Você está na página 1de 3

Comentário do texto Da Identidade Pessoal de Hume

Jorge Luiz Domiciano

O início do texto Da Identidade Pessoal traz a crítica que Hume direciona à concepção
cartesiana acerca do Eu. Segundo esta concepção, o Eu seria uma entidade simples e contínua,
cuja existência era indubitável; além disso, o Eu seria a condição de existência das
percepções. Hume, por sua vez, afirma que não existe um Eu simples e contínuo em si, que
possa ser observado quando se é buscado. Pelo contrário, Hume afirma que quando tenta
encontrar em si esta entidade, o Eu, o que ele encontra é uma profusão de percepções distintas
e descontínuas.

De acordo com a perspectiva empirista de Hume, toda ideia real deriva de uma
impressão. Deste modo, para a ideia de Eu ser real – enquanto uma entidade simples e
contínua, que fundamenta a identidade pessoal –, ela deveria necessariamente provir de uma
impressão – igualmente simples e contínua –, com a propriedade de ser invariável ao longo de
toda a vida do indivíduo. Como tal impressão não existe, Hume afirma que a ideia de Eu
também não existe realmente.

Segundo Hume, não há nos homens um Eu, uma alma, ou uma substância eterna e
imutável. Em suas palavras, os homens são feixes de percepções variadas e descontínuas, e a
atribuição de uma identidade que as unifique em uma entidade simples provém da
imaginação; ou seja, ela é uma ficção. E o problema que mobilizará Hume é o de saber o que
faz com que os indivíduos atribuam uma identidade contínua e invariável a esse conjunto de
percepções variadas e descontínuas que os constitui.

Na busca da resposta de seu problema, Hume apresenta os conceitos de identidade ou


mesmidade e o de diversidade. Os primeiros dizem respeito à ideia que possuímos de objetos
que permanecem invariáveis e ininterruptos em um dado período de tempo; o segundo diz
respeito à ideia que possuímos de objetos diferentes, existindo em sucessão ou em estreita
conexão entre si. Hume dirá que existe uma propensão de nosso pensamento que faz com que
confundamos estes conceitos, de modo a atribuirmos identidade ao que é diverso.
Na investigação da propensão da imaginação humana de atribuir identidade ao
diverso, Hume observará que ela ocorre quando os objetos distintos e descontínuos estão
associados entre si por meio de uma relação de semelhança, contiguidade ou causalidade. Na
sequência do texto, Hume fará algumas demonstrações a esse respeito.

Um exemplo que dá, a respeito da associação da ideia de objetos, é o de uma massa de


matéria com partes contíguas e conectadas. Neste caso, se houver alguma mudança pequena
ou insignificante a essa massa, no caso de um acréscimo ou decréscimo às partes, a mudança
será muito sutil ou gradual, fazendo com que o pensamento não perceba a variação. Hume
demonstra que a grandeza das partes deve ser entendida não maneira absoluta, mas de
maneira proporcional ao todo; de modo que não percebemos a mudança quando o que muda é
uma parte pequena em relação ao todo. Neste sentido, ele aponta que é o pensamento que dá
continuidade aos objetos descontínuos.

Hume apresentará outra relação que faz como que atribuamos identidades a objetos
diversos, é a relação de causa e efeito. Nesse caso, as partes de uma matéria podem se
modificar radicalmente, mas na medida em que percebemos uma conexão entre um antes e
um depois, ainda assim atribuímos uma identidade a esse objeto. Ele utiliza o exemplo de um
indivíduo humano, que, de uma criança se torna um homem adulto sem perder sua identidade;
o mesmo ocorrendo com as plantas e outros animais.

A partir destas demonstrações, Hume retorna à questão da identidade pessoal para


afirmar que em relação a elas, atuam os mesmos princípios relacionais, a saber, os de
semelhança, contiguidade e causalidade. De modo que não existe algo que unifique realmente
as diversas percepções em uma só, e essa relação só existe na imaginação, como uma
associação de ideias e não de objetos. A identidade pessoal decorre, deste modo, de uma
transição suave e progressiva de ideias mentais, que vão se conectando entre si a partir de uma
propensão da imaginação.

Dos três princípios relacionais da mente humana, mencionados acima, Hume mobiliza
apenas o de semelhança e de causalidade para explicar a identidade pessoal. No caso da
semelhança, ele ressalta o papel da memória em despertar imagens de percepções passadas,
criando uma cadeia de percepções semelhantes de modo a criar uma ideia de continuidade.
Em relação à causalidade, ele também menciona a memória, mas em outro sentido. Hume
pontua que a mente humana é constituída de diversas percepções distintas, que se
influenciam, produzem e afetam umas às outras. E na medida que a mente humana se
modifica constantemente, a relação de causalidade é o elemento que propicia uma ligação
entre os seus diversos estados; pois cada diferença e transformação é conectada à outra numa
relação de causa e efeito.

Por fim, Hume fará uma associação da noção de identidade com a noção de
simplicidade. E apontará que para a imaginação, a estreita relação de diversas partes de um
mesmo objeto entre si, dão um efeito de simplicidade e indivisibilidade deste objeto, de modo
a fazer com que fantasiemos um centro que dê suporte à diversidade das percepções; que é
neste caso, a ideia de Eu.

Você também pode gostar