como verdades biológicas. Esse contrato
heterocentrado deve ser substituído por outro, o contra-sexual, no qual
“corpos falantes” buscariam estabelecer procedimentos que possibilitem
escapar da sujeição heteronormativa. Além de criticar a naturalização do sexo
e do sistema de gênero, o contratocontra-sexual propõe uma sociedade de
equivalência, de sujeitos falantes queestabeleçam relações de forma
contratual – a elaboração desse contrato, assim,deve muito ao saber prático e,
também, contratual das comunidades sadomasoquistas (PRERIRA, 2008, p.
500- 501).

Beatriz Preciado, tal como Butler e outros autores, apropria-se do pensamento


foucaultiano para elaborar proposições muito ousadas e originais. Assim, o uso que faz
do pensamento de Foucault é marcado pela criatividade e criticidade; ela não se importa
em discordar do filósofo ou fazer aproximações aparentemente improváveis entre
múltiplas vertentes do pensamento crítico contemporâneo para lançar um olhar peculiar
sobre os agenciamentos biopolíticos dos nossos tempos.
Preciado e Butler postulam e carregam uma não ortodoxia própria do modo –
contestatório – queer de ser e pensar. O queer, como já mencionado, é aquele que está
sempre em confronto com a norma, é aquele que desafia pela complexidade, pela
confusão, pela diferença.
Diante do exposto, consideramos então que o pensamento queer – neste caso, o
de autor@s como Butler e Preciado – apropria-se das ideias de Michel Foucault de
forma singular, seletiva e diferenciada. Existem, portanto, nesta relação convergências e
tensões como aquelas aqui demonstradas. Nesse sentido, é mister considerar os Estudos
Queer um uso muito específico do pensamento de Foucault, isto é, não se configura
enquanto uma proposta de continuidade das ideias de Foucault. Ora, é como diz Spargo
“As ideias de Foucault claramente pavimentaram o caminho para uma abordagem
diferente das relações entre sexo, sexualidade e poder” (2006, p. 25).

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MICHEL FOUCAULT: UM PENSAMENTO QUE AGE

Emanuel Santos Sasso


Universidade Estadual do Ceará
emanuel.sasso@hotmail.com

Michel Foucault, sem dúvida, foi um dos pensadores contemporâneos que mais
atingiu, mediante suas polêmicas reflexões, a nossa atualidade de maneira profunda.
Suas ideias permanecem atuais e poderosas, capazes, por um lado, de problematizar
assuntos ainda urgentes na sociedade e, de outro, desconcertar aqueles que se aventuram
pelos caminhos abertos por ele e que buscam debater suas principais contribuições em
diversos campos do conhecimento. Podemos perceber hoje, de maneira mais clara – não
apenas pela leitura de suas obras, mas também por meio de uma análise mais detida de
suas entrevistas e artigos –, que a pretensão de Foucault era deixar em aberto, não
apenas para suas pesquisas e investigações futuras, mas para quem pretendesse seguir
seus passos, espaços de problematização e de liberdade onde fosse possível tornar
viáveis novos modos de refletir e novas possibilidades de agir e resistir.

O pensador francês deixava claros sinais – sobretudo a partir dos anos 1970,
época em que suas reflexões acerca do tema do poder ganham mais força – de que
desejava que seus escritos fossem apropriados como uma espécie de convite aos mais
diversos grupos, para que eles pudessem estabelecer novas experiências históricas e
que, por meio de tais experiências, conseguissem ir além das relações de poder/saber e
da subjetivação hegemônica das sociedades capitalistas contemporâneas. É justamente
nesse ponto que podemos enxergar certa coerência entre a trajetória intelectual
(trabalhos e pesquisas) e o papel de intervenção na cena política e social de Michel
Foucault, assumido especialmente a partir da década de 19701.


Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
1
Neste sentido os textos dispersos de Michel Foucault, reunidos na coletânea Dits et écrits,têm
contribuído de maneira significativa para compreendermos o contexto de suas intervenções políticas e a
articulação destas intervenções com suas ideias. Até o presente momento foram publicados dez volumes
da edição brasileira, organizada por Manoel Barros da Motta. É importante ressaltarmos que não é nosso

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Para a compreensão da alternância que Michel Foucault tanto buscou


desenvolver entre suas reflexões histórico-filosóficas e seu engajamento em questões
políticas e sociais de sua atualidade, nos parece que dois momentos precisos devem ser
considerados privilegiados: a criação do GIP, Groupe d’information sur les prisons, e as
matérias que ele escreveu acerca da sublevação popular que ocorreu no Irã. Aqui
daremos maior ênfase a sua atuação no GIP, pois tal atuação foi procedida pela
publicação de Vigiar e punir (1975), obra em que o pensador francês desenvolve uma
profunda reflexão acerca da história da prisão moderna e do poder de tipo disciplinador
que se manifesta exemplarmente em seu interior.

É neste momento que podemos perceber mais claramente o desenvolvimento


de alguns aspectos da alternância, desejada pelo filósofo, entre reflexão e engajamento,
pois sua atuação no GIP aconteceu, nos parece, como uma espécie de extensão das
reflexões que ele havia realizado acerca do aprisionamento psiquiátrico, sendo, como
dito acima, a condição posterior para a reflexão realizada em Vigiar e punir (1975). O
objetivo aqui almejado é o de explicitar que a conexão desses momentos da trajetória de
Michel Foucault – atuação no GIP e publicação de Vigiar e punir (1975) –, que o limite
comum entre essas fases (engajamento e produção intelectual) ganham contornos mais
significativos que podem melhor evidenciar as conformidades e as tensões presentes no
modo de agir que o filósofo definiu como sendo o novo papel do intelectual da
atualidade, o “intelectual específico”.

O GIP foi não um tipo de organização, mas uma mobilização, inédita à época,
que girava em torno dos embates travados contra o enrijecimento das políticas de
segurança colocadas em prática pelo governo francês no início dos anos 1970. Na
tentativa de responder às “agitações” de maio de 1968, o governo francês buscava
reestabelecer a autoridade do Estado através de várias medidas de repressão como, por
exemplo, a dissolução do grupo Gauche Prolétarienne (grupo maoísta da esquerda
proletária) e, também, a criação de um projeto de lei que visava responsabilizar

objetivo, ao analisarmos os textos de Michel Foucault (especialmente os escritos dispersos) e alguns dos
aspectos das lutas sociais e políticas que se desenvolviam na época em que o autor produzia seus escritos,
definir essa relação entre teoria e prática em tal autor como algo perfeito e que, por isso, deva ser a chave
para interpretação de sua vasta e heterogênea obra simplesmente na possível unidade de sua trajetória
biográfica. O importante, pensamos, é acompanhar em alguns momentos precisos como Foucault alternou
experiências de pensamento com experiências de militância.

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penalmente as pessoas que organizavam e participavam de atos públicos de


manifestação2. O aumento, agora com grande intensidade, dos embates políticos
também no interior das prisões, levados a termo pela militância de esquerda detida –
seja por meio da mobilização de intelectuais, estudantes, seja por meio de greves de
fome etc. – acabou gerando, como consequência, vários motins que se prolongaram
pelas diversas instituições prisionais francesas entre os anos de 1971 e 1972. Nesse
momento Michel Foucault conhecia como ninguém a situação dessas diversas
instituições penais, pois ele era um dos agitadores do GIP e desenvolvia diversas
atividades nas prisões francesas.

O GIP foi fundado no início de 1971 por Michel Foucault, Jean Marie
Domenach e Pierre Vidal-Naquet. Apesar de se tratar de um grupo que se organizava
em torno do contexto de forte mobilização citado acima (mobilização política em torno
dos militantes de esquerda presos), os objetivos almejados por tal grupo iam além dos
modos tradicionais de embate político dos grupos de esquerda inspirados pelo
marxismo. O que os intelectuais do GIP pretendiam com suas intervenções era, na
verdade, operar um duplo rompimento: primeiro, com relação ao ponto de vista
marxista, que enxergava os presos comuns somente como subproletariados errantes e
retrógrados. Em segundo lugar, rompimento também em relação à estratégia que
estendia os embates políticos tradicionais até os presos comuns. Feito este duplo
rompimento, os membros do GIP pretendiam demonstrar que as instituições prisionais
eram, em si mesmas, um excelente local para o exercício do poder e, consequentemente,
local também de embates políticos. Com isso, buscava-se tornar público o
conhecimento das prisões, logo, a luta por informações representava um dos principais
objetivos do GIP. O grupo passou, portanto, a reunir inúmeros testemunhos sobre as
instituições prisionais. Testemunhos que, geralmente, eram escritos pelos próprios
presos.

Mesmo dando uma maior visibilidade à situação carcerária de algumas


instituições, não era intenção do grupo liderado por Michel Foucault estimular as

2
É neste cenário, de crescente exceção política, que alguns militantes de esquerda foram presos,
chamando, dessa forma, a atenção de muitos intelectuais que viam não somente as condições precárias do
aprisionamento dos presos políticos, mas também a situação em que se encontravam os presos comuns e,
principalmente, o quadro geral em que se encontrava o sistema prisional na França. Temas como esses
eram, até então, pouco conhecidos ou de pouco ou quase nenhum interesse da chamada opinião pública.

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revoltas que se seguiram nas prisões da França. Porém, o GIP deixava bastante claro
que essas revoltas deveriam ser esperadas. Mesmo desfrutando, à época, de bastante
prestígio intelectual, Michel Foucault limitava-se a escutar as reivindicações que
surgiam com as sublevações. Era essa a intervenção feita pelo filósofo no contexto das
lutas em torno das prisões. Chamar a atenção para as intoleráveis condições de
aprisionamento que vigoravam na época era o que pretendia Michel Foucault. Para ele,
as revoltas dos presos não objetivavam destruir as prisões ou organizar fugas em massa.
Tratava-se de reivindicações muito precisas e específicas, de exigências modestas que
recaíam, sobretudo, sobre a rotina de aprisionamento.

Essas revoltas que ocorriam nas prisões, essas sublevações não deviam,
segundo Foucault, ser definidas como movimentos revolucionários3, tal como eram
definidos, à época, pela esquerda tradicional. Esses movimentos deviam ser
compreendidos como sublevações em que os presos se constituíam como força coletiva
diante da administração penal. Em outras palavras, esse conjunto de acontecimentos não
podia mais ser definido com base na noção de revolução, mas, ao contrário, como um
novo modo de subjetividade coletiva. Neste tipo de movimento, caberia ao intelectual
identificar e diagnosticar, porém, jamais liderar. Tal ponto de vista evidencia que, a
partir daquele momento, as instituições prisionais deixavam de ser problemas locais e
marginais – demandando pouco ou quase nenhum interesse para reflexão e para
mobilização política –, passando a ganhar maior notoriedade nos embates políticos da
época. Nem o mais otimista dos militantes do GIP poderia imaginar tamanha
repercussão. O próprio Foucault, em um diálogo com Gilles Deleuze, confessa o quanto
ficou surpreendido com o interesse das pessoas pelo tema das prisões, pelos discursos
dos detentos e com a possibilidade de visibilidade dos mecanismos de poder que as
investigações feitas pelo GIP acerca das prisões podiam viabilizar:

Fiquei surpreso de ver que se podia interessar pelo problema das prisões
tantas pessoas que não estavam na prisão, de ver como tantas pessoas que não

3
A respeito da contraposição feita por Michel Foucault entre as lutas como prática de liberdade e as lutas
contra o poder na forma de revolução e liberação Cf. FOUCAULT, Michel. “Sexualité et politique”. In:
“Dits et Écrits II: 1976-1988”. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris:
Quarto Gallimard, 2001, p. 530.

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estavam predestinadas a escutar esse discurso dos detentos, o ouviam. Como


explicar isto?4

Essa surpresa de Foucault logo se transforma em indignação e, neste


mesmo diálogo, ele afirma:

Não será que, de modo, geral, o sistema penal é a forma em que o poder
como poder se mostra de maneira mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo
na prisão, privá-lo de alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de
fazer amor, etc., é a manifestação de poder mais delirante que se possa
imaginar. Outro dia eu falava com uma mulher que esteve na prisão e ela
dizia: “quando se pensa que eu, que tenho 40 anos, fui punida um dia na
prisão, ficando a pão e água!” O que impressiona nesta história é não apenas
a puerilidade dos exercícios do poder, mas o cinismo com que ele se exerce
como poder, da maneira mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Reduzir
alguém a pão e água... isso são coisas que nos ensinam quando somos
crianças. A prisão é o único lugar onde o poder pode se manifestar em estado
puro em suas dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral.
“Tenho razão em punir pois vocês sabem que é desonesto roubar, matar...” 5.

A experimentação do GIP pretendia viabilizar novas condições para que os


detentos pudessem falar por si mesmos e, também, pudessem ser ouvidos. Entretanto,
esse posicionamento colocado em marcha pelo grupo suscitou uma série de novas
questões. Romper com a ideia que definia o intelectual como sendo a consciência lúcida
dos fracos e oprimidos, como representante dos que não tinham voz ativa era uma
dessas questões. Assim como mostrar que o grupo pretendia, sobretudo, possibilitar a
criação de espaços para o contradiscurso dos detentos e daqueles considerados
delinquentes. Em outras palavras, o GIP não visava produzir imediatamente uma teoria
sobre a prisão ou sobre a delinquência. Ora, se novas vozes se faziam emergir, era
preciso reconfigurar, redefinir amplamente o modo como o intelectual crítico se
posicionava diante dos movimentos e embates sociais.

A experiência do GIP apontava para as inéditas configurações das lutas sociais


que se seguiriam. Podemos, assim, situar o Groupe d’information sur les prisons como
um movimento social de transição entre as tentativas da esquerda tradicional de se
reorganizar no período pós-1968, buscando readequar os modos de ação coletiva que
emergiam à época e o surgimento efetivo de novos movimentos sociais de liberação,
ganhando destaque os movimentos feministas e homossexuais. Esses novos
4
FOUCAULT, Michel. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: FOUCAULT Michel. “Dits etÉcrits I: 1954-
1975”. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Gallimard,
2001, p. 1.178.
5
Idem.

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movimentos escapavam, de modo significativo, das formas tradicionais de ação


coletiva, ao fazer emergir novas formas de recrutamento, novos modelos de análise e
novos objetivos políticos. Tais movimentos políticos, mas também sociais e éticos,
tratavam de subverter a ordem dos valores, as relações de poder, as hierarquias etc.

Diante deste cenário social e político surgem novos modos de ação coletiva e,
consequentemente, coloca-se a questão acerca da necessidade de redefinição do papel
do intelectual. Apesar da posterior autodissolução do GIP, Michel Foucault buscou,
com sua experiência no grupo, colocar em prática a sua nova maneira de conceber o
engajamento intelectual. Tratava-se de um engajamento que se empreendia e se balizava
na crítica das práticas cotidianas do poder, que deviam ser denunciadas como
intolerantes. Engajamento, portanto, não mais empreendido em nome dos valores
universais. No já citado diálogo entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, em 1972, este
último parecia demonstrar um enorme entusiasmo pelas possibilidades abertas pelo
novo empreendimento foucaultiano. Tal empreendimento coloca a relação entre teoria e
pratica em um novo patamar. A própria trajetória de Michel Foucault exemplifica bem
esse novo patamar. A esse respeito, afirma Deleuze:

Por exemplo, você começou analisando teoricamente um meio de reclusão


como o asilo psiquiátrico, no século XIX, na sociedade capitalista. Depois
você sentiu a necessidade de que pessoas reclusas, pessoas que estão nas
prisões, começassem a falar por si próprias, fazendo assim um revezamento.
Quando você organizou o GIP (Grupo de Informação Prisões) foi baseado
nisto: criar condições para que os presos pudessem falar por si mesmos. Seria
totalmente falso dizer, como parecia dizer o maoísta, que você teria passado à
prática aplicando suas teorias. Não havia aplicação, nem projeto de reforma,
nem pesquisa no sentido tradicional. Havia uma coisa totalmente diferente:
um sistema de revezamentos, em um conjunto, em uma multiplicidade de
componentes ao mesmo tempo teóricos e práticos. Para nós, o intelectual
teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou
representativa. Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja
por um partido ou um sindicato que se arrogaria o direito de ser a consciência
deles. Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na
pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe mais
representação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em relações de
revezamento ou em rede6.

Ao apontar, conforme afirma Deleuze acima, novas formas de agir


coletivamente, o GIP deixa claro que o intelectual deveria deixar de lado seu status
tradicional de agente universal e totalizador, seu papel de porta-voz dos que sofrem com

6
Idem, pp. 1.175-1.176.

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a opressão. Era preciso admitir que as relações entre prática e teoria deveriam ser menos
imparciais e mais fragmentárias. Contudo, conflitos e novas tensões continuaram
presentes nessa nova configuração dos embates sociais proposta por intelectuais como
Michel Foucault. Levando ao limite a ideia de que os intelectuais não deveriam jamais
liderar os movimentos, grupos de detentos logo começaram a reivindicar independência
em relação aos seus “padrinhos” e, mesmo com o notável êxito do Groupe
d’information sur les prisons, Foucault e seus colegas logo experimentaram um
sentimento de fracasso após a autodissolução do grupo. Não obstante essa
experimentação, esse sentimento, o GIP acabou tornando-se uma dos exemplos mais
emblemáticos do engajamento político de Michel Foucault e de suas reflexões sobre a
necessidade de redefinir o papel do intelectual frente aos novos movimentos de luta
social que surgiram após 1968.

Dissolvido o GIP, Foucault lança a obra Vigiar e punir (1975). O objetivo de


Foucault era refletir acerca das transformações ocorridas nas práticas penais francesas,
da época clássica ao século XIX. Como bem sabemos, dentro de tais transformações, o
problema do papel central que as prisões passam a desempenhar na penalidade moderna
ganha destaque. O pensador francês se questiona a respeito da maneira como a prisão se
tornou a pena por excelência, voltada para o disciplinamento do corpo e da alma, não
mais para o suplício ou para o castigo exemplar. Foucault inicia sua análise descrevendo
um ritual de suplício do século XVIII. A pretensão do filósofo vai além de uma simples
denúncia contra um ritual de barbárie que já havia sido superado pelo humanismo.
Evidenciar que o suplício define o tipo de pena de uma época determinada, eis o que
pensador almeja com seu olhar rigoroso que se detém nesse ritual aterrorizador. Mas o
suplício não é apenas um ato de selvageria. Ele possui uma especificidade, a saber,
trata-se de um procedimento que é, ao mesmo tempo, técnico e ritualístico7.

7
Isto significa que, enquanto procedimento técnico, o suplício produz determinada quantidade de
sofrimento para que possa ser comparada, hierarquizada e modulada de acordo com o crime que foi
cometido, ou seja, ele faz “correlacionar o tipo de sofrimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo
dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas”.
FOUCAULT, Michel. “Vigiar e punir: história da violência nas prisões”. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p.
36. Enquanto ritual, o suplício visava marcar o corpo do criminoso, torná-lo infame. Trata-se de uma
violência que marca de maneira ostensiva e se caracteriza pela demonstração excessiva do poder de quem
está punindo.

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As reflexões foucaultianas em Vigiar e punir (1975) remetem à ideia já


apresentada em 1972, em seu diálogo com Deleuze8, de que as instituições prisionais
não são instituições marginais. Elas são uma espécie de espaço que o poder usa como
laboratório para as experimentações das suas relações. A tecnologia de poder que se
forma no interior das prisões acaba por se prolongar por todo o tecido social, nas
fábricas, nas escolas, nos hospitais etc. O resultado é o desenho de uma sociedade
disciplinar, permeada por uma rede de instituições e práticas do poder disciplinador. A
prisão não é, portanto, uma instituição que diz respeito apenas aos delinquentes que são
punidos por ela. Foucault evidencia, portanto, que o ritual do suplício tornou-se logo
algo intolerável. Isso possibilitou, a partir de meados do século XVIII, sua supressão, ao
menos como ritual público de punição. O que tornou isso possível foi a transformação
das práticas de poder e a consequente generalização da disciplina e toda sua vigilância,
adestramento e normalização.

A princípio, Foucault pode parecer, em suas análises feitas em Vigiar e punir


(1975), indiferente quanto à condenação do suplício enquanto punição. Pode parecer
que a obra tenha certo teor relativista que não permite o filósofo condenar ritual
demasiado bárbaro que, felizmente, foi deixado de lado com o advento da modernidade.
Porém, se lermos Vigiar e punir (1975) com base no engajamento de Michel Foucault
nos embates em torno do GIP, veremos suas reflexões apontarem para um novo
caminho. O que o pensador francês pretendia na verdade, ao colocar frente a frente o
ritual do suplício e a instituição prisional, era indicar que as práticas prisionais –
sobretudo o poder disciplinar associado a tais práticas – é que deveriam ser tomadas
como intoleráveis na atualidade. A obra em si já deixa claros indícios da estreita relação
entre a teoria e os embates em torno do GIP, pois, para Foucault, foram as inúmeras
revoltas que ocorreram à época em prisões do mundo todo que o indicaram o caminho a
ser seguido em sua pesquisa, e não uma descoberta histórica ou, simplesmente, uma
intuição teórica9.

8
FOUCAULT, Michel. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: FOUCAULT Michel. “Dits etÉcrits I: 1954-
1975”. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Gallimard,
2001, pp. 1.174-1.183.
9
A esse respeito Cf. FOUCAULT, Michel. “Vigiar e punir: história da violência nas prisões”. Rio de
Janeiro: Vozes, 2009, pp. 32-33. As revoltas que se seguiram à época eram, segundo Foucault, revoltas de

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Dessa maneira, após suas experiências com o GIP, Michel Foucault apresenta
seu estudo histórico sobre o advento da prisão moderna e, com isso, realiza a tão
almejada alternância10 entre teoria e prática. De um lado, o GIP objetivava, antes de
tudo, abrir espaço para que os detentos contassem suas experiências dentro das prisões,
buscando apresentar novas falas acerca da prisão, que não eram pautadas pelos saberes
criminológicos e psiquiátricos ou pelas promessas dos reformadores; de outro, as
análises feitas em Vigiar e punir (1975) objetivavam tornar visível o olhar disciplinar
que opera no interior das prisões, e que acabam por se prolongar por todo o tecido
social. O interessante – e aqui se encontra mais claramente essa relação entre teoria e
prática – é que por se tratar de um olhar assimétrico, cabe à análise crítica torná-lo
visível, revertendo o princípio da visibilidade a favor das lutas e resistências sociais.

Ora, se o papel da filosofia para Michel Foucault “não era, bem o sabemos,
descobrir verdades ocultas, mas tornar visível exatamente o que já está visível”11; é
justamente por isso que no caso das instituições prisionais tratava-se de evidenciar que o
poder operado em seu interior não dizia respeito apenas aos detentos, mas ao homem
moderno aprisionado em inúmeras redes normalizadoras da sociedade. A esse respeito,
Philippe Artières dirá:

Dessa forma, são as relações de poder que é preciso interrogar. Em um estilo


óptico [...] Foucault identificou os movimentos, as forças que não
conhecemos e que, não obstante, atravessam nosso presente. Da História da
loucura na idade clássica (1961) à Vontade de saber (1976), suas “ficções
históricas” tinham a mesma mirada: diagnosticar as forças que constituem
nossa atualidade e que ainda a movimentam. Ele tenta, desse modo, provocar
“uma interferência entre nossa realidade e o que sabemos de nosso passado”.

corpos contra as mazelas cotidianas da detenção, mas eram também contra as prisões modelo. O que
estava em jogo era a materialidade do poder que era exercido sobre os corpos dos condenados. Tal
materialidade nenhum discurso pretensamente humanista, segundo o filósofo, poderia mascarar. É
justamente essa tecnologia de poder que ele pretendia problematizar e tornar visível em seu livro. Era essa
punição, portanto, que ele queria denunciar com intolerável.
10
Em “Les intellectuels et pouvoir”, Deleuze utiliza o termo “revezamento”. Cf. FOUCAULT, Michel.
“Les intellectuels et le pouvoir”. In: FOUCAULT Michel. “Dits etÉcrits I: 1954-1975”. Édition établie
sous la direction de Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Gallimard, 2001, p. 1.176.
11
ARTIÈRES, Philippe. “Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em Michel Foucault”. In: GROS,
Frédéric. (Org.). “Foucault: a coragem da verdade”. São Paulo: Parábola, 2004, p. 15.

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É o que levava o filósofo a esperar que “a verdade de seus livros estivesse no


futuro”12.

Afirmar que em Vigiar e punir (1975) não há espaço para as ações dos detentos
e para suas vozes, bem como afirmar que as variadas formas de resistência contra a
disciplina não aparecem, ou, ainda, dizer que Michel Foucault não dá importância ao
sofrimento dos que suportam a punição, são alguns exemplos de objeções que podem
ser feitas a respeito da obra. Contudo, podemos argumentar que as lutas e embates
políticos e as resistências são, na verdade, as condições que possibilitaram as análises
feitas por Foucault em seu livro, e que tais resistências emergiram no cenário político da
época nas lutas em torno do Groupe d’information sur les prisons. Sendo assim,
viabilizar a voz dos presos significava resgatar do silencio e do anonimato aqueles que
eram, cotidianamente, detidos, vigiados e castigados.

A relação aqui exposta entre teoria e prática, entre a atuação de Michel


Foucault no GIP e a posterior publicação de Vigiar e punir (1975) nos possibilita
visualizar a especificidade do Foucault genealogista, que critica as formas capilares do
exercício do poder na sociedade, mas que, igualmente, se preocupa em abrir espaços
para as vozes silenciadas pelos saberes e poderes hegemônicos que impossibilitam a
alteridade e inscrevem toda diferença ao campo do imutável, na tentativa de evitar as
possibilidades de mudança. Liberar a voz dos detentos e criar espaços para essas vozes
tem como contrapartida um novo olhar sobre as instituições prisionais. Olhar que
analisa de maneira crítica como o poder disciplinador se baliza na visibilidade e na
vigilância, caracterizando essa visibilidade e vigilância como assimétrica. É preciso,
portanto, romper com essa assimetria. Eis a proposta de Michel Foucault em Vigiar e
punir (1975).

Voltando ao tema do engajamento do filósofo francês em embates políticos e


sociais de sua época, reafirmamos que, por diversas vezes, seu engajamento era
concebido como incompatível com seu trabalho de pesquisador, ou era definido como
uma atividade independente de seus escritos. Entretanto, como afirma Philippe Artières,

12
Idem, pp. 15-16.

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podemos considerar suas intervenções como um “diagnóstico do presente”13, assim


como suas reflexões. Será que hoje podemos constituir novos aspectos teóricos e
práticos com base no modelo de engajamento colocado em curso por Michel Foucault e
outros intelectuais, na tentativa de alvejarmos o nosso tempo presente?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARTIÈRES, Philippe. Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em Michel


Foucault. In: GROS, Frédéric. (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo:
Parábola, 2004.

BRANCO, Guilherme Castelo. VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Foucault, filosofia e


política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Les Éditions de Minuit, 2004.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Rio de


Janeiro: Vozes, 2009.

FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits, I (1954-1975). Édition établie sous la direction de


Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Galliamard, 2001.

_________________. Dits et Écrits, II (1976-1988). Édition établie sous la direction


de Daniel Defert et François Ewald. Paris: Quarto Galliamard, 2001.

13
ARTIÈRES, Philippe. “Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em Michel Foucault”. In: GROS,
Frédéric. (Org.). “Foucault: a coragem da verdade”. São Paulo: Parábola, 2004, p. 15. Ao propor um
diagnóstico da atualidade, Foucault articula, de maneira efetiva, engajamento e reflexão histórico-
filosófica. Ao dar ênfase a essa relação não é nossa proposta conciliar a obra e seu autor de maneira
simplista, pois o próprio Foucault, em atuações com a do GIP, se esforçava para “estilhaçar” seu estatuto
de autor, pois “o valor do diagnóstico não repousa num rosto, numa identidade de autor, mas no próprio
diagnóstico. A qualidade do olhar deve absorver todo o rosto, fazê-lo desaparecer”. Idem, p. 35.

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É O VALE QUE DIZ O CURSO OU SÃO OS DISCURSOS QUE


DIZEM O (QUE) VALE? A IDENTIDADE DA ILHA-PÁTRIA
(LIMOEIRO DO NORTE) E OS RI(S)OS DE FOUCAULT

José Wellington de Oliveira Machado


Universidade Federal do Ceará
wellingtonpet@gmail.com

RESUMO
Este artigo, que faz parte de um campo específico da historiografia que estuda
identidades, espaços e fronteiras existenciais, procura dialogar com o
filósofo/historiador Michel Foucault, que pesquisou/escreveu sobre corpo, subjetividade
e saberes. Partindo da pesquisa sobre a construção identitária dos espaços limoeirenses
procuro destacar a importância da “Arqueologia do Saber” e dos outros estudos
foucaultianos na problematização das identidades, na análise arqueológica das práticas
discursivas e não discursivas que constroem verdades, que produzem uma rede de
significados. A intenção é perceber como Foucault questiona a natureza dos dizeres e
dos saberes que foram socialmente instituídos, como ele dessacraliza e historiciza essas
formações discursivas. Não é a natureza do Vale (do Jaguaribe) que determina o curso
da História, são os discursos que dizem o que é o Vale, são as formações discursivas e
não discursivas que legitimam o que vale e o que não vale na organização dos saberes.
O objetivo, tomando como referência Limoeiro do Norte, é estudar essa rede de dizeres
que produziu cenários, instituições e personagens idealizados. Os risos de Michel
Foucault, que conseguiram desestabilizar os rios das certezas modernas, também podem
problematizar o Vale do Jaguaribe (mais precisamente Limoeiro do Norte) e as suas
certezas identitárias.

PALAVRAS CHAVES: formações discursivas; identidade; arqueologia do saber;


Foucault.

"No rio das pedrinhas Jane Eyre irritava


por insistir em querer ver
uma terceira margem que ali não existia
Parece que a cabeça dela era equipada
com apetrechos de fazer abstração
Irritava muito sua ladainha de encontrar terceira margem
Caladônio, um que tinha o apelido de Wellington,
rompeu a amplidão de seu silêncio
e frutificou uma tempestade poética:


Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará
(UFC) e bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
FUNCAP. Professor efetivo do Estado do Ceará (afastado para cursar o mestrado). E-mail:
wellingtonpet@gmail.com

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acabe com essa história de terceira margem


Uma margem de 1 rio já é o bastante para fazer alguém
feliz!
Inconformada com a discórdia ela puxou o rio para si
e o rasgou em pedacinhos.
Os pedacinhos foram brincando de cai-cai
e, sem força de rio, esquecendo-se na areia.
Agora ninguém mais toma banho nem mesmo na
primeira margem"1
(Kelson Oliveira)

Esse artigo, que tem como ponto de partida uma poesia, não fala apenas de
ciências, se refere mais à poética, à estética, à erótica, à arte, do que às disciplinas. A
epígrafe, do meu amigo, poeta, historiador e cientista social Kelson Gérison, denuncia
isso, o texto não é sobre a unidade do rio, de Foucault, da história, da memória, da
geografia ou da arte; é sobre os rios, os Foucaults, as histórias, as memórias, as
geografias, as artes, sempre no plural e sem nenhuma pretensão de
unidade/homogeneidade dos sujeitos, dos espaços ou das instituições. A ideia de
“terceira margem”, que também aparece no conto de Guimarães Rosa e em um dos
livros de Albuquerque Jr. (2007), faz parte do nosso imaginário. A história das margens,
contada por Kelson Gérison, é uma poieses sobre quatro amigos e suas sapi(viv)ências
na cidade de Limoeiro do Norte, sobre diferentes maneiras de lidar com as pessoas e
com os espaços.
Os dois personagens (Jane Eyre e Caladônio), o autor (Kelson Gérison) e a
“sujeita oculta” (Conceição) não são necessariamente assimétricos ou antitéticos, são
complementares, o olhar desses quatro amigos se aproximam de algumas das faces
(máscaras) de Michael Foucault. Enunciam, através das suas vivências, algumas das
possibilidades para fazer e/ou viver poesia nas margens do Jaguaribe; para desver,
dessentir, desdizer, desinventar, desnaturalizar, desessencializar a história, a geografia e
as identidades limoeirenses. As aventuras desses quatro amigos, apresentada na primeira
parte deste artigo, é uma maneira de aproximar alguns temas que as vezes parecem
distantes: História, poética, política, amizade e estudos foucaultianos.
O primeiro desses quatro amigos é o próprio autor/poeta, o artesão das palavras
que consegue transformar as poéticas cotidianas em poesias escritas. Quem mais do que
um poeta para falar sobre essa (des)relação entre “as palavras e as coisas”? (Foucault?)
1
GÉRISON, Kelson Oliveira. Terceira Margem. In.: ________. Para Comover Borboletas. Rio de Janeiro.
7 Letras. 2010.

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Quem mais do que um poeta-historiador para (des)inventar o cotidiano? (De Certeau? )


Os dois livros de Kelson Gérison, “Quando as Letras tem a cor dos sonhos” e “Para
comover borboletas”, que namoram com a escrita do poeta Manuel de Barros, me fazem
lembrar do artigo de Albuquerque Jr. (2007), “História: redemoinhos que atravessam os
monturos da memória”, que aproxima a escrita da História, da poesia (barroseana) e da
filosofia (foucaultiana).
A principal personagem dessa pequena-grande história é minha amiga e
historiadora, Jane Eyre que, segundo o poeta, se encantou pela terceira margem e rasgou
o rio ao meio, cortando-o em pedacinhos. Essa provocação, consciente ou
inconscientemente, é uma atitude foucaultiana, a possibilidade de irritar, de provocar, de
desconcertar, de rir (e de fazer rir) das supostas verdades estabelecidas é um dos legados
de Michel Foucault, essa atitude de Jane Eyre me fez lembrar de um artigo de
Margareth Rago (1995) e de uma pergunta que ela fez: “o que queria aquele filósofo
que anunciava que 'a história dos historiadores' erroneamente havia se preocupado em
compreender o passado, e que na verdade tratava-se de 'cortar' e não de compreender?”
Essa pergunta, assim como as outras, será analisada no decorrer do texto.
O outro personagem sou eu, Caladônio, que gosta das poesias que se escrevem
com tintas e com corpos, em pedaços de papel e de gente, na margem de cadernos e de
rios. A minha preocupação, pelo menos neste caso, não é com a verdade do tempo
(passado) ou do espaço (paisagem), nem com as representações poéticas e
historiográficas que foram e/ou são construídas, a intenção de “Caladônio” (que pode,
ou não, se confundir com o historiador que vos fala) não é se debruçar sobre a rede
volumosa dos acontecimentos, não é apenas explicar como se constrói os fios do tecido
ou as vara(andas) da História, é está, pelo menos metaforicamente, nas mãos da
“redeira” e em cada fio da rede, é ser o tecelão (ALBUQUERQUE JR., 2009) e a
própria tecelagem, é está dentro dx d(t)rama e d(t)ramar a estilística, a poética, a erótica
e a estética da própria existência (ALBUQUERQUE JR., 2010; FILHO, 2008; PAIVA,
2008; FOUCAULT, 2004), é escrever as histórias e “ser das histórias”), é estudar as
operações (CERTEAU, 1988) e as artes (ALBUQUERQUE JR., 2007) desse babado

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(que chamamos de História) e, ao mesmo tempo, ser do babado (que também é


história)2.
Caladônio, como poeta/artista da vida, se aproxima da proposta de Michael
Foucault que propõe uma “politica de vida não-fascista”, uma “estética/estilistica da
existência”, uma “arte de viver (que seja) contrária a todas as formas de fascismos”,
uma ideia para “conceber a efetuação do artista na própria vida”, (tomando “a própria
vida como uma obra de arte”), não como “consolidação de uma identidade” ou essência,
mas como possibilidade de diferenciação, de criação, de poieses, de inovação (FILHO,
2008). O rio para Caladônio é a própria poesia em processo de construção, as paisagens
do rio, as pessoas, os momentos, as amizades, fazem parte do próprio devir, a proposta
do personagem (que na verdade – também- é do próprio historiador que vos fala) não é
apenas viver, desviver, ou sobreviver, é “deviver” (viver o/no devir).
A História/poesia da terceira margem, que foi protagonizada por Jane Eyre e
Caladônio, não existiria sem o poeta/autor (Kelson Gérison) e muito menos sem os
sujeitos ocultos dessa poética. Esse quatrilho petiano3 não estaria completo sem a
alegria e a crítica de Maria da Conceição, que além de degustar as poesias do rio
(escritas e/ou vividas) era uma das vozes questionadoras dessa trupe. Era ela, por
exemplo, que lembrava que o rio das palavras era (também) o rio dos silêncios, que o
rio das belezas e das alegrias escondia um turbilhão de tristezas, que os caminho das
águas podia ser também um riacho de sangue, um (des)caminho de veneno4. Era ela que
dizia, com outras palavras, que o rio/atelier de Caladônio (que servia para transformar a
vida em obra de arte), de Kelson Gérison (que usava-o como fonte de inspiração), ou de
Jane Eyre (que se apropriava da geografia para fazer abstrações), era usado por
multinacionais e empresários locais com interesses políticos, econômicos e sociais.
O Olhar de Conceição denunciava as explorações que aconteciam na Região do
Vale do Jaguaribe, as abstrações de Jane Eyre desvelavam a suposta naturalização do rio

2
As expressões “ser das histórias” e “ser do babado” são gírias usadas por parte dxs lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais para explicar que alguém é do grupo
LGBTTTI.
3
Quatro amigos que se formaram em História na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos
(FAFIDAM/UECE) e foram bolsistas do Programa de Educação Tutorial, PET de História.
4
Essas duas expressões se referem, respectivamente, as políticas da colonização e do agronegócio que
foram implantadas na região. As palavras sangue e veneno são usadas ao lado de riacho e de
(des)caminho para lembrar do geconídeo indígena e da morte de Zé Maria do Tomé e de outros
agricultores. Zé Maria era um líder sindical da região do Vale do Jaguaribe que foi morto em 2010, com
dezenas de tiros, por denunciar a pulverização aéria na Chapada do Apodi.

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e a essencialização dos ribeirinhos, cortava o rio em pedaços para desnaturalizar as


margens e a sua hidrografia, explodia a suposta nascente (origem), o leito (caminho das
águas) e a foz (onde o rio deságua) para produzir novos ri(s)os, novas possibilidades de
pensar e conhecer o espaço geográfico e as histórias (ou a História dos Espaços). Essa
aproximação entre poesia, filosofia e historiografia não é por acaso, existem alguns
objetivos: repensar a história e a geografia de Limoeiro do Norte, desmistificar as
identidades locais, desmontar o quebracabeça das verdades estabelecidas, mostrar que
as peças foram organizadas e que os encaixes foram planejados.
O foco não é apenas a História da Geografia ou a Geografia da História, é a
construção discursiva (e não discursiva) das identidades. A Arqueologia do Saber, de
Michael Foucault, é uma maneira de esca(o)var nossas verdades históricas, de
problematizar nossas formações discursivas, de inferir sobre a construção da nossa
própria existência. A grande contribuiçãodesse filósofo-historiador foi mostrar que
todos sujeitos, objetos e espaços, que aparecem de maneira essencializada, naturalizada,
sacralizada e mumificada, foram construídos através de práticas discursivas e não
discursivas. A proposta de Foucault, ao contrário do que dizem os críticos, não é “cortar
por cortar”, é mostrar que as grandes verdades foram inventadas, que a homogeneidade
do discurso é artificial, que a identidade é uma construção social, que podia e que pode
ser construída de outras maneiras.
É nesse sentido que podemos explicar a aproximação entre um poeta-historiador
e um historiador-filósofo. Tanto Kelson Gérison (através de Jane Eyre) como Michel
Foucault (no livro Arqueologia do Saber) falam em “cortar”. Qual o significado dessa
expressão no pensamento foucaultiano? O que significa cortar a História e cortar o rio?
Qual a importância de Michael Foucault para a historiografia? Qual a contribuição dele
e dos seus estudos para quem pesquisa, por exemplo, sobre Histórias, espaços, gêneros,
identidades, sexualidades, corpos, subjetividades e saberes?

As “pedrinhas-Foucaultianas” e os “rios da História”: As contribuições de Michel


Foucault para pensar as margens.

O poema “Terceira Margem” (de Kelson Gérison) se passa na Barragem das Pedrinhas,
na margem do Rio Jaguaribe, no município de Limoeiro do Norte – CE. Essa história-
poesia, que fala sobre a importância da amizade, das margens e dos cortes, é uma

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metáfora perfeita para falar sobre Michael Foucault. Primeiro, porque ele é um
historiador das margens:

Foucault sempre olhou para a História não em busca do que é central, mas do
que foi jogado para as margens, das práticas e discursos em ruptura com a
norma, com o hegemônico, com o majoritário. Foucault foi o cartógrafo das
margens, dos limites e das fronteiras que complexificam, que dividem, que
tornam problemática essa pretensa unidade civilizacional e cultural.
(ALBUQUERQUE JR., 2008).

Ao fazer uma arqueologia dos saberes, uma genealogia dos poderes e uma
análise sobre a produção de subjetividades, ele colocou em evidência os loucos, os
doentes, os presos, os homossexuais, os intersexuais, os ditos “anormais”, os homens e
as mulheres infames. Ele não se comprometeu com a história da razão ou com as razões
da história, ele fez uma tese sobre a “história da loucura” e falou (na “Arqueologia do
Saber”) sobre as desrazões daHistoriografia (Foucault, 2013). Os personagens que
aparecem nas histórias são “marginais”, estão nas margens da história, são tratados
como bandidos, criminosos, doentes ou loucos pelas instituições disciplinares. O seu
livro “Vigiar e Punir: história da vigilância nas prisões” (Foucault, 2011) levou parte
dos historiadores brasileiros a se aproximarem de sua genealogia e a refletirem sobre o
poder disciplinar (Rago, 1995). Foucault não fez apenas uma história sobre as prisões na
Europa Moderna, fez uma análise genealógica das estratégias de disciplina que atingiu
as prisões e outras instituições disciplinares, como hospitais, manicômios, escolas, etc.
Ao contrário do que disseram os críticos, ele não se limitou a ideia de poder e de
disciplina, o que já seria por si só um grande avanço para os estudos da época. A
metáfora do panóptico não eliminou as possibilidades de resistência, a ampli(fic)ação da
ideia de poder complexificou a ideia de luta, se o poder está em todos os lugares a
resistência também está (MACHADO, 1979). Michel Foucault não matou os sujeitos da
História, pelo contrário, ele explicou “como foi possível historicamente a emergência de
figuras de sujeitos como: o doente mental, o prisioneiro, o sujeito de uma sexualidade”
(Albuquerque Jr., 2011). Ele dedicou parte dos seus estudos para escrever “História da
Sexualidade I: vontade de saber”, “História da Sexualidade II – o uso dos prazeres” e
“História da sexualidade III – cuidado de si”. O “dispositivo da sexualidade” é um tema
que faz parte dos seus estudos e da sua vida cotidiana, não apenas como pesquisador da
sexualidade, mas como sujeito homossexual.

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Ele foi tratado, por setores da academia e da sociedade, como “uma pedra no
meio do caminho” dos historiadores, não uma “pedrinha”, uma pedra gigante, uma
“barragem” que atrapalharia os desígnios da tradição historiográfica, que minava o
curso da História e os cursos de História, o curso do tempo e os cursos de seu tempo, os
per(cursos) da tradição herdada. Mas, essas “pedrinhas-foucaultianas”, que foram vistas
como grandes barragens, se transformaram em pontes que nos ligam a uma nova
maneira de (des)pensar o pensamento, de (des)conhecer o conhecimento.
O prefixo des, que aparece entre parêntese, não pode ser entendido como
indicação de não pensamento ou de não conhecimento, mas como proposta para pensar
e conhecer de outras maneiras, para pensar o pensamento e conhecer o conhecimento de
outras formas, para entendermos porque pensamos e conhecemos as pessoas, as
instituições, os espaços geográficos e as disciplinas (inclusive a História), de uma
maneira e não de outra. Uma parte dos estudos de Foucault é exatamente sobre isso:
“propunha-se pensar como haviam sidoinstituídas culturalmente as referências
paradigmáticas da modernidade em relação ao próprio social, à posição dos sujeitos, ao
poder e às formas de produção do conhecimento” (Rago, 1995).
Pesquisadores como Paul Veyne, Roberto Machado, Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, Margareth Rago, Alipio de Sousa Filho, Igor Guedes Ramos,
Washington Luiz Souza, dentre tantos outros, destacam uma série de questões que
justificam porque Michel Foucault, apesar das controvérsias, revolucionou a
Historiografia, porque é considerado um pensador incômodo, porque é visto como um
furacão ou como “uma pedra no meio do caminho”. Os estudos que ele realizou sobre
panóptico, vigilância, punição, poder, saber, linguagem, sexualidade, resistência,
disciplina, aprisionamento, loucura, subjetividade, corpo, ficção, ética, literatura,
cuidado de si, estética/estilistica da existência, práticas discursivas e não discursivas,
heterotopias, descontinuidades, diferenças, margens e cortes, são de fundamental
importância para pensar a História e as outras áreas do conhecimento.
Os novos temas, as novas abordagens, as novas metodologias fazem parte da
Nova História, o horizonte de possibilidades da Historiografia foi amplificado e os
sujeitos da história se multiplicaram. Essa Revolução Historiográfica não se resume,
obviamente, a Michel Foucault. Mas, a sua contribuição, que não foi pequena, não pode
ser ignorada, seja por causa dos “homens (e mulheres) infames” que ele colocou em

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suas páginas (e em sua vida), seja por causa da metodologia que ele utilizou para fazer
as pesquisas. Michel Foucault era um crítico da ideia de método, mas ele construiu uma
maneira própria para (des)pensar a História. A principal característica dessa maneira de
pensar o pensamento é a descontinuidade. Segundo Michel Foucault (2013):

A noção de descontinuidade toma um lugar importante nas disciplinas


históricas. Para a História, em sua forma clássica, o descontinuo era, ao
mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza
dos acontecimentos dispersos – decisões, acidentes, iniciativas, descobertas –
e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que
aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o
estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir
da história. Ela se tornou, agora, um dos elementos fundamentais da análise
histórica (...) O historiador se dispõe a descobrir os limites de um processo, o
ponto de inflexão de uma curva, a inversão de um movimento regulador, os
limites de uma oscilação, o limiar de um funcionamento (…) não é mais o
negativo da leitura histórica (seu avesso, seu fracasso, o limite de seu poder),
mais o elemento positivo que determina seu objeto e valida sua análise.

A grande inquietação dos historiadores e dos outros pesquisadores é que ao olhar


e ouvir os risos de Foucault (através de uma citação como esta) eles perceberam que a
admiração e/ou o repúdio vinha da constatação de que ele fazia uma reflexão histórica
sobre nós mesmos. As ciências humanas, da forma como conhecemos hoje, são
empreendimentos modernos e podem ser estudadas como qualquer outra forma de
conhecimento, a própria palavra disciplina lembra os estudos de Foucault, a dobradinha
entre saber e poder coloca em suspeição a produção de todas as ciências e a constituição
das verdades, a própria historiografia passa a ser vista como produto e produtora de
discursos, como filha e mãe de práticas discursivas e não discursivas.
Mas, é preciso lembrar que não existe apenas um Foucault, existem vários
Foucaults, como ele mesmo dizia: “não, não, eu não estou onde você me espreita, mas
aqui onde eu o observo rindo”. Não adianta querer dizer qual é o verdadeiro rosto de
Forcault, ele tem muitos, o que podemos fazer é traçar as nossas próprias impressões e
construir as novas “Cartografias” (ALBUQUERQUE JR., 2008) ou “figuras” de
Foucault” (RAGO; 2008), é fazer outras “incursões foucaultianas” que possam servir
para entender melhor a atualidade (PASSOS, 2008). Ou, se preferirmos, as
“Ressonâncias Contemporâneas de Michel Foucault”5.

5
“Ressonâncias Contemporâneas de Michel Foucault é o subtítulo do III Colóquio de Estudos
Foucaultianos que aconteceu de 16 a 19 de setembro de 2014, na Universidade Estadual do Ceará, onde
apresentei o presente texto em uma comunicação oral.

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A “Arqueologia do saber” e uma pergunta que não quer calar: É o vale que diz o
curso ou são os discursos que dizem o (que) vale?

A “Arqueologia do Saber” não é apenas um livro, é um compêndio, “só é


possível compreendê-la em um continuum” que inclui: “A História da Loucura” (1961),
“O Nascimento da Clínica” (1963) e “As palavras e as Coisas” (1966). Ao usar a
expressão arqueologia o filósofo-historiador Michel Foucault não está legitimando os
“rastros caídos fora do tempo e petrificados” (GIACOMONI, 2010), ele entende a
palavra arqueologia de outra forma.

Na verdade trata-se de descrever discursos, não livros (na relação com seus
autores), não teorias (com suas estruturas e coerências), mais os conjuntos, ao
mesmo tempo familiares e enigmáticos, que, através do tempo se tornam
conhecidos como a medicina, ou a economia política, ou a biologia (…)
Gostaria (portanto) de revelar, em sua especificidade, o nível das 'coisasditas',
sua condição de aparecimento, as formas de seu acúmulo e encadeamento, as
regras de sua transformação (FOUCAULT, 2013).

A grande preocupação de Foucault, como podemos perceber na citação, é com


esse arquivo de saberes que surgiu em um contexto específico da nossa História
(modernidade), ele está interessado em problematizar essa rede de di(vi)zibilidades que
instituiu verdades e se instituiu enquanto verdade, essa gama de dizeres/saberes que ele
chamou de “coisas ditas”, esse manancial de práticas (discursivas e não discursivas) que
podem e devem ser “esca(o)vados” pelos historiadores. Todas estas observações são
questões teóricas que partem do pensamento de Michel Foucault, a partir deste
momento começarei a trabalhar com um tema específico, que é o rio Jaguaribe e a
identidade de Limoeiro do Norte. Partindo das fontes (livros, pinturas, esculturas,
música, vídeos) e das leituras de Michel Foucault podemos perguntar: “É o Vale que diz
o curso ou são os discursos que dizem o (que) vale? Uma parte dos memorialistas, dos
poetas, dos geógrafos, dos artistas e dos historiadores responderiam que é o Vale que
diz o seu curso. Mas, o que significa essa afirmação? Que a natureza define, por conta
própria, a história dos espaços? Que Deus, antes das pessoas, definiu os cenários e os
dramas dessa história? Que a História dos antepassados, cheia de heróis e de bençãos
moldou a organização geográfica e social? Que a coesão e a coerção social legitimaram
essa ordem social, política, econômica e cultural que (supostamente) não pode ser
modificada?

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Foucault vai na contramão de tudo isso. Ele denuncia que o que existe uma
espécie de mitologia que remete aos ditos e não ditos de outrora, uma falsa sensação de
unidade. Segundo Michel Foucault (2013, p. 30),

Há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que dela jamais
poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma, seriamos fatalmente
reconduzidos, através da ingenuidade das cronologias, a um ponto
indefinidamente recuado, jamais presente em qualquer história” (…) A esse
tema se liga um outro, segundo o qual todo discurso manifesto repousaria
secretamente sobre um já-dito, e que esse já dito não seria simplesmente uma
frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um “jamais-dito”, um discurso
sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é
senão o vazio do seu próprio rastro.

Quando alguém sugere, de forma semelhante ao que foi citado acima, que o Vale
por sí só, ou por um desígnio de Deus, ou pela bravura dos “heróis”, define o curso da
história, está se aproximando da perspectiva que Foucault chamou de “tradição”, de
“rastro”, de “influência”, de um “fundamento que se perpetua”, de um “já-dito” ou de
um “jamais-dito”.Essa maneira especifica de ver a história “se dispõe a memorizar os
monumentos do passado”, a legitimar a suposta verdade dos discursos, a trabalhar com
os grandes períodos”, com “os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos”, com
“as continuidades seculares”, com “as saturações lentas”, com “as grandes bases
imóveis e mudas” da História (Foucault, 2013, p. 25-26).
Uma parte dos historiadores, segundo Foucault, “identificam, descrevem e
analisam estruturas”, sem jamais se perguntarem: “Estamos deixando escapar a vida,
frágil e (a) fremente história”? (Foucault, 2013, p. 14) Estamos matando as histórias e
os espaços em nome das “verdades” da história e do espaço? É por isso que ele decidiu
estudar as “formações discursivas”, para perceber como a dispersão dos discursos foi
ordenada por uma rede de saberes e poderes, como o estudo desse ordenamento, através
da escavação e escovação dos dizeres (Arqueologia) pode denunciar a mitologia da
identidade, a dependência com relação aos “já-ditos” (discursos memoriais, que
possuem uma historicidade) e aos “jamais-ditos” (discursos imemoriais, a-históricos).
A outra preocupação de Michel Foucault é com os documentos, a maneira como
lidamos com as fontes pode construir continuidades ou descontinuidades. A
historiografia lida com os documentos de, pelo menos, três maneiras: 1) encaram o
documento/monumento como a verdade absoluta, e repete todas as suas palavras; 2)
fazem uma problematização buscando a verdade por trás do documento, como se ele

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fosse uma espécie de portal do tempo que ajuda a resgatar o passado; e 3) “elabora o
documento, organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries,
distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades,
descreve relações” (Foucault, 2013, p. 7-9).
A arqueologia do saber trabalha com essa terceira opção. Não significa dizer,
obviamente, que a história não precisa de um referencial, que o historiador não necessita
de parâmetros ou que não existem mais padrões éticos para pensar a história e os
espaços. O que Foucault questiona é a ilusão de que o referencial será totalmente
traduzido pela linguagem, que as palavras serão um reflexo das coisas, que a história
escrita será uma cópia fiel do vivido, que a “memória milenar” poderá “reencontrar o
frescor de suas lembranças”. O documento, segundo ele, não é mais “essa matéria inerte
através da qual” tentamos “reconstruir o que os homens fizeram ou disseram”, o desafio
agora é tentar “definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries,
relações” (Foucault, 2013, p. 7-9).
A grande contribuição de Foucault para nós (historiadores), principalmente nesta
série de livros que desemboca em “Arqueologia do Saber”, é a problematização do
conhecimento, não o dos outros, mas o nosso. A arqueologia que Foucault faz não é
(apenas) sobre o surgimento da medicina ou da psiquiatria, é sobre as ciências humanas,
sobre a organização dos conhecimentos históricos e a produção histórica dos
conhecimentos. Segundo Giacomoni (2010), essa esca(o)vação foucaultiana tem como
objetivo: “especificar um método de investigação que visa entender a ordem interna que
constitui um determinado saber”.
A arqueologia do saber, assim como Michel Foucault, não é disciplinar, é
indisciplinar, interdisciplinar, transdisciplinar por excelência, não é patrimônio de uma
disciplina, de uma área do conhecimento, é apropriada por pesquisadores de todas as
ciências. Os saberes que são esca(o)vados ultrapassam os limites da academia, são
saberes científicos e não científicos. A arqueologia, portanto, ajuda a desvendar como
os homens e as mulheres constroem as suas próprias existências. Não existe os sujeitos,
os objetos, os espaços (a priori), eles “são construídos discursivamente” a partir do que
“se fala sobre eles” (GIACOMONI, 2010).
O discurso não é uma cópia do real, não é mimeses, é transfiguração e invenção,
é criação. Mas, não existe independência entre o que chamamos de real e o que

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chamamos de representação, a “cartografia sentimental” que os memorialistas e os


poetas criaram para representar a cidade de Limoeiro do Norte depende de um
referencial. Esse referencial, que chamamos de realidade, não pode ser confundido com
o mapa simbólico que foi construído para representá-lo. Contudo, essa mesma paisagem
mi(s)tica também faz parte do cenário, interfere, de fato, na forma de ver e dizer o que
chamamos de real (VIEIRA, 2006). Não é a natureza do Vale (do Jaguaribe) que
determina o curso da História, são os discursos que dizem o que é o Vale, são as
formações discursivas e não discursivas que legitimam o que vale e o que não vale na
organização dos saberes.

A identidade da ilha-pátria (Limoeiro do Norte) e os ri(s)os de Foucault.

A cidade de Limoeiro do Norte, localizada na Região do Vale do Jaguaribe


(CE), foi pensada, demarcada e legitimada, através das mais variadas estéticas
discursivas, como “lugar paradisíaco”. Os sujeitos da pesquisa (memorialistas, poetas e
outros artistas) estão situados na linha do tempo, na cartografia do espaço e no recorte
da memória. Mas, eles também construíram uma idealização do tempo, do espaço e da
memória. Eles pensaram, através dassuas artes(manhas), o passado, o presente e o
futuro, misturaram essas temporalidades nas “oficinas” ou nos “ateliês” da memória, da
poética, da estética e das outras artes.
Essa produção discursiva está nas páginas de Antônio Nunes Malveira
(incluindo a transcrição das Cartas Pastorais do Bispo Dom Aureliano Matos), de
Antônio Pergentino, de Irajá Pinheiro, de Dom Pompeu Bezerra Bessa, de Padre João
Olímpio; de Padre Francisco de Assis Pitombeira, de Maria das Dores Vidal. Mas,
também surge da música de Eugênio Leandro, da poesia de Luciano Maia, das pinturas
e esculturas de Márcia Mendonça, das comemorações que foram organizadas para o
centenário, das atividades culturais do Núcleo de Informação Tecnológica e da
Academia Limoeirense de Letras. Através dos livros, dos quadros, das fitas VHS ou dos
DVDs, das fitas K7 ou dos CDs, das próprias instituições (arquivos) ou das ruas da
cidade (esculturas e arquiteturas) é possível perceber a segmentação de uma identidade
que tem como base a natureza, a ideia de um paraíso natural e sagrado.
Mas, essa projeção, não é natural, é fruto de um “atelier de sonhos” (de cunho
político-religioso) que tem como principal ofício a modelagem de padres, comerciantes,

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coronéis, políticos e bispos. A principal obra desse “atelier” (a obra de arte) é uma “ilha
fecunda”, que chamaram de Limoeiro da Igreja, Limoeiro de Dom Aureliano, Limoeiro
dos Coronéis, “Princesa do Vale”, “país do Jaguaribe”, Limoeiro da família tradicional
e dos bons costumes, “pátria dos limões”, cidade das bicicletas, pátria dos cataventos,
terra dos carnaubais, dádiva do Jaguaribe, Terra de Parapuã6, Ilha-Pátria7 ou
Mesopotâmia Tupiniquim8.
Essas linguagens, na interpretação conceitual de Simon Schama, são camadas de
lembranças, paisagens da memória (SCHAMA, 1996), arquiteturas discursivas que,
também, fazem parte do espaço (que criam o espaço). É por isso que não podemos
ignorar as construções narrativas, as instâncias textuais (ALBUQUERQUE JR., 2007),
as produções de significados. Não é por acaso que falamos de mitos, de imaginário, de
simbolismo, de imagens e de discursos (FOUCAULT, 2013). Essa rede simbólica é
alimentada por pessoas e por instituições que são concretas, que existem de fato. Mas,
os discursos também são reais, eles podem se tornar tão concretos quanto as pessoas ou
as instituições que os produziram.
É por isso que Michel Foucault estuda os discursos, para pensar como eles
ajudam, ou não, a construir verdades. Mas, os discursos não existem no limbo, eles
precisam de um “suporte institucional”. Tomando como referência esse lugar de
produção podemos perguntar:

1) quem fala?; quem, entre todos os sujeitos falantes possui legitimidade para
enunciar; 2) de quais lugares institucionais ele obtém o seu discurso?; de qual
lugar advém tanto os objetos e enunciados quanto sua legitimidade (no caso
da medicina em nossa sociedade, estes lugares são o hospital, o laboratório, a
biblioteca, dentre outros.); 3) que posições o sujeito ocupa em relação aos
domínios ou grupos de objetos?; como estes percebem, observam,
descrevem, ensinam, etc? (GIACOMONI, 2010);

Partindo dessas indagações podemos questionar: Como a Faculdade de Filosofia


Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), o Núcleo de Informação Tecnológica (NIT) e a
Academia Limoeirense de Letras (ALL), contribuíram ou não para alimentar essa
insularidade (ilhapátria)? Quando essas instituições foram fundadas? Quais são os
6
MAIA, Luciano. Jaguaribe, o Rio Poeta. Apud: LIMA, Lauro de Oliveira. Na Ribeira do Rio das Onças.
Fortaleza-CE: Assis Almeida, 1996, pag. 60-61.
7
PINHEIRO, Társio. Ilha Pátria. Apud: OLIVEIRA, Lenira; VIDAL FREITAS, Maria das Dores. Judite:
centenário de nascimento (1906-2006). Fortaleza-CE: Premius, 2006.
8
CASTELLO BRANCO, João Olimpio. Limoeiro D’Antanho. Opinião - Tribuna do Ceará. Fortaleza –
CE, 17/08/1997.

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“construtores de dizeres” que fazem parte, direta ou indiretamente, delas? Como esses
“imortais” (da ALL) se relaciona(va)m entre si? Qual o lugar social desses “vendedores
de passado”? O que é que (e porque) escrevem, pintam, esculpem, cantam, desenham
ou filmam? Qual o significado social da nomeação de vários espaços públicos (ou
particulares) com o nome de Dom Aureliano Matos? Qual a importância sócio-histórica
da Música de Eugênio Leandro, das pinturas ou das esculturas de Márcia Mendonça, do
vídeo de animação (A Princesa do Vale), do Livro de Maria das Dores Vidal (Limoeiro
em Fotos e Fatos) ou da poesia de Luciano Maia? Como essas obras contribuíram, ou
não, para construir uma identidade insular? Quando, como e por que surgiram
representações simbólicas e imagens decorrentes da insularidade? Quando, como e por
que surgiram mitos fundadores que explicam, ou tentam explicar, de maneira
naturalizada, a essência do espaço, das instituições e dos “heróis” da história local?
A cidade de Limoeiro do Norte, que os poetas e os memorialistas preferem
chamar de “Princesa do Vale”, “Ilha de Parapuã” ou “pátria dos cata-ventos” é uma
cidade idealizada. Ela não pode possuir um avesso por que foram os memorialistas, os
poetas e outros artistas que “inventaram”, “reinventaram” e “desinventaram” o passado;
que recriaram as ruas, os becos, as escolas, as igrejas e as pessoas de outros tempos;
foram eles que construíram e reconstruíram essa geografia fantástica embebida de
imaginação e saudade. Mas, essa unidade/regularidade/continuidade, como denuncia
Foucault, é uma construção, é o resultado de uma formação, não algo é natural, não é
uma dádiva de Deus, não é o reflexo de umaorigem ou de um “já(não)dito”, é o
resultado de uma série de práticas discursivas e não discursivas que surgiram em épocas
e espaços diferentes, com objetivos variados. Mas, apesar da dispersão, é possível
descrever, uma “regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações)”, em outras palavras: uma formação discursiva” (Foucault, 2013, p.
47).
As identidades, como lembra Albuquerque Jr. (2001, 2007, 2008, 2013),
precisam das artes (que também são saberes) para poder enquadrar/cristalizar sua
imagem (unidade/regularidade discursiva). Mas, o devir (DELEUZE, 1995) é mais
ousado e criativo, é a própria arte (de viver) em movimento, são as linhas de fuga que se
constroem através dos questionamentos de todas as formas de (micro/neo) fascismos,

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são as expressões da vida que podemos chamar de estéticas, poéticas e eróticas da


existência.
Tomando como referência o conceito de devir de Foucault, Deleuze e Guattari,
podemos espalhar o modo de vida não fascista para todos os sujeitos sociais que buscam
novas éticas, estéticas, poéticas e eróticas existenciais (PAIVA, 2008). A vida de
Michael Foucault está marcada por risos, cortes e artes. Mas, essas três palavras
precisam ser (des)entendidas na mesma proporção que Foucault se (des)entendeu: “Não
me pergunte quem eu sou e não me diga para permanecer o mesmo” (Foucault, 2013, p.
21). As artes de Foucault pode ser criação, pode ser danação e pode ser qualquer outra
coisa, o corte pode ser uma agressão (no sentido de violência pela violência) ou uma
transgressão, o riso pode ser alegria e/ou tristeza, não existe um padrão. O importante é
perceber que o riso, a arte e o corte, em Foucault, é uma questão de vida, de ofício e de
política, ele usa essas palavras como armas para destruir as identidades, as essências e
as verdades que se tornaram inquestionáveis. Como lembra Albuquerque Jr. (2008, p.
97-99):

Michel Foucault é um filósofo e um historiador que ri, para o escândalo de


disciplinas que se levam tão a sério (…) Ele partilha com Nietzsche o ponto
de vista de que a história deve ser uma atividade que busca destronar ídolos e
deuses, que visa inquietar o pensamento e o poder, que se destina a libertar-
nos do peso do passado, de sua repetição mecânica e acrítica; ela deve
arruinar a familiaridade com as coisa de antanho, dessacralizar e
desnaturalizar aquilo que nos chega do passado como sendo valores
universais e eternos. Ele pratica a história irônica, a serviço do esquecimento
e não da lembrança, da perturbação do mesmo, da unidade, da identidade e da
semelhança.

Os risos de Michel Foucault, que desestabilizaram as certezas modernas,


também podem problematizar o Vale do Jaguaribe (mais precisamente Limoeiro do
Norte) e as certezas identitárias. A cidade de Limoeiro do Norte, é palimpséstica e
calidoscópica, não pode ser representada por um retrato oficial ou por um espelho que
reflete a sua imagem, nem mesmo por um conjunto de retratos e de espelhos que,
organizados em ordem cronológica, formariam um compêndio de “fisiognomia”
coletiva. A cidade é muito mais plural do que essa ilusão identitária, Michael Foucault é
muito mais complexa do que as “ilusões biográficas”, eles formam miríades de pedaços
de vidros coloridos que produzem desenhos que podem ser modificados de acordo com
a mais leve oscilação dos caleidoscópios.

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GENEALOGIA, HISTÓRIA, DISCURSO: CONTRIBUIÇÕES DE


FOUCAULT PARA UM PROJETO CRÍTICO DA CULTURA

Karliane Macedo Nunes


karlianenunes77@gmail.com

RESUMO
Esta comunicação está dividida em quatro partes: 1) Num primeiro momento, esboço o
projeto crítico de Michel Foucault, no qual o autor enfatiza a importância de uma crítica
do conhecimento, de modo a envolver questões de poder e problematizar os lugares da
verdade e do sujeito. Segundo ele, tal crítica pode ser realizada através de uma
investigação de caráter histórico-filosófico, na qual os termos saber e poder tornam-se
grades de análise; 2) Na segunda parte, apresento algumas características desse projeto
histórico-filosófico de base pós-estrutural, que exige ferramentas distintas daquelas
utilizadas no estruturalismo. Busco destacar diferenças entre a história tradicional da
perspectiva do “sentido histórico” desenvolvido por Foucault, que, inspirado em
Nietzsche, defende uma construção da história em termos de descontinuidade,
contingência e abertura. A noção de genealogia também é mapeada; 3) Para Foucault, o
conhecimento e o discurso são produzidos em contextos particulares e articulados com
questões de poder. Sua proposta quer dar conta, assim, da formação discursiva à qual
um texto pertence. Busco mostrar que Foucault problematiza a anulação histórica da
realidade do discurso e destaca a importância de devolver a ele seu estatuto de
acontecimento, de discutir a nossa vontade de verdade e de suspender a soberania do
significante; 4) Por fim, tento mostrar a pertinência da mobilização desse aporte teórico
para pesquisas em torno das culturas minoritárias no Brasil.

CRÍTICA DO CONHECIMENTO
O projeto crítico de Foucault enfatiza a importância de uma crítica do
conhecimento, de modo a envolver questões de poder e problematizar os lugares da
verdade e do sujeito.Para ele, tal crítica pode ser realizada através de uma investigação
de caráter histórico-filosófica, na qual os termos saber e poder tornam-se grades de
análise e as noções de arqueologia e genealogia ganham destaque.
Assim, a análise sugerida por Foucault considera como ponto de partida o poder
a partir do que ele chama de uma experiência de acontecimentalização, que requer o
abandono da pretensão de avançar como uma investigação legítima: tal procedimento
consiste em selecionar conjuntos de elementos, promovendo uma aproximação,

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empírica e provisória, de modo a perceber conexões entre mecanismos de coerção e


conteúdos de conhecimento diversos, interdependentes num sistema, e que serão retidos
em “função dos efeitos de poder de que são portadores enquanto válidos, como fazendo
parte de um sistema de conhecimento” (FOUCAULT, 2004, p. 156). Sua preocupação é
perceber quais são as relações de poder que tonam possíveis certos conteúdos.
O termo saber refere-se aos procedimentos e aos efeitos de conhecimento que são
aceitáveis num momento dado e em um domínio preciso; o termo poder recobre toda
uma série de mecanismos particulares, que parecem susceptíveis de induzir
comportamento ou discursos. Funcionam, assim, como grades de análises capazes de
fornecer um conteúdo determinado e preciso: tal elemento de saber, tal mecanismo de
poder. Da descrição desses vínculos, espera-seentender o processo que vai de um
conjunto à sua aceitabilidade histórica:este é o nível arqueológico da abordagem
foucaultiana (Ibidem, p. 157).

Liberar as condições de aceitabilidade de um sistema e seguir as linhas de ruptura


que marcam sua emergência são operações correlativas.Além disso, o reconhecimento
de aceitabilidade de um sistema não é separável de sua arbitrariedade em termos de
conhecimento nem de sua violência em termos de poder, o que exige que o pesquisador
tome essa estrutura sob sua responsabilidade, para melhor seguir os artifícios.

Deve-se considerar esses conjuntos como singularidades puras. Afastando-se da


busca de um sentido final, a análise de singularidades puras relaciona-se a condições de
aceitabilidade para dar conta dessa singularidade como efeito e, para isso, é preciso
estabelecer uma rede causal complexaque considere a necessidade tanto da
multiplicidade de relações quanto da diferenciação entre as diferentes formas de relação,
do prestar contas do cruzamento de processos heterogêneos. Este é, então, o nível da
genealogia, que seguindo um princípio de abertura, vai buscar justamente restabelecer
as condições de aparição (como efeito) de uma singularidade a partir de múltiplos
elementos determinantes (Ibidem, p. 159).

HISTÓRIA GENEALÓGICA

O projeto histórico-filosófico exige ferramentas de trabalho distintas daquelas


utilizadas no estruturalismo. Um primeiro aspecto importante está justamente na
distinção entre a chamada“história tradicional e contínua” e a perspectiva do “sentido

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histórico” desenvolvido por Foucault, que, inspirado em Nietzsche, defende uma


construção da históriaque passa por formas diferentes de abordar as relações entre
poder, sujeito e estruturas sociais.

James Williams (2012) destaca a contingência e a abertura histórica como


elementos fundamentais dessa abordagem: Foucault valoriza a transformação e acredita
que a ação só pode ter lugar dentro das formas que fazem nossos espaços e nossos
tempos. Em um trabalho que busca lidar de um modo diferente com as estruturas
herdadas da história, ele rompe com a ideia de que pode haver uma verdade final.Se
tudoforma uma rede de coerções, cabe a essenovo historiador - que opera em um campo
aberto – descobrir as fendas e as fissuras na rede de poder, numtrabalho de construção
de genealogias históricas.

É um método de trabalho que busca o que há de instável nas estruturas e isso


exige que o pesquisador pense descontinuidades,de modo a permitira abertura
necessária à possibilidade de criação e variação, ou seja, a genealogia. O olhar a ser
lançado deve ser capaz de distinguir, repartir, dispersar; um olhar que deixa operar as
separações e as margens. Desse modo,torna-se imprescindível abandonar a ideia da
possibilidade de apreensão da história em sua totalidade contínua e reintroduzir o
descontínuo em nosso próprio ser.

O mundo como conhecemos não é uma figura simples onde os acontecimentos se


apagaram para que se mostrem suas características essenciais, seu sentido final ou seu
valor primeiro e único. Ao contrário, é antes uma “miríade de acontecimentos
entrelaçados”: as forças em jogo na história obedecem ao acaso da luta (do discurso), e
emergem como acontecimento no que ele tem de único e agudo (FOUCAULT, 1979).

O sentido histórico não teme ser um saber perspectivo, que seleciona ângulos com
o propósito de apreciar: ele dá ao saber a possibilidade de fazer, no movimento de seu
conhecimento, sua genealogia.Foucault busca a proveniênciae reforça que a genealogia
não está preocupada com finalidade, continuidade, totalidade ou linearidade. A
genealogia é cinza, meticulosa, documentária e exige um grande número de materiais
acumulados; a genealogia quer marcar a singularidade dos acontecimentos, buscá-los
onde não se supõe haver história. A noção de genealogia propõe a substituição de um

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único relato da história por diferentes relatos, que podem variar a partir da abertura
proporcionada pela descontinuidade e pelas relações que são estabelecidas ao contar.

Foucault descreve os dois momentos de uma análise genealógica: a proveniência e


a emergência. Enquanto análise da proveniência, a genealogia destaca o ponto de
articulação do corpo com a história. Refere-se a uma busca, na aparente homogeneidade
de um conceito, da proliferação dos acontecimentos através dos quais eles se
formam.Seu propósito não é recuar e trazer o passado para o presente; é manter o que se
passou na dispersão que lhe é própria, demarcando seus acidentes e desvios, bem como
os erros e falhas que construíram o que existe e tem valor para nós (Ibidem).

A proveniência nostransmite uma herança perigosa, cheia de fissuras e de


camadas heterogêneas - por isso instáveis. É uma abordagem que no lugar de fundar
qualquer coisa, agita o que se percebia imóvel e fragmenta o que se pensava unido. O
lugar da proveniência é o corpo e tudo a ele relacionado.

Já a emergência Foucault pensa como ponto de surgimento; como lei singular de


um aparecimento; como a entrada das forças em cena, cada qual com o seu vigor. A
emergência cria um lugar de afrontamento entre adversários e é produzida assim, no
interstício, e não como responsabilidade de alguém: é uma espécie de jogo entre
dominadores e dominados.

Foucault explica que dessa relação de dominação entre homens, classes e forças é
que nascem as diferenças de valores: as emergências que aparecem são efeitos de
substituição e deslocamento. Considerando a interpretação como um exercício de
apoderar-se de um sistema de regras para inseri-lo em outro jogo e a novas regras,
torna-se possível afirmar que o devir da humanidade é uma série de interpretações e a
genealogia deve ser sua história como emergência de diferentes interpretações.

Williams destaca que enquanto os historiadores da continuidade buscam


estabilizar as tensões e os conflitos, transformando-os em signos estáveis, em
documentos utilizáveis; o movimento dos genealogistas busca mostrar a abertura e a
complexidade de documentos supostamente consideradosfatos consumados
(WILLIAMS, 2012, p. 162-163).

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É importante também destacar a simultaneidade dos trabalhos genealógico e


arqueológico. É neste nível que, segundo Williams, o pesquisador desenterra e cria o
material que permite traçar as genealogias que vão em busca das diferentes histórias que
resistem em ser agrupadas num único movimento totalizante. E é dessa perspectiva que
as questões relacionadas aos limites, séries e seleção de objetos de investigação tornam-
se muito importantes, uma vez que as descrições a serem feitas não poderão ocorrer a
partir de simples explicações de causa e efeito, mas através de redes de relações
múltiplas e complexas.Em genealogias, não há causa única, mas séries de condições.

Assim, Foucault amplia a noção de estruturalismo de tal modo que a mobilização


de novas ferramentas de análise tornam-se imprescindíveis. Longe de se tratar de um
trabalho de mera oposição ao já instituído, é um trabalho que busca a emergência de
diferenças históricas e a dispersão que se esconde sob uma falsa continuidade, a partir
da complexidade e da abertura. O que ele busca na história são as condições que
permitem a mudança ao longo do tempo, aquilo que se desenvolve e se torna outro.

DISCURSO

Para Foucault, o conhecimento é produzido historicamente a partir de suas


formas, ou seja, através do discurso, engendrado em contextos particulares e articulados
com questões de poder. Ele preocupa-se como o conhecimento produzido pelas ciências
humanas opera no sentido de organizar condutas e regular corpos.

Sua proposta quer dar conta, assim, da formação discursiva à qual um texto ou
uma prática pertence. Formação discursiva, para Foucault, é um modo de agrupar
enunciados que descrevem uma mesma dispersão (para objetos, estilos, conceitos e
temas). Partindo da ideia de que há formas dominantes, sua proposta busca tornar
visível as muitas coalizões que enfraquecem essas formas, com o máximo de precisão
possível.

Ele considera o enunciado enquanto função histórica, cujo papel é justamente


relacionar discursos e objetos, permitindo, assim, rastrear relações complexas entre o
que é dito e o que é visto.A perspectiva pós-estruturalista considera que o único modo
de acessar o real é através da linguagem e do discurso.

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Assim,Foucault (1996) problematiza a complexa relação entre realidade e signo,


afirmando ser um equívoco considerar o discurso somente como um pequeno aporte
entre o pensamento e sua expressão. Essa atitude de colocar em jogo somente os signos
termina por limitar o discurso à ordem do significante, em detrimento de sua realidade
mais ampla, que inclui contexto histórico, relações de poder e regime de verdadeque
justifica e sustenta essas relações. Isso aponta para uma profunda logofobia: um medo
dos acontecimentos, de deixar surgir os enunciados e de enfrentar o que há de violento,
descontínuo e incessante no discurso (FOUCAULT, 1996, p. 50).

Para analisar esse temor em relação ao discurso em seu jogo e em seus efeitos, é
preciso um movimento que permita devolver ao discurso seu caráter de acontecimento e
suspender a soberania do significante: temas comuns a outros pensadores do pós-
estruturalismo, a exemplo de Derrida.

Dessa perspectiva, Foucault elenca quatro noções consideradas princípios


reguladores para uma análise discursiva, em substituição a noções presentes na história
tradicional:1) acontecimento (ao invés do ponto de criação); 2) série (ao invés da
unidade de uma obra, de uma época ou de um tema); 3) regularidade (ao invés de
originalidade individual); 4) condição de possibilidade (ao invés de significação).
(Ibidem, p. 54).

Essa ampliação vai, portanto, no sentido de permitir que se circunscreva o lugar


do acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de sua aparição.
Foucault considera o discurso como um conjunto de acontecimentos discursivos, que
devem ser tratados como séries descontínuas. Também a casualidade é categoria que
precisa ser aceita na produção de acontecimentos.

Assim, o deslocamento que Foucault propõe é sutil: ele não quer tratar das
representações que podem existir por trás dos discursos, e sim dos discursos como
séries regulares e distintas de acontecimentos, o que permitiria introduzir, na raiz do
pensamento, o acaso, o descontínuo e a materialidade, elementos importantes ao pós-
estruturalismo.

CRÍTICA DA CULTURA

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Buscando escapar de métodos essencialistas, que tendem a fixar o discurso


através da repetição do “mesmo”, considero pertinente para pensar as culturas
minoritárias na contemporaneidade a mobilização de conceitos e estratégias pós-
estruturalistas, a partir do projeto histórico-filosófico de Foucault brevemente esboçado
acima, e destacando suas proposições em torno de uma genealogia crítica, que tem
pretensãode multiplicidade de relatos.

Todo discurso dominante é estruturado de modo a produzir um efeito de poder


único. Uma abordagem genealógica – a partir do entrecruzamento de discursos de
diversas ordens – permitedeslocar o que parece inalterável no discurso dominante -
tanto a partir do enfraquecimento deste, quanto a partir da possibilidade de mostrar
aquilo que escapou da história oficial.
Ao considerar, por exemplo, uma análise sobre os povos indígenas na
atualidade, nessa perspectiva, seria preciso selecionar e relacionar os diversos
mecanismos de poder e discursos de saberque marcaram a história dos índios no Brasil,
de modo a fragmentar esse regime de verdade que se supõe único e total, e dar
visibilidade aos múltiplos acontecimentos que o constituiu.

A diferença de valores nasce da relação de dominação, o que torna ainda mais


importante discuti-los nos contextos de emergências em que se tornaramdominantes:
por isso é que uma atividade de natureza crítica deve contextualizar, radiografar
historicamente os acontecimentos que possibilitaram a emergência de certos valores em
detrimento de outros. Os valores, assim como a história, são perspectivas que resultam
das relações de saber e poder.

O enunciado, pensado enquanto função histórica, também não tem em si


qualquer valor positivo: seu papel é relacionar discursos e objetos. Enunciados aqui
referem-se a qualquer “complexo de signos”, de uma frase dita até um filme: são
espaços de luta entre diferentes forças e, portanto, lugar de contradição (FIORIN, 2006,
p. 25). O trabalho da genealogia é descobrir, a partir dos discursos históricos, as fendas
e as fissuras nas redes de poder a partir dos discursos de saber, para trazer o que
escapou, escrevendo-a de modo diferente.
Trata-se de uma tentativa de desmontar a história que foi contada (a história
instituída e estruturada do discurso dominante) para fazer aparecer o lugar e trazer para

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a emergência a fala desse sujeito subalternizado. Em outras palavras, espera-se poder


fragilizar o discurso dominante, mostrando como o instituído atribui valor às coisas.

O valor desse movimento é o da enunciação: aceitar, mas não obedecer as regras


constitutivas do regime de verdade que oprime as margens. Um movimento de
apropriar-se das regras para subvertê-las, tornando os limites visíveis: é que o pós-
estruturalismo acolhe o estruturalismo, mas em diálogo com o que não está estruturado.
Os acontecimentos que ficaram fora da história cristalizada são o devir: a potência de
tornar-se algo diferente. A estrutura não acontece fora da história; assim o que reconecta
uma e outra são os acontecimentos.

Vale dizer ainda que essa perspectiva desempenha um papel importante para os
movimentos de resistência, pensada aqui como açãoe não apenas como defesa ao ataque
do outro. Daí a compromisso ético de tomar a estrutura do discurso instituído sob nossa
responsabilidade e fazê-la mover.

REFERÊNCIAS

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do Poder.


Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, pág. 15-38.

_________. “O que é crítica?”. In: Por uma vida não fascista. Coletivo Sabotagem,
2004.

________. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

WILLIAMS, James. Pós-estruturalismo, história, genealogia. A arqueologia do saber,


de Michel Foucault. In: Pós-estruturalismo. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

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FORMAÇÃO DISCENTE-DOCENTE E O CUIDADO DE SI:


APRENDIZAGENS EM PESQUISA

Késsia Fayne Barbosa Cavalcante

Marconildo Soares e Silva

Dorgival Gonçalves Fernandes

RESUMO
Este texto relata nossas aprendizagens na vigência da pesquisa intitulada "Trabalho
discente, formação docente e o cuidado de si no espaço-tempo cotidiano de
aprendizagens", e refere-se a nossa constituição enquanto sujeitos pesquisadores na
produção de saberes de si e dos outros nas atividades que substanciaram o trabalho entre
professor pesquisador e alunos pesquisadores. Os objetivos da pesquisa consistiram em
compreender o cuidado consigo mesmo nos trabalhos de aprendizagem cotidiana das/os
estudantes do Curso de Pedagogia do CFP/UFCG em seu processo de formação docente
e como o estudante do Curso de Pedagogia tem se constituído enquanto
estudante/pessoa/futuro professor. Para isto foram realizadas 20 entrevistas
semiestruturadas. Assim, a base analítica deste texto se constitui orientada pelas
aprendizagens construídas na leitura e discussão de textos de Foucault sobre o cuidado
de si (sobretudo o livro A hermenêutica do sujeito), a produção de roteiro de entrevistas,
a leitura e transcrição das entrevistas e a discussão prévia sobre os caminhos analíticos
para os dados coletados. Enquanto sujeitos que buscam a formação para a docência,
temos apreendido prática e teoricamente que a constituição de si mesmo é uma
produção decorrente dos modos como somos afetados e subjetivados, tendo em vista o
tipo de investimento que operamos sobre nós e o que buscamos em termos estéticos
para a nossa existência e a nossa construção enquanto sujeito discente e docente.

PALAVRAS - CHAVE: Formação discente/docente. Cuidado de si. Aprendizagens.

INTRODUÇÃO
A aprendizagem é um processo contínuo, que se propõe gerar uma modificação
no comportamento do indivíduo em função do estudo, da experiência e do ensino. É
uma consecução de habilidades, valores e atitudes propiciada ao sujeito.
Ao adentrarmos no meio acadêmico científico obtivemos a possibilidade de
exercitarmos nossa primeira prática de iniciação científica através da pesquisa"Trabalho
discente, formação docente e o cuidado de si no espaço-tempo cotidiano de

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aprendizagens", possibilitando-nos incomensurável valor para a nossa formação. Nossa


concepção sobre o mundo foi transposto para novos rumos, tirando-nos da óptica da
centralização das coisas para a qual há verdades absolutas e assumimos uma percepção
da versatilidade que institui o pensar, o fazer e o refazer as próprias concepções.
Ao seguir esse pressuposto, acreditamos poder contribuir, a partir deste trabalho
e considerando os dilemas que o tempo presente apresenta à educação, com a ampliação
do debate acerca dos processos de formação docente no que se refere às questões da
pessoalidade e da professoralidade no campo dos estudos educacionais, considerando-se
as noções foucaultianas de subjetivação e governamentalidade para se pensar as práticas
dos sujeitos em formação no que diz respeito à questão do cuidado de si.
Neste sentido buscamos apreender a base teórica nos estudos desenvolvidos por
Michel Foucault, filósofo francês contemporâneo, considerado polêmico devido as suas
abordagens inovadoras, cujo propósito foi investigar na história os modos pelos quais os
seres humanos se constituem como sujeitos, desenvolvendo um olhar crítico sobre a
constituição do sujeito, problematizando a ideia decontinuidade histórica.

METODOLOGIA
Na pesquisa que nos serve de foco para pensarmos nossas aprendizagens
discentes/docentes, propomo-nos a investigar a partir dos enunciados dos discursos dos
sujeitos estudantes do Curso de Pedagogia CFP/UFCG, considerando o discurso
enquanto práticas que engendram e instituem a constituição dos sujeitos, haja vista
serem os discursos “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam”, como afirma Foucault (2008, p. 56).
Para a consecução dessa pesquisa foram realizadas 20 entrevistas
semiestruturadas com estudantes que estavam entre o terceiro e penúltimo semestre do
Curso de Pedagogia/CFP/UFCG, abrangendo os turnos diurnos e noturnos. A efetivação
das entrevistas contou com um roteiro de questões abertas, essas na sua fase piloto
sofreram reformulações e acréscimos buscando-se aprimorar as questões visando a sua
otimização em função do objeto estudado. As entrevistas foram gravadas em áudio,
transcritas e lidas conjuntamente pelo coordenador e estudantes pesquisadores
procurando-se, no corpus discursivo, organizar e entender os enunciados suscitados

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pelos/as entrevistados/as e problematizar suas aparições e seus significados para as


questões que ensejaram a pesquisa.

A PRÁTICA DOCENTE E O CUIDADO DE SI CONSIGO MESMO

Os termos epiméleia heautou (o cuidado de si) e o gnôthi seautón(o conheci-te a


ti mesmo), trabalhados por Foucault, tem a sua aparição na Antiguidade grega. Sócrates
ficou conhecido como aquele que foi confiado pelos deuses a incitar os outros homens a
se ocuparem consigo mesmo para se conhecerem a si mesmos e a cuidarem de si. “... É
preciso que te ocupes consigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas
cuidados contigo mesmo.” (2010, p.6). De acordo com Michel Foucault (2010, p. 11-12):

A epiméleia heautoû é uma atitude para consigo, para com os outros, para
com o mundo... Uma certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo
implica que se converta o olhar... o olhar, do exterior, dos outros, do mundo,
etc, para si mesmo. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento
ao que se pensa e ao que se passa no pensamento.

Tomando como referência a ideia de cuidado de si, desenvolvida por Foucault, é


importante compreendermos como nós, enquanto alunos e sujeitos em formação para
tornarmo-nos futuros professores, estamos nos produzindo e sendo produzidos nos
espaços-tempos de aprendizagens cotidianas. Essa questão, posta aos entrevistados da
referida pesquisa, também nos fez parar para nos pensarmos, haja vista que estamos na
mesma condição dos entrevistados, e nesse sentido, analisar as suas respostas configura-
se para nós um processo de autoanálise. Por exemplo, a seguinte resposta dada por um
estudante entrevistado nos fez refletirmos sobre a nossa condução no processo de
formação tendo em vista o nosso futuro profissional. Disse-nos um aluno: “...Se a gente
ficar à mercê do que o Curso nos propõe, a gente vai ser aquele mero cumpridor de
tarefas, que é o que mais tem nas escolas públicas, professores que só querem cumprir
tarefas e receber o salário, não estão aptos ao processo de formação dos seus alunos.”
O parecer do aluno entrevistado mostra que apesar do curso oferecer
umaformação profissional em educação, ele não foca na construção do professor como
um sujeito compromissado com a aprendizagem e nisso forma um professor sem
alicerces calcados no cuidado de si que pensa sobre o que é o ensino e o que deve ser
cuidadosamente trabalhado, pois, é esse profissional que irá formar novos sujeitos,

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novos cidadãos e que deveriam ser os primeiros a produzirem a primeira educação


acadêmica dos sujeitos alunos.
Isto considerando-se que o Curso de Pedagogia forma o professor para o ensino
infantil e os anos iniciais do ensino fundamental. Na primeira infância é onde parte
importante da formação do sujeito acontece, haja vista que na educação infantil é onde
começa a construção da criança. Assim sendo, a pratica do cuidado de si mesmo é
relevante no que diz respeito ao cuidar de si para educar o outro, considerando que a
relação professor/aluno e também aluno/professor virá a ser benéfica com a pratica
dessa relação. Eis ai a importância que assume a noção do cuidado de si para a
preparação para o cuidado com o outro, devendo ser um princípio trabalhado na
formação do discente e depois na sua prática docente. Segundo FOUCAULT (2010,
p.13)

O princípio do cuidado de si foi formulado, convertido em uma série de


fórmulas como „ocupar-se consigo mesmo‟, „ter cuidados consigo‟, „retirar-se
em si mesmo‟, „recolher-se em si‟, „sentir prazer em si mesmo‟, „buscar
deleite somente em si‟, „permanecer em companhia de si mesmo‟, „ser amigo
de si mesmo‟, „estar em si como uma fortaleza‟, „cuidar-se‟ ou „prestar culto
a si mesmo‟, „respeitar-se‟ etc.

Nessa citação, Foucault destaca que é importante ocuparmo-nos consigo mesmo


para poder governar a si e cuidar do governo dos outros. Nesse caso, enquanto futuros
formadores faz-se necessário que cuidemos da nossa formação intelectual, espiritual e
do nosso corpo para podermos estar aptos a cuidarmos do outro enquanto futuros
cidadãos e profissionais. É importante destacar que o que estamos a vivenciar no curso,
como estudante e como iniciante na atividade de pesquisa, e a ocupação que temos
empreendido com as nossas aprendizagens, está também sendo elaborada por outros
estudantes. Assim, uma das entrevistadas relata as mudanças que tem empreendido ao
ingressar na universidade.

Minha cabeça mudou muito, e meu processo de formação, eu acho que é uma
coisa que aos poucos eu tô construindo uma nova pessoa de mim mesmo e
uma nova perspectiva de como encarar a educação. Porque a gente tem
aquela perspectiva da educação pelo senso comum, pelo senso tradicionalista
demais. E quando você entra na faculdade você começa a ver que não é só
aquilo, você tem possibilidades de fazer coisas melhores pra educação, pra
construir, pra poder é... Melhorar a vida de uma outra pessoa, de um novo
indivíduo.

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A PRÁTICA DA LIBERDADE COMO PREMISSA DA APRENDIZAGEM

“Sempre desconfiei um pouco do tema


geral da libertação, na medida em que, caso
não o tratemos com algumas precauções e
no interior de determinados limites, corre-
se o risco de recorrer à ideia de que existe
uma natureza ou um fundo humano que tem
sido mascarado, alienado ou aprisionado
em e por mecanismos de repressão, como
consequência de um determinado número
de processos históricos, econômicos e
sociais”.

(Michel Foucault)

Muito se tem falado sobre o exercício da liberdade do sujeito na vigência dos


processos de ensino e aprendizagem, no entanto tais exercícios nem sempre são vistos e
praticados, tornando-se, muitas vezes, retórica docente assentada em bases teóricas e
argumentos acadêmicos. Em contraposição a isso,nos foi possível comprovar em nossa
pesquisa que quanto maior a interação do ambiente extraclasse com o ambiente da sala
de aula maior será a possibilidade desse exercício se tornar real, pois abordando
situações vivenciadas pelo eu discente fora do espaço educacional, a universidade
tornará o aprendizado do aluno mais vigoroso. Para que isso aconteça, as relações de
poder exercidas sobre os indivíduos no interior da instituição educacional ou no espaço
social geral precisam ser flexibilizadas, pois é certo afirmar que não existe práticas de
liberdade em um meio em que as relações são fixas e estáveis, ou seja, o individuo neste
tipo de situação não exerce a sua aprendizagem como práticas de liberdade.

Sobre esse tema, nos diz Foucault (1984, p. 12): “...insisto mais nas práticas de
liberdade do que no processo de libertação que, é preciso dizer mais uma vez, possuem
seu espaço, mas que não podem por eles mesmos, em minha opinião, definir todas as
formas práticas de liberdade”. Sendo assim, quando operamos com a nossa
subjetividade para interagir com o outro, o ensino quebra barreiras de preconceito e
problematiza as certezas suscitadas pelo senso comum. Nessa perspectiva,é possível
perceber que ao cuidar de si mesmo, potencializamos também o cuidar do outro, um

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exercício que consubstancia-se numa pratica da liberdade. Em outras palavras, a


aprendizagem torna-se prática de liberdade quando toma por fundamento o cuidado de
si dos sujeitos envolvidos no processo educacional, do contrário a aprendizagem se
tornara uma mera formalidade.

A IMPORTÂNCIA DA PESQUISA PARA O NOSSO APRENDIZADO

É nas instituições escolares que se dá inicio à jornada de estudos, e por elas a


continuidade para adentrar em quaisquer que seja a profissão pleiteada pelo sujeito. É
nessas instituições que somos majoritariamente constituídos como sujeitos estudantes
em processo de formação. Sabe-se que o ensino universitário não deve se limitar
apenas a sala de aula, com o cumprimento de horários e assistência das aulas que estão
postas no currículo do curso. Nesse caso, é necessário que o aluno que ali está tenha um
amplo leque de oportunidades para o seu contínuo enriquecimento. Porém ainda há
poucas possibilidades na universidade brasileira para que a maioria dos alunos se engaje
em outras atividades educativas, tais como a extensão e a pesquisa.
No nosso caso, a pesquisa colaborou efetivamente com o nosso desenvolvimento
acadêmico, abrangendo a dimensão intelectual, emocional e pessoal enquanto
estudantes do Curso de Pedagogia. Com a nossa participação nas atividades de pesquisa
fomos instigados a pensar o cuidado que estávamos tendo com nós mesmo enquanto
sujeito em processo de formação. O cuidado de si na acepção foucaultiana nos fez
repensar as nossas atitudes enquanto futuros docentes que estão em formação e que no
futuro pretendem cuidar e governar o outro exercendo práticas de liberdade, entendendo
que, nessas bases, para governar o outro, primeiramente tem que se autogovernar e
elaborar um projeto ético e estético condizente para a nossa existência.
Essa experiência de passar de um mero estudante de licenciatura que apenas
cumpria com o que era lhe imposto pelo currículo do curso para ser um pesquisador nos
proporcionou uma gama de conhecimentos que serão levados durante toda a nossa
trajetória acadêmica e pessoal, fazendo-nos estender o nosso pensamento,
impulsionando-nos a pensar e agir enquanto sujeitos que devem ser críticos e
problematizadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Enquanto sujeitos que buscam a formação para a docência, temos aprendido


prática e teoricamente que a constituição de si mesmo é uma produção decorrente dos
modos como somos afetados e subjetivados, tendo em vista o tipo de investimento que
operamos sobre nós e o que buscamos em termos estéticos para a nossa existência e a
nossa construção enquanto sujeito discente e docente.
Ao longo desta pesquisa compreendemos que, de fato, sabíamos pouco sobre o
cuidado de si e cuidávamos pouco de nós mesmo. Os estudantes que fizeram parte de
nossa pesquisa deixaram explicito que o termo cuidado de si pouco é pensado e
trabalhado no universo acadêmico no qual se insere o Curso de Pedagogia. O cuidar de
si mesmo possibilitaaos homens tornarem-se mais hábeis na sua vida e no trato com a
sua liberdade elaborando para si, com certa dose de autonomia, um projeto ético que lhe
favoreça se conhecer e tornar-se um sujeito produtivamente ocupado consigo mesmo. É
com essa perspectiva que encaminharemos a nossa formação como estudantes e a nossa
prática docente quando estivermos atuando profissionalmente como docentes.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. Traduzido por


Maria Thereza da C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

_________________. História da Sexualidade 3: o cuidado de si. Traduzido por Maria


Thereza da C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

_________________. A arqueologia do Saber. Trad. De Luiz Felipe Baeta Neves, 7ª.


Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

_________________. A Hermenêutica do Sujeito. 3ª ed. Trad. de Márcio Alves Fonseca


e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

_________________. “CUIDA-TE DE TI MESMO”. Entrevistaconcedida a Raúl


Fornet-Beancourt, Helmut Becker e Alfredo Gómez-Muller. Tradução do Cepat. Jornal
Página/12. Janeiro de 2013.

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FOUCAULT, A PARRESIA E O USO CORAJOSO DA PALAVRA

Luiz Celso Pinho


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
luiz.celso@pq.cnpq.br

Nos cursos proferidos no Colégio de França em 1982 (A hermenêutica do


sujeito), 1983 (O governo de si e dos outros) e 1984 (A coragem da verdade), numa
conferência isolada na Universidade de Grenoble (maio de 1982) e numa série de
apresentações nos Estados Unidos no final de 1983 (A fala destemida), Michel Foucault
desenvolve todo um conjunto de discussões envolvendo a noção grega de parresia
(“tudo-dizer”). São estudos que, além de terem sido abruptamente interrompidos com
sua morte, se encontravam ainda em estado embrionário, o que lhes confere um caráter
nitidamente exploratório. O fio condutor dessas pesquisas histórico-filosóficas reside
numa espécie de “arqueologia do uso corajoso da palavra”, onde aquele que a profere –
o parresiasta – se coloca invariavelmente numa posição de risco, pois tende a desagradar
seu ouvinte, seja no âmbito de uma conversa pessoal, seja num debate público,
notadamente por se colocar numa posição questionadora, irritante e até mesmo
desafiadora. O intuito de nossa comunicação residirá em delinear o estatuto polivalente
da atitude parresiástica a partir de sua dimensão ético-política. Mostraremos também
que o estudo dessa “fala-franca” não se limita a reviver um passado tido como glorioso
ou exemplar. Foucault remonta aos antigos para superar os modernos, tendo em vista
que almeja repensar as bases do governo de si e dos outros através de um estilo de vida
onde o discurso verdadeiro tem um efeito transfigurador tanto naquele o enuncia quanto
no seu interlocutor.
Parresia significa literalmente “tudo dizer”. As investigações histórico-
filosóficas de Foucault a respeito desse termo se estendemdesde a Grécia Antiga, no
século V A.E.C. (Antes da Era Corrente) até os primórdios do cristianismo medieval.
Além disso, trata-se de um percurso, com quase 800 anos de extensão, que valoriza
registros os mais heterogêneos: mitologia trágica, relatos históricos, situações que


Professor Associado I do Departamento de Filosofia da UFRuralRJ e Pesquisador do CNPq. E-mail:
luiz.celso@pq.cnpq.br.

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envolvem conflito de opiniões, discursos filosóficos, literatura bíblica (Antigo e Novo


Testamentos). Como veremos, Foucault não pretende estabelecer um sentido unívoco
do termo, mas sim assinalar as diversas modulações aos quais ele se encontra associado.
A problematização da parresia tem início com o curso A hermenêutica do sujeito, mais
precisamente na nona aula de 1982. Nesse momento, a atitude parresiástica, ou seja, o
compromisso de dizer-a-verdade sobre si mesmo, se encontra subordinada a uma
“abertura de coração (...), à possibilidade de dois parceiros de nada esconderem um do
outro a respeito do que pensam e de conversarem francamente”.1 Daí decorre que a
“direção individual de consciência” ou a “condução da alma” – tanto no Cuidado de Si
greco-romano quanto no ascetismo cristão – está norteada por “um sentimento de
benevolência que depende da amizade (eunoia)”.2
Ainda no mês de maio do mesmo ano, Foucault profere uma única conferência
na Universidade de Grenoble intitulada “La parrêsia”, onde, pela primeira vez, não
apenas se remete aos diversos sentidos do termo – amizade, direito político dos
cidadãos, virtude, modo de vida, técnica, cuidado de si – como também passa a ressaltar
a importância de abordar o “fundamento ético do dizer-verdadeiro”.3 Nessa
apresentação também verificamos uma discussão preliminar a respeito do uso da fala
parresiástica em diversos contextos políticos (democracia, monarquia, tirania).
Na pesquisa seguinte, O governo de si e dos outros, a atitude parresiástica é
deslocada preferencialmente para a figura do cidadão e para o contexto político da
administração da cidade, onde se exerce um embate de ideias no espaço público das
assembleias. Foucault aborda o duplo agonismo que rege essa situação: o “dos
primeiros em relação aos outros e dos primeiros entre si”4 e daqueles que “tomando a
palavra diante dos outros, acima dos outros, se fazem ouvir, persuadem, dirigem e
exercem o comando sobre os outros”.5
A partir desse momento entra em cena a questão da Coragem, tendo em vista
que a “superioridade ligada à parresia é uma superioridade que se compartilha com
outros, mas que se compartilha com outros sob a forma da concorrência, da rivalidade,

1
Foucault, M. L’herméneutique du sujet, p. 132.
2
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 342.
3
Foucault, Michel. La Parrêsia, p. 158.
4
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p.
5
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 156.

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do conflito, da justa”.6 Nesse tipo de agonística (entendida como dynamis) as lideranças


correm o risco do exílio na medida em que “propunham algo que era combatido pela
maioria” ou em função desta última pressentir“que a forte influência de certos líderes
limitava sua própria liberdade”.7
Além do exercício da parresia entre a “categoria dos cidadãos de pleno direito”,
ou seja, no âmbito daqueles que “por seu estatuto, seu nascimento, sua riqueza, têm a
pretensão de governar a cidade”,8 Foucault também analisa a “liberdade concedida pelo
imperador ao seu séquito [entourage] para lhe dizer ou não a verdade”.9 Apesar de o
governante (notadamente o tirano) ter o mérito de permitir o jogo parresiástico com um
conselheiro (geralmente, o filósofo), ele, em momento algum, assume o papel de
parresiasta. Seu governo não está em perigo, apesar de estar potencialmente aberto a
uma mudança de atitude.
A terceira série de investigações histórico-filosóficas a respeito do discurso
parresiástico ocorre de forma mais concisa em A fala destemida. Primeiro através
deuma contextualização etimológica. Em seguida, remonta às tragédias de Eurípides
para elucidar “quem tem o direito, o dever e a coragem de falar a verdade”. 10 Deste
modo, alguns elementos apresentados no curso do início do ano em Paris são retomados
de forma parcial, além de sofrerem variações e adições (condições necessárias para
quem almeja falar livremente). Ocorre ainda uma antecipação de temáticas – o dizer-a-
verdade no cristianismo e no Quinismo11 – que nortearão o último curso no Colégio de
França.
Finalmente, emA coragem da verdade, tem-se o ápice e a interrupção prematura
da investigação foucaultiana sobre a parresia. Sócrates, presença constante desde 1982,
adquire uma posição cada vez mais destacada, pois é retratado por Foucault não apenas
como aquele “que prefere antes confrontar a morte a renunciar ao dizer-verdadeiro (dire

6
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 144.
7
Foucault, M. Fearless Speech, p. 18.
8
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 339.
9
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 312.
10
Foucault, M. Fearless Speech, p. 27.
11
Consideramos importante distinguir o “quinismo” greco-romano do “cinismo” moderno e
contemporâneo para ressaltar duas posturas incompatíveis entre Discurso e Verdade.

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vrai)”12 quanto envolve uma missão que não pode ser jamais abandonada, que vai ser
exercida permanentemente até o fim [da vida]”.13
No entanto, aparresia socrática não constitui propriamente um ponto de chegada
do percurso sabidamente inacabado de Foucault. Através dela, sem dúvida, é possível
estabelecer um sólido contraste entre outras modalidades de “dizer-verdadeiro”. Sem
contar que Sócrates representa, inegavelmente, até então, a figura “[d]aquele que
articula a exigência da parresia aos temas do cuidado de si e da técnica de existência”.14
É na Filosofia Quínica que as análises histórico-filosóficas de Foucault atingem
o seu ápice. Partindo do pressuposto de que estamos percorrendo um caminho em
desenvolvimento, cujos resultados não podem ainda ser delineados de forma clara e
distinta, isso se aplica de modo ainda mais pertinente às análises elaboradas a respeito
de exemplos retirados do modo de vida dos quínicos, exatamente a partir da metade do
curso de 1984, no final da aula de 29 de fevereiro. Foucault não apenas atribui ao
quinismo um surpreendente estatuto transhistórico15 como também o associa a um
procedimento existencialmente “mais denso”, “mais específico”.16 A radicalidade da
parresiaQuínica reside no modo como a harmonia entre teoria e prática inscreve sua
marca diretamente na superfície do corpo, daí o notório estilo de vida despojado,
irreverente e provocativamente alheio às convenções sociais.
Para Foucault, independente de o termo parresia encontrar-se ausente do que foi
efetivamente pronunciado, isso não impede que se possa constatar uma situação na qual
se manifesta o “jogo parresiástico”. Além do testemunho das palavras, é necessário
levar em conta a postura adotada em determinadas circunstâncias de nítido embate
discursivo.
O estudo da formação do conceito de parresia permite compreender traços
constitutivos do modo de ser da filosofia greco-romana ou, como defende Foucault, de
todo o Pensamento Ocidental. Notadamente a relação do Sujeito com o trinômio
Verdade-Política-Ética. Além disso, é possível ainda estabelecer uma sutil distinção
entre o exercício da parresia no campo da Filosofia stricto sensu, que nesse caso

12
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 67.
13
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 78.
14
Gros, F. La parrhêsia chez Foucault, p. 161.
15
Cf. Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 161.
16
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 159.

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“conduz a uma erótica”,17 e em termos de uma atitude Ética, cujo objeto reside
primordialmente na exaltação da Vida.18
Acompanhar a sequência composta por A hermenêutica do sujeito, “A
parresia”,O governo de si e dos outros, A fala destemida e A coragem da
verdadepermitirá delinear o núcleo ético do “uso corajoso da palavra”.

***
Foucault considera que a História da Verdade pode ser acompanhada a partir de
dois caminhos que, apesar de não serem mutuamente incompatíveis, promovem ênfases
distintas: uma calcada em aspectos Epistemológicos, Lógicos e Ontológicos e outra
voltada para um contexto Político ou Ético. Tem-se, assim, o interesse centrado no Ser
(ou a Alma) e a preocupação com a Vida (ou o Si). Ou, em outros termos, uma vertente
que aponta para o “plano da intelecção ou do conhecimento (...) o âmbito das teorias
(...) a ordem da representação (...) [E outra referente] ao plano das atitudes, ao âmbito
do olhar, à ordem das práticas, que constituem todo um modo de existência”.19
De um lado, a tarefa de determinar a veracidade de uma proposição; de outro,
uma preocupação ao mesmo tempo “estética” e “desontologizada”. Foucault pretende
ressaltar com isso que “um professor de gramática pode dizer a verdade às crianças que
ensina e, de fato, pode não ter dúvida alguma de que o que ensina é verdadeiro”. 20 Mas,
nesse caso, não basta proferir enunciados verdadeiros para adentrar na região da
parresia. Senão todo aquele que ensina ou que transmite algum tipo de saber ou técnica
figuraria como um parresiasta.
Além disso, nem todo discurso ao qual é conferido o estatuto de verdadeiro pode
ser tido parresiástico no sentido foucaultiano, pois estamos diante de uma “verdade
[que] não é puramente teórica”, que envolve tanto “um conjunto de princípios racionais
que estão fundados em afirmações gerais sobre o mundo, a vida humana, a necessidade,

17
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 344.
18
Em A coragem da verdade ocorre “a emergência da vida, do modo de vida, como sendo o objeto da
parresia” (Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 135).
* Professor Adjunto IV do Departamento de Filosofia da UFRRJ. Pesquisador do CNPq. Projeto: “Michel
Foucault e o conceito de parresia”. E-mail: luiz.celso@pq.cnpq.br.
19
Muchail, S. T. Coragem de si e coragem da verdade, p. 9.
20
Foucault, M. Fearless Speech, p. 16.

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a felicidade, a liberdade etc.” quanto “regras práticas de conduta”.21 Ser parresiasta


implica, nesse sentido “qualidades pessoais, morais e sociais específicas”.22
No primeiro caso, prevalece o “vínculo interno entre quem pensa e a coisa que é
pensada”.23 Ou ainda, trata-se de estabelecer “critérios internos ou externos para (...)
reconhecer se uma afirmativa ou proposição é verdadeira ou não”. 24 Mas o que está em
jogo é justamente um deslocamento da esfera de uma Teoria do Conhecimento para a
esfera das relações sociais (seja em termos de convivência pública, seja no âmbito das
relações estritamente pessoais).
Por fim, também é necessário salientar que a parresia se distingue frontalmente
da obtenção de um discurso verdadeiro revelador de algum “segredo” pessoal,
notadamente através da confissão. Diferente do cristianismo, onde o “dizer-a-verdade
(dire vrai) a respeito de si mesmo, sobre suas faltas, seus desejos, o estado de sua alma
[representa] um rito coletivo no curso do qual cada um [deve] se reconhecer, diante de
Deus, pecador”,25 o “dizer o que pensa”26 parresiástico remete inevitavelmente, como
veremos, à elaboração de outro modo de viver neste mundo.
***
Diante de seus acusadores, Sócrates declara: “simplesmente falo, diretamente,
sem habilidade e sem o devido aparato [apprêt]”.27 Aqui reside um dos pilares da
parresia ética: se expressar de modo simples e despojado. E essa postura de “ser direto”
(euthus), de falar sem rodeios ou “ornamentos retóricos” retrata o que Foucault
denomina de “o grau zero [das] figuras retóricas”.28
Conceber a expressão da verdade sem astúcias corresponde a uma crítica frontal
à Retórica que faz uso de “uma linguagem escolhida, moldada e construída para
produzir seu efeito sobre o outro”.29 Além de ser uma forma de manipulação, a
argumentação retórica não apenas é “indiferente ao justo e ao injusto” como também

21
Foucault, M. Fearless Speech, p. 165-166.
22
Foucault, M. Fearless Speech, p. 18.
23
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 341.
24
Foucault, M. Fearless Speech, p. 169.
25
Foucault, M. Du gouvernement des vivants, Dits et écrits, IV, p. 126.
26
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 12.
27
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 68.
28
Foucault, M. Fearless Speech, p. 21 e Le gouvernement de soi et des autres, p. 53.
29
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 290.

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“tem somente um único uso”, que consiste em “prevalecer sobre [os outros] e persuadi-
los”.30
Mas isso não esgota a questão da fala franca. Podemos, ainda, salientar a
importância de evitar a “fala desmedida”, sinal tanto de ausência de sabedoria quanto de
arrogância. É preciso saber o momento de tomar a palavra e o momento de calar.
Foucault ressalta que aquele comprometido com o dizer-a-verdade deve “ser capaz de
utilizar a parresia sem cair na tagarelice do athuroglossos”.31 O problema é que nem
todos conseguem se dar conta dessa diferenciação, ou seja, poucos são capazes de
“distinguir as ocasiões em que se deveria falar daquelas que se deveria permanecer em
silêncio, ou aquilo que deve ser dito daquilo que deve permanecer sem ser dito, o as
circunstâncias e situações que requer que se fale daquelas que se deve permanecer
calado”.32
O indivíduo de “linguagem desenfreada” é tido como daninho por ser tagarela,
arrogante, pseudocidadão, escandaloso, e mesmo desprovido de conhecimento ou
sabedoria. A fala franca não se confunde com o que os gregos denominavam de “boca
desenfreada” ou “boca sem portas”,33 que é movida por um impulso tolo. A loquacidade
não é uma virtude. É nesse sentido que Platão considera a parresia nociva: ela impede
que a sociedade possa se organizar segundo os princípios de unidade e homogeneidade,
tendo em vista que faculta a cada indivíduo “dizer qualquer coisa que deseje”, “fazer
qualquer coisa que queira”, agir “sem limitação alguma”.34 Daí a importância, como
veremos, do terceiro aspecto da estrutura parresiasta: o perigo.
No entanto, devemos salientar que a franqueza foucaultiana não se reduz a uma
manifestação de forma sincera ou transparente (o que envolveria uma vizinhança
inconveniente com a confissão).
O dizer-a-verdade requer audácia, tendo em vista que remete à adoção de uma postura
inconveniente, cuja tendência maior reside em causar algum tipo de incômodo ou
mesmo de, numa situação extrema, ofender seus interlocutores ou ouvintes. Aspecto
que pelo qual enveredaremos adiante, e que culmina – no limite – num jogo de vida ou
morte.

30
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 340.
31
Foucault, M. Fearless Speech, p. 64. Athuroglossos é justamente aquele que não sabe se conter.
32
Foucault, M. Fearless Speech, p. 64.
33
Foucault, M. Fearless Speech, p. 63.
34
Foucault, M. Fearless Speech, p. 85.

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A fala franca envolve tanto uma argumentação simples e direta quanto a


“capacidade de dizer inclusive as coisas escandalosas e vergonhosas”. Deste modo, se a
parresia foucaultiana extrapola as fronteiras da retórica é também porque remete a um
discurso provocativo onde se acaba inevitavelmente assumindo uma posição arriscada.
Daí se poder falar de uma “audácia corajosa”.35Cabe salientar aqui a superposição entre
tal postura com a função do kataskopos. Na ética Quínica ela designa aquele que vai à
frente da humanidade e retorna para auxiliá-la no seu caminho, para lhe dizer o que é
mais fundamental, independente de seu discurso ser recebido ou não como uma “boa
nova”.
***
Para a questão da coragem flui inexoravelmente o discurso verdadeiro e franco:
“[nada que] seja da ordem do medo, ou da timidez, ou da vergonham, [deve] restringir a
formulação do que se pensa ser verdade”.36 E isso “por mais indesejável que possa ser
para o público”.37 No caso emblemático de Sócrates, trata-se de uma tarefa atribuída
pelos deuses, ou seja, que extrapola desejos e necessidades individuais.
Mas faz-se necessário dissipar alguns equívocos. Em primeiro lugar, “dizer algo
num julgamento que possa ser utilizado contra alguém não é parresia”.38 E isso mesmo
na hipótese de que se esteja falando de forma verdadeira e sincera. “Um criminoso que é
forçado por seus juízes a confessar seu crime não faz uso da parresia. Mas se confessa
voluntariamente seu crime a alguém à margem de um sentido de obrigação moral, então
realiza um ato parresiástico”.39
A dificuldade de aceitar o que é dito contra o status quo ou quando a conduta de
alguém influente é censurada pode acabar acionando um jogo de vida ou morte; pois,
não se pode deixar de enfatizar, “o parresiasta é sempre menos poderoso que aquele
com quem fala”, ocupa necessariamente uma “posição de inferioridade”. 40 Daí se poder
afirmar que “um professor ou um padre que critica uma criança [não] utiliza da
parresia”.41 É preciso ser inferior não em termos intelectuais ou morais, mas sim dentro
de uma hierarquia institucional (administrativa, jurídica, política etc.). Esse preceito se
35
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 302.
36
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 342.
37
Raalte, M. Socratic Parrhesia and its afterlife in Plato’s Laws, p. 309.
38
Foucault, M. Fearless Speech, p. 17.
39
Foucault, M. Fearless Speech, p. 19.
40
Foucault, M. Fearless Speech, p. 18.
41
Foucault, M. Fearless Speech, p. 18.

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aplica igualmente para quem está em desvantagem numérica diante da opinião da


maioria ou não coaduna com aquilo que é tido como consensual num determinado
momento histórico.
A parresia consiste, pois, na “coragem de dizer tudo o que se pensa, apesar das
regras, das leis, dos hábitos”.42 Foucault ilustra esse preceito ao recorrer a duas imagens
que se sobrepõem. Na primeira, evocada no curso de 1982, destaca que Sócrates “era
capaz de permanecer só, imóvel, ereto, com os pés na neve, insensível a tudo o que se
passava à sua volta”.43 A outra, abordada dois anos depois, remete ao compromisso
socrático de não abandonar o posto para o qual foi designado. Pretende, com isso,
demonstrar que quem se dedica a dizer-a-verdade não lhe é facultado o menor descuido
em sua tarefa, devendo cumpri-la a todo instante, sem descanso, e isso independente de
ameaças (sejam elas imediatas ou potenciais) ou da situação de fragilidade na qual
possa eventualmente se encontrar. Temos aqui a imagem “não do sábio que intervém de
tempos em tempos, mas de um soldado que se encontra no seu posto”,44 sem abandoná-
lo em hipótese alguma, apesar de eventuais perigos.
Esse ensinamento encontra seu ponto culminante na derradeira fala de Sócrates,
já sob o efeito paralisante do líquido mortal que acabara de ingerir: “Críton, devemos
um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida”. A função parresiástica deve
ser exercida continuamente ao longo de toda a vida. Sócrates não pode abandonar sua
missão de dizer-a-verdade nem nos seus suspiros finais. Deste modo, a fala socrática
ocorrida no limiar de uma vida que está prestes a sucumbir sela magistralmente a
exigência de homologia entre logos e bios, entre Pensar e Viver.
***
O projeto ético de Foucault envereda, desde o seu início, em 1980, pela
necessidade de instaurar um processo de transformação contínua de si mesmo. De modo
análogo, o tema da parresia, que emerge lateralmente, em 1982, também se inscreve
nessa direção. É importante salientar que a prática parresiástica não se restringe à “pura

42
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 342.
43
Foucault, M. L’herméneutique du sujet, p. 49. Cabe assinalar que, de acordo com Gros, Foucault
confunde duas cenas distintas de O banquete: a da resistência ao frio e da permanecia fixa e isolada em
seu próprio eixo (cf. Foucault, M. L’herméneutique du sujet, p. 62, nota 16). No entanto, o que nos
interessa ressaltar é a obstinação socrática em se manter firme no caminho em direção à verdade.
44
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 78.

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franqueza” ou à “coragem absoluta”.45 Trata-se, em outros termos, de ir além do “puro e


simples discurso”, ou seja, “discurso, somente discurso, discurso nu”.46
Recorremos ao exemplo de Platão sobre as características necessárias para que
alguém se torne um bom médico no intuito de ilustrar em que consiste esse
“ultrapassamento” da esfera discursiva. Preceito inicial: “não (...) se contenta em
distribuir receitas ou prescrições”. Segundo preceito: “persuade (...) seu paciente e o
convence da doença que o aflige e dos meios para curá-la”. Terceiro preceito: “[alerta] o
doente de que não basta tomar remédios, mas [que é preciso] mudar a maneira de viver,
o regime, a dieta”.47 Com isso, de forma análoga, a utilização do logos deve estar a
serviço da “escolha de um modo de vida”, de uma forma de bios.48
Em termos políticos, “o foco da parresia deixa de ser o cidadão ou mesmo a
politeia, passa a ser a alma, especialmente a do príncipe, pois é capaz de ser educado, é
capaz de uma transformação moral em benefício de todos”.49 Do ponto de vista
estritamente ético, temos o imperativo de harmonia entre Discurso e Ato, ou, para ser
mais exato, entre Discurso e Vida.
O que pretendemos mostrar é que a “coragem de dizer-a-verdade (dire vrai)
também [deve estar presente] quando se trata de dar à vida forma e estilo”.50 Foucault
chama a atenção para a ideia de que o modelo socrático-quínico almeja “não o outro
mundo, mas a outra vida”.51 Com isso, faz-se necessário repensar as relações entre Vida
e Verdade. O tema da “verdadeira vida” se torna fundamental nas suas últimas aulas do
curso de 1984, pois ressalta a opção entre olhar para além deste mundo e almejar alterar
a tábua de valores. Esta segunda opção não almeja se desvencilhar deste mundo (Outra
Vida), mas sim transformá-lo (Vida Outra).
É nessa perspectiva que Foucault termina por defender uma “valorização
positiva da animalidade”, expressa na forma mítica do Homem-Cão. Em seu sentido
“bruto”, temos a valorização dramática do Escândalo, da Nudez, da Mendicância, da
Infâmia. Mas num sentido mais ético – e ressalte-se, de antemão, que ambos se

45
Foucault, M. Fearless Speech, p. 73.
46
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 209.
47
Foucault, M. Le gouvernement de soi et des autres, p. 243-244, grifos meus.
48
Foucault, M. Fearless Speech, p. 85.
49
Flynn, Th. Foucault as Parrhesiast, p. 217
50
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 149.
51
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 226, grifos meus.

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complementam e se superpõe – pode-se enveredar por uma atitude de despojamento:


trata-se de “reduzir a vida a ela mesma”.
Foucault destaca o exemplo de um educador quínico que transmite um pouco
dos principais conhecimentos de sua época, mas que pretende, acima de tudo, estimular
seus jovens alunos a viverem sem depender de criados. Daí devotar mais tempo a
ensinar a caçar, para que cada um possa obter seu próprio alimento. Aprendizado
fundamental para se dar conta do que é mais necessário. “Muito pouca verdade [no
sentido epistemológico] é indispensável para quem quer viver verdadeiramente [ou seja,
de modo soberano] e muito pouca vida [em termos de adequação social, cultural e
política] quando se está comprometido verdadeiramente com a verdade”.52
Deste modo, a modulação final do conceito foucaultiano de parresia se afasta de
uma arte de falar na medida em que vai ao encontro de uma arte de viver. Não se trata,
certamente, de dissociar o logos do bios. Isso fica manifesto na aula inaugural do curso
que aborda o “discurso corajoso” no campo político em O governo de si e dos outros no
destaque concedido à reflexão kantiana sobre a necessidade de indivíduos que saibam
exercer um pensar autônomo como requisito indispensável à liberdade. Contudo,
podemos recorrer aqui à lição nietzschiana de que a razão deve estar a serviço da vida.
Saímos da esfera do valor da certeza (clara, objetiva, evidente) para a hierarquia dos
valores. O caminho para atingir a “verdadeira vida” requer a valorização das atitudes
efetivamente constatáveis em relação aos discursos especulativos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(1984). In: BERNAUER, James; RASMUSSEN, David. The Final Foucault.
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52
Foucault, M. Le courage de la vérité, p. 175.

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France: 1982-1983). Edição organizada por Frédéric Gros. Paris: Gallimard-Seuil,
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l’Antiquité, no. 16, outubro de 2012, p. 157-188.

FOUCAULT, Michel. L’herméneutique du sujet (Cours au Collège de France:


1981-1982). Edição organizada por Frédéric Gros. Paris: Gallimard-Seuil, 2001.

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São Paulo: Parábola Editorial, 2004, p. 7-10.

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SLUITER, I.; ROSEN, R. M. (Eds.). Free Speech in Classical Antiquity, p. 279-312.

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O CORPO E SUA RELAÇÃO DE PODER NO UNIVERSO DA CAPOEIRA

José Olímpio Ferreira Neto


Universidade de Fortaleza
jolimpioneto@hotmail.com

RESUMO
Esse artigo é um estudo crítico-reflexivo, a partir de obras do filósofo Foucault, sobre
uma prática cultural brasileira. A motivação para o tema é oriunda da imersão pessoal
de mais de vinte anos nesse universo. A Capoeira nasceu como uma manifestação de
filhos de negros africanos contra a opressão do branco-europeu-colonizador no Brasil
escravocrata, era uma negação aos atos do Estado. Ao longo dos anos, transformou-se
em ginástica, prática esportiva de tendências disciplinadoras. Hoje, oferece produtos e
serviços dentro da lógica capitalista, sob uma roupagem de criatividade. Busca-se, aqui,
pensar o papel do corpo e as relações de poder oriundas dos saberes e fazeres
transmitidos na Roda de Capoeira através dos Mestres, ambos reconhecidos como
Patrimônio Cultural. Sabe-se, dentro de uma perspectiva foucaultiana, que em toda
relação há a presença do poder, mas qual o papel do corpo nesse jogo que está para além
da roda? Melhor, o que representa o corpo nas relações de poder no universo da
Capoeira? Tentou-se, nesse texto, esboçar um posicionamento filosófico para essa
indagação. Esse corpo negro-escravizado que se opôs ao poder de uma elite, agora,
apropria-se dele para dirigir relações, estimula prazeres para controlar outros,
disciplinando o sujeito que se recusa a acomodar-se numa atitude passiva.

PALAVRAS-CHAVE: Capoeira. Corpo. Poder.

INTRODUÇÃO

A Capoeira, é uma prática de essência libertária, nasce como arma de


resistência ao controle do corpo e de seu agir cultural pelo branco-europeu-colonizador,
é uma manifestação do negro-escravo-africano que combate a vontade do Estado.
Torna-se, ao longo dos anos, uma ginástica, uma prática esportiva de tendências


Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE, Especialista em Educação. Mestre
de Capoeira, Membro da Rede de Desenvolvimento Econômico e Sustentável da Capoeira no Ceará.
Acadêmico de Direito, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. E-mail:
jolimpioneto@hotmail.com

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disciplinadoras que foi transformada em um bem comercializável, sob um disfarce


criativo de bem cultural vendável, oferece produtos e serviços dentro da lógica
capitalista. Entende-se necessário um diálogo com essa lógica consumista para que se
possa manter condições mínimas desses repasses do conhecimento da cultura popular,
mas questiona-se os limites dessa transformação em objeto de troca.
Esse texto é parte de um estudo crítico-reflexivo, iniciado no curso de
Filosofia, em 2009, que tem como base, obras do filósofo Foucault. Em 2013, no artigo
O Processo de Docilização do Corpo na História da Capoeiragem e da Capoeira:
Entre a Disciplina e a Resistência, apresentado no I Colóquio de Estudos
Foucaultianos, buscou-se, a partir da história dessa prática cultural, descrever de
maneira reflexiva o seu processo de desenvolvimento e de disciplinamento do corpo.
Trabalhou-se categorias como o corpo-dócil e a disciplina.Nesse momento, tenta-se,
aqui, pensar o papel do corpo e as relações de poder oriundas dos saberes e fazeres
transmitidos na Roda de Capoeira através dos Mestres, ambos reconhecidos como
Patrimônio Cultural e continuar a discussão iniciada no primeiro artigo da pesquisa.
Sabe-se, dentro de uma perspectiva foucaultiana, que em toda relação há a
presença do poder, mas qual o papel do corpo nesse jogo que está para além da roda?
Melhor, o que representa o corpo nas relações de poder no universo da Capoeira?
Tentou-se, nesse texto, esboçar um posicionamento filosófico para essa indagação. Esse
corpo negro-escravizado que se opôs ao poder de uma elite, agora, apropria-se dele para
dirigir relações, estimula prazeres para controlar outros, disciplinando o sujeito que se
recusa a acomodar-se numa atitude passiva.
Essa pesquisa não se encontra limitada por paredes, procura dialogar com
outros ramos dos saberes, tendo o conhecimento filosófico como fio condutor. A
etnografia, metodologia das ciências sociais, acompanha esse pensar reflexivo, trata-se
de uma observação iniciada a partir da imersão pessoal de mais de vinte anos, numa
prática cultural que se metamorfoseia constantemente.
Sob a inspiração filosófica de Roberto Gomes (2008), a partir de sua obra
Crítica da Razão Tupiniquim, apresentada pela Professora Cristiane Marinho na
disciplina de História da Filosofia no Brasil, tenta-se fazer a filosofia com o jeito
brasileiro e o gingado da capoeira; criar seu método é uma pretenção para um
acadêmico a nível de graduação, mas tentar refletir sobre o ser-capoeira e sua relação

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com o corpo e o poder é um passo inicial para um filosofar brasileiro. Como diz Gomes
(2008, p. 08) “Todo filósofo cria um novo modo de enquadrar a experiência vivida, cria
uma nova forma de encarar o pensamento, a verdade – cria, enfim, uma nova verdade”.
Esse é um grito de liberdade para o brasileiro colonizado se libertar de sua fascinação
por um sistema que corrompe as relações humanas. Muitos mestres que deveriam
trabalhar a libertação, proporcionando a descoberta ou o desenvolvimento da
autonomia, preferem ser opressores e reprodutores do ideal do capitalismo, do
individualismo, da vaidade, revestindo-se de uma falsa roupagem de alturísmo.
Para melhor concatenação das ideias, optou-se por uma estrutura semelhante
a um ensaio, porém sem fugir ao rigor acadêmico, esse escrito divide-se apenas em
introdução, o denvolvimento intitulado Sobre o corpo, a disciplina e o poder no
universo da Capoeira e considerações finais.

Sobre o corpo, a disciplina e o poderno universo da Capoeira


Antes de iniciar a crítica-reflexiva é preciso comentar algumas das
categorias que serão trabalhadas nesse texto, a saber, o corpo, a disciplina e o poder.
Esse trio é composto de elementos presentes no universo da Capoeira, fundamentais no
seu fazer cotidiano.
Segundo Foucault (2009, p. 132): “É dócil o corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Os corpos dos
escravos africanos trazidos para o Brasil foram apropriados pelo branco-europeu-
colonizador, transformado em objeto, mercadoria de troca. Houve uma tentativa de
docilização do negro-escravo-africano e passaram a coexistir o negro-zumbi e o negro-
pai-joão, este revestido de passividade, atitude de aparente submissão para continuar
vivendo em meio à opressão, aquele com atitude belingerante, entra em confronto direto
para resistir às imposições do colonizador.
Embora o negro resistisse, assimilou elementos da cultura do dominante e
introduziu em suas práticas culturais, mesmo sendo apontado por alguns como disfarce,
percebe-se que esses elementos estão presentes ainda hoje e foram fundamentais para
resistência (FERREIRA NETO, 2011). Após o período escravocrata, essa manifestação
brasileira, para continuar vivendo, passou por adequações ainda maiores, transformou-
se em uma ginástica. Dessa forma, o corpo se sujeitou à docilização, à disciplina.

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O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos


pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o
desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo... tudo isso
conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente,
obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos
soldados, sobre o corpo sadio (FOUCAULT, 1979, p.146).

O capoeirista já foi escravo, passou a fazer serviços de capadócio,


transformou-se em indivíduo disciplinado, um atleta, um cidadão e então começou a
oferecer serviços e produtos. É um corpo formatado para o consumo. É a partir, daí que
inicia um processo de transformação do corpo-do-capoeira em algo que pode ser
trocado. O grito de liberdade iniciou um processo de venda, transformou-se, pelo menos
em parte, em mercadoria de troca. Esse processo de transformação em mercadoria fez
com que um corpo, gestos, discursos e desejos fossem identificados e constituídos como
indivíduos, como efeitos do poder.

Dentro dessa nova realidade, somos obrigados a produzir verdade. Cada


grupo produz sua cota de verdade para a realidade capoeirística.

O poder não para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a


busca da verdade, profissionaliza-a e a recompensa. No fundo, temos que
produzir a verdade como temos que produzir riquezas, ou melhor, temos que
produzir a verdade para poder produzir riquezas (FOUCAULT, 1979, p.180).

Essas verdades são conduzidas pela necessidade do mercado. O capoeirista


que antes tinha outras profissões para sobreviver e utilizava a capoeira como momento
do ócio, do lazer, ou um pouco antes, como resistência, passou a lucrar com esse
conhecimento. Vendendo, coisificando, tornando simples o código que aprendera nas
vielas, merdados, terreiros e praças. O mestre de capoeira precisa atender a diversos
requisitos impostos pelos, supostamente, mais fortes.

Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre


os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas múltiplas formas de dominação
que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posição
central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu
edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no
interior do corpo social (FOUCAULT, 1979, p.181).

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Essa dominação, como se percebe, não parte apenas do Estado. Não há


apenas uma relação de poder entre oprimidos e opressores. Não pode-se diminuir essas
relações a dois opostos, mas há vários interesses que se chocam.

Devido ao reconhecimento dos Mestres e da Roda de Capoeira através do


registro (FERREIRA NETO & CUNHA FILHO, 2011), houve a necessidade do
relacionamento mais estreito entre os capoeiristas da atualidade. Isso se faz necessário
porque o Estado, para oferecer políticas públicas, precisa dialogar com o detentores dos
saberes.

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que
só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas
mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou um bem. O poder
funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam
mas estão sempre em posição de exercer este poder, são sempre centros de
transmissão. […] o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles
(FOUCAULT, 1979, p.183).

Dentro desse cenário, cresce cada vez mais a tentativa de padronização dos
corpos em sua expressão. Escolhe-se, aleatoriamente, um modelo de padronização que
se adeque às necessidades da sociedade de consumo. Vende-se bem estar, não-violência,
fraternidade como produtos auferidos de valores absolutos e pautado pelo pensamento
maniqueísta. A física corporal presente no jogo da capoeira tem tomado dimenções de
padronização nacional, quiça internacional. Confunde-se organização com
padronização, diálogo com imposição de verdades dos mais fortes.

[...] a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como


consequência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmentea
reinvidicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a
economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento,
do pudor. […] O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio
corpo. […] Na realidade, a impressão de que o poder vacila é falsa, porque
ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares e a batalha continua
(FOUCAULT, 1979, p.146).

Apesar da tentativa de controle, o capoeirista continua a resistência, pois há,


como afirma Foucaut, na passagem supra, uma circulação de poder. A Capoeira se nega
a aceitar a imposição dos indivíduos controladores. O corpo se metamorfoseia. “Onde
existe poder, existe resistência” (FOUCAULT, 1979, p. 240).

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A Capoeira que fazemos hoje é, fundamentalmente, política. Com suas lutas


internas e externas. O capoeirista era tido como um cancro social. Isso acontece com
todas as minorias, elas são rotuladas e diminuidas. “Para resistir, é preciso que a
resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que,
como ele, venha de 'baixo' e se distribuia estrategicamente” (FOUCAULT, 1979, p.
241). Há uma rede entrelaçada de relações que não aceitam ordens de cima, que não se
submetem. Não são, as leis, suficientes em si para garantir o exercício dos direitos
culturais, muito menos para dirigi-los em seu fazer cultural.

A questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em


termos de legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou de
aparelho de Estado. O poder é mais complicado, muito denso e difuso que
um conjunto de leis ou um aparelho de Estado. Não se pode entender o
desenvolvimento das forças produtivas próprias do capitalismo, nem
imaginar seu desenvolvimento tecnológico sem a existência, ao mesmo
tempo, dos aparelhos de poder. […] em relação ao exército moderno: não foi
suficiente um outro tipo de armamento e uma outra forma de recrutamento;
foi preciso também essa nova distribuição do poder que se chama a
disciplina, com suas hierarquias, seus enquadramentos, suas inspeções, seus
exércitos, seus condicionamentos e adestramentos (FOUCAULT, 1979, p.
221).

Na reprodução do sistema capitalista, o proletariado passa a ter o controle


do capital. As mudanças econômicas sofridas na história proporcionam a circulação do
poder através de canais sutis atingindo os corpos dos indivíduos, padronizando e
modelando seus gestos, disciplinando através dos exercícios e da ginástica.

Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos da
soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um
instrumento fundamental para constituição do capitalismo industrial e do tipo
de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano, alheio à
forma da soberania, é o poder disciplinar (FOUCAULT, 1979, p.188).

O capoeira é regida por normas costumeiras. A tentativa de organizar


códigos escritos nunca foi bem sucedida. Não bater no rosto do outro camarada é algo
que passa pela educação, pelo bom senso e não pelo simples adestramentos através de
documentos. Geralmente, essas normatização tem o raio de alcance, no máximo, de seu
trabalho. Como foi dito, há normas difundidas pelos costumes que passam pelos atores
culturais e que tomam conta de muitos Grupos de Capoeira de uma ponta a outra do
Brasil. A esportivização é um meio muito eficaz para essa divulgação, pois para
competir é preciso a unificação de linguagem.

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As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o


discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade
soberana. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da
regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra 'natural', quer dizer, da
norma; definirão um código que não será o da lei mas o da normalização […]
(FOUCAULT, 1979, p. 189).

Essa padronização, vista como organização, é normalizadora da capoeira,


inibe sua manifestação espontânea. Impede a manifestação dos saberes locais, tendo em
vista que se deseja padronizar em vários pontos do planeta.

A reativação dos saberes locais – menores, diria talvez Deleuze – contra a


hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrísecos de poder,
eis os projetos dessas genealogias desordenadas e fragmentárias. Enquanto a
arqueologia é o método próprio da análise da discursividade local, a
genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa
saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade. Isto para
situar o projeto geral. [...] a partir do momento em que se extraem fragmentos
da genealogia e se coloca em circulação estes elementos de saber que se
procurou desenterrar, não correm o risco de serem recodificados,
recolonizados pelo discurso unitário que, depois de tê-los desqualificado e
ignorado quando apareceram, estão agora prontos a anexá-los ao seu próprio
discurso e a seus efeitos de saber e poder? (FOUCAULT, 1979, p. 172-173).

Evitar a recolonização dos saberes, a padronização é uma tarefa árdua. Mais


os focos existentes são fortes o suficientes para garantir a diversidade.

[...] por saber dominado se deve entender outra coisa e, em certo sentido, uma
coisa inteiramente diferente: uma série de saberes que tinham sido
desqualificados com não competentes ou insuficientemente elaborados:
saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível
requerido de conhecimento ou de cientificidade (FOUCAULT, 1979, p. 170).

Nos últimos anos, o patrimônio imaterial no Brasil tem sido valorizado,


porém essa valorização é realizada a medida que as manifestações culturais se adequam
a realidade do mercado.

[...] saber das pessoas e que não é de forma alguma um saber comum, um
bom senso mas, ao contrário, um saber particular, regional, local, um saber
diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o
opõe a todos aqueles que o circundam – que realizou a crítica (FOUCAULT,
1979, p. 189).

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Os saberes que penetram a capoeira, hoje, vão além do saber tradicional,


repassado pelas gerações, há uma forte tendência, cada vez maior, da presença de um
saber acadêmico, científico no saber-fazer dessa arte.

Em um caso como no outro, no saber da erudição como naquele


desqualificado, nestas duas formas de saber sepultado ou dominado, se
tratava na realidade do saber histórico da luta. Nos domínios especializados
da erudição como nos saberes desqualificados das pessoas jazia a memória
dos combates, exatamente aquela que até então tinha sido subordinada
(FOUCAULT, 1979, p. 171).

São conhecimentos que levantam discursos diversos, o que acaloura o


debate sobre os rumos dessa manifestação cultural afrodescedente.

Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos


e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de
tudo contra os efeitos de poder centralizados que estão ligados à instituição e
ao funcionamento de um discurso científico se realize em uma universidade
ou, de modo mais geral, em um aparelho político com todas as suas
aferências, como no caso do marxismo; são os efeitos de poder próprios a um
discurso considerado como científico que a genealogia deve combater
(FOUCAULT, 1979, p. 171).

A estrutura que se desenha no cenário capoeirístico hodierno é baseado no


agrupamento de pessoas, esses agrupamentos são, comumente, chamados de Grupos de
Capoeira, que, na verdade, recebem diversas nomenclaturas, a saber, escolas,
fundações, equipes, centros culturais, associações e por aí vai. Alguns são registrados
em cartório como associações, modelo mais indicado para quem deseja desenvolver
trabalho com cultura popular no Brasil, tendo em vista que pouco se lucra com os
produtos e serviços das manifestações populares. Associações é o modelo de pessoa
jurídica voltado para trabalhos sociais e sem visar lucro.

Os capoeiristas começaram a se organizar em Grupos de Capoeira,


fortemente, a partir da década de 1970. Essas estruturas tem um mestre na frente, a
filosofia do Grupo de Capoeira é baseada no pensamento do mestre. Alguns utilizam
essas associações ou simples agrupamento de pessoas como uma empresa a seu serviço.

Há uma tendência homogenizadora, onde os mais fortes exercem poder


sobre os supostamente mais fracos. Alguns Grupos de Capoeira surgidos na década de
1980 passaram a liderar o mercado e tornaram-se referência para os demais. Tal
comportamento age de maneira incisiva no desenvolvimento dessa cultura, com a

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inserção de técnicas colonialistas, muitos capoeiristas são influenciados e passam a


imaginar a superioridade daqueles que obtiveram êxito financeiro com o Negócio
Capoeira, essa prática deixa de ser, apenas um jogo recreativo e passa a integrar mas
uma ferramenta do mercado consumista.

O Estado não se importa com os capoeiristas. Pensa apenas em manter o


controle desse instrumento de revolução. Tentam padronizar sob a ideia de organização
para manter diálogo. Prática cultural criativa que divulga o idioma pelo mundo. É um
capital cultural que pode oferecer tempo e trabalho extraída dos corpos disciplinados.

Dentro dessa lógica, o Estado começa abrir os olhos para o potencial


econômico dessa arte de resistência e tenta uma cooptação para as estruturas do
mercado. O registro da Roda de Capoeira e dos Mestres, esconde possíveis usos de
ferramenta de identidade estatal, mesmo que isso fira os princípios dos Direitos
Culturais. Os que encontram-se envoltos em um espírito que discursa sobre a
vitimização dos oprimidas, vê no registro uma forma de domínio, em outro giro, outros
veem possibilidade de ganhar dinheiro, material necessário para aquisição de bens de
consumo dentro do sistema capitalista. Nessa discussão, observa-se a possibilidade de
visualização mais clara das redes de poderes. É uma oportunidade de desenvolvimento
da autonomia através do debate democrático, pois, antes de discutir com o Estado, é
preciso discussão entre os mestres, entendidos como detentores do saber de transmissão
dessa cultura.

Pode-se observar, hoje, uma espécie de morte do mestre de capoeira, o


mestre é o transmissor dos códigos ininteligíveis a todos, dos segredos que são
transmitidos apenas para os dicípulos mais velhos. Será que dentro dessa realidade que
se vive ainda se escondem esses segredos? Há relevância para os mesmos, depois que a
Capoeira passou a ter um código aberto e possível de formatação por parte de qualquer
usuário? A capoeira que é vendida possui uma simplicidade de movimentos e de
entendimento comunicativo. A mandinga, conceito difícil de descrever, de cunho
subjetivo, passa a ser comercializada. Dessa forma, passa por um processo de
homogeinização.

Esse jogo de poderes é expresso na docilização do corpo. Alguns jogos ou


modos de fazer capoeira são repassados massivamente homogeinizando um grande

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número de praticantes de capoeira pelo mundo. Essa higienização inibe atitudes


inovadoras e revolucionárias. A oposição passa a incomodar e de ordinário, o sujeito
crítico passa a ser visto como um pessimista, um criminoso que não colabora para o
desenvolvimento da arte.

A Capoeira, como manifestação do negro-escravo-africano no Brasil, é uma


resistência, negação da imposição do Estado, movimento de liberdade. Sua essência
libertária rompe com os padrões de organização da lógica capitalista (FERREIRA
NETO, 2011), portanto, não há organização de viés jurídico que possa dar conta dos
rumos de seu desenvolvimento.

Por trás de desejos de organização, esconde-se a vontade dominadora, a


transformação de oprimido a opressor. Organizar sua casa é algo que colabora para o
desenvolvimento da capoeira juntamente com o constante diálogo entre os Grupos de
Capoeira. Tentativas de massificação, felizmente, sempre fracassarão, pois o foco de
incêndio sempre estará acesso, pronto para explodir uma resistência, quebrar a
linearidade do pensamento ocidental que insiste em coisificar tudo, transformar em
valores monetários o que é tocado, inclusive os bens intangíveis, materializa-se para
tranformar ou adequar aos interesses de mercado.

A Capoeira de Grupos, que é a fase que se vivencia hoje, é um período


onde o capoeirista entrou em uma lógica capitalista. Não é mais o moleque de banda, ou
capoeira de malta, muito menos o vadio.

Formação em Redes, Federações, Associações, não são suficientes para


representar os capoeiristas, pois estes se contrapõem a qualquer forma de poder.
Certamente, tentar padronizar a capoeira e tomá-la, de si, sua essência de negação e
resistência ao que está posto é tarefa que sofre oposição. Há uma rede de poder, embora
sutil e não declarada, onde os mais fortes dentro de uma visão de consumo, influenciam
os outros contaminando em sua pseudo igualdade. O enquadramento à lógica
burocrática não seria uma submissão ao enquadramento provocado pelo Estado?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse texto crítico-reflexivo foi proposto a tentativa de resposta à seguinte


questão: Qual o papel do corpo nesse jogo que está para além da roda? Melhor, o que

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representa o corpo nas relações de poder no universo da Capoeira? Chegou-se as


seguintes colocações:
Esse corpo negro-escravo-africano que se opôs ao poder de uma elite, agora,
esse corpo é docilizado e utilizado como saber-poder na direção de relações, estimula
prazeres para controlar outros, disciplinando o sujeito que se recusa a acomodar-se
numa atitude passiva. No entanto, como sua essência é libertária, esse jogo de controle
de saberes é colocado em cheque para que se pense em agir-capoeirístico.
Há uma rede de disputa de saber e de poder. As disputas dos saberes
ocasiona uma disputa pelo poder, pois esses saberes não são entendidos como iguais.
Qual o saber é mais ou menos válido? O saber entra em um jogo de disputa, o
detentores desse saber na prática da capoeira, disputam entre si, desqualificando outros
saberes diversos. Na verdade, todos os saberes valem, não há hierarquias. O
conhecimento não precisa necessariamente ser fundamentado, é fruto das experiências.
A única verdade na capoeira é que ela é livre, todo o resto é reinvenção
adaptada a realidade espacial e temporal. Quanto mais os capoeiristas se fecham num
grupo, num sistema de capoeira, mais distante se encontram de entender a capoeira.
Fugir ao jogo das relações pessoais, ao jogo de poder, não muda, não transforma a
realidade interna e externa da roda de capoeira. Pensar a verdade, no jogo da capoeira, é
pensar o cotidiano, pensar a preocupação, pensar a vida. O agir-capoeirístico é um agir
político, onde os saberes e poderes tomam forma com o corpo-do-capoeira no imitar da
vida.

REFERÊNCIAS

FERREIRA NETO, José Olímpio. O Processo de Docilização do Corpo na História da


Capoeiragem e da Capoeira:Entre a Disciplina e a Resistência. In: II COLÓQUIO DE
ESTUDOS FOUCAULTIANOS - Foucault Transversal: Olhares sobre a Constituição
do Sujeito. Ceará. Anais... Ceará: Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.

_________________. Capoeira, um olhar através da Filosofia de Herbert Marcuse: A cultura e


seu caráter afirmativo em busca da liberdade. 2008. 59 f. Monografia (Bacharel em Filosofia) –
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE, 2011.

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_________________; CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Capoeira: Patrimônio


Cultural do Brasil. Artigo orientado pelo Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho.
VII ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, UFBA: Salvador-
BA, 2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Trad.de


Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009.

__________________. Microfísica do Poder. Org. e Trad. de Roberto Machado. Rio


de Janeiro: Edições Graal,1979.

GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. Curitiba: Criar Edições, 2008.

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O PROBLEMA DO CORPO EM BENEDICTUS DE SPINOZA E


MICHEL FOUCAULT NAS OBRAS ÉTICA E VIGIAR E PUNIR

Adriele da Costa Silva


Universidade Estadual do Ceará

Henrique Lima da Silva


Universidade Estadual do Ceará

RESUMO
No que diz respeito ao corpo em Benedictus de Spinoza, pensador holandês do século
XVII (1632-1677), podemos afirmar que ganha uma dimensão real à medida que se
configura como sendo uma afecção que tem origem no atributo extensão. Do contrário,
em Michel Foucault, pensador francês do século XX (1926-1984), o corpo é
propriamente matéria que tem sua expressão vital a partir do exercício das
manifestações de poder sobre ele, de maneira histórica, social e política. Com o intuito
de investigar o que é o corpo, utilizaremos como base metodológica as obras Ética
demonstrada segundo a ordem geométrica (Ethica Ordine Geometrico Demonstrata) de
Spinoza e Vigiar e Punir: Nascimento da prisão (Surveiller et Punir: Naissance de la
prison) de Foucault. Assim, como primeiro resultado temos que em Spinoza o corpo é
composto por outros corpos dos quais existem as ideias de cada uma das afecções
dessas partes na mente. Em Foucault, a priori se tem o corpo e o processo subjetivo se
produz a partir das relações micro e macro de poder. Portanto, podemos concluir que,
em Spinoza, há uma identidade corpo mente, e que quanto mais se age mais se
compreende. Em Foucault, o disciplinamento dos corpos se dá por parte das instituições
através de seus mecanismos de poder, onde corpo e Estado encontra sua manutenção um
no outro.

PALAVRAS-CHAVE:Spinoza. Foucault. Corpo.

INTRODUÇÃO

A definição aristotélica de corpo que é o que tem extensão em qualquer direção,


não explica a rejeição histórica que lhe impingiram. Efetivamente pela sua
potencialização, o corpo foi objeto escrachado pela história da Filosofia. Então, tendo
por intuito a desmistificação do corpo, a pesquisa terá como objeto o problema do corpo
nos pensadores Benedictus de Spinoza e Michel Foucault, nas obras Ética demonstrada

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segundo a ordem geométrica e Vigiar e Punir: O nascimento da Prisão. Dispondo de


partes que tem como títulos O corpo é condenado à realidade em Spinoza e A
condenação do corpo em Foucault. Onde naquela o corpo se constitui como um
composto de partes menores que mantendo determinadas relações de movimento e
repouso dispõem-se às afecções, das quais lhes são impregnadas ideias na mente. Já em
Foucault, apresenta-se as estratégias de poder utilizadas como dispositivos para
disciplinamento dos corpos, tendo como início o século XIX. Onde o processo de
subjetivação do indivíduo se dá por meio ao exercício de poder em dimensões
microfísicas e macrofísicas.

1.0 O CORPO É CONDENADO À REALIDADE EM SPINOZA


Ao longo da história se pode perceber o quão o corpo obteve um lugar de
repúdio. Com todas suas necessidades orgânicas e suas patologias, o corpo era privado
de toda sua potência. Será com Spinoza que se inaugurará uma filosofia do corpo, a
equivalência mente-corpo firma uma realidade psicofísica onde não prevalece um
atributo sobre o outro.
Pela proposição 2 da segunda parte da Ética de Spinoza, Deus é uma coisa
extensa. Ou seja, Deus ou Substância constitui essencialmente a realidade de forma
absoluta através do atributo extensão. Ademais, o que é determinantemente produzido
como ação imanente da extensão, igualmente será reconhecido pelo pensamento. O que
é evidente pela EIP7: “A ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão
das coisas”. Assim, a coisa extensa e sua ideia participam de uma igualdade em que um
modo de realidade não se justapõem nem determina o outro. Desta forma o que é real,
sob o ponto de visto humano, é explicado, em Spinoza, ora pelo atributo pensamento,
ora pelo atributo extensão.
Segundo Marilena Chauí, no livro Espinosa uma filosofia da liberdade, a ética
de Spinoza busca não só o livre exercício da mente mas também do corpo. Pois o
homem não é um império dentro de outro império, o homem não é de natureza diferente
das possibilidades existentes na Natureza. Ele não atrapalha a ordem por meio de suas
ações e paixões. Do contrário. Sua atividade ou passividade só é possível enquanto se
considera que ele é parte da Natureza. De modo que, a Natureza é a Substância, e esta é
uma unidade de diferentes atributos que agem, em que o real é produção destes tais
atributos.

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No sistema spinozista os modos finitos, numa ordem de conexão, são os mais


determinados pelos atributos, onde os corpos e movimentos singulares tem a extensão
como causa. Dentro desta perspectiva, na Ética é definido o homem como um modo
finito que existe de uma maneira certa em Deus. Onde o ser que constitui a essência
humana não é senão formado por modos dos atributos pensamento e extensão; mente e
corpo.
Objetivamente, a mente humana é formada por modos de pensar de coisas
singulares que existem em ato. A princípio, o primeiro modo de pensar diz respeito a
um primeiro modo extenso. E, sendo nossas ideias de afecções do corpo, o que
primeiramente se constitui como objeto da mente não pode ser senão nosso corpo
enquanto algo singular existente em ato. Para tanto, se temos ideias do corpo atual, o
que quer que aconteça nele formalmente, a mente terá a ideia de maneira objetiva, pois
ideia e objeto são uma e mesma coisa. Afinal, tudo que se segue de Deus encontra
objetividade nele, como queira demonstrar: A ordem e conexão das ideias é a mesma
que a ordem e conexão das coisas. (EIP7).
Dado que o homem, enquanto modo finito existente em Deus, possui ideias de
suas afecções, necessariamente essas ideias existiram em Deus e o terão como causa.
No entanto, é possível perceber superioridade de uma ideia para outra. Em que se
constitui essa superioridade? Ora, são superiores em relação ao grau de realidade, pois
nada tem a ver com a determinação ou anterioridade delas sobre os corpos. Uma ideia
será mais real que outra à medida que seu objeto conter mais realidade que o outro. O
que é evidente pelo escólio da EIIP13:

Digo, porém, que, em geral, quanto mais um corpo é capaz, comparação com
outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, tanto mais
sua mente é capaz de, em comparação com outras, de perceber,
simultaneamente, um número maior de coisas. E quanto mais as ações de um
corpo dependem apenas dele próprio, e quanto menos outros corpos
cooperam com ele no agir, tanto mais sua mente é capaz de compreender
distintamente.

A recíproca também é verdadeira, pois não há nada que aconteça no objeto da mente
que não seja percebido por ela. Como se verifica na EIIp12 relacionada abaixo:

Tudo aquilo que acontece no objeto da ideia que constitui a mente humana
deve ser percebido pela mente humana, ou seja, a ideia daquilo que acontece
nesse objeto existirá necessariamente na mente; isto é, se o objeto da ideia

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que constitui a mente humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo
que não seja percebido pela mente.

1.1 O CORPO SE MOVE OU ESTÁ EM REPOUSO


Do que se segue do corpo, é evidente pela EIIp13a1 que todos os corpos estão
ou em movimento ou em repouso. De forma que é esta propriedade que os vão
diferenciar uns dos outros, e não uma diferença pela substância. Visto que essa
diferenciação entre os corpos se dá por seu estado; movimento ou repouso, e que esta
qualidade de está parado ou em movimento é uma determinação de outros corpos que
lhe são exteriores, tal característica só diz respeito a ela mesmo e nada pode-se inferir, a
não ser o fato de estarem nesse ou naquele estado. Pois, mesmo que um corpo esteja em
movimento, não é evidente que mais a frente sofrerá uma afecção de outro corpo que o
fará parar.
Considerando os corpos compostos, o que podemos concluir é que, se um corpo
A’’ formado por A + A’ é afetado por um outro, tanto é possível que se mover nesta ou
naquela direção, onde o que irá determinar é a relação de movimento e repouso dos
corpos em questão.
Dito acima que a diferenciação dos corpos se dá pela relação de movimento e
repouso, cabe afirmarmos o que se segue disto. Seja um corpo composto, formado por
corpos de natureza igual ou de natureza diferente, que sofre afecção de outro corpo,
submetido a uma relação de forças; constituíra-se de tal maneira que fará permanecer
sua natureza. Pois, se mesmo após uma mudança na constituição desse corpo (perda de
uma parte que lhe compõem) for mantida a mesma relação de movimento-repouso, de
forma que as partes se comuniquem, o indivíduo consistirá a natureza anterior a
afecção.

1.2 COMO O CORPO, SUA IDEIA É COMPOSTA


O corpo está disposto de diversas maneiras. E estando disposto, afeta e é
afetado. E pelo o que se apresentou, tudo o que é efetivamente ação é simultaneamente
ideia na mente, não há nada que o corpo seja que a mente não o represente, existirá,
também, na mente humana a ideia de cada uma das afecções. Ora, se o corpo é
composto, tão logo, sua ideia também será.

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Sendo a mente a ideia que temos do corpo, a mente se constituirá de ideias de


suas afecções. Uma vez afetado um corpo, o que resultará é uma composição de partes
do indivíduo A e do indivíduo B. Não uma justaposição das partes, mas, um novo
indivíduo composto que restabeleceu uma antiga relação de movimento e repouso e, que
a partir disso terá na mente não só a ideia de seu corpo, e sim a ideia da natureza de seu
corpo e da natureza do corpo exterior. De forma que a minha mente considerará a ideia
deste corpo que me é exterior como existente em ato, mesmo que não mais o seja. Pois,
efetivamente, a mente humana limitara-se a considerar a ideia de algo que não existe, e
só passará a desconsiderar essa ideia na medida em que for afetada por uma ideia mais
potente. Logo, quando a mente passa a contemplar essas ideias, ela imagina. Ademais,
se o corpo é disposto, repetidas vezes, a um corpo, depois a outro e assim de forma
sucessiva; segundo uma concatenação de afecções, a mente formará também ideias
segundo esta conexão, mas neste caso o que acontece é o processo de memorização. No
entanto, envolve apenas a natureza do corpo exterior.

1.3 A MENTE SE CONHECE ATRAVÉS DAS IDEIAS DAS AFECÇÕES DO


CORPO
Assim como o corpo é objeto da mente, a natureza da mente não envolverá
somente a natureza das ideias das afecções do corpo, como também envolve a do
próprio corpo. Portanto, é por meio das ideias que a mente conhece a si e ao corpo, o
que consequentemente desemboca num conhecimento inadequado que temos das partes
que compõem o corpo. Ora, tais partes não pertencem ao corpo, a não ser se se
considera a relação estabelecida entre as partes. No entanto, consideradas fora desta
relação não diz respeito ao indivíduo. O que se apresenta como a realização da
totalidade em Deus, na mente humana, estas partes, existem de uma maneira mutilada.
Do ponto de vista da substância, as ideias destas partes existem de uma maneira
adequada, mas sob o referencial humano não se pode falar que a mente tem ideias
verdadeiras. Haja vista que estas ideias existem em Deus não sozinhas, mas enquanto
umas de tantas. Sobretudo, as ideias das afecções de corpos exteriores também não
existem de maneira adequada na mente. Afinal, a ordem a que estão submetidas estas
ideias só existe em Deus de forma total.

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2.0 A CONDENAÇÃO DO CORPO EM FOUCAULT

Ao longo do século XIX é possível percebemos um deslocamento dos


mecanismos de poder exercidos sobre o corpo por parte das instituições, onde o suplício
dar lugar a novas técnicas menos físicas. Dentre tal mudança não é correto afirmar que o
desaparecimento dos suplícios tenha se dado por uma humanização plena, mas, do
contrário, o corpo agora ganha uma dimensão não mais do espetáculo, e sim
compreende um superficial acolhimento tendo em vista o disciplinamento. Ora, se o
castigo, os corretivos e execuções publicamente mostrados eram necessários ao
condenado e quão digno a sua pena, para o executor tal condenação lhe impingia
violência. É preciso agora não mais punir, é precisa utilizar de técnicas judiciais que
acolham o corpo do supliciado, assim, tal caracterização se firma por meio de
instrumentos que reeduquem, que vigiem. Como se pode verificar abaixo:

O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos


da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma
economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e
tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo
regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. 1

Consequentemente, de modo a garantir essa penalidade incorpórea, como chama


Foucault, todo um conjunto de especialistas, no lugar do carrasco, vem perfilar esse
novo sistema instaurado pelas instituições. Médicos, psicólogos, psiquiatras, guardas,
educadores tratarão de assegurar a liberdade como um direito constitutivo do indivíduo.
A pena, que antes era centralizada no suplício, agora se perfaz objetivamente na
perda de bens ou na abstenção de um direito. Consequentemente, trabalhos forçados, ou
mesmo reclusão não se efetivam sem que seja infligida domínios sobre o corpo.
Referente a isto, Foucault corrobora: Porém castigos como trabalhos forçados ou
prisões – privação pura e simples da liberdade – nunca funcionam sem certos
complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual,
expiação física, masmorra. (FOUCAULT. 1987, p.18)A questão é que com esse novo
mecanismo de regulamentação jurídico-biológico dos corpos, com essa política do não
contato com o corpo sensível do indivíduo, não é garantida a liberdade do mesmo. Mas,
o aparato tecnológico da lei, que a princípio deixa de se aplicar a um corpo real e

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 1987, p. 14

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emprega-se a um sujeito jurídico, na verdade, é uma tecnologia de privação de toda a


unidade orgânica que é o corpo.
Julgado mediante paixões e desejos, o crime, objeto dos códigos penais,
ultrapassa os elementos circunstanciais e atribui aos comportamentos determinações que
lhes são extremamente instintivas. As agressões, os assassinatos ganham como causa
não mais conotações religiosas ou econômicas, mas são reflexos de anomalias,
enfermidades, inadaptações, efeitos de meio ambiente ou de
hereditariedade(FOUCAULT, 1987, p. 19). Ao introduzir a justificação do exercício de
poder sobre o corpo do condenado se tem invés de um julgamento imparcial, que
considera o que se fez, forma-se um juízo do que é ou poderá ser o indivíduo.
Portanto, é sobre esse substrato que irá se constituir o processo de subjetivação
do indivíduo, por meio de uma relação de produção e submissão. Efetivamente, o
processo de consciência no sujeito se determina pela realidade histórica que encerra o
corpo, a mente que produz e se produz é uma mente de um corpo punido, vigiado,
corrigido.
Vale lembrar que, o sujeito, enquanto jurídico possui um corpo ativamente
político e mesmo tendo imprimido as marcas que as relações de poder o possam deixar,
a força e a materialidade lhe impregnam. Além de que essas relações de poder existem
de forma multiformes e difusas, não se restringem, apenas, ao Estado ou Instituições,
podendo estabelecer-se entre homem-mulher, pai-filho, sábio-ignorante. Desta forma,
há na sociedade várias mediações de forças e microlutas, e se se considera essas
relações dominadas pelo Estado, também o Estado só dispõe de seus mecanismos
através das manutenções destas relações.

2.1 O HOMEM TAMBÉM SE DEFINE

O próprio homem participa ativamente de seu processo de definição, pois se vê a


partir de um objeto. Ele se reconhece, constitui-se a partir de processos saber-poder.
Assim, o poder em Foucault não é um poder exercido, mas que se exerce. O poder está
difuso e se manifesta. Não é somente uma palavra associada à soberania estatal, mas
tem um sentido de lugar estratégico, onde se encontram as relações de forças. De forma
que, a difusão do poder é imediatamente exercida por grandes e pequenas dimensões na

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sociedade, utilizando-se de elementos estratégicos para controle político, jurídico e


biológico; como o discurso.
É, pois, para tentar negar uma metafísica do poder que Foucault recorre a
história e afirma que tanto o poder é de uns sobre os outros, como desses outros sobre
uns. Ora, se se afirma isto é preciso fazer uma nova teoria do poder. Em que não é
suficiente entender somente as instituições, mas entender sobre que relações de poder
elas se formam. É necessário para isso entender tanto as estratégias como também as
resistências, ou seja, compreender as possibilidades; afinal a permanência do poder se
auto gere por necessidades internas de manutenção, acionadas por outras forças.
Sobretudo, essas forças se agregam, sem que tenham feito acordo, e perpassam pelo
sujeito o constitui.

CONCLUSÃO

Ao longo do século XIX é possível percebemos um deslocamento dos


mecanismos de poder exercidos sobre o corpo, onde o suplício dar lugar a novas
técnicas menos físicas. No entanto, essa mudança internamente determinada pela
própria manutenção de poder não tem por finalidade técnicas mais humanas. Com um
aparato legalizado pelo Estado, essa nova tecnologia vem disposta de especialistas e
instituições, que sob um discurso pedagógico de reabilitação, controla o corpo não mais
por meio da supressão dele, mas pela permanência do indivíduo vivo. Agora, é por meio
deste substrato legalista que se constituirá a subjetivação do homem, regulamentada por
normais que privam o indivíduo de ser sensível.
A questão é que com esse novo mecanismo de regulamentação jurídico-
biológico dos corpos, com essa política do não contato com o corpo sensível do
indivíduo, não é garantida a liberdade do mesmo. Mas, o aparato tecnológico da lei, que
a princípio deixa de se aplicar a um corpo real e emprega-se a um sujeito jurídico, na
verdade, é uma tecnologia de privação de toda a unidade orgânica que é o corpo.
Spinoza, pelaP2 da segunda parte da Ética, dirá que Deus é uma coisa extensa.
Ou seja a extensão é algo que constitui a essência de Deus. A extensão é um atributo, e
como tal produz a realidade, donde segue-se que o corpo é produto imanente da
atividade infinita da extensão. O homem, por sua vez, no sistema spinozista, é o último
das modificações no quadro ontológico da realidade; é um modo finito singular

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existente em ato não mais que um efeito da atividade dos atributos, e por assim ser
possui um corpo além de uma mente. Portanto, o homem é um indivíduo composto por
outros corpos menores, que por meio de sua relação uniforme de movimento e repouso
mantém sua natureza.
Concluímos que o corpo ao longo de sua história marginal se estabeleceu como
problema éticoe político pelas investidas relações de poder e dominação que lhe
envolve. Condicionado a sujeição, o corpo só é útil se for submisso e ao mesmo tempo
ativo. O corpo está mergulhado num sistema político que torna suas necessidades legais,
onde a garantia de direitos biológicos está envolvida com a mecanização da vida. O
corpo vivo do condenado, agora, é mais importante que o corpo morto. Assim, mesmo
com a mudança das técnicas punitivas, sobre o corpo continuará sendo exercido
relações de poder, partindo do suposto de que não há como separar corpo e mente. O
que será percebido pela mente, foi imprimido no corpo e vice-versa.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CHANTAL, Jaquet. A unidade do corpo e da mente: Afetos, ações e paixões em


Spinosa. Trad. Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2011. (Coleção Filô/Espinosa; 1).

CHAUÍ, Marilena. Espinosa: Uma Filosofia da Liberdade. Coleção Logos. 1ª Ed. São
Paulo: Moderna,1995

FRAGOSO, Emanuel Ângelo da Rocha. O método geométrico em Descartes e


Spinoza.1ª Ed. Fortaleza: EDUECE, 2011.Coleção Argentum Nostrum

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução bilíngue latim-português de Tomaz Tadeu.


3ª Edição. São Paulo: Autêntica, 2010.

______.Ética. Traduções de Joaquim de Carvalho [et al.] Coleção os Pensadores.3ª


Edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

______.Tratado da reforma do inteligência, Tradução, introdução e notas de Lívio


Teixeira. 1ª. Ed. São Paulo: Editora Nacional, 1966.

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PRÁTICAS EDUCATIVAS COM AS JUVENTUDES ESCOLARES


SOBRE SEXUALIDADES: PROBLEMATIZANDO O CUIDADO DO
ENFERMEIRO NOS ESPAÇOS VIRTUAIS

Daniele Vasconcelos Fernandes Vieira


Universidade Estadual do Ceará

Raimundo Augusto Martins Torres


Universidade Estadual do Ceará

Gislene Holanda de Freitas


Universidade Estadual do Ceará

Samuel Ramalho Torres Maia


Universidade Estadual do Ceará

Sayonara Oliveira Teixeira


Universidade Estadual do Ceará

RESUMO
Trabalho resultante do recorte de experiências na pesquisa, extensão e formação na
graduação e pós-graduação em enfermagem e multidisciplinar, na UECE, a partir do uso
de uma web rádio, para produção dediálogos permeados nas práticas educativas, que
gerem a promoção do cuidado com a saúde dos/das jovens escolares. Objetivou - se
problematizar os saberes sobre sexualidades dos/das jovens escolares, a partir da
interpretação de imagens, cujas expressem suas práticas de si nos cotidianos de vida.
Pesquisa - intervenção, segundo a abordagem foucaultiana do “Cuidado de si”
(Foucault, 1985). Realizaram-se oficinas educativas para construção de painéis,
conforme o que é significativo para as constituição das sexualidades desses sujeitos.
Obedeceu os aspectos éticos da pesquisa, emanados da Resolução 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde (BRASIL, 1996), tendo em vista a aquiescência do parecer liberada
em 2011, com registro no Comitê de Ética da Universidade Estadual do Ceará -
UECE/FR 4248380/2011. Os diálogos virtuais são desdobrados para o cuidado singular
e coletivo.

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INTRODUÇÃO

Nas discussões sobre sexualidades e saúde, sobremodo com as juventudes das


culturas escolares, é possível localizarmos, no contexto da formação acadêmica, lacunas
quanto à plasticidade conceitual, no tocante às abordagens teóricas que circundam o
campo de pesquisa para esse público, bem como carência de diálogos com as linhas de
conhecimentos, saberes, e narrativas que articulam outros campos temáticos, como a
sociologia, a história, a filosofia.

Promover a interface dessas linhas de fuga do conhecimento biológico, médico e


jurídico sobre os corpos e a constituição dos sujeitos de prazeres para a proposta do
diálogo criativo filosófico acerca das sexualidades na formação do profissional de saúde
é, de certa forma, incitar nossa parte subversiva, com a qual inspiramos o pensamento,
ativamos o imaginário e colocamos em movimento a busca de territórios e
encruzilhadas possíveis para assim compreendermos que são múltiplas as formas e os
modos de afirmações da vida.

Percorrer a filosofia é, desse ponto de vista, uma perspectiva que vise a tencionar
os diálogos que vazem e escapem de um pensamento rígido e determinista, garimpando
caminhos que se cruzem e se descruzem, provocando um caminhar para o fora. O fora é
linha fronteiriça do pensamento dominante e não faz jogo de oposição a esse
pensamento, mas sim, escapa dele, questiona os territórios, questiona a unidade, a
inflexibilidade, andarilhando nas multiplicidades. Esse lugar, as multiplicidades, é onde
se pode ver que é possível se fazer e desfazer, construir-se e desconstruir, significar e
resignificar.

Ao pensar a abordagem das sexualidades e dos gêneros com as juventudes na


cultura escolar, tendo como base de análise e reflexão as intensidades, velocidades de
afetações entre as políticas públicas da saúde e da educação, nessa esfera, os
profissionais de saúde se atravessam em um território onde alguns estranhamentos a
respeito das familiaridades, do evidente e das culturas homogênicas de pensamento
começam a se descolar para formas de pensar o sujeito polifônico, os sujeitos de
subjetividades.
É nesse lugar da diferença, que pretendemos analisar como os jovens e as jovens
escolares compreendem as produções das sexualidades como práticas de cuidado de si

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nos seus cotidianos de vida a partir de diálogos virtuais, na perspectiva da interatividade


virtual, e vivência de oficina temática em seu território escolar.
Os ciberespaços, destarte, configuram-se como possibilidades de atuação da
prática de cuidado do enfermeiro, com base na comunicação dialógica qualificada com
focos na prevenção e promoção da saúde, favorecendo a atualização e hiperextensão,
dispersão dos discursos, que hora se mostram como curiosidade, hora como
criatividade, uma vez que discurso é aberto, pode ser interpretado por vários ângulos,
sendo em um momento uma necessidade de saberes, sendo em outro uma curiosidade,
uma criação, ou seja, o discurso que ocupa o lugar da diferença.
A Integração e inclusão das juventudes com as pesquisas e as práticas de
cuidado da Enfermagem, por meio da comunicação em saúde no ambiente virtual Web
Rádio AJIR, a partir da convergência de mídias, são estratégias de potencialização da
formação acadêmica e social do enfermeiro e da enfermeira, trazendo para a formação
acadêmica a responsabilidade de ser um elo entre a extensão, pesquisa e formação
humana.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa - intervenção, tendo o fundamento teórico na


abordagem foucaultiana do “Cuidado de si” (Foucault, 1985) com a qual se propôs
analisar as produções dos/as jovens escolares sobre sexualidades, por meio da
interpretação de imagens construídas em painéis elaborados pelos/as mesmos/as acerca
do que é significativo para as constituição das suas sexualidades e que possam
apresentar as práticas de si.

Esses dados são recorte de um projeto guarda - chuva que abrange a formação
em enfermagem e as práticas educativas de cuidado em saúde mediada pelas
Tecnologias da Informação e da Comunicação. O direcionamento para temática,
sexualidades é um eixo do projeto, que utiliza o ambiente virtual, cujo movimenta a
pesquisa de graduação e mestrado acadêmico, com a qual os jovens das escolas do
estado do Ceará, no Brasil, participam das relações de cuidado com o enfermeiro, em
dois momentos.

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O primeiro momento de contato com os/as jovens nas Escolas se deu pela
participação e interação no ambiente virtual Web Rádio AJIR, permeado nos diálogos
sobre sexualidades, no contexto da saúde reprodutiva. No segundo momento, foram
realizadas oficinas educativas com esse público nos territórios das escolas, na ocasião
da 5ª edição do evento cultural AJIRTAÇÃO, que acontece, anualmente, resultante da
parceria em rede composta pela Web Rádio AJIR/UECE, o Laboratório de Práticas
Coletivas em Saúde/LAPRACS/CCS/UECE, a Associação dos Jovens de Irajá/AJIR e a
Pró-Reitoria de Extensão/PROEX/UECE, que inclui dança, espaorte, música, oficinas
educativas, cuidado ambulatorial com a interação das juventudes da universidade com o
Irajá.

A oficina foi facilitada no dia 15 de agosto de 2014, com duração de 3 horas, na


qual estiveram envolvidos (as) o professor coordenador do projeto, o Laboratório de
Práticas Coletivas em Saúde/LAPRACS/UECE, mestrandos (as) e acadêmicos(as), bem
como o núcleo gestor e professores/as da Escola e a Secretaria de Educação do
Município de Hidrolândia em articulação com o Programa Saúde na Escola. Os sujeitos
selecionados para o estudo foram 28 jovens, sendo 15 do sexo masculino e 13 do sexo
feminino, do 9º ano, de faixa etária entre 13 e 15 anos, do Ensino Fundamental, de 01
escola pública do município de Hidrolândia, no sertão do Ceará.

Os/as jovens foram selecionados (as) em virtude de estarem presentes na escola,


em sala de aula, durante a realização da oficina que foi previamente acordada e
reservada em reunião com a secretaria do município de Hidrolândia, com o núcleo
gestor da Escola, com os/as professoes (as) que atuaram como mediafores(as), junto à
equipe da Web Rádio AJIR/UECE. O transporte da rota Fortaleza para Irajá e o material
necessário para a execução da oficina foi providenciado pelo projeto Web Rádio
AJIR/UECE, com auxílio da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade. O estudo
obedece aos aspectos éticos da pesquisa, emanados da Resolução 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde (BRASIL, 1996), tendo em vista a aquiescência do parecer liberada
em 2011, com registro no Comitê de Ética da Universidade Estadual do Ceará - UECE,
com a referência: FR 4248380/2011.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

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A oficina intitulada “PRODUÇÃO DAS SEXUALIDADES NA ESCOLA –


saberes e práticas com as juventudes em imagens/colagens” teve a primeira etapa
iniciada com a formação de um semicírculo entre os/as alunos/as para apresentação de
um vídeo com duração de 10 minutos, lúdico, sobre o tema sexualidades. Após
apresentação do vídeo, discutiu-se, em grupo, de forma generalizada, sobre as
sexualidades e suas expressões.

Os sujeitos, individualmente, no contexto do grupo, apresentaram a/as imagem


ou imagens que escolheram e falaram sobre ela/as, interpretando como as figuras podem
expressar as sexualidades e como isso é reconhecido nos seus modos de vida,
mostrando também como suas escolhas foram acolhidas pelo grupo do qual fizeram
parte para produção do painel. Os 5 grupos ( Grupo 1; Grupo 2; Grupo 3; Grupo 4;
Grupo 5) apresentaram em suas tessituras uma diversidade de imagens que espelharam
como compreendem as sexualidades nas dimensões das relações consigo e com o outro.

As figuras apresentadas pelos/as jovens, com o olhar para o “acontecimento”


(Foucault, 2009. p. 133), abordagem que possibilita visualizar o que se repete nos
saberes, o que é inédito e as “molaridades” (Deleuze; Guattari, 1997) dessas
constituições de si, foram repetidamente a família, a amizade, o lazer, o esporte, a moda,
a exercício físico. As figuras apresentadas em única vez, inéditas, tiveram destaque em
suas descrições/interpretadas como “viagem para Fortaleza” (Jovem Grupo 1 - sexo F),
“o facebook” (Jovem Grupo 2, Sexo M), “beijar quem se ama” (Jovem Grupo 3 - Sexo
M), “ouvir música” (Jovem do Grupo 4 - Sexo M).

O facebook não foi acolhido como sugestão apresentada no Grupo 2. Contudo, a


observação - participante da facilitadora da oficina trouxe para o debate a importância
de se acolher e compreender a infinitude de práticas e aspectos das relações sociais que
atravessam as sexualidades, desejos e prazeres singulares. O jovem não expos a imagem
no painel, porém, após os comentários da facilitadora, fez suas considerações dizendo
que foi a primeira imagem que pensou em expor, segundo sua fala “assim que eu
peguei a revista disse logo para a gente usar ela” (Jovem do Grupo 2).

A presença da equipe de professores (as), mestrandos (as), acadêmicos de


enfermagem e de outros saberes da área da saúde e de educação que compõem o projeto
de formação, pesquisa e extensão no ambiente virtual Web Rádio AJIR é um

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componente do vínculo universidade e comunidades que vem se fortalecendo na esfera


das culturas juvenis escolares.

Essa assertiva tem como marcadores as falas dos sujeitos cuja, para representar a
interpretação sobrescrita, destaca - se “A gente gosta muito quando vocês vêm aqui. É
divertido. Eu me lembro de você no programa da web rádio. Tirei muitas dúvidas de
sexualidades” (Jovem do Grupo 3). Há jovens presentes na sala de aula, os quais
apresentaram resistência para participação da oficina temática, que pode ser demarcado
na fala “Não gosto de falar sobre isso. Acho errado” (Jovem do Grupo 2).

Remetemo-nos ao que é difícil de dizer para os (as) jovens, quanto à temática


das sexualidades. A concepção de “errado” é analisada, como um marcador que resulta
da ação de um conjunto de vetores sobre a formação desse jovem. Considerando que as
falas foram apreendidas e registradas, durante a circulação, das observadoras
participante e facilitadoras da oficina, entre os grupos, não foi possível abordar o jovem
sujeito do discurso. Desse modo, concebemos em substratos para aprofundar as
discussões em outras intervenções no território, durante a realização da pesquisa da qual
esse recorte faz parte.

Reconhecer que existe nos sujeitos que existem as resistências para o diálogo
sobre o tema, convoca os profissionais a explorar, sentir e refletir a respeito de como a
família, a escola, os sujeitos das relações na vida desses jovens acolhem a temática,
pensam sobre o sexo, orientação sexual, escolha sexual, busca e expressão dos prazeres
e como isso repercute na convivência, na personificação, na comunicação emocional, no
tratamento ético entre os pares.

As construções do que denominamos nessa pesquisa de “imagem - discursos”,


com esses e essas jovens na oficina implementada, tendo os painéis e suas falas como
marcadores, a partir da etapa de compartilhamento das produções entre os grupos,
tornam-se dispositivos para análise das demandas desses sujeitos, pelas quais se
possibilita a formulação da clínica preventiva no tocante ao cuidado nas relações de
prazeres consigo mesmo e com o outro, inclusive nas práticas sexuais.

As sexualidades nesses sujeitos da pesquisa são expressões ampliadas da visão


do sexo e do corpo como objeto de prazer, passando a percorrer as diversidades de

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desejos e prazeres que habita cada um (a), como mencionado o aspecto família, viagem,
esporte, lazer, beleza, estudos, música, dentre outros delineados nos painéis. Isso torna a
análise desses dados mais intrigante, visto que ainda existem confrontos da conjuntura
das conversações sobre as sexualidades e as relações de gêneros nas políticas públicas
em saúde e na educação vigentes.

Os autores Torres e Sales (2009) relatam que, na realidade da escola, a formação


é acentuadamente orientada pelo “trato dos/as educadores/as com os/as educando/as”.
Há, então, uma predominância de uma cultura geral para a formação heteronormativa
desses sujeitos. Os caminhos de fora que marcam a formação desses sujeitos, todavia,
mostram que há saberes, discursos, práticas, ocupando “espaço”, na compreensão de
Foucault (2001), de “diferenciações sociais e de gênero que permeiam seus cotidianos”.

As leituras das produções das sexualidades por esses e essas jovens


operacionalizadas em suas relações e cotidianos de vida, estão infinitamente se
modificando, sendo, portanto, insaturáveis. Misturando-se a esse pressuposto, as
intervenções de cuidado do enfermeiro com a saúde dos jovens e das jovens na cultura
escolar, ou em qualquer espaço, também se modificam. É uma relação que se constrói
no momento em que acontece e que tem relações com os diálogos já atravessados no
ambiente virtual Web Rádio AJIR por onde se passam as interlocuções da Universidade
com a Escola, por meio do canal de comunicação dialógica “Em Sintonia com a Saúde -
S@S”.

As pautas adotadas em roteiros previamente elaborados pelos facilitadores e


pelas facilitadoras dos programas sobre as sexualidades para serem dialogadas com os
jovens e com as jovens por esse canal não nos assegura que esse será o caminho
trilhado. O público juvenil interconectado entre escolas e municípios constrói esse
roteiro a partir de suas demandas, as quais podem se repetir ou se fazerem inéditas com
a participação semestral desses (as) mesmos (as) jovens ou de jovens diferentes nas
edições virtuais trabalhadas por séries.

Assim, as lentes de análise dos diálogos com essas culturas juvenis para
proposição do cuidado no tocante à promoção da saúde e da prevenção no campo de
saber da enfermagem só é possível por não haver limites para discussão e conhecimento
dos saberes e práticas pela ótica das pluralidades desses sujeitos.

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As culturas juvenis que racharam o molde da prática convencional de se fazer


educação em saúde vazaram, na virtualidade, outras formas de racionalidades que não
se constroem no saber pronto, mas nos saberes que partem de uma curiosidade, de uma
vontade, de uma experiência, de uma tradição familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As diferenciações e múltiplas formas de resignificar as sexualidades com essas


juventudes do nono ano da escola participante da oficina fortalece e alimenta o banco de
dados para a continuidade do cuidado elaborado com esse coletivo no contexto da
articulação com a Escola, o Município e o Programa Saúde na Escola, por meio dos
debates mediados no ambiente virtual e aprofundados nas oficinas educativas, com
potencia para o protagonismo da clínica/intervenção que olha o sujeito por outros
ângulos, nos seus territórios, para além da conotação geográfica, com suas
subjetividades e com suas transições.

As Escolas são territórios onde se encontram diversidades de sujeitos, de


histórias de vida e de multiplicidades. É, também, um espaço onde os sujeitos aprendem
normas, formas e jeitos de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Nesse foco de
discussão, cabe-nos perguntar, de que modos, nesse complexo território, tornam- se
possibilidades, na condição de profissionais de saúde, participar da dinâmica de ensinar
e aprender,de tocar os jovens sobre os assuntos cotidianos que envolvem o cuidado com
sua saúde e com a saúde dos sujeitos com quem convivem nas dimensões familiar,
afetivas, profissionais, fraternais.

A ênfase da comunicação dialógica no ambiente virtual Web Rádio AJIR


recai sobre como os jovens escolares utilizam a conversão de mídias digitais e a
transferência de tecnologias pelos saberes construídos, para formular sua dúvidas,
inquietudes, anseios, com base nas suas experiências de vida, de relações e práticas
cotidianas referentes à cultura do cuidado de si. Essa cultura de si, na
contemporaneidade, está entremeada nos modos de educar e de aprender, sobretudo
com o uso dos dispositivos móveis que possibilitam o acesso às redes informáticas em
qualquer espaço onde os sujeitos estiverem, para as diversas finalidades.

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Localizar os sujeitos e suas expressões de subjetividades, de exposição, de


vulnerabilidades, de produções positivas, de contatos cotidianos na escola e em outros
ambientes de relações sociais, nessas realidades da comunicação online, conectada
diariamente à internet, por meio do uso dos dispositivos, é uma tática de perceber,
investigar e analisar as influências e repercussões na cultura do cuidado de si, dos
prazeres, dos corpos.
A problematização do cuidado de Enfermagem se dar nessa conjuntura da
sociedade online, em que a virtualização convida esses profissionais para as tendências
inovadoras, ressaltando a importância da apropriação dos espaços virtuais
pelaEnfermagem do século XXI. O uso de tecnologias em saúde, num sentido geral, é
um tema bastante presente nos encontros e congressos de saúde da Sociedade Brasileira
de Informática em Saúde (SBIS).

As dobras e desdobras da perspectiva da comunicação para a promoção de saúde


nos territórios virtuais, desloca a Web Rádio AJIR do lugar da engenharia de softwares
para o lugar de possibilidades concernentes às relações softwares, entremeando saberes
e práticas de cuidado da Academia para as comunidades e das comunidades para a
Academia.

O uso da web rádio é um elemento da cartografia dessas produções dos


discursos e práticas dos jovens sobre o cuidado com as suas sexualidades que marca o
primeiro contato, o encontro inicial com as juventudes escolares, possibilitando a
integração e cooperação, para as vivências nos campos geográficos das diferentes
escolas e municípios. Pensar a educação em saúde permeada pelo uso da convergência
das mídias digitais em ambiente virtual é o aspecto surpresa das práticas educativas no
cuidado do enfermeiro. Um cuidado que se reverbera, inicialmente, com base nos
desejos e necessidades dos sujeitos, no que tange à informações de relevância para
saúde coletiva e singular.

Conhecer essas demandas é uma forma de pensar intervenções que gerem


processos reflexivos nos sujeitos e possibilidades para questionar-se sobre como vem
realizando o cuidado com seu corpo, com sua mente, o cuidado espiritual, o cuidado
com seus laços afetivos e sociais como todo, que visem à preservação e melhoria de
vida e prazer no viver.

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O Amor, a amorosidade, a alegria, a vontade que move o enfermeiro e a


enfermeira deve integrar os fundamentos acadêmicos de cuidar, devem afetar o outro
em suas multiplicidades e afetar-se com o outro. Os trânsitos das produções dos saberes
precisam percorrer rotas críticas que se afetem com os desejos, com as alegrias e com as
tristezas dos sujeitos. Essas são as potências de práticas de cuidado que se trilham e
constroem-se pelo olhar na extensão e no movimento para a pesquisa.

O enfermeiro como facilitador da produção de saberes no território escolar,


tem que exercer seu olhar ”escavador” e perguntar - se se a Escola comporta, agrega,
dar conta, da pluralidade dos o jovens pluralidade, tendo em vista, que a pauta não é
uma discussão “conteudista” , mas fala de vidas e de subjetividades, dos interiores de
cada sujeito que faz esse micro espaço social um conjunto dentro de um muito mais
complexo.

A complexidade do ponto de vista da prática educativa deve ser visitada,


revisitada, para que passe a ser familiarizada pelos jovens e, desse modo, fazer parte de
si, de sua visão do mundo. Esse é o sentido da prática educativa. Destarte, falar, discutir,
pesquisar, re - descobrir o mesmo tema é a roda que faz girar a caminhada pela
igualdade no tocante ao direito de receber seu cuidado singularizado em suas demandas
para além do fenômeno biológico do sexo e da reprodução humana.

REFERÊNCIA

BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 466, de 12


de Dezembro de 2012. Disponível em:
<http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf>. Acesso em: jul. 2013.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (S. Rolnik,


Trad.) (Vol.,4). São Paulo, 1997. Ed. 34. (Originalmente publicado em 1980).

FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2009. P.133.

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ISSN - 2358-0720

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber; (tradução de Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). 14.ed. – Rio de Janeiro:
Edições Graal, 2001.

FOUCAULT, M. História da sexualidade: o cuidado de si. 10 ed. Rio de Janeiro:


Graal, 1985.

TORRES, R. A. M. Sexualidade e relações de gênero na escola: uma cartografia dos


saberes, práticas e discursos dos/das docentes. 2009. 228f. Tese (Doutorado em
Educação)– Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-
Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2009. Disponível em:
<http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/3227>. Acesso em: set. 2013.

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ANEXOS

DEVIRES entre o Mar e o sertão: vamos reencontrando nossas histórias juvenis

Equipe Ajir/UECE e LAPRACS - Laboratório de Práticas Coletivas em


Saúde/UECE chegando nas Escolas participantes das oficinas em Hidrolândia - Irajá,
berço do movimento de juventudes- Biblioteca Ajir - de onde se desdobrou o projeto
Web Radio Web Rádio AjirAjir (página no facebook), do qual somos integrantes e
interatuantes.

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Os/as jovens, professores/as acolheram a equipe com entusiasmo, desejos de


dialogar e construir saberes sobre sexualidades, planejamento familiar, Dst/AIDS,
origames, edição de vídeos, libras, dentre outras temáticas abordadas, na esfera do
evento cultural AJIRTAÇÃO. Foram oito oficinas de plurais emoções, de trocas,
aprendizado. Um verdadeiro acontecimento.

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REFERÊNCIAS AO TEMPO NA VIDA HUMANA EM KANT E


FOUCAULT

Maria Veralúcia Pessôa Porto


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

Iraquitan de Oliveira Caminha


Universidade Federal da Paraíba

RESUMO
Ao analisar a existência humana Kant percebe que a mesma se desdobra em uma
dimensão pragmática, a saber: em uma disposição para a civilidade que se expressa por
meio da cultura. O percurso rumo à civilidade se dá, entretanto, em meio à manifestação
das disposições naturais do homem gerando, deste modo um conflito na constituição da
existência enquanto percepção de si e dos outros. Foucault observa que nesse processo
“não se trata de um duplo Eu, mas de uma dupla consciência desse Eu”. Para Kant esse
Eu manifesta uma finalidade última: a humanidade. Esta se manifesta na dinâmica das
ações vividas, o que permite a continuidade da história. É o que se verifica em relação
ao tempo e à memória das representações. Este trabalho busca uma reflexão sobre as
referências do tempo na vida humana. Para tanto nos deteremos em algumas questões
daAntropologia de um ponto de vista pragmática de Kant e da Gênese e estrutura da
antropologia de Kant de Foucault.

PALAVRAS-CHAVE: Foucault. Kant. Tempo.

INTRODUÇÃO
Ao analisar a existência humana Kant percebe que a mesma se desdobra em uma
dimensão pragmática, a saber: em uma disposição para à civilidade que se expressa por
meio da cultura. Neste sentido, o ser humano tende a se inserir naturalmente nas
relações sociais deixando de lado a individualidade. Essa saída de si implica que sejam
aprimoradas, cada vez mais, as faculdades humanas associadas aos relacionamentos
sociais. No que concerne às disposições morais, os resultados da experiência vivida,
nem sempre apresentam o resultado desejado, isto é: o exercício das boas maneiras e
práticas pelo exercício das virtudes. Por conseguinte, vem à tona o questionamento


Aluna do Programa de Doutorado Institucional em Filosofia da UFRN/UFPB/UFPE e Professora
Adjunta da Universidade do estado do Rio Grande do Norte – UERN.

Professor orientador Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve e Professor
da Universidade Federal da Paraíba - UFPB.

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acerca das disposições naturais, se estas, não são também as mesmas que levam o ser
humano a se inclinar para o mal e não considerar a esfera do outro, da alteridade e do
altruísmo.
Como consequência da relação com o outro, no âmbito da civilidade, bem como,
da manifestação das suas disposições naturais dá-se o conflito entre civilidade e
natureza e o homem, se manifesta como um ser duplo.
Foucault observa em Gênese e estrutura da antropologia de Kant que “não se
trata de um duplo Eu, mas de uma dupla consciência desse Eu” (2011, p. 32). Mas, para
Kant, esse Eu, manifesta uma finalidade última que o perscruta no horizonte da
civilidade: a humanidade. AAntropologia do ponto de vista pragmático aponta em
relação à finalidade última do ser humano o processo de aprimoramento:

O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com
seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e
das ciências, e por maior que // possa ser sua propensão animal a se
abandonar passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele
denomina felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno de
humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca
nele. (KANT, 2006, p. 219)

Enquanto o fim último, desde as origens gregas do pensamento filosófico é o


Bem, normalmente entendido como busca da felicidade. Kant, por seu turno, mostra que
o fim último do ser humano não pode ser outro senão a própria humanidade. Então,
buscando elementos na pragmática, Kant observa acerca da relação dos aspectos ligados
à natureza e ao humano, uma luta constante que envolve o indivíduo consigo mesmo em
meio a todas as dificuldades que dessa relação originam.
Foucault aponta ainda para a necessidade de responder a pergunta sobre o que é
propriamente o humano. Vale a pena salientar que Foucault é um dos principais
pensadores contemporâneos a questionar a ideia de homem. Não haveria, segundo ele,
na Antropologia de Kant um conceito fechado. Parece inicialmente haver um
distanciamento dos conceitos filosóficos já desenvolvidos por ele nas Críticas1.

1
Pelo menos da Crítica da razão pura, considerando que na antropologia, nos jogos de representação da
consciência, estão presentes os dados da sensibilidade e, neste sentido, não há espaço para uma “razão
pura” sem a estreita relação com a “razão prática”. Embora a razão persista, ela não é um controle, mas a
possibilidade de julgar e ordenar acontecimentos relativos à vida do ser humano. O próprio Foucault
afirma em Gênese e estrutura da antropologia de Kant que “É preciso deter-se um pouco. E fingir, por
cuidados de método, situar a antropologia, sem referência à crítica, como ela mesma nos convida fazer,
pois em momento algum o texto de 1798 explicitamente a supõe. Situar-se-ia ele apenas no sistema de

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Contudo, considerando a implícita intenção pedagógica no decorrer da


Antropologia de Kant, percebe-se que mesmo com referência direta àpráxis da vida e a
experiência habitual, há sempre, uma tentativa de demonstrar a necessária ordenação do
agir humano, visto que a ação individual de cada um dos quais compõem a espécie
humana, esse processo afirma passo a passo a própria ideia da humanidade. É então,
neste aspecto, que será abordada a investigação sobre as implicações do tempo na
construção dos eventos.

O tempo e a memória das representações

Seja a consciência se manifestando na relação consigo mesmo ou na relação com


o outro, o poder e o fazer estão estreitamente ligados com as representações do tempo.
Uma das representações do tempo no ser humano consiste na faculdade da memória.
Deste modo, o estudo da memória utilizado pela tradição filosófica, mesmo por Kant
antes de 1798, era compreendida na dimensão da mnemosine, ou seja, associada a ideia
de reminiscência, rememoração. Foucault na Gênese e Estrutura observa que essa
compreensão deve ser resignificada a partir de uma dimensão pragmática, pois “se para
ampliar a memória ou torná-la ágil, ele utiliza as percepções sobre o que considerou
prejudicial ou favorável a ela, e para tanto precisa do conhecimento do ser humano,
isso constitui uma parte da antropologia de um ponto de vista pragmático [...]”. (2011,
p. 45).
Para Foucault, a Antropologia de 1798 “[...] não buscará mais saber ‘como se
pode utilizar o homem’, mas o que se pode dele esperar. Por outro lado, ela
determinará o que o homem ‘pode e deve’ (kann und soll) fazer de si mesmo” (2011, p.
45). Considerando a Crítica da razão pura, a memória era compreendida enquanto
reminiscência para dela servir-se, no sentido de conduzir o homem, por sua memória, às
disposições a priori registradas na alma. Na pragmática, o recurso à memória está
estreitamente ligado às representações do tempo no que diz respeito aos acontecimentos
vividos.

atualidade do período pós-crítico, carregado somente de lembranças da época pré-crítica?” (2011, p.


44).

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Todavia, ainda restam algumas questões concernentes ao conceito de


humanidade: como continuar sendo autêntico, cultivar a si próprio e permitir ao mesmo
tempo que o outro não se torne passivo face a essa relação de alteridade? Como superar
tais obstáculos? Compreendido na perspectiva da representação das vivências, o tempo
parece trazer elementos consideráveis que transitam entre os modos da própria
temporalidade: presente, passado e futuro. A análise de Kant acerca desta questão é
pragmática. Por exemplo:

O professor falando [...] a um auditório universitário, ou também o promotor


de justiça ou advogado, quando devem demonstrar domínio da mente ao
fazer livremente (de improviso) a sua exposição, ou mesmo também a sua
narração, tem de prestar atenção em três coisas: primeiro, tem de olhar para o
que está dizendo agora, a fim de o representar com clareza; segundo, tem de
voltar o olhar para o que já tenha dito; e em terceiro, tem de prever o que
quer dizer de agora em diante. (KANT, 2006, p. 106)

As representações do tempo presente, passado e futuro se interligam. O que eu


faço ou digo agora tem que ser representado com clareza e isso só ocorre se for
considerado o passado. Significa então, que o ser humano é hoje o reflexo do que
ocorreu ontem, o que permite uma avaliação ou julgamento sobre o seu estado atual, se
o mesmo se encontra de acordo ou em contradição com um determinado projeto. Deste
modo, deve ser constante, o exercício da capacidade de julgar, tendo em vista verificar
se o amanhã - mesmo enquanto previsão – já se manifesta no presente.

O tempo e a espera: comodismo ou emancipação?

O tempo aparece com referência à ação. Por isso que, ao analisá-lo de forma
positiva e jurídica, têm-se o que se denomina de maioridade e menoridade civil. Neste
sentido, o tempo entendido como uma categoria de denominação de um estado de
liberdade de ação e do direito da ação está relacionado com a maturidade e a devida
emancipação do sujeito.

As crianças são naturalmente incapazes, e os pais são os tutores naturais


delas. A mulher é declarada civilmente incapaz em qualquer idade; o marido
o seu curador natural. Contudo, quando vive com ele em regime de separação
de bens, um outro é esse curador. - pois ainda que no tocante à fala, a mulher
tenha pela natureza de seu sexo saliva suficiente para defender a si mesma e a
seu marido diante de um tribunal (no que diz respeito àquilo que lhe
pertence), e, portanto, possa ser declarada literalmente mais que capaz de
falar por si própria [...] (KANT, 2006, p. 106)

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Parece, então, que o tempo não é somente uma regra para o direito positivo. Pois
que a liberdade de ação mostra que o tempo também se interliga com a evolução dos
acontecimentos na história, visto que a emancipação da mulher é um elemento da
contemporaneidade, mas Kant já observara que ela (a mulher) é pertencente ao mesmo
gênero humano e, portanto, possui o poder de defender a si mesma.
Todavia, a mulher pode fazer a opção de não defender-se por seus próprios
meios, mesmo que isso possa parecer degradante. Kant observa que tal atitude é mais
cômoda, o mesmo podendo acontecer com o povo. Assim, um grupo social pode vir a
considerar como mais cômodo se deixar governar por chefes de estado ou mesmo por
líderes religiosos, a fim de usufruir desse “suposto” benefício. Neste sentido, o tempo é
a instância em que tais representações se manifestam.
Sobre os chefes de estados, afirma Kant que estes “[...] se autodenominam pais
do povo, porque sabem, melhor do que seus súditos, como se deve fazer para que eles
sejam felizes; para o seu próprio bem, no entanto, o povo está condenado a uma
constante menoridade [...]” (2006, p. 107). E sobre o clero, estes, “[...] mantêm,
rigorosa e constantemente, o leigo em estado de menoridade. O povo não tem voz nem
juízo sobre o caminho que há de tomar para alcançar o reino dos céus. Não é preciso
os próprios olhos humanos para chegar até lá: o povo será guiado [...]” (2006, p. 107).
Em geral fazer com que os seres humanos sigam mecanicamente a direção de
outros é o meio mais seguro para o cumprimento de uma ordem legal. Mas, será que
esta ordem legal, positivada, passou pela faculdade do juízo e foi considerada sobre a
perspectiva da ideia de humanidade ou trata-se de um só da espécie que usurpa do poder
para comandar todos os demais?
Foucault considera, sobre o humano e o tempo, o que se pode esperar da
humanidade, que esta não poderia ser vislumbrada de forma integral neste ou naquele
homem, muito menos, nesta ou naquela instituição.

O ser humano e o tempo

Somente o ser humano, por intermédio da imaginação, é aquele ser que


consegue tornar presente, o passado (vivido) e o futuro (enquanto previsão).

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A faculdade de tornar propositadamente presente o passado é a faculdade de


recordar, e a faculdade de representar algo como futuro, a faculdade de
prever. Ambas se fundam, enquanto são sensíveis, na associação, com o
presente, das representações do estado passado e futuro do sujeito e, embora
não sejam percepções elas mesmas, servem para a ligação das percepções no
tempo, isto é, para ligar o que já não é com o que ainda não é, através do que
é presente, numa experiência concatenada. [...] por que se é consciente das
próprias representações como seriam encontradas no estado passado ou
futuro. (KANT, 2006, p.80)

Dessa forma, é possível admitir que mesmo a recordação para vir à tona possui
relação com as representações do sentido. Mas, Kant observa que o próprio ser humano
cria mecanismos - também utilizando os sentidos - para distrair o pensamento e impedir
o movimento das representações mentais dos acontecimentos na atuação do tempo, isto
é, à recordação. Conforme Kant, as leituras de romances são exemplos de acomodações.

[...] criar segundo o curso de sua imaginação, o que naturalmente distrai e


torna habitual a distraçãomental (falta de atenção ao presente): com isso, a
memória tem inevitavelmente de se enfraquecer. - Exercitar-se na arte de
matar o tempo e tornar-se inútil para o mundo, para depois lamentar a
brevidade da vida, é, abstraindo-se da disposição fantasiosa da mente que a
produz, um dos ataques mais hostis a memória. (2006, p. 83)

Ora, a memória é a vida e, caso o ser humano não utilize de subterfúgios de fuga
e se decida ao enfrentamento da realidade, é possível, por intermédio do tempo, o uso da
faculdade de previsão.
A espera é também uma categoria do tempo, por isso que enquanto o
conhecimento fisiológico do ser humano trata de investigar o que a natureza faz da
espécie humana, o pragmático, por sua vez, investiga o que ele (ser humano) faz, pode e
deve fazer de si mesmo enquanto ser que age livremente.

a) Os sinais prognósticos
É por intermédio da faculdade de previsão que o ser humano emprega todas às
suas forças. Daí a importância do tempo e dos seus sinais prognósticos.

Os sinais prognósticos são os mais interessantes de todos, porque na série das


mudanças o presente é só um momento, e o fundamento-de-determinação da
faculdade de desejar o toma em consideração apenas em vista de
consequências futuras (ob futura consequentia) [...]. (KANT, 2006, p. 91)

Têm-se então que o tempo é aprendizado e tanto serve de referência como


interfere no constituir humano. E para que o processo de constituição da vida seja sábio

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e, ser sábio no uso prático é fazer uso dos sinais prognósticos. É não se acomodar. Têm-
se, pois que:

Exigir sabedoria, como ideia do uso prático, legal e perfeito da razão, é por
certo exigir muito do ser humano; mas nem mesmo num grau mínimo um
outro pode infundir sabedoria nele, já que tem de retirá-la de si mesmo. A
prescrição de alcançar esse fim contêm três máximas que conduzem a ele: l.
pensar por si mesmo, 2. colocar-se no lugar do outro (na comunicação com
seres humanos), 3. Pensar sempre em concordância consigo mesmo. (KANT,
2006, p. 98-99)

Não há como fugir, isto é, o melhor é resistir, ser forte, pois o tempo tanto é
aquele que coloca o ser humano no jogo das representações mentais como é o que o
coloca na comunicação com os outros.

b) A capacidade de julgar
O tempo é, até mesmo, aquele que acusa o ser humano sobre o que ele faz de si
mesmo e sobre a concordância dos seus atos, tanto consigo mesmo como na adequação
deste com a realidade.

//A idade em que o homem chega ao pleno uso de sua razão poderá ser
fixada, em vista de sua habilidade <Geschicklichkeit> (a faculdade de atuar
com arte em qualquer propósito), por volta dos vinte anos; em vista de
prudência <Klugheit> (de utilizar outros homens para os seus fins), dos
quarenta; finalmente, em vista da sabedoria <Weisheit> por volta dos
sessenta; nesta última época, porém, ela é mais negativa, para compreender
todas as tolices das duas primeiras, quando se pode dizer: "É pena ter que
morrer quando enfim se aprendeu como se poderia viver bem", e mesmo
então esse juízo ainda é raro, pois que a inclinação pela vida se torna tanto
mais forte, quanto menos valor ela tem, tanto na ação quanto no prazer.
(KANT, 2006, pp. 98-99).

Percebe-se que o desdobramento da consciência de si em meio ao tempo,


apresentada por Kant e, de certo modo, absorvida por Foucault, é o que permite mirar o
olhar para as rupturas da história e, provavelmente, por isso mesmo, Foucault afirme em
Arqueologia do saber que o tempo “[...] rompe o fio das teleologias transcendentais e
aí onde o pensamento antropológico interroga o ser do homem ou sua subjetividade faz
com que o outro e o externo se manifestem com evidência”. (FOUCAULT, 2008,
p.149).

c) O vínculo com o outro na correção dos próprios pensamentos.

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A consciência do tempo e do seu poder faz o ser humano interrogar-se a si


mesmo e, em meio a essa auto-percepção o ser do outro se manifesta. Deste modo, o
que consideramos a constituição da própria identidade se estabelece no jogo das
distinções que se manifesta na diferença com o outro.
É correto afirmar que a história da humanidade também apresenta, considerando
o tempo, a história da diferença. É válida considerar a diferença dos vários sujeitos, bem
como, a diferença ou disputas existentes no próprio pensamento interior de cada um.
Isso significa “que a diferença longe de ser origem esquecida e recoberta, é a dispersão
que somos e que fazemos”. (FOUCAULT, 2008, p.149). Essa diferença se apresenta
também na ordem dos discursos, daí a referênciaa uma dupla consciência do eu,proposta
por Foucault.
Por isso mesmo, deve-se, ao considerar a pragmática de Kant, perceber uma
espécie de reviravolta antropológica. Pois, parece-nos que um conceito fechado de
homem, a ideia de uma unidade ou de uma razão ordenadora colocou em crise a própria
vida.

[...] crise em que estão comprometidas a reflexão transcendental com a qual


se identificou a filosofia desde Kant; a temática da origem, da promessa do
retorno pela qual evitamos a diferença de nosso presente; um pensamento
antropológico que consagra todas as interrogações à questão do ser do
homem, e permite evitar a análise da prática; todas as ideologias humanistas;
e - enfim e sobretudo - o status do sujeito. É esse debate que você sonha
mascarar e de que espera, creio, desviar a atenção, prosseguindo os jogos
agradáveis da gênese e do sistema, da sincronia e do devir, da relação e da
causa, da estrutura e da história. Você está certo de não praticar uma metátese
teórica? (FOUCAULT, 2008, p. 229).

Considerando ovínculo com o outro e a correção dos próprios pensamentos, é


preciso que nessa investigação sobre o eu se utilize da sutileza e do cuidado para evitar
cair nas rédeas da transposição teórica das grandes ideologias humanistas e dos sistemas
filosóficos unitários, como adverte Foucault.
O próprio Kant, na Antropologia considera que seria falta de bom senso o ser
humano abdicar de viver e, seriaperigo maior ainda na vida ativa não considerar a
importância e o lugar do outro. Pois até mesmo em uma situação de absurdo o outro
poderia vir a ajudá-lo, no sentido de que, dado a existência de um confronto ou conflito,
seria possível ao outro considerando a impossibilidade de o apaziguar, caberia a eleao

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menos o recurso a uma revisão ou reestruturação do pensamento ou mesmo de um apoio


moral.
[...] por exemplo, quando em dia claro um indivíduo vê sobre sua mesa uma
luz bem forte que um outro ali presente não vê, ou quando ouve uma voz que
nenhum outro ouve. Pois é uma pedra de toque subjetivamente necessária da
retidão de nossos juízos em geral e, portanto, também da saúde de nosso
entendimento, que o confrontemos com o entendimento de outros, e não nos
isolemos com o nosso e julguemos como que certa publicamente nossa
representação privada. (KANT, 2006, p. 116).

É nesse aspecto que seria importante admitir a necessidade do diálogo para


correção dos próprios pensamentos do ser humano. Por isso mesmo, as discussões em
meio a grupo de estudo permitem um meio mais eficaz e útil de corrigir as
representações internas.

[...] o que ocorre quando os expomos publicamente para ver se também se


coadunam com o entendimento dos outros, porque, caso contrário, algo
simplesmente subjetivo (por exemplo, o hábito ou a inclinação) seria
facilmente tomado por objetivo, e nisso consiste precisamente a aparência, da
qual se diz que engana, ou melhor, pela qual se é induzido a se enganar a si
mesmo na aplicação de uma regra. - Aquele que absolutamente não se volta
para essa pedra de toque, mas põe na cabeça que reconhece a validade do
senso privado sem ou mesmo contra o senso comum, está entregue a um jogo
mental no qual não procede nem julga num mundo em comum com outros,
mas (como nos sonhos) se vê em seu próprio mundo. (KANT, 2006, p. 117).

Por conseguinte, considerando as observações de Kant, é preciso observar que o


vínculo com o outro é um exercício dialético e dialógico, e não necessariamente, um
sistema fechado. Tal afirmação nos remete a Foucault quando em Gênese e estrutura,
observa que se a antropologia é sistemática, isso é devido ao seu exercício enquanto
princípio organizador no sentido de permitir sua coerência ao todo do pensamento
crítico, isto é, considerando e retomando as relações entre intuição e entendimento.

A relação descrita pela Antropologia tem sua dimensão própria no trabalho


lento, precário, sempre duvidoso da sucessão: o múltiplo, tal como se oferece
aos sentidos, não está ainda (noch nicht) ordenado; o entendimento deve vir
juntar-se (hinzukommen) e inserir uma ordem que ele próprio traz
(hineinbringen). Um juízo que se produza antes desta ordenação (zuvor)
arrisca-se a ser falso. Em contrapartida, esta relação de sucessão não suporta
ser impunemente estendida; se, na ordem do tempo, intervém a ruminação
retrospectiva do raciocínio (nachgrübeln) e a dobra indefinida da reflexão
(Úberlegüng), o erro pode igualmente insinuar-se. O dado, portanto, jamais é
enganador, não porque julgue bem, mas porque absolutamente não julga, e
porque o juízo se insere no tempo, constituindo verdade de acordo com a
própria medida deste tempo. (FOUCAULT, 2011, p.79)

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O outro é neste sentido aquele que pode ajudar a impedir os possíveis erros da
mente por meio da experiência interna. Para Kant o conhecimento do ser humano por
meio da experiência interna é de grande importância, mas à medida que este também
julga os outros, surgeuma dificuldade. Quais as garantias de que o julgamento do outro
sobre mim é adequado ou mesmo se o meu julgamento sobre o outro está correto? Kant
sugere que:
[...] o investigador de seu íntimo, em vez de simplesmente observar,
facilmente introduz muita coisa na autoconsciência, por tudo isso é
aconselhável e até necessário começar pelos fenômenos observados em si
mesmo, e somente então passar a afirmação de certas proposições que
concernem à natureza do ser humano, isto é, à experiência interna. (2006, p.
42)

Por outro lado, Foucault, embora admita que algo é pensado em tudo o que é
dito, convida o ser humano a considerar não somente a experiência interna, mas o que
ele próprio vai denominar de pensamento exterior, pois que o fim do pensamento é a
prática. A prática é a execução do pensamento. Nessa perspectiva também Kant afirma
e sugere que:
O surgimento da modéstia pela necessidade de unificar num mesmo
pensamento, engenho e profundidade, penetra por si mesma na mente
daquele que se vê convocado por algo dessa natureza, isto é, vivificar as
ideias da razão necessárias para o conhecimento em assuntos importantes, de
modo que, surge a desconfiança de seus talentos e, com ela, a desconfiança
de que não podia decidir sozinho, mas de que deve levar em conta também os
juízos dos outros. (KANT, 2006, pp.120-121).

É o exteriorizaro entendimento correto, um juízo exercitado e uma razão


profunda que constitui a inteira extensão da faculdade de conhecimento intelectual,
principalmente quando esta é julgada também como habilidade para a promoção do
prático, isto é, do pragmático tendo em vista a efetivação dos fins da humanidade.

CONCLUSÃO

O tempo não é um conceito do entendimento, mas permite com que suas


representações movimentem o entendimento. Assim, mesmo valendo apenas como
condição subjetiva de como nos são dadas as sensações internas o tempo é vital em sua
dimensão pragmática.

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Embora não seja competência da pragmática nos dar a conhecer como o objeto é
em si, ela nos permite perceber as estruturas por oposição aos sistemas fechados,
fazendo emergir uma abertura viva à história, aos fatos e aos acontecimentos.
É preciso, neste sentido, contestar nas próprias análises históricas o uso da
descontinuidade, a definição dos níveis e dos limites, a descrição das séries específicas,
a revelação de todo o jogo das diferenças, posto que, essas dimensões só são
perceptíveis no confronto com o outro. Isto indica que o Eu, como ser pensante, como
ser sensível, mas também como objeto da intuição empírica interna, isto é, enquanto
afetado internamente por sensações do tempo, simultâneas ou sucessivas, se reconhece
como ser no mundo que efetiva um fim maior, a saber: a humanidade.
É neste sentido que considerando as observações de Kant e de Foucault,
tendemos a aceitar que o vínculo do “Eu” com o “outro” é um exercício e não
necessariamente um sistema fechado. Assim, só é aceitável a antropologia como
“sistemática” como manifestação de um princípio organizador, na medida em que
empresta sua coerência ao todo do pensamento crítico retomando as relações entre
intuição e entendimento, entre natureza e civilidade, por meio da ideia de humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. Tradução de


Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves.


7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia


Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

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A SERPENTE BESLICOU O FALO DE ADÃO: SILÊNCIO,


DISCIPLINA E OS ORGASMOS DOS CORPOS

Assis Daniel Gomes


Universidade Federal do Ceará

RESUMO
Neste trabalho, buscamos fazer uma reflexão sobre a disciplinarização dos corpos,
especialmente analisando a sua construção físico-simbólica que impactaram os olhos da
moral patriarcal, monogâmica, heterossexual, branca e Cristã. Pensando, assim, como o
controle dos corpos é olhado pela cidade em sua construção panóptica, dos gestos de
repúdio de seus observadores até seus discursos de disciplinamento. Para isso,
buscamos partir nossa reflexão através de resquícios do passado contidos no Jornal A
Ação, criado na cidade do Crato e pertencente à Diocese do Crato. Procuramos verificar
como o toque dos corpos possuidores de um mesmo órgão sexual escandalizou e deixou
perplexa essa sociedade que é defensora dos valores cristãos, da sacralização do corpo e
da família monogâmica. O corpo, em uma demonstração de subjetividade, está imposto
pelo assombramento da norma, pelo predomínio da sexualidade heterossexual e das
normatividades cristãs, apesar de que o desejo pelo falo, pela penetração e o desejo por
tocar o outro seja presente, na exterioridade é visto como imoral, como pecado e
doença. A sexualidade é, para Foucault, uma construção social e histórica e os
dispositivos construídos para a legitimação de um modelo específico dela colocou as
outras formas de perceber e sentir o outro como anormais e patológicos. Como, então,
se construiu dispositivos discursivos de defesa da não realização nessa cidade, nos anos
de 1970, do Congresso de Homossexuais, levando em consideração que ela é sede da
Diocese da Igreja Católica na região do Cariri cearense?

PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Disciplina. Sexualidade. Transgressão.

Neste artigo, procuramos pensar a disciplinarização dos corpos a partir das


considerações de Foucault, Deleuze e das matérias publicadas no Jornal A Ação1,


Mestrando em História Social pela UFC e bolsista da Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa
(FUNCAP).

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referentes a uma possível realização do Congresso de Homossexuais no Cariri cearense


em 1972. Para esse filósofo (1988), as artimanhas da dominação dos corpos na
sociedade Ocidental não se deram apenas em sua forma de repressão-violência, que, por
sua vez, colocavam no cadafalso as pessoas contrariavam as normas jurídicas, morais,
religiosas e civis.

O sexo, para Foucault (1988), não passou somente por essa repressão e pensá-
la dessa forma seria simplificar essa questão, ou seja, colocá-la dentro da percepção
visual da disciplina física do corpo. Mas também e de forma mais intensa a sua
disciplina se dera pela sutileza do discurso, que o tornou presente como proibido e
estimulando, em uma reação inversa ao pensado. Suas imagens exteriores enquanto
ausentes de enunciação tornam-se presentes, em sua busca de proibir o desejo através do
saber que possibilitaria instrumentos de biopoder para controlar e construir o idealizado
por um grupo social.

Dessa forma, esse filósofo relutou em falar do sexo como repressão, pois ele é
expresso continuamente enquanto lembrete, como também é traduzido em discurso
como forma de não incentivo, de colocar o seu lado pernicioso, imoral, doentio, etc.
Essa sutileza do disciplinamento e sua utilização da imagem do colocado como errado
fora eficaz. Essas formas de pregação sobre o sexo foram disseminadas e tornaram-se
complexas, passando da ideia de pecado da carne Cristã à saúde físico-corporal, da
recomendação espiritual ao veredito científico. ParaRicoeur (2013), a construção
cultural da sociedade ocidental, em sua relação de confessar-se ao Deus cristão, estava
marcada pela consciência de culpa, pela constituição destas “camadas de experiências”:
a culpabilidade, relação do homem com Deus; a mancha, como nódoa que tem origem
fora do homem; o pecado, a falta. Para ele,

1
O Jornal A Açãofoi criado em 1939 pela diocese do Crato. Além do projeto de civilidade cristã, esse
periódico, almejava lutar contra as ideias comunistas e divulgar as defendidas pela Encíclica Rerum
Novarum. Essa, por sua vez, reforçava o direito a propriedade e o modelo de família monogâmica e
patriarcal. Nele, além das manchetes relativas à religião Católica e as divulgações pertinentes a Diocese
do Crato, temos colunas de matérias feitas sobre a vida ordinária do Cariri, os acontecimentos que
marcaram as cidades dessa região e da Diocese.

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Culpabilidade, pecado, mancha constituem dessa maneira uma diversidade


primitiva na experiência: logo, o sentimento não é só cego na medida em que
é emocional, ele é também equivoco, carregado de significações múltiplas; é
por isso que requer uma vez mais a linguagem, para elucidar as crises
subterrâneas da consciência de culpa. (2013, p.24).

Propomos aqui pensar o corpo. Concordamos, primeiramente, que o sexo e o


corpo são ligados em uma correlação. Se a linguagem construiu mecanismo de
introjeção, (re) construção e significação do sentimento de culpabilidade, essa mesma
linguagem, em sua forma discursivo-imagética, construiu imagens exóticas sobre o
sexo, um mercado da exposição do corpo entregue aos desejos naturais, animalizando-o
e mercandalizado enquanto busca de prazer momentâneo e fugaz na escuridão dos
guetos.

Os espaços de subjetividade movem o modo de estar desse corpo com o outro,


disciplina o seu desejo de toque e suas performances amorosas em sua busca de
orgasmos múltiplos dos órgãos, de fantasias, desejos de transgredir as imposições nas
relações sexuais e de sexualidade colocadas fora dos enquadramentos institucionais
vigentes. Os discursos construtores de dispositivos de disciplinamento do corpo, por sua
vez, estão bricolados pela imagem do pecado (religioso), de insalubridade (médico) e
anormalidade (psiquiátrico). Para Foucault, o sexo fora colocado em discurso a partir do
século XVII, precisamente com o fortalecimento do modelo de Direção Espiritual
criado pela Igreja. Nessa etapa, não apenas a enunciação do pecado seria necessária,
mas o confessante teria que contar ao confessor os mínimos detalhes do acontecido,
construir uma trama de sentido, gestos e encenações. Levando, assim, o confessor a
constituir em sua imaginação o confessado, sentir orgasmos de seu corpo com o
esquentar da desterritorialização de seus órgãos. Nesse momento, também os próprios
corpos de ambos estavam envolvidos nos mesmos prazeres, um rememorando o passado
e o outro experimentando-o através da enunciação do fato.

No século XIX, as pesquisas médicas sobre o sexo postularam uma série de


doenças, anomalias causadas pelo seu excesso, pela sua realização fora dos padrões
ditos higiênicos e necessários para levar a uma procriação sadia. Para ele, “tivemos,
portanto, no decorrer do século XIX, uma generalização do dispositivo de sexualidade,
a partir de um foco hegemônico. Em última análise, ainda que de um modo e com

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instrumentos diferentes, o corpo social inteiro foi dotado de um “copo sexual””. (1988,
p.120).

Pensar os corpos homossexuais é pensar as metamorfoses e as fugas da polícia


do sexo, que para Foucault, seria “regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos
e não pelo rigor de uma proibição” (1988, p.28). Devemos também pensar na correlação
entre o dispositivo de aliança e o dispositivo da sexualidade, na sociedade do século
XX. Para ele, o segundo sustentava o primeiro que o tinha reerguido. Dessa maneira, os
valores dessa sociedade impregnada em sua relação binária, marido e mulher, esposo e
esposa, macho e fêmea, fora constituído enquanto categoria de controle pró-criativo, de
herança e naturalizada como única possibilidade no Ocidente.

Nesse processo ele fora sacralizado pelas influências Cristãs, arraigadas pelos
costumes judaicos e greco-romanos. Nesse panorama histórico de datas não fechadas
mais de um processo descontínuos e cheios de fluxos, firmaram no XIX a ideia de
família burguesa. Essa, por sua vez, fora disciplinada pelos discursos da ciência,
bastante carregada pelas ideias iluministas de progresso, que procuraram definir a
infância e os procedimentos de como construir o homem do futuro, empreenderam
cuidar do corpo da mulher e do homem, de suas relações a dois, em sua vida social e
íntima, e, além disso, daqueles que fugiam a essa regra.

Para Foucault (1988), o corpo no XVII era visto como máquina, no XVIII
como espécie e reforçado enquanto biopoder no XIX. A própria sociedade, nessa época,
era vista como um corpo, um organismo. Por exemplo, até as chamadas ciências sociais
criam dispositivos de disciplina de harmonia dessa ideia da sociedade como organismo,
destacamos o sociólogo Durkheim (2007). Para ele, a fim de ter o equilíbrio em suas
partes, para o seu bom funcionamento era necessário normatizá-la. Ou seja, o corpo
social enquanto totalidade era constituído de microcorpos que possuíam suas
individualidades e desejos, mas ligados pela coletividade, dimensão enfatizada nessa
época. Portanto, segundo Durkheim (2007), se um dos galhos da grande árvore da
sociedade fosse contra as normas e as regras normalizadoras de seu complexo orgânico,
era considerada uma anormalidade deveria ser excluído e cortado antes de contaminar
todo o organismo.

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É essa sutileza do discurso normatizador dito científico que fora construído e


apropriado no XIX para o poder sobre a subjetividade do corpo. Sendo ele, assim,
enunciado enquanto lugar da natureza, da desordem, do caos que deve ser controlado
para o bem da comunidade em que está engajado. É a manutenção do contrato social
(ROUSSEAU, 1973) em vista da prevenção do estado de barbárie(HOBBES, 1997). O
corpo no século XX e XXI está em correlação com o econômico, cultural e social.
Enquanto elemento somático, emana o desejo e as necessidades fisiológicas, enquanto
fincado no mundo e pertencente a uma comunidade humana é disciplinado por suas
regras e valores. Que, por sua vez, são regidos pela ossificação das alianças feitas em
um passado por pessoas que tinham múltiplos interesses.

O corpo padece desse controle, saindo, assim, do autodomínio dos gregos ao


domínio das paixões (maniqueísmo), do domínio da carne dos cristãos à disciplina da
ciência médica, psiquiátrica. Para Foucault, o homem moderno não constituía
expectativas somente para o paraíso, como na Idade Média, ele voltou a pensar sobre
seu estar no mundo, sua dimensão política, isso fora fundamental para a conexão entre a
vida e poder na modernidade. Segundo esse filósofo, “O “direito” à vida, ao corpo, à
saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o “direito”, acima de todas as
opressões ou “alienações”, de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse
“direito” tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a
todos esses novos que fazem parte do direto tradicional da soberania” (1988, p.136).
Enfim, para ele, a partir do XIX, o sexo foi colocado como estopim de embates
políticos. Isso criou a relação entre as disciplinas do corpo e a regulação das
populações:

De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e


distribuição das forças, ajustamentos e economia das energias. Do outro, o
sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que
induz. Insere-se, simultaneamente, nos dois registros; dá lugar a vigilâncias
infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de estrema
meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todos um
micropoder sobre o corpo; mas, também dá margem a medidas maciças, a
estimativas estatísticas, a intervenções que visão todo o corpo social ou
grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do
corpo e à vida da espécie. (1988, p.137).

II

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Intitulamos este artigo de “Aserpente beslicou o falo de adão: silêncio,


disciplina e os orgasmos dos corpos”. Achamo-lo sugestivo por trazer, através de uma
transgressão da narrativa bíblica e a metamorfização de uma personagem dita sagrada e
outra culpada pela queda da graça de Deus e saída do paraíso do homem, o tema da
homossexualidade. Contudo, não colocamos tais personagens em uma relação binária,
de bem e mal, de inferno e Céu, de salvação e condenação. Ela se assenta no desejo do
toque entre ambos, da dor e êxtase que o beliscão da serpente que introjetou seu veneno
em Adão, na excitação que o permitiu sentir as pulsações, através da força do veneno
dela, dos vários órgãos que aos poucos o transformava em um corpo sem
órgãos(DELEUZE, 1995), dos vários sentidos experimentados pelo corpo em seu
metamorfosear-se em outros corpos, em seus vários fluxos e desterritorizações.

Em uma novela de Franz Kafka (1883-1924)2, “A metamorfose”, o


personagem principal da trama, Gregor Samsa, acordou-se metamorfoseado em um
inseto, a princípio não entendia tudo aquilo, não sabia mover seu corpo, repleto de
patas, não sabia os mecanismos de controle de si mesmo, contudo isso proporcionou ver
o mundo de outra forma, seus sentimentos mudaram e sua vida passou a ser outra. O
desprezo dos seus serviram-no para entender a vida e a morte, levaram-no a transgredir
a cômoda situação em que vivia toda a sua família.

Essa estória é importante, nessa reflexão, para pensar que quando Gregor se
metamorfoseou, foi colocado na reclusão social, preso em seu quarto. Sua imagem, para
os demais, causava repúdio, medo e provocava um desequilíbrio dos “fundamentos da
existência em si” (BACKES, 2008, p.09) nos que os observava, em seus padrões de
beleza, de vida, de sonhos etc. Ele, então, é enunciado pelo discurso dos pais e ao
mesmo tempo preso em uma trama de solidão e esquecimento que o levou a morte e a
questionar os valores que acreditava.

Essa metamorfose do corpo está para além das transformações biológicas, está
fincada nos fluxo de desejos e delimitada aos valores da comunidade em que esse corpo
fez parte. Pensar os corpos é ver essa somaticidade de várias maneiras, é usá-la a partir
dos desejos e escolhas, é perceber que sua mutação não se dá apenas no

2
Para Backes, “o realismo de Kafka é mágico, mas sóbrio ao mesmo tempo; seu humor às vezes é
grotesco, outras vezes irônico, mas no fundo sempre carregado de seriedade. Sua prosa é dura, seca e
despojada”. (2008, p.09).

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amadurecimento dos órgãos a fim do processo reprodutivo. Mas enquanto sensibilidade


no contato com outros corpos, com outros artefatos, no prazer de não controlar as
paixões, de viver a subjetividade que nos torna humanos. Ou seja, é pensar que o
racionalismo, defendidos pelo iluminismo e que valorizava apenas uma dimensão
humana, limitando-o, frustrou-se ao ver toda essa ciência e conhecimento sendo
utilizado para destruir os próprios homens (Primeira e Segunda Guerra Mundial). O
homem, segundo Mondin (2001), fora formado por várias dimensões sendo
contemplado, nesse processo de fluxos, do homo racione ao homo ludes, do homo faber
ao homo politicus.

Pensarmos o corpo do homossexual, nessa sociedade, segundo Foucault, que


construiu para si uma ciência da sexualidade, é analisar a demarcação através de
dispositivos dos padrões de sexualidade, as regras matizadas na educação familiar,
reforçadoras das instituições sociais e propagadas pelas sutiliza dos discursos
científicos, jurídicos e religiosos. É pensar em corpos metamoforsedos em outros, é
desconstruir culturalmente o posto em sua naturalização, é desterritorializar identidades
em um fluxo de vivências e experiências subjetivas. As exposições dos corpos gays
fere, assim, a disciplina da construção de uma família monogâmica, pautada pelos
valores patriarcais, fere os padrões do dispositivo de sexualidade que serve como base
ao dispositivo de Aliança.

O corpo dos homossexuais não questiona por si só, eles são expressões de
impacto quando em sua performance de demonstrar outras formas de amar, enquanto
demonstração da diferença dos padrões vigentes, do tocar-se em um ato de carinho
ferindo a relação binária pautada pelo órgão genital e pelas convenções sociais. A
normatização dessas metamorfoses e performances foram e são controladas no século
XX e XXI. Para esse corpo são eleitos os guetos das boates, as festas em que o falo e a
imagem do afeminado são utilizados enquanto instrumento de capitalização, de
consumo e fetiche, mas depois desse uso voltam a serem relegados aos lugares
escondidos dos olhos dessa sociedade patriarcal-heterossexual para seus transes e
orgasmos.

Por exemplo, no Crato, acontece a mais de 50 anos o chamado desfile das


virgens na abertura do carnaval da região do Cariri cearense. Nele, a fantasia e os

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desejos em torno do falo, do toque entre homens, das caricias entre pessoas do sexo
masculino é liberado. Isso acontece com homens ditos viris e “pai de família”. Nesse dia
a metamorfose, é expressa pelas roupas, pela pintura do corpo, pelos trajetos de
purpurina em sua teatralização nas ruas, nas performances, que fortalecem estereótipos,
e simboliza também uma fuga do padrão fixado do modelo de homem imposto pela
sociedade patriarcal masculinizada. O toque das virgens, ao mesmo tempo é uma festa,
onde o brincar e o divertisse, demonstra uma carga de preconceito, sutileza da
disciplina, por exemplo, de que “macho”, no sentido de natureza-biológica, não é
afeminado e as características exposta pelas encenações nas ruas dessa cidade, naquele
dia, são enunciações discursivo-simbólicas de uma identidade marginal, não aceita,
objeto de chacota, de carnaval.

Dessa forma, o corpo dos homossexuais, nesse momento, e em determinados


lugares, são usados enquanto enunciação simbólica do não orientado pelas famílias, já
que a maioria dos que participam são homens casados que se vestem de mulher, se
transformam, sobem no salto e se tocam corporalmente. Esse movimento do corpo, de
assumir uma identidade-subjetividade e depois outra, transforma-se quando através da
linguagem simbólica e discursiva criam enunciações discursivas e imagéticas da
disciplina do corpo. Reforçando, assim, aos seus filhos o que lhe foi passado pelo
dispositivo da aliança e da sexualidade.

Contudo, quando os próprios homossexuais querem ser enunciadores e objeto


de enunciação, quer seja para discutir as questões relativas a sua condição enquanto
cidadão possuidor de direitos, nessa sociedade patriarcal cratense e caririense, evoca-se
o esquecimento dessas pessoas, impõe o silenciamento tanto deles como daqueles que
os apoiam, são expurgados discursivamente a partir dos diagnosticados da ciência
médica e psiquiátrica. São evocados na enunciação para dar a sociedade a visibilidade
da ameaça desse corpo marginal, do corpo mutilado e anormal que quer ter voz. O seu
desejo de enunciar ideias, reivindicar o direito ao corpo, a amar livremente sem
repressão, a ser considerado no corpo social sujeitos que tem sua dignidade e diferentes
formas de amar, sentir e viver o seu corpo, são criticados como anormalidade
educacional e física. Nesse momento os dispositivos que norteiam a vida dessa

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sociedade são revirados, ressiginificados, posto enquanto interventores panópticos da


cidade e a manutenção da salubridade da família monogâmica, patriarcal e católica.

Os homossexuais constituíram seus espaços de sociabilidades nesse apartadei


da subjetividade do corpo, dos lugares em que o toque do amor entre dois homens ou
duas mulheres é repudiado pelos olhares, fuzilados pelos valores ditos de família, por
posições de preconceito carregadas de violência e intolerância, ou o medo de se deixar
levar também pelos desejos que fogem as convenções sociais. Os gays foram vistos
como ameaça a ordem vigente na sociedade cratense e nos discurso de um de seus
principais jornais, A Ação, em 1972:

O homossexualismo constitui uma perversão que se reflete tanto na vida


somática, como anímica. O homossexual apresenta certas características
mentais, sendo a sua atitude social diferente da normal, muitas vezes
determinada por uma reação ao meio. Não se aceita atualmente a concepção
outrora corrente de que esta perversão seja totalmente inata, embora uma
tendência somática realmente influa no comportamento sexual do individuo.
(JORNAL A AÇÃO, ano XXXII, n. 1370, 29 de abril de 1972, p.03).

O lugar social (CERTEAU, 1982) dos produtores dessa matéria do Jornal A


Ação era formado pelas ligações culturais, políticas, acadêmicas, de campo intelectual,
de posições religiosas etc. Pensando como Wittgenstein(1999) que a linguagem
produzida pelos homens, suas formas de comunicar-se e dar sentido ao mundo é
determinado pela cultura, esse sujeito estava reverberando as redes culturais formadoras
de sua possível identidade. Nosso dever é perceber esses jogos de linguagem que o
constitui, é verificar que essa racionalidade está imbuída pela irracional. Os produtores
dessas matérias possuem habitus (BOURDIEU, 2009), escolhas e posições que através
da enunciação do discurso escrito (re) convocam os dispositivos de marginalização e
silenciamento das vozes dos homossexuais no Cariri.

Na matéria “População revoltada contra Congresso de Homossexuais”, a


narrativa dela enfatizava a ideia de que toda a população da cidade não concordaria com
o evento, como se isso fosse manchar a imagem da “princesa do Cariri”, da cidade sede
da Diocese do Crato, símbolo da elite intelectual católica, lugar da formação de seus

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presbíteros e lugar de exemplo do catolicismo para as demais cidades. Nela mostrava a


urgência para o silenciamento desse grupo a fim de manter essas imagens desse espaço
urbano.

Para um estudo do Problema, o Crato não seria a cidade indicada, pois aqui,
como em outras cidades do interior do Nordeste, não dispomos de recursos
técnicos e científicos para um estudo aprofundado do homossexualismo,
visando sua valorização como pessoa humana. O pederasta ou homossexual
merecem os nossos repeito. Eles são vitimas de uma educação falha ou de
defeitos sexuais. As chamadas bonecas devem procurar os grandes centros,
onde há bons psiquiatras [...] O próprio promotor do encontro já foi preso.
Alguns cratenses estão lutando por uma oportunidade que outras pessoas
estão chutando. O Crato precisa, sim, é de mais uma Faculdade, de ampliação
de nosso comércio e de homens que desejem realmente batalhar pelo seu
desenvolvimento (JORNAL A AÇÃO, ano XXXII, n. 1370, 29 de abril de
1972, p.03).

Será que a cidade do Crato não tinha homossexual? Se acreditavam na lógica


da homossexualidade como deficiências educacionais e biológicas, essa cidade seria
perfeita, não padeceria desse problema? O discurso do silenciamento evocou-se e
(re)inventou-se a partir da pedagogia da infância em sua formação formal pela família e
pela escola, enquanto disciplinadora e meio de exterminar os viciosos, e da ciência
médica, em seu ato de prescrever e diagnosticar o são e o enfermo.

Lembramos aqui que não apenas os homossexuais foram relegados ao silêncio,


aos guetos, mas também as ditas “mulheres de vida livre” do Crato foram objetos de
intervenção e ações. Especialmente a prostituição feminina colocada pelos colunistas
desse mesmo jornal como “problema social complexo” devido algumas brechas no
direito que não deixava a intervenção direta nos espaços de sociabilidade dessas
mulheres. Ou seja, se conservava os “cabarés e boites” e “casa de recurso” que atraiam
menores, mas eram os lugares do extravasamento das fantasias sexuais dos homens da
região. Para isso, esses colunistas construíram a necessidade do desejo do saber para
controlar, do anseio pelo mapeamento e estudo das causas para aplicar “as medidas
saneadoras” estipuladas pelo saber, a necessidade do biopoder fora enunciado, nesse
jornal, como forma de disciplinar e afastar do centro da cidade esses “corpos insalubres
e anormais”. Conforme as palavras de um de seus colunistas:

A nossa cidade está repleta, em todos os seus bairros, de casas de


prostituição, cabarés, boite e casas de recursos e, até hoje, que se constate nos
cartórios da comarca, jamais houve qualquer processo contra os que as
mantem, desrespeitando dois códigos e desafiando as autoridades a que

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incumbe reprimir a prática de crimes dessa natureza. (JORNAL A AÇÃO,


ano. XXVI, n.1156, 1966, p.04)

A revolta do redator da matéria fora que o disciplinamento não estava sendo


eficaz, pois esses espaços marginais se espalhavam na cidade, desterritorializando a
zona do meretrício, ou seja, não era apenas o bairro Gesso lugar específico da
prostituição, mas os corpos procuraram os palcos dos territórios demarcados como
salubres, espaços de visibilidade de uma família patriarcal e hetero, dos costumes
cristãos, para fazer suas performances e para atrair sua freguesia. A falta de atitude dos
poderes constituídos dessa cidade em relação a essa reclamação fora o reverso desses
lugares como ambientes de fantasia impregnada nas fantasias falocêntricas, das
lucratividades que esses espaços produziam e das influências político-sociais dos
administradores da “zona do meretrício”. A traição matrimonial era vista como mais
uma prova da virilidade desse homem, de sua experiência com o sexo oposto e suas
preferências sexuais. Esses ambientes então eram importantes para os ritos de iniciação
dos mancebos cratenses que se deleitavam entre as mamas das madonas, por exemplo,
do bairro do Gesso.

Contudo, em relação aos homossexuais a não aceitação vai para além da


disciplina, em uma política de esquecimento da memória da atuação de resistência
dessas pessoas na região. Portanto, apagar que na terra dos machos caririenses o
diferente dessa cultura existia era manter a sua imagem vinculada à tradição e a
masculinidade do homem do sertão. O silenciamento desse diferente não realizado por
atitudes de violências físico-simbólicas feitas aos gays, mas na própria construção
imagético-discursiva do silenciamento, evocando a não existência dessa falha
educacional e nem física nos homens e mulheres da região. A intolerância em relação à
sexualidade do outro em sua visibilidade discursiva provocaria desmobilização e
disciplinamento das famílias que possuíam um caso, em sua polícia de abafamento,
direcionamento para a vida regrada nos valores e dos bons costumes. O não
reconhecimento perante o outro, o medo de tocá-lo em frente dos olhos panópticos
dessa sociedade que invadiu a formação desses jovens, desde sua infância até a fase
adulta, conseguiu construir o habitus da vivência de reclusão e do controle da

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subjetividade do seu corpo, a transgressão a isso provocava escândalos, revoltas,


abandonos e morte físico- social.

Nessa matéria imagens pejorativas e disciplinadores foram colocadas pelo


discurso. Além de afeminado, enfatizaram também a imagem de “bonecas”. Essa ideia
estava contida um diagnóstico médico tanto patológico como biológico, a ciência do
sexo legitimou o olhar direto para o diferente, para as características da fragilidade,
enquanto uma deficiência biológica de falta de virilidade, doença contagiosa e
anormalidade na relação afetiva com uma pessoa do mesmo sexo. Duas imagens foram
inventadas nesse discurso: 1- a construção da ideia da população revoltada com a
possível realização na cidade desse evento, ou seja, a totalização da posição defendida
pelos colunistas; 2- que a mesma iria tornar esses dias do evento um inferno, uma
atitude de intolerância direta da população, uma espécie de cruzadas para expulsar os
doentes para a não contaminação dessa sociedade. Para o colunista, “os mais puritanos
chegam a afirmar que isso é o fim do mundo e advertem. As autoridades devem tomar
providencias contra a poluição das “bichas”” (JORNAL A AÇÃO, ano XXXII, 22 de
abril de 1972, n.1369, p.02).

III

O corpo da homossexualidade se constituiu enquanto transmissor de doenças,


principalmente, na perspectiva moral cristã, e da macula do dispositivo da aliança. A
sexualidade firmada pelos moldes burgueses, nessa região, não poderia ser questionada,
apenas aceita e submetida aos ditames dos administradores de sua manutenção.

A notícia de um possível congresso de homossexuais na cidade, em uma época


que os discursos em torno do gênero, da sexualidade e do corpo estava caminhando
lentamente. Em que os movimentos das minorias fortaleciam categorias de pensar a si
mesmo, estava vendo a diferença dentro da própria diferença. O Cariri fora eleito para o
encontro que procurava realizar esses debates, se essa escolha fora feita era por que o
número de participantes da região e do Crato eram significativas nos eventos estaduais e
nacionais, ou seja, o não-dito emanava do repúdio do não reconhecimento dessa
sociedade.

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Ela (re) organizara, então, a polícia do disciplinamento para tornar essas vozes
marginais que ressoava nos guetos para permanecerem lá, para não excitar contra o
disciplinamento dos seus filhos, para não mostrar o diferente, através do corpo em
fluxo, dos abraços não proibidos, dos orgasmos múltiplos. Será que o ver movimentaria,
nessa sociedade sufocadora, os seus filhos para essa experiência sexual? Será que ela
motivaria a transgressão, a desterritorialização dessa identidade castradora do desejo?

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A LITERATURA DE


AUTOAJUDA: RELAÇÕES DE PODER E AGENCIAMENTO DE
SUBJETIVIDADES

Geilson Fernandes de Oliveira


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
geilson_fernandes@hotmail.com

Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
marciliamendes@uol.com.br

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na contemporaneidade, os ideais da felicidade são a cada dia mais buscados, ao
mesmo tempo em que são também cada vez mais requisitados e convocados. Ao se falar
em felicidade nos tempos correntes, não podemos deixar de lado a sua propagação por
meio do fenômeno denominado por Adorno e Horkheimer como Indústria Cultural. O
termo, utilizado pela primeira vez no capítulo O iluminismo como mitificação das
massas no ensaio Dialética do esclarecimento, publicada em 1947, refere-se, em suma,
a transformação da cultura em mercadoria nas sociedades industriais capitalistas.
A indústria cultural e a cultura de massa1 são fenômenos interligados que juntos
correspondem não mais somente ao desenvolvimento desenfreado dos bens materiais,
mas a um segundo tipo de industrialização, agora a dos espíritos. São fenômenos
culturais que buscam a colonização da subjetividade dos sujeitos, objetivando penetrar
em seus anseios, resolver os seus medos, lidar com as suas insatisfações.


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Membro do Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e
Práticas Sociais, atuando na linha Mídia, Discursos e Tecnologias. Email:
geilson_fernandes@hotmail.com.

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) e do Departamento de
Comunicação Social (DECOM) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Líder do
Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais. Email: marciliamendes@uol.com.br.
1
Ponderações devem ser feitas, vale ressaltar, com relação a denominação “cultura de massas”, pois, a
priori, este termo torna-se limitado e limitador ao conjugar as formas culturais das camadas populares,
possuidoras de diversas nuances e características distintas em um mesmo espaço – o da massa.

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Conseguintemente, não é de se estranhar que logo esta cultura torna-se “[...] o


grande fornecedor dos mitos condutores do lazer, da felicidade, do amor, que nós
podemos compreender o movimento que a impulsiona, não só do real para o imaginário,
mas também do imaginário para o real” (MORIN, 1997, p. 90). Estas são manifestações
culturais que não se efetivaram de um momento para outro, mas considerando-se as
alterações nos modelos de produção cultural instauradas por condições de possibilidade
da própria vida social e do mercado.
Uma visão analítica deve ser posta sobre os conteúdos da dita cultura de massa,
tendo-se em vista principalmente o seu alcance por meio das novas formas culturais e de
subjetivação que propõe. Uma mostra importante disso pode ser evidenciada com
relação à temática da felicidade, pois, através destes fenômenos, este bem estar
subjetivo, assim como a sua busca, são incorporados e ganham novos contornos, como
bem apontam Morin (1997), Schoch (2011) e McMahon (2006).
É sabido que os sentidos da felicidade vão variar de acordo com os períodos
históricos a que pertencem. Não diferente, nos tempos modernos contemporâneos a
cultura de massa delineia uma representação complexa e particular da felicidade,
utilizando estratégias das mais diversas. Em eixo contrário, a tristeza, dores e angústias
são evitadas nestes produtos. Raramente, quando mostrados, são apresentados como
passageiras e componente da caminhada rumo à felicidade, parte necessária para o
happy end (MORIN, 1997).
Neste contexto, a literatura de autoajuda mostra-se como um dos principais
produtos da indústria cultural no que concerne aos aconselhamentos de como lidar com
os vários e distintos problemas do cotidiano, ofertando medidas e fórmulas de superação
que podem levar o sujeito ao caminho da felicidade e, mais do que isso, a sua
consecução. É um produto cultural de grande sucesso no contemporâneo, com grande
vendagem e posterior consumo e assimilação por parte dos sujeitos. É sobre este
fenômeno que tratamos no presente texto, buscando percebê-lo a partir de um olhar
foucaultiano no que se refere as relações de poder inerentes a este discurso prescritivo,
bem como as formas de subjetividades que propõem e agenciam.

Literatura de autoajuda e discursos da felicidade: uma breve contextualização

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“O céu ajuda a quem se ajuda”


(SMILES,1859).

O tipo de literatura que deu origem ao gênero autoajuda formou-se a partir de


transformação sociais, históricas e culturais as quais possibilitaram mudanças na
percepção sobre o poder da mente, decorrente especialmente pela difusão da cultura de
massa, sugere Rüdiger (1996). O fenômeno literário teve como percussor expressivo um
livro homônimo ao título do gênero: Self-Help (autoajuda), do médico e publicista
Samuel Smiles em 1859. A obra consiste em uma série de palestras proferidas pelo
autor para um grupo de trabalhadores que tinham aprendido a ler e a escrever, além de
estudar outras disciplinas, de forma autônoma. A partir de Self-Help, Smiles buscava
mostrar aos leitores, o quanto nós podemos ajudar a nós mesmos e, principalmente, o
quanto “a felicidade e o bem estar individuais do decurso da vida dependem
principalmente e necessariamente de nós” (SMILES, 1859 apud RÜDIGER, 1996, p.
33).
Com proposta inovadora, esta é a obra de maior sucesso de Smiles, que também
produziu outros livros com temáticas semelhantes2. Self-Help já foi publicado em várias
línguas e é apontado como a obra que inaugura uma nova lógica, transmitindo os
princípios de que qualquer pessoa deveria e poderia buscar por seus objetivos, fazendo
uso da perseverança e dos seus esforços individuais, abandonando qualquer tipo de
amparo ofertado pelas culturas precedentes.
Como parte da lógica da indústria cultural, a autoajuda é vista como uma das
instâncias propagadoras da felicidade, estado que torna-se, ele mesmo, uma indústria em
crescimento. Schoch (2011, p. 11) demonstra a extensão dessa indústria em valores
monetários, apontando que “os livros de autoajuda geram vendas de US$1 bilhão
anualmente [...]”. Nesse cenário, o Brasil é conforme Tucherman (2012) o segundo
maior público consumidor do gênero. Afunilando essa discussão, Freire Filho (2010)
nos mostra que de acordo com dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL), consultados
por ele em 2010, o seguimento da literatura de autoajuda cresceu, em nosso país, de 5%
a 10% ao ano, entre 1996 e 2006. Conforme esses dados, no ano de 2006, cerca de 600

2
O poder da vontade (1865), O Caráter (1875) e O dever (1880).

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novos livros do gênero foram lançados, compreendendo inclusive obras direcionadas ao


público infantil3.
Ainda, segundo pesquisa realizada pela Associação Nacional de Livrarias (ANL,
2012), os livros desse segmento apresentam-se na 4ª posição da lista de classificação
dos gêneros mais comercializados no Brasil, demonstrando, além disso, que de 2009
para 2012, a comercialização dessas publicações tiveram 23% de crescimento,
percentual ainda mais expressivo em relação aos apresentados por Freire Filho em 2010.
Para termos uma noção da popularidade e sucesso do gênero autoajuda, desde
1983, o New York Times criou estrategicamente uma forma de divulgar a lista dos livros
mais vendidos, criando uma nova categoria – “Advice” (conselho) –, esta sessão tornou-
se especial para os livros de aconselhamentos. A necessidade de sua criação mostrou-se
importante e justificável, pois, como afirma Tucherman (2012, p. 137), “se isso não
fosse feito, nunca mais nenhum livro de não ficção poderia aparecer como sendo um
dos mais vendidos”. Esta mesma estratégia foi tomada como modelo pela Revista Veja a
partir de 1989 e conseguintemente por muitas outras empresas.
A renúncia não é palavra recorrente nos ideais de vida da “civilização do desejo”
(LIPOVETSKY, 2007), a ordem é o principio do gozo, da felicidade. A liberação do
homem de todo e qualquer passado de carências, sofrimentos e inibição. Neste contexto,
a autoajuda, com o seu discurso prescritivo, intitula-se como um dos dispositivos que
possuem as fórmulas para esse bem estar, agenciando muitos tipos de aconselhamentos.
O gênero fornece esquemas e/ou etapas a serem cumpridas, atestando que através do seu
exercício, levarão o sujeito ao patamar almejado.
Do sucesso na carreira profissional ao êxito amoroso, as obras colocam em cena
o discurso de que não existe mais nenhum domínio da existência humana que não possa
ser aprimorado. Assim, fornecem a uma massa de leitores ávidos novas estratégias e
técnicas de fácil compreensão, objetivando maximizar a sua existência subjetiva. A
felicidade torna-se então um imperativo (BIRMAN, 2010), e surge uma indústria do
bem-estar e do aprimoramento pessoal, originando o que Freire Filho (2010) denomina
de técnicas da felicidade. Para esse autor, vivemos na era da reprodutibilidade científica

3
O livro Agapinho: ágape para crianças, do Padre Marcelo Rossi (Editora Globo, 2012) é um exemplo
de títulos de autoajuda voltados para o público infantil.

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da felicidade, em que existe um verdadeiro império dos manuais de autoajuda, nos quais
a manifestação da certeza é um dos traços semânticos.
A literatura do gênero é formada por manuais e textos práticos, os quais indicam
métodos e formas de bem viver, obter sucesso material – a riqueza, trabalho, etc. –, e
sucesso pessoal – a felicidade, o emagrecimento, o encontro de parceiros amorosos,
superação da timidez, etc. Também podem ser encontrados neste gênero relatos
pessoais, com histórias de vida de sucesso – material e pessoal – apresentando as
maneiras utilizadas para superar as adversidades e torna-se uma “nova pessoa”
(RÜDIGER, 1996). Nas obras, o pressuposto básico é a noção de que o bem estar
subjetivo será alcançado através de um “condicionamento positivo” e disciplinamento
pessoal.
São livros que atendem as demandas latentes e obtém, por consequência, grande
sucesso de público, tendo-se em vista o seu “pedagogismo”, isto é, mensagens que
visam adequar o sujeito leitor aos discursos dominantes, tranquilizá-los por meio dos
sentidos produzidos. Os títulos da literatura de massa, e aqui enquadramos a autoajuda,
são manifestações de um discurso que é resultante das tendências e exigências geradas
pela sociedade moderna. Uma prova disto, defende Sodré (1988) é que a indústria
editorial responsável pelas publicações desse tipo investem continuamente neste nicho
já há algum tempo, sem ainda demonstrar ter sofrido prejuízos.
Basta olharmos a quantidade de títulos lançados para repararmos esta questão.
No Brasil, o autor mais lido do país nos últimos dez anos, segundo o Jornal Folha de
São Paulo, por exemplo, foi Augusto Cury, escritor conhecido por suas inúmeras obras
de aprimoramento pessoal. Seus livros já foram publicados em mais de 60 países, sendo
traduzido para diversos idiomas e vendendo mais de 16 milhões de exemplares somente
no Brasil.
Das muitas obras do autor, Treinando a emoção para ser feliz (2007) obtive
grande sucesso e repercussão no seu período de lançamento, ficando por algum tempo
entre as obras mais vendidas do país, sendo ainda nos dias de hoje largamente
comercializadas e consumidas, em seus mais diversos formatos.

Literatura de autoajuda: relações de poder e agenciamento de subjetividades

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A questão da analítica do poder é um dos pilares centrais das teses foucaultianas,


principalmente durante a fase genealógica. A linha de pensamento desenvolvida por
Foucault relacionada ao poder proporciona rupturas epistemológicas nos modos
vigentes de se pensar esse conceito. Até então, as percepções discutidas tratavam o
poder como sendo centralizado pelo estado e/ou pelas formas jurídicas, de modo que
um possuiria o poder, enquanto outros seriam despossuídos de poder, isto é, dominados
ou, como propunha as teses Althusserianas, o poder atuaria de forma vertical, de cima
pra baixo.
As investigações elaboradas pelo filósofo francês (estudos sobre a formação
histórica das sociedades capitalistas, sobre a instituição carcerária e o dispositivo da
sexualidade) colocam em cena principalmente a seguinte inovação teórica para se
refletir sobre o poder: a rejeição à identificação entre poder e aparelho de estado,
considerando mais do que a existência de um poder dominante, uma rede de poderes
moleculares que circulam e se expandem em toda o corpo social.
Enquanto manifestação do social e parte dessa rede, a literatura de autoajuda
evidencia em muitos momentos as relações de poder, principalmente pelas noções de
treinamentos, técnicas de aprimoramento de si, as quais revelam um sentido de
dependência e baixa da autonomia por parte dos sujeitos para lidar com os seus próprios
problemas. Treinar as emoções para superar aos outros e principalmente a si mesmo
para que assim possa atingir altas performances e ser feliz, esta é a lógica proposta pelos
discursos de autoajuda, de forma específica, no livro Treinando a emoção para ser feliz
(CURY, 2007).
A começar pelo título, são evidenciados fatores que podem ser visualizados
durante a leitura desta obras: a pressuposição de um treinamento pessoal e subjetivo que
proporcionará, conforme é assegurado, a superação e o encontro com a felicidade. Em
Treinando a emoção para ser feliz (CURY, 2007), o uso da palavra treinar no gerúndio
denota para o verbete um sentido de ação. Neste sentido, este treinamento é colocado
como algo que deve dar-se constantemente, pois somente deste modo, os benefícios
advindos a partir dele poderão ser vitalícios. Denota, assim, um sentido de
disciplinamento e controle das ações dos sujeitos leitores.

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A mecânica do poder, mais do que objetivar somente a coerção4, visa produzir o


sujeito, discipliná-lo, normalizá-lo, dá-lhe uma docilidade-utilidade. Nesta conjuntura, o
corpo é o principal alvo do poder, tendo que ser disciplinado e adestrado com o objetivo
de tornar-se cada vez mais útil e dócil, em outras palavras, produtivo. Ser mais feliz
conforme os preceitos da autoajuda, em certo sentido é ser também mais produtivo,
possuir uma maior docilidade-utilidade. Este fato pode ser exemplificado no âmbito do
trabalho, lugar que tem sido palco de inúmeros discursos de motivação,
empreendimento e liderança objetivando a satisfação dos empregados em seus
trabalhos. Motivados e felizes, os sujeitos tendem a ser mais produtivos, em detrimento
daqueles que não se sentem bem no trabalho, como é apontado por Turmina (2010),
Sewaibricker (2012), Bakker (2012) entre outros estudiosos.
O adestramento do corpo, das ações e dos pensamentos são trabalhados a todo
tempo pela literatura de autoajuda, a começar pelos próprios sumários. Em Treinando a
emoção para ser feliz (2007) todos os títulos dos capítulos definem que os sujeitos são
vencedores principalmente pelo fato de existir, de ter demonstrado força e superação no
momento mais difícil – o de corrida pela vida, metaforizando de forma direta e
apaziguadora que haviam milhões de espermatozoides, e que justamente o leitor foi o
vencedor.
Também é interessante notarmos a supervalorização destinada para os leitores,
sempre os colocando em posições que possam lembrar ou relembrar os seus êxitos e
vitórias. No entanto, ao mesmo tempo em que há esta supervalorização, através do uso
de superlativos e de adjetivos positivos, o que pode ser considerada como uma
estratégia, logo se coloca a necessidade da superação. Emerge então o sentido de que o
sujeito por si só já é vitorioso, mas somente isto já não basta, é preciso superar-se, é
preciso treinar as suas emoções e ser cada vez mais feliz.
Cury nos sugere com o seu saber a necessidade urgente para o treinamento da
felicidade, que pode ser obtido pela leitura de sua obra. A superação e a felicidade são
postos como imperativos, e instituem-se assim relações de poder-saber e saber-poder,
uma vez que, como apregoam tais discursos, se o sujeito obtiver tais conhecimentos
para o treinamento proposto, terá um tipo de poder sobre si mesmo e os seus

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Como outrora Foucault analisou em Vigiar e Punir (2003)

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rendimentos, sejam materiais ou subjetivos. O sujeito e as suas emoções passam a ser o


objeto das relações de poder, constituindo-se uma verdadeira economia.
Há, no entanto, aqueles que não conseguem atender às ordens estabelecidas
pelas formas de controle e disciplina e são interditados ou excluídos pela mecânica do
poder, são vistos como anormais, improdutivos, mas não deixam de ser individualizados
por meio das relações de poder. A análise do exercício do poder sobre a vida
caracteriza-se como um deslocamento nas análises precedentes sobre o poder
empreendidas por Michel Foucault. O deslocamento se dá com a passagem da análise
das normas disciplinares e dos exercícios de poder para a análise do exercício do poder
aos procedimentos de governamentalidade. Considerada como um conjunto de
procedimentos que visam dirigir a conduta dos sujeitos, a governamentalidade é
apresentada por Foucault de dois modos: inicialmente como poder pastoral de governo e
posteriormente como razão do estado.
De origem religiosa, o poder pastoral foi inexistente entre os gregos e os
romanos, afirma Foucault. Somente com o cristianismo que passa a se desenvolver
durante a Idade Média. Em sua característica principal, nota-se o projeto de dirigir os
homens em todos os detalhes de sua vida, desde o seu nascimento até a morte. A
intenção era induzir um comportamento que pudesse levar os homens à salvação. O
cristianismo e os seus pressupostos favoreceram as perspectivas do poder pastoral,
colocando os homens como partes de um rebanho que deveria ser obediente, enquanto
outros seriam os pastores e responsáveis por indicar o caminho a ser seguido. Ao pastor,
cabia o encargo de todas as vidas do rebanho, que deveriam demonstrar total
obediência.
O poder pastoral não era exercido sobre um território nem sobre um indivíduo
em específico, mas em um grupo múltiplo. As técnicas de confissão são partes que
compõem este tipo de poder, pois, ao se desviarem do poder pastoral, os sujeitos do
rebanho tinham a chance do exame de consciência, de renovarem a sua condição e
direção espiritual. Machado (2013) indica que o outro tipo de gestão e
governamentalidade dos sujeitos abordado por Foucault é referente a arte de governar
desenvolvida pelo estado.
Com a formação dos estados – nações percebe-se a necessidade de uma arte de
governar e gerir a vida dos sujeitos. Com isto emerge a gênese do Estado moderno

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através do desenvolvimento das práticas de governo, as quais têm como objetivo a


população. Assim, vão se desenvolvendo, como formas de governamentalidade, saberes
e dispositivos de segurança, mecanismos básicos para gerir a vida dos homens em
sociedade.
A autoajuda pode ser inserida tanto no quadro dos modos de
governamentalidades pastorais quanto nas desenvolvidas pelo estado. Ultrapassando as
ideias de disciplinamento, adestramento e controle, essa literatura visa gerir de forma
completa a vida dos sujeitos, governá-los minuciosamente, com regras, treinamentos e
técnicas. De acordo com Augusto Cury (2007) o atendimento a essas regras pode ser
feito do seguinte modo:
Treinar a emoção é desenvolver as funções mais importantes da inteligência,
tais como: aprender a gerenciar os pensamentos, proteger a emoção nos
focos de tensão, pensar antes de reagir, se colocar no lugar dos outros,
perseguir os sonhos, valorizar o espetáculo da vida (CURY, 2007a, p. 11).

Conforme é colocado, treinar as emoções é algo possível e que está ao alcance


de todos. Além disso, este treinamento pode ser desenvolvido em todas as instâncias da
vida, sendo pressuposto que ele poderá proporcionar resultados cada vez mais positivos
e satisfatórios. A concepção de treinamento coloca os leitores em um quadro sem
saídas, no sentido de que ou os sujeitos são capazes de gerenciar as suas emoções, ou as
emoções os controlarão, sendo esta última percepção explicitada como algo negativo ou
doentio.
Em outro momento, o autor afirma que os motivos da solidão, da ansiedade e da
baixa autoestima dos indivíduos podem ser explicados pelo não treinamento das
emoções (CURY, 2007, p. 11). Assim, notamos um sentido de governamentalidade, de
modo que a partir das propostas dos enunciados, pretende-se gerenciar e dar uma
utilidade funcional não só para as ações, mas também para a subjetividade dos sujeitos.
A felicidade não é somente sugerida, mas imposta sobre regras, sistemas de
interdição e exclusão. Isso é referenciado por Freire Filho (2010), corroborando com o
pensamento de que o imaginário popular e científico nos propõe projetos de “engenharia
individual” (p. 13), devendo ser administrado por nós mesmos em conformidade aos
discursos dos muitos peritos disponíveis para orientar esse processo.
A imposição de pontos para treinamento e disciplina nos direciona a concepção
de processo civilizador, abordado por Norbert Elias (1994), ao descrever e discutir

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como se deram a formação dos costumes para a constituição do que hoje se denomina
como civilização. Elias (1994) também promove reflexões sobre os modos de controle
dos sentimentos e emoções ao longo da história, defendendo que as formas hoje
existentes são resultantes de um processo civilizatório, e não algo natural do homem. A
partir da ótica de Elias (1994), podemos dizer que estas formas civilizatórias das
emoções não cessaram, tendo em vista a partir das descontinuidades o surgimento de
novos modos de controle, entre os quais notamos agora os discursos da autoajuda.
A partir da perspectiva de civilização das emoções emerge mais uma vez o
sentido da diferença entre os que “civilizam” as suas emoções e os que não a civilizam,
ficando estes últimos em um lugar tido como fora da ordem. Ainda em relação a ideia
de processo civilizatório de Elias (1994), Giddens compara em A transformação da
intimidade (1993, p. 75) os manuais de autoajuda aos manuais medievais de conduta
analisados por Elias, propondo indiretamente a possibilidade do fenômeno da autoajuda
poder ser parte de um novo processo civilizador.
No que concerne de modo particular à governamentalidade, é uma preocupação
expressa por Foucault que para poder governar os outros e as suas vidas, faz-se
necessário primeiro saber governar a si mesmo. Este aspecto se envolve com a ética dos
sujeitos, as suas relações de si para consigo que serão melhor trabalhadas em tópico
posterior. Com a difusão dos programas e tecnologias da felicidade, Binkley (2010)
percebe que nos governos neoliberais, a felicidade é de responsabilidade total dos
indivíduos, cabendo a este o governo de si mesmo a fim de aumentar as suas chances de
felicidade. O sujeito é tornado um empreendimento, passível de muitos
aperfeiçoamentos realizados por ele mesmo em prol do seu desenvolvimento e melhor
desempenho. Um autogoverno imerso em outras governamentalidades.
Tanto no poder pastoral quanto nas artes de governar desenvolvidas pelo estado,
são perceptíveis como a vida em todas as suas instâncias passa a ser o principal meio e
objeto das relações de poder. As relações de poder ganham dimensões outras,
demarcadas pelas suas instâncias histórico-sociais de produção. Atrelada à perspectiva
de governamentalidade, saem dos territórios de entrincheiramento os biopoderes, em um
cenário em que o local e o global confundem-se e ganham a cada dia novas dimensões.
A vida e a morte tornam-se questões inerentes à concepção de biopoder, tipo de
poder que visa o gerenciamento da vida e do corpo social como um todo. Sobre o

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biopoder, Machado destaca: “Questões como as do nascimento e da mortalidade, do


nível de vida e da duração da vida estão ligadas não apenas a um poder disciplinar, mas
a um tipo de poder que se exerce no âmbito da espécie, da população, com o objetivo de
gerir a vida do corpo social” (MACHADO, 2013, p. 29).
Fernandes (2012) explicita que de certo modo, todas as formas de poder são
perpassadas pelo biopoder, tipo de poder que objetiva o gerenciamento da própria vida.
“O poder organiza-se em torno da vida; já, portanto, uma biopolítica investida em
biopoderes” (FERNANDES, 2012, p. 52). Segundo o autor, quer seja o poder
disciplinar ou da governamentalidade, o biopoder os atravessa e constitui, assim como
ocorre com os sujeitos e as suas vidas.
Estrategicamente, é proposto por Cury (2007) que o treinamento para a emoção,
visando a superação e a felicidade deve ser repassado de pais para filhos, ou melhor
ainda, suas orientações e obras devem ser tomadas como parte do currículo escolar.
Com isto, percebe-se uma proposta de internalização dos pressupostos e o
modelamento dos sujeitos desde cedo, objetivando resultados cada vez mais favoráveis.
São sugestões da política de governamentalidade da escola e dos pais em relação aos
alunos e filhos, permeado pela sistemática do biopoder. Não é uma benévola intenção
de favorecer e reforçar a felicidade e o bem estar dos sujeitos, mas uma forma de
inserir-lhes em “uma lógica de governamentalidade” (BINKLEY, 2010). Com esta
proposta, os biopoderes passam a ter cada vez mais como objetivos o próprio sujeito, o
ser humano por completo, objetivando disciplinarizá-los, governá-los e civilizá-los, de
modo que a partir disso, se tornarão mais úteis e dóceis. Nota-se também a relação
estabelecida entre a constante superação e felicidade com a qualidade de vida, propondo
que a ausência destes aspectos revelam uma vida não saudável.
Hoje, não somente as campanhas contra a mortalidade, relativas ao casamento,
doenças e vacinações são consideradas tipos expressivos de políticas pautadas pelos
biopoderes. O biopoder assume em nossos dias diferentes formas e estratégias para
intervir na existência humana, como ocorre com a literatura de autoajuda, onde os
indivíduos devem trabalhar a si mesmos através de conteúdos práticos e técnicas da
felicidade.
Todavia, os biopoderes não deixam de operar enquanto processo de
normalização e disciplinarização, aspectos referentes ao poder disciplinar, ampliando-

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os. O disciplinamento se faz não mais somente de forma individual, mas pelo
gerenciamento de grupos, sociedades inteiras, direcionando-as segundo as condutas
colocadas pela governamentalidade.
Tais condutas produzem aquilo que Prado (2013) denomina como convocações
biopolíticas. Conforme o autor, baseando-se nos preceitos foucaultianos da biopolítica,
as convocações se caracterizam pela correspondência à uma demanda latente, induzindo
a sua expressão por meio de um querer cultural. Desta forma, sendo a felicidade um
desejo inerente ao indivíduo, por meio de estratégias do mercado, esta passa a ser cada
vez mais convocada sob o signo de produtos – dos quais destacamos a autoajuda,
despertando um sentido de necessidade, como se o mundo e a própria vida já não
parecesse ser o que era, incitando novas formas de viver, ou seja, somos convocados
biopoliticamente a sermos felizes e a sociedade e os próprios sujeitos passam a se
constituir perpassados por este aspecto, e a literatura de autoajuda é somente uma das
inúmeras ferramentas disponíveis.

Os programas de autoajuda partem dessa convocação primeira à


transformação de si. Variam conforme a necessidade dos públicos
segmentados. Essa “necessidade” nem sempre vem do mundo cultural para
ser atendida pelos tecnólogos de discursos ou analistas simbólicos, que
concebem os formatos e programas de autoajuda. Por vezes essa necessidade
está latente até ser descoberta pelos tecnólogos e, uma vez descoberta e
lançada num formato, seja televisivo, seja ciberespacial, ela parece inevitável,
ou seja, algo que teria de ser tido despertado de modo ou outro, pois, a partir
dela, o mundo já não parece ser o que era (PRADO, 2013, p. 12).

As convocações biopolíticas agem no sentido de requisitar os sujeitos para seus


programas, projetos e as suas técnicas. Uma vez convocados, esses aspectos deverão ser
experenciados, tornados visíveis, semelhantemente a uma expressão obrigatória dos
sentimentos, como propõe Mauss (1921) ao analisar os ritos funerários de sociedades
tidas como primitivas na Austrália. Suas reflexões indicaram o emprego obrigatório e
moral da expressão dos sentimentos em relação ao luto. O regime da felicidade, afirma
Prado (2013) é também o regime do visível, das grandes performances. “Ser o melhor,
destacar-se, superar-se: eis a sociedade democrática “convertida” ao culto do
desempenho, “vetor de um desenvolvimento pessoal de massa”” (LIPOVETSKY, 2007,
p. 264).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A literatura de autoajuda tem-se mostrado na contemporaneidade como um dos


fenômenos de maior expressão cultural e social. Sendo resultante de condições
históricas e sociais que possibilitaram o seu surgimento, assim como o seu sucesso,
percebemos no gênero relações de poder que visam lidar diretamente com as
subjetividades dos seus sujeitos leitores.
Com isto, tais discursos incitam o agenciamento das subjetividades. Afirmam
que se o sujeito não está satisfeito consigo mesmo, não importa, ele pode encontrar por
meio da leitura do livro a verdadeira satisfação e felicidade.
À guisa de conclusão, identificam-se, ressaltamos, a promoção de modos de ser,
estar e viver. É como se as experiências e vivências dos sujeitos já não bastassem, sendo
necessário a propagação de modos de vida cada vez mais felizes, bem como a
pressuposição de que as subjetividades dos sujeitos leitores precisam modificar-se,
adaptar-se aos discursos e regimes propostos.

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SERVIDÃO E PODER: O PROBLEMA DO CORPO EM


BENEDICTUS DE SPINOZA E MICHEL FOUCAULT NAS OBRAS
ÉTICA E VIGIAR E PUNIR

Henrique Lima da Silva


Universidade Estadual do Ceará-UECE

Adriele da Costa Silva


Universidade Estadual do Ceará-UECE

RESUMO
Benedictus de Spinoza (1632/1677) em sua obra, a Ética (Ethica) irá demonstrar a
servidão compreendida no campo ético efetivo dos indivíduos, onde a incapacidade de
regular e refrear os afetos influenciará na variação da potência de agir dos indivíduos,
na relação psicofísica corpo/mente, mas não havendo uma relação hierárquica. Michel
Foucault (1926/1984), por sua vez, em sua obra Vigiar e Punir: Nascimento da
prisão (Surveiller et Punir: Naissance de la prison) analisará as diferentes formas de
punições sobre o corpo, pois o corpo, como bem ressalta o autor, está "mergulhado num
campo político". Com o intuito de investigar de que maneira os dois pensadores
entendem como se dar a sujeição dos indivíduos por intermédio do corpo, o presente
artigo tem como objetivo expor a concepção de servidão e poder nos respectivos
autores. Para isso, tomaremos como referencias principais as obras: Ética e Vigiar
e Punir. Sendo assim podemos concluir que: ambos os pensadores ao pensar a sujeição
dos indivíduos buscaram compreender de que modo o corpo está configurado. Spinoza
ao pôr a mente e corpo de uma forma não hierárquica entende que quanto mais um
corpo é capaz de agir sobre um número determinado de coisas mais sua mente é capaz
de pensar, e assim o homem é mais ativo em suas ações. Foucault irá perceber que
sujeição dos indivíduos será compreendida por meio dos disciplinamentos dos corpos,
isto é, nas formas de punição e corretivos.

PALAVRAS CHAVES: Spinoza. Foucault.Poder.

Na filosofia de Spinoza é bastante conhecido que Deus é uma substância no qual


é constituído por infinitos atributos cada um dos quais exprimem sua essência eterna e
infinita, que ele é livre, pois agi segundo a sua necessidade sem ser constrangido por
nada é nem por ninguém, de modo que tudo é determinado por ele. Logo Deus é a
totalidade do real, para não dizer, a própria realidade. E assim, se Deus é a realidade não

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há nada fora dele tudo é Deus, isto é, entendido como uma infinidade de expressões
dele. Ora esse plano da substância é o da imanência, que nada escapa. De modo que tal
plano tem sua influência nos diversos campos na filosofia de Spinoza. E assim veremos
que esse plano da imanência tem seus resultados na sua concepção de
mente/corpo, sobretudo, em sua importância na compreensão da servidão humana.

O corpo como expressão finita de Deus.

O corpo é um modo finito do atributo extensão, que constitui a essência da


substância. Tal modo é o objeto da ideia da mente humana. Mente e corpo, em seu
exercício, não mantem uma relação hierárquica, mas são expressão da mesma realidade,
que é única, de maneira definida e determinada. São dois modos que manifestam a
substância com suas próprias devidas propriedades, a mente enquanto coisa pensante
formadora de ideias parte do Atributo Pensamento e o corpo enquanto coisa extensa
parte do Atributo Extensão, mas o que é importante ressaltar aqui é que uma não é causa
da outra.

Assim podemos conceber Spinoza como um pensador contracorrente pois se


distingue da tradição filosófica no qual concebia a mente como superior ao corpo, onde
tínhamos a realização do exercício da ética na superioridade de mente sobre o corpo.

Na EII (A natureza e a origem da mente) P13, temos uma proposição


demasiadamente extensiva, como se fosse uma espécie de Tratado sobre os corpos, onde
será abordada a relação dos corpos em sua gênese. Por conseguinte temos: EII P13 “O
objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da
extensão em ato, e nem uma outra coisa”Ora, para podermos compreender a relação
mente e corpo teremos que conhecer a natureza do objeto da ideia da mente, como já
sabemos que a ideia é o conceito que a mente forma porque é uma coisa pensante (EII
Def3). Esse objeto é o próprio corpo humano. Spinoza ainda ressalta que uma ideia é
superior à outra e contem mais realidade à medida que o objeto de uma é superior à
outra, no nosso caso como veremos a mente será superior à outra por ter o corpo, uma
coisa altamente complexa composta por várias partes, como seu objeto.

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Sendo assim, o spinozismo é uma filosofia que nos incentiva a busca da


compreensão da nossa relação com a totalidade que também é extensão. Pois, cada vez
que compreendermos a natureza do corpo, mas se aproximaremos de sua relação
enquanto realidade extensiva na totalidade do Universo.

Quanto mais um corpo é capaz, em comparação com os outros corpos de agir


simultaneamente sobre um número maior de coisa ou padecer
simultaneamente de um número maior de coisa, tanto mais sua mente é
capaz, em comparação com outros, de perceber, simultaneamente um número
maior de coisa.1

Só podemos Agir e padecer sobre um número maior de coisas na medida em que


descobrirmos a capacidade cada vez mais do nosso corpo de agir sobre os outros corpos
consequentemente a nossa mente percebera um número maior de coisa. Assim agirá
sobre as coisas.

Com efeito, os corpos não se diferenciam pela substância, mas sim pela relação
de movimento e repouso, no entanto, como se dá essa relação entre os corpos? O
movimento e o repouso ocorrem nos encontros dos corpos que se determinam entre si
ou ao movimento ou ao repouso, e o resultado desses encontros são as afecções que
envolvem tanto a natureza do corpo afetado quanto a natureza do corpo que afeta.

[...] Por exemplo, A está em repouso, e não leva em conta outro corpo que
esteja em movimento, nada pode disser do corpo, a não ser que estava em
repouso. Se ocorrer, posteriormente, que o corpo A se ponha em movimento,
isso certamente não pode ter si dado porque ele estava em repouso: dessa
última situação, com efeito, nada poderia se seguir se não a permanência em
repouso do corpo A. Se, ao contrário, supões que o corpo A se move, sempre
que levo em conta apena A, nada poderemos afirmar sobre ele, a não ser que
se move...2

Afetos:variação da potência de agir.

Esses afetos têm seu papel no spinozismo naquilo que podemos chamar de ética
dos afetos que constitui na variação da potência da ação humana em virtude nos afetos
de alegria e de tristeza, sobretudo na parte III da Ethica. Para tanto, iniciaremos pelas
primeiras definições a de causa adequada e inadequada: Def1: Chamo causa adequada
aquela que cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma. Chamo

1
SPINOZA, Benedictus de. Ethica. 2007, p. 99.
2
Ibid. , p. 99.

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de causa inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cuja o efeito não pode ser
compreendida por ela só. E partindo dessas definições temos outra que completa a
nossa explicação que diz:

Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo que somos a
causa adequada, isto é, quando em nossa natureza se segue, em nós ou fora
de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só.
Digo do contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo ou quando de
nossa natureza se segue algo de que não somo causa senão parcial. 3

Agir e padecer diz respeito aos tipos de afecções que se sucede em nós, ora,
como é posto pela EIII Def2vemos que os afetos e as afecções do corpo humano é
aquilo que nos possibilita aumentar ou diminuir, estimular ou refrear, a nossa potência
de agir, e perceber, e imaginar. E ainda na explicação da mesma, temos que quando
somos causa adequada dos nossos afetos, compreende-se assim que agimos do contrário
quando não somos ativos em nossas afecções estamos no reino das paixões.

Sendo assim, chegamos num ponto preciso da nossa apresentação, ao conceito


de servidão humana. A questão agora é indagarmos como se configura a servidão ou o
poder das coisas sobre o homem ou o poder de um homem sobre outro homem para
Spinoza. O conceito de servidão humana em Spinoza tem seu lugar preciso no prefácio
da IV de sua obra Ethica, Spinoza entende por servidão a incapacidade de regular e
refrear os afetos.

Aqui temos uma diferenciação desse tema de Spinoza, pois não trata de evitar os
afetos ou domesticar o homem por uma educação contra os afetos, pois os afetos são
necessários a natureza humana. Porque assim como as intemperes são necessários a
natureza, do mesmo modo os afetos são necessários ao homem. De modo que não há
como evita-los, sendo assim o que podemos fazer é regula-los ou refreá-los.

Logo, sendo a paixões necessário ao homem no spinozismo como será saída da


servidão? A condição da servidão humana é um estado no qual o indivíduo tem suas
ações em um outro. É a condição no qual o sujeito não está sui juris (sobre o seu próprio
poder) passando a configurar coisas de modo confuso, como próprio Spinoza diz, vendo
o que é o melhor e no entanto fazendo o que é o pior. Essa confusão é compreendida

3
Ibid. , p.163.

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como fruto da imaginação no qual o homem, segundo Spinoza, passa a julgar as coisas
de forma confusa, julgando assim que há um Deus transcendente que crias as coisas do
nada, e que a mente está separada do corpo. E que caba ao corpo está ao serviço da
mente.

Sendo assim como já ressaltamos aqui: quanto mais um corpo é capaz de agir
sobre um número de coisas, mais a sua mente é capaz de pensar um número maior de
coisas, ora a mente está unida ao corpo e não o determina, pois ambos os modos são
expressão da mesma realidade imanente que é Deus, de modo que não há uma
superioridade de um sobre o outro. Podemos então concluir que o corpo, em Spinoza,
tem um papel importantíssimo na submissão dos indivíduos, pois na medida que o
sujeito passa a conceber o seu corpo do modo confuso, isto é, sem conhecer as causas
que o determinada a agir. Ele passara a conceber a realidade e suas ações de modo
confuso não sendo, assim causa adequada.

Uma retórica corporal.

Foucault no capítulo I “Os corpos dóceis” da terceira parte de sua obra Vigiar e
Punir irá delinear sobre o corpo de como essa parte do homem vai se configurar no
início do século XVII com toda as suas nuanças, de modo que todas as características
do corpo irão formar, como o próprio autor ressalta “uma retorica corporal”. Exemplo
disso são as diversas posturas e formas que as instituições e as tendências modernas
estéticas postulam a maneira mais adequada ou certa do corpo humana. Assim era então
a figura do ideal de soldado, usado como exemplo de Foucault, alguém que antes de
tudo era reconhecido de longe, pois o seu corpo era o brasão de sua força, a imagem
irrefutável de sua virilidade, prova de um bom recruta.

[...] a cabeça direita, o estômago levantado, os ombros largos, os braços longos, os


dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os pês secos, pois o
homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: [tornado lanceiro, o soldado]
deverá ao marchar tomar a cadência dos passos para ter o máximo de graça e
gravidade que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e merece ser levada com
um porte grave e audaz 4

As novas transformações dadas ao corpo não são resultado de um empenho


individual mas de um processo regulador das instituições da sociedade. Pois o que

4
Foucault, Michel. Vigiar e Punir. 1987, p. 117.

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constata Foucault é que no final do século XVIII o camponês que até então lhe era
reservado as atividades do campo foram expulsos e agora lhe foram atribuídas a
fisionomia de um soldado.

É claro, como foi aqui já ressaltado, isso não foi resultado de um processo
individual, mas sim dos diferentes tipos de instituições reguladoras da sociedade,
fabricando assim os soldados, atribuindo a aquele corpo características que atendam a
interesses estranhos, como uma espécie de massa de modela que se molda na medida
que lhe impõe. Assim, tal ação tacitamente percorre toda a extensão do corpo de
maneira calculada e silenciosa se tornando senhor dos indivíduos, mudando seus os
hábitos e costumes.

O corpo como fonte de manipulação e poder.

A manipulação do corpo de maneira detalhada, torna apto a subserviência resulta


naquilo que Foucault chamou de “automatismo dos hábitos” que podemos descrever
aqui como uma espécie de estranhamento ou até mesmo de servidão, no entanto, essa
condição do automatismo do corpo, sobre a analise foucaultiana, vai muito mais além.

Entende-se de forma geral por autômato, segundo o dicionário de Filosofia de


Nicola Abbagnano, algo puramente mecânico “o que se move por si, em geral, uma
coisa inanimada que se move por si ou, mais especificamente, um aparelho mecânico
que realiza alguma das operações consideradas próprias do animal ou do homem”
(ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia. 1998, p. 97). Podemos chamar de
uma espécie de servidão, pois é produto de coesões que são incididas sobre o corpo
impossibilitando assim a aquilo que chamamos a autonomia, de maneira que uma ação
do autômato já está, de certa forma predeterminado, para não dizer, automatizada. Daí
concluirmos que o automatismo tem o princípio da servidão humana, onde a ação dos
indivíduos está em outra coisa estranha a ele mesmo. E isso segundo Foucault, é a
própria condição de adestramento ou disciplinamento dos corpos.

Ora, essa empreitado sobre o corpo tem suas razões precisas. Segundo Foucault,
a época moderna, que o autor chama de período clássico, foi o momento que se viu o
corpo como “objeto e alvo de poder” “Encontramos facilmente sinais dessa grande
atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que

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obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT,


Michel, Vigiar e Punir. 1987, p. 125).

Segundo Foucault, essa concepção do corpo foi constituída de duas formas: uma
forma como anátomametafísica, onde temos Descartes como um dos pensadores
responsáveis que ajudou na construção dessa concepção, e que mais tarde tal concepção
foi reproduzida por outros pensadores e médicos. E a outra concepção, é o técnico-
Político. Essa construção da figura do corpo não tinha só razões de ilustrar o
organismo, no caso o corpo, mas também de tornar os corpos, compreendido agora
como autômatos, com bonecos políticos.

No entanto, essa descoberta do corpo e o mecanismo para o tornar dócil não é


algo exclusivo do século XVIII, como destaca bem Foucault. Em outros tempos o corpo
também foi objeto de grandes investidas, pois o corpo em qualquer sociedade está
ligado por uma relação muito estreita de poder: lhe imponto regras, limitações,
obediências e obrigações.

A disciplina dos corpos.

A peculiaridade que o séc. XVIII traz sobre a forma de submeter o corpo é a sua
forma detalhada, como por exemplo, a forma de controle. Vejamos nas palavras de
Foucault:

[...] controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como
se fosse uma unidade indissociável mas de trabalha-lo detalhadamente; de
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível de mecânica
[...] O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos
significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia,
a eficácia dos movimentos, a coesão se faz mais sobre as forças que sobre os
sinais.5

Esse novo método que agora incide sobre o corpo uma manipulação minuciosa,
uma sujeição de suas forças, que enquadra o corpo na relação docilidade-utilidade,
Foucault chama de “disciplinas”. Vários desses tipos de disciplinas já existiam em
muitos locais, como bem relata Foucault: “nos conventos, nos exércitos, nas oficinas”,
mas será no séc. XVIII que tal prática será inserida como formulas gerias de dominação.

5
Ibid. , p. 118.

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Essa nova forma de dominação dos corpos se diferencia das diversas formas já
vista: a da escravização, porque não se fundamenta na apropriação do corpo, da
domesticação, onde se predominava a vontade singular do patrão, a da vassalagem e
outros.

O carácter singular que Foucault percebe dessa nova prática nomeado por
disciplina é dado quando tivemos uma compreensão do corpo não só visto em sua
potencialização e nem em sua total sujeição. Mas sim engrenado num relação que no
mesmo mecanismo esteja que tanto mais obediente será tanto mais útil, e assim vise e
versa.

O corpo como mecanismo de poder.

Outra descoberta bastante utilizada no séc. XVIII como prática na disciplina dos
corpos ressaltada por Foucault é a estrutura de poder no qual o corpo está inserido:

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o


desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também
igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se
pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam
o quer, mas para que opere como se quer ... 6

Tais como as fabricam que constrói corpos exercitados, no entanto os produzem


como finalidade também de obediência, os corpos dóceis. Ora, segundo Foucault, a
disciplina ela dissocia o poder do corpo, pois de um lado ela o potencializa, mas em
contra partida ela o sujeita.

Essa nova forma de politica, para Foucault, é entendida como um surgimento de


maneira inesperada, mas fruto de uma multiplicidade de processo. Com origens
diferentes, localidades, que por vezes que imitam e se apoião um no outro, se distancia
em seu campo de aplicação. Num primeiro momento, podemos encontrar essa pratica
nas escolas, nos espaços hospitalar e nas organizações militares.

CONCLUSÃO
Partindo dos pressupostos aqui levantados podemos deduzir que, ao debruçamos
sobre a questão do corpo vemos o quão tal questão nos leva a infinitos problemas quer
no campo ético quer no campo político, pois se tratando do corpo percebemos que não

6
Ibid. , p. 119.

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só nos tempos de hoje inventamos e reinventamos o modo de como o vemos. E que tal
questão, por sua vez descortina tantas outras questões que antes se manifestava de modo
velado, confuso e oculta. De maneira que Spinoza, um pensador que sentiu o peso do
filosofar, pois sua vida e o seu pensamento caminharam estreitamente tão próximo um
do outro. Pensador do século XVII numa comunidade judaica de Amsterdã, marcada
por severas punições ao corpo. Exemplo disso os próprios judeus da comunidade que ao
infligirem as leis fundadas nas sagradas Escrituras eram punidos com castigos severes.
Como no caso do Judeu Uriel da Costa, que ao preferir ideias contrarias as autoridades
religiosa foi castigado com 32 chibatadas, posto num uma escadaria de sinagoga coberto
por cinzas e pisoteado por membros de sua comunidade. Tal repreensão resultaria então
no suicídio de Uriel. Sendo assim, todo aquele aparato ideológico fundamentado pela
teologia daquela sociedade vivida por Spinoza será refutado. A superioridade da mente
sobre o corpo era uma das teses que legitimavam essa espécie de punição. Ora o Deus
sive natura, é um Deus sustentado pelo esforço do crivo da razão onde temos a
finalidade a felicidade dos homens livres. De modo que Deus é realidade imante
produzido a si mesma sem uma ordem hierárquica das coisas de maneira que o corpo e
mente enquanto expressões dessa mesma realidade não estão numa relação de
subordinação. Pois, segundo o nosso pensador, o corpo é tão capaz de muitas coisas
assim como a mente também é potencializada a pensar várias coisas de várias maneiras.
Evitando assim a confusão da servidão. Foucault, por sua vez, analisando o corpo irá
perceber que essa estrutura tão complexa do homem compõe aquilo que o autor chama
de “retorica do corpo”, revelando assim as várias forças que incidem sobre o corpo.
Como por exemplo, ao decorrer do tempo o corpo do camponês foi ganhando formas
robustas de um soldado se adequando assim as necessidades exteriores. Segundo
Foucault, essas transformações do corpo não são dadas pelos indivíduos mas sim pelas
instituições da sociedade que no percorrer da história foram modificando o corpo. Essa
manipulação tem com finalidade o “automatismo dos hábitos” tornado assim os
indivíduos subservientes, de modo que o corpo passa a ser uma espécie de centralidade
do poder na sociedade de suma importância.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução bilíngue latim-português de Tomaz Tadeu.


3ª Ed. São Paulo: Autêntica, 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigias e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel
Ramalhete. 20ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

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