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- No presente artigo, pretendo mostrar que Hume deve ser considerado um cético

em relação à existência da causalidade, uma vez que o espaço para a existência e


operatividade das chamadas ideias relativas e a configuração que o chamado
‘Princípio de Conceptibilidade’ assume na filosofia de Hume impossibilitam uma
resposta à questão de saber se a causalidade objetiva existe. Para justificar esta
conclusão, argumento que: i) a filosofia de Hume apresenta espaço para a
existência de ideias relativas, apesar de estas serem sem sentido; ii) o Princípio de
Conceptibilidade é restrito às ideias claras e distintas (excluindo-se as ideias
relativas do seu escopo).

- Alguns filósofos modernos contrapõem a noção de ideia relativa à de ideia


adequada ou positiva. Com efeito, uma ideia adequada consiste naquela que pode
constituir ou ser considerada conhecimento, pois corresponde a uma representação
genuína dos objetos (do conhecimento). A teoria da substância parece ter sido o
principal palco da concessão da existência deste tipo de ideias. Identificando o
campo das ideias adequadas ou positivas como aquele em que há uma descoberta
efetiva da essência dos objetos dos quais se tem essas ideias, e ideias inadequadas
com ignorância relativamente a essa essência

- Com base nessa distinção (entre ideia adequada e relativa), percebe-se, na


seguinte passagem, que a noção de ideia relativa parece ser entendida como
sinónimo de ideia confusa. De resto, ela persiste nas filosofias de G. Berkeley e T.
Reid – que contrapõe ideias relativas a ideias positivas

- Por contraste, as ideias que não merecem a designação de conceções (ou ideias
no sentido genuíno, mas sim de suposições) parecem ser as que não são
constituídas por cópias de impressões (ou de acordo com o Princípio da Cópia),
razão pela qual são consideradas confusas. Há diversas evidências textuais que
mostram que Hume estabelece uma relação entre ideia não adequada, confusa e
suposição. Também por esta razão, aquilo que é objeto de suposição é considerado
inconcebível (o que marca a contraposição entre os dois tipos de conteúdo mental).
A adoção deste critério pode perceber-se pelo uso dos termos ‘clareza’,
‘adequação’, ‘ideia’, ‘conceção’, ‘suposição’ para descrever ideias (de questões de
facto) de forma contraposta, isto é, de tal forma que as ideias que são formadas
diretamente a partir de impressões são colocadas como claras, e as ideias que o
não são, confusas ou obscuras

- Além disso, Hume tanbém parece identificar clareza com inteligibilidade,


compreensão com ter uma ideia clara e suposição com a formação da ideia de algo
que não se pode compreender6 . Isto mostra que Hume identifica as conceções,
ideias adequadas, claras, ou ainda ideias em sentido genuíno (que possuem um
correlato com impressões dos sentidos) com pensamento com sentido, e
suposições, ideias relativas ou confusas (que são construídas pela imaginação com
base em relações distintas daquelas que se mantêm entre os objetos claramente
concebíveis) com pensamento sem sentido

- Assim, pensar e falar no objeto de uma conceção é falar e pensar num objeto que
se sabe que existe (pelo menos como objeto da experiência sensitiva), mas pensar
e falar no objeto de uma suposição é falar e pensar num objeto cuja existência é, no
mínimo, indeterminada

- há apenas um critério para se considerar uma ideia adequada ou possível objeto


de conhecimento: a precedência das impressões em relação às ideias. No caso das
ideias relativas, à falta de um correspondente na experiência dos sentidos, resta
considerá-las suposições ou ideias sem sentido

- Uma vez que o meu principal objetivo neste artigo é fundamentar e configurar uma
interpretação cética da teoria causal de Hume a partir do reconhecimento de que a
ideia que se tem da causalidade objetiva constitui uma ideia relativa, é útil começar
a presente secção pela consideração de que Hume desqualifica a ideia de
causalidade do campo das ideias claras. O filósofo afirma que não é possível obter
uma ideia da necessidade causal tal que seria impossível conceber o seu contrário
sem contradição – pois para tal, esse conhecimento teria de ser a priori

- Note-se que a alusão ao princípio de que ‘tudo o que é concebível é possível’8 – a


partir de agora, referido como Princípio de Conceptibilidade9 e associado ao
chamado Princípio de Separabilidade10 – se mostra suficiente para mostrar a
impossibilidade e irrazoabilidade de inferir a existência de um poder genuíno a partir
da regularidade – pelo menos a partir de ideias com sentido. Porém, tal como é
reconhecido por diversos comentadores, a formulação deste princípio mostra que
está restrito às ideias adequadas, designação sob a qual apenas recaem as ideias
formadas pelo Princípio da Cópia

- Para compreender em que medida esta concessão de Hume deve ser considerada
uma parte fundamental de uma interpretação cética sobre as teorias causal de
Hume –, faz-se necessário determinar que configuração as ideias relativas
assumem na filosofia de Hume, e se a sua conceção de ideia relativa corresponde à
que Locke e Berkeley tinham da mesma

- Para se compreender em que consiste, ao certo, uma ideia relativa na filosofia de


Hume, vale começar pela constatação de que se se reconhece que apenas existem
na mente ideias que correspondam diretamente a impressões, não se poderia
pensar em nada que possuísse relações distintas daquelas que se estabelecem aos
objetos efetivos das impressões – tal como Hume reconhece ser possível (Flage,
2007, p. 146). Por exemplo, não seria possível pensar na centésima parte de um
grão de areia, para depois concluir que não se pode concebê-lo13, ainda que de
maneira confusa
- Reconhecer a existência de ideias relativas é reconhecer a existência de estados
mentais genuinamente produzidos a partir da imaginação fancy (e não que quando
se julga que se está a criar essas ideias, se está, na realidade, apenas a colecionar
memórias)

- Se se atentar apenas para o facto de Hume restringir o campo das ideias claras às
ideias que provêm de impressões, e se pensar que as ideias relativas são todas
aquelas que não são adequadas, tem-se que uma ideia é relativa a partir do
momento que se somam relações a essas impressões

- O simples armazenamento das ideias já envolve relações de semelhança, de


anterioridade temporal e de causalidade, assim como, de forma oblíqua, a formação
de qualquer ideia da imaginação fancy. Por exemplo, a ideia de um unicórnio parte,
pelo menos, de uma comparação com a ideia de cavalo e a sua presença na minha
mente implica que tenha alguma ideia de cavalo adquirida por uma impressão no
passado

- Além disso, uma vez que Hume considera qualquer conjunto de ideias de questões
de facto concebível, certas ideias claras seriam simultaneamente também ideias
relativas: claras em virtude do critério de inteligibilidade das conceções genuínas (a
precedência por impressões) e relativas em virtude do facto de integrarem uma
relação. Tal seria o caso das lembranças, da regularidade observável e das ideias
da imaginação fancy (por simples combinação)

- Entretanto, pode pensar-se que o significado de “especificamente diferente das


nossas perceções” pode significar i) diferente das perceções que efetivamente
detemos ou ii) ser diferente de uma perceção. Seguem-se duas razões pelas quais
a segunda hipótese é mais razoável

- deve considerar-se também que recorrendo ao Princípio de Conceptibilidade,


Hume resgata os requisitos da separabilidade e da não contradição, Hume conclui
que qualquer conjunção de questões de facto é clara e distintamente concebível e,
por conseguinte, concluir que qualquer coisa pode causar qualquer coisa. Estes
experimentos de pensamento aos quais Hume faz referência para explicar que a
ideia de causalidade – além da regularidade – não é observável nem demonstrável
são, a meu ver, uma razão teórica forte para negar que as ideias relativas
constituam simplesmente ideias constituídas pelo relacionamento das ideias

- O apelo a ideias que se referem a objetos observáveis (como César ou as bolas de


bilhar) para mostrar a contingência das regularidades causais mostra que Hume
considerava estas ideias adequadas (e lembre-se que o Princípio de
Conceptibilidade se restringe a estas ideias). Ora, da mesma forma que os eventos
alternativos aos observados, também as ideias da memória pelas quais se concebe
claramente o evento cuja repetição de facto se espera têm de ser consideradas
claras. Caso contrário, não se poderia comparar a conceção do choque das bolas
de bilhar, ou do pôr-do-sol ou qualquer questão de facto com o seu contrário

- Portanto, Hume não poderia manter-se fiel ao Princípio de Conceptibilidade nem


fazer uso do mesmo nestes exemplos se não considerasse as ideias da memória,
da imaginação fancy (como a existência do arcanjo Gabriel) e da causalidade, ideias
claras e distintas

- O que estas ideias mantêm em comum é o facto de se referirem a objetos que


foram ou poderiam ser observados (como, respetivamente, o pôr-do-sol ou César).
Neste sentido, Flage sugere que se chame as ideias claras aquelas que têm um
conteúdo pictórico, e que as ideias relativas se designem por ideias que não têm um
conteúdo puramente pictórico (Flage, 1982, p. 164, 168-169)

- Com isto, a noção de ideia relativa na filosofia de Hume é a mesma que nas
filosofias de Locke e Berkeley, a saber, de um objeto desconhecido em virtude de
não se possuir uma ideia clara do mesmo e, portanto, sobre cuja existência não se
tem qualquer garantia (Flage, 2007, p. 146; Kail, 2007b, p. 95)

- Uma vez que as relações são estabelecidas pela imaginação (T 1.1.4.7; T 1.1.5.1),
nem todas as ideias provêm de impressões. Porém, o que define se a ideia é
adequada ou relativa é remeter ou não diretamente para uma possível impressão.
Portanto, ainda que as relações estabelecidas sobre as impressões não estejam
dadas na própria impressão, o que torna as ideias adequadas é o facto de
corresponderem a impressões – mesmo no caso da causalidade, em que Hume
oferece duas definições da mesma a partir do que é observável pelos sentidos20.
Mas se as relações forem empregues para construir a noção de um objeto apenas a
partir de relações que não se mantêm entre os objetos observáveis – como a
causalidade objetiva e um substrato exterior e independente dos objetos da
perceção –, é apenas o facto de este objeto construído por meio das relações estar
relacionado com as impressões – no primeiro caso, explicando a regularidade, e no
segundo, causando impressões tão indistinguíveis que se crê tratar-se de um só e
mesmo objeto

- Deste modo, o princípio de contradição parece ser, na filosofia de Hume, o único


pelo qual se estabelece uma barreira nas possibilidades metafísicas, isto é, que
permite demarcar a impossibilidade – pois Hume considera impossível o que é
contraditório (T 1.2.2.1). Apesar disso, este princípio não esgota o campo das ideias
claras, mas constitui um entre outros requisitos – a designadamente, o leque de
ideias simples disponível para o agente, a memória e o Princípio de Separabilidade

- Uma vez que as relações são estabelecidas pela imaginação (T 1.1.4.7; T


1.1.5.1), nem todas as ideias provêm de impressões. Porém, o que define se a ideia
é
adequada ou relativa é remeter ou não diretamente para uma possível impressão.

- Se se aceitar, com
base nestas evidências, que Hume aceita ambos os lados deste princípio, o
Princípio de Conceptibilidade pode ser definido como um bicondicional, tal que se
algo é concebível claramente, então é possível, e se algo é possível, então é
concebível claramente, e se não é concebível claramente, então é impossível.
Aceitar que Hume defendia isto24 implica aceitar que o campo daquilo que
efetivamente existe se esgota nas possibilidades de se conceber ideias claras.

- Além disso, a evidência textual em que Hume afirma ser impossível existir uma
montanha sem um vale em virtude da incapacidade de concebê-lo mostra que
Hume aceita que o que é contraditório é impossível, além de aceitar que aquilo que
não implica contradição é possível. Portanto, para Hume, a contradição parece ser
uma marca inequívoca da impossibilidade, e a não contradição, da possibilidade

- A meu ver, há dois motivos para se rejeitar o Princípio de Inconceptibilidade na


filosofia de Hume. O primeiro é que há evidências textuais que tornam razoável
incluir outros requisitos que uma ideia tem de cumprir (além de o seu contrário não
implicar contradição) para poder ser considerada uma conceção genuína. O
segundo é que há fortes evidências que favorecem mais uma interpretação cética
sobre a existência da causalidade, e esta interpretação é reforçada pela recusa
desta conclusão

- Portanto, se se aceitar que Hume aceitava o Princípio de Inconceptibilidade, tem


de se sobrepor o critério da não contradição ao critério da precedência pelas
impressões para definir uma ideia clara. Dito de outro modo, deve aceitar-se que
apesar de a ideias de causalidade objetiva e de existência exterior serem
reconhecidamente ideias relativas, constituem ideias claras ou conceções genuínas,
uma vez que não implica contradição. Mas, por sua vez, isto é incoerente com a
afirmação de que a ideia de causalidade objetiva uma ideia clara ou conceção
genuína – para o que teria de se tratar de um objeto de uma impressão, o que
Hume nega explicitamente ao atribuir a crença na mesma causalidade à propensão
projetiva

- Sucintamente, o que procuro defender é que se se defender que Hume aceita o


Princípio de Inconceptibilidade, não seria razoável admitir a possibilidade da
existência da causalidade objetiva

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