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Nascido na Escócia, no ano de 1711, David Hume está no panteão dos filósofos

empiristas mais relevantes da modernidade. A fama obtida pelo pensador se dá,


sobretudo, pela sua contribuição à epistemologia. Em seu livro Investigação sobre o
entendimento humano, Hume põe-se a investigar os fundamentos do conhecimento
humano e, para isso, fará uso inicial de um ceticismo acadêmico que servirá para
estruturar o caminho de investigação acerca das sinuosidades do processo de
entendimento. Em um segundo momento, quando o autor se encontra cético à
metafísica como meio de obter respostas, Hume faz uso do naturalismo para defender a
tese de que a fonte do conhecimento humano é natural, instintiva e não derivada de um
raciocínio puramente metafísico. Esse percurso é exemplificado na afirmação do autor
ao dizer que “a filosofia nos tornaria totalmente pirrônicos [céticos], caso a natureza
não lhe oferecesse tão forte oposição”.
Inicialmente, será analisando os primeiros conceitos que perceberemos o
desenvolvimento do autor em direção ao ápice do ceticismo, que é responder o
problema da indução com uma dúvida hiperbólica que põe em xeque todo o efeito
vindo de qualquer tipo de causa -ainda que mais conhecida. Finalmente, quando a
proposição pirrônica for declarada, será analisada então a resposta naturalista de Hume
que, ao tempo que afirma ser o hábito o princípio que rege as operações do espírito e o
próprio proceder humano, também nega que poderia ser um raciocínio metafísico o
princípio regente das inferências causais. Ora, se faz necessário que percorramos,
portanto, o caminho de Hume na IEH1 a fim de apreendermos cada movimento do autor
na sustentação de sua afirmação.

1. O uso do ceticismo acadêmico

Na seção I de sua investigação, o filósofo propõe um tipo de ceticismo acadêmico


agora denominado como uma “filosofia complexa”. Tal filosofia teria a incubência de
garantir validade, solidez e fundamento às investigações, pois a mesma preveniria o
pensador de cair em erros metafísicos abstrusos. Não obstante, esse tipo de filosofia
possui, também, uma finalidade metódica que garante à investigação um tom de
suspeita e dúvida; esse tom, por sua vez, servirá para estruturar e sistematizar o caminho
do estudo a seguir.
Como estopim da investigação, Hume apresenta, na segunda seção, dois tipos de
percepções vivenciadas pela mente: a impressão e a ideia. A primeira diz respeito

1 Acrônimo para Investigação do entendimento humano


àquelas percepções que são vivenciadas no momento do fato, ou seja, no momento
primeiro de apreensão daquele ato. A segunda refere-se àquelas que são fruto da
posterior lembrança do momento de apreensão; essas, por sua vez, são menos vívidas e
fortes. Logo após a exposição, é enfatizado, na seção III, que as ideias que surgem à
mente (seja por ato de imaginar ou rememorar) são regidas por princípios que às
entrelaçam e encadeiam. Esses princípios de correlação podem ser classificados em três
tipos: semelhança, contiguidade e causa e efeito.
Afastando-se temporária e estrategicamente da investigação acerca das ideias, o
filósofo se debruça, na seção IV, sobre os objetos da razão humana, separando-os em
dois grandes grupos: relações de ideias e questões de fato. Quanto ao primeiro, disserta
que tal classificação diz respeito aos objetos que são intuitivamente e
demonstrativamente certos e lógicos. Para dar luz sobre a classificação, o autor traz
proposições gerais como que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado
dos catetos e que três vezes cinco é a metade de trinta. Tais proposições podem ser
descobertas pela simples operação da lógica e não precisam de algo externo para
garantir sua existência. Agora, no que diz respeito às questões de fato, diferentemente
das relações de ideias, essas são apreendidas a partir da observação, e por isso não
podem ser aplicadas e consideradas intuitivamente certas. Ao utilizar uma de suas
proposições, pode-se constatar que sua negativa é plausível e concebível, não entrando,
portanto, em contradição com sua tese original ou com a realidade. Para fins didáticos,
Hume traz à tona a sentença “o sol não nascerá amanhã” e comenta que a sentença
contrária desta, isto é, “o sol não nascerá amanhã”, é tão concebível quanto a primeira
e, portanto, igualmente sem contradição.
Após dissertar sobre os objetos da razão, o foco da investigação se volta para as
questões de fato, pois o autor considera digno despender tempo de estudo acerca da
possibilidade de utilizar tais questões como fonte de evidências a respeito não apenas da
realidade da existência, mas também de proposições que não estão ao alcance de nosso
testemunho, observação e memória. Mais ainda, Hume irá propor que o princípio de
causa e efeito seja basilar para as questões de fato, pois seria a partir dela que poderia se
inferir uma relação entre o fato presente e o fato passado.

1.1 O problema acerca da indução

No sexto parágrafo da seção IV, uma proposição indubitável é lançada pelo autor: “
o conhecimento da relação causa e efeito não é alcançado através do raciocínio a priori,
mas provém da experiência”. A certeza da experiência como cerne da relação causa e
efeito é defendida por Hume a partir da análise do primeiro ser humano, Adão. O
primeiro homem não poderia inferir, ao olhar para a água, que essa teria a capacidade
de afogá-lo sem antes ter experienciado tal angústia. É preciso notar que Adão era
pleno em suas faculdades cognitivas e mentais, porém, isso não era suficiente para
chegar à conclusão da capacidade da água de afogar sem antes ter essa experiência.
Portanto, somente é possível inferir algo a partir da experiência, nunca livremente por
raciocínios à priori.
Em dado momento surge uma dúvida acerca do que ligaria uma proposição à outra;
isto é, como o fato de compreender que um dado objeto sempre esteve acompanhado
por tal efeito se liga a uma conclusão de que outros objetos, que são semelhantes entre
si, estarão acompanhados de efeitos igualmente parecidos ? Hume entende que há um
elo, ou seja, um termo médio que liga ambas preposições. Entende, também, que esse
termo médio não pode ser fruto da intuição e muito menos pode ter caráter
demonstrativo.
Ora, se o termo médio não é de caráter inteligível, tampouco podemos confiar nas
premissas que o acompanham, pois sempre há a possibilidade da natureza se alterar e
não suprir as expectativas daquele que pensa o objeto.

Aqui se ergue o problema da indução. Se a premissa intermediária das inferências


que podemos fazer sobre objetos não garante uma certeza futura acerca da condição
desses mesmos objetos, não há porque se confiar em qualquer tipo de argumento. Neste
momento é posto à prova qualquer tipo de opinião que venha sugerir um efeito que
surja das causas - ainda que mais conhecidas. A resposta imediata para isso poderia
surgir do ceticismo pirrônico, que por sua vez propõe uma suspensão de juízo geral.
Contudo, aderir a esse tipo de ceticismo radical seria, igualmente, aderir uma suspensão
das atividades práticas do dia-a-dia

2. A resposta naturalista

Diante da proposta sugerida pelo pirronismo, Hume se abstém de procurar o


princípio que rege a mente humana por meio da metafísica e, a partir de agora, sugere
que é através do naturalismo que poderemos entender, afinal, qual é essa fonte.
Disposto a provar que não é por meio intelectivo que se pode conhecer o princípio
supracitado, o filósofo empirista utiliza duas imagens iniciais para esboçar seu
argumento em prol do naturalismo. Eis a primeira imagem: se um homem pleno de suas
faculdades mentais e cognitivas acordasse no mundo repentinamente, ele não poderia
de forma alguma conjecturar algum raciocínio que evidencie a ideia de causa e efeito.
Isso acontece, segundo Hume, porque os poderes particulares que realizam todas as
operações naturais jamais se revelam aos sentidos”. Seria igualmente difícil deduzir
que, apenas porque um evento precede outro, que um se configura como causa e o
outro como efeito.
A segunda imagem proposta por Hume afirma que: ao viver e tomar para si novas
experiências, o mesmo homem outrora citado notaria a existência de eventos similares
que estão em todo momento ligados entre si. Essa noção levaria, então, o homem a
inferir a existência de um objeto pelo outro; mesmo que não pudesse obter o
conhecimento do poder oculto do qual um objeto se fez formar outro. Contudo, tal
aparente impossibilidade não é suficiente para deter o homem a continuar tentar inferir.
Essa persistência natural e intrínseca do homem se deve a algum outro princípio.
O autor, neste momento, denomina o “outro princípio” como hábito. O hábito, por
sua vez, é uma propriedade intrínseca ao ser humano que o leva a possuir uma crença
que prevê que eventos simples, ao se repetirem no futuro, irão gerar resultados tão
iguais como os obtidos anteriormente. Não obstante, além de servir como um elo que
guia a causa ao efeito, o hábito tem o “poder” de garantir uma crença sólida ao
pensador, de forma que a ideia concebida lhe pareça inquestionável.

3. Conclusão

Retornando à sentença de Hume que predizia que “a filosofia nos tornaria totalmente
pirrônicos [céticos], caso a natureza não lhe oferecesse tão forte oposição”, agora,
depois de percorrer todo a sua investigação, ela se torna tão inteligível quanto os
argumentos expostos.
De fato, nota-se que Hume não possuía um ímpeto cuja vontade se baseasse em negar
o ceticismo. Porém, o uso estratégico do ceticismo para percorrer o caminho até o
problema da indução visava, no final do raciocínio, expressar a incapacidade do
intelecto humano de compreender os princípios regentes desse mesmo intelecto. O uso
do ceticismo serve, na investigação humeana, como um meio de descrever o princípio
de causa e efeito como sendo isento de processos intelectivos.
Por fim, entende-se o naturalismo humeano como sendo uma resposta que evidencia
a importância das crenças naturais e instintivas no processo de entendimento humano.
Para longe de um ceticismo pirrônico que põe à prova todo o processo de
conhecimento, o naturalismo traz consigo a resposta de que a natureza é, sobretudo, o
guia da vida humana2.

2 Investigação sobre o entendimento humano, p.216


4. Referências

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia - Zahar, 1997.

HUME, David. Tratado da natureza humana - 2a Edição. Unesp, 2009.

HUME, David. David Hume, Os Pensadores - Nova Cultural, 2005.

SMITH, P. J. O ceticismo de Hume - Loyola, 1995.

CHIBENI, Silvio. Uma investigação sobre o Entendimento Humano. Unicamp.br.


Disponível em: www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/hume/resinv.htm - 2004

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