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SOBRE A HISTÓRIA DA ÁFRICA: IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES

Jorge Luiz Domiciano

A África e os africanos por muito tempo não foram considerados temas


relevantes para fazer parte da grade curricular dos cursos de formação histórica no
Brasil. Isso se deve pela cultura histórica propagada no país desde a formação do
sentimento nacionalista. Buscando ancorar-se na cultura europeia, as elites brasileiras
sempre negaram o elemento negro de nossa sociedade ou o relegaram a um papel
subalterno. Isso com certeza não é uma particularidade brasileira, mas vem de um
longínquo processo histórico que produziu, no imaginário ocidental, uma diferença
entre branco e o negro, entre europeu e o africano, entre a civilização e a barbárie.

O historiador Anderson Oliva (2003), em um trabalho sobre a representação


africana nos livros didáticos, aponta a maneira como nossa compreensão de África
está impregnada de um racismo construído ao longo da história. Na Grécia antiga, o
historiador grego, Heródoto, ao se deparar com alguns povos africanos – que
chamava de etíopes –, atribuiu-lhes um caráter selvagem e animalesco. Portanto, eles
seriam outros, opostos à cultura grega, civilizada e branca. Isso se desenvolveu no
período da Idade Média. Para a Igreja Católica, os africanos seriam povos
descendentes de Cam, um personagem bíblico amaldiçoado por Deus. A punição
desse povo, na interpretação europeia, era sua escravização pelos brancos. Não é
preciso explicar que esse argumento foi inventado para se legitimar a exploração e
comércio dos homens africanos pelas mãos dos homens europeus.

Mesmo com a superação da interpretação religiosa, essa visão sobre o negro


permaneceu. No século XIX, com a ascensão do discurso cientificista, surge o
conceito de raça, adaptado da biologia, para justificar a superioridade do branco em
relação ao negro. A teoria que explicaria isso era o chamado darwinismo social, que
compreendia a história humana como um processo evolutivo. Os povos africanos,
portanto, seriam biologicamente inferiores aos europeus, pois ainda se encontravam
numa etapa de selvageria. Isso legitimou a intervenção imperialista no continente, a
partir das quais, as nações brancas estariam ajudando o continente a encontrar a
civilização.
Essas representações inferiorizadas dos povos africanos serviam como meio
de estabelecer domínio imperialista na África. Como aponta Leila Leite Hernandez
(2008), esse tipo de exploração teve início ainda no século XV, pelos portugueses.
Nesse momento, Portugal buscava, no continente negro, ouro e homens para serem
escravizados em suas colônias. Junto disso, havia um processo de conversão dos
líderes negros à fé católica. Pois a dominação europeia não se fazia apenas pela via
bélica, mas também simbólica.

Até o século XIX, no entanto, não havia uma infiltração sistemática dos
europeus no sentido de colonização, os portugueses se limitavam ao comércio com
as regiões costeiras do continente. Foi a partir de 1830, com o trabalho dos
missionários protestantes, que a África vai ser inteiramente explorada. A intenção
anunciada seria a regeneração da alma dos “selvagens” a partir de sua conversão aos
valores da cultura europeia (HERNANDEZ, 2008 p.53-4). Mas além disso, as
expedições realizadas neste século visavam à exploração geográfica do continente
em busca de rotas fluviais.

Devido à intensificação da exploração do continente pelas diversas nações


europeias, foi necessário realizar-se, entre 1884-1885, uma conferência entre as
principais potencias imperialistas no intuito de regulamentar a liberdade comercial e
de navegação na bacia do Congo e Zaire, além de estabelecer a partilha do território
entre elas. Foi a Conferência de Berlim, que impôs aos povos africanos sua divisão e
enquadramento dentro de sistemas sociais totalmente alheios à suas tradições
linguísticas, religiosas e étnicas.

Mas não houve apatia ou passividade por parte dos africanos. Ainda nos fins
do dezenove, surgiu um movimento negro que buscava dar um sentido de unidade
entre os diversos povos de origem africana que estavam espalhados ao redor do
globo, mas que compartilhavam da mesma situação de opressão física e moral
perante a civilização branca. Era o pan-africanismo:

um movimento político-ideológico central na noção de raça, noção que


se torna primordial para unir aqueles que a despeito de suas
especificidades históricas são assemelhados por sua origem humana
e negra. O movimento pan-africano surgiu como um mal-estar
generalizado que ensaiava o tema de resistência à opressão,
pensando a libertação do homem negro (HERNANDEZ, 2008 p.138).
Esse movimento, não usava, no entanto, o conceito de raça à maneira
elaborada pelo darwinismo social. O pan-africanismo ressignificou esse conceito,
retirando dele a primazia na biologia, passando a ressaltar a questão histórico-cultural.
Pertencer a raça negra seria partilhar de um ethos em comum, marcado pela
semelhante exploração, violência física e simbólica no passado escravista e no
presente colonial. Os intelectuais que formularam essa corrente de pensamento,
como Blyden, Du Bois e Garvey, da vertente anglófona, e Senghor, Diop e Césaire,
de vertente francófona entre o fim do século XIX e início do XX, apresentam um
sentimento comum de desenraizamento cultural. Devido ao fato de descenderem da
diáspora negra – conceito que se refere a dispersão forçada dos povos africanos pelo
mundo – por meio da escravização, estes intelectuais propunham o retorno ao
continente de seus ancestrais, em busca da construção de uma nação negra forte e
soberana. Uma “África para os africanos”. Com esse propósito, fomentaram diversos
movimentos de libertação das colônias africanas frente ao imperialismo europeu.
Muitos movimentos de resistência negra surgiram ao longo da história frente à
opressão europeia, mas o pan-africanismo teve a relevância de unificar o sentimento
de negritute ao redor de todo o globo, deixando até hoje reflexos na luta contra a
opressão racial.

Na segunda metade do século vinte, com a descolonização da África e Ásia,


houve um movimento progressivo em relação ao lugar do negro e de outras minorias
étnicas, nas sociedades ocidentais. Além do já referido pan-africanismo, houve o
Movimento dos Direitos Civis e os Panteras Negras, nos EUA, como um dos principais
marcos da causa. No entanto, apesar de alguns avanços trazidos nesse período, hoje
percebe-se alguns refluxos no progressismo e outros problemas identitários surgem
no seio das antigas nações imperialistas.

Em um artigo que investiga o caso de racismo na Federação Francesa de


Futebol, Anderson Oliva (2015) aponta para o problema da inserção cultural dos
descendentes de africanos e antilhanos dentro do discurso da identidade nacional
francesa. Em suas formulações, aponta que, apesar da tentativa dos governos
progressistas de se afirmar o caráter multicultural da sociedade, hegemonicamente a
ideia de que existe uma identidade pura, branca e europeia, ainda persiste.

Um ponto relevante que ressalta é a de que esse discurso, difundido por


pessoas públicas do ramo esportivo, por políticos de extrema direita e por pessoas
comuns, se baseia na ideia de superioridade da nação francesa diante de suas ex-
colônias. Desta forma, segundo dados levantados pelo autor, cerca de metade da
população não aceita a cidadania dos imigrantes de origem colonial. Em outras
palavras:

O outro – “africano”, “negro”, “árabe”, “ex-colonizado” –, que antes se


encontrava no “além-mar”, passou a ocupar espaços próximos
demais, como as ruas, os centros comerciais, as escolas, as áreas de
lazer (como as arquibancadas dos estádios), os locais de trabalho
(como os gramados de futebol) e os bairros residenciais das próprias
cidades europeias (OLIVA, 2015, p. 401).
A reflexão de Anderson Oliva parte do futebol, que é um meio onde as emoções
sobrepõem a razão, podendo revelar a mentalidade colonialista ainda presente na
cultura ocidental. Este caso que o autor analisa, trata de um caso francês, no entanto,
partindo da nação francesa, que é um dos mais tradicionais porta-vozes do mundo
europeu, podemos ultrapassar suas linhas para refletir a cultura ocidental como um
todo. O que deve ser repensado em nossa sociedade é a relação imaginária entre o
Eu e o Outro. É necessário repensar a nossa identidade de forma a abarcar nela a
diversidade, pois não há uma cultura pura e original, todas são mutáveis e comportam
uma multiplicidade influências vindo desse outro, mas nem por isso ele vai nos
dissolver. A separação estanque entre o branco e negro, europeu e o africano é uma
ficção que não possui sustentação em base racional. E se nos propomos a superar
isso, não podemos mais aceitar esse discurso se perpetuar. Para isso, no entanto,
devemos conhecer melhor o outro lado dessa história.

REFERÊNCIAS
HERNANDEZ, Leila Leite. O pan-africanismo. In: HERNANDEZ, Leila Leite. A África
na sala de aula. Segunda edição revisada. Editora MEC. Brasília, 2005.

______. O processo de “roedura” do continente e a Conferência de Berlim. In:


HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Segunda edição revisada.
Editora MEC. Brasília, 2005.

OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações


e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos (UCAM. Impresso), Rio
de Janeiro, v. 25, n.3, p. 421-461, 2003.

______. Identidades em campo. Discursos sobre a atuação de jogadores


interculturais de origem africana e antilhana na seleção francesa de futebol. Revista
de História (USP), v. 173, p. 395-425, 2015.

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